Antropologia dos Rituais

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Terreiro de Umbanda

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  • RAFAEL DEROIS SANTOS

    ORIXS, CABOCLOS E EXUS EM PORTO ALEGRE:

    ESTUDO (FOTO) ETNOGRFICO DA PAISAGEM URBANA RELIGIOSA

    E DOS RITUAIS EM TERREIROS AFRO-RIOGRANDENSES NA CAPITAL GACHA

    Monografia apresentada como requisito para a obteno do

    grau de Bacharel, pelo Curso de Cincias Sociais, do Instituto

    de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal do

    Rio Grande do Sul.

    Orientador: Prof. Dr. Ari Pedro Oro

    Porto Alegre

    2009

  • RAFAEL DEROIS SANTOS

    ORIXS, CABOCLOS E EXUS EM PORTO ALEGRE:

    ESTUDO (FOTO) ETNOGRFICO DA PAISAGEM URBANA RELIGIOSA

    E DOS RITUAIS EM TERREIROS AFRO-RIOGRANDENSES NA CAPITAL GACHA

    Banca examinadora:

    Prof. Dr. Ari Pedro Oro (UFRGS) Orientador

    Ms. Daniel Francisco de Bem (UFRGS) Examinador

    Ms. Mauro Meirelles (UFRGS) Examinador

    Porto Alegre

    2009

  • Ebo mai, ebo mai, acareuia Xang mai, acareuia

    god mai

    Ebo mai, ebo mai, acareuia Xang mai, acareuia

    god mai

    Ca Cabecile!

    ***

    (...)

    A Umbanda paz e amor

    um mundo cheio de luz

    a fora que nos d vida

    E a grandeza nos conduz.

    Avante, filhos de f

    Com a nossa Lei no h

    Levamos ao mundo inteiro

    A bandeira de Oxal!

    ***

    Eu vi a lua clareando a rua,

    Levava uma garrafa de marafo

    Pro senhor Bar tomar.

    Passou um homem, olhou e viu

    Tirou o chapu e me cumprimentou

    Ser macumba, macumb

    Ou mandinga de amor.

  • AGRADECIMENTOS

    O texto que surge logo a diante, independente do contexto formal em que

    emerge, tem uma grande importncia para mim, representando, no plano do pensamento

    objetivado, uma experincia que me envolveu durante os ltimos anos: ser aluno do curso

    de Cincias Sociais, enveredado pela antropologia social com tons de imagens, buscando

    penetrar, paulatinamente, neste fascinante universo das religies afro-riograndenses. Nes-

    ta histria particular, vrias pessoas apareceram pelo meu caminho. Pelas encruzilhadas,

    algumas tomaram outra direo (mantendo-se sempre vivas na memria), outras continu-

    am ao meu lado. Agora, pouco importa. Todas so aquelas que me levantam(ram), e so

    estas que devo agradecer.

    Agradeo aos colegas da Graduao, em especial a Falange do Carlitos Pub,

    parceiros na descoberta de uma nova maneira de pensar o mundo. Se no cito os nomes,

    porque so vrios.

    Em famlia, jamais posso esquecer-me de prestar homenagem ao meu irmo

    Cristian, patrocinador, na quase totalidade, das imagens que completam esta pesquisa. A

    ele, adiciono minha cunhada Priscila, meus manos tempores Paulinho e Ana Maria, minha

    me Olga e o av Saturno, sempre to pronto a dizer o que deve ser feito...

    Por mais de dois anos, minha trajetria acadmica esteve atrelada ao BIEV/

    UFRGS, que se tornou (em diversos sentidos!), a experincia antropolgica mais impactan-

    te. Agradeo a todas as boas orientaes, ao estmulo pela reflexo e as amizades desen-

    volvidas, onde devo destacar a amizade que ficou da Vanessa (Valeska) e, por extenso,

    Joo Logurcio.

    Seguindo pelos caminhos do IFCH, e mudando de prdio, agradeo muito ao

    pessoal do NER, simplesmente essenciais na minha imerso nestes terreiros de Porto Ale-

    gre. Em especial, ao orientador deste trabalho Prof. Ari Oro, a vizinha Rosi, Cntia, Mauro e

    Daniel de Bem, estes ltimos parceiros na hora do batuque.

    J bem mais recente, agradeo ao pessoal que forma o DEDS, dividindo esta

    nova experincia em minha vida.

    Por fim, o meu mais profundo reconhecimento a todos os religiosos que abri-

    ram suas casas a minha entrada, revelando parte de suas prprias vidas. Fico honrado de

    em tantas oportunidades ter recebido tamanha confiana, e espero que este trabalho pos-

    sa ser visto como um simples tributo a esta f que encanta o mundo. Bia, Rose e Leoni, com

    todo o povo que lhes acompanha, obrigado por me deixarem de p.

  • RESUMO

    Este Trabalho de Concluso de Curso, inserido no campo da antropologia da religio e visu-al, tem como propsito apresentar um estudo de cunho etnogrfico no universo das religi-es afro-brasileiras praticadas na cidade de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul. O objetivo ser construir, atravs da escrita etnogrfica constituda pela intertex-tualidade da palavra escrita e imagtica, o panorama destas modalidades religiosas que, devido suas especificidades locais, sero apreendidas atravs do conceito religies afro-riograndenses. Parte-se do pressuposto que estas expresses do sagrado tm como uma das caractersticas em comum o fato de serem religies encantadas, ou seja, sacralizam as pessoas e o mundo objetivo, presentificando, a todo o momento, o sagrado no profano. Dessa forma, procura-se investigar tanto o mundo objetivo e o sujeito fiel em suas dimen-ses consagradas, que refletem os valores cosmolgicos, atravs da abordagem nos locais de referncia simblica da e na cidade de Porto Alegre e nos rituais de possesso, momen-to da mxima experincia religiosa, onde os smbolos da religiosidade afro-riograndense so ratificados e corporificados.

    PALAVRAS-CHAVE: Religio afro-brasileira Religies afro-riograndenses Paisagem urbana Ritual Porto Alegre.

  • RESUMN

    Este Trabajo de Finalizacin de Curso, integrado en el campo de la antropologia visual y de la religin, tiene como propsito presentar uno estdio de tipo etnogrfico dentro del universo de las religiones afro-brasileas practicadas em la ciudad de Porto Alegre, capital del Rio Grande do Sul, Brasil. El objectivo ser construir, atravs de la escrita etnogrfica constituda por la juxtaposicin de la palabra escrita e imgenes, el panorama de estas mo-dalidades religiosas que, por suyas especificaciones locales, sern compreendidas atravs del concepto de religiones afro-riograndenses. Teniendo en cuenta que estas expresiones de lo sagrado tienen como una de sua caractersticas el hecho de ser religiones encantadas es decir, tornan sacras a las personas e al sagrado en lo profano. Deste modo, predende-mos investigar tanto el mundo objectivo como el sujeito practicante en sus dimensiones consagradas, que reflejam los valores cosmolgicos, atravs de trabajo de campo en los locales de representasin simblica de la ciudad y en la ciudad de Porto Alegre y en los ritos de posesin, momento de mxima experincia religiosa, cuando los smbolos de la religiosidad afro-riograndense son ratificados y encarnados.

    PALABRAS-CLAVE: Religin afro-brasilea Religiones afro-riograndense Paisaje ur-bano Ritual Porto Alegre.

  • LISTA DE ILUSTRAES1

    Figura 1 - Montagem a partir de imagem obtida no site www.diadia.pr.gov.br. Pgina 20.

    Figura 2 - Reproduo de obra de J. B. Debret, obtida no site www.commons.wikimedia.

    org. Pgina 22.

    Figura 3 - Reproduo de imagem obtida no blog www.guebala.blogspot.com/2009. Pgi-

    na 25.

    Figura 4 - Reproduo a partir de imagens obtidas de In: SANTOS, Irene (org.). Negro em

    Preto e Branco Histria Fotogrfica da Populao Negra de Porto Alegre. Porto Alegre,

    Do Autor, 2005. P 37 e 111. Pgina 27.

    Figura 5 - Ibdem. Pgina 28.

    Figura 6 - Ibdem. Pgina 29.

    Figura 7 Terreiro Pai Luis Antnio, em 15.12.2007. Pgina 31.

    Figura 8 Festa Pomba-gira Cigana de Me Bia de Iemanj, em 24.11.2007. Pgina 32.

    Figuras 9 e 10 - Terreiro Pai Luis Antnio, em 15.12.2007. Pginas 32 e 34.

    Figura 11 Terreiro Me Tereza de Ogum, em 29.12.2007. Pgina 34.

    Figura 12 Terreiro Me Bia de Iemanj, em 31.12.2008. Pgina 34.

    Figura 13 Casa de religio no bairro Jardim Botnico, em 07.11.2009. Pgina 36.

    Figura 14 Residncia particular de religiosa na Ilha da Pintada, 23.09.2009. Pgina 37.

    Figura 15 Terreiro de Me Bia de Iemanj, Ilha da Pintada, em 23.09.2009. Pgina 37.

    Figura 16 Av. Oscar Pereira, prximo dos Cemitrios da Santa Casa e So Miguel e Almas,

    em 29.11.2007. Pgina 39.

    Figura 17 Beira do Rio Guaba, prximo da Usina do Gasmetro, em 31.12.2008.Pgina 39.

    Figura 18 Prximo Cruzamento Av. Augusto de Carvalho e Loureiro da Silva, em 10.11.2009.

    Pgina 39.

    Figura 19 Rua Fernando Machado, em 10.11.2009. Pgina 39

    Figura 20 Terreiro Me Mana de Ians, em 04.08.2007. Pgina 41.

    Figura 21 Festa a Iemanj, prximo Usina do Gasmetro, em 02.02.2007. Pgina 42.

    Figura 22 Montagem a partir de fotografia feita em 19.11.2009. Pgina 43.

    Figura 23 Igreja do Rosrio, Rua Vigrio Jos Incio, em 04.11.2009. Pgina 44.

    1 Excluindo as imagens presentes no Captulo 1 Uma expresso religiosa de origem africana, todas as fotografias foram realizadas pelo autor com o uso de mquina fotogrfica digital, na cidade de Porto Alegre (com excees das figuras 50 e 79 na Praia de Nova Tramanda , e 81,82 e 83 obtida atravs de captao em gravao em vdeo).

  • Figura 24 Igreja So Jorge, Av. Bento Gonalves, em 07.11.2009. Pgina 44.

    Figura 25 Santurio N. S. Aparecida, Ilha Grande dos Marinheiros, em 12.10.2007. Pg. 45.

    Figura 26 Mercado Pblico de Porto Alegre (externa), em 08.12.2009. Pgina 46.

    Figuras 27 e 28 Mercado Pblico de Porto Alegre (interna), em 08.12.2009. Pgina 47.

    Figura 29 Festa de Oxum, Praia de Ipanema, 08.12.2009. Pgina 48.

    Figura 30 Av. Borges de Medeiros, em 04.11.2009. Pgina 51.

    Figuras 31, 32 e 33 Mercado Pblico de Porto Alegre, em 04.11.2009. Pgina 52.

    Figura 34 e 35 Detalhes de flora no Mercado Pblico, em 04.11.2009. Pgina 53.

    Figura 36 Loja de Axs, Av. Joo Pessoa, em 07.11.2009. Pgina 55.

    Figuras 37, 38, 39, 40 e 41 Festa de Oxum, Praia de Ipanema, 08.12.2009. Pginas 57 60.

    Figuras 42 e 43 Santurio N. S. Aparecida, Ilha dos Marinheiros, em 12.10.2007. Pgina 61.

    Figura 44 Pai Luis Antnio de Agandju, em carreata na Av. Osvaldo Aranha, em 15.11.2007.

    Pgina 62.

    Figura 45 Me Ieda do Ogum e Pai Luis Antnio de Agandju, Largo Glnio Peres, 15.11.2007.

    Pgina 62.

    Figura 46 Palco 14 Semana Afro-umbandista, Largo Glnio Peres, em 15.11.2007. Pg. 62.

    Figura 47 Marcha Dia Nacional da Conscincia Negra, Av. Borges de Medeiros, em

    20.11.2007. Pgina 63.

    Figura 48 Terreiro Pai Luis Antnio, em 24.05.2008. Pgina 66.

    Figura 49 Festa Pomba-gira Cigana de Me Bia de Iemanj, em 24.11.2007. Pgina 66.

    Figura 50 Praia de Nova Tramanda, em 17.02.2008. Pgina 66.

    Figura 51 Terreiro Pai Luis Antnio, em 15.12.2007. Pgina 67.

    Figura 52 Festa do Exu Tranca-ruas das Almas de Pai Leandro de Xang, realizada na Praa

    da Saudade, em 29.11.2007. Pgina 67.

    Figura 53 Terreiro Me Ieda do Ogum, em 15.11.2007. Pgina 67.

    Figuras 54 e 55 Festa de Oxum, Praia de Ipanema, 08.12.2009. Pginas 71 e 72.

    Figura 56 Terreiro Pai Luis Antnio, em 24.05.2008. Pgina 75.

    Figuras 57, 58 e 59 Terreiro Pai Luis Antnio, em 15.12.2007. Pginas 77 e 78.

    Figura 60 Mercado Pblico de Porto Alegre (interna), em 08.12.2009. Pgina 78.

    Figuras 61 e 62 Terreiro Pai Luis Antnio, em 15.12.2007. Pgina 80.

    Figura 63 Festa de Oxum, Praia de Ipanema, 08.12.2009. Pgina 80.

    Figura 64 Terreiro Pai Luis Antnio, em 15.12.2007. Pgina 81.

  • Figura 65 Terreiro Pai Luis Antnio, em 24.05.2008. Pgina 81.

    Figura 66 Terreiro Pai Luis Antnio, em 15.12.2007. Pgina 81.

    Figuras 67 e 68 Festa de Oxum, Praia de Ipanema, 08.12.2009. Pginas 81 e 82.

    Figuras 69 e 70 Terreiro Pai Luis Antnio, em 24.05.2008. Pginas 82 e 83.

    Figura 71 Festa de Oxum, Praia de Ipanema, 08.12.2009. Pgina 83.

    Figura 72 Terreiro Pai Luis Antnio, em 24.05.2008. Pgina 85.

    Figuras 73, 74, 75, 76 e 77 Terreiro Pai Luis Antnio, em 15.12.2007. Pginas 85 e 86.

    Figura 78 Terreiro Pai Luis Antnio, em 24.05.2008. Pgina 88.

    Figura 79 Praia de Nova Tramanda, em 17.02.2008. Pgina 91.

    Figura 80 Festa Pomba-gira Cigana, de Me Bia de Iemanj, em 24.11.2007. Pgina 91.

    Figuras 81, 82 e 83 Still image de gravao de vdeo, terreiro de Me Bia de Iemanj, em

    2009. Pgina 92.

    Figuras 84 a 88 Festa a Iemanj, prximo Usina do Gasmetro, em 02.02.2007. Pginas

    93 96.

    Figuras 89 a 103 - Festa a Iemanj, prximo Usina do Gasometro, em o2.02.2007. Pginas

    98 104.

    Figura 104 Curimba Exu-Rei das Sete Encruzilhadas, de Pai Tony de Oxal, no Centro Vida,

    Av. Baltazar de Oliveira Garcia, em 26.08.2006. Pgina 107.

    Figura 105 Festa do Exu Tranca-ruas das Almas de Pai Leandro de Xang, realizada na Pra-

    a da Saudade, em 29.11.2007. Pgina 110.

    Figuras 106 e 107 Curimba Exu-Rei das Sete Encruzilhadas, de Pai Tony de Oxal, no Centro

    Vida, Av. Baltazar de Oliveira Garcia, em 26.08.2006. Pginas 110 e 111.

    Figuras 108, 109 e 110 Festa do Exu Tranca-ruas das Almas de Pai Leandro de Xang, reali-

    zada na Praa da Saudade, em 29.11.2007. Pginas 112 e 113.

    Figura 111 Festa Pomba-gira Cigana, de Me Bia de Iemanj, em 24.11.2007. Pgina 114.

    Figura 112 Festa do Exu Tranca-ruas das Almas de Pai Leandro de Xang, realizada na Pra-

    a da Saudade, em 29.11.2007. Pgina. 114.

    Figuras 113 e 114 Festa Pomba-gira Cigana, de Me Bia de Iemanj, em 24.11.2007. Pginas

    114 e 115.

    Figura 115 Obrigao Exu Bello, de Pai Neco de Oxal, em 23.03.2007. Pgina 117.

    Figuras 116 e 117 Festa do Exu Tranca-ruas das Almas de Pai Leandro de Xang, realizada

    na Praa da Saudade, em 29.11.2007. Pginas 119 e 120.

  • SUMRIO

    INTRODUO....................................................................................................................... 11

    1. UMA EXPRESSO RELIGIOSA DE ORIGEM AFRICANA................................................... 19

    1.1. Africanos no Novo Mundo............................................................................................. 19

    1.2. Percursos do Negro no Rio Grande do Sul................................................................... 23

    1.3. Territrios Negros em Porto Alegre.............................................................................. 26

    2. UMA PORTO ALEGRE DE QUEM FAZ A RELIGIO.......................................................... 30

    2.1. Do terreiro aos lugares da rua....................................................................................... 31

    2.2. Passeio por uma Porto Alegre afro-religiosa............................................................... 38

    2.3. Para alm do mercado profano: um comrcio sacralizado......................................... 48

    2.4. Quando a religio est para todos................................................................................ 56

    3. AS TRS MODALIDADES RITUAIS................................................................................... 65

    3.1. Ritual e Performance..................................................................................................... 68

    3.2. O Batuque...................................................................................................................... 70

    3.2.1. Toque aos orixs A Festa de Batuque.................................................. 76

    3.3. A Umbanda.................................................................................................................... 89

    3.3.1. Um ritual umbandista Homenagem a Iemanj.................................... 93

    3.4. A Quimbanda................................................................................................................. 104

    3.4.1. Magia de Exu As sesses e festas de Quimbanda............................... 108

    CONCLUSO......................................................................................................................... 121

    REFERNCIAS....................................................................................................................... 124

  • INTRODUO(voltar ao Sumrio)

    Este trabalho de concluso prope um estudo etnogrfico das religies afro-

    brasileiras praticadas em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Considerando as es-

    pecificidades que as religiosidades afro-brasileiras apresentam no quadro geral da cultu-

    ra brasileira, onde destaco a histrica regionalizao de suas prticas, organizarei as trs

    modalidades religiosas presentes em Porto Alegre dentro do conceito de religies afro-

    riograndenses. Esta opo no pretende segregar a religiosidade de matriz africana pre-

    sente no Estado do Rio Grande do Sul das demais regies brasileiras. Ao invs disso,

    justamente a apreciao atravs das especificidades locais que se amplia as possibilidades

    de reflexo da interao entre o fenmeno religioso e a sociedade na qual este se desen-

    volve, ao mesmo tempo em que traz a relevo aqueles elementos estruturais comuns a

    todas as religies de matriz africana praticadas no Brasil. Assim, viso um estudo do ponto

    de vista cultural, entendendo por religiosidade afro-brasileira, e por conseqncia afro-

    riograndense, a definio exposta por Renzo Pi Hugarte:

    Del punto de vista de la dinmica cultural, tales modalidades religiosas no son tanto expressiones de la transferencia y supervivncia de rasgos y complejos cul-turales procedentes de Africa, sino creaciones originales surgidas de las circuns-tancias sociales americanas a partir de diversas tradiciones que a su vez experi-mentarn reelaboraciones y reinterpretaciones (Pi Hugarte, 1998a: 9).

    Por religies afro-riograndenses, compreendo um conjunto de modalidades re-

    ligiosas que deve ser apreendido no de maneira isolada, mas enquanto um continuun re-

    ligioso (Corra, 1992 e 1994 e Oro, 1993 e 2002). Isto , expresses religiosas que mantm,

    em suas respectivas cosmologias, elementos simblicos comuns ou negociveis, possibi-

    litando o fluxo de comunicao entre as concepes sagradas. Dessa maneira, aos adep-

    tos, constituem percepes do sagrado que no se excluem mutuamente. Pelo contrrio,

    possibilitam passagens a permitirem o trnsito entre diferentes instncias da experincia

    mstico-religiosa.

    As trs modalidades que irei considerar dentro do conceito de religies afro-

    riograndenses so: 1) o Batuque, tambm denominado pelos adeptos por Nao; 2) a Um-

    banda; e, por fim, 3) a Quimbanda. Nas duas primeiras encontraremos, em Porto Alegre,

  • templos que realizam cultos exclusivos. Entretanto, como Ari Pedro Oro (2002) e Norton

    Corra (1994) divulgam com base em suas pesquisas, cerca de 80% dos templos de religies

    afro-brasileiras no Rio Grande do Sul associam duas ou mais modalidades religiosas, forma-

    lizando o conceito de Linha Cruzada. Os rituais de Quimbanda, dedicados ao culto de exus

    e pombas-gira sero efetuados no mago da Linha Cruzada. Portanto, no estarei tratando

    o conceito de Linha Cruzada como sinnimo de culto aos espritos de exus e pombas-gira,

    e, isto sim, enquanto toda aquela comunidade religiosa que desenvolve duas ou mais mo-

    dalidade de religies de matriz africana.

    Importante destacar que a idia de continuun religioso se expe, acima de tudo,

    precisamente neste fenmeno que possibilita, na vida religiosa dos adeptos, a experincia

    em diferentes instncias do sagrado, como, por exemplo, os cultos aos orixs africanos

    do Batuque e os espritos caboclos da Umbanda. Entretanto, no Rio Grande do Sul, estes

    cultos sero realizados sempre em separado, sendo o processo ritual o elemento que orga-

    nizar o tempo e o espao que estabelecer qual categoria de divindade ser abordada.

    Dentro dos elementos comuns a estas trs expresses religiosas, faz-se ne-

    cessrio, neste momento, discuti-los. A primeira caracterstica presente nas modalidades

    afro-riograndeses e que torna possvel associ-las em um continuun religioso, tanto para o

    ponto de vista do pesquisador quanto aos prprios adeptos que as praticam, perceb-las

    como cultos de possesso. Outra vez me apoio nas palavras de Renzo Pi Rugarte:

    Lo que los cultos considerados tienen en comn, es la creencia de que seres de naturaleza espiritual pueden ser evocados para que se manifesten atraves de per-sonas que les sirven de vehculos (Pi Hugarte, 1998a: 9).

    A manifestao de orixs africanos no Batuque e a incorporao de espritos

    na Umbanda e Quimbanda caracterizam a mais importante experincia litrgica nos rituais

    afro-riograndenses. Isto faz do processo de iniciao e preparao uma etapa crucial na

    vida religiosa do fiel, caracterizando-las como religies profundamente iniciticas, onde

    a relao entre tutor e pupilo, melhor expresso nos termos micos me ou pai-de-santo

    e filho-de-santo, assuma um papel fundamental, em detrimento ao conhecimento auto-

    didtico.

    Ari Pedro Oro, ao se referir sobre as marcas diferencias das religies afro-brasi-

    leiras (Oro, 1995: 75), lana luzes para se refletir a cerca de outras especificidades presen-

  • tes no ethos das religies afro-riograndenses. O autor enumera sete aspectos, que podem

    ser resumidos da seguinte maneira:

    I. Religies tolerantes e permissivas: no exigem uma identidade exclusiva, o que

    no significa que, ao longo do tempo, deixem de criar no adepto um novo modo de ser e

    viver;

    II. Religies emocionais: pelas prticas rituais permitem a expressividade emo-

    cional para alm do espao privado;

    III. Religies da aflio: oferecem recursos e bens simblicos que aliviam os pro-

    blemas do cotidiano;

    IV. Religies da seduo: cultiva o mistrio, o sagrado, o ritual, os smbolos e a

    magia, o que constituem elementos, por excelncia, de atrao e fascinao;

    V. Religies coletivistas e individualistas: favorecem a construo simultnea de

    identidades sociais e pessoais;

    VI. Religies encantadas: atravs da representao sacralizada dos homens e do

    mundo objetivo, o que alcana o mundo fsico, os fenmenos atmosfricos e etc.;

    VII. Religies carismticas: com a legitimao pelo conhecimento do lder e sua

    capacidade de agregar pessoas.

    Considerando os elementos at ento anunciados, as religies afro-riogranden-

    ses, enquanto ritos de possesso, devem ser percebidas no em sua dimenso teolgica ou

    na preciso de idias sobre os elementos escatalgicos, mas como religiosidade popular.

    Religiosidade popular, neste trabalho, no ser considerada como a devoo

    realizada pelos setores menos favorecidos economicamente, e sim como contraponto a

    denominada religiosidade oficial, focada nas concepes teolgicas e apoiada nos gran-

    des milagres e personalidades do passado. Para a religiosidade popular, estas questes

    assumem pouca importncia, sendo que os pequenos milagres do dia-a-dia, geralmente

    referidos aos campos da sade, laboral e afetivo, tm maior valor. Como argumenta Renzo

    Pi Hugarte:

    Lo realmente importante en la religiosidade popular, es la prctica, la accin; y respecto de ella, cuidar la forma exacta e inexcusable en que se debem llevar a cabo las ceremonias o la obtencin de favores concretos (Pi Hugarte, 1998b: 13).

    Quanto caracterizao das religies afro-riograndenses, finalizo destacando

  • aquela especificidade que Ari Pedro Oro (1995) denominou como religies encantadas.

    Atravs da crena na manifestao dos seres sobrenaturais, os rituais afro-gachos divi-

    nizam o corpo humano, a tempo que estimula a humanizao das divindades. Em tese,

    este processo se torna possvel pela concepo religiosa que atravessa todo o continuun,

    de no excluir dos deuses cultuados as caractersticas do mundo. Percebo uma relao de

    dupla troca envolvendo as tradicionais categorias sagrado e profano. Ou seja, pensar es-

    tes cultos como religies encantadas, faz pensar a presentificao do sagrado do mundo

    profano, seja entre os adeptos que presenciam a atuao das divindades, seja no prprio

    mundo objetivo. Este ser o principal argumento que dar as bases para a construo des-

    se trabalho etnogrfico.

    Partindo desta pressuposio, onde o divino se faz presente no mundano e, por

    conseqncia, podemos descobrir as caractersticas mundanas no divino, fenmeno que

    me referirei enquanto presentificao do sagrado no profano, o objetivo geral deste estudo

    ser abordar e realizar uma descrio de cunho etnogrfico da presena das religies afro-

    riograndenses em Porto Alegre. Em sntese, trata-se de uma forma de anunciar o panora-

    ma das religies de matriz africana em Porto Alegre.

    Desdobrando-se desse objetivo inicial, que considera a presentificao do patri-

    mnio simblico das religies afro-riograndeses em duas instncias distintas, porm com-

    plementares, os homens e o mundo objetivo que os cercam, esta pesquisa se especifica-

    r em dois objetivos: a apreenso dos smbolos da religiosidade em debate na cidade de

    Porto Alegre, o que leva a considerar uma noo de apropriao da cidade pelos adeptos,

    e, o momento em que estes smbolos so experienciados em seu grau mximo, ou seja,

    durante os rituais de possesso.

    Para isto, dedicarei um primeiro captulo com ares historiogrficos, na qual bus-

    co percorrer os caminhos das concepes africanas atravs dos grupos negros. Se por um

    lado tem o carter de reviso histrica, o que considero central visualizar a espacialidade

    que estas concepes simblicas, que deram as bases para os cultos de matrizes africa-

    nas, seguiram. Trazidos da frica durante o perodo do trfico negreiro, os negros, com

    suas culturas, se espalharam pelo vasto territrio americano. Presentes nas mais diferen-

    tes regies do Brasil, houve intensa troca cultural com o novo ambiente para onde vieram

  • sobreviver e, principalmente, entre outras etnias africanas. A religiosidade surge como

    estratgia de preservao da identidade negra num mundo hostil, ao mesmo tempo em

    que apontou como lcus de resistncia simblica escravido e marginalizao. No Rio

    Grande do Sul estas populaes foram decisivas na constituio do Estado, principalmente

    durante o perodo do Ciclo do Charque, que agitou a antiga provncia, estimulando um de-

    senvolvimento nunca antes visto. Com o declnio das charqueadas, situadas na Regio Sul

    do Estado, a maior parte dessa mo-de-obra foi dispensada para outros estados, enquanto

    uma grande populao negro-brasileira se estabeleceu nas maiores cidades, caso de Porto

    Alegre. Basicamente, percorrendo parte dos caminhos entre a frica e Porto Alegre, minha

    inteno neste captulo ser contextualizar historicamente as religies abordadas neste

    estudo, valorizando o prefixo afro, que as distinguem.

    Feita esta contextualizao, o segundo captulo se desdobrar nesta cidade de

    Porto Alegre vivenciada pelos adeptos das religies afro-riograndenses. Parto do pressu-

    posto que as metrpoles contemporneas, caso em que se inscreve a capital gacha, so

    palcos para a formao e o convvio de diferentes grupos sociais, que a todo o momento

    se apropriam dos espaos urbanos, tornando-os territrios. Assim, os adeptos das religies

    afro-riograndeses, tendo por base as suas prprias cosmologias, ocupam a cidade, atri-

    buindo-lhe diversos significados concomitantes s suas vises de mundo. Dessa maneira,

    um tpico cruzamento de ruas na cidade transcende seu valor objetivo, tornando-se dom-

    nio e morada de seres sobrenaturais. Farei uso do conceito de paisagem urbana dos grupos

    adeptos das religies afro-riograndenses para refletir as diferentes formas desta cidade,

    que compartilhada entre o grupo religioso em destaque, bem como sua apropriao.

    Se o segundo captulo recai sobre a cidade, o terceiro e ltimo captulo estar

    centralizado na pessoa do adepto, atravs da abordagem dos rituais coletivos praticados.

    Ser esta a oportunidade para melhor explorar as diferenas e similitudes entre as trs

    modalidades religiosas, sendo dedicado um tpico a cada, alm de uma descrio genrica

    dos rituais de possesso. Os conceitos norteadores acionados neste momento do estudo

    sero os de ritual e performance, no intuito de refletir como se constri, para estes grupos

    religiosos, um tempo-espao que possibilita a sacralizao do mundo profano atravs da

    presena de divindades. Aqui se destaca uma caracterstica marcante dos cultos afro-rio-

    grandenses: o encontro com o divino, preocupao comum a todas as doutrinas religiosas,

    no se direciona necessariamente na busca pelo sagrado atravs de um modelo abstrato e

  • individual, e sim por uma experincia concreta, corporal e coletiva, sem que isso impossibi-

    lite a constituio de individualidades.

    De fato, a formulao destes dois ltimos captulos, de inspirao etnogrfica,

    reflete a experincia de campo desenvolvida nos ltimos anos. Enquanto aluno do curso

    de Cincias Sociais, a partir do ano de 2006 passei a realizar as primeiras investidas no uni-

    verso das religies afro-brasileiras, em Porto Alegre. Foi no ano de 2007 que me voltei defi-

    nitivamente a estas expresses religiosas como temtica de estudo, atravs do incentivo e

    co-parceria com membros do Ncleo de Estudos da Religio (NER)1 , do Departamento de

    Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal

    do Rio Grande do Sul.

    A partir de meados de 2007 ao incio do ano de 2008 intensifiquei o trabalho de

    campo, tendo por base o mtodo etnogrfico, fazendo uso, principalmente, da observa-

    o-participante. Neste perodo ampliei minha relao com diversos adeptos das religies

    afro-riograndeses, tendo a oportunidade de observar inmeros rituais, realizar entrevistas

    e, o que provavelmente mais contribuiu na apreenso do fenmeno religioso e das concep-

    es desse grupo, pude dividir o convvio cotidiano com alguns membros, de maneira que,

    para mim, torna-se impossvel qualific-los enquanto informantes de campo. Neste caso,

    em especial, devo considerar a relao construda com a famlia-de-religio coordenada

    por Me Bia de Iemanj, da Ilha da Pintada. Inicialmente uma relao mediada pelo estudo

    etnogrfico, com o tempo se constituiu numa relao afetiva, tendo continuidade para

    alm do trabalho de campo, o que acabou por me revelar uma das mais belas facetas do

    trabalho de campo na antropologia social.

    Quanto ao mtodo de pesquisa de campo, devo informar a importncia que o

    uso de equipamentos audiovisuais teve desde o incio. Ainda que na maior parte das opor-

    tunidades em que estive inserido em campo no tenha levado a mquina fotogrfica ou

    a filmadora, estes recursos foram fundamentais na insero a campo e na elaborao da

    pesquisa. Ao mesmo tempo em que contriburam na constituio do papel por mim desem-

    penhado em campo, o uso do vdeo e, principalmente, da fotografia foram os instrumen-

    tos por excelncia na interao com os adeptos que me recebiam em suas casas e rituais,

    bem como na prpria reflexo antropolgica. Mais do que imagens descritivas, busquei

    1 Mais precisamente com um dos coordenadores do NER, professor Ari Pedro Oro, que assina a orien-tao e os atuais doutorandos em antropologia social Daniel Francisco de Bem e Mauro Meirelles.

  • por conceituar o universo religioso afro-rio-grandense atravs das imagens.

    Esses dois fatos que marcaram a metodologia de campo, a observao-parti-

    cipante acompanhada do uso dos recursos audiovisuais, caracterizaro o texto etnogr-

    fico que apresento a seguir. Justamente pelo convvio no cotidiano do grupo como, por

    exemplo, participando de comemoraes familiares de natal, de fim de ano, aniversrios

    ou acompanhando na compra de artigos religiosos, e a participao em rituais diversos

    com posterior discusso, a escrita etnogrfica que apresento no se legitimar atravs de

    trechos de entrevistas e a identificao dos informantes. Ao invs disso, optei por repro-

    duzir os dados etnogrficos atravs da afirmao, recorrendo eventualmente evocao

    deste ou daquele adepto.

    Por outro lado, a escrita etnogrfica dever ser apreendida atravs da articula-

    o entre o texto propriamente dito e as imagens presentes ao longo do trabalho. Chamo

    a ateno que estas fotografias no so alegorias anexas escrita tradicional. Utilizo a

    imagem fotogrfica enquanto textos visuais que descrevem e conceitualizam, cujo sentido

    ser construdo quando associado com a escrita. A ttulo de exemplo, recorro s possveis

    descries de adeptos da Quimbanda durante o transe. Importante na etnografia que a

    descrio seja densa (Geertz, 1989), ou seja, no fique restrita a forma objetiva. Faz-se

    necessrio pormenorizar aquilo que os sentidos captam, porm necessrio ampliar o

    contedo da descrio com o contedo que vai alm, que se aproxima do smbolo viven-

    ciado. Assim, mais do que descrever o vestido de uma pomba-gira, suas risadas e a peculiar

    maneira de falar, considero fundamental abordar o discurso que se anuncia pelo corpo

    medinico, levando em considerao a atmosfera em que interage. Neste sentido, as

    fotografias foram fundamentais, densificando a descrio que ofereo.

    Entretanto, desde o incio me esforcei para que o uso dos recursos audiovisu-

    ais no violentasse os preceitos religiosos, como fotografar os adeptos manifestando os

    orixs no Batuque, o maior tabu existente no meio afro-religioso. Para isso contei com a

    colaborao de diversos religiosos, que sempre me orientaram neste sentido. Ainda que,

    durante o trabalho de campo, no tenha encontrado de maneira objetiva o que se poderia

    e o que no se poderia fotografar, o que na verdade acabou dependendo das relaes de-

    senvolvidas com cada grupo, a experincia de campo me permitiu constituir um bom senso

    daquilo que apresento em forma de imagem. O mesmo ocorre quanto alguns segredos da

    religio, que propositalmente no anuncio.

  • Alerto que na construo do texto etnogrfico utilizei alguns recursos estti-

    cos. Ao longo do trabalho me apropriarei de diversos termos micos, que constituem parte

    do vocabulrio religioso. Independente da origem etimolgica, estes termos ou expres-

    ses comuns e usados entre os adeptos das religies afro-riograndenses, sero sempre

    apresentados em itlico, sendo que a primeira vez que aparecer ter seu significado discu-

    tido no prprio corpo do texto ou, quando necessrio, em nota de roda p. Em diversos

    momentos estes termos sero usados enquanto conceito, sendo que a maior recorrncia

    ser da palavra religio (em itlico), para se referir quilo ou quele que prprio das

    religies afro-riograndenses. Por fim, ainda por uma orientao esttica, antecedo as de-

    nominaes dos sacerdotes-chefes atravs dos termos Me ou Pai, pois se trata do

    ttulo recebido por quele que ascende ao patamar mximo da hierarquia afro-religiosa.

    Alm disso, complemento o nome prprio com o do orix a quem o religioso pertence,

    preservando a tradicional forma de compor a identificao dos adeptos da religio. Assim

    busco oferecer um texto que traga parte da riqueza daqueles que vivem as concepes das

    religies afro-riograndenses, que passaro a ser tratadas agora.

  • 1. UMA EXPRESSO RELIGIOSA DE ORIGEM AFRICANA(voltar ao Sumrio)

    Ainda que a discusso das religies afro-gachas leve em considerao uma

    complexa construo scio-histrica, onde vozes de diferentes horizontes tnico-raciais

    agiram, ao longo do tempo e do espao, na elaborao deste continuun religioso, funda-

    mental estabelecer a centralidade da cultura negra neste processo. No em vo que o ad-

    jetivo afro antecede e define estas expresses religiosas que tm como marco inicial (ou

    fundamento, utilizando um conceito caro ao povo de religio), as prticas mgico-religiosas

    realizadas pelos antigos escravos africanos que para aqui, no Brasil, vieram habitar a partir

    da dispora africana.

    Com o correr do tempo tais prticas, que muito mais do que uma reiterao de

    gestos estetizavam toda uma maneira de ser, sentir e conceber o mundo, foram transmi-

    tidas aos seus descendentes nascidos no Novo Mundo. Brasileiros que dividiram de uma

    mesma condio: a de ser negro e escravo numa sociedade escravagista. A matriz religiosa

    africana, restituindo um universo particular a remontar smbolos da ancestralidade africa-

    na, foi um dos possveis lcus de resistncia tnico-raciais desenvolvidos em solo america-

    no (Corra, 1989).

    Estruturando-se a partir da interao entre os distintos grupos negros que com-

    puseram a sociedade brasileira e o prprio ambiente fsico e simblico, percorrer as origens

    das religies afro-gachas exige partir da histria do negro no Rio Grande do Sul. neste

    sentido que se desenvolver os trs prximos sub-tpicos, apresentado os principais gru-

    pos tnicos que constituram a populao afro-descendente no estado sul-rio-grandense,

    suas localizaes e seus movimentos no espao e no tempo.

    1.1. Africanos no Novo Mundo(voltar ao Sumrio)

    Tendo como fio condutor o trabalho de reviso histrica feito por Norton Cor-

    ra, retomado mais tarde por Reginaldo Braga1 , a tradio negra no Rio Grande do Sul foi

    1 Refiro s obras: CORRA, Norton Figueiredo. O batuque no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Editora da Universidade UFRGS, 1992; Panorama das Religies Afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. In ORO, Ari Pedro (org.). As religies afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Editora da Universidade UFR-GS. 1994 p. 9-46.; e BRAGA, Reginaldo Gil. Batuque Jje-Ijex em Porto Alegre: A Msica no Culto dos Orixs. Porto Alegre, FUMPROARTE, SMC Porto Alegre, 1998.

  • marcada, inicialmente, pela presena de dois grandes grupos com especificidades scio-

    culturais: os bantos, sendo esta uma classificao baseada no critrio lingstico, e os suda-

    neses, tendo estes o vis geogrfico maior importncia na delimitao conceitual2.

    A entrada destas populaes no Brasil se estendeu ao longo de todo o perodo

    da chamada dispora africana, que teve como momento de maior intensidade3 o perodo

    entre as primeiras dcadas do sculo XVII e a metade do sculo XIX, quando novas con-

    cepes passaram a estimular alteraes na estrutura econmica, interrompendo o trfico

    negreiro4.

    Estima-se que este processo

    tenha deslocado milhes de pessoas da

    frica para as Amricas. No Brasil, os

    principais portos de entrada de africa-

    nos escravizados, no perodo do trfico

    negreiro, foram os de Recife, So Lus,

    Salvador, Rio de Janeiro e So Vicente.

    Destes centros porturios eram redistri-

    budos pelo restante do territrio brasi-

    leiro atravs da cabotagem em embar-

    caes de menor porte ou cruzando as

    novas paisagens americanas, em mar-

    chas que seguiam os principais interes-

    ses econmicos em voga.

    Neste prspero negcio estabelecido entre colonos europeus e algumas casas

    reais africanas, diferentes culturas africanas foram transplantadas para o continente ame-

    2 Tendo por referncia Arthur Ramos, (apud BRAGA, 1998: 26), as culturas negras remanescentes no Brasil podem ser divididas em trs grandes grupos: os Bantos, do antigo Congo, Angola e Moambique (Con-tra-Costa); os sudaneses, formados pelos povos iorub da Nigria (nag, ijex, eub ou egb, ketu, ibadan, yebu ou ijebu, entre outros), os daomeianos (jje, ewe, fon, e outros menores), pelos fanti-ashanti da Costa do Ouro e grupos da Gmbia, Serra Leoa, da Libria, da Costa da Malagueta, da Costa do Marfin e etc; e, final-mente, pelos guineano-sudaneses islamizados, ao que se saiba poucos presentes no Brasil e inexistentes no Rio Grande do Sul.3 O comrcio de escravos negros entre europeus e casas reais africanas no teve incio a partir do processo de ocupao do continente americano. Com base em Mrio Maestri Filho, Braga (1998) aponta que estas relaes tm incio logo da chegado dos navegadores ibricos, em especial portugueses, s costas afri-canas do Atlntico, substituindo um tradicional comrcio de ouro com as caravanas muulmanas do norte da frica pelo homem escravizado.4 Refiro-me, basicamente, ao processo que torna as Amricas potenciais mercados consumidores de manufaturas europias, deixando de caracterizar terras de colonizao (Amrica Anglicana) ou explorao (Amrica Latina).

    Figura 1 - Mapa indica as principais rotas do trfico de escravos, durante o perodo da dispora africana (voltar ao ndice).

  • ricano. Inicialmente como parte dos bens dos prprios colonos exploradores e mais tarde

    como mercadoria diretamente importada da frica, indispensvel ao desenvolvimento da

    economia agrcola e mineral de base escravocrata, estas etnias, ou naes, foram imprimin-

    do paulatinamente suas marcas na nascente sociedade brasileira.

    A intensidade da presena da frica no Brasil pode ser admirada objetivamente

    quando defrontamos com dados demogrficos, como os nmeros do censo de 2000 do

    Instituto Brasileiro Geogrfico e Estatstico (IBGE), rgo oficial do Estado, que anuncia

    44,66% da populao se auto-declarando negra ou parda no pas. Entretanto, a origem afri-

    cana da populao brasileira, para alm dos nmeros e estimativas, pode ser percebida em

    diferentes manifestaes culturais da sociedade brasileira, mostrando a preservao e a

    influncia das culturas de origem.

    Quanto distribuio espao-temporal destas etnias africanas, primeiramente

    houve um intenso trfico de grupos de origem banto, enquanto a introduo dos sudane-

    ses foi realizada no final do sculo XVII e incio do sculo XVIII em diante (Corra, 1994).

    Nesta relao que articula territrios africanos (a Costa dos Escravos, em especial), e bra-

    sileiros com o passar do tempo, elucidativo acompanhar o estudo de Juana Elbein dos

    Santos (1984), realizado entre as dcadas de 1960 e 1970:

    Enquanto os africanos de origem Bantu, do Congo e de Angola, trazidos para o Brasil durante o duro perodo da conquista e do desbravamento da colnia, foram distribudos pelas plantaes, espalhados em pequenos grupos por um imenso territrio, principalmente no centro litorneo, nos Estados de do Rio de Janeiro, So Paulo, Esprito Santo, Minas Gerais, numa poca em que as comunicaes eram difceis, com os centros urbanos comeando a nascer a duras penas, os de origem sudanesa, os Jeje do Daom e os Ng, chegados durante o ltimo per-odo da escravatura, foram concentrados nas zonas urbanas em pleno apogeu, nas regies suburbanas ricas e desenvolvidas do Norte e do Nordeste, Bahia e Pernambuco, particularmente nas capitais desses estados, Salvador e Recife. O comrcio intenso entre Bahia e a Costa manteve os Ng do Brasil em contato permanente com suas terras de origem (Santos, 1982: 31).

  • Interessante notar que, apesar da maior quantidade de africanos de origem

    banta e de suas indiscutveis contribuies para a formao da sociedade brasileira, a reli-

    giosidade afro-brasileira apresenta supremacia das culturas sudanesas5.

    Norton Corra (1994), ao expor o predomnio de elementos das culturas su-

    danesas na formao do Batuque no Rio Grande do Sul, percebe que estas apresentavam

    uma estrutura religiosa bastante definida, baseado no culto comunitrio de divindades

    impessoais, que para alm da narrativa histrica e mtica, anunciam suas expresses no

    mundo material, como, por exemplo, nos fenmenos e acidentes da natureza ou nas ati-

    vidades humanas. Quanto aos bantos, suas expresses religiosas, predominantemente,

    concentravam-se na ritualstica destinada aos ancestrais.

    Seguindo esta linha de raciocnio, coerente afirmar que, estando o negro em

    um ambiente hostil e distante da referncia de pertencimento, neste caso a frica onde os

    negros eram maioria e podiam ser livres, independente da origem tnica, encontraram na

    5 Por outro lado, em outros campos da cultura brasileira, existe flagrante supremacia da origem ban-ta. o caso da Lngua Portuguesa desenvolvida no Brasil, cujas contribuies lingsticas bantas so extensas e ampliadas ao uso universal da sociedade, enquanto as palavras derivadas dos sudaneses so em menor quantidade e, em geral, restritas s referncias religiosas.

    Figura 2 - As obras do pintor e ilustrador francs Jean Baptiste Debret (1768 1848), que permaneceu no Brasil entre os anos de 1816 e 1831, oferecem uma interessante perspectiva do cotidiano do perodo imperial brasileiro. Radicado no Rio de Janeiro, muitas de suas obras representam o ambiente urbano nacional na primeira metade do sculo XIX, onde o negro, em geral como coadjuvante nas telas, est presente na paisagem (voltar ao ndice).

  • religio um espao de resistncia, que reconstrura simbolicamente o ideal da Terra Africa-

    na. No por acaso as primeiras expresses religiosas afro-brasileiras, centradas na organi-

    zao ritual africana, tomam forma a partir da primeira metade do sculo XIX, perodo de

    florescimento dos centros urbanos e conseqente aproximao e comunicao entre ne-

    gros de diferentes origens. Se o culto personalizado de inspirao banto foi dificultado pe-

    los deslocamentos territoriais e separaes dos membros de mesmos grupos tnicos, uma

    atitude tomada pelos senhores de escravos a fim de evitar possveis rebelies, a bem estru-

    turada religio sudanesa serviu como elemento unificador dessas culturas. Como observa

    Dante de Laytano, quando se refere religiosidade de matriz africana em solo gacho:

    Mas o que precisa ficar assinalado que as culturas sudanesas se impuseram so-bre as demais, ao ponto delas desaparecerem do Rio Grande do Sul, pelo menos em Porto Alegre que as 71 casas de culto africano existentes acusaram, no siste-ma, o avassalador domnio sudans atravs das culturas daomeanas e nags com oi que lhe pertence (Laytano, apud Braga, 1998: 33)6.

    Parecendo aos olhos da sociedade escravagista como inofensivas distraes

    de negros saudosistas de uma frica distante, os batuques estimularam o que havia de

    comum a estas culturas, expressando uma identidade negro-brasileira atravs da (re)cons-

    truo dos smbolos do continente de origem no Brasil.

    1.2. Percursos do negro no Rio Grande do Sul(voltar ao Sumrio)

    A presena do negro no Rio Grande do Sul retoma a prpria constituio do Es-

    tado. No caso rio-grandense, o primeiro ncleo populacional na provncia capaz de possibi-

    litar a entrada massiva de escravos, atravs de embarcaes de maior porte, foi o porto de

    Rio Grande. Paralelo a este trfico, outra possibilidade que se estendeu durante dcadas

    foi o cmbio por terra. Como alerta Braga (1998), outros pontos no Estado, como o Porto

    de Tramanda, devido insuficincia de infra-estrutura, teriam tido um uso clandestino,

    possibilitando o:

    (...) desembarque ilegal de escravos na barra do rio Tramanda (no municpio de

    6 Falar em desaparecimento das culturas no sudanesas exagero, uma vez que suas contribuies sero encontradas em diferentes reas da cultura riograndense, e mesmo na religiosidade, como o caso do Maambique. Entrementes a citao indica a intensidade da influncia da cultura sudanesa na organizao do Batuque, em especial em Porto Alegre.

  • mesmo nome, litoral norte do estado), quando a partir de 1850 o governo brasi-leiro comea efetivamente a reprimir o trfico negreiro por presses do governo ingls (Braga, 1998: 25).

    Tal como sucedido no restante do pas, pessoas de origem banta foram as pri-

    meiras a povoarem a regio sulista, sendo, posteriormente, verificada a entrada de escra-

    vos oriundos de naes sudanesas. Segundo Corra (2005: 111), da mesma forma como

    ocorreu em todo o Pas, cerca de 70% dos cativos eram bantos (do antigo Congo, Angola

    e Moambique), e 30% sudaneses (Nigria e Benin). Destaco, nestes movimentos popu-

    lacionais, que os negros aqui forados provinham de outros centros do Brasil, principal-

    mente Rio de Janeiro (Corra, 1992), o que, entretanto, no descartou a entrada de negros

    nascidos na frica, os quais eram, com freqncia, denominados por minas nos livros de

    registros de batismos7.

    A respeito desses livros de registros lavrados pela Igreja Catlica, podemos

    apresentar parte do resultado de pesquisa de Joo Machado Ferraz, referenciado por Cor-

    ra (1992 e 1994) e, posteriormente, por Braga (1998). A partir do primeiro livro de batis-

    mos de Rio Grande, primeiro ncleo populacional estvel na provncia, o pesquisador per-

    cebeu em um perodo de 15 anos (1738 a 1753), que dos 977 registros, 200 pessoas traziam

    ancestralidade africana.

    Ligados a economia agrcola, tanto de consumo interno quanto das tropas mi-

    litares estabelecidas no sul do pas, os negros passaram a dividir com o colono europeu,

    principalmente aoriano, o papel de principais etnias formadoras do Rio Grande do Sul. Em

    fins dos anos de 1700, com a instalao das charqueadas na Regio Sul da provncia, a mo

    de obra escrava tornou-se indispensvel para atender os interesses da elite branca. Inicia-

    do o Ciclo do Charque, pela primeira vez aconteceu no Estado um salto econmico capaz

    de definir uma classe senhorial e uma demanda pelo contingente negro jamais superado

    na histria do Rio Grande do Sul. Corra (1992 e 2005), baseado em minucioso estudo, cal-

    cula que por este perodo de prosperidade da Regio Sul, com destaque para as cidades

    de Rio Grande e Pelotas, a populao de descendncia africana no Rio Grande do Sul tenha

    representado quase um tero da populao total (285 mil habitantes). Neste contexto de

    prosperidade econmica (e relativa urbanizao, por conseqncia), e massiva presena

    7 A partir do famoso episdio em que o ento Ministro Rui Barbosa mandou queimar todos os regis-tros pblicos referentes aos negros no Brasil, estes livros de registros da Igreja Catlica surgem como impor-tantes documentos da histria das populaes de origem africana.

  • de uma populao afro-descendente, encontraremos a origem do Batuque8.

    A partir do declnio da economia baseada na produo do charque, devido a con-

    corrncia dos Pases do Prata,

    e o estabelecimento de novas

    relaes de trabalho que in-

    troduziram colonos alemes

    e, posteriormente, italianos,

    a percentagem do negro no

    Rio Grande do Sul diminuiu de

    forma considervel. Em 1850,

    com a proibio definitiva de escravos vindos diretamente da frica, aliada ao crescimen-

    to acelerado das economias cafeeiras (Braga, 1998: 29), no sudeste brasileiro, houve um

    intenso movimento de vendas de escravos para esta regio. Neste momento da histria

    do Rio Grande do Sul houve incio a uma mudana no perfil tnico-racial do Estado, sendo

    que o censo de 1950 apontou uma populao negra estimada em 10,65% do total.

    Em resposta a esta mudana no perfil tnico-racial surge uma valorizao, na

    histria oficial, do elemento branco-europeu na construo social do Estado, negligencian-

    do a importncia das etnias negras na formao do Rio Grande do Sul. Nestes termos

    interessante reproduzir, mais uma vez, as palavras de Corra:

    Algo diretamente relacionado a esta exploso de riqueza, mas muito dificilmente mencionado na historiografia, o fato de que o Rio Grande do Sul deve mo-de-obra escrava, no mnimo, as bases de sua infra-estrutura econmica. No cus-ta lembrar, quando os primeiros imigrantes europeus chegaram, j nos anos de 1820, encontraram uma economia regional em franco andamento, governo, estra-das, cidades (Corra, 2005: 112).

    Curiosamente neste Estado, com fama nacional de ser o mais europeu do

    Brasil, que se descobre o maior ndice de adeptos declarados das religies afro-brasileiras.

    Porto Alegre, abrigando uma crescente populao afro-brasileira, foi ao longo do sculo XX

    8 Sem dados concretos para comprovar, Corra (1992, 1994 e 2005) supe que o primeiro templo de Batuque teria sido fundado em Rio Grande, outros, depois, em Pelotas e, finalmente, em Porto Alegre. Esta concluso est embasada no estudo da trajetria do negro no Rio Grande do Sul e nas referncias de antigos religiosos que estabelecem nestas duas cidades suas origens. De qualquer maneira destaco que, segundo o censo do IBGE/2000, estas cidades apresentaram o maior ndice de adeptos das religies de matriz africana em todo o Pas.

    Figura 3 Antiga fotografia que representa uma tpica estncia produtora de charque no Rio Grande do Sul, no fim do sculo XIX (voltar ao ndice).

  • um dos principais plos irradiadores das religies de matriz africana do Pas, tendo exerci-

    do sua influncia mesmo fora das fronteiras nacionais9.

    1.3. Territrios negros em Porto Alegre(voltar ao Sumrio)

    Com o declnio da indstria do charque por volta de 1850 e a demanda por bra-

    os trabalhadores em outras regies do Brasil, em especial nos estados do sudeste impul-

    sionados pela produo do caf, os grupos negros presentes no Rio Grande do Sul pas-

    saram por novos processos de movimentao territorial. Enquanto os principais centros

    econmicos da Regio Sul (Pelotas e Rio Grande) comearam a dispensar esta populao

    alicerce do sistema escravagista para outros estados, o crescimento das cidades, e entre

    elas Porto Alegre, apresentaram um novo mercado com caractersticas urbanas, distintos

    daqueles agropastoris, provocando o deslocamento de escravos. Como esclarece Norton

    Corra:

    A vida de muitos escravos urbanos era bem diferente dos das charqueadas ou fazendas. Pelo fato de exercerem suas atividades na rua, no podiam ser to con-trolados como os outros, sumiam mais facilmente da vista do senhor, alm de conseguirem juntar dinheiro com servios extras, o que muitas vezes resultava em alforria (Corra, 2005: 112).

    Nesta nova paisagem, a partir da prpria resistncia do negro em se submeter

    fiscalizao senhorial, passa a haver, sistematicamente, a desagregao do sistema es-

    cravocrata vigente. Em constante interao com outros grupos sociais no espao pblico,

    freqentando e apropriando-se de reas urbanas, podemos encontrar elementos catalisa-

    dores para a constituio de uma identidade negro-brasileira. nessa poca que surgem

    as melhores condies para a fundao dos primeiros ncleos religiosos afro-brasileiros,

    como o Batuque no sul do Brasil, intimamente ligados aos territrios negros urbanos. Por

    territrios negros urbanos tomo a definio proposta por Iosvaldyr Carvalho Bittencourt

    Jr., que consiste:

    9 Refiro-me ao fenmeno de transnacionalizao das religies afro-brasileiras, ocorrido, principalmen-te, a partir de 1950. Ari Pedro Oro (1993 e 2002), que pesquisou esse tema, atenta para as peculiaridades desse processo que relaciona a trplice fronteira (Brasil Argentina Uruguai) em complexas redes funda-mentadas na filiao religiosa. Segundo o autor, sacerdotes gachos, principalmente queles radicados em Porto Alegre, foram fundamentais na estruturao das religies africanas nos pases do Prata, tendo sido fre-qente as viagens destes ao exterior no intuito de realizar iniciaes religiosas, obrigaes diversas e atender a clientela estrangeira.

  • (...) como um espao de construo de singularidades socioculturais de matriz afro-brasileira e que, ao mesmo tempo, um objeto histrico de excluso social, em razo da expropriao estrutural dos direitos sociais, civis e especficos funda-mentais dos negros brasileiros (Bittencourt Jr., 2005: 36).

    Em Porto Alegre, historicamente, esta experincia foi marcada pela mobilidade

    territorial e ampla excluso social. Logo na ps-abolio, a populao ex-escrava passou a

    ocupar as reas perifricas da cidade, ausentes de qualquer infra-estrutura bsica.

    A princpio, as famlias negras se concentraram numa rea denominada Vrzea,

    ou campo da Redeno, onde atualmente existe o Parque Farroupilha, bairro Bom Fim.

    Perifrico ao centro da capital gacha, onde a maior parte deste contingente buscava seu

    sustento do dia a dia, teve origem uma territoridade conhecida por Colnia Africana, que

    se estendeu por uma rea ampla, atualmente compreendida pelos bairros Bom Fim e Rio

    Branco. Alm destes territrios, merece destaque as comunidades negras que se estabe-

    leceram em outras cercanias da Cidade, como no Areal da Baronesa, hoje parte do bairro

    Cidade Baixa. Durante muitas dcadas do sculo XX esta regio da cidade foi referncia

    de territrio negro urbano, com forte presena de cidados afro-brasileiros e seus esti-

    los de vidas, anunciados publicamente atravs de diversas manifestaes scio-culturais,

    tais como os blocos carnavalescos, bailes regidos pelos conjuntos de Jazz, ou mesmo na

    Figura 4 - Vista de pssaro da regio que, atualmente, corresponde ao bairro Cidade Baixa, dcada 1920 (voltar ao ndice).

  • organizao domiciliar baseada em avenidas, isto

    , conjuntos de famlias negras ocupavam um

    mesmo espao e valia-se de servios sanitrios e

    de fornecimento de gua coletivos (Bittencourt

    Jr., 2005: 36 e 37). At hoje essas caractersticas

    podem ser contempladas nesta regio, como

    atesta os movimentos poltico-sociais da Comu-

    nidade da Avenida Luiz Guaranha.

    Seguindo a lgica de mobilidade ter-

    ritorial de excluso, onde as famlias negras dei-

    xavam de habitar um territrio com pouca infra-

    estrutura para deslocarem para outros, mais

    distantes do centro da cidade e com nenhuma

    infra-estrutura para a dignidade da vida contem-

    pornea, este grupo tnico-racial assumiu o pa-

    pel de pioneiros do solo urbano. Assim, aps a

    Colnia Africana e as primeiras comunidades das

    cercanias da cidade, surgiram a Bacia (atualmen-

    te os valorizados bairros Auxiliadora e Mont Ser-

    rat),

    (...) Navegantes, Santana, Partenon, Ilhota, Vila Santa Luzia, Vila Maria da Concei-o, Vila dos Martimos, Vila Jardim, Vila Mirim, Rubem Berta, Vila Grande Cruzei-ro, Vila Grande Pinheiro, Cohab Cavalhada, Jardim Leopoldina, Vila Restinga Velha e Vila Nova Restinga (Bittencourt Jr., 2005: 37).

    Ainda que no seja o propsito deste captulo adentrar nas mincias dos percursos

    do negro em Porto Alegre, destaco que a breve citao dos territrios acima indica, na ge-

    ografia da cidade, um movimento de distanciamento da zona central, atestando o modelo

    pioneiro no qual ao segmento afro-brasileiro foi imposto.

    Ao longo desse processo de modelagem da malha urbana da capital gacha, a popu-

    lao negra porto-alegrense foi imprimindo suas caractersticas culturais. Com a ampliao

    do solo urbano, uma complexa rede de relaes sociais foi sendo tecida. No restritos as

    reas perifricas, os grupos negros sempre se mantiveram presentes na paisagem da ci-

    Figura 5 Antigas fotografias de moradores do MontSerrat, nos anos de 1950 (voltar ao ndice).

  • dade, ocupando espaos de sociabilidade

    pblica. Entre diversas manifestaes desta

    apropriao, destaco a emergncia das re-

    des poltico-sociais da religiosidade.

    Se possvel encontrar na figura le-

    gendria do Prncipe Custdio10 um cone

    histrico, as relaes, emergentes de uma

    memria afro-brasileira, so constantemen-

    te ratificadas nas redes religiosas que am-

    pliam sua existncia para novos horizontes,

    estimulando que outros grupos tnico-ra-

    ciais possam vivenciar uma paisagem urba-

    na inspirada nos valores simblicos prprios

    da cosmologia afro-brasileira. desta Porto

    Alegre vivida pelos adeptos das religies de matriz africana que nos ocuparemos no prxi-

    mo tpico.

    10 Entre todos os chefes religiosos, destaca-se a figura de um prncipe nigeriano. Custdio Joaquim de Almeida, ou Prncipe Custdio, descendeu de famlia real africana. Tendo sido exilado pelos colonizadores ingleses, instalou-se em Porto Alegre no incio do sculo, vivendo a partir de uma generosa penso em um casaro no atual bairro Cidade Baixa. Apaixonado por cavalos, freqentador dos crculos da elite poltica da poca, sua figura provocou, e ainda provoca, a memria afro-porto-alegrense. Entre suas faanhas, teria sido responsvel pelo assentamento do Bar no Mercado Pblico, que trataremos mais adiante.

    Figura 6 - Me Rita, me-de-santo do mais antigo templo que se tem notcias, em Porto Alegre (voltar ao ndice).

  • 2. UMA PORTO ALEGRE DE QUEM FAZ A RELIGIO(voltar ao Sumrio)

    Como conceituado por Massimo Canevacci (1997), a cidade no mundo contem-

    porneo uma polifonia. Isto , um espao fsico onde emergem diferentes signos que, a

    partir de seus habitantes, apresentam significados distintos que esto a todo o momento

    interagindo. Como escrito pelo mencionado autor:

    (...) significa que a cidade em geral e a comunicao urbana em particular com-param-se a um coro que canta com uma multiplicidade de vozes autnomas que se cruzam, relacionam-se, sobrepem-se umas s outras, isolam-se ou se contras-tam; e tambm designa uma determinada escolha metodolgica de dar vozes, experimentando assim um enfoque polifnico com o qual se pode representar o mesmo objeto justamente a comunicao urbana. A polifonia est no objeto e no mtodo (Canavacci, 1997: 17 e 18).

    Como pressuposto, a antropologia urbana tem demonstrado que o meio urba-

    no marcado pela heterogeneidade cultural, onde muitos grupos sociais, negociando en-

    tre si, atuam permanentemente, apropriando-se simbolicamente dos elementos urbanos,

    constituindo territrios de referncia, embasando os projetos sociais de seus membros.

    Tornam pblicas suas identidades sociais.

    Neste sentido, Gilberto Velho (1985), alerta que uma das principais caracters-

    ticas das sociedades complexas a coexistncia de diferentes estilos de vida e vises

    de mundo (Velho, 1985: 14). Mesmo na metrpole, espao de construo do anonimato

    e individualismo, encontra-se manifestaes que formam grupos com uma ao coletiva

    organizada, sustentados em crenas e valores compartilhados. Emerge uma linguagem co-

    mum, remetendo ao que na antropologia social costuma ser conceituado pela expresso

    redes de significados (Geertz, 1989).

    Avanando neste sentido, Roberto Cardoso de Oliveira (1976) concebe o con-

    ceito de identidade social em sua dimenso poltica, j que esta construo sugere o reco-

    nhecimento do contraste e a constante negociao entre as concepes de mundo dos

    grupos que dividem um mesmo territrio. Assim, encontraremos no meio urbano um espa-

    o por excelncia para a construo de identidades sociais, na medida em que a experin-

    cia citadina possibilita esse encontro e a comunicao entre distintos.

    A cidade, enquanto um fenmeno social, ser apreendida nesta parte do estu-

  • do valorizando a experincia, a percepo e o simbolismo dos habitantes que lhe do vida.

    Para isto terei como fio condutor o conceito de paisagem. Atravs das consideraes de

    Georg Simmel (1996), concebo paisagem no como uma totalidade externa ao indivduo,

    existente na natureza, aguardando o exato momento de ser apreendida. Paisagem uma

    construo mental, onde os indivduos com suas bagagens culturais esto aptos a organi-

    zar os elementos materiais que seus sentidos fsicos captam, atribuindo a esta organizao

    um sentido. Poeticamente, paisagem seria esta sensao (sentido) feita de corpo (rgos

    sensoriais) e alma (simbolismo cultural).

    Seguindo as instrues de Yi-Fu Tuan (apud. Barros, 1998), a constituio de

    uma paisagem urbana deve considerar as mltiplas maneiras pelas quais as pessoas sen-

    tem e pensam o lugar. Chamo a ateno para a distino que o autor faz entre lugar e

    espao: o lugar a segurana, enquanto o espao a liberdade. Se por um lado estamos

    intimamente ligados ao primeiro, desejamos o segundo. Como escreve Barros, pelas ex-

    perincias humanas e suas culturas, os homens atribuem valores aos espaos indiferencia-

    dos, transformando-os em lugares (Barros, 2000: 165).

    Dessa maneira, compreendo que a cidade de Porto Alegre, sendo composta por

    diferentes experincias sociais, pode ser refletida atravs de distintas paisagens urbanas.

    Seguindo a temtica proposta para este estudo, escreverei sobre lugares de referncia

    simblica daqueles que vivem as religies de matriz africana, no intuito de oferecer uma

    interpretao dessa paisagem religiosa afro-riograndense.

    2.1. Do terreiro aos lugares da rua(voltar ao Sumrio)

    O primeiro elemento na paisagem

    urbana a referir ordem sagrada da concep-

    o afro-riograndense a casa de religio,

    ou simplesmente terreiro. O templo religio-

    so das religies de matriz africana pode ser

    fundado em uma construo comum, que

    muitas vezes serve de domiclio me ou pai-

    de-santo, contanto que apresente as instala- Figura 7 Frente da casa de religio do pai-de-santo Lus Antnio de Agandju, no bairro Partenon, Porto Alegre (voltar ao ndice).

  • es e os objetos necessrios a conceberem a sacralidade dos cultos afro-riograndenses.

    Adentrar nestes templos penetrar num recepturio onde o patrimnio sim-

    blico das religies afro-riograndenses se materializam em formas, cores, odores, relaes

    mticas. A organizao espacial de um terreiro se estrutura a partir das concepes do cos-

    mos e, como lhe caracterstico, permite o desenvolvimento de diferentes expresses

    religiosas a seguirem um continuun religioso. Neste sentido, uma comunidade religiosa ao

    adotar a Linha Cruzada, que estabelece o culto de duas ou mais modalidades rituais, pode

    ser exemplar quanto descrio bsica do espao do terreiro.

    Como comentado anteriormente, um terreiro de Linha Cruzada pode ser uma

    singela residncia. Nos dias de rituais, em geral nas sesses ou nas festas em homenagem

    s divindades da casa, os mveis da sala devero ser retirados, afim de que haja o espao

    necessrio para que a roda de santo1 ou a corrente2 sejam formados. Neste tipo de terreiro

    costuma-se reservar uma pea para receber os objetos consagrados, como as imagens da

    Umbanda que so preparadas ritualmente, as quartinhas3 que materializam o vnculo reli-

    gioso do iniciado, ou mesmo os assentamentos4 do Batuque, estes sempre bem protegidos

    1 Roda de Santo a mais popular denominao para a organizao espacial dos adeptos durante um ri-tual batuqueiro. Quando o toque (ritual de Batuque que conta com execuo musical) dedicado aos orixs, realiza-se um crculo com os participantes que se movimenta em sentido anti-horrio, enquanto as pessoas performatizam danas a evocar os gestos e as passagens mticas da divindade celebrada.2 Corrente a organizao espacial dos participantes de um ritual umbandista ou de quimbanda. Exis-te a formao de um semicrculo, frontal ao cong (espcie de altar que sustenta as imagens). Diferente do batuque, no h o deslocamento entre os membros e no se dana. Em algumas casas de religio comum separar homens de mulheres.3 Tipo de bojo de barro com a poro inferior larga e boca estreita. Deposita-se gua, que deve ser renovada periodicamente, e pintada com as cores simblicas da divindade a quem dedicada.4 A iniciao no Batuque compreende um complexo ritual que visa despertar o orix do nefito, j existente anteriormente. Ainda que existam casos particulares em que o orix manifesta-se sem a prepa-rao ritual, esse despertar, em geral, ocorre de maneira irreversvel a partir do ritual do bori, onde h o contato entre a cabea do iniciado (lugar em que habita o orix principal) com o sangue de animais imolados.

    Figura 8 Perspectiva de um salo improvisado para a celebra-o de uma festa umbandista em homenagem a Pomba-gira Ci-gana, na Ilha da Pintada (voltar ao ndice).

    Figura 9 Filhos-de-santo reclusos aguardam o incio da festa de Batuque, enquanto os tambores descansam, no terreiro de Pai Luiz Antnio de Agandju (voltar ao ndice).

  • devido sua estreita relao com o adepto. Em sntese, estas moradias so constitudas de

    maneira que resguarde uma parte interna a guardar os objetos preparados ritualmente e

    possibilite a devida adaptao espacial para a execuo ritual.

    Porm, mais comum que no terreno onde est a casa de religio haja uma se-

    parao entre o domiclio e o terreiro propriamente dito. Dando continuidade ao exemplo

    de um terreiro de Linha Cruzada, existe um salo cujo centro mantido vazio. Na parede

    junto porta comum haver cadeiras ou bancos, visando acomodar os visitantes do ritual,

    que formam a chamada assistncia. Em uma das laterais posto um assento composto de

    dois degraus, destinados aos tamboreiros. Frontal ao acesso principal, e tendo maior des-

    taque, encontra-se o peji, ou quarto de santo5. Este o espao de maior importncia sacra

    de um terreiro. No pelas imagens que representam os orixs, em sua maioria feitas atra-

    vs da concepo sincrtica com os santos da religio catlica. Apesar de essas imagens

    serem respeitadas, j que evocam ao fiel as divindades, o epicentro do poder mstico est

    atrs delas, nas diversas prateleiras, ocultadas por uma cortina ou porta, que sustentam

    os assentamentos, principal fonte do ax6. no peji que se realiza os sacrifcios, arria-se as

    oferendas, coloca-se os pedidos e agradecimentos diversos. Sempre descalo ao adentrar

    no salo, obrigao de qualquer iniciado saudar o orix da casa em frente ao quarto de

    santo, batendo cabea7.

    Ainda no salo, podendo estar ao lado do peji e em menor destaque ou mesmo

    ocupando algum outro recanto, existe o cong8. Assim como a Umbanda articula diversas

    entidades, representadas por falanges que se inter-relacionam, o cong organizado a

    partir destas relaes. Nas pores centrais, ou superiores se houver mais de uma prate-

    leira, estar imagem de Jesus Cristo, representando o orix Oxal, pai de todos os outros

    e dos homens. Ao seu redor outras imagens iro se referir aos demais orixs da Umbanda.

    Abaixo, e respeitando a hierarquia, haver imagens de ndios (caboclos), preto-velhos (ex-

    escravos) e da falange de Cosme e Damio (espritos de crianas). Entre estas imagens,

    Deste mesmo sangue (axor, na denominao mica) lava-se um mineral que ir variar conforme o orix em questo (ocut). Este mineral junto com outros objetos que pertencem ao orix ser acomodado numa vasilha, constituindo o assentamento. Interessante que o mineral no representa o orix, mas este est nele, assim como na cabea do iniciado.5 Tenho por base o modelo generalista, uma vez que estou consciente que diversos terreiros o quarto de santo no est disposto frontalmente porta de entrada.6 Neste contexto, refere-se ao poder mstico.7 Saudao realizada na religio que expressa respeito ao princpio hierrquico. O iniciado deve deitar-se no cho de bruos, encostando a cabea no cho.8 Nos terreiros exclusivos de Umbanda, o cong ser o principal elemento sagrado da casa, ocupando posio de destaque.

  • diversos objetos caractersticos das entidades so depositados. Atrs do cong so guar-

    dadas as quartinhas.

    No necessariamente pode haver um terceiro local, reservado aos exus e pom-

    bas-gira. Decorados com cores apropriadas, como o vermelho, o branco e o preto, alm das

    imagens dessas entidades e objetos prprios, bebidas, cigarros, chapus e outros acess-

    rios costumam ser ali guardados. Entretanto isto no uma regra fixa, sendo que a prpria

    existncia de um exclusivo quarto de exus depender da orientao dado pelo sacerdote

    chefe. Desta mesma maneira, algumas comunidades de religio cultuam ciganos junto com

    Figuras 10, 11 e 12 Parte frontal do peji no terreiro de Pai Lus Antnio de Agandju, detalhe do quarto dos exus na casa de Me Tereza do Ogum, na Ilha da Pintada. Abaixo, na mesma ilha, cong e mesa de fim de ano no Centro de Umbanda Reino de Oxssi e Iemanj. Cada categoria de divindade ordenada no espao do terreiro (voltar ao ndice).

  • exus e pomba-giras, enquanto outras reservaram um espao e ritual prprio a esta catego-

    ria. Nestes templos outras instalaes esto presentes, como o bal destinado aos cultos

    dos ancestrais no Batuque (eguns), ou o quartinho das almas, estes existentes em diversos

    terreiros que trabalham com a Quimbanda.

    A partir de uma anlise da estrutura simblica existe clara continuidade entre

    as diferentes modalidades de cultos afro-riograndenses, que pode ser vista na forma e na

    funo dessas instalaes. Na medida em que um mesmo salo costuma ser usado para

    todas as modalidades, sendo o procedimento ritual o elemento que estabelece a ordem,

    cada categoria de divindade deve possuir um local consagrado, com semelhanas entre si.

    A representao das potncias sobrenaturais a partir de imagens e o uso de objetos carac-

    tersticos no processo de vinculao entre iniciados e divindades so apenas dois exemplos

    que expem esta continuidade, que ser mais bem percebida adiante, quando abordarei a

    ritualstica afro-gacha.

    Por hora chamo a ateno que a organizao do terreiro restitui esteticamente

    os referentes simblicos dessas formas religiosas, tornando ntidas as posies, as aproxi-

    maes, os distanciamentos e as inter-relaes possveis entre os deuses, os homens e os

    mortos.

    Junto a estes locais, outras instalaes desempenharam papis diferenciados

    num terreiro. Como a cozinha, em geral equipada com foges industriais e freezers para

    atender as extensas necessidades rituais; a mesa para consultas diversas, como o jogo de

    bzios ou de cartas (tar); hortas que fornecem plantas rituais e pequenos currais para

    manter os animais s vsperas da matana9. A prpria casa de religio conta com uma lo-

    gstica apta ao recebimento e circulao de diversas pessoas, uma vez que se apresenta

    como espao semi-pblico, com ampla freqncia cotidiana e, durante os perodos de ini-

    ciao ou de reafirmao do vnculo religioso, mantm enclausurado por dias os adeptos

    que compem a famlia-de-santo. E no espao do terreiro que encontraremos mais um

    elemento essencial que, tal como a importante imagem da encruzilhada nas religies afro-

    riograndenses, delimita o limiar ponto de contato entre duas posies distintas. A casa do

    Bar, ou do Povo da Rua, situa-se entre a casa de religio e o mundo externo, estabelecen-

    do no a separao, mas a continuidade entre estes dois espaos.

    9 Matana ou sero so denominaes que se referem ao fazer ritual que envolve o sacrifcio de ani-mais.

  • Marco inicial a anunciar a toda ci-

    dade que ali existe um templo dedicado

    aos cultos afro-riograndeses, a casa das

    divindades da rua so pequenas cons-

    trues, em madeira ou alvenaria, locali-

    zada no espao frontal dos templos. Se-

    melhantes a casinhas de cachorro, aos

    menos avisados, sempre sero decora-

    das com a cor vermelha, na ntegra ou

    ao menos parcialmente. Como o nome

    se refere diretamente, estas casinholas

    so dedicadas s divindades da rua. No

    Batuque sero assentados, neste local,

    os orixs da rua Bar Lod e Ogum Avag.

    Em algumas casas de religio, seguindo uma tradio no universal entre os adeptos do Ba-

    tuque, ali tambm ser entronizado Legb. Em uma oportunidade perguntei a um religioso

    prximo quem era Legb? Inocentemente esperava por uma passagem mtica ou algo se-

    melhante, na medida em que esta uma maneira habitual de transmisso dos valores tradi-

    cionais batuqueiros. Para minha surpresa este religioso deu um constrangido sorriso, para

    logo em seguida mostrar punho cerrado com os dedos indicativo e minguinho levantados,

    numa clara aluso a imagem do satans cristo. No mesmo instante recordei um trecho do

    livro de Norton Corra (1992) que reproduz a mesma situao. Perguntando a uma antiga

    me-de-santo sobre esta divindade, ela faz a mesma referncia ao antroplogo, no com o

    punho, mas com os dedos sobre a testa.

    Entretanto no somente a religio do Batuque exige esta construo no limiar

    entre a casa e a rua. Comunidades religiosas que cultuam exus e pombas-gira, o chamado

    Povo da Rua, tambm edificam estas pequenas casas em rea externa as demais depen-

    dncias do templo, raramente em posio no frontal, ou como os adeptos da religio se

    referem, na entrada. Quando a casa de religio trabalha com as duas modalidades religio-

    sas, Batuque e Quimbanda, ao menos duas casinhas sero montadas, havendo ntida pre-

    ferncia para os assentamentos pela Nao10.

    10 Na Linha Cruzada, acionando ritualmente duas ou mais modalidades religiosas, bastante percep-tvel uma lgica hierrquica entre as divindades cultuadas. Orixs so os deuses supremos, sendo que ao

    Figura 13 Tal como um muro separa objetivamente a casa e a rua, a casa do Bar, em posio liminar, organiza e comunica o espao sagrado do templo e o mundo externo (voltar ao ndice).

  • Em comum, todas as divindades representadas pelos assentamentos da casa da

    rua esto estabelecendo o elo que relaciona a ordem profana e a sagrada. Ou em outras

    palavras: a casa (terreiro local sagrado) e a rua (mundo espao profano) so relaciona-

    das atravs da ambgua casa da rua (terreiro e mundo sagrado e profano), lugar dedicado

    as entidades responsveis pela comunicao entre os homens e os deuses.

    Neste momento atento para a presena dos templos religiosos nas paisagens

    citadinas, uma vez que, historicamente, o templo aparece como atributo forte na conexo

    entre o urbano e o sagrado:

    (...) as cidades esto semelhana do cosmos elas so uma cpia do universo. Assim, os espaos sagrados em ambientes urbanos se vem transformados em centros, onde se encontra a fonte de toda a realidade e, portanto, da energia da vida. Por se situarem no centro do cosmos, os templos tornam-se o ponto de ligao entre o cu e a terra e desta forma revelam uma realidade sagrada como nenhuma outra. (Barros, 2000: 167)

    De fato, os templos, independentes da orientao religiosa, surgem no horizon-

    te humano como uma fonte inesgotvel de fora e sacralidade (Elade, 1993: 296). Desta

    mesma maneira devem ser compreendidos os terreiros das religies de matriz africana,

    sendo comum entre os adeptos e pessoas simpatizantes se referirem enquanto um local

    de ax, a energia vital presente nas pessoas e objetos do mundo. Entretanto a cosmoviso

    afro-religiosa no restringe a atuao do sobrenatural ao espao consagrado do templo.

    Este surge como marco inicial de uma comunidade de sentido, porm sua territoridade

    orix da me ou pai-de-santo dedicado o terreiro. Abaixo dos orixs sero percebidas as demais entidades, variando de terreiro para terreiro a ordem hierrquica. De maneira geral, tendo por critrio a poder sobrena-tural de influenciar a vida humana, comum encontramos a ordem: Orixs, exus e pomba-giras, caboclos e preto-velhos e, por fim, cosmes (espritos de crianas).

    Figura 14 Casa do Povo da Rua (voltar ao ndice). Figura 15 Ciganos tambm perpassam a Quimbanda, recebendo, tal como os exus, uma casinhola na rua (voltar ao ndice).

  • ultrapassar os limites fsicos da casa de religio.

    As divindades, alm de suas passagens mticas e histricas, esto manifestadas

    em objetos, fenmenos atmosfricos, acidentes geogrficos, cores, comidas, plantas, dias

    e horrios da semana, pessoas, rezas, entre outros elementos que compem a esttica

    religiosa11. Enfim, as possveis distines entre os plos natureza e cultura ganham novas

    matizes sobre a tica das religies afro-riograndenses. Dessa maneira, para alm dos mu-

    ros e cercas dos diversos terreiros existentes em Porto Alegre, muitos so os lugares ou

    elementos urbanos impregnados de significados particulares para quem de religio. As-

    sim, possuidores dos cdigos simblicos prprios da religiosidade em debate, os adeptos

    interpretam as formas da cidade, experimentando no cotidiano isso que defino por paisa-

    gem religiosa afro-riograndense.

    2.2. Passeio por uma Porto Alegre afro-religiosa(voltar ao Sumrio)

    no lugar do terreiro que emerge a materializao dos smbolos que do o em-

    basamento esttico do fazer afro-religioso. Porm, como inicialmente comentado no final

    do tpico anterior, os templos, nas religies afro-gachas, no so os limites do espao

    sacralizado. Estes devem ser vistos enquanto centros donde se irradiam as concepes

    da religio, cujos limites fsicos se entendem para muito alm da edificao. Assim como

    o terreiro manifesta em sua organizao a cosmoviso religiosa, estabelecendo lugares

    prprios para os vivos, os deuses e os mortos e, conseqentemente, suas inter-relaes, o

    mundo externo tambm carregado destes smbolos e significados. Sem a pretenso de

    esgotar as possibilidades, percorrerei por uma Porto Alegre comum ao povo de religio,

    anunciando locais impregnados de significados das religies afro-riograndenses, apresen-

    tando um pouco dessa paisagem sagrado-profana.

    Deslocando-se pelas vias porto-alegrenses, provavelmente a primeira manifes-

    tao que chama a ateno da apropriao do espao urbano pelos adeptos das religies

    afro-riograndenses so as inmeras oferendas entregues a cu aberto. Se ao cidado leigo

    estes oferecimentos soam de maneira homognea, bem caracterizada pela expresso pre-

    conceituosa coisas de batuqueiros ou mesmo de macumbeiros, esta ltima represen-

    tando uma concepo do senso comum apropriada de outras regies do Brasil, ao adepto

    11 Mircea Eliade (1993), props designar este tipo de expresso cultural pelo conceito de hierofonia.

  • da religio fcil distinguir as diferentes oferendas, bem como suas correspondncias cos-

    molgicas.

    Religies populares, de forte apelo resoluo dos problemas mundanos, tais

    como os relacionados ao trplice conjunto sade, afetividade e laboral, o acervo ritual, na

    concepo religiosa, permite a manipulao da vida ordinria atravs da comunicao e

    negociao com o sobrenatural. Basicamente, o religioso detentor dos cdigos que tor-

    nam possvel o exerccio do sobrenatural no cotidiano atravs do fazer ritual. Este fazer,

    em geral, efetivado pela reciprocidade entre as pessoas e as divindades, sendo o principal

    meio de obteno da efetiva participao do sagrado a produo da ddiva. O arranjo

    material de elementos que correspondem divindade acionada, uma vez que cada neces-

    sidade poder corresponder a uma categoria especfica, caracteriza estas oferendas to

    presentes na paisagem porto-alegrense.

    At ento usei o conceito de oferenda de forma ampla. Ao especificar os sa-

    beres religiosos, interessar alguns pormenores destas ddivas12, que correspondem dire-

    12 Como a entrega desses pratos ou objetos especficos partem de diversas motivaes, o que corres-ponder a denominaes especficas, usarei, a partir da inspirao de Marcel Mauss, o termo ddiva como

    Figuras 16, 17, 18 e 19 As encruzilhadas na Rua da Lomba, alguma beira do Rio Guaba, pedras e praas diversas so tpicos espaos urbanos apropriados pelos adeptos das religies afro-riograndenses para a entrega de oferendas e servios msticos. A escolha ser influenciada pela divindade em questo. Por respeito s orientaes recebidas por religiosos, no fotografei as ddivas a cu aberto. (voltar ao ndice)

  • tamente a leitura da paisagem urbana pelos adeptos, tornando publica a relao entre a

    cosmologia e o mundo da vida.

    Como pude descobrir ao longo do tempo em que estive prximo a alguns gru-

    pos de religio, existem basicamente dois tipos de ddivas: a oferenda, ou obrigao, que

    tem o carter de agradecimento, e o servio, que realizado para obteno de determina-

    do prstimo por parte das divindades. Ambos podem ser realizados no lugar do terreiro,

    uma vez que sua organizao expressa tanto o mundo fsico quanto o sobrenatural. En-

    tretanto, para certas situaes, faz-se necessrio o ato mgico-religioso na rua, ou seja, no

    espao externo ao terreiro. Segundo os adeptos isso se deve a resposta13 mais imediata das

    entidades evocadas, que para determinadas condies exigem a entrega no local em que

    respondem. Refletindo a partir da explicao mica, percebo que a realizao de rituais re-

    ligiosos em locais que correspondem s divindades em questo amplia o contedo esttico

    da atuao performtica, uma vez que so smbolos por excelncia, tendo, por conseqn-

    cia, a maximizao da eficcia simblica do ato.

    Manipular a paisagem alterar a experincia de vida. Dessa maneira encontra-

    mos diferentes tipos de ddivas espalhadas pela cidade. A mais comum so os ebs para

    o Povo da Rua, vistas com tanta freqncia nas encruzilhadas de Porto Alegre. Dedicados

    aos exus e pomba-giras de cruzeiros, essas ddivas so em geral caracterizadas pela entre-

    ga de um prato decorado com papis e velas nas cores vermelha e preto. Ao agrado des-

    sas divindades de grande poder mstico no mundo urbano contemporneo, so dedicados

    bebidas alcolicas, cigarros ou charutos, pipocas e batatas assadas. Entretanto, quando o

    servio realizado corresponde a uma demanda, que significa um ataque mstico com o ob-

    jetivo de influenciar negativamente a vida de outra pessoa, muito comum a imolao de

    animais, sendo um galinceo o principal instrumento de feitiaria14. Estourar uma galinha

    expresso comum nesta modalidade de prtica mstica.

    Afora as encruzilhadas da cidade, distintas paisagens so apropriadas pelos

    conceito generalista. Considero no apenas a materialidade dos objetos utilizados, mas o processo de entre-ga de objetos simblicos, como alimentos, bebidas, cigarros ou perfumes, de maneira ritualizada com uma finalidade especfica.13 Termo utilizado pelos adeptos que se refere a atuao pragmtica do sobrenatural, mediante reali-zao de ato ritual que determina o objetivo a ser alcanado.14 Entretanto devo recordar que a presena de animais sacrificados em servios religiosos no se re-sume ao ataque mstico a desafetos atravs da evocao dos exus e pomba-giras. Muitos so as imolaes dedicadas a outras entidades e por motivos outros. Exemplo so os trabalhos de troca de vida, realizados no meio batuqueiro, que visa sade do paciente. Resumidamente, trata-se de um ritual em que constatado como causa de determinada enfermidade a influncia de um egun (esprito dos mortos), realiza-se uma troca entre a vida do animal, como se fosse uma pessoa, e a do enfermo. Acredita-se que, apesar de poderoso, o muito ingnuo, sendo alvo fcil desse tipo de trapaa.

  • adeptos na produo da ddiva. Como estrutura, encontraremos a relao entre os ele-

    mentos urbanos e as caractersticas das divindades. Descobrimos um mundo encantado,

    na qual os deuses e outras entidades respondem em certos locais. So esses seus dom-

    nios.

    Se os cantos das encruzilhadas so domnios do orix Bar, para os adeptos do

    Batuque, ou ali respondem exus e pomba-giras de cruzeiro quando nos deslocamos pelo

    continuun religioso e nos aproximamos da Quimbanda, o ponto central entre duas vias

    ser dedicado ao orix Ogum. Alis, cabe ressaltar que este popular orix no Rio Grande

    do Sul, como indica Jos Carlos dos Anjos (2006), provavelmente o mais plstico na con-

    cepo religiosa afro-riograndese, expressando no a individualidade, mas a multiplicida-

    de inerente a estas formas religiosas,

    sintetizando o continuun religioso

    intensamente. Ogum, que orix na

    Nao, tambm se apresenta na Um-

    banda, nomeando a mais presente fa-

    lange de caboclos. Entretanto, Ogum

    transcende por todo continuun, apre-

    sentando-se na Quimbanda enquanto

    Ogum Meg ou Ogum das Sete Encru-

    zilhadas.

    Se as encruzilhadas so extenses do terreiro, outro local bastante apropria-

    do pelos religiosos de matriz africa