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A abordagem da política pela antropologia pode ser definida de uma forma simples: explicar como os atores sociais compreendem e experi- mentam a política, isto é, como significam os objetos e as práticas relacionadas ao mundo da política. A compreensão de grupos específicos, em circunstâncias particulares, leva a compara- ções e diálogos com a literatura sobre contextos sociais mais amplos. Embora aparentemente simples, trata-se de uma proposta complexa de ser executada e que implica pelo menos dois pressupostos. O pri- meiro, de que a sociedade é heterogênea, forma- da por redes sociais que sustentam e possibilitam múltiplas percepções da realidade. O segundo, de que o “mundo da política” não é um dado a pri- ori, mas precisa ser investigado e definido a par- tir das formulações e dos comportamentos de atores sociais e de contextos particulares. O interesse da antropologia pela política existe desde os primórdios da disciplina, uma vez que o estudo de sociedades e relações sociais é estreitamente ligado à temática das relações de poder. No contexto da tradição evolucionista, que marcou a fase inicial da antropologia, o foco recaía sobre as formas e os sistemas de poder em sociedades “primitivas”, cujas características deve- riam ser comparadas e classificadas em relação ao sistema político das sociedades modernas, con- sideradas mais “evoluídas”. Propunha-se, então, uma linha evolutiva das formas de organização política, que começava com a “horda primitiva” e chegava ao Estado moderno. Nessa época, entre o final do século XIX e o início da década de 1920, a grande maioria dos estudos antropológi- cos não tinha a política como tema central de interesse, nem a antropologia política era pensa- da ou formalizada como uma subárea de estudos. Com o avanço da tradição estrutural-fun- cionalista britânica, no entanto, a política ganhou espaço, sobretudo nas etnografias realizadas no contexto colonial anglo-africano. Muitos desses ANTROPOLOGIA E POLÍTICA Karina Kuschnir

Antropologia e política karina kuschnir

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A abordagem da política pela antropologiapode ser definida de uma forma simples: explicarcomo os atores sociais compreendem e experi-mentam a política, isto é, como significam osobjetos e as práticas relacionadas ao mundo dapolítica. A compreensão de grupos específicos,em circunstâncias particulares, leva a compara-ções e diálogos com a literatura sobre contextossociais mais amplos.

Embora aparentemente simples, trata-se deuma proposta complexa de ser executada e queimplica pelo menos dois pressupostos. O pri-meiro, de que a sociedade é heterogênea, forma-da por redes sociais que sustentam e possibilitammúltiplas percepções da realidade. O segundo, deque o “mundo da política” não é um dado a pri-ori, mas precisa ser investigado e definido a par-tir das formulações e dos comportamentos deatores sociais e de contextos particulares.

O interesse da antropologia pela políticaexiste desde os primórdios da disciplina, uma vez

que o estudo de sociedades e relações sociais éestreitamente ligado à temática das relações depoder. No contexto da tradição evolucionista, quemarcou a fase inicial da antropologia, o focorecaía sobre as formas e os sistemas de poder emsociedades “primitivas”, cujas características deve-riam ser comparadas e classificadas em relação aosistema político das sociedades modernas, con-sideradas mais “evoluídas”. Propunha-se, então,uma linha evolutiva das formas de organizaçãopolítica, que começava com a “horda primitiva” echegava ao Estado moderno. Nessa época, entreo final do século XIX e o início da década de1920, a grande maioria dos estudos antropológi-cos não tinha a política como tema central deinteresse, nem a antropologia política era pensa-da ou formalizada como uma subárea de estudos.

Com o avanço da tradição estrutural-fun-cionalista britânica, no entanto, a política ganhouespaço, sobretudo nas etnografias realizadas nocontexto colonial anglo-africano. Muitos desses

ANTROPOLOGIA E POLÍTICA

Karina Kuschnir

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estudos buscavam entender a organização socialde grupos e etnias sem a presença de um sistemapolítico formal, isto é, sem Estado. É nessadireção que surgem as reflexões sobre a im-portância dos sistemas de parentesco para a hie-rarquia e a coesão sociais. Tendo como referênciainicial Radcliffe-Brown, sucederam-se autorescomo Evans-Pritchard, Meyer Fortes, MaxGluckman, Edmund Leach e Victor Turner, entreoutros. Alguns dos textos fundamentais da entãorecém-nomeada “antropologia política” foramproduzidos nesse contexto, como a coletâneaAfrican political systems (Fortes e Evans-Pritchard,[1940] 1961) e a monografia Os Nuer (Evans-Pritchard, [1940] 1978). Essa abordagem, por suavez, também gerou críticas. A definição de poderteria se tornado tão ampla que poderia ser encon-trada em qualquer situação social, englobando li-teralmente todos os temas da disciplina (Vincent,2002). Mas é nessa fase que se consolidou insti-tucionalmente o campo de uma antropologiapolítica (Easton, 1959). É fundamental ressalvarque, embora dialogando entre si com mais oumenos freqüência, esses antropólogos não pro-duziram em absoluto abordagens homogêneas dapolítica. Se numa primeira etapa foi dada maiorênfase aos aspectos de coesão e equilíbrio social,à medida que avançamos no tempo, observamosuma maior preocupação com as transformaçõessociais, discutindo as relações de poder no tempoe no espaço, a partir de temáticas relacionadas aconflitos, rituais, mitos, identidades, status, repre-sentações e práticas.

A partir da década de 1950, principalmentedepois do clássico Sistemas políticos da AltaBirmânia, de Edmund Leach ([1954] 1996), de-senvolve-se uma nova fase no campo da an-tropologia política, com o afastamento do cânonetradicional e a pulverização de problemas teóricose temas de pesquisa, cujo alcance foge ao âmbitodeste texto. Entretanto, há um certo consenso deque esses novos campos são fruto sobretudo doenfrentamento dos desafios impostos por umaconjuntura mundial na qual convivem forçaspolíticas e culturais em diversos níveis comocomunismo, capitalismo, colonialismo e movi-mentos sociais de diversos tipos. Entre estes, aárea dos estudos feministas e dos movimentosanticolonialistas ganhou destaque por sua impor-

tante contribuição para a reflexão em torno dopoder (Vincent, 2002).

No contexto brasileiro, desenvolveu-se, nadécada de 1990, um conjunto de trabalhos auto-denominados antropologia da política, que tive-ram sua institucionalização mais importante noNúcleo de Antropologia da Política (NuAP), sedia-do no Museu Nacional da UFRJ, mas envolvendogrupos em outras universidades federais, como asde Brasília, Ceará e Rio Grande do Sul, entre out-ras. O objetivo do NuAP, como definiu Peirano(1998), era partir da “suposição básica de que acategoria política é sempre etnográfica”. Ao inves-tigar a política legitimada pelos padrões ociden-tais modernos, “deslegitimando pretensões essen-cialistas, sociocêntricas e conformistas”, revela-seque a própria percepção da “política” como umaesfera social à parte de outras esferas é produtodessa ideologia moderna. No caso brasileiro, aler-ta Peirano, o antropólogo enfrentaria uma “com-binação complexa” de universalismo científico eideologia nacional de moldes “holistas”.

Isso tem sido observado em muitos estudosempíricos, desde o clássico Coronelismo, enxadae voto (Leal, 1948) até as recentes etnografias ecoletâneas publicadas no âmbito do NuAP(Palmeira e Goldman, 1996; Barreira e Palmeira,1998; Heredia, Teixeira e Barreira, 2002; Palmeirae Barreira, 2006). A política é entendida, aqui,principalmente como um meio de acesso aosrecursos públicos, no qual o político atua comomediador entre comunidades locais e diversosníveis de poder. Esse fluxo de trocas é reguladopelas obrigações de dar, receber e retribuir, o queo antropólogo Marcel Mauss ([1924] 1974) cha-mou de “lógica da dádiva”, e cujo princípio fun-damental está no comprometimento social daque-les que trocam para além das coisas trocadas.

As pessoas que participam dessas redes, sejacomo eleitores, seja como políticos, nunca con-cordariam com os acadêmicos que consideramsuas ações um mero “clientelismo”. Do ponto devista “nativo”, os políticos não estão “privatizandobens públicos” (para usar uma definição clássicade clientelismo); ao contrário, os políticos estãodando acesso a bens e serviços públicos a pessoasque não os teriam de outra forma. Nesse contex-to, a palavra “público” não significa “recursos quepertencem a todos”, mas “recursos monopoliza-

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dos pelas elites políticas e econômicas”. Ou seja,pessoas “ordinárias” – de estratos inferiores dasociedade – não participariam dessa definiçãode “público”. Por isso mesmo, o acesso às fontespúblicas de bens e serviços precisa serintermediado pelo político e é visto como umbem extraordinário, “que não tem preço”.

No entanto, essa rede não se constitui ape-nas pelo acesso e intermediação de recursospúblicos. A distribuição de bens e serviços emlocais de “atendimento”, como centros de assistên-cia social ou escritórios políticos, é prática cor-rente. Para manter esse tipo de serviço, o políticoprecisa manter fortes laços com empresários ougrupos economicamente favorecidos que lheforneçam dinheiro ou mercadorias demandadospela comunidade. Essa ajuda externa é retribuída,por sua vez, na forma de alvarás, licenças, anistiade multas e outros benefícios diversos. Pode tam-bém, sem dúvida, em certos casos, caracterizar-secomo corrupção pura e simples.

Como se coloca, então, a antropologia dapolítica ante a questão da democracia? Se nosbasearmos nos seus princípios conceituais,relações de troca do tipo acima mencionadas sãoum grande desserviço. Entretanto, como intelec-tuais, temos que evitar que nosso desejo de me-lhorar a qualidade da democracia interfira naforma como coletamos e interpretamos os dadosde pesquisa. Senão, ficaremos perpetuamente ro-tulando as pessoas em vez de tentar compreendê-las. Seguindo a proposta de Peirano (1998), essesmesmos rótulos operam segundo lógicas depoder da academia ou até lógicas de poder maisamplas. Assim, o mesmo fenômeno classificadocomo “máquina política”, nos Estados Unidos,torna-se “clientelismo”, na América Latina, ou“serviços aos eleitores”, no Reino Unido (Posada-Carbó, 2005).

Categorias como “mandonismo”, “coronelis-mo”, “clientelismo”, entre outras, trazem embuti-das a idéia de que as nossas práticas políticas sãoimperfeitas, atrasadas ou inferiores. Trata-se declassificações que tomam por base o princípiode que as sociedades modernas devem estar com-prometidas com os princípios democráticos uni-versais inspirados nas experiências européia enorte-americana. Desse ponto de vista, o clien-telismo será sempre visto como sintoma de nosso

estágio de “subdesenvolvimento” e, portanto, umproblema para a “modernização” da política.

Seguindo em outra direção, podemos tomaro “clientelismo” como expressão de valores cul-turais que privilegiam as relações sociais entrepessoas, por oposição às relações entre indiví-duos, no sentido que Roberto Da Matta (1979)emprestou ao termo. Isto é, trata-se de trocas erelações sociais que envolvem noções comohonra, gratidão e dívida moral. Em muitos casos,isso ajuda também a perceber que as relações detroca empiricamente observadas não se cons-tituem numa esfera “política” à parte, muitomenos são a principal fonte de recursos da po-pulação. Tanto é assim que muitos dos bens doa-dos por políticos são itens aparentemente supér-fluos, como perucas, camisas para times defutebol, brinquedos, latas de tinta etc.

Para a antropologia, é preciso investigar taistrocas dentro do contexto etnográfico em queocorrem, buscando a compreensão das relaçõessociais envolvidas. Em muitos casos, essa com-preensão é fundamental para percebermos que apolítica opera com valores da sociedade maisabrangente, tradicionalmente associados a outrasesferas da vida social, como família e religião,mas considerados ilegítimos quando operados naesfera política. Isso não quer dizer, obviamente,que se queira justificar nem defender essas práti-cas – cumpre, antes de tudo, compreendê-las.

Onde ficaria, então, a responsabilidade e acontribuição da antropologia para com os princí-pios da democracia representativa e o aperfeiçoa-mento das suas instituições?

Como afirmou Abélès (1997), a antropologianão tem como objetivo criticar as práticas políti-cas, mas entender a maneira pela qual as relaçõesde poder emergem numa situação determinada,adquirindo significado para os atores sociais.Parte sempre do pressuposto de que a “de-mocracia” é um modelo teórico, e que, portanto,não existe de forma pura. Questionar conceitoscomo “clientelismo” é deixar de tomar esse mo-delo como ponto de partida; é não consideraruniversais termos como, por exemplo, “individu-alismo”, “representação” e “domínio público”; é,finalmente, perceber que o universalismo é umvalor inspirado no paradigma da modernização,na crença de que a imparcialidade e a objetivi-

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dade devem prevalecer sobre as emoções e a sub-jetividade (como as que estão presentes nasrelações baseadas na honra e na dádiva).

A abordagem antropológica privilegia técni-cas de pesquisa qualitativas, voltadas para a reali-zação de trabalho de campo com observação par-ticipante e entrevistas em profundidade,freqüentemente produzindo “estudos de casos”.No entanto, o antropólogo não ignora que aspráticas e as representações observadas estãoinseridas numa sociedade maior, num sistemapolítico formal, com instituições de larga escala.Nesse esforço, a antropologia de um modo geraloscila entre sua fidelidade ao particular e a neces-sidade de produzir generalizações (Lewellen,1992). Por isso, é fundamental que se estabeleçaum diálogo com outras disciplinas, como ahistória, a ciência política, a sociologia, a lingüís-tica e a comunicação. É a partir de abordagensmulti e interdisciplinares e da adoção de umaperspectiva comparativa que se pode chegar acompreender não só as representações e as práti-cas da política num grupo específico, mas tam-bém as relações desse material etnográfico com asociedade mais ampla.

A antropologia pode contribuir nessedebate porque sua principal tarefa é estudar nãoo que a política deve ser, mas o que ela é para umdeterminado grupo, em um contexto históricoe social específico. Compreender, “do ponto devista do nativo”, práticas muitas vezes diferentesdaquelas que idealizamos pode gerar incômodo,intelectual ou cívico, mas um incômodonecessário, pois, como disse Geertz, “se quisésse-mos verdades caseiras, deveríamos ter ficado emcasa” (2001, p. 67).

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