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“Todos sabem como se tratam os pretos”: ação educativa em um espaço educativo “quase branco” Marcos Ferreira Gonçalves - UNEB Sandra Regina Mendes - UNEB Introdução A parte inicial que titula este trabalho, é bom que se saliente, refere-se a uma composição musical 1 e seu uso aqui nos parece extremamente pertinente. Escrita em meados da década de 1990, em momento que as discussões étnico-raciais estavam restritas a poucos nichos acadêmicos, a composição, em toada hip-hop, traz para a esfera popular uma reflexão pautada no sistema de exclusão, de base racial, vigente em nosso país. Ao usar o Haiti como uma referência geográfico-racial, a letra busca produzir nos ouvintes uma tomada de consciência sobre todas as mazelas de cunho histórico e social que marca o passado e o presente da população negra no Brasil, que representa a parcela majoritária de nossa sociedade. Para além dos significantes aqui expostos, é importante destacar que o mundo acadêmico se digne a enxergar as várias possibilidades oriundas das artes brasileiras, pois, em muitos casos, para alguns segmentos de nossa sociedade as artes e as ciências que tratam do humano são percebidas como dimensões em campos antagônicos, contudo, o que se observa é que, embora utilizados métodos distintos, ambas apresentam aproximações de caráter complementar. Historicamente, as artes têm apontado caminhos reflexivos sobre os estigmas nacionais e a produção acadêmica não pode estar desconectadadas possibilidades de leitura que essas vias representam 2 . Neste sentido, e na busca de uma exemplificação, é importante destacar uma composição nordestina recente, do compositor maranhense Zeca Baleiro, que aponta: “percebam que a alma não tem cor, ela é colorida, sim, ela é multicolor”. Ao 1 A composição Haiti foi gravada por Caetano Veloso e Gilberto Gil no disco Tropicália 2. 2 Durval Albuquerque Junior em Invenção do Nordeste e outras artes aponta o papel preponderante das produções artísticas na construção do imaginário nacional, como se pode depreender do próprio título da obra.

“quase branco” - II Copene Nordeste · 2 Durval Albuquerque Junior em Invenção do Nordeste e outras artes aponta o papel preponderante das produções artísticas na construção

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“Todos sabem como se tratam os pretos”: ação educativa em um espaço educativo

“quase branco”

Marcos Ferreira Gonçalves - UNEB

Sandra Regina Mendes - UNEB

Introdução

A parte inicial que titula este trabalho, é bom que se saliente, refere-se a uma composição

musical1 e seu uso aqui nos parece extremamente pertinente. Escrita em meados da

década de 1990, em momento que as discussões étnico-raciais estavam restritas a poucos

nichos acadêmicos, a composição, em toada hip-hop, traz para a esfera popular uma

reflexão pautada no sistema de exclusão, de base racial, vigente em nosso país. Ao usar

o Haiti como uma referência geográfico-racial, a letra busca produzir nos ouvintes uma

tomada de consciência sobre todas as mazelas de cunho histórico e social que marca o

passado e o presente da população negra no Brasil, que representa a parcela majoritária

de nossa sociedade.

Para além dos significantes aqui expostos, é importante destacar que o mundo acadêmico

se digne a enxergar as várias possibilidades oriundas das artes brasileiras, pois, em muitos

casos, para alguns segmentos de nossa sociedade as artes e as ciências que tratam do

humano são percebidas como dimensões em campos antagônicos, contudo, o que se

observa é que, embora utilizados métodos distintos, ambas apresentam aproximações de

caráter complementar.

Historicamente, as artes têm apontado caminhos reflexivos sobre os estigmas nacionais e

a produção acadêmica não pode estar “desconectada” das possibilidades de leitura que

essas vias representam2. Neste sentido, e na busca de uma exemplificação, é importante

destacar uma composição nordestina recente, do compositor maranhense Zeca Baleiro,

que aponta: “percebam que a alma não tem cor, ela é colorida, sim, ela é multicolor”. Ao

1 A composição Haiti foi gravada por Caetano Veloso e Gilberto Gil no disco Tropicália 2. 2 Durval Albuquerque Junior em Invenção do Nordeste e outras artes aponta o papel preponderante das

produções artísticas na construção do imaginário nacional, como se pode depreender do próprio título da

obra.

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passo que a canção do poeta dá uma resposta poética a um falar ancestral brasileiro que

diz há várias gerações “é negro, mas de alma branca”, ela (a canção) também convoca a

sociedade contemporânea a refletir sobre suas práticas cotidianas em relação ao negro e

ao racismo intricado em determinados falares sociais, estes, que mesmo datados dos

tempos coloniais e ou imperiais, ainda se fazem presentes nos dias atuais.

Posto isso, destaque-se que este trabalho objetiva não uma discussão sobre as artes em si

mesma, muito embora elas componham um elemento estrutural da nossa ação, mas

visibilizar uma prática educativa em História. Essa prática, novamente ressalte-se, não

representa uma ação marcada pelo cunho da inovação ou do extraordinário, todavia,

acreditamos, a partir de nossas próprias experiências no magistério, que o ensino de

História voltado para os/as jovens da educação básica tem se tornado um exercício árduo3,

logo socializar algumas experiências em educação pode ser de alguma valia para outros

professores que buscam realizar de forma séria o processo de ensino e aprendizagem e,

desta forma podem ressignificar suas práticas docentes observando aspectos de outras

experiências pedagógicas.

Não há dúvida que o ensino básico brasileiro, principalmente o público, enfrenta uma

profunda crise, na qual os objetivos básicos da formação previstos nas legislações que o

regem, como conscientização cidadã ou a formação de leitores críticos, pressupostos

elementares para outras habilidades ao longo do ensino fundamental e médio, não têm

sido alcançados. Desta forma, a prática docente, tornou-se um desafio, por vezes

desesperador, para aqueles que exercem a função de professor com responsabilidade.

Antes de irmos adiante, parece-nos importante destacar que as reflexões em torno de

práticas em educação, que estabeleçam diálogo de alguma forma com uma educação já

denominada de antirracista, não podem ser pensadas sem a compreensão que há uma

longa trajetória histórica já trilhada. Este caminho já percorrido nos permite, na

atualidade, algumas realizações educativas, mesmo em ambientes mais conservadores

3 Os fatores em questão são muitos, mas, a título ilustrativo, podemos apontar: a pouca afeição à leitura

canônica por parte dos/as discentes; a inserção de novas tecnologias de comunicação entre os/as jovens; a

ausência ou o pouco uso dessas mesmas tecnologias nos ambientes escolares; e o despreparo dos docentes

em lidas pedagogicamente com o mundo tecnológico moderno.

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que não enxergam a necessidade de tais práticas e não seja presente o estímulo de gestão

e coordenação para este tipo de ação educativa.

Não é demasiado lembrar que a Lei 10.639/2003, festejada por muitos(as) no momento

da sua promulgação, não é de fato aplicada em muitos ambientes escolares, como é

notório para parte significativa dos que fazem educação neste país. Sem querer sermos

leviano, é possível afirmar que escolas públicas geridas e coordenadas por pessoas que

não se percebem nas suas identidades e nem enxergam a importância neste tipo de

discussão, a lei, seus desdobramentos e inserção nas diversas disciplinas não é constante

no cotidiano da escola, limitando-se a, em geral, a eventos específicos.

Caminhos educacionais formadores

A Lei 10.639 data de janeiro de 2003 e tornou obrigatório o ensino da História e Cultura

Afro-Brasileira. Não há sombra de dúvidas que sua aprovação representa uma grande

conquista da sociedade brasileira no seu todo e resulta em um primeiro passo na tentativa

da desconstrução de um sistema de exclusão e sub-julgamento operante há séculos. Na

obra Na Minha Pele (2017) de Lázaro Ramos, o autor aponta que com a emergência da

lei “surgiu um fio de esperança”. Neste trabalho, o ator-escritor mescla narrativas pessoais

com outros relatos de personalidades diversas do cenário nacional, muitas delas

comprometidas com as questões relacionadas aos afro-brasileiros. Na obra, fica claro que

Ramos se preocupa com o preconceito racial existente no Brasil, temendo inclusive pela

segurança de seus filhos no cotidiano carioca e por este motivo, entre outros, atua como

educador.

Seu trabalho também nos faz enxergar que a educação que priorize a temática racial se

faz necessária e, não parece demasiado sentenciar, é urgente, entendendo aqui que a

educação pode ser o caminho para que muitos(as) se conscientizem das suas identidades

e inclusive construam de maneira sólida o orgulho do seu pertencimento racial. O próprio

autor ilumina a questão da importância da consciência de si e do empoderamento quando

narra seu entendimento sobre “seu não lugar no mundo” experienciado na infância e,

posteriormente, já na fase adolescente para adulta, sua formação identitária e profissional

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junto a um grupo teatral na cidade de Salvador, o Bando de Teatro do Olodum, que

segundo o mesmo foi um “divisor de águas” na sua trajetória humana.

Entretanto, antes de seguirmos, é importante destacar aquilo já sentenciado

anteriormente, a educação antirracista defendida na atualidade é uma conquista histórica

e há um caminho trilhado. Para ilustrar a questão, obviamente sem querer dá conta da

amplitude que a temática recobre, posto existir uma vasta bibliografia que versa sobre as

instituições, personalidades e trajetórias envolvidas nesta luta, podemos aqui ressaltar

inicialmente os estudos de Manuel Querino e Edison de Souza Carneiro, datados das

primeiras décadas do século XX na Bahia, que, em seu conjunto, representam as primeiras

análises críticas produzidas por autores negros sobre o papel e a importância da presença

africana no Brasil.

Nesta mesma linha, os Congressos Afro-Brasileiros organizados em Recife e Salvador na

década de 1930 representam marcos de extrema importância para o início das discussões

raciais no Brasil, constituindo-se como espaços pioneiros no debate sobre os mecanismos

de exclusão que marcam o cotidiano da população negra, representando desta forma a

configuração de um campo de investigação e reflexão que se consolidará nas décadas

seguintes.

Não se pode esquecer também, mediante sua importância, o Teatro Experimental do

Negro, que teve sua fundação nos anos de 1940 no sudeste brasileiro, e postulava um

fazer artístico engajado, defendendo a igualdade racial por meio da educação. Fazem

parte deste cenário de vida e militância educativa através das artes: Abdias Nascimento,

Lea Garcia, Ruth de Souza, entre outros. Este grupo questionou, entre outros

comportamentos e atitudes presentes na sociedade brasileira, o padrão estético europeu

nos Concursos de Miss, à época o expoente maior de beleza, ressaltando que contribuíam

para a formação de gostos, hábitos e identidades. Todavia, ao excluir as mulheres negras

dos certames, contribuíam também para que este público negro não se enxergasse com

potencialidades estéticas positivas. Desta forma, o Teatro Experimental do Negro para

além da sua missão principal, militava pela visibilidade negra e é possível pensar estas

ações como ações educativas de importância plural para a sociedade.

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Parece-nos que seria um erro deixar de atentar para a publicação da obra sociológica e

histórica: Casa Grande e Senzala do mestre de Apipucos, Gilberto Freyre. Entende-se

que esta obra, seja por meio das críticas positiva ou negativa despertadas à época do

lançamento (anos de 1930) e nos tempos posteriores, acabou por semear uma ampla

discussão nos meios acadêmicos e, de certa forma, contribuiu para que a temática da

miscigenação, identidade negra e outras questões relacionadas ao povo negro entrasse na

pauta brasileira. Peter Burke em estudo recente que nomeou de: Repensando os trópicos

(2009) analisa a trajetória do intelectual do Recife e dedica-se a analisar minuciosamente

esta obra e sua repercussão seja no Brasil ou no exterior e as contribuições que a obra deu

para ampliação da cultura material.

Não há margem que se duvide que a criação do Centro de Estudos Afro-Orientais, o

CEAO, na cidade de Salvador, em fins dos anos cinquenta do século XX, também foi de

valiosa importância para ampliação das discussões em torno das temáticas afro-

brasileiras. Luiza Nascimento dos Reis, no artigo África in loco, assim sintetizou este

episódio singular para a Bahia.

O Centro de Estudos Afro-Orientais foi fundado na Universidade da

Bahia em 1959 com o objetivo de desenvolver atividades de

pesquisa, ensino e extensão. Seu primeiro diretor, o luso-brasileiro

George Agostinho da Silva reuniu jovens pesquisadores baianos

com disposição para enveredar nos temas africanos e afro-

brasileiros. O objetivo de realizar pesquisas de campo no continente

africano fez convergir pesquisadores com formações acadêmicas

diversas. Waldir Freitas Oliveira, Vivaldo da Costa Lima, Yêda

Pessoa de Castro, Guilherme Castro e Júlio Santana Braga

destacaram-se nessa experiência pioneira de pesquisa em países da

África ocidental numa década na qual houve o despertar do interesse

pela história africana no Brasil. (REIS, 2017, p.45)

Ao que se pode apurar, naqueles dias de 1950 a cidade do Salvador vivia uma

efervescência cultural significativa e a temática do negro não ficava de fora. Não é

demasiado lembrar que Salvador desde a colônia foi marcada pela cor negra na pele e na

cultura em sentido amplo, o pioneirismo neste tipo de estudo estava e está em total

concordância com a cidade e seus indivíduos.

Os tambores dos Blocos de pretos Olodum e do Ilê Aiyê, fundados na década de 1970,

estão para além de batucadas e não podem passar despercebidos aqui. De fato, estas

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associações culturais são expoentes de formação de identidade negra na capital da Bahia,

são projetos educacionais que muito têm contribuído para a conscientização cidadã de

muitos indivíduos negros, em muitos casos marcados historicamente por processos de

exclusão social.

Por fim, como sinalizado, não é intenção fazer aqui um levantamento de todo este

conjunto de ações educacionais já trilhados por muitos(as) em diferentes lugares do

Brasil, apenas mapeamos ao nosso modo, (pois na pesquisa sempre há escolhas e

caminhos) algumas instituições e personalidades em torno da questão central.

A ação educativa: Sou negro, sou resistência

Como já sinalizado realizar educação na atualidade se tornou uma tarefa árdua, de fato,

os mecanismos tecnológicos inseridos nas sociedades nas últimas décadas modificaram

hábitos e costumes e a escola não ficou fora deste processo. Sem pleitear ampliar aspectos

gerais do cotidiano escolar neste tempo tratado por muitos de modernidade tardia, há algo

significativo hoje a ser considerado, trata-se da “fuga do real”: o aluno está presente em

sala de aula, todavia, o acesso as redes sociais, faz com que ele não perceba nem o tempo

nem o espaço que está presente, destaca-se que tempo e espaço são elementares para a

compreensão da História. Entretanto, neste caso, faz com que ele não perceba e participe

de nada que está acontecendo na sala de aula, logo, o ensino e aprendizado fica

comprometido. Desta forma, o cotidiano escolar nos aponta para novas pesquisas a serem

realizadas.

Posto isso, salienta-se que a ação educativa aqui apresentada foi influenciada, sobretudo,

por entender que o alunado envolvido nela desconhece significativamente as discussões

em torno de identidade negra e por este motivo entendemos que abrir esta discussão na

aula de História seria de suma importância. Outro aspecto marcante foi um dado

diagnosticado através de um questionário aplicado com os discentes pelos bolsistas do

projeto PIBID4 e estagiárias da formação em História do campus XVIII da UNEB. Neste,

4 Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, criado pelo Ministério da Educação-

MEC/Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –CAPES/ Diretoria de Educação

Básica Presencial – DEB que promove a integração entre educação superior e educação básica das escolas

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os dados revelaram que em uma sala de 40 estudantes, “pretos ou quase pretos”5, ou seja,

pardos e ou próximos a isso, apenas dois alunos se identificaram como negros.

Posterior a aula, no momento de reflexão com os bolsistas de Iniciação à Docência do

PIBID, entendemos que a incompreensão em torno da própria identidade entre os

discentes da educação básica era marcante e, por este motivo, optou-se em desenvolver

um projeto que priorizasse este tema, obviamente em sintonia com os conteúdos já

programados. Neste momento foi decidido também que se realizasse algo no percurso do

projeto, alguma ação que impactasse na estima dos alunos assistidos pelo Programa.

Entendeu-se que o escamotear sua cor estava diretamente relacionada com a ignorância

em torno do tema e também com a baixa estima. Este tema da dissimulação da cor já foi

analisado em diversos textos de diferentes teóricos, dentre eles, é possível salientar alguns

textos de Lilia Moritz Schwarcz.

Uma vez que se optou pelo desenvolvimento do projeto em três semanas e foi intitulado

pelos bolsistas: Sou Negro, sou resistência, entendido ainda como uma ação de afirmação

nas suas entrelinhas e voltado marcadamente para atender jovens de um bairro da periferia

da cidade de Eunápolis no extremo sul baiano. Foi definido as linhas gerais, como

objetivos e ações do percurso/metodologia que serão apresentadas mais adiante.

Antes de prosseguir nesta narrativa sobre esta ação educativa, parece-nos pertinente

abordamos o lócus da ação, entende-se que qualquer processo educativo deve atentar para

o lugar onde se está realizando a ação e os sujeitos envolvidos. Neste trabalho este lócus

foi denominado de “quase branco”, referindo-se a cidade e a escola.

O lócus da ação: a cidade e a escola

A cidade de Eunápolis fica localizada no extremo sul baiano, já nas proximidades do

Estado de Minas Gerais e também do Estado do Espírito Santo. Culturalmente

poderíamos enfatizar a cidade e seus modos como pertencente ao hibridismo cultural

defendido por alguns autores como Stuart Hall (2004). Sendo considerada como uma área

de fronteira, mediante sua localização, a cidade agrega valores e hábitos de culturas

estaduais e municipais, com Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) abaixo da média

nacional, de 4,4. 5 Neste caso faz alusão a música Haiti de Caetano Veloso e Gilberto Gil

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díspares seja da cultura mineira, capixaba e também da cultura baiana. Tudo isso é notável

no cotidiano citadino, seja nos falares, na culinária presente nas casas dos munícipes e

seus restaurantes ou de forma mais ampliada em seus modos. Entretanto, parece faltar

uma visibilidade da sua população negra, na mesma medida que discussões referentes as

suas identidades.

De acordo com o censo 2010, de uma população total 100.196.000 habitantes, apenas

12.251.000 se declaram como negra, o que evidencia, diante de constatações empíricas,

por morar na cidade, a incipiência do reconhecimento da identidade negra local. Salienta-

se também que o fato não representa uma novidade, como já evidenciado, um diagnóstico

ou uma amostragem já havia nos revelado na escola aquilo que aparece no censo. Nesse

sentido, a escola se constitui como um espaço privilegiado para provocar a construção de

novas narrativas e contribuir com uma educação voltada para a democracia mais plena e

a igualdade de direitos. Neste sentido é ímpar atentar para a aula que supera a própria aula

e seus conteúdos. Observa-se que uma aula é sempre política.

As ações desenvolvidas no colégio Estadual Eloyna Barradas, localizado em um bairro

popular, alicerçaram-se no compromisso de promover a autoestima e sobretudo fazer os

alunos e alunos se reconhecerem nas suas identidades, marcadamente na sua identidade

negra. E é bom aqui evidenciar aquilo sentenciado por Nilma Lino Gomes (2005), e que

não deve ser esquecido: o debate sobre as relações raciais no Brasil é permeado por uma

diversidade ampla de conceituações sendo a identidade negra entendida como uma

construção social e histórica, erguida gradativamente. Este texto foi basilar para o

desenvolvimento das aulas desta ação educativa.

A escola sem identidades

O colégio Estadual Eloyna Barradas fica localizado em um bairro popular da cidade de

Eunápolis -Bahia, o bairro Juca Rosa. É uma escola de tempo integral do ensino médio e

no turno noturno há também turmas de Educação de jovens e adultos - EJA. Em 2019

existe um número superior a 500 discentes matriculados nos três turnos. Na sua maioria

são jovens oriundos de família de baixa renda, muitos são filhos de país que trabalham

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no comércio, serviços, agricultura, trabalhos não formais e outras atividades. Há muitas

mães que são donas de casa e segundo relatos das professoras articuladoras, existem

muitos casos de famílias desestruturadas, seja por conta do uso de substancias de alteração

da consciência, desemprego, separação de casais e outras mazelas conhecidas da

sociedade brasileira contemporânea e por este motivo há um número considerável de

discentes criados por avós e avôs. A escola desenvolve ao longo do ano uma série de

projetos artísticos e há um número considerável de professores com formações sólidas e

muitos possuem pós-graduações. Há nela um projeto político pedagógico e muitos

professores desconhecem os objetivos principais.

Na pesquisa-sondagem realizada por bolsistas do PIBID em 20186, com os discentes da

escola, observa-se que apesar das dificuldades econômicas cotidianas muitos dos

discentes da escola almejam sua inserção no ensino universitário. Estes quase na sua

totalidade são oriundos de lares de pouca instrução formal, sendo estes na sua maioria,

oriundos de famílias onde seus país não concluíram o ensino fundamental. É importante

destacar ainda que todos têm acesso a internet e usam as redes sociais como meio

cotidiano de comunicação. Os discentes do noturno na sua maioria trabalham em serviços

e comércio, são mecânicos ou aprendizes deste oficio, trabalham em lanchonetes,

mercearias, pequenas lojas de produtos para a casa, lojas de vestimentas e outras. Há um

número considerável de alunos que são pouco atentas as aulas e não possuem hábito de

leitura.

A ação

A ação educativa ou o projeto já mencionado, foi desenvolvido em turmas do primeiro

ano no ensino médio e objetivou contestar conceitos presentes no debate sobre relações

raciais, marcadamente o conceito de identidade negra e também destacar a presença negra

na sociedade brasileira7. Ainda foi intenção atentar para o potencial criativo e artístico

dos estudantes negros e buscar inclui-lo neste projeto e também promover o intercâmbio

6 Os dados desta sondagem, aplicada em diferentes turmas da escola, foram mapeados pela bolsista do

PIBID Larissa 7 Durante o ano letivo os conteúdos de história apresentaram esta presença em vários momentos, seja

Brasil colônia e a importância do negro na edificação do país, seja na época antiga no Egito e outros.

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entre estes discentes e outros agentes culturais locais e estudantes universitários negros

(as).

Para atingir tais propósitos, foram desenvolvidas, a partir de temáticas referentes à

História e a Cultura Afro-brasileira, aulas expositivas e dialogadas, oficina, palestra,

desfile, e uma exposição fotográfica, na qual os alunos e alunas foram os modelos. Todas

estas ações do projeto envolveram os estudantes da escola e os bolsistas de iniciação à

docência, com resultados fulcrais para o processo formativo dos sujeitos envolvidos, não

há margem que se duvide disto.

O primeiro momento deste projeto se deu no âmbito da sala de aula e as discussões inicias

foram baseadas na narrativa de Lázaro Ramos (já citado) e também nos conceitos

discutidos no texto de Gomes, também já destacado anteriormente. Entendemos que

conceitos como: identidade, identidade negra, raça, etnia eram elementares nesta ação,

bem como ler e discutir a escrita de um ator negro preocupado com formação, racismo e

outros temas que dialogam de maneira próxima com as realidades dos educandos. Realça-

se que Ramos, hoje conhecido por sua ação na televisão e no cinema, é oriundo de uma

família pobre do recôncavo baiano e narra suas dificuldades e conquistas na sua obra que

trouxemos para a sala, entendendo que trajetórias é tão importante quanto história

econômica e política.

Outro momento singular do percurso foi a adesão de alunos e alunas para serem

fotografados e posteriormente mostrados em Exposição na escola. Esta ação teve a

participação de uma fotografa negra da cidade que também empreendeu uma conversa

com os discentes8. O fato da adesão de alunos (as) nesta ação, já foi enxergado como um

importante resultado, pois se observou nisso uma melhoria de estima e uma compressão

inicial de conceitos debatidos anteriormente.

O projeto ainda teve a adesão de outros e outras negras que produzem música e outras

artes na cidade e a interlocução destes com os discentes foi notável, seja por conta dos

questionamentos e sobretudo, por estes revelarem aspectos de suas trajetórias. Todo o

8 A fotografa Caroline Nascimento participou de forma colaborativa da ação e cedeu se trabalho para ser

exposto. O professor regente das turmas Marcos Gonçalves também realizou fotografias e na ocasião era

supervisor bolsista do PIBID.

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percurso foi sempre orientado pelo tema basilar da lei 10639/03. Discutir tal temática

possibilitou problematizar a aplicabilidade de políticas públicas em contextos escolares e

suscitar reflexões sobre práticas educativas direcionadas para a superação do currículo

excludente e “monocultural ainda existente”. Assim, faz-se necessário mobilizar temas,

abordagens e metodologias que considere as contribuições das diferentes culturas e etnias

para a formação do povo brasileiro, a partir de uma lógica problematizadora.

Aspectos finais da ação e considerações

O projeto teve um momento de culminância e este foi aberto a toda a comunidade escolar

do diurno. Desta forma, os discentes de outras séries, não incluídos diretamente no projeto

foram convidados a participarem. Este momento objetivou visibilizar momentos da ação,

atividades realizadas pelos discentes e por último e não menos importante impactar

positivamente na estima dos agentes envolvidos. Foi intenção também amalgamar o

ensino de história e as artes.

A manhã de novembro que foi realizada o evento, o momento inicial foi uma palestra,

espécie de bate papo e foi proferida por um aluno do Curso de História da Universidade

do Estado da Bahia- UNEB9 e intitulada Sou Favela! A comunicação do discente

universitário contemplou trajetórias de sujeitos negros e também a sua própria trajetória

e podemos analisar este momento como exitoso. O jovem universitário consegui que uma

plateia superior a cem alunos adolescentes parasse por mais de uma hora para ouvi-lo e

discutir questões. Observou-se ali uma conversação entre iguais, o palestrante também se

enxerga negro, é neste aspecto residiu o êxito da ação. Sendo educação um ambiente que

suscita avaliações constantes das práticas e resultados, há muito a se refletir sobre este

episódio que foi parte da ação.

Este evento final, ainda contou com apresentação de produções textuais dissertativas e

poéticas, falas dos discentes sobre seus entendimentos do projeto, apresentações

musicais, uma mostra de camisetas emblemáticas produzidas pelos alunos e realizada em

formato de desfile e também foi aberto a Exposição Fotográfica com o título igual ao

projeto, sou negro, sou resistência. A Mostra de fotos teve os discentes como

9 Matheus Wictor Moura Silva é aluno do oitavo semestre da UNEB- Campus XVIII.

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protagonistas e ao que nos parece, mediante as falas dos mesmos, foi singular se

observarem nas fotografias ampliadas, impactando positivamente nas estimas.

Negro baiano – foto da exposição: sou negro, sou resistência

Como todo projeto pedagógico deve ter objetivos e na sua realização deve-se buscar

alcança-los, consideramos a ação educativa realizada exitosa. É importante observar que

a temática em questão, por vezes, é pouco explorada nas escolas, inclusive nesta. O fato

de termos colocado identidade, racismo e outros temas na pauta da agenda escolar, foi

considerado como singular. Se pensou ainda, desde o início, em amalgamar ensino de

história, compreensão histórica e as artes. Entendemos que está aproximação torna a aula

mais dinâmica e em sintonia com o tempo presente e neste caso alcançar os resultados

objetivados. Esta aproximação não invalida que se alcance aqueles aspectos da legislação

educacional vigente, que dentre as competências e habilidades e objetivos gerias da

formação do ensino médio, busca emancipar indivíduos ao fim do ensino, pensa-se que

nesta ação houve uma contribuição.

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As minas – foto da exposição: sou negro, sou resistência

Por fim, entendendo que os processos de formação de discentes da educação básica, é

algo que não se realiza com a rapidez que os docentes esperam. Temos a crença que esta

ação foi uma pequena ‘semente” plantada, espécie de embrião e aliada a outras ações fora

e dentro dos muros da escola podem gerar “frutos”. O projeto nos mostra também que é

possível ir realizando uma educação antirracista. Os autores desta comunicação

enxergaram, os bolsistas pibidianos também e a ação foi impactante para nós, pois somos

seres ainda em formação. Nada está concluído em educação e o desenvolvimento de

projetos nos ensina muito.

Algo é indubitável e o ambiente escolar brasileiro nos mostra cotidianamente. Há racismo

sim e o jovem negro precisa se reconhecer como negro no ambiente escolar. A canção

nos alertou nos anos de 1990: todos sabem como se tratam os pretos ou quase pretos.

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