27
“O silêncio é o mais acertado.” Era desta forma que Mark Rothko, um dos artistas mais importantes do século XX, respondia quando lhe pediam para falar das suas pinturas. Temia que as pala- vras paralisassem a mente e a imaginação do espectador. Acreditava que uma imagem abstracta representa directamente a natureza fun- damental do drama humano. Daí que seja de uma inequívoca impor- tância histórica, além de teórica, a publicação deste A Realidade do Artista, de Mark Rothko. Nascido Marcus Rothkowitz na Rússia, em 25 de Setembro de 1903, emigra com a família para os Estados Unidos da América dez anos depois. Cedo convive e estuda com artistas; cedo percebe que a arte, enquanto expressão da tragédia da condição humana, terá que encontrar uma linguagem nova. Aos poucos, Rothko vai experimen- tando, utiliza novas linguagens de que depois se liberta até, por fim, abandonar quaisquer elementos figurativos, concentrando-se nos ele- mentos pictóricos puros, convicto de que, só por si, revelariam uma elevada verdade filosófica. Quando se suicidou, já doente, em 25 de Fevereiro de 1970, Rothko era reconhecido nos EUA e na Europa pelo seu papel crucial no desenvolvimento da arte não-representativa. Empenhado na sua visão artística única, celebrou o poder quase mítico da arte junto da imaginação criativa e manteve a sua crença na capacidade que a arte abstracta tem para ser fruída em termos puramente emocionais. Este livro resulta da descoberta muito recente de um manuscrito de Mark Rothko, no qual o pintor reflecte sobre temas que vão do Renascimento à arte contemporânea, do mito ao belo, passando pela verdadeira natureza da arte ou pelo papel da arte, da crítica e dos artistas na sociedade. A par da exposição do seu pensamento, Rothko transmite claramente ao leitor a intensidade da sua demanda artística, o esforço doloroso e constante para aprofundar questões que, para ele, seriam do domínio do inefável.

A+Realidade+do+Artista_Rothko

Embed Size (px)

DESCRIPTION

A+Realidade+do+Artista_Rothko

Citation preview

Osilncioomaisacertado.EradestaformaqueMarkRothko,umdosartistasmaisimportantesdosculoXX,respondiaquandolhepediamparafalardassuaspinturas.Temiaqueaspala-vras paralisassem a mente e a imaginao do espectador. Acreditavaqueumaimagemabstractarepresentadirectamenteanaturezafun-damental do drama humano. Da que seja de uma inequvoca impor-tnciahistrica,almdeterica,apublicaodesteARealidadedoArtista, de Mark Rothko.NascidoMarcusRothkowitznaRssia,em25deSetembrode1903, emigra com a famlia para os Estados Unidos da Amrica dezanos depois. Cedo convive e estuda com artistas; cedo percebe que aarte,enquantoexpressodatragdiadacondiohumana,terqueencontrar uma linguagem nova. Aos poucos, Rothko vai experimen-tando, utiliza novas linguagens de que depois se liberta at, por fim,abandonar quaisquer elementos figurativos, concentrando-se nos ele-mentos pictricos puros, convicto de que, s por si, revelariam umaelevada verdade filosfica. Quandosesuicidou,jdoente,em25deFevereirode1970,Rothko era reconhecido nos EUA e na Europa pelo seu papel crucialnodesenvolvimentodaarteno-representativa.Empenhadonasuaviso artstica nica, celebrou o poder quase mtico da arte junto daimaginao criativa e manteve a sua crena na capacidade que a arteabstracta tem para ser fruda em termos puramente emocionais.Este livro resulta da descoberta muito recente de um manuscritodeMarkRothko,noqualopintorreflectesobretemasquevodoRenascimento arte contempornea, do mito ao belo, passando pelaverdadeiranaturezadaarteoupelopapeldaarte,dacrticaedosartistas na sociedade. A par da exposio do seu pensamento, Rothkotransmite claramente ao leitor a intensidade da sua demanda artstica,oesforodolorosoeconstanteparaaprofundarquestesque,paraele, seriam do domnio do inefvel.A REALIDADE DO ARTISTATtulo original: The artists reality. Philosophies of art.Copyright: Escritos de Mark Rothko/Writings by Mark Rothko 2004 Kate Rothko Prizel and Christopher Rothko.Pinturas/Paintings by Mark Rothko 1998 Kate Rothko Prizeland Christopher Rothko. Obras sobre papel/Works on paperby Mark Rothko 2004.Traduo Edies Cotovia, Lda. e Fernanda Mira Barros,Lisboa, 2007ISBN 978-972-795-169-7Mark RothkoA realidade do artistaFilosofias da arteTraduo deFernanda Mira BarrosCotoviandiceAgradecimentos p.10Introduo, por Christopher Rothko 11O dilema do artista48A arte como funo biolgica natural56A arte como forma de aco Escapismo60Decadncia63A integridade do processo plstico69Arte, realidade e sensualidade77Particularizao e generalizao82A generalizao desde o Renascimento96Impressionismo emocional e dramtico102Impressionismo objectivo108Plasticidade Diferentes tipos117Plasticidade e espao127O Espao Diferentes tipos140Base filosfica146O BeloDefinio e avaliao151O belo: plstico e ilusrio156O belo e a sua criao161O belo e a sua apercepo1667Naturalismo170Assunto e contedo Assunto175Contedo. O contedo e a realidade do artista181Contedo e mito186Contedo e antiguidade193Antiguidade e continuidade plstica197O mito202O mito do Renascimento202O mito desde o Renascimento. Introduo210O mito e a sua representao na linguagem plstica212Sensualidade e mito215O mito tentado de hoje221A influncia das civilizaes primitivas na arte moderna226Arte moderna A arte moderna como reavaliao da experincia artstica233A arte moderna e a sua relao com o escapismo236Primitivismo Os primitivistas populares241Os primitivistas e a arte popular246Arte indgena A procura de uma arte norte-americana249Regionalismo250Tradicionalismo norte-americano251Educao e tradio indgena259Arte popular2628Para a Kate, sem a qual nada teria havido.AGRADECIMENTOS10Gostariadeagradecersseguintespessoasasuaajudaeapoio: Marion Kahan pela descoberta fundamental; Janet Sainespelos conselhos excelentes; Melissa Locker, Lauren Fardig e AmyLucaspelapesquisaquefizeram;IlyaPrizel;eWilliameSallyScharf pelos muitos anos de sabedoria e cuidados.Gostaria tambm de agradecer ao pessoal da Yale UniversityPress, em especial a Patricia Fidler pelo seu entusiasmo e pela suaviso,aMichelleKomiepelaformacomomeconduziuepeloincansvel trabalho de transcrio, a Jeffrey Schier pela sensibili-dade da sua forma de editar, a John Long pelo manuseamento dasfotografias, a Mary Mayer pelo trabalho de produo, a DaphneGeismar pelo seu ptimo design moderno, e a Julia Derish peloseu faro excepcional para factos omissos.Agradeo especialmente minha mulher, Lori Cohen, e aosmeus filhos Mischa, Aaron e Isabel, por serem uma permanenteinspirao. Christopher RothkoINTRODUO11OLIVRO.Olivroeradecertamaneiraumalendaparamim,querepousavamesmonaperiferiadaminhaconscincia.Tinhaumaimportnciaeumadignidadequeprovavelmenteexcediam o seu contedo e que eram sem dvida alimentadas pelasuaprpriainsubstancialidade.Nohnadacomoomistriopara dilatar as dimenses do desconhecido ou do indistintamentevislumbrado,e,nasguassombriaseturbulentasdeixadaspelamorte do meu pai, pouco havia, com efeito, que eu estivesse certode ter entendido.Aslendas,claro,sofrequentementebaseadasemfactos,masdadoqueeununcaviraolivro,nuncapoderiasaberondeacabavamashistriaseaverdadecomeava.Partedaauradolivroveio,semdvida,emboramuitoindirectamente,domeupai. Pode ser que tenha sido filtrada pela minha me, que apare-ceu em cena no muito depois de ele ter desistido de medir forascom o livro. Falavam dele com amigos e colegas, ainda que pou-casvezes,masnuncaofizeramcomaminhairmoucomigo. Asensaodemistrioemtornodolivrofoimuitoreforadadurante a batalha pelos papis do meu pai, que se seguiu logo sua morte em 1970. Naquelas circunstncias, a importncia destemanuscrito, que at ento ningum vira, assumiu propores her-cleas.Isto fazia parte do legado que nos deixou, minha irm e amim, a morte sbita e inesperada dos nossos pais. Foram precisasquaseduasdcadasparaacrescentarvozaossussurrosqueini-cialmentenosinformaramacercadolivro.Edemoroutrintaequatroanosinteirosadesenredare,depois,aexplorartodaadimensodomanuscrito.Agoraquesetransformounumdocu-mento editado e impecavelmente passado mquina, numa coisapublicada,bastantefcilperderdevistaoseuestadoanterior.Mas, na maior parte da minha vida, as teias de aranha foram maisvisveis do que a substncia subjacente.Toda esta histria de sombras e boatos tem uma certa ironiano contexto da obra artstica do meu pai. As suas pinturas maisconhecidas so grandes e vibrantes e decididamente icnicas. Exi-gem uma ateno imediata e fsica, que este pequeno, deterioradoe desordenado acervo de folhas impressas no poderia ter a espe-rana de reproduzir. As suas obras comunicam a um nvel que explicitamentepr-verbal.Defacto,seriadifcilencontrarumapintura menos narrativa. Como a msica, a obra artstica do meupaiprocuraexprimiroinexprimvel estamosbastanteaqumdo domnio das palavras. Da falta de figuras e espaos identific-veisfaltadettulos,aspinturasdomeupaiesclarecemqueasrefernciasacoisasexterioresprpriapinturasosuprfluas.A palavraescritairiaapenasperturbaraexperinciadestaspin-turas; no pode entrar no seu universo.E, no entanto, estes escritos compelem-nos e fascinam-nos deumaformaqueomeupaiteriacertamentedesejado.Longederejeitar este livro que nunca concluiu e que escreveu antes donascimento do seu estilo fortemente abstracto, que havia de o tor-narfamoso omeupaiconservou-oe,conscienteouincons-cientemente, inflamou o interesse em todos aqueles a quem che-12garam rumores acerca da sua existncia. As palavras dele podempermanecerforadaobraartstica,masexprimemfilosofiasqueele continuou a acalentar mesmo quando a pintura se tornou noseu nico veculo de expresso.Uma razo pela qual este livro nos fascina tanto Rothko tersido claramente um pintor de ideias. Foi ele mesmo que o disse,vezes sem conta, e uma pessoa pode bem senti-las impregnando asuperfciedassuas deoutromodo,algoamorfas abstrac-es. Com efeito, podemos perguntar: se aqui no existem ideias,o que h aqui? E, o que podem essas ideias ser, ao certo? Em simesmas,aspinturasconservamsomentepistasmuitogerais,eno pequeno o nmero de observadores que deram por si esti-muladossensualmentemasprofundamentefrustradospelapr-priaabstracodasobras.Compoucodeconcretoaapreender,muitaspessoasafastaram-sedasobras comovidasourevolta-das , na suposio de que, de facto, eram vazias.Assim, ter na mo um livro escrito por Rothko e no umlivro qualquer, mas o que apresenta a sua filosofia da arte , naverdade,umpresenteparaquemficoucativadopelasuaobra. comosenosdessemachavedeumacidademsticaqueatagora pudemos apenas contemplar de longe.Mas ser esse realmente o caso?Como com tudo o que se relaciona com o meu pai, a verdadeumacoisamaisesquiva,atmesmodialctica.Emprimeirolugar, em A Realidade do Artista ele no fala directamente, umavez sequer, das suas obras. Na verdade, no lhes faz qualquer alu-so,nemaofactodeserpintor.Emsegundolugar,olivrofoiescrito muitos anos antes de a sua obra se tornar completamenteabstracta e, assim, se fornece pistas para os segredos das suas flu-tuantes formas rectangulares, elas so oblquas e, de facto, pres-13cientes. Em qualquer caso, o livro no fala sobre o significado daspinturas, nem sobre como se pode encontrar esse significado. Osseus ensaios falam-nos acerca daquilo que o artista faz, acerca dasuarelaocomasideias,eacercadaformacomoasexpressa.EstasrazesmuitoconcretasexplicamporquemotivoA RealidadedoArtistanoforneceumroteiroparaaobradeRothko, mas, muito francamente, no vm ao caso. Desocultar osignificado de uma pintura no uma coisa to simples que possaser codificada num livro e Rothko no quereria por certo um guiadessetipoparaasuaobra.Compreend-laumaexperinciamuitopessoaledependemuitodoprocessodeentrarmosnela. como a viagem plstica que ele descreve no captulo Plasti-cidade paraconhecermosumapinturaprecisoempreendernumaaventurasensvelpordentrodoseumundo.Rothkononos pode dizer o que significam as suas pinturas ou as dos outros.Temosdeasexperimentar.Aocabo,seeletivessesidocapazdeexpressar a verdade a essncia destas obras atravs de pala-vras, provavelmente no teria perdido tempo a pint-las. Como asua obra exemplifica, escrever e pintar so actividades que envol-vem tipos diferentes de conhecimento.O que disse at aqui poder ajudar-nos a perceber as razespelasquais,emvida,Rothkonuncatornouestelivropblico.No o caso que ele tenha abandonado estas ideias ou que esti-vesseenvergonhadoacercadoqueescrevera.Seassimfosse,eleteria,muitoprovavelmente,destrudoomanuscrito,edecertoqueonoteriaprometidoaoseubigrafodeeleio,comoaminha irm e eu acreditamos que ele tenha feito. No, julgo queele guardou o livro para si por recear que, se oferecesse s pessoasoprincpiodeumarespostaouailusodeumarespostaparaasua obra artstica, elas nunca encontrariam outra que fosse mais14completa e talvez nunca chegassem a fazer as perguntas necess-rias.Arespeitodasuaprpriaobra,pelomenos,preocup-lo-iano levar as pessoas a percorrer caminhos errados, avanando scegascomosseuspedacinhosdeconhecimento,quando,nofimde contas, se cuidadosamente encarada, a sua pintura falava porsi mesma. Ele estava consciente deste perigo e, por isso, foi cau-telosoquantoadiscutirasuaobra,tendoconcludorepetida-menteque,quantomaisdizia,maioresosmal-entendidosquegerava. No era seu desejo sabotar o processo pelo qual as pessoasviriam a conhecer a sua obra, e julgo que ele percebeu quo com-plicado poderia isso ser isto , percebeu que as pessoas se afas-tariam depressa para o evitar. Pelo mesmo motivo, penso que elesabia quo gratificante pode o processo ser, se nele nos envolver-mos completamente.Foi, por conseguinte, com muitos sentimentos contraditriose com uma grande dose de introspeco que, tendo consultado aminhairm,Kate,deciditrazerluzARealidadedoArtista.Apresentar o livro ao pblico como desembainhar uma perfeitaespada de dois gumes. Por um lado, um tesouro para acadmi-coseumafontedegrandeinteresseparaosadmiradoresdeRothko. Por outro lado, como o livro data de relativamente cedonacarreiradomeupai,estinacabadoenosereportadirecta-mentesuapintura,potencialmenteenganador.Paraalmdisso, o estado incompleto do livro e o facto de a preparao domeu pai no ser nem a de filsofo, nem a dehistoriador de arte,faz dele um alvo fcil para ataques, pois aos argumentos que apre-senta falta por vezes polidez, rigor, ou ambas as coisas.Por fim, decidimos, a minha irm e eu, que estas preocupa-es pouco importavam. Rothko hoje to clebre que a maioriadosapreciadoresdeartetero,nomnimo,passadopelosseus15quadros, e poucos sero os que pegaro neste livro sem uma maiorfamiliaridadecomaobraecomomodocomoelafunciona.Mesmoquealgumaspessoasestejaminteressadasemencontraraqui um guia rpido para as obras ainda misteriosas do meu pai,olivroexcessivamentedensoparaqueessetipodeexplicaofcil esteja mo. Assim, para sarem do livro mais instrudos, slhesresta,aessesleitores,debaterem-secomafilosofiadeRothko, tanto como com as suas pinturas.Aspreocupaesdafamliaacercadamaneiracomoomanuscritoincompletoapresentaonossopaicomoescritoroupensador talvez sejam legtimas a prosa no faz justia ao nvelque ele atingiu nas suas poucas declaraes publicadas, e a clarezado seu raciocnio nem sempre a ideal. No entanto, acredito queno ser com um esprito crtico em relao a estes aspectos que olivro ser (ou deveria ser) lido. No ser por esperarem as decla-raes mais poderosas e recentes na filosofia da arte que os leito-res o lero atentamente (embora, talvez, as suas conquistas nessarea excedam o mbito dos meus conhecimentos); em vez disso,os leitores esto interessados nos pontos de vista dele por se sen-tirem compelidos pela maneira como o viram express-los atravsdapintura.OverdadeirovalordeARealidadedoArtistanoestnorigordosargumentosdeRothko,nemnamaneira,con-sistenteouno,comoprocuravencerosseusdebates;pelocon-trrio,otesouroaquiser-nosoferecidoumvislumbrerarodamaneiracomoumartistavomundo,expressopelapalavraescrita e em considervel detalhe.Emltimaanlise,acreditamos,aminhairmeeu,queopblico tanto o acadmico, como o entusiasta tem o direitode ver este livro. Se o meu pai o tivesse destrudo ou suprimido,a nossa concluso talvez fosse outra mas, muito semelhana de16como tratou as pinturas do comeo da sua carreira, ele no pare-ceu desaprovar o livro ou dar qualquer indicao de que, luz dasdirecesquedepoistomouedassuasconquistastardias,asuavalidadeouimportnciaestivessecomprometida.Eleguardouomanuscrito como parte do seu legado, e eu tentei fazer o mesmo,ao traz-lo a pblico numa edio o mais completa e fiel possvel.Impe-se,portanto,umabrevehistriadomanuscrito.Emgeral, o meu pai no discutia a obra com a famlia, e eu no tenhorazesparaacreditarqueoseucomportamentofossediferentecom A Realidade do Artista. Mas se foi, a Kate (que tinha deza-noveanosdatadasuamorte)eeu(quetinhaseisanos)notemos quaisquer lembranas disso. Visto que a nossa me, MaryAlice (Mell) Rothko, morreu seis meses depois dele, o que querque ela pudesse dizer a esse respeito no foi revelado, pelo menosno a ns.O manuscrito veio pela primeira vez superfcie no contextodas feias disputas legais que se seguiram morte do meu pai. Empouco tempo, os processos legais confrontaram-nos, minha irmeamim,comosexecutoresdopatrimniodomeupaiecomaMarlborough Gallery, que o representara durante a dcada prece-dente(naverdade,apenasaminhairmfoiconfrontada,vistoque eu era muito novo). Durante os primeiros meses do conflito,comearam a chegar a Kate rumores segundo os quais o meu paiescreveraumlivro,eoalegadomanuscritodepressasetornounum dos eixos do conflito entre os executores e Robert Goldwa-ter, que concordara, no ano antes de o meu pai morrer, escreveruma avaliao acadmica, biogrfica e, acima de tudo crtica, dasua vida e obra. Tanto quanto a Kate sabe, nem Goldwater nemos executores tinham alguma vez visto o livro e, como Goldwater17faleceu cerca de um ano aps a morte do meu pai, o assunto pas-sou a ser contestado talvez menos hostilmente. No fim, o manus-critopareceterrepousadodurantequaseduasdcadasnumapasta de fole com a incua etiqueta: Papis Avulsos.Comopudemos,aminhairmeeu,deixarumdocumentotoimportanteaoabandonotantotempo(defacto,quasetrsdcadasemeia,datadapublicaodestelivro)?Paracom-preenderprecisosaberumacoisasobrearelaoambivalenteque a Kate e eu tivemos com o patrimnio e o legado do meu pai.Paracomear,passmososprimeirosquinzeanosaseguiroimbrglio da sua morte em complicaes legais relacionadas comopatrimnio.Duranteesseperodo,euestavanaescolaeaminhairmconcluiuocursodemedicina,ingressounumaps-graduao, casou, teve os primeiros dois dos seus trs filhos, e tor-nou-senanovaexecutoradopatrimnio,depoisdosprimeirostrs terem sido destitudos pelo tribunal. Nenhum de ns estavanumaposioquelhepermitisseirprocura,avaliar,ouatmesmo pensar no manuscrito.No desfecho dessa experincia, a minha irm estava no ape-nasexaustacomo,paradizercomfranqueza,particularmentemagoada com o mundo da arte. E a minha prpria associao coma obra do meu pai ainda no pendurara qualquer quadro seuquando,ameiodadcadade1980,ocasodopatrimnioficouencerrado resumia-seaassinarumadatadeformulrioseatentar perceber dossiers aparentemente interminveis, nos quaisonmerodesub-clusulasultrapassavaemmuitoaquantidadede informao partida inteligvel. Embrenharmo-nos nas incon-tveis caixas de papelada legal procura do Livro no nos pareciauma tarefa particularmente apelativa.18Foisem1988queMarionKahan,quetrabalhavacomonossaguarda-livrosenosajudouagerirasobrasdomeupaidurantemaisdedezasseteanos,encontrouomanuscritonumavelha pasta de carto no meio dos papis guardados (imagem 1).Ela no fora especificamente incumbida por ns de ir sua pro-cura, mas encontrou-a por acaso durante o trabalho de invent-rio. Imediatamente fotocopiou as pginas deterioradas e amare-ladaseinformou-nosquejulgavaterencontradoO Livro.NomelembrodegrandescertezasoufestejosvindosdapartedeMarion nessa altura ela garante-me que se lembra do contr-rio. Como quer que seja, eu ainda no estava preparado psicolo-gicamenteparaouvirestanotcia.Estavanafaculdadeetinharecentemente assumido a administrao quotidiana dos assuntosrelacionados com Rothko, de que antes se encarregava a minhairm.Naquelaaltura,eraumatarefabastanteingrataeabor-recida.Lembro-me de estudar o manuscrito e outros papis que lheestavamrelacionados,durantealgumtemponoanoemqueaMarionmosenviou.Nodediqueimuitotempoaoprocessoeconcluquealinohavianadaderealmenteespecial.Foiumaconclusoimpensada.Estoucertodequenoqueriaencontrarnadadesubstancial teriasidoumaborrecimento,maisumatarefa para me ocupar, mais uma distraco que me afastaria dosmeusestudos.Omanuscritofacilitou-mechegaraessaideia.Estava batido mquina desajeitadamente, com muitas emendasacrescentadasmo eaindamaisgralhas enoofereciaqualquerordemoudireconarrativaevidente(imagem2).Sehavia ali alguma coisa de interesse e, primeira vista, de factonohavia fazerdaquiloalgumacoisateriasidoumaborreci-mento.19E, assim, o manuscrito permaneceu imperturbado. Por vezespondermos disponibiliz-lo a acadmicos. Por mais de uma oca-sio, chegmos a ir procura de um historiador de arte que fizesseaavaliaocrticaabrangentedaobradonossopai,queRobertGoldwater no teve a oportunidade de escrever. O acesso ao livroteriafeitopartedesseprocesso.Contudo,todasestasdilignciasacabaramporabortareolivropermaneceuemboamedidanasombra para ns, assim como para o resto do mundo.Houve vrias razes pelas quais no nos esformos mais poravaliaromanuscritoetorn-lopblico.Umadelas,nomenosimportante, foi, como indiquei, a fadiga, mas existia outra razo,que vai mais fundo: penso que simplesmente no estvamos pre-paradosparacederocontrolo.Tantoaspinturas olegadodonossopai comonsosdois,tnhamosacabadodepassarporumlongoetumultuosoperododeincertezasaseguirsuamorte, de modo que ainda nos estvamos a restabelecer e a asse-gurar de que o cho sob os nossos ps era firme. muito difcilabdicar de uma coisa pela qual se lutou com tanta determinao,enaturalquetaisbatalhasnostornemcautelosos.apenasagora, com o interesse em Rothko numa fase alta sem preceden-tes,comotestemunhamoslouvoresdopblicoedacrticaeasexposies quase mais frequentes do que somos capazes de gerir, apenas agora que podemos relaxar um pouco.Mas s um pouco. Alis, repare-se em quem est a editar estevolume(coisaque,depoisdeexaminarpelaprimeiravezestemanuscritointimidante,eujureiquenunca faria).Isto,claro,leva-nosprecisamentequestodeporqusereuaeditarestevolume, e porqu public-lo agora? A primeira razo de que eusouidneo(isto,paraaminhairmeparamim).Sedefendouma posio pessoal acerca de como fazer isto, essa uma posio20familiar.Umafonteexterior,pormuitobeminformadaebem--intencionada que fosse, no traria a mesma espcie de cuidado aeste projecto que traz uma pessoa da famlia. Isto no quer dizerque a ateno que essa pessoa traria seria de uma espcie pior seria simplesmente diferente. Todavia, isto o mesmo que dizerque,tendoporbaseanossaprpriaexperinciacomaobradomeupai,confiaremalgumexteriorfamliateriaresultadosdesastrosos. Alm disso, tendo por esta altura trabalhado de pertocom a obra artstica do meu pai durante uma dcada, conheo asuaproduoaopormenoresintoteraprendidoosuficienteacerca dela para poder executar o projecto com cuidado, com pro-fundidade crtica.Foi,porconseguinte,nocontextodepedidosrecentesporpartedeacadmicos,assimcomodointeresseindependenteporparte de uma editora, que decidi voltar a olhar para o manuscrito.E, vejam s, reparei numa coisa diferente desta vez. Sem dvida,aobraqueencontreiestavaincompletae,emcertaspartes,erafrustrantementeobscura,maseraumlivro, eumlivrosubstan-cial. Foi claramente escrito para ser um volume, o seu contedodirigia-seaumpblico,enoconsistiaemmerasdivagaesdeum artista. Chegara o momento de ver a luz do dia e, embora eutenha respirado fundo antes de mergulhar nele, eu sabia ser a pes-soa indicada para o trazer a pblico.ROTHKO NO COMEO DOS ANOS 1940Rothko pintava desde o comeo dos anos 20, quando desis-tiu do Yale College e descobriu o caminho para a cidade de NovaIorque.Enquantogastavaamaiorpartedotempoemvrios21empregos e a ensinar desenho a crianas da escola, produziu umvolumeconsistentedetrabalho,desdeofimdosanos1920edurante os anos 1930, tanto em tela como em papel. At 1939, asuapinturaerafigurativa;coresmortasretratavamcenasurba-nas, retratos, nus e dramas estranhos, psicologicamente tingidos.Em1940-41,noentanto,porvoltadaalturaemque,emnossaopinio,Rothkoescreveuogrossodestelivro,asuaobramodificou-seconspicuamente.Abrangendoaspectosdosurrea-lismo,quenessaalturaeraemgrandemedidaavanguardadapintura europeia moderna, comeou a pintar paisagens imagin-riasefigurasloucamentedistorcidas,commltiplascabeasemembros desagregados e depois reconstitudos em seres sintticosinquietanteseperturbadores.ComoRothkoesclarecenestevolume,elenodefendiatodasasideiasfilosficasdestemovi-mento, mas certo que adoptou algumas das suas caractersticasestilsticas, a par daquele fascnio artstico por mundos mticos epelos contedos do inconsciente colectivo.Oquesesegueaistoestumpoucocobertodemistrio.JamesBreslin,obigrafodeRothko,observaaafirmaodoartista segundo a qual, por volta de 1940, ele ter parado de pin-tarduranteamaiorpartedoanoparalerfilosofiaeliteraturamtica.ElediztambmqueRothkosofreuumadepressoem1940 ou 1941 e parou de pintar durante uma margem de temposignificativa (James Breslin, Mark Rothko: A Biography, 1993).Apesar de eu no ter ouvido esta histria a mais ningum, Bres-lin geralmente preciso em relao aos factos da vida do meu pai,demodoqueestouinclinadoaaceitarquealgumaespciedeinterruponasuapinturaocorreudefacto.Emboranosejaclaroseaviragemparaumapinturasurrealistaebaseadaemmitos ocorreu antes, durante ou depois da escrita do livro, pode-22mos inferir que o corpo principal do livro foi escrito durante essainterrupo.Vou demorar um instante a explicar o que sabemos acerca dadatao do livro. A nica evidncia concreta de que dispomos estno verso de uma pgina do manuscrito, no qual Rothko dactilo-grafou o rascunho de uma carta datada de 23 de Maro de 1941.Noentanto,oseumentorartstico,MiltonAvery,mencionanumacartaqueRothkoestatrabalharnumlivrodesdepelomenos 1936 (ver Breslin). Embora no possamos saber se se tratadomesmolivro,improvvelquetinhaescritoduasgrandesobras perdidas.Contudo, no estou tentado a acreditar que a maior parte dolivro tivesse sido escrita to cedo. Em primeiro lugar, uma outracarta de Avery (tambm citada por Breslin), datada de Setembrode1941,mencionaqueRothkoabrandoucomolivro,oquesugere um perodo de actividade intensa imediatamente anteriora essa altura. Alm disso, Rothko faz no manuscrito vrias refe-rncias a acontecimentos posteriores, de entre os quais se destacaa Feira Mundial de 1939 e os guerreiros da Alemanha (presu-mivelmenteenvolvidosnaSegundaGuerraMundial).Porfim,temos de seguir uma pista dada pelo texto de Rothko e pelas pr-priaspinturas.Elepassagrandestrechosdolivroadiscutiropapel dos processos inconscientes na produo da arte, e um bomquarto do livro a falar do mito na arte e na sociedade. No podeser uma coincidncia que estes sejam precisamente os temas quesurgiram nas suas pinturas do comeo dos anos 1940. Apesar dealguns ensaios includos em A Realidade do Artista poderem tersido comeados mais cedo, as pinturas de Rothko dizem-nos queeste livro, mais ou menos como o conhecemos, estava a ser escrito23naalturaemqueassuastransformaesartsticasestavama comear.FoiassimoprogressodoRothkoartistaepensador.Entre-tanto, o Rohtko homem tinha estado a lutar pela vida durante apoca da Depresso, mal conseguindo sustentar-se. No venderaquasenenhumtrabalho,fizerapoucasexposieseestiveraempregado,nosvriosanosprecedentes,comoartistadaWorksProgress Administration (WPA). O seu primeiro casamento, quefoi sempre conturbado, estava na pior fase. Houve uma separaoprolongadaem1940ou1941,provvelorigemdadepressodequeBreslinfala.Antesdestesacontecimentos,asuamulher,EdithSachar,queduranteessetemposetornarabemsucedidacomodesenhadoradejias,deu-lhetrabalhonoseuestdioeparecequeodesencorajoudecontinuarapintar.Ocasamentoacabaria por terminar em 1943.Esboceiestefundoporqueeleofereceumcontextonoqualpodemos compreender os textos mais polmicos de A RealidadedoArtista. Otomdessescaptulosrevoltado,ressentidoeporvezes lamurioso. Conseguimos sentir a frustrao de um homemquesentequetemmuitacoisaadizerequequerdesesperada-menteserouvido.Aquiestumartistaquetentacaptarasuanoo de real, a sua ideia de verdade, em todas as pinturas, masno consegue que ningum repare nele. com isto em mente quedevemos ler as suas diatribes repetidas contra Maxfield Parrish, oseu libelo contra os cartoonistas, a sua deriso dos pseudo-primi-tivos. Rothko no tinha pacincia para o quer que fosse que noaspirasse aos mais altos ideais. O caso no era somente que estesartistasestivessemaproduzircoisasderivativasedesprovidasde alma; o caso que eles estavam a faz-lo e a conseguir a aten-o do pblico. Entretanto, Rothko ficava sentado no seu monte24proverbialdelixo,amaldioandoodestinoqueoprendiaali.Popularportantoumapalavraduplamentedbia,porquedenotatantoasuperficialidadecomooreconhecimentodoqualRothko estava excludo.Isto no negar que muito daquilo que Rothko reprova sejato obtuso como ele sugere. Aquilo a que me refiro o seu tom.A sua prpria experincia de privao acrescenta mordacidade ssuas palavras. Se ele fosse bem sucedido, e se essa experincia deprivao fosse menos imediata para ele, talvez ele nem sentisse anecessidadedefalardestasartesinferiores.Podemosassumiramesma perspectiva na discusso de Rothko, no captulo sobre arteindgena,acercadediferentesmtodosparaavaliararte.Asuaanlisesuficientementesofisticadae,comefeito,chegaaserconvincente, mesmo que lhe falte a polidez que uma reviso sub-sequente traria. O que nos surpreende, no entanto, a veemn-ciacomqueeleatacaospopulistas.Estesocialistaconfessoexprimerepetidamenteumaprofundadesconfianadosseuspares especialmentequandocongregados vendo-osnocomoumaforaparaajustiasocial,mascomoumapopulaaperigosa. Para Rothko, eleger a grande arte pelo nmero de pes-soas que a adjudicam uma frmula de canonizao do denomi-nador comum mais baixo.Esta atitude em relao ao pblico perpassa o livro, desde asrepetidas citaes de arte histrica destruda por multides, at maneira como diz arrancar os cabelos quando v as pinturas emredor das quais o pblico tpico se apinha. Rothko sente a ferro-ada da negligncia destes e, talvez duvidando do seu prprio tra-balho, ataca-os.H, por fim, uma maneira mais caridosa de ver a posio doartista em relao ao pblico de arte e no para simplesmente25perceber que a histria deu a Rothko razo. Para perceb-lo com-pletamente importante recordar que o meu pai manteve esta ati-tude de profunda desconfiana e de cautela em relao ao espec-tador muito depois do seu impressionante sucesso. E, no entanto,apesar de recear o pblico, ele precisava desesperadamente que opblico trouxesse sentido s suas pinturas. Esta ambivalncia estresumidanasuafamosaafirmaode1947,narevistaTigersEye:Umapinturavivedacompanhiaquelhefeita,expan-dindo-seeprecipitando-seaosolhosdoobservadorsensvel.E morre pelo mesmo motivo. Atir-la para o mundo por isso umactoarriscadoedesprovidodesentimento.Apesardeestaafir-mao ser anterior sua ascenso fama, o tpico comentrioquemaistardenasuacarreiraelefariaemprivado,particular-mente no contexto de exposies. Mesmo depois de ter sido o alvodeumaadulaosignificativa,Rothkocontinuouatemercons-tantemente que a sua pintura fosse mal interpretada e, em ltimaanlise, violada por um pblico desatento.Assim,emboraumazedumecolorissesemdvidaoqueescreveunestescaptulos,talvezoseutomreflictacomclarezaquoprofundamentepessoaleraaquiloqueexprimianosseustrabalhos. Rothko investe tanto de si mesmo naquilo que faz, e anooderealqueexprimetovitaleinterior,quecolocarassuas pinturas no mundo, e deix-las merc de olhos pblicos, uma empresa verdadeiramente arriscada. O seu rancor brota por-tanto de um sentimento de vulnerabilidade, que exacerbado poruma negatividade externa, mas que existe independentemente dequalquer reaco exterior.Uma distino relacionada com isso, na qual Rothko insisterepetidamente, a distino entre a capacidade tcnica do artistaeasuacapacidadedecomunicaralgoprofundodeumaforma26imediata e comovedora. Ele traa uma diviso muito ntida entrea ilustrao, ou o design, ou a decorao, e a produo das belasartes.ApesardeRothkonoseronicoartistaafazerestadis-tino, e poucos discordariam dele, h que voltar a perguntar porque razo precisou ele de enfatizar este ponto em particular. Acre-dito que h duas razes primrias, uma que emana da natureza dasua arte, e outra que tem origem na sua vida.A primeira razo que leva Rothko a desconsiderar tanto a tc-nica a de o seu prprio trabalho do perodo realista parecer, pri-meiravista,falhonesseaspecto.Asfigurasdesenhadasdeummodo grosseiro e algo desastrado, as perspectivas demasiado pla-nas,queoferecempoucailusodeespao,eumatpicafaltadedetalhe, podem dar a impresso de um artista incapaz de produzirobrasconvincentes(imagem 3).Mas,comoARealidadedoArtista esclarece,oestilodeRothkonessaalturareflecteassuasprprias preocupaes filosficas e plsticas. Ele no estava inte-ressadoempintarsemelhanas;queria,emvezdisso,conferirssuas pinturas um sentido de substncia real e de peso sensvel. Aspinturasdevempossuirasuaprpriarealidade nosoumaimitao do mundo visualmente perceptvel que nos rodeia.Todavia,comomuitosmodernistas,Rothkofoiatacadoporserincapazdeproduziressassemelhanase,noimportaquofortesfossemosfundamentosfilosficosdasuapintura,osata-ques tornaram-no sem dvida defensivo. Como se pode compro-var por alguns dos seus primeiros desenhos e ilustraes, Rothkoera,defacto,umdesenhadorcapaz.Oseutrabalhosurrealistaviriaembreveademonstrarumaverdadeiraflunciacomacaneta e o pincel (imagem 4), e mais tarde ele veio a mostrar-seum verdadeiro virtuoso no domnio da cor, do espao, da lumino-sidade e da reflexividade nas suas abstraces clssicas.27