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filosofia

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  • A TEORIA ARISTOTLICA DA JUSTIA*

    Eduardo Carlos Bianca Bittar Doutorando pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da

    Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo Advogado e m So Paulo

    Resumo: O presente artigo fruto de investigaes mais aprofundadas,

    desenvolvidas sob o ttulo de O conceito aristotlico de justia, e visa a tratar das questes principais atinentes a uma teoria geral da justia desenvolvida por Aristteles. Explora-se a plurivocidade semntica do termo justia, destacando-se sobretudo a multiplicidade de acepes que comporta, fazendo-se corresponder a cada qual destas acepes u m conceito diverso. Visa-se tambm a se traar u m panorama do enquadramento do problema da justia dentro do universo tico e de se sugerirem alguns apontamentos para que se opere a substituio de alguns obsoletos conceitos modernos e para que se desvaneam alguns paradigmas falaciosos, como tambm, alguns equvocos tericos decorrentes da m interpretao da teoria aristotlica.

    Abstract: The present article is the result of deeper research developed

    under the title of O conceito aristotlico de justia, and is intended to speak of the main points related to a general theory of justice broght out by Aristotle. The analysed theme is the several meanings of the word justice, specially the multiplicity of senses that such a term has, by making differents concepts be linked to each one of these senses. It is also entended to consider justice as part of ethics, and to suggest some reflexions targetted to the change of some down-to-date modern concepts and to the disappearance of fallacious paradigms as well as of some theoretical mistakes caused by the misinterpretation of Aristotle's theory.

    Unitermos: teoria aristotlica; justia; eticidade; politicidade; sociabilidade.

    * O presente artigo fruto de reflexes mais verticalizadas desenvolvidas sob a estimulante orientao de Srgio Frana Adorno de Abreu em grau de Iniciao Cientfica pela Fapesp, a quem dedico o presente texto (proc. n. 93/2248-4).

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    Sumrio: 1. A teoria peripattica da justia. 2. Justia e eticidade. 3. As pcepes do termo justia. 4. Justia: u m a questo tica ou jurdica? Bibliografia.

    1. A teoria peripattica da justia.

    Por teoria peripattica da justia se entende todo o conjunto das contribuies acerca da temtica da justia desenvolvidas no peripatos de origem grega (Tteputmo), o termo significa passeio arborizado, termo que veio a batizar a escola aristotlica por se desenvolverem os estudos e m caminhada sob os arvoredos do Liceu , ou seja, todo o legado que, por sistemtico, se pode extrair das reflexes filosficas desenvolvidas sob a tutela de Aristteles, o filsofo macednio. A legitimidade de se desenvolver a temtica sobre a justia e m Aristteles sob o ttulo de u m a teoria autnoma da justia no s defensvel como tambm destaque lgico da prpria teoria tica do filsofo de Estagira. Sendo que toda teoria pressupe u m a anlise lgica da realidade da qual se pretende analtica, s se pode argumentar e m prol desta tese e m se sublinhando o carter sistemtico sob o qual se desenvolveu a teoria de Aristteles acerca da questo justia. Assim, ver-se- estar o problema da justia encadeado a u m conjunto de premissas de carter tico, sociolgico e poltico, formando-se u m totum terico de grande valor cientfico. Tal encadeamento sistemtico da teoria aristotlica da justia se torna muito presente aos olhos do estudioso que meticulosamente destaca a problemtica sobretudo do texto do livro V da tica Nicmaco (EN), livro este dedicado penetrao dos problemas ticos de u m a maneira geral. N o entanto, a temtica da justia re-aparece e m outras passagens da obra aristotlica demonstrando-se, por este m e s m o fato, a sua importncia como decorrncia de u m a constante preocupao de se utilizar o problema da justia como pressuposto de anlise de outras questes de cunho social. Assim, podem-se extrair reflexes a este respeito dos livros da Poltica e da Retrica. Encontra-se, portanto, no s por critrio textual, mas tambm por u m critrio lgico, u m a unidade convergente entre os conceitos filosficos que instauram a coerncia do pensamento aristotlico na relao de seus pressupostos

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    com as suas concluses epistmicas, o que nos permite apresentar u m a teoria da justia concatenada, e e m pura dialtica, com toda a galxia de significncia estabelecida no peripatos como constituindo u m totum indissocivel dos demais conceitos filosficos construdos dentro do contexto da filosofia helnica do sculo IV a.C.

    Discutir u m a teoria da justia e m Aristteles muito menos criar u m construto sistemtico dentro do repertrio intelectual de sua filosofia, e muito mais desvelar u m a principiologia cientfica elaborada e m consonncia com as demais premissas de seu pensamento. Da a relevncia de no se considerar esta como sendo u m a esfera terica apartada das demais concluses de sua obra; desde a fsica at a metafsica, fato que todos os elementos contextuais de sua teoria se intercomunicam, ora se interchocando, ora se autoreferindo, mas, de qualquer forma, transmitindo a idia de homogeneidade de seu pensamento. Mas, advirta-se, sua filosofia, no lugar de monoltica, construda a partir de u m a experincia singular e de u m a nica vez, produto do evolver de suas prprias concepes acerca da realidade, relevando-se os influxos axiolgicos, filosficos e sociais que lanaram profundas marcas, trazendo contribuies, firmando problemticas e instaurando a dvida na filosofia peripattica, e isto, alm de detectvel, explcito e m determinadas passagens de sua obra.1

    O interesse de se discutir a questo da justia filosoficamente toca a socilogos, filsofos do direito, operadores e aplicadores das normas jurdicas, assim como aos demais interesses nas reas de estudo de carter essencialmente humanstico. Dialogar com Aristteles , antes de reviver seus postulados teorticos, trazer referncias pontuais que possam representar elementos de colaborao para u m a reflexo contempornea acerca da problemtica, no s filosfica, mas tambm pragmtica, que se destaca do contexto da aplicao do Direito como instrumento social. Operar interpretativamente a textualidade aristotlica acerca da questo da justia, superadas as diferenas de tempo (Antigidade) e espao (Grcia tica)

    1. A contribuio das questes discutidas no contexto scio-poltico-cultural helnico trouxeram seus reflexos diretos para a construo terica aristotlis. No s pelo seu carter de anagnostes, operando a sntese das demais idias e questes suscitadas no curso da civilizao helena, as dvidas se impuseram ao seu esprito, mas, tambm, por razes histricas. Assim que sem u m a prvia discusso sofistica acerca do conceito de justia no teria sido possvel o tratamento de u m a problemtica essencial no espectro de questes filosficas acerca da justia: a oposio entre justo legal e justo natural.

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    diferenas a que esto jungidas todas as discusses que se aproximem e que procurem como fonte de referncia textos demarcados espao-temporalmente , no s consente, como valoriza a participao do leitor enquanto intrprete da complexidade decorrente da mensagem do autor. A dinamicidade do teortico diretamente proporcional capacidade interpretativa e re-avaliativa dos valores conceituais que se destacam de u m contexto hitrico-social determinado. Toda teoria, m e s m o que circunstancializada, supera os elementos que a condicionam morte dentro das fronteiras espao-temporais e m que se produziu, deixando seus rastros e contribuies intertemporais como sinais do exerccio de u m a faculdade que invariavelmente c o m u m a todos os homens: a razo.

    2. Justia e eticidade.

    O problema da justia , dentro da filosofia aristotlica, como j se procurou acentuar, u m a questo acentuadamente de carter tico. Tal premissa requer que preliminarmente se proceda a u m exame do que se pode entender pelos termos tico, eticidade e natureza tica. U m a primeira referncia neste sentido deve necessariamente sublinhar que a esfera da eticidade no se aparta daquela da racionalidade. No se aparta pelo fato de que, em Aristteles, razo prtica {nous praktikos) e razo terica, ou teortica {nous teoretikos), caminham conjuntamente na totalizao do ser racional, ou seja, atuam paralelamente para a realizao integral da natureza social do h o m e m em sociedade. A vida social demanda respostas do indivduo que tocam as faculdades da utilidade, do prtico (prxis), assim como da razo pura, abstrata e terica {theord). Neste sentido, ambas as razes, tanto a razo prtica quanto a razo terica, representam, quando vistas e m conjunto, a completude das esferas notica e dianotica do ser racional. Se o ser humano se distingue por ser-lhe inerente a racionalidade o que envolve razo prtica e razo terica , seu tlos no se confunde com o dos demais seres, e o que o caracteriza a faculdade de alcanar a beatitude da felicidade {eudaimonid) atravs da utilizao de suas faculdades racionais.

    Diz-se tica toda questo que desborda na esfera do ethos, ou seja, de acordo com a etimologia da palavra, esfera dos importes da habitualidade. Isto se d pelo fato de que a conquista tica no se faz sem a prtica reiterada de aes deliberadas advindas do juzo da razo prtica {nous praktikos). Sendo a razo

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    prtica a parte da racionalidade humana especfica para o tratamento das questes advindas da esfera da utilidade e da prxis da conduta humana e m sociedade, elegendo aes e deliberando sobre o til e sobre o injusto nos limites das circunstncias prticas e m que inserem as individualidades, releva-se o carter tico da conduta social. Aqui se deve ater o leitor na seguinte reflexo: entre a deliberao tica interna e a exteriorizao de uma conduta social ou anti-social, medeia o processo de eleio de meios para a execuo de fins individuais ou sociais, problema este que toca diretamente razo prtica resolver, bem como institucionalizar mediante o hbito {thos), que pode ser individual ou tornar-se coletivo no costume.

    A elegibilidade de fins e de meios coadunados d consistncia ao processo deliberativo de ao social, consentindo uma adequao entre o todo e as partes. Aqui est presente a noo de phrnesis aristotlica, ou seja, a virtude prudencial de eleio de fins e meios individuais compatveis com aqueles outros eleitos pela comunidade da qual participa o indivduo. Para que a clula se adeqe ao rgo, mister se faz que a parte atue em unssono com o todo.2 Portanto, a justia ou injustia de u m a conduta se poder medir perante u m critrio social, qual seja, a adequao ou no da conduta do indivduo aos lindes sociais na qual se insere. A justia ou injustia da conduta, concebida a questo enquanto imersa na questo maior da eticidade do ser, propriamente esta prtica humana, este fazer individual que transborda da esfera privada para lanar seus reflexos sobre a esfera pblica, sobre o coletivo. A ao, participando da esfera coletiva, em sendo u m ato vivencivel por homens, tambm u m ato sujeito ao juzo de reprovabilidade do coletivo, motivo pelo qual se pode falar e m adequao ou no da ao aos objetivos eleitos pelo social.

    Neste sentido, aes justas ou de justia correspondem a virtudes quando implementam condies sociais para que possam ser qualificadas como tais. A justia de u m a ao eleva esta condio de virtude, ao louvvel socialmente, podendo-se a esta se denominar de dikaosyne. A eticidade da conduta lhe confere esta caracterstica de ser ou no conforme os objetivos sociais, o que faz desta u m a virtude ou u m vcio social. N o entanto, a justia no u m a virtude sui generis, pelo fato de que comporta u m a cautelosa aplicao da idia de meio termo {mesotes). Se

    2. Sublinhe-se o fato de que todo antecedente s partes que o compem, razo pela qual, na sistemtica da filosofia aristotlica, a parte adequa-se ao todo aderindo teleologia j inscrita para o todo. Neste sentido, vide Bittar, A evoluo histrica da filosofia, 1994, p. 233.

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    com relao s demais virtudes, como a prudncia, a sabedoria, a moderao, etc a equivalncia extremomeio termoextremo vlida incondicionalmente, dentro da temtica da justia esta no se pode tomar inadvertidamente como parmetro. Isto se d pelo fato de que se justia se ope u m nico vcio, este vcio a injustia. Esta pode ocorrer por excesso ou por defeito. Aquele que pratica a injustia encontra-se e m excesso, por ter interferido na esfera alheia, enquanto aquele que sofre a injustia encontra-se e m defeito, visto ter sido o sujeito passivo da relao. N o lugar de ter-se dois vcios diversos opostos medianeira virtude da justia, como ocorre com todas as outras (ex: covardia coragem - pusilanimidade), o m e s m o vcio, e m excesso ou e m defeito, se ope ao conceito central de justia.

    3. As acepes do termo justia.

    A problemtica acerca da justia, alm de induzir ao tratamento de questes e premissas tico-polticas,3 demanda tambm u m a anlise lingstica acerca da terminologia aristotlica, e sobretudo da terminologia ps-aristotlica, devendo-se superar inclusive as dificuldades engendradas a partir das diferenas textuais de diversos intrpretes e tradutores das obras de Aristteles.

    princpio que "(...) 'justia' e 'injustia' parecem ser termos ambguos (...)" (EN, V. 1, 1129 a, 25/30), dada a grande variabilidade a que esto sujeitos, e m virtude da ampla e farta recorrncia social aos mesmos, como paradigmas de virtude e de vcio sociais, alm dos demais influxos ideolgicos, polticos, tericos e filosficos que se fazem e m torno do questionamento nuclear aqui acentuado. Se se procura analisar a temtica aristotlica da justia, dever-se-, prima facie, recorrer a critrios de depurao lingstico-conceituais para que se possam distinguir as diversas noes que preenchem os textos de Aristteles.

    O mestre do peripatos refere-se ao princpio da insero do ser racional no contexto social como premissa fundante de u m a galxia de concluses filosficas de seu sistema. A polis, e m sendo a esfera do todo, dentro do qual se insere o indivduo como parte, por natureza o espao de realizao da racionalidade humana; ao h o m e m inerente a condio de ser social, dependente

    3. D a afirmao de que o ho m e m u m animal poltico por natureza (physei politikon anthropos) no se deduz nada diverso do que a necessidade premente de se discutirem os fundamentos ticos e polticos que jungem o h o m e m ao viver coletivo.

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    que de seus semelhantes. A sociabilidade -lhe por natureza na medida e m que dotado de u m tlos prprio, e que este tlos individual a cada ser racional coincidente com a ratio da prpria existncia do coletivo. Se o h o m e m racional, e se sua natureza racional s se realiza em conjunto com os seus pares, ao ser racional inerente a condio de ser social.

    A esfera do social, mais que esfera do con-vvio, a esfera da realizao logstica do animal poltico, pois a comunicao o sistema racional fundante de construo deste con-vvio. Para que homens repartam de u m mesmo espao social, mister se faz que re-partam de u m mesmo sistema de signos que lhes faculte a comunicao e a equivalncia dos meios de relacionamento para que construam em conjunto os chamados valores sociais. E m sendo a comunicao uma atividade racional, a razo prepondera na realizao da natureza social e poltica do h o m e m em sociedade. Se o politikon zoon diferencia-se pela capacidade de construir o dilogo {dia-lgos), que s subsiste a partir do pressuposto de que o h o m e m seja dotado de lgos e de que possa com-partilhar desta faculdade com a alteridade exercendo a dia-logia, reafirma-se o postulado que destaca o carter interelacional do h o m e m como fundante da coeso social. O lgos , assim, a articulao que consente o fazer persuasivo, emotivo, deliberativo, apelativo, eletivo em sociedade, de modo que u m sistema de signos lingsticos possa ser comungado pela comunidade em que se insere o ser racional em convvio social.

    Neste ponto pode-se afirmar que esfera da sociabilidade corresponde propriamente u m a virtude que lhe caracterstica e, neste sentido, que se pode enunciar o que seja a virtude da justia enquanto virtude completa, total e abrangente, frente aos seus reflexos na esfera do social: a justia total (1). Esta a mais ampla acepo de justia a que se refere a teoria peripattica, para a qual vale a equivalncia entre os conceitos de legalidade e sociabilidade. Sociedade e lei se encontram num ponto comum: a necessidade de regulamentao da conduta humana e m interao. E m sendo a legalidade a garantia da coexistncia interacional humana pense-se no fato de que as multplices formas de conduta individual devem interagir de modo harmnico a lei deixa de ser mero veculo de prescrio de condutas sociais e passa, nestas condies tericas, condio de mantenedora da tecitura social. A lei , aqui, a razo humana atuando para a sobrevivncia do espao social. Trata-se, em suma, de uma forma convencional, imperativa, de se consentir o evolver daquele que pode se determinar como sendo o tlos social, plena realizao

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    da racionalidade poltica humana, o que se encontra e m estreito vnculo com a prpria noo de sociabilidade.

    Estar inserido e m u m a estrutura social significa estar necessariamente adstrito ao cumprimento de u m estatuto convencional c o m u m a todos, de modo que a observncia deste estatuto consente a sustentao da harmonia social, u m a vez previstas na legislao as devidas normas de conformao do individual ao coletivo. A relao acentua a dialtica indivduo-coletivo, plos centrais deste tipo de justia que se faz originando-se da conduta de u m indivduo e atingindo o conjunto das leis que representam a vontade dos cidados. A observncia dos preceitos da legalidade social coloca o individual e m plena consonncia com os objetivos destacados pela coletividade, pelo que a este tipo de equivalncia referir-se a u m tipo caracterstico de justia, denominada total, integral ou universal. A primeira e mais plena realizao da justia a obedincia s leis prescritas pelo corpo social para a sua prpria sustentao.

    A generalidade da concepo de justia integral ou total decorre do fato de que os receptores da ao justa neste caso so todos os cidados que pertencem ao m e s m o espao social do agente. Esta acepo da justia , e m toda a sua abrangncia, u m construdo abstrato que destaca o plo passivo da ao de justia e erige o conjunto de cidados que se encontram sob a tutela da legislao vigente como beneficirio direto das aes de justia, levando e m considerao apenas a idia de coletivo, absorvida que fica, neste contexto, a de individual. O respeito s leis algo que pertine ao coletivo, e no propriamente ao individual; ao se violar u m preceito de lei est-se propriamente a transgredir u m a norma declarada de interesse de todos os membros de u m a mesma polis. A realizao da justia total importa e m aes de carter erga omnes.

    Este espectro da justia e m sua acepo de justia total ou integral no inovao aristotlica no curso da filosofia grega; trata-se propriamente de u m legado direto da filosofia platnica sobre a filosofia aristotlica. U m postulado platnico encontra-se sedimentado no seio da teoria aristotlica da justia, como e m muitos outros campos da filosofia aristotlica. No obstante, por mais generalizante que possa ser esta acepo do termo justia, com o seu estudo no se exaure a temtica da justia e, antes de se esterilizar u m campo de referncia definicional, se pode destacar u m a nova esfera de relaes e m que se releva a participao dos homens individualizadamente na dialtica existencial e m sociedade, a saber, a da justia particular.

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    D a mais ampla acepo justia enquanto realizao da legalidade , segundo a qual todos os cidados so beneficiados pelo respeito s leis, enquanto categoria apartada, pode-se detectar a justia como constituindo u m a outra acepo, acepo que aponta para u m a virtude particular, e no genrica, distinta da primeira pelo fato de se exteriorizar direcionada a sujeitos determinados no convvio social, e no mais ao conjunto de cidados. A justia aqui , portanto, justia particular (2). Trata-se de u m a outra acepo pelo fato de que se ressalta nas relaes, sejam elas voluntrias ou involuntrias, integradas por duas partes determinadas. A justia ou a injustia aqui so fatos que pertinem a dois sujeitos isolados no todo social. Daqui destacam-se duas espcies de justia particular: justia distributiva (3) e justia corretiva (4).

    A justia distributiva (3) u m a parte da justia particular (2) por relevar apenas o relacionamento entre dois sujeitos determinados, sendo portanto destacamento lgico da acepo (2). Realiza-se numa relao vertical, que envolve duas partes desiguais na relao, u m a vez que u m a delas se encontra outra subordinada. Vinculada est, esta acepo, ao conceito de subordinao, u m a vez que implica na necessria referncia distribuio, ao de repartio de encargos e benefcios no seio da sociedade, atividade esta que traz implcita a idia de poder e de autoridade distributiva, seja legislativa, seja poltica. A investidura de agentes de distribuio desloca para a esfera destes a possibilidade de efetuar u m tipo de justia que corresponde a instituir u m tratamento que releve as diferenas existentes entre os cidados componentes deste corpo poltico. A justia distributiva (3) tambm chamada de justia geomtrica, e a geometricidade da distribuio consiste propriamente no tratar igualmente aos iguais, e desigualmente aos desiguais, a partir de u m parmetro referencial de recorrncia eleito arbitrariamente a partir da teleologia poltica vigente no meio social. Assim que para cada politeia, para cada comunidade poltica (oligrquica, democrtica, tirnica), corresponde u m tipo diferente de critrio de diferenciao na distribuio de riquezas, honra, encargos, e na facultao da elegibilidade e da participao poltica. A cada sistema poltico, portanto, corresponde u m a forma diferente de se fazer justia distributiva, u m a vez que os critrios eleitos por cada qual destes se diferenciam entre si de m o d o a determinarem formas diversas de se atenderem aos objetivos sociais.

    Desbordada encontra-se, portanto, a disseminada idia do igualitarismo dentro da teoria aristotlica da justia, u m a vez que, toda distribuio requer u m critrio diferenciador entre os sditos, que o mrito. O mrito desiguala

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    aqueles que de acordo com ele so desiguais, ao m e s m o tempo e m que coloca e m iguais condies aqueles que, com referncia a ele, so iguais. A justia distributiva, neste sentido, rompe os limites da tradicional falcia da reciprocidade, para a qual igualitarismo o cerne do sistema social. Antes de propugnar pelo igualitarismo, a noo de justia distributiva proporcional ao mrito de cada indivduo ressalta a relatividade da justia, que deve obedecer ao princpio do igual aos iguais e do desigual aos desiguais. Assim que, estabelecendo u m a ordem de valores que se relativizam e m consonncia com as diferenas sociais, culturais, econmicas, polticas, entre outras, que naturalmente colocam os homens e m condies desiguais, dentro da prpria variabilidade dos critrios eleitos pelas mltiplas comunidades polticas, abandona a idia da reciprocidade e vem a se ancorar no conceito de proporcionalidade.4

    A quadrangularidade desta noo particular de justia, justia distributiva (3), coloca em interelacionamento dois sujeitos e dois objetos a eles pertencentes. A quadrangularidade nada mais do que u m a referncia metafrico-simblica prpria idia de justia tetrtica {tetraktis destaca-se da teoria matemtico-numrica, na perspectiva do valor permutvel nsito s ligaes numricas, sobre as quais vige a lei da circulabilidade e o ideal de proporcionalidade gregos 1+2+3+4= 10), enquanto nestes termos construda pelo pensamento mtico e filosfico pitagrico. A justia distributiva se realiza na aferio de igualdade entre os dois sujeitos e os dois objetos que a eles se atribui. Veja-se que se trata de verificar se o cargo (a) deve ser dado ao sujeito (A) ou ao sujeito (B), dever-se- perquirir da capacidade e do mrito de ambos para ocuparem tal cargo, ou seno, para ocuparem o cargo (P). Entre u m e outro dos cargos, assim como entre u m e outro dos sujeitos, subexiste o elemento mrito para a diferenciao subjetiva e para a realizao da chamada justia distributiva.

    Mas, a desigualdade entre os membros da sociedade, numa idia de coordenao dos possveis vnculos subjetivamente estabelecveis, recorrentemente ocasionada pela insero de u m indivduo na esfera do outro, de modo que u m a inicial situao de igualdade proporcional construda pela distribuio equnime de encargos e benefcios sociais por parte da autoridade distributiva, nos termos de u m a justia distributiva, pode ser rompida. M e s m o que o governante se incumba da justa

    4. ... es proporcional que ei que tiene mucho tenga que contribuir con mucho, y ei que tiene poo con poo... " (Aristteles, Gran tica, I, XXXIV, p. 64).

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    tarefa de pelo mrito dos cidados diferenci-los realizando a justia distributiva , as desigualdades tornam a surgir entre estes pelo rompimento do status inicial de

    que partiram. A interferncia da alteridade na esfera de bens e atributos dotados de titulares determinados altera o estado de coisas e m que se assentavam os indivduos, rompendo a harmonia, o que reclama u m a volta ao status quo ante. C o m u m a perda {kerdos) e com u m ganho {phenia), uma desigualdade deve ser suprida.5 Aqui que aparece a necessidade de se determinar u m a outra forma de realizar a justia, uma justia a posteirori da distribuio dos encargos sociais, nuanando-se u m outro conceito ao qual se liga a expresso justia corretiva (4).

    N o havendo mais a desigualdade subjetiva fundada na relao de poder do tipo governante-governado, como ocorre com a justia distributiva (3), a justia corretiva (4) essencialmente u m a justia entre particulares que se desigualaram injustamente. parte da justia particular por colocar e m relacionamento duas partes determinandas na relao polar (dois sujeitos particulares contrapostos). A tarefa de restabelecimento da eqidistncia entre os sujeitos envolvidos na esfera da justia corretiva (4) funda-se numa situao de coordenao existente entre os mesmos, dada a indiscriminao situacional e m que os coloca a lei pense-se que a lei no discrimina os sditos aos quais se destina por ser redigida in abstracto. Da deriva-se o conceito de isonomia {ison + nomos), ou seja, igualdade diante da lei, tarefa esta da qual no est investido o legislador {nomoteta), autoridade responsvel pela lapidao deliberativa das leis, mas sim o juiz {dikasts), sujeito ao qual atribudo o poder de individualizar a generalidade legal atravs da atividade jurisprudencial.6 A diferena surgida entre partes , portanto, submetida apreciao de u m sujeito investido de dizer o direito, ou o justo, diante da situao concreta de desigualdade surgida entre as partes. Os importes abrangentes sobre os quais se estabelece a legislao so transmutados e m elementos referenciais para a dinamizao da teleologia legislativa, operando-se, assim, a construo de u m universo concreto de aplicao da justia, que se atualiza enquanto aplicada.

    5. Perda e ganho nem sempre representam termos prprios para designar as desigualdades originadas entre os homens, enquanto pertencentes da sociedade de iguais, assim como a idia de volta ao status quo ante nem sempre viabilizvel, dada a dificuldade de se reparar atravs de indenizaes, ou de outras medidas compensatrias, determinados tipos de danos (assassinato, leses), para os quais a pena no propriamente u m equivalente.

    6. A o termo jurisprudential, apesar da origem latina, corresponde propriamente a idia de aplicao prtica do direito, pela faculdade da prudncia (phronesis).

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    A leso ocasionada esfera individual alheia habilita a atuao do juiz {dikasts), u m a vez que este "(...) a justia animada (...)" (Aristteles, E N , V- 4, 1132 a, 20), no sentido do alcance da igualdade aritmtica. Aqui, no obstante a paradigmtica que envolve o conceito, ressalta-se a idia de equilbrio e de perfeio proporcional, recorrncias constantes dentro da filosofia e das letras helnicas. A referibilidade recproca de partes desigualadas e igualadas consente o pleno entendimento da abrangncia do questionamento, dada a dificuldade de mensurao, na esfera casustica, de qual seja a parte do sujeito lesante e de qual seja a parte do sujeito lesado. O dar a cada u m o que seu {suum cuique tribuere), pressupe que se saiba e se determine o que o de cada qual. A mediao jurisdicional a arte de reificao e dinamizao da justia corretiva (4), tendo-se a pena e a indenizao como instrumentos para o restabelecimento da eqidistncia entre as partes.

    A interao humana, que avoca com freqncia a aplicao dos critrios de justia corretiva (4), pode-se fazer voluntria ou involuntariamente, o que reclama u m a distino necessria entre as esferas da justia comutativa (5) e da justia reparativa (6), dentro de u m a terminologia aquiniana.7 D e fato, aqui surgem duas subdivises pertencentes categoria genrica da justia corretiva (4) e m razo do critrio da voluntarjedade ou no do desequilbrio surgido entre as partes. Se surgiram diferenas entre as partes que se relacionam, algumas destas so ocasionadas pelo desejo de se subtrair o alheio, e outras pela infortunstica factual que subjaz prpria convivncia humana.

    Por u m lado, as atividades sociais se fazem mediante o intercmbio de produtos, valores, servios e bens de diversas naturezas, dadas as mltiplas, e multiplicveis, aptides individuais, que fundam teknai diferenciadas, do que decorre a interdependncia subjetiva, razo de subsistncia da prpria sociedade, sendo esta esfera de sinalagmticas implicaes recprocas u m a fonte de litgios e desigualdades na medida e m que a patologia negociai engendra contextos situacionais em que u m benefcio suplanta u m prejuzo fundando-se n u m ato de injustia. A sinalagmaticidade e a voluntariedade, inerentes a este conjunto implicacional de princpios interacionais, so o fundamento de u m conceito prprio de justia, derivado como espcie da justia corretiva (4): a justia comutativa (5). Mas, tambm, por outro lado, os homens podem fazer surgir vnculos jurdicos entre

    7. E m Lajusticia: comentrios a ei libro quinto de Ia tica a Nicmaco (1946) estabelece So Toms a nomenclatura atribuvel distino entre os dois tipos de justia.

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    si a partir da perpretao de aes clandestinas (furto, adultrio, envenenamento, lenocnio...) ou violentas (seqestro, homicdio, agresso...) que acarretam danos de naturezas diversas que obrigam o sujeito lesante assuno dos nus decorrentes da necessidade de reparao dos prejuzos produzidos para o sujeito lesado. A perfeio esttica que se destaca da proporcionalidade existente entre as diferenas destes sujeitos foi rompida, donde a criao de desigualdades artificiais; descompasso e desequilbrio subsistem no espectro das polaridades do mais e do menos, do benefcio e do prejuzo, do excesso e do defeito. Os desdobramentos e aplicaes destas ltimas reflexes e distines permite a dilapidao do conceito de justia reparativa, estreitamente ligada ao problema da conduta criminal do indivduo. O sujeito lesante, nesta hiptese, rompe u m a situao alheia com a sua ao lesiva, desigualando sua condio humana como relao do sujeito lesado, que se tem por afetado e m sua integridade fsica, e m seu psiquismo, e m seu patrimnio, etc pelo sujeito que pratica a conduta recriminada.

    Mas, inobstante as inmeras espcies analisadas e diferenciadas, a justia no deixa de ser essencialmente poltica, no sentido de que se manifesta na polis, ou seja, para ela servindo como elemento de coeso e de regulao das condutas individuais, alm de nela se manifestando sob o signo da legislao positiva, destacando-se a racionalidade humana como fundamento de toda a teia de implicaes que se destacam do universo do dever ser. Aqui se constri u m outro conceito, o de justia poltica (a) para que se possa desta diferenciar a justia domstica (b). Aquela afetas so as questes sociais, os problemas de administrao e de gesto da sociedade autrquica, de conduo da coisa pblica {res publica); a esta afetas so as questes domsticas, econmicas no sentido etimolgico do termo {oikonomia legislao do lar), atinentes aos particulares na administrao da coisa particular.

    Para que se trate da questo da politicidade da justia, deve-se necessariamente referir ao conceito de culturalidade, pois todo fenmeno legislativo-social necessariamente cultural e, portanto, relativo. A culturalidade u m a noo intestinamente relacionada com aquela de racionalidade, dada a operao de transmutao da realidade objetiva dos fatos e m realidade subjetiva no texto das leis, o que decorrncia normal de todo ato cognoscitivo. Assim que o h o m e m reconstri a realidade a cada momento e m que a apreende, trazendo consigo todo o repertrio axiolgico e existencial que o diferenciam na anlise de u m a mesma fenomnica. No por outro motivo que a legislao positiva se destaca

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    como construto social temporal e espacialmente relativizvel, condicionado por toda a malha de importes sociolgicos destacveis como caracterizadores de u m perodo e de uma cultura delimitada. A capacidade de autogesto {autarkeia) o fulcro de toda sociedade, donde o mister da regulamentao das relaes sociais, diferindo, portanto, esta esfera daquela caracterizada pelos interesses particulares de gesto do lar {oika), e m que prevalecem outros parmetros para a composio do relacionamento familiar, na perspectiva de uma justia domstica (b) (EN, V, 6, 1134 b, 15).

    nestes termos que "[Da] justia poltica, uma parte natural e outra parte legal; natural, aquela que tem a mesma fora onde quer que seja e no existe em razo de pensarem os homens deste ou daquele modo; legal, a que de incio indiferente, mas deixa de s-lo depois que foi estabelecida (...)" (Aristteles, E N , V, 7, 1134 b, 10/20).8 A bifacialidade , portanto, da essncia da justia poltica (a) {dikaion politikon): de u m lado, a razo de seu existir, assim como as causas {arkai) de sua manifestao, relacionam-se com uma perspectiva tratada como a do justo natural (c) {dikaion physikon); de outro lado, a exteriorizao reificada enquanto fruto do trabalho do legislador, sujeito contextualizado e investido na funo de traduzir em regras a teleologia social, a perspectiva do contingente e do relativo, ligada idia do justo legal (d) {dikaion nomikon).

    A opo do legislador por prescrever uma conduta neste ou naquele sentido retenha-se a idia de que se pode optar por se prescrever u m sistema penal com ou sem pena de morte, dependendo a escolha de u m a srie de injunes s quais o legislador est atento , de acordo com inmeros condicionantes circunstanciais que o contextualizam, transforma o possvel no vinculativo, o potencial no obrigatrio, de modo que aquilo que a priori era indiferente, torna-se obrigatrio para todos os que se encontram submetidos circunscrio normativa em que delibera. Se a princpio era indiferente que se tornasse vinculativa a pena de morte ou no, a partir do momento em que se constrem leis que prescrevam a obrigatoriedade da pena de morte, esta opo deixa de ser indiferente e passa a ser vinculativa da conduta dos cidados. D e fato, so a conveno e a convenincia os elementos determinantes para que se estatuam regras gerais e coercitivas entre os cidados. A esta convencionalidade se pode chamar justia legal (d), justia esta

    8. "Le juste politique ne doit donc pas tre considere comme une nouvelle distinction qui viendrait s'ajouter celle qui a tfaile entre juste distributif et juste correctif; il est juste correctifet le juste distributif, mais envisags cettefois dons leur rlisation au sein de Ia cite" (Aristote, tique de Nicomaque, 1958, II, p. 386).

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    operada pela pena do legislador ao estatuir normas para a sociedade qual as dirige. Mas, nem todo sistema jurdico s leis. As disparidades legislativas ocorrem com a corrupo das constituies e dos governos, de acordo com o influxo, a interveno e a manipulao por parte de u m nico h o m e m (tirania), de alguns (oligarquia), ou de muitos homens (democracia).9 As disparidades so aqui causa de injustias que afetam novamente a toda a sociedade; o sujeito passivo da ao injusta na acepo da justia legal (d) a coletividade como u m todo, sendo o sujeito ativo o prprio mau legislador. A corrupo das leis no por isso fonte de justia e o no ser fonte de justia o estar em desacordo com alguns parmetros racionais, quais sejam aqueles destacados como componentes do chamado justo natural (c).

    Pretensamente, a partir da diferenciao estabelecida no pensamento peripattico, fundou-se uma tradio dicotmica tendente a estabelecer uma tenso opositiva entre os valores da esfera da positividade legal (justo legal) e os da esfera do justo natural e racional. O paradigma foi polemizado e historicizado ilimitadamente na histria do pensamento ocidental, operando-se, no raras vezes, inmeras distores do verdadeiro alcance, assim como do verdadeiro relacionamento interno, da legalidade e da naturalidade. Entre aquilo que por natureza (physis) e aquilo que por conveno {nmos), subsiste a razo de ser do convvio social. A dicotomia, em verdade, muito antes das modernas escolas jusnaturalistas, decorre das prprias discusses travadas com os sofistas, que assinalavam u m a correlao direta, ou uma equivalncia perfeita, entre as idias de natureza e imutabilidade, assim como entre as idias de conveno e relatividade. A desmitificao da falcia, ou a desdicotomizao da paradigmtica opositiva destes conceitos se faz a partir das prprias palavras de Aristteles: "[Com] toda a evidncia percebe-se que espcie de coisas, entre as que so capazes de ser de outro modo, por natureza e que espcie no o , mas por lei e conveno, admitindo-se que 'ambas sejam igualmente mutveis'." (EN, V, 7, 1134 b, 30).

    O conceito de justo natural (c) na teoria peripattica da justia compreende uma noo de variabilidade, o que se ope por completo s concepes sofsticas e que, sobretudo, no se encontra na doutrina do jusnaturalismo moderno, que preconiza a imutabilidade do natural. O h o m e m agente (causa eficiente) de todo processo cultural que o cerca e, por este mesmo motivo, ao condicionar a realidade que o cerca com o seu modus operandi racionalizador tambm por esta

    9. A s formas corruptas de governo, dentro da filosofia poltica de Aristteles, so trs, assim como trs so as formas perfeitas.

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    mesma realidade se condiciona. Da deriva-se por mister uma idia de que homens diferentes constrem culturas diferentes, que estabelecem postulados diferentes de sociabilidade do con-vvio. A estes correspondem leis diversas, leis que alm de serem relativas no espao, tambm se relativizam no tempo com o prprio evolver interno desta cultura. Todo o relativismo conceptual do justo natural (c) funda-se numa equivalncia com a prpria racionalidade humana, que no u m dado, antes u m construdo que se opera ilimitadamente, comportando perenes superaes, suplantando-se sempre o universo valorativo suplantado. A physis humana mutvel, assim como tudo aquilo que dela decorre; neste sentido que o ser no dado, mas construdo. D e acordo com estas premissas a prpria razo relativa engendra uma justia natural (c) tambm relativa, sujeita aos condicionantes espao-tempo.

    No h oposio entre as duas concepes de justia dentro da organicidade do pensamento aristotlico, uma vez que o justo legal deriva ou deve derivar do justo natural (c). No necessariamente ocorre u m paralelismo perfeito entre o que entendido como sendo o justo natural (c) pela sociedade e as mensagens legislativas do justo legal (d), uma vez que o ato decisrio u m ato complexo que pode ocasionar distores intencionais, ou no, na orientao das condutas sociais. Destarte, o convencionalismo relativiza-se em funo das diferenas de governo, das lacunas e omisses legislativas, da axiologia que inspira o legislador, de modo que seu tlos o alcance de uma perfeita equivalncia, no com u m valor teleolgico universal e abstrato, mas com a prpria conscincia axiolgico-social, histrico-espacialmente delimitvel. Se para cada comunidade eqivale u m valor social diverso, realizar a justia natural em cada qual adequar a legislao positiva s demandas de cada qual. O justo natural (c) prevalece alm do direito escrito e vigente como sendo o fundamento implcito de legitimidade de toda deciso convencial que vise regulao da vida social. O justo natural (c) no u m valor perene e imutvel, qual o do jusnaturalismo moderno, mas u m vir-a-ser constante, na medida das prprias mutaes scio-culturais. A cada momento histrico u m novo valor social, a cada novo valor social uma nova realidade legislativa. A o legislador {nomotetes) de averiguar da necessidade ou no de se procederem a novas alteraes legais; sociedade de exigi-las. Mas, a mutabilidade que permeia o direito positivo (positum) diferente daquela que permeia a justia natural (c), u m a vez que este ltimo obedece ordem da racionalidade humana, que, evidentemente, homognea, amoldando-se, apenas, de acordo com a culturalidade inerente ao ser

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    racional, visto que "(...) as coisas que so justas no por natureza, mas por deciso humana, no so as mesmas em toda parte'' (Aristteles, E N , V, 7, 1135 a).

    Para o abrandamento das diferenas entre o justo natural (c) e o justo legal (d), principalmente no tocante aos erros legislativos e demais hipteses de produo de injustia decorrente da generalidade do preceito legal aplicado realidade ftica, Aristteles aponta a utilizao do recurso da epieikeia, ou seja, da eqidade, forma de modelagem dos princpios legais para serem aplicados a sujeitos concretos, frente problemtica fenomnica a ser resolvida pelo juiz {dikastes). aqui o lugar de apresentao do conceito de adaptabilidade da teoria aristotlica da justia que se funda na seguinte ordem de pensamento: dado u m conjunto de preceitos normativos vinculantes para uma sociedade, deduzido, com todas as variantes, importes axiolgicos e demais erros possveis e destacveis em todo ato decisrio, da esfera da justia natural (c), levando-se em considerao a generalidade e universalidade que permeiam a elocuo discursiva da legislao, ao juiz cabe singularizar o positum em regras particularizadas para a esfera dos indivduos; do universal ao particular, o papel da epieikeia releva a participao do sujeito aplicador Quiz) na transformao do justo legal (d) em u m justo dinmico e ativo, m e s m o que obsoleto em sua previso legislativa. Podem-se ter os conceitos de justia e eqidade como conceitos convergentes, sendo que "(...) o eqitativo justo, porm no o legalmente justo, e sim uma correo da justia legal" (Aristteles, E N , V , 10, 1137 b, 10).

    De qualquer forma pode-se dizer que, sinteticamente, o justo natural (c) participa dialeticamente, e ao lado, do justo legal (d), das seguintes maneiras:

    ideologicamente como revisionismo principiolgico ao qual se recorre de acordo com as mutaes valorativas humanas;

    como corretivo manifestado atravs da epieikeia, abrandando o rigor ou sobrepassando as disparidades e iniqidades engendradas pelas leis obsoletas e descontextualizadas;

    como destaque prprio da esfera notica humana, sendo por ela condicionada, e a ela condicionando, numa dialtica implicacional recproca, manifestao latente e dinmica da culturalidade humana.

    10. "Elle (l'quit) s'leve au-dessus de tel droit positif, parce qu'elle est droit selon Ia saine raison et selon Ia nature; ellepeut tre contre Ia loi, ou en dehors de Ia loi, elle n'est jamais contre le vrai droit, et, en corrigeant Ia loi, elle estperfeccion du droit mme et dujust." (Lon Oll-Laprune. 1881, pp. 36-37).

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    Ainda, neste ponto, se questiona sobre o que seja o justo e o injusto. E m sntese, aquilo que "...por natureza ou por lei..." (EN, V, 7, 1135 a, 5) for dito como tal. A estas duas perspectivas correspondem duas reas delimitadas de comprometimentos tericos que opem, inadvertidamente, physis e nmos. A primeira expressa a vinculao do homem com a esfera scio-poltica, e a segunda viabiliza, ou instrumentaliza, a perquirio daquilo que pode ser chamado tlos social, ou seja, a prpria realizao da natureza do h o m e m sob o imprio da lei, entendida esta como sendo a razo sem paixo.

    4. Justia: uma questo tica ou jurdica?

    De acordo com os conceitos acima enunciados pode-se destacar que a esfera do jurdico e a esfera das virtudes, em considerao especial a justia em sua acepo de justia total (1), no so coincidentes, uma vez que a obedincia aos mandamentos sociais no pressupe seja o sujeito agente necessariamente virtuoso. Assim, agir virtuosamente e agir juridicamente so duas formas de condutas diversas. Para que haja virtude na realizao da justia mister se faz a concorrncia de dois fatores profundamente imbricados entre si: em primeiro lugar, a realizao de uma ao objetiva com habitualidade {thos = hbito)," de acordo com as prescries teleolgicas do direito positivo ou justo legal (d) vigente na polis; em segundo lugar, a plena conscincia na realizao do ato, o que compe propriamente o que se pode denominar de animus, ou inteno de realizao da justia.

    Deste modo, a ao que simplesmente se subsume ao texto da lei, sem a aderncia da vontade de realizar a justia por parte de seu agente, assim como sem a habitualidade inerente a todo ser justo, no pode configurar aquilo a que se convencionou chamar de virtude da justia, ou seja, a dikaiosune. A assuno de tal diferenciao vlida "... na medida em que o primeiro (o direito), se contenta com o cumprimento do ato justo, e o segundo (a justia), exige alm do cumprimento das coisas justas, pleno conhecimento e adeso de vontade, como toda virtude." (Paulo Bicudo, 1989: 115).12

    11. A esfera tica a caracterizao da condurta livre e habitual de modo que "[Est] orden peculiar de Ia conducta humana recibi ei ethos, de donde viene Ia palabra tica; y en R o m a se llam Io prprio de Ia costumbre o mos (en plural, mores) y de ah Ia palabra moral." (Hervada, Munz, 1984, p. 138).

    12. Tambm neste sentido tem-se: 'Ambos, jurista y moralista, estudian Ia justicia, pero sus perspectivas son distintas: ai moralista le interessa que los prestamos no sean usurios para que los

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    E neste sentido que se pode distinguir o homem justo {dikaios), considerando-se sua postura tica frente aos deveres polticos que lhe imcumbem em funo do convvio social, do bom cidado}2, O primeiro adere teleologia social, pois em sendo homem cidado, e em sendo cidado u m homem, enquanto que o segundo restringe-se a aderir ao quadro prescritivo que se destaca da legislao sem conhecimento de causa ou sem aderncia da vontade. O primeiro realiza o justo, por concorrer com sua conduta no s para o cumprimento das leis, mas sobretudo para a reiterao dos atos de justia eivados de u m animus especial de realizar o justo, enquanto que o segundo realiza atos de justia, atos isolados de justia. Tal distino fundada no voluntarismo pragmtico, no deixa de relevar a atuao da razo prtica {nous praktikos) no processo deliberativo das condutas sociais.

    O voluntarismo aristotlico funda-se no entendimento de que voluntrio "... tudo aquilo que o homem tem o poder de fazer e que faz com conhecimento de causa, isto , sem ignorar nem a pessoa atingida pelo ato, nem o instrumento usado, nem o fim que h de alcanar (por exemplo, em quem bate, com que e com que fim); alm disso, cada um desses atos no deve ser acidental nem forado (se, por exemplo,, A toma a mo de B e com ela bate em C, B no agiu voluntariamente, pois o ato no dependia dele)" (Aristteles, EN, V. 8, 1135 a, 20/25). Assim, os atos dotados de involuntariedade, sendo, portanto, desculpveis, so: os praticados em virtude de ignorncia (pensar estar atacando u m inimigo, quando em verdade se est atacando o prprio pai), em virtude de infortnio (o sujeito no pensa lanar u m dardo e o lana, ou pensa ferir a cabea e fere o corao), ou e m virtude de inexistncia de deliberao prvia (aquele que rouba por extrema necessidade vital obedecendo a u m instinto famlico). Tais distines tornam ntida a diferenciao feita acima entre aquilo que pode ser dito como sendo u m ato justo ou injusto, intencionalizado, e aquilo que pode ser denominado de ato de justia ou injustia, correspondentes s esferas do justo legal (d), do direito

    hombres se comporten como personas y no cometan pecado (ofensa a Diospor quebrantar su ley); ai jurista le interesa Io mismo de los prtamos, pero otro motivo: para que se respeten los derechos de cada uno, para que cada cual reciba Io que le corresponde u haja as un orden social justo'' (Id., ibid.,p. 142).

    13. "Ser un 'buen ciudadano, aunque no coincide totalmente com ser un 'hombre moralmente bueno' (v.gr., se pueder ser un gran benefactor de Ia sociedad por vanidad personal, com Io que moralmente desde ei punto de vista moral poo valor tiene serio), es resultado dei ejercicio, ai menos en cierto grado, de virtudes (ei benefactor dei ejemplo ejecer ia liberalidad aunque a Ia vez sea vanidoso)" (Id., Ibid., pp. 142-143).

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    positivo, no estrito cumprimento dos deveres legais, e do justo natural (c), a partir dos importes ticos que gravam a racionalidade deliberativa humana.

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