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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13thWomen’s Worlds Congress(Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X
ARQUEÓLOGAS, ETNÓLOGAS E LINGUISTAS NO BRASIL NA PRIMEIRA
METADE DO SÉCULO XX
Mariana Moraes de Oliveira Sombrio1
Resumo: Em meados do século XX, estudos etnológicos se desenvolviam no Brasil contando com
esforços tanto de profissionais de instituições nacionais quanto de estrangeiros que vinham ao país
realizar suas pesquisas. Um aspecto interessante a ser notado na configuração desse campo de estudos
no país é a significativa presença de mulheres, as formas como as relações de gênero se estabeleciam
nestes espaços profissionais, influenciavam a produção de pesquisas e a construção de discursos sobre
populações indígenas, entre outros grupos estudados. A partir de um levantamento inicial sobre a
atuação de mulheres cientistas realizado na documentação do Conselho de Fiscalização das
Expedições Artísticas e Científicas do Brasil, que abrange o período de 1933 a 1968, tenho
investigado trajetórias de algumas dessas pesquisadoras, em particular etnólogas, linguistas e
arqueólogas, que compunham o maior grupo encontrado nesses documentos, buscando entender como
se inseriam nas respectivas comunidades disciplinares, ainda majoritariamente masculinas, e dar
ênfase à experiência dessas personagens, frente à persistente invisibilidade de experiências e
contribuições de mulheres cientistas em discursos historiográficos. Neste trabalho, destaco a presença
de duas pesquisadoras em particular: a etnóloga Wanda Hanke e a arqueóloga Betty Meggers, que
realizaram viagens científicas no Brasil na primeira metade do século XX e produziram pesquisas
importantes para a história das populações indígenas do país.
Palavras-chave : Etnologia, arqueologia, linguística, mulheres cientistas, século XX
Introdução
Mudanças econômicas e sociais do começo do século XX proporcionaram novas
oportunidades para as mulheres nas ciências em muitos lugares do mundo, incluindo o Brasil. Desde
o começo desse século, encontramos registros da participação de pesquisadoras estrangeiras e
1 Pesquisadora de pós-doutorado (bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP,
processo nº 2016/22452-9) no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia da Universidade de São Paulo
(USP).
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brasileiras no país. Foi nesse período que as primeiras cientistas brasileiras ingressaram em
instituições públicas de pesquisa, onde anteriormente não eram aceitas, e adquiriram direitos como o
acesso ao ensino superior e a escolas antes exclusivamente masculinas (Azevedo e Ferreira, 2006).
Em minha pesquisa tenho investigando trajetórias de mulheres cientistas que atuaram de
formas diversas no Brasil em meados do século XX. Busco dar visibilidade a essas histórias e também
compreender melhor a forma de participação dessas mulheres em instituições, disciplinas e práticas
cientificas considerando que, naquele momento, ainda eram minoria nessas profissões e buscavam
espaços de atuação.
Mesmo com as dificuldades ocasionadas por papéis de gênero pré-determinados, por vezes
inflexíveis, muitas se fizeram presentes na arena dos debates científicos institucionais e, ao olhar para
acervos documentais diversos, cada vez mais histórias desse passado recente têm aparecido
aumentando assim nossa compreensão sobre as experiências de mulheres cientistas, sobre as
estratégias e condições que possibilitaram sua profissionalização e sobre as formas como relações de
gênero influenciaram diferentes aspectos e instituições sociais como a própria história das ciências no
país.
No levantamento de dados realizado durante meu doutorado encontrei um grupo de cientistas
formado majoritariamente por etnólogas realizando pesquisas científicas no Brasil. Este estudo foi
possível a partir da documentação de um órgão federal chamado Conselho de Fiscalização das
Expedições Artísticas e Científicas do Brasil (CFE)2, onde realizei um levantamento sobre a
participação de mulheres em expedições científicas no país entre os anos de 1933 e 1968, período em
que o órgão existiu. Dentre os trinta e oito (38) nomes levantados, nove (9) eram de etnólogas.3
Importante ressaltar que esse número provavelmente não reflete a totalidade de mulheres que tiveram
alguma atividade registrada pelo CFE, mas sim a amostra que foi possível reunir durante essa pesquisa
considerando a extensão do arquivo do CFE.
Entre os nomes que apareceram, alguns são de cientistas reconhecidas em seus países ou
internacionalmente pelo pioneirismo em determinadas áreas científicas, ou pela participação acurada
nas disciplinas que se propuseram a estudar. Alice Farnsworth, Hanna Rydh, Etta Becker Donner,
Racine Foster, Ruth Landes, Bertha Lutz, Betty Meggers e Wanda Hanke, por exemplo, são todas
2 No decorrer do texto utilizarei somente a sigla CFE para me referir ao Conselho de Fiscalização das Expedições
Artísticas e Científicas do Brasil (1933-1968). 3 Neste levantamento as áreas de atividade apareceram nas seguintes proporções: Etnologia- 9, Botânica e Zoologia- 7,
Astronomia- 6, Geologia- 2, Arqueologia- 2, Expedições Artísticas- 7, Exportações Artísticas- 4, Expedições de outra
natureza- 1 (Sombrio, 2014:36).
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personagens que receberam de alguma forma reconhecimento em seus países de origem e possuem
relatos publicados sobre suas atividades.
Outras que apareceram no levantamento eram mais anônimas, talvez por não terem dado
continuidade às suas carreiras após as expedições realizadas no Brasil, ou por não se dedicarem
exclusivamente à pesquisa científica, também por muitas vezes circularem fora das instituições
científicas formais, de difícil acesso para elas, ou ainda por suas atividades terem sido pouco
registradas.
Todo esse conjunto de mulheres caracteriza um grupo que podemos chamar de cientistas
“normais”, como na definição de Thomas Kuhn (1978), que descreve a ciência como um sistema
integrado por pessoas diversas, que compartilham os mesmos paradigmas e praticam uma forma
coletiva de construção do conhecimento, contrariando a ideia de que a ciência seria fruto da
genialidade de mentes privilegiadas, individuais, de um imaginário de heroísmo quase missionário
associado à prática científica. Digo isso porque as personagens encontradas nessa pesquisa
consolidaram participações concretas nos sistemas de produção científica, ocupando posições de
menor ou maior prestígio, dependendo do caso, e com formas de inserção diversas, e é necessário
olhar para todos esses espaços de produção das ciências, e por diversos ângulos, para entender como
se dá de fato esse processo, profundamente influenciado por contextos econômicos, sociais e políticos.
Um olhar atento às questões de gênero nas pesquisas sobre história das ciências tem cada vez mais
contribuído para ampliar nosso conhecimento sobre essas práticas e para transformar discursos
históricos consolidados que deixaram de fora as experiências de diversos grupos marcados por
preconceitos sociais.
Para as mulheres que buscavam se profissionalizar na primeira metade do século XX, ainda
bastante associadas na estrutura social ao espaço privado da casa e do ambiente doméstico, a
impossibilidade de realizar pesquisas de campo, parte fundamental no processo de desenvolvimento
de várias ciências, constituía um empecilho enorme para a consolidação de carreiras científicas
promissoras.
Parte importante da construção das ciências se dá a partir de viagens, redes de contato,
intercâmbio entre países e estágios em instituições diversas, pesquisas de campo, congressos,
reuniões, tudo que caracteriza essa produção de caráter coletivo e inter-relacional, e tudo isso não é
facilmente encaixado na forma como está estruturado a divisão (sexual) de trabalhos, especialmente o
trabalho doméstico e as funções de cuidado. Essas funções ainda recaem majoritariamente sobre as
mulheres que, na maioria das vezes, assumem sozinhas a responsabilidade por esses trabalhos.
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Pensando a história das ciências, Naomi Oreskes (1996) questionou se a objetividade seria
realmente o principal valor para entender a atuação das mulheres cientistas argumentando que muitas
realizaram trabalhos “objetivos”, mas foram desqualificadas pela ideologia do heroísmo científico. A
imagem socialmente construída da ciência aventureira e exploratória contribuiu para a invisibilidade
das mulheres cientistas, que não faziam parte dessas narrativas, pois mesmo após começarem a
ingressar em instituições permaneceram restritas a certos espaços do trabalho científico que, de modo
geral, não incluíam esse ambiente exterior.
Em outras abordagens, demonstrou-se que algumas particularidades da pesquisa de campo
podiam, por um lado, facilitar a inserção feminina. Isso porque é mais difícil estipular regras num
local de trabalho essencialmente público como o campo, com convenções de trabalho muito mais
flexíveis do que dentro de um laboratório, instituto ou universidade. No campo as regras de gênero
poderiam ser mais maleáveis e por séculos mulheres viajaram para lugares distantes registrando suas
observações em cartas, diários e pinturas, o que permite a construção de uma historiografia sobre
mulheres viajantes, cientistas e atuando como pesquisadoras de campo (Kuklick e Kohler, 1996;
Lopes, 1997).
Por outro lado, diferente do interior de uma instituição científica, no campo o cientista
precisava se relacionar com habitantes nativos, vendedores, mateiros, sertanistas, pescadores, enfim,
uma rede muito mais variada de atores que poderia facilitar ou dificultar, em muitas situações, a
participação das mulheres. De qualquer forma, com a forte institucionalização que excluiu
oficialmente as mulheres das instituições científicas no século XIX (Schiebinger, 2001),
aparentemente o campo carregava a possibilidade de ser um lugar mais permissivo, quando
conquistada a possibilidade de se adentrar por esse caminho, diferente da ciência produzida entre
quatro paredes e com regras estritamente rígidas quanto à separação de corpos masculinos e femininos
nos locais de trabalho.
O heroísmo científico parece ser um dos ideais que mais motivou os cientistas, mas esse ideal
foi, de certa forma, negado às mulheres. Esse fato pode ter atrapalhado as aspirações de inúmeras
personagens que tentaram ingressar em carreiras científicas, mas certamente não atrapalhou as
mulheres abordadas neste trabalho. As identidades de gênero possíveis e existentes eram mais
flexíveis do que as imagens tradicionais registradas pela historiografia nos permitiram conhecer.
No passado mais recente, final do XIX e início do XX, algumas das ciências que se baseiam
fortemente na pesquisa de campo, como a botânica e a antropologia, se mostraram particularmente
receptivas às mulheres que alcançaram paridade com os homens no campo mais facilmente do que o
fizeram dentro das instituições científicas (Kuklick e Kohler, 1996:12).
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Etnólogas, arqueólogas e linguistas no Brasil em meados do século XX
Em meados do século XX, estudos sobre etnologia indígena se desenvolviam no Brasil
contando com esforços tanto de profissionais de instituições nacionais quanto de estrangeiros que
vinham ao país realizar suas pesquisas. Um aspecto interessante sobre a configuração desse campo de
estudos no país é a significativa presença de mulheres atuando como etnólogas na primeira metade do
século XX.
No levantamento que realizei na documentação do CFE, mencionado anteriormente, as
etnólogas que aparecem são as seguintes: Wanda Hanke, Dina Lévi-Strauss, Sra. Steen, Ruth Landes,
Sra. Herskovits, Maria Alice Moura Pessoa, AniPatin, Etta Becker Donner e Mary BrewerHemons. As
arqueólogas que tiveram suas atividades registradas pelo CFE foram Betty Meggers e Hanna Rydh.
Na primeira metade do século XX, disciplinas como a linguística, por exemplo, estavam muito
próximas da antropologia e, apesar do distanciamento ocorrido nas décadas seguintes, até hoje essas
especialidades mantém algum contato em termos de pesquisa. A especialização científica que definiu
campos de estudos hoje enfaticamente distintos ainda não estava tão claramente estabelecida e
fronteiras disciplinares eram mais facilmente cruzadas. A Segunda Reunião Brasileira de
Antropologia ocorrida em Salvador, em 1955, por exemplo, estava distribuída em sessões que
abordavam estudos de arqueologia, antropologia física, linguística, antropologia cultural, aculturação
e ensino de antropologia (Corrêa, 2013: 54), indicando essa intermediação de campos de estudos e a
influência desse conjunto de disciplinas no processo de consolidação dos estudos antropológicos, seja
pela incorporação ou pelo distanciamento de práticas, métodos e teorias.
Sobre as pesquisas que venho desenvolvendo gostaria de mencionar aqui dois casos com os
quais me deparei na documentação do CFE durante minha pesquisa de doutorado e que continuo
investigando como parte de um projeto de pesquisa de pós-doutorado.
O primeiro é o da etnóloga austríaca Wanda Hanke (1893-1958) que passou os últimos vinte e
cinco anos de sua vida estudando grupos indígenas da América do Sul. Sua ambiciosa pesquisa incluiu
viagens pelo interior do Brasil, Bolívia, Argentina e Paraguai. Com formação em filosofia, medicina e
direito foi somente a partir dos quarenta anos de idade que passou a dedicar-se à etnologia. Nascida
em 1893, faleceu na cidade de Benjamin Constant, Amazonas, Brasil, em 1958, durante uma de suas
viagens. Apesar de sua trajetória peculiar, ela ainda é pouco conhecida no Brasil.
Parte de sua produção bibliográfica foi publicada em alemão, em periódicos austríacos, mas há
também trabalhos publicados em espanhol. Entrou em contato com diversas etnias indígenas e sobre
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algumas delas publicou estudos na revista do Museu Paranaense (Arquivos do Museu Paranaense),
nas décadas de 1940 e 1950.4
Entre os relatos sobre a cultura, língua, história e organização social desses povos, Wanda
Hanke descreveu também aspectos da vida das mulheres e das relações de gênero que observou.
Como outros etnólogos que fizeram pesquisa de campo no Brasil na primeira metade do século XX,
seu trabalho era influenciado pelas teorias evolucionistas do século XIX e isso a fazia argumentar que
muitos desses grupos encontravam-se em um estágio inferior da evolução humana e que a
incorporação à civilização, conceito que definia por sua visão eurocêntrica, seria o único caminho de
salvação possível para esses grupos que enfrentavam um iminente processo de extinção.
Hanke esteve na região do Mato Grosso do Sul, ainda hoje palco de violentas disputas entre
fazendeiros, indígenas e governo. A partir dessa expedição publicou um artigo em 1942, intitulado
“Cadivéns e Terenos”,5 no qual registrou suas impressões sobre essas duas etnias que habitavam a
região. No início do texto teceu alguns comentários sobre os Terenos, que identificou como um grupo
já bastante miscigenado, tendo se misturado com outras etnias como Caiuás, Cadivéns, negros e
brancos. No entanto, a maior parte das considerações feitas no artigo são sobre os Cadivéns
(Kadiwéus), que Hanke aponta como pertencentes à família dos Guaicurus. Através de seus estudos
linguísticos realizados primordialmente no campo, Hanke propunha hipóteses de parentesco, como
nesse caso, em que questiona se os Cadivéns não seriam parentes dos Toba e Pilagas, grupos da zona
do Chaco, considerando a grande semelhança entre esses três idiomas e também pela influência mútua
na cultura material. Afirma que havia também miscigenação entre esse grupo, mas que grande parte da
etnia ainda se mantinha “pura” (Hanke, 1942: 82).
Os idosos do grupo lhe disseram que o grupo mantinha ainda costumes antigos como o fato de
não usarem dinheiro e viverem em uma forma de “comunismo”. Todos plantavam e colhiam juntos,
homens e mulheres, e depois separavam a colheita entre eles. Sobre o idioma, diz que muitos dos
homens do grupo falavam também o português, mas entre as mulheres encontrou apenas três que o
dominavam. Na maior parte do tempo falavam sua própria língua, descendente da família linguística
Guaicuru.
4Hanke, Wanda:Cadivéns y Terenos, Vol. II, 1942:79-87; Los índios Sirionó de laBolivia Oriental, Vol. II, 1942:87- 96;
Los índios Botocudos de Santa Catarina Brasil, Vol. VI, 1947:45-59; Apuntes sobre el idioma caingangue de los
Botocudos de Sta. Catarina, Brasil, Vol. VI, 1947:62-97; Vocabulariodeldialecto caingangue de la Serra do Chagu,
Paraná, Vol. VI, 1947: 99-106; Ensayo de una gramática del idioma caingangue de los Caingangues de la ‘Serra de
Apucarana’, Paraná, Brasil, Vol. VIII, 1950: 65-220; Estudos complementares sobre a cultura espiritual dos índios
caingangues, Vol. VIII, 1950:137-145; La cultura material de losGuarayos Modernos, Vol. VIII, 1950:215-220. 5 O termo “Cadivéns” também é conhecido pela grafia “Kadiwéus”, referindo-se ambos ao mesmo grupo.
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Ao mencionar o que Hanke classifica como “admiráveis regras de higiene e conhecimentos da
natureza” relata que os Cadivéns conheciam a duração da gravidez e os ciclos da menstruação e que o
parto se fazia em suas próprias casas com assistência de uma mulher especialista (Hanke, 1942: 83).
Até quarenta dias após o parto as mulheres permaneciam em uma dieta especial na qual não comiam
carne, gordura, nem comidas cruas e que até depois de um ano não mantinham relações com os
homens, o que também evitavam durante a menstruação, acreditando que assim conservariam a saúde.
Observa que elas quase não conheciam “enfermidades próprias do sexo feminino”, e talvez por isso
tenha considerado essas práticas tão admiráveis.
Os objetos mais valorizados de sua arte levavam às tumbas junto com os mortos, tornando assim
seus cemitérios grandes repositórios de sua cultura material. Se alguém do grupo morresse fora da
terra que habitavam, enterravam-no provisoriamente e levariam o corpo para ser definitivamente
sepultado quando voltassem ao local de pertencimento do grupo. Antigamente, segundo lhe contaram,
levavam também os ossos dos parentes mortos quando se mudavam. Por ocasião da morte de algum
homem, lamentavam com cantos as mulheres da família, mas se morria uma mulher não havia canto,
com exceção de algumas parentes próximas.
Mais um aspecto interessante em relação às representações de gênero aparece em seu relato
sobre crenças religiosas. Segundo Wanda Hanke, os Cadivéns acreditavam em apenas um Deus e este
possuía uma filha. Contam que o grupo surgiu após um dilúvio que destruiu tudo que antes existia.
Após a catástrofe, Deus teria então criado dois homens e duas mulheres Cadivéns e andava com eles
pela terra. Ensinou-lhes a fazer pontes para cruzar os rios e construir casas, entre outras coisas. A
narrativa do dilúvio demonstra uma provável influência cristã já incorporada a mitologia de gênese do
grupo. Contudo, o fato de Deus possuir uma filha é bastante diverso da narrativa cristã e peculiar ao
grupo indígena.
No mesmo ano de 1942, Wanda Hanke publicou outro artigo na revista do Museu Paranaense
intitulado “Los índios Sirionó de laBolivia Oriental”. Essa etnia habitava a região de Santa Cruz de
laSierra, na Bolívia, e foi considerado por Hanke como representante “de uma raça mais primitiva”,
reafirmando o estereótipo do primitivismo frequente em estudos da época. O grupo apareceu em
registros de viajantes pela primeira vez na década de 1920 e ainda se mantinha bastante isolado.
Sobre suas impressões sobre eles, Hanke relatou que homens e mulheres mantinham o cabelo
cortado frequentemente e tiravam as sobrancelhas. Usavam colares de dentes, ossos, sementes e
plumas de todos os tamanhos. Somente as mulheres usavam colares feitos da combinação específica
de sementes e da casca de uma árvore frutífera chamada “Kea”, enquanto arranjos de plumas eram
vistos tanto em homens quanto em mulheres. Como amuleto as mulheres usavam também restos de
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cordões umbilicais com cabelo dos recém-nascidos envoltos em fios de lã, algodão ou fibras. Tal
amuleto se via apenas em mulheres com filhos e dizia-se que ajudavam a conservar a vida e a saúde da
criança.
As mães carregavam as crianças em redes de algodão que amarravam na diagonal entre o ombro
e o peito posicionando a criança de tal modo que sempre alcançasse o peito para mamar. A rede não
era feita de um tecido exatamente, mas sim de uns oitenta fios amarrados com fios mais grossos,
transversais, de modo que os dejetos saíam por esses espaços deixados entre os fios. Dessa forma não
se tomava tanto trabalho e asseio na criação dos filhos. Wanda Hanke relatou também aspectos sobre
papéis masculinos, gênese, mitologia e costumes dos Sirionó, mas não me aprofundarei aqui na
análise de seus trabalhos, pois gostaria de mencionar ainda mais um caso de outra pesquisadora que
realizou expedições científicas no Brasil, na primeira metade do século XX.
Os objetos que Wanda Hanke coletava hoje constituem coleções de museus diversos. No Brasil,
existem peças entregues por ela no Museu Paranaense, em Curitiba, instituição com a qual mais
colaborou no país, e no Museu Paulista, em São Paulo. Outros museus da América Latina, como o
Museu de Arqueologia da Universidade de Cochabamba, na Bolívia, e o Museu de La Plata, na
Argentina, também possuem coleções e documentos sobre suas expedições.
Olhar para os museus brasileiros da primeira metade do século XX pode revelar muito sobre as
práticas e espaços ocupados por mulheres cientistas. Outro caso que ficou registrado na documentação
do CFE e que gostaria de mencionar é o da arqueóloga Betty Meggers. Amplamente reconhecida por
seus estudos sobre arqueologia amazônica, hoje já bastante revisitados, sob a perspectiva das relações
de gênero Meggers se destaca pela autonomia com que construiu sua carreira, mesmo sendo casada
com outro arqueólogo, o pesquisador Clifford Evans. Casais de cientistas aparecem com frequência
quando estudamos trajetórias de mulheres nas ciências e isso pode ser explicado por ser uma das
condições sociais na qual se tornava possível ou mais fácil que mulheres dessem prosseguimento às
suas carreiras. Poderiam realizar pesquisas de campo juntos, por exemplo, prática que muitas vezes,
após o casamento, afastava as mulheres do trabalho científico, pois podiam sucumbir aos padrões
sociais da divisão sexual do trabalho, fortemente arraigados na estrutura social naquele período.
A colaboração entre casais foi um fenômeno que se tornou mais frequente e publicizado também
na primeira metade do século XX. Juntos alguns casais construíam um estilo de vida onde davam
suporte um ao outro (Pycior; Slack; Abir-AM, 1996: 4, 8). Assim como é possível observar no caso de
Betty Meggers e Clifford Evans, essas pessoas apoiavam-se nas condições extremas do trabalho de
campo em países estrangeiros e também criavam uma ligação de apoio para se posicionarem no
mundo competitivo das ciências. O trabalho dos casais possuía uma complementaridade e resultados
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que nenhum dos dois alcançaria sozinhos, ou que a mulher teria mais dificuldades para perseguir
sozinha.
No caso de Betty Meggers, duas características dão certo destaque a sua experiência: o fato dela
nunca ter adotado o sobrenome do marido e ter assim garantido autonomia em suas publicações e o
fato de seu trabalho ter tido maior impacto do que o de Evans, mesmo considerando que parte das
pesquisas foi realizada conjuntamente pelo casal.
Assim como Wanda Hanke, Betty Meggers circulou pela América Latina onde desenvolveu
pesquisas de campo. Realizou suas expedições no Brasil na região do baixo Amazonas nos anos de
1948 e 1949. Entre 1952 e 1957, Meggers e Evans também realizaram pesquisas na Guiana, no
Equador e na Venezuela. Mais tarde, em 1967, retornaram ao Brasil com apoio do antropólogo José
Loureiro Fernandes, à época coordenador do Centro de Ensino e Pesquisa em Arqueologia da
Universidade Federal do Paraná, para ajudar a fundar o PRONAPA – Programa Nacional de Pesquisas
Arqueológicas, implementado no Brasil entre 1965 e 1970.
Diferentes grupos habitaram a região amazônica e viveram em harmonia com o território até o
início da ocupação europeia na região que desequilibrou o modo de vida desses grupos e expôs suas
fragilidades. A pesquisa arqueológica realizada por Betty Meggers e Clifford Evans tinha o objetivo
de conhecer hábitos e principalmente as formas de adaptação destes povos à vida na floresta tropical.
Com as peças que encontraram, em grande parte fragmentos de cerâmica, mas também ossos, urnas,
vasos e outros objetos, reuniram informações e construíram hipóteses.
Em seus diários de campo, hoje guardados no arquivo do Instituto Smithsonian (EUA), onde
trabalhava, Betty Meggers relatou o trabalho, os trajetos e percalços enfrentados em suas expedições
deixando a impressão de ter encarado as adversidades com bastante tranquilidade. Muitas impressões
sobre o trabalho de campo e algumas sobre preconceitos de gênero ficaram registradas em seu relato.
Por exemplo, quando chegaram na cidade de Chaves, no Pará, Meggers descreveu o local das
escavações relatando que o solo era como um barro preto e difícil de cavar, o que deixava os
fragmentos de cerâmica moles e tornava difícil separá-los da lama. Conseguiram retirá-los com a
ajuda de um machete e do guia que os acompanhava, um homem chamado Pedro. O vice-prefeito de
Chaves - Sr. Raimundo Nonato de Oliveira Brito, uma mulher de nome Magdalena e mais um homem
da fazenda onde se hospedavam também estavam lá. Nesse dia, Betty Meggers anotou em seu diário
que as outras pessoas não achavam que ela fosse participar da escavação porque consideravam que era
um trabalho muito duro para as mulheres. Terminou o parágrafo em seu diário com uma expressão de
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exclamação característica de quem havia se impressionado com o comentário: “Theydidn’texpect me
to go, too rough for women I guess. “A senhora não vai” Uow!!”6.
Durante os dois anos da pesquisa de campo, em diferentes localidades, Meggers e Evans se
hospedavam em fazendas da região e andavam até os sítios de pesquisa todos os dias. Era cansativo e
enfrentavam chuvas, lama e muita água acumulada pelo caminho. Carregavam alimentos, barraca e os
instrumentos de trabalho necessários quando decidiam acampar em algum local mais distante e na
volta contavam com ajuda de carregadores locais para levar os fragmentos e artefatos coletados. As
vezes usavam cavalos e bois como transporte, além de barcos, transporte mais tradicional na região.
Em Chaves, a fazenda onde se hospedaram tinha o nome de Santa Catarina. Entre várias
informações sobre este local, Meggers relatou que Dona Cora, uma das mulheres da casa, lhe pediu
certa vez uma de suas calças emprestada, uma de cor vermelha que ela sempre usava, para poder tirar
um molde e fazer uma igual para si. Clifford Evans se surpreendeu com a atitude, segundo descrição
de Meggers, e em resposta ela lhe disse: “nada como um pouco de influência americana” (Nothinglike
a litlleamericaninfluence!)7, se referindo ao fato da mulher pedir a calça emprestada em um local
aonde o costume majoritário na vestimenta feminina ainda era o uso de saias.
Foi possível identificar no relato de Betty Meggers diversos momentos como esses em que ela
mencionou como alguns habitantes locais estranhavam sua presença na realização daquela expedição e
se impressionavam com sua capacidade de participar de todas as etapas do trabalho e da pesquisa de
campo. A reação deles demonstra que, àquela época, ainda existia um estranhamento em encontrar
uma mulher cientista pesquisando no interior da Amazônia. Em contrapartida, as palavras de Betty
Meggers deixam nítido o tamanho de sua dedicação e sua satisfação em ser parte ativa daquela
empreitada.
É importante ressaltar também algo que está evidente em todo o relato de Betty Meggers que é
a participação das comunidades locais, a importância e o reconhecimento dessas pessoas que os
ajudavam e de certa forma fizeram parte do trabalho deles. A construção deste conhecimento sobre o
Brasil teve participação fundamental dos moradores da região que lhes indicavam os caminhos, dos
proprietários de terras que os abrigavam e dos funcionários de instituições brasileiras que guiaram
suas pesquisas. As teorias desenvolvidas posteriormente por Meggers, baseadas no conhecimento
adquirido no campo, ainda passariam por muitas transformações dentro das instituições científicas
para se adaptar aos discursos previamente existentes sobre conceitos como arqueologia, cultura,
adaptação ou evolução, mas a pesquisa de campo é parte fundamental nesse sistema, representando o
6JournalofLowerAmazonExpedition, BettyMeggers, vol. 1, p. 70. NationalMuseumof Natural History,
SmithsonianInstitution, Washington-DC. 7JournalofLowerAmazonExpedition, Betty Meggers, vol. 1, p. 98, op. cit.
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momento onde aquele conhecimento pôde ser produzido em conjunto com o ambiente e com a
sociedade.
Ao ouvir as vozes dessas diferentes mulheres e encontrar suas experiências torna-se possível
entender que elas também estiveram presentes em processos importantes para o desenvolvimento das
ciências, assim como as formas e estratégias utilizadas para realizar suas expedições científicas e dar
corpo às suas pesquisas.
Através da pesquisa histórica e da utilização de fontes e metodologias diversas é possível
contribuir para a reversão do quadro de escassez de narrativas sobre a participação feminina nas
ciências trazendo a tona as experiências dessas personagens, narrando a forma como se envolveram
nas práticas científicas ou até a forma como foram excluídas delas, porque dessa forma se tornará
possível entender cada vez mais aspectos sobre a própria construção das ciências e sobre a atuação dos
diversos atores envolvidos ou propositalmente afastados desse processo.
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Female archaeologists, ethnologists and linguists in Brazil in the first half of the 20th century
Abstract: In the middle of the twentieth century, ethnological studies were developed in Brazil with
the efforts of professionals from national institutions and for eigners who came to the country to carry
out their research. An interesting aspect to be noticed in the configuration of this field of studies in
Brazil is the significant presence of women, and also the ways in which gender relations were
established in these professional spaces, had influence the production of studies and the construction
of discourses on indigenous populations, among other groups. From an initial survey on the presence
of female scientists carried out in the Brazilian Inspection Councilon Artistic and Scientific
Expeditions documentation, which covers the period from 1933 to 1968, I have investigated the
trajectories of some of the searchers, in particular ethnologists, linguists and archaeologists who
composed the largest group found in these documents, trying to understand how the yintegrated the
respective disciplinary communities, still predominantly male, and emphasizing the experience of the
searchers, in front of the persistent invisibility of experiences and contributions of women scientists in
historiographic discourses. In this study, I high light the presence of two researchers in particular: the
ethnologist Wanda Hankeand, the archaeologist Betty Meggers, who accomplished scientific journeys
in Brazil in the first half of the 20th century and produced important research into the history find
igneous populations in the country.
Keywords: Ethnology, archaeology, linguistics, female scientists, twentieth century