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Quilombolas, territórios tradicionais e regularização fundiária: os impasses e
desafios vivenciados no Estado do Amapá1
Joseline S. Barreto Trindade2 e Irislane Pereira de Moraes
3
Resumo
Em 1988, o Estado brasileiro assumiu constitucionalmente o dever de implementar uma
política de reparação étnico-territorial aos povos e comunidades tradicionais
quilombolas. Entretanto, passados vinte e seis anos de edição do Art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), e, doze anos do Decreto 4.887 de
2003, questionamos: o que de fato tem sido efetivado em torno do direito étnico-
territorial dos quilombolas no Brasil? E, na Amazônia, especificamente no estado do
Amapá, quais os impasses e os desafios vivenciados no processo de regularização
fundiária e titulação definitiva das terras quilombolas? Diante desses questionamentos,
nosso objetivo neste artigo é apresentar o estado de arte de uma pesquisa mais ampla
voltada à compreensão do processo de regularização fundiária das terras de quilombo no
Amapá. Nesse contexto, sistematizamos dados institucionais já levantados, bem como,
aspectos do campo jurídico e social. Por fim, ressaltamos elementos e proposições para
reflexão diante dos impasses e dos desafios colocados à regularização fundiária dos
territórios quilombolas no estado do Amapá.
Palavras-Chave: Povos quilombolas; território tradicional; regularização fundiária.
Caminhos de uma pesquisa reflexiva em campos multissituados
Este artigo se constrói a partir de uma imersão em campo etnográfico e
representa o estado de arte de uma pesquisa mais ampla voltada à compreensão do
processo de regularização fundiária das terras de quilombo no Amapá4. Nesse contexto,
apresentamos alguns dados institucionais e informações já levantadas, destacando
1 Trabalho apresentado no GT 069. “Quilombos no Brasil: 25 anos de direitos na Constituição Federal de
1988” na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014,
Natal/RN. 2 Antropóloga; docente da Faculdade de Ciências Sociais do Araguaia Tocantins da Universidade Federal
do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). E-mail: [email protected] 3 Antropóloga; docente de Arqueologia do Curso de História da Universidade Federal do Amapá
(UNIFAP). E-mail: [email protected] 4As autoras chegaram ao Amapá, em 2013, motivadas por diferentes razões: Joseline Trindade, para
realização de uma pesquisa de campo a fim de elaborar sua tese de doutorado Programa de Pós-
Graduação em Antropologia (PPGA-UFPA); e, Irislane Moraes, para tornar-se docente do curso de
História na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), onde atualmente coordena o projeto de pesquisa
“Terras de Quilombo no Amapá: arqueologias, paisagens e patrimônios quilombolas”.
2
aspectos do arcabouço jurídico e das políticas públicas de regularização fundiária. Em
seguida, apresentamos algumas reflexões diante dos impasses e desafios colocados ao
processo de titulação das terras quilombolas no Amapá.
A regularização fundiária de terras de quilombo no Amapá, no âmbito do
campo social e jurídico, é agenciada por diferentes atores sociais: instituições do poder
público e da academia, mediadores e movimentos sociais. Assim, temos percorridos
caminhos de pesquisa que visam i) conhecer as instituições estatais que tem a intenção
de desenvolver políticas públicas de regularização fundiária das terras quilombolas
assim como as legislações correlacionadas, e ii) as mobilizações quilombolas e do
movimento negro pela efetivação dos direitos étnicos territoriais no Amapá.
A noção de campo social construída por Pierre Bourdieu nos serve como
construto teórico para análise, já que, devido às tensões sociais em torno da
regularização fundiária, torna-se fundamental compreender os agentes sociais e suas
respectivas ações no campo das relações sociais, sejam elas de mediação, disputas e
conflitos, pelas quais também são construídas estratégias e relações de poder postas por
diferentes regras e capital simbólico (BOURDIEU, 2000; 2001; 2009). Nesse campo
relacional de pesquisa sobre a regularização fundiária no Amapá, procedemos a uma
etnografia multissituada5 na busca do saber reflexivo e comprometido socialmente, pois
tal como propõe Bourdieu:
A tarefa mais urgente parece-me ser descobrir os meios materiais,
econômicos e, sobretudo, organizacionais, de incitar todos os
investigadores competentes a unirem os seus esforços aos dos
responsáveis militantes para discussão e elaboração coletivas de um
conjunto de análises e de propostas de progresso que hoje existem
apenas no estado virtual de pensamentos privados e isolados ou em
publicações marginais, relatórios confidenciais e revistas esotéricas
(BOURDIEU, 2001:12).
Enquanto lócus de pesquisa elegemos três importantes instituições do poder
público: o Instituto Municipal de Política de Promoção da Igualdade Racial
(IMPROIR); a Secretaria Extraordinária de Políticas Públicas para os Afrodescendentes
(SEAFRO); e a Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA).
5 A ideia de antropologia multissituada pode ser entendida como uma necessidade metodológica de
basearmos nossa análise em redes de lugares onde é possível buscarmos compreender a complexidade do
mundo interconectado percebendo os fluxos e as redes dos aspectos dos objetos de estudo Cf. Marcus,
G.E. (1995).
3
No que concerne à organização e representação política negro-quilombola,
buscamos acompanhar algumas intervenções dos movimentos sociais e entidades do
Movimento Negro, a exemplo da Coordenação Estadual de Articulação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Amapá (CONAQ-AP) e do Coletivo
Pretitude6.
A interlocução com os movimentos sociais se deu a partir do acompanhamento
dos debates e ações que tratavam da questão negra e da regularização fundiária
quilombola no Amapá. Entre essas situações sociais estratégicas em que a temática da
regularização fundiária esteve em pauta, ressaltamos a realização da Audiência pública
organizada pelo Ministério Público Federal, em novembro de 2013, cujo tema foi
“Regularização Fundiária de Terras quilombolas”; e a “Audiência pública” do dia 15 de
março de 2014 no Carmo do Maruanum, ambas em Macapá.
Desde então, no devir da pesquisa, temos percebido a necessidade de distinguir
a realização de algumas reuniões que, insistentemente acabam sendo referidas enquanto
audiências públicas, porém não têm se constituído com as características elementares do
diálogo público e socialmente comprometido, devido os seguintes entraves: a ausência
ou ineficácia da divulgação aos interessados e suas respectivas representações políticas
e a parcial notificação das autoridades competentes. Desta forma, têm sido fragilizadas
as possibilidades de estabelecimento de um diálogo livre e esclarecido com os agentes
sociais interessados, as comunidades quilombolas. Muitas vezes agravado pela ausência
de assessoria técnica, sobretudo jurídica e de comunicação.
Ocorre que, essa tendência em chamar reuniões ampliadas de audiências
públicas, acaba por reproduzir socialmente violências simbólicas, tais como a
comunicação violenta e a intimidação do “direito de dizer o direito”, historicamente
impetradas contra os legítimos sujeitos de direitos étnico-territoriais. Com isso, acaba-se
fomentando a permanência e a circulação de incompreensões em torno da questão
quilombola e da regularização fundiária de seus territórios tradicionais.
Na experiência vivenciada no Carmo do Maruanum, comunidade certificada
pela Fundação Cultural Palmares, em 25 de outubro de 2013, o debate sobre o processo
6 O Coletivo Pretitude se constitui como uma rede de articulação de entidades e movimentos com enfoque
ao enfrentamento do racismo e ao protagonismo da juventude negra no Amapá, que está composto pelo
Movimento Afro Jovem do Amapá (MOAJA); Fórum de Juventude Negra do Amapá (FOJUNE/AP);
Associação de Jovens, Moradores e Produtores Rurais de Santa Luzia do Maruanum (AJOMPROM);
Federação Amapaense de Hip-Hop (FAHH); Rede de Empreendedores Quilombola Ubuntu e o Instituto
AmapÁfrica. Cf. rede social disponível em: https://www.facebook.com/pages/Coletivo-
Pretitude/261499464016496?fref=ts
4
de titulação coletiva como terra quilombola, foi permeado por perguntas como: “o que
significa ser quilombola? E, quais as vantagens e as desvantagens de a comunidade ter
suas terras tituladas coletivamente como quilombo?” Essa “audiência”, portanto,
tornou-se emblemática, porque suscitou elementos que ajudam a fazer uma reflexão
mais geral sobre os impasses e os desafios colocados à regularização fundiária de terras
de quilombo no estado do Amapá.
Quando chegamos ao Carmo do Maruanum7 para participar da reunião, as
pessoas envolvidas na organização, nos inquiriram se, por sermos antropólogas, seria
possível explicarmos “das vantagens e desvantagens” de ser quilombola. Ficamos
preocupadas com o andamento dos trabalhos, porque além desta estranha proposição,
fomos solicitadas a falar primeiro, antes mesmo das demais pessoas ali presentes e mais
diretamente interessadas na questão, demonstrando uma improvisação e subestimando a
importância de uma assessoria técnica. Aguardamos um amplo posicionamento das
pessoas sobre o que os levou a participar daquela reunião, e as dúvidas surgidas, após
isso, nos posicionamos com o intuito de contribuir sobre as questões colocadas.
Naquele dia, se instaurou um clima tenso, notoriamente acentuado pela
presença de cerca de doze policiais perfilados na entrada do centro comunitário e que
transitavam também pelo espaço. Somado à angústia das pessoas em buscar
compreender o que significava a comunidade já estar “certificada” e, principalmente,
quem e como se faria a jurisdição e gestão das terras da comunidade, caso fosse
efetivada a titulação coletivamente. Essas dúvidas foram reforçadas pelas autoridades e
falas institucionais que, eximindo-se de suas responsabilidades enquanto poder público
de promover a regularização fundiária enquanto política publica de enfoque étnico-
territorial, recorrentemente se referiam à presença das antropólogas, como àquelas que
teriam a palavra final sobre quem é ou não é quilombola.
Diante desse cenário, nossa intervenção, foi inicialmente, tentar descontruir
essa ideia de que seria o antropólogo o profissional com autoridade para definir a
identidade do Outro, mas no sentido de uma “antropologia implicada”, “em que uma
pesquisa fundamental, intelectual e socialmente investida na situação histórica das
7 Após viajarmos cerca de 80 km do centro de Macapá pela rodovia BR-156 no sentido Macapá-Laranjal
do Jari chegamos ao Carmo do Maruanum, uma das 16 comunidades que vivem ao longo do rio
Maruanum. Elas estão distribuídas em conjuntos Maruanum I e Maruanum II (Maruanum I: Vila do
Carmo, Santa Luzia, Conceição Simião, Torrão do Maruanum, São Raimundo São Sebastião do Pirativa;
Maruanum II: Santa Maria, São João Bacaba, Fatima Monte Oliveiras, São Jose Lago do Banha,
Maçaranduba.)
5
sociedades que ela (a antropologia) estuda, e suscetível de mobilizar suas competências
em favor de sua conquista de autodeterminação” (ALBERT,1995).
Nosso posicionamento, portanto, foi destacar com base no que escreveu
Alfredo Wagner de Almeida no prefacio do livro Julgados da Terra: cadeia de
apropriação e atores sociais em conflito na Ilha de Colares (ACEVEDO, 2004:12), que
o “quilombola é mais precisamente aquele que tem consciência de sua posição
reivindicativa de direitos étnicos e a capacidade de autodefinir-se como tal, mediante os
aparatos de poder, organizando-se em movimentos e a partir de lutas concretas”.
Torna-se imprescindível perceber que o papel do antropólogo se reveste de um
caráter politico no âmbito de sua atuação profissional. Porém, não será ele, nem
necessariamente a sua intervenção de pesquisa, que fará o fomento da política de
identidade no âmbito das reivindicações das comunidades, papel a ser exercido sim,
pelos movimentos sociais negro-quilombola. Ao passo que, uma vez fomentada a
consciência cultural e étnica das comunidades em se autodefinirem enquanto
quilombolas, isso implicará que o sujeito de direito então empoderado, nesse caso, os
quilombolas, entrarão no campo social e jurídico de reivindicação, demandando a
regularização fundiária de suas terras, uma vez que se trata de um direito étnico-
territorial a ser efetivado pelo Estado, enquanto política pública específica.
Contexto da regularização fundiária de terras de quilombolas no Amapá:
instituições e legislações correlacionadas
O Amapá é um estado compreendido pela região amazônica que apresenta,
segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010), uma área
territorial de 142.828,521 km², então distribuída em 16 municípios e uma população de
669.526 habitantes. Em termos gerais, na sua conformação territorial enquanto estado,
destaca-se no ano de 1943, a criação do Território Federal do Amapá, mediante um
desmembramento territorial do estado do Pará, e, por conseguinte, no ano de 1988, a
transformação do Território Federal do Amapá em um estado da federação.
Em âmbito nacional, o ano de 1988 também foi marcado pela promulgação da
Constituição Brasileira que no seu Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT) que garantiu “aos remanescentes das comunidades dos quilombos
que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Nesse sentido, no ano de 1999 ocorreu a
6
primeira titulação definitiva de terra quilombola no Amapá conferida ao quilombo do
Curiaú8.
Além disso, fortaleceu-se também, uma politica ambiental estatal, fazendo
com que o Amapá atualmente apresente 72% dos seus 14,3 milhões de hectares
destinados às Unidades de Conservação (UC) e Terras Indígenas, de forma que as
dezenove UCs do Amapá 9 perfazem cerca de 9,3 milhões de hectares (AMAPÁ, 2008).
Nesse contexto, um aspecto a se destacar do ordenamento territorial do Amapá
realizado através da criação de UCs é que algumas delas têm sobreposto territórios
tradicionais quilombolas, como ocorrem em Macapá, com a Área de Proteção
Ambiental do Rio Curiaú10
que sobrepõe o quilombo do Curiaú, e, no município de
Calçoene, onde o Parque Nacional do Cabo Orange11
sobrepõe o quilombo do Cunani.
Lima e Porto (2008) demonstram a dinâmica de ordenamento territorial no atual
estado do Amapá, apontando os aspectos da jurisdição das terras e gestão dos recursos
naturais, adotados durante o período 1960 a 2007:
Durante o processo da transformação do Território Federal do Amapá em
Estado da Federação (efetivada em 1988), o tema da terra permaneceu
vinculado ao Governo Federal até a promulgação das Constituição Estadual,
em 1991. De fato, os problemas gerados pela posse da terra justificaram a
implantação da Coordenadoria Estadual de Terras do Amapá (COTERRA) que,
posteriormente, seria transformada no Instituto de Terras do Amapá (TERRAP)
e, em 2007, em Instituto do Meio Ambiente e de Ordenamento Territorial do
Amapá (IMAP). De acordo com o Programa de Zoneamento Econômico-
Ecológico do Amapá (ZEE) em 1997, as terras públicas apresentavam a
seguinte distribuição: TERRAP 16.736 km2 (11,67%); FUNAI 11.498
km2 (8,01%); IBAMA 17.586 km
2 (12,26%) e INCRA com 97.632
km2 (68,05%), em um total de 143.453 km
2. Atualmente, de acordo com os
dados da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA) em 2007, as terras
públicas apresentam a seguinte distribuição: IMAP, 40.605 km2 (22,27%);
8 Em 1997, a Fundação Cultural Palmares assinou um termo de cooperação com pesquisadores, mediado
pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), para realização de estudos sobre algumas
“comunidades negras rurais”. O “Projeto de Mapeamento e Sistematização das Áreas Remanescentes de
Quilombos” foi executado em vários estados do Brasil. Nesse contexto, realizamos uma pesquisa sobre os
quilombolas do Curiaú, no Amapá. O relatório intitulado “Nascidos em Curiaú” (ACEVEDO MARIN,
1997) mostrou momentos importantes da trajetória histórica do grupo e os conflitos que envolveram a luta
pela demarcação e titulação da terra quilombola do Curiaú. 9 São elas: Estação Ecológica Maracá-Jipioca – ESEC; Estação Ecológica do Jari – ESEC; Parque
Nacional Montanhas do Tumucumaque– PARNA; Parque Nacional do Cabo Orange – PARNA; Reserva
Biológica do Lago Piratuba – REBIO; Reserva Particular do Patrimônio Natural Ekinox – RPPN; Área de
Proteção Ambiental do Curiaú – APA; Área de Proteção Ambiental da Fazendinha – APA; Floresta
Nacional do Amapá – FLONA; Floresta Estadual do Amapá – FLOES; Reserva de Desenvolvimento
Sustentável – RDS; Reserva Particular do Patrimônio Natural; Reserva Retiro Boa Esperança – RPPN;
Reserva Particular do Patrimônio Natural; Reserva Retiro Paraíso – RPPN; Reserva Particular do
Patrimônio Natural Seringal Triunfo – RPPN; (Lima e Porto 2008: s/p.) 10
A Área de Proteção Ambiental do Rio Curiaú (APA) foi criada em 1998. 11
O Parque Nacional do Cabo Orange (PNCO) foi criado em 1980, abrange uma área de 619.000 mil ha
num perímetro de 590 km, compreendendo os municípios e Oiapoque e Calçoene. Fonte:
http://uc.socioambiental.org/
7
FUNAI, 11.498 km2 (6,30%); IBAMA, 56.453 km
2 (30,96%) e INCRA com
73.764 km2 (40,45%), em um total de 143.453, 7km
2.
Portanto, o Amapá se apresenta como um estado da Amazônia que possui
grande parte de seus domínios territoriais compreendidos como terras públicas, de
forma que, a regularização fundiária enquanto trâmite institucional perpassaria quase
que exclusivamente “pelas mãos” do Estado. Entretanto, desde o ano de 1999 quando se
titulou o Quilombo do Curiaú até a titulação das terras de Quilombo de Conceição do
Macacoari, do Mel da Pedreira e São Raimundo do Pirativa nos anos de 2006, 2007 e
2013 respectivamente, esse processo de regularização tem ocorrido de forma lenta, sob
muitos percalços e impasses. Cabe então, questionarmos quais são esses impasses? E,
em que campo eles tem se apresentado?
Regularização Fundiária de Terras de Quilombo: instrumentos jurídicos e ações
governamentais
O Programa Brasil Quilombola, criado pelo governo federal no ano de 2004,
retoma em sua denominação, o caráter nacional da existência social de povos
tradicionais quilombolas. Segundo a Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI) do total de
26 estados brasileiros, já foram identificadas 24 comunidades quilombolas. Desses
estados brasileiros, dezenove possuem algum instrumento jurídico voltado à questão
quilombola e regularização fundiária, além de outras ações normativas como a criação
de comissões, grupos de trabalho e programas específicos.
O Estado do Pará, por exemplo, pioneiro no processo de titulação criou o
Grupo de Trabalho Quilombos, em 1997, e realizou a pesquisa que se intitulou
"Mapeamento de Comunidades Negras Rurais no Pará: ocupação do território e uso de
recursos, descendência e modo de vida" (SECTAM/UFPA/NAEA). Em sua primeira
fase, de 1998 a 2000 foram localizadas 129 comunidades negras rurais. Em 2000, foram
realizadas novas pesquisas por meio de convênios entre o Programa Raízes do Governo
do Estado do Pará e a UFPA (Relatório CEDENPA, 1998).
Na esfera estadual do Amapá, mediante o Decreto 1.441 de 2004 que trata das
normas de funcionamento do modelo de gestão, estrutura da administração e da
organização básica das secretarias, ressalta-se a existência da Secretaria Extraordinária
de Políticas Públicas para os Afrodescendentes (SEAFRO). Esta Secretaria, entre outras
linhas de atuação, vem desenvolvendo há três anos, o projeto intitulado “SEAFRO,
8
Presente Com Você” que pelo seu alcance, posteriormente, passou a ser referido
“SEAFRO Presente com Você Sem Fronteira”.
Segundo entrevista realizada com o coordenador do projeto, João Ataíde12
, o
projeto governamental “SEAFRO presente com você sem Fronteira é uma forma
encontrada pela Secretaria para chegar as 124 comunidades espalhadas por todo o
Amapá, a fim de informá-las sobre seus direitos, e incentivar o seu empoderamento e
autonomia”. João Ataíde mostra-se orgulhoso em ressaltar que uma das características
do Projeto é a composição da equipe técnica, no qual todos são quilombolas. Nesse
sentindo, refletiu que “essas comunidades não conhecem como funcionam os marcos
regulatórios, título de domínio coletivo e não conhecem os seus direitos”.
No que se refere ao processo de regularização fundiária de terras quilombolas
observamos que a Constituição do Estado Amapá, promulgada no ano de 1991, não
trouxe no seu texto, o dispositivo equivalente ao art. 68 ADCT13
, de forma que isso,
somente foi juridicamente garantido no nível estadual através da Lei Ordinária nº 1.505
de 23 de julho de 201014
, que define:
Art. 1º. Os procedimentos administrativos para identificação, o
reconhecimento e delimitação, a desintrusão, a demarcação e a titulação da
propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos, de que trata o Art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (CRFB-88), serão procedidos de acordo com o
estabelecido nesta Lei.
Nesse ínterim, outro dispositivo jurídico ligado ao órgão fundiário estadual, no
ano de 2008, se referia à questão quilombola, conforme se observa no Decreto Lei 1.184
de 04 de janeiro de 2008 que dispõe sobre as alterações no Instituto de Terras do Amapá
(TERRAP), tornando-o a partir dali, o Instituto do Meio Ambiente e de Ordenamento
Territorial do Estado do Amapá – IMAP vinculado à Secretaria de Estado de Meio
Ambiente, assim:
Art. 4º Fica criado o fundo de ordenamento territorial e desenvolvimento
Agrário - FDA, gerido pelo Instituto do Meio Ambiente e de Ordenamento
Territorial do Estado do Amapá – IMAP, para aplicação em programas de
12
Entrevista realizada em dia 15 fevereiro de 2014, na cidade de Macapá (AP). 13
Entre o ano de 1991 da promulgação até o ano de 2009, a Constituição Estadual do Amapá contou com
44 Emendas Constitucionais (EC), entre as quais se destaca a EC 35/2006 que acrescenta ao Título VIII -
Da Ordem Social o Capitulo XII – Dos Afro-brasileiros, no intuito de se garantir no texto constitucional a
promoção da igualdade racial e as Politicas Afirmativas e se “promover a correção das distorções e
desigualdades raciais decorrentes do processo de escravidão e das demais práticas discriminatórias
adotadas durante todo o processo de formação social do Brasil”, muito embora não se verifique nenhum
direcionamento específico para a regularização fundiária das terras de quilombo como política pública de
reparação à violência histórica sofrida. 14
Esse instrumento jurídico estadual apresenta-se então em consonância com o disposto pelo Decreto
Federal 4.887/2003.
9
estruturação e fomento à reforma agraria, regularização fundiária e ao
desenvolvimento agrícola, preservação ambiental, projetos quilombolas, de
comunidades locais e desenvolvimento institucional do IMAP.
Em 25 de novembro de 2010, o governador do Amapá, instituiu a Lei 1.519 que
criou o Programa Amapá Afro a ser realizado sob coordenação geral da SEAFRO:
Art. 3º O programa Amapá afro tem a finalidade de programar, no
âmbito do Governo do estado, politicas públicas direcionadas à
redução das desigualdades raciais para população negra e ou
afrodescendentes e quilombola, proporcionando ações exequíveis para
garantir melhoria das condições de vida e a consolidação de seus
direitos constitucionais de cidadãos.
Art. 7º As despesas decorrentes do Programa Amapá AFRO estão
contempladas no Orçamento Estadual e cada órgão empreenderá
esforços para atendimento definido por ato do Poder Executivo.
Assim, o programa se colocara com a finalidade de direcionar as ações dos
diversos órgãos governamentais, como Secretaria de Estado da Cultura (SECULT),
Secretaria Estadual de Educação (SEED), Agencia de Desenvolvimento do Amapá,
Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA) e construir políticas de ações
afirmativas voltadas aos “afrodescendentes” e comunidades quilombolas.
Instituto Municipal de Promoção de Igualdade Racial (IMPROIR)
A capital do estado do Amapá, Macapá, apresenta uma expressiva existência
coletiva constituída por comunidades negro-quilombolas. Segundo o quadro geral de
comunidades quilombolas certificadas pela FCP, entre as 33 comunidades já
certificadas no Amapá, 19 comunidades quilombolas se localizam em Macapá.
Portanto, na esfera municipal do poder público, mediante a Lei Complementar
nº 083/2011 de 06 de outubro de 2011 foi criado o Instituto Municipal de Promoção de
Igualdade Racial (IMPROIR). Segundo seu Regimento Interno, este Instituto constitui-
se enquanto uma “uma autarquia pública, datada de personalidade jurídica e patrimonial
própria, com sede e foro na Capital do Estado do Amapá, Macapá, com o objetivo de
gerir políticas públicas de promoção da igualdade racial no âmbito do Município de
Macapá”15
. Assim no Art. 27 do Regimento Interno do IMPROIR, se estabelece o
Departamento de Promoção da Igualdade Racial com a finalidade de:
I – planejar, coordenar e articular as atividades de proteção, preservação e
promoção da identidade cultural da população afrodescendente e das
15
Durante a pesquisa de campo e percurso nas instituições para levantamento de dados, estivemos no
IMPROIR, onde obtivemos cópia do Regimento Interno, porém, até o momento o Regimento ainda não
foi aprovado pelo prefeito.
10
comunidades dos remanescentes dos quilombos; II – acompanhar projetos
de intervenção em bens móveis e imóveis do patrimônio cultural afro-
brasileiro, com vistas a garantir a preservação de suas características
culturais; III – proceder ao registro das declarações de autodefinição
apresentadas pelas comunidades dos remanescentes dos quilombos e
expedir a respectiva certidão; IV – apoiar e articular ações culturais, sociais
e econômicas com vistas à sustentabilidade das comunidades dos
remanescentes dos quilombos; V – assistir e acompanhar as ações de
regularização fundiária das comunidades dos quilombos certificadas; VI –
propor e apoiar atividades que assegurem a assistência jurídica às
comunidades dos remanescentes dos quilombos, com o apoio jurídico nos
termos do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003.
O IMPROIR é um Instituto ainda em processo de estruturação, mas que tem em
seu regimento propostas que se efetivadas serão fundamentais para alavancar a titulação
das terras de quilombos no Amapá.
Ações de regularização fundiária: mapeamento, certificação e titulação no Amapá
O Relatório de Gestão do Programa Brasil Quilombola (PBQ), com base nos
dados de 2012, aponta a existência de 214 mil famílias, e 1,17 milhão de quilombolas.
Existem 2.197 comunidades reconhecidas, sendo que 2.040 são certificadas pela FCP,
estando 63% delas na região nordeste. São 1.229 processos abertos para titulação de
terras no INCRA, e somente 207 tituladas, ocupando um território de 995,1 mil hectares
que alcançam 12.906 famílias (Relatório, PBQ, 2012).
No último levantamento sistematizado e apresentado em uma planilha de Excel
fornecido pela Seafro, sobre a existência de “comunidades negro-quilombolas”, até o
ano de 2013, identificou-se 85 (oitenta e cinco) “comunidades tradicionais”16
.No
mesmo sentido dessa expressiva existência de comunidades quilombolas que aponta a
Seafro, a Conaq identifica em seu website, a existência de cerca de 70 (setenta)
comunidades quilombolas no estado17
.
O coordenador do Projeto “Seafro Presente com você, Sem Fronteira” nos
explicou que a oralidade, a pesquisa bibliográfica e a construção de banco de dados são
os principais componentes da metodologia de trabalho na busca e sistematização de
informações de campo, e que já conseguiram chegar as 85 comunidades. As categorias
para identificação são: “tradicional quando a pessoa não conhece que é quilombola, pois
ainda não ocorreu a auto-identificação; negro pela pigmentação da pele; e, quilombola
16
Informações obtidas da SEAFRO mediante levantamento preliminar de dados institucionais realizado
em novembro de 2013. 17
Disponível em: http://quilombolasdoamapa.blogspot.com.br/p/relacao-de-comunidades-quilombolas-
do.html Acesso: 08.02.2014.
11
pela auto identificação”.
Segundo João Ataíde, O trabalho do Projeto “Seafro presente com você, sem
fronteira” é iniciar um processo de organização das comunidades para conquistar a sua
certidão junto à Fundação Palmares, o trabalho consiste em reuniões e orientação para
organização da documentação necessária exigida para certificação. O coordenador
lembra que as comunidades de Conceição do Igarapé do Lago do Maracá, Mari,
Joaquina, Fortaleza e Laranjal do Maracá deverão abrigar o primeiro Território
Quilombola do Amapá, estão localizadas na região do Maracá, na divisa dos municípios
de Mazagão e Laranjal do Jari, na região sul do estado. Foi fundada a Associação
Quilombola dos Remanescentes das Comunidades do Igarapé do Lago do Maracá
(AQRCILM), que também representa todas as comunidades do entorno. “A Secretaria
Extraordinária de Políticas para Afrodescendentes (Seafro) acompanha esse processo de
organização coletiva desde o início. Com a entidade formalmente criada, agora a luta é
pela criação do primeiro Território Quilombola oficialmente reconhecido do Amapá”,
afirma Ataide.
A partir de 2008 foi criado mais um condicionante para que as terras de
quilombos fossem tituladas, a apresentação de certificado que tem que ser emitido pela
FCP, que passou a exigir também a apresentação de um relatório sintético da trajetória
comum do grupo e a as visitas técnicas às comunidade (Portaria nº98 de 2007). O que
torna o processo mais lento.
Conforme consulta no site da Fundação Cultural Palmares, existem 33
comunidades quilombolas certificadas, e mais 04 (quatro) que estão com os processos
de certificação em andamento18
. São 23 processos tramitando na Superintendência do
Incra. Quatorze foram abertos há mais de cinco anos. Outros cinco aguardam solução há
uma década.
18
Disponível em: http://www.palmares.gov.br/quilombola/?estado=AP Acesso em: 08.02. 2014.
12
Tabela I - Comunidades Quilombolas no Amapá Certificadas pela Fundação Cultural
Palmares (até out. 2013).
UF MUNICIPIO COMUNIDADE QUILOMBOLA PUBLICAÇÃO NO
DOU
AP Calçoene Cunani 19/04/2005
AP Macapá Lagoa dos Índios 19/08/2005
AP Macapá Conceição do Macacoari 09/11/2005
AP Macapá Mel da Pedreira 09/11/2005
AP Macapá Ilha Redonda 12/05/2006
AP Macapá Rosa 12/05/2006
AP Macapá São José do Mata Fome 12/05/2006
AP Macapá São Pedro dos Bois 12/05/2006
AP Macapá Ambé 07/06/2006
AP Macapá Porto do Abacate 28/07/2006
AP Santana São Raimundo do Pirativa 13/12/2006
AP Oiapoque Kulumbú do Patuazinho 19/11/2009
AP Santana Engenho do Matapí 19/11/2009
AP Macapá Curralinho 24/03/2010
AP Macapá São João do Matapi 24/03/2010
AP Santana Nossa Senhora do Desterro dos Dois
Irmãos 24/03/2010
AP Macapá Ressaca da Pedreira 28/04/2010
AP Macapá Santo Antônio do Matapi 28/04/2010
AP Santana Alto Pirativa 28/04/2010
AP Santana Cinco Chagas 28/04/2010
AP Tartarugalzinho São Tomé do Aporema 28/04/2010
AP Ferreira Gomes Igarapé do Palha 04/11/2010
AP Macapá São José do Matapi do Porto do Céu 04/11/2010
AP Itaubal do Piririm São Miguel do Macacoari 27/12/2010
AP Santana Igarapé do Lago 17/06/2011
AP Macapá Santa Lúzia do Maruanum I 04/10/2011
AP Macapá São João do Maruanum II 04/10/2011
AP Macapá Curiaú (Titulada) 13/03/2013
AP Laranjal do Jari São José 24/05/2013
AP Mazagão Lagoa do Maracá 24/05/2013
AP Vitória do Jari Taperera 24/05/2013
AP Macapá Campina Grande 19/09/2013
AP Macapá Carmo do Maruanum 25/10/2013
Total 33
13
Somente 04 (quatro) comunidades quilombolas foram tituladas: Curiaú (1999);
Conceição do Macacoari (2006); Mel da Pedreira (2007), e mais recentemente, a
comunidade de São Raimundo do Pirativa (2013).
Tabela II- Comunidades tituladas no Amapá
Nome Município Nº de
Famílias
Área há Órgão que expediu o
titulo
Ano
Curiaú Macapá 160 3.321,8931 Fundação Palmares 1999
Conceição do
Macacoari
Macapá 20 8.475,4710 Incra 2006
Mel da Pedreira Macapá 25 2.629,0532 Incra 2007
São Raimundo do
Pirativa
Santana 17 23,4184 Incra – SPU 2013
Fonte: Incra SR 21
INCRA: Regularização fundiária, legislação, fases e entraves
Com base no Decreto 4.887 de 2003, e a Instrução normativa Incra nº 57 de
2009, instrumentos jurídicos básicos, o Incra realiza os procedimentos para titulação de
terras de quilombo. O processo administrativo para regularização do território é iniciado
ex-ofício pelo INCRA ou por requerimento protocolado por qualquer um dos
interessados. O INCRA então deve providenciar uma série de levantamento de dados
(cadastro das famílias quilombolas e não-quilombolas) e estudos (laudo antropológico,
levantamento fundiário e de sobreposições, planta e memorial descritivo, parecer
conclusivo e jurídico etc.) que culminarão na elaboração de um Relatório Técnico de
Delimitação e Identificação do Território - RTID (INCRA, 2014).
Durante os meses de janeiro a fevereiro de 2014, fomos ao SR do Incra para
obter informações de como está a situação e as etapas dos processos das 33
comunidades certificadas. Uma primeira questão que nos chamou atenção ao chegarmos
a sede do Incra em Macapá, foi a precariedade da sala em que fica o setor de
regularização fundiária quilombola, alocado em três pequenas salas, onde se divide a
diretoria, o setor de cartografia e a sala do Programa Brasil Quilombola. Em relação à
equipe, a Superintendência regional do órgão em Macapá é constituída de um
agrônomo, um cientista social e um cartógrafo. Procuramos o funcionário do setor
fundiário do INCRA responsável por terras de quilombo, na única ocasião que
14
conseguimos conversar com o funcionário, solicitamos ter acesso aos RTID e laudos
antropológicos já concluídos. Observamos que os materiais que compõem os RTID,
ainda não estavam digitalizados.
Por meio de um ofício, solicitamos os processos de regularização de cada uma
das comunidades com processos abertos no INCRA. Posteriormente, tivemos acesso ao
RTID de Cunani e o do Rosa, em arquivo digital. O RTID da comunidade do Rosa tinha
sido enviado na integra para Brasília, não houve preocupação de xerocopiá-lo para ficar
na sede do órgão em Macapá, demonstrando uma fragilidade no processo de
arquivamento e organização desse material, o que sem dúvida pode prejudicar o
andamento dos processos que estão tramitando no INCRA. Além disso, os processos
das 33 comunidades ainda não foram digitalizados. A explicação da superintendente do
órgão em uma reunião com as comunidades quilombolas no auditório do INCRA
quando questionamos sobre isso, foi de que Brasília estaria providenciando contratar
uma empresa para realizar a digitalização dos documentos em todo o Brasil.
Solicitamos também dados do georreferenciamento das comunidades
certificadas pela FCP, mas o servidor que detinha esses dados estava de férias. Foi
disponibilizado o shap das comunidades que estão com sua delimitação. Com esses
dados estamos construindo o mapa que pode ser visualizado abaixo. Com os dados de
georreferenciamento de delimitação das terras quilombolas tituladas e com RTID
concluídos fornecidos pelo INCRA, é possível visualizar a composição de um mosaico
quase contiguo de terras quilombolas no município de Macapá. Sendo que as outras 14
comunidades estão espalhadas por mais de dez municípios do Amapá.
15
Mapa 1
16
Fizemos uma revisão dos processos que nos foi disponibilizado para identificar
em que etapa encontrava-se cada comunidade com base na Instrução Normativa INCRA
57/2009, que estabelece os procedimentos para a regularização. No quadro abaixo
apresentamos a situação processual das comunidades das quais obtivemos informações
a partir do quadro demonstrativo disponibilizado pelo SR 21 Incra Amapá.
Quadro I - Síntese do andamento dos processos de regularização de territórios
quilombolas
Laudos Antropológicos realizados RTID Concluídos
Ambé Cunani
São José do Mata Fome Rosa
São Pedro dos bois
Ilha Redonda
São Tomé do Aporema
Fonte: INCRA/SR21/AP
Laudo antropológico
A primeira etapa do processo de titulação são os estudos para identificação dos
limites do território ocupado pela comunidade, que devem ser conduzidos pelas
superintendências regionais do Incra. Em 2008, o Incra tornou o processo mais
burocratizado e vagaroso ao adicionar inúmeros tópicos de pesquisa ao relatório
antropológico que integra o RTID. Dados que foram criticados pela Associação
Brasileira de Antropologia (Carta de Porto Seguro, 2008).
Dentro do RTID, o laudo antropológico tem sido a fase de maior preocupação
dos quilombolas devido a carência de antropólogos para elaborá-los, sendo apontado
como uma das principais razões para que os processos fiquem estagnados. Fomos
informadas que a SR do Incra em Macapá não entrou no pregão para contratar empresas
para realizar os RTID.
Em 2009, uma das iniciativas do Governo do Amapá em efetivar alguma ação
no processo de regularização fundiária ocorreu no âmbito da Agência de
Desenvolvimento do Amapá (ADAP), por meio do Projeto Comunidades Duráveis, que
17
foi resultado de um acordo de empréstimo assinado entre o Governo do Estado do
Amapá e o Banco Mundial, com um montante de U$ 6.454.669, sendo que 4.800.000
provenientes do Banco Mundial, e 1.380.846 do Governo do Estado. Um dos
componentes seria voltado para regularização fundiária de comunidade na viabilidade
de estudos que promovesse isso, explica Gilberto Lima.
O Projeto foi concebido em 2004, pois aguardavam autorização para captar
recursos do Banco Mundial. Após uma busca por profissionais e instituições que
pudessem realizar os laudos, foi firmado um acordo entre a Fundação Marco Zero –
Unifap e o Governo Estadual do Amapá assinado somente em 2009, para elaboração de
relatórios antropológicos das seguintes comunidades: Cunani; Ilha Redonda; São Pedro
dos Bois; São Tomé de Aporema; Engenho do Matapi e São José do Mata Fome. O
investimento para realização dos seis laudos foi de R$ 150 mil reais.
Mobilização quilombola e atuação do MPF
Nessa arena, estão também os movimentos sociais negros e quilombolas que se
mobilizam, muitas vezes junto ao Ministério Publico Federal (MPF) para pressionar o
avanço do processo de regularização de terras quilombolas. Em novembro de 2013
ocorreu uma audiência publica para discutir regularização fundiária de terras de
quilombo. Entre as instituições presentes nessa audiência, estavam: o Instituto do Meio
Ambiente e Ordenamento Territorial do Amapá (IMAP); o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma agrária; a Secretária do Patrimônio da União (SPU), Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Entre os representantes de
comunidades estavam: Maruanum, Lagoa dos Índios, São Pedro dos Bois, Cunani, Ilha
Redonda e a Conaq.
O Ministério Público Federal no Amapá (MPF/AP) propôs na ocasião, o
estabelecimento de uma “força-tarefa” com o envolvimento de todas as instituições
presentes, no intuito de agilizar os tramites dos processos abertos no INCRA referentes
à regularização fundiárias das terras quilombolas. Desde dessa Audiência, de fevereiro a
maio de 2014 os quilombolas, com o direcionamento da Conaq, realizaram inúmeras
mobilizações tanto no Ministério Publico Federal quanto no Incra com intuito
pressionar o processo de regularização fundiária quilombola.
Em maio de 2014, a partir de uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério
Público Federal no Amapá (MPF/AP) em trâmite na 2ª Vara da Justiça Federal em que
se decidiu que as áreas objeto de regularização fundiária quilombola deverão ser
18
averbadas e inscritas no Cartório de Registro de Imóveis. A providência deve ser
tomada pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) e Instituto do Meio
Ambiente e Ordenamento Territorial do Estado do Amapá (Imap) em relação a
processos que tramitam nos órgãos.
O MPF/AP pede também que a União Federal, através do Ministério do
Desenvolvimento Agrário, não realize nenhuma demarcação, por meio do Programa
Terra Legal, em território ocupado por comunidades quilombolas no Estado. Os órgãos
deverão também emitir relatórios de inspeção acerca da precária situação a que estão
submetidas as comunidades quilombolas. É pedida ainda a realização de oficinas nas
comunidades com o objetivo de promover a identidade étnica e cultural, bem como a
reafirmação de direitos da comunidade quilombola.
Na ação, o MPF/AP pede que os órgãos sejam condenados ao pagamento de
R$10 milhões por danos morais coletivos. A indenização deve ser depositada em conta
específica vinculada à Justiça. (Processo 0006890-11.2014.4.01.3100- 2º Vara de
Justiça do Amapá). Essa ação teve origem em inquéritos civis existentes na
Procuradoria da República no Amapá (PR/AP) e em audiência pública realizada pela
instituição em novembro de 2013.
Considerações finais, ou aspectos de uma reflexão implicada.
O Amapá é um dos estados da Amazônia brasileira que se caracteriza pela
expressiva formação territorial constituída através da existência de terras públicas. Além
disso, neste estado se verifica um processo de territorialização étnica objetivado pela
existência social de povos e comunidades quilombolas, mas que ainda precisa ser
compreendido no que se refere à construção de territorialidades específicas, bem como,
a efetivação da regularização fundiária dos territórios tradicionais dessas comunidades
enquanto politicas publica.
Nesse contexto, compreende-se a regularização fundiária de terras quilombolas
enquanto uma política pública decorrente do dever do Estado brasileiro em promover às
comunidades tradicionais quilombolas uma reparação étnico-territorial por toda
violência histórica sofrida no contexto da colonização através da escravidão, e
atualmente, ainda reproduzida pelo racismo vivenciado na sociedade brasileira.
Essa política de reparação aos povos e comunidades tradicionais quilombolas,
mediante as mobilizações sociais histórica do movimento negro e quilombolas, e a
redemocratização do país a partir da década de 1980, possui amparo jurídico com o
19
conceito de cultura consagrado pela Constituição Federal de 1988, e particularmente,
com o Artigo 68 ADCT. Cabe ressaltar ainda, em nível internacional, a Convenção 169
da Organização Internacional do Trabalho da (OIT) que ratificada pelo Brasil19
também
garante os direitos étnico-territoriais desses povos tradicionais.
No que se refere especificamente ao estado do Amapá, existem outros
instrumentos jurídicos como a Lei Ordinária nº 1.505 de 23 de julho de 2010 que tal
qual o Decreto federal 4.887/2003 prevê os procedimentos para a titulação definitiva
das terras de quilombos no Amapá. Somado a isso, se verifica a institucionalização de
setores do poder publico especificamente ligados à questão, ora objetivada pela
existência da SEAFRO e do IMPROIR, respectivamente, abrigados na esfera estadual e
municipal.
Em que pese o forte arcabouço jurídico, a jurisdição pública das terras
compreendidas e estratégica institucionalização das especificidades de políticas públicas
especificas aos povos e comunidades negro-quilombolas no Amapá, a regularização
fundiária não tem ocorrido.
Este cenário amapaense, não foge ao quadro nacional em que se nota a
estagnação dos tramites arrolados no âmbito do processo de regularização fundiária das
terras quilombolas, bem como, o desencadeamento e o acirramento de conflitos sociais.
Em que pese existir uma legislação, as terras estarem quase em sua grande parte na mão
do estado, não existe interesse politico e ocorre um aquecimento no mercado de terras
influência de interesses econômicos externos.
Enquanto obrigação do estado passa por trâmites burocráticos e morosidade
administrativa. A morosidade dos procedimentos administrativos para efetivar essa
politica publica são agravados pelo racismo institucional20
e ficam a mercê de uma de
vontade politica estabelecidas caso sejam antagonistas dos direitos, isso se torna um
grande entrave.
Com a instalação de grandes projetos o que se percebe, por um lado a
regularização fundiária é a possibilidade de garantia do direito, por outro lado nesse
contexto de expansão do agronegócio, de grandes de mineração, de infraestrutura,
projetos imobiliários privados, pressão econômica para disponibilização das terras.
19
O governo brasileiro através do Decreto legislativo n°143 de 20 de junho de 2002 assinado pelo
presidente do senado federal, ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional (OIT) que sobre
Povos Indígenas e Tribais e entre outros aspectos garante a esses Povos Tradicionais o direito a
autodeterminação e ao Território. 20
Sobre racismo institucional ver (Santos 2013)
20
Aquecimento do mercado de terras. Em contexto amazônico “Temos um aquecimento
do mercado de terras e assistimos, em decorrência, um recrudescimento dos conflitos
agrários e dos atos de grilagem principalmente nas regiões amazônicas” (ALMEIDA et
all, 2005, p. 80).
Assim, o estado do Amapá gradativamente e de forma célere ingressa na
conjuntura econômica de expansão de capital de grandes projetos: madeireiras,
hidrelétricas, aumento da demanda por grandes extensões de terra,
O Amapá está mais próximo de começar usar em benefícios para a população
o seu maior patrimônio natural, a floresta. Está previsto para a primeira
quinzena de novembro próximo o lançamento do primeiro edital de
concessões florestais, que vai permitir a exploração madeireira na Floresta
Estadual do Amapá (Flota) – área que corresponde a 16% do território
amapaense.
Subsumido pelo discurso contraditório de se colocar o maior patrimônio a
disposição do mercado. Movimento gradativo do Amapá na conjuntura de avanço do
capital. Esse contexto veicula-se um discurso oficial que contraditoriamente onde se
reconhece um dos maiores patrimônios anunciando sua expressa comercialização. Ao
lado disso, escamotear o efetivo aquecimento formal do mercado de terra diante da
demanda de grandes porções de terra. Acirramento do conflitos intrusamento dos
territórios que teria na regularização uma forma de garantir e proteger os territórios
tradicionais. Uma tendência de demanda para os projetos imobiliários como o caso da
comunidade de Curralinho.
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