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Arte Corpo Tecnologia VFinal Impressao

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Arte Corpo Tecnologia VFinal Impressao

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  • organizadores Monica Tavares Juliana Henno Helena Damlio Alessandra Bochio Aline Antunes

    arte_corpo_tecnologia

  • organizadores Monica Tavares Juliana Henno Helena Damlio Alessandra Bochio Aline Antunes

    primeira edio So Paulo 2014

    arte_corpo_tecnologia

  • Catalogao na PublicaoServio de Biblioteca e DocumentaoEscola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo

    A786t arte_corpo_tecnologia / organizadores Monica Tavares ... [et al.] - So Paulo : ECA/USP, 2014. 284 p.

    ISBN 978-85-7205-122-4

    1. Arte Brasil Sculo 21 2. Arte tecnolgica I. Tavares, Monica

    CDD 21.ed. 709.8105

    All the contents of this book, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

    Todo o contedo deste livro, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Com-mons Atribuio -Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

    Todo el contenido de este libro, excepto donde se indique lo contrario, est bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

    Copyright 2014 by Autores.

    Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio de comuni-cao para uso comercial sem a permisso escrita dos proprietrios dos direitos autorais. A publica-o ou partes dela podem ser reproduzidas para propsito no-comercial na medida em que a origem da publicao, assim como seus autores, seja reconhecida.

  • Sumrio

    Apresentao. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6

    PARTE I O corpo no universo da cincia e da tecnologia: algumas tipologias e reflexes

    Transfiguraes artsticas do corpo tecnolgico . . . . . . . . . . 10 Lucia Santaella

    Tradues do corpo: imagens da cincia nos processos de criao . . . . . . . . . . . . 23 Lucia Leo

    PARTE II O corpo no ambiente do ciberespao: alguns conceitos e experincias

    Percepes e afeies de um corpo telemtico . . . . . . . . . . . . 41 Ivani Santana

    Avatares, agentes e corpo global: corpos no ciberespao . . . 60 Cleomar Rocha e Wagner Bandeira

  • PARTE III O corpo como agente de mediao: alguns estudos de caso

    Heavy Rain: uma jornada paradoxal . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 Aline Antunes

    Interao e narrativas no espao imersivo . . . . . . . . . . . . . . . 108 Helena Damlio

    O mang e as representaes do corpo: o caso de Suppli . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122 Elisabeth Eglem

    A fabricao digital no contexto da criao artstica . . . . . . 146 Juliana Harrison Henno e Monica Tavares

    Consideraes sobre intermdia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165 Alessandra Lucia Bochio

    A potica de Georges Aperghis: uma abordagem sobre a noo de dispositivo artstico . . . . 194 Felipe Merker Castellani

    Entre Arte y Cuerpo: exploracin de la relacin fsica entre el msico y su instrumento . . . . . . . . . . . . . . . . . 232 Bndicte Le Hegarat

  • 6arte_corpo_tecnologia

    APRESENTAO

    As obras de muitos artistas que se aproximam da tecnologia e da cincia apresentam fortemente questes sobre o corpo envolvendo identidade, re-laes com a imagem e a multimdia, objeto representado ou simulado, meios biocibernticos de comunicao, interatividade a distncia. E essas mesmas obras demonstram fascinao ou inquietude diante das mquinas.

    O livro arte_corpo_tecnologia, organizado por Monica Tavares, Ju-liana Henno, Helena Damlio, Alessandra Bochio e Aline Antunes, leva o leitor a apreciar pensamentos que discutem variadas questes, como o corpo no universo da cincia e da tecnologia; o corpo no ambiente do ciberespao e o corpo como agente de mediao.

    Os autores, convidados para refletir sobre esses assuntos, demonstram que arte e tecnologia se complementam, pois so fatores intransferveis de atribuio de sentido para o tema corpo. No cenrio contemporneo, a tecnologia tem sido criticada quando desempenha papis extremamente complexos, s vezes, dbios. Neste livro, entretanto, a tecnologia uma aliada privilegiada do projeto de sensibilizao e tambm de abstrao do universo visual e integra ainda possibilidades de mediao sensorial que surgem como contrapeso tendncia puramente uniformizante e ordena-dora da tecnocincia.

    No incio do sculo 21, como alguns autores aqui colocam, o cor-po, que j estava nos discursos artsticos contemporneos do cinema, vdeo e artes visuais, encontra profundas continuidades com os novos meios de comunicao como internet e outras tecnologias de realidade virtual, multimdia, assim como no modo de se apresentar em instala-es interativas.

  • 7arte_corpo_tecnologia

    Verifica-se que fotografia, cinema, vdeo digitais se tornaram impor-tantes ncleos de aceitao para onde confluem os mais espantosos prod-gios do agenciamento tecnolgico da percepo, mas tambm so lugares privilegiados das maiores problematizaes em torno da explorao, ili-mitada, do tema corpo. Nos vdeos, principalmente, a imagem do corpo funciona como repositrio de dados do real e do imaginrio, e se estende para uma superfcie malevel, se perdendo ou se tornando a prpria in-terface maqunica.

    Corpos extremos, biocibernticos, inumanos, ps-humanos ou super- humanos? Como os artistas traduzem a relao entre arte e tecnologia? Novos corpos so inventados por meios tecnolgicos? Estas so algumas das questes que aqui so discutidas por autores renomados como Lucia Santaella, Lucia Leo, Monica Tavares, Cleomar Rocha, Bndicte le He-garat, Ivani Santana e tambm por jovens pesquisadores como Aline Ca-relli Salgado Antunes, Juliana Henno, Felipe Merker Castellani, Wagner Bandeira, Helena Damlio, entre outros.

    Destaco aqui, para concluir, uma frase de Lucia Santaella citada neste livro, que demonstra a importncia das reflexes tericas acompanhadas das prticas artsticas na consolidao de ideias acadmicas. A autora que batizou de biociberntico o corpo que emergia nas artes, disse que: En-to, j se falava muito no corpo ciborgue, mas, por pura intuio ou por me agradar a alquimia explcita entre o bio e o ciber, optei por essa no-menclatura bem menos popular do que a do ciborgue. Boa leitura!

    Suzete Venturelli1

    1 Suzete Venturelli realizou ps-doutorado na Universidade de So Paulo, Escola de Comunicao e Artes (2013-2014). Concluiu o doutorado em Artes e Cincias da Arte pela Universidade Sorbonne Paris I, em 1988 e o um dos mestrados em Histoire de lArt et Archeologie na Universite Montpellier III -Paul Valery, Frana, em 1981, com a dissertao Candido Portinari: 1903-1962. Graduada em Licenciatura em desenho e plstica pela Universidade Mackenzie em So Paulo. Desde 1986 professora e pesqui-sadora da Universidade de Braslia e desenvolve trabalhos em arte computacional.

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    PARTE IO corpo no universo

    da cincia e da tecnologia: algumas tipologias e reflexes

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    TRANSFIGURAES ARTSTICAS DO CORPO TECNOLGICOLucia Santaella1

    Este artigo segue a forma de um relato do percurso de pesquisas realiza-das pela autora, ao longo dos anos, sobre o tema do corpo, tecnologia e arte. Tem incio com a discusso do corpo biociberntico resultante da hibridao do biolgico com as tecnologias e suas expresses na arte. Es-tende-se, em seguida, para a explicao das possveis razes para a oni-presena do corpo nos discursos da cultura contempornea. Termina com a discusso do papel das artes nas suas antecipaes dessa onipresena, graas sua funo sinalizadora das perplexidades e interrogaes cultu-rais emergentes.

    palavras-chave corpo, tecnologia, arte, biociberntica, transfigurao.

    1 Lucia Santaella pesquisadora I-A do CNPq, professora titular da PUC-SP com dou-toramento em Teoria Literria na PUC-SP em 1973 e Livre-Docncia em Cincias da Comunicao na ECA/USP em 1993. Diretora do CIMID, Centro de Investigao em Mdias Digitais e Coordenadora do Centro de Estudos Peirceanos, na PUC-SP. presidente honorria da Federao Latino-Americana de Semitica e correspondente brasileira da Academia Argentina de Belas Artes, eleita em 2002. Foi Vice-Presidente da Associao Internacional de Estudos Semiticos, 1989-1999. Foi tambm Vice-pre-sidente-2006 e Presidente-2007 da Charles S. Peirce Society, USA. Foi membro asso-ciado do Interdisziplinre Arbeitsgruppe fur Kulturforschung, Universidade-Kassel, 1999-2009. Professora visitante na Frei Universitt-Berlin, 1987, na Universidade de Valencia, 2004, na Universidade de Kassel, 2009 e 2011 e na Universidade de vora, 2010. Fez repetidos estgios de ps-doc (Fullbright, Fapesp, CNPq, Capes, DAAD). Recebeu os prmios Jabuti em 2002, 2009 e 2011, o prmio Sergio Motta, em 2005 e o prmio Luiz Beltro em 2010. Organizou 11 livros e, de sua autoria, publicou 41 livros. Alm dos livros, publicou perto de 300 artigos em livros e revistas especializadas no Brasil e no Exterior.

  • 11arte_corpo_tecnologia

    As relaes entre arte e tecnologia tm ocupado, desde muitos anos, lugar fundamental em meus estudos. Embora venha de uma primeira formao em letras e literatura, fui aluna dos poetas concretos Haroldo de Campos e Dcio Pignatari, graas aos quais passei a ver a literatura na interseco com a msica e as artes. Mais do que isso: graas a uma viso semitica das linguagens, as interseces avanavam tambm para a explorao da possvel potica das comunicaes, cinema, televiso, vdeo, design, che-gando a incluir a publicidade.

    Em Arte & cultura: equvocos do elitismo (Santaella, 1983), luz de Walter Benjamin, procurei me livrar das arraigadas e, na poca, bastante em voga, dissociaes entre forma e contedo, tcnica e criao. Aprendi a ver que os meios de produo e as relaes de produo artstica so interiores prpria arte, configurando suas formas a partir de dentro. As-sim, os meios de produo da arte no so meros aparatos estranhos criao, mas determinantes dos procedimentos de que se vale o processo criador e das formas artsticas que eles possibilitam.

    Trs anos mais tarde, em Convergncias: poesia concreta e tropicalis-mo (1986), voltava a transpirar, entre outras, a preocupao com a arte e a tcnica. O tropicalismo, antropofgico e ps-moderno avant-la-lettre, explodia as fronteiras estritas da msica popular, ao incorporar a tecno-logia da eletricidade e saltar para o mbito semitico da criao. Poesia e msica, canto, fala e dana, corpo, voz, gesto e vestimenta, tudo isso fazia da msica uma festa performtica e ritualstica que, na escultura plstica do corpo vivo, incorporava elementos da mise-en-scne teatral. O corpo estava l, em harmonia com a tcnica, para espanto dos puristas.

    Era difcil no se dar conta do estranhamento da situao, especial-mente do corpo em presena, beirando o inslito. Entretanto, como diz J. L. Borges, somos leitores distrados de atenes parciais. Certamente, no me passou despercebida tal presena corporal, mas no havia ainda soado a hora do corpo na cena de minhas preocupaes. Isso veio mais tarde.

  • 12Transfiguraes artsticas do corpo tecnolgico

    Foi em meados dos anos 1990 que, impulsionada pela proximidade com a pesquisa e os trabalhos de criao da artista Diana Domingues, ento minha orientanda de doutorado, a questo do corpo como que ar-rombou a porta de minhas inquietaes. Inseparvel de sua relao com as tecnologias, o tema do corpo estava, na poca, fervilhando nos escritos e debates de tericos, crticos e artistas internacionais de ponta. Absorvida nessa literatura e atrada pelas obras que estavam sendo produzidas nesse campo, em 1998, em artigo publicado na revista Margens, dei incio a uma srie de publicaes subsequentes nas quais passei a discutir as variadas facetas implicadas nas relaes entre arte, corpo e tecnologia.

    O corpo biociberntico

    De sada, batizei de biociberntico o corpo que emergia nas artes. Ento, j se falava muito no corpo ciborgue, mas, por pura intuio ou por me agradar a alquimia explcita entre o bio e o ciber, optei por essa nomencla-tura bem menos popular do que a do ciborgue. Alguns anos mais tarde, no livro Culturas e artes do ps-humano (2003, pp. 181-208), dei-me conta do papel que a transformao tecnolgica do corpo estava desempenhan-do para a emergncia do ps-humano, este entendido no s como re-sultado dessas transformaes, mas, sobretudo, como desconstruo das certezas ontolgicas e metafsicas implicadas nas tradicionais categorias, geralmente dicotmicas, de sujeito, subjetividade e identidade subjacentes s concepes humanistas que alimentaram a filosofia e as cincias do homem nos ltimos sculos.

    No captulo desse mesmo livro, em que retomei o tema do corpo bio-ciberntico na perspectiva das artes, estabeleci uma classificao das mo-dalidades de cibernetizao do corpo em 7 tipos e 5 sub-tipos, a saber:

    a) O corpo remodelado: este visa manipulao esttica da superfcie do corpo. Trata-se do corpo construdo com tcnicas de aprimoramento fsico.

  • 13arte_corpo_tecnologia

    b) O corpo prottico: o corpo ciborgue, hbrido, corrigido e expandido atravs de prteses, construes artificiais, como substituto ou ampli-ficao de funes orgnicas.

    c) O corpo esquadrinhado: este se refere ao corpo colocado sob a vigiln-cia das mquinas para diagnstico mdico.

    d) O corpo plugado: o corpo dos ciborgues interfaceados no ciberes-pao. So os usurios que se movem no ciberespao enquanto seus corpos ficam plugados no computador para a entrada e sada de fluxos de informao. Este tipo de corpo apresenta vrios subnveis:

    d1) A imerso por conexo: neste subtipo, o corpo fica plugado no computador, enquanto, por meio do acionamento dos sentidos, viso e tato especialmente, a mente navega atravs de conexes hipertextuais e hipermiditicas, tanto nos interiores dos DVDs quanto nas redes.

    d2) A imerso atravs de avatares: o corpo do cibernauta que, no ambiente virtual, pode selecionar e incorporar um avatar para se mover em ambientes bi ou tridimensionais, encontrar outros ava-tares, comunicar-se com eles.

    d3) A imerso hbrida: trata-se da imerso que, atravs de sistemas in-terativos, designs de interface, visualizaes em 3D, mistura paisa-gens geogrficas ou corpos carnais com paisagens e corpos ciber.

    d4) A telepresena: esta se refere a experincias de presena e ao distncia que, por meio de programas computacionais e robti-cos, exploram a ubiquidade e a simultaneidade.

    d5) Os ambientes virtuais: o nvel mais profundo de imerso aquele que se d nos ambientes virtuais, um sinnimo para realidade virtual.

    e) O corpo simulado: este se reporta ao corpo feito de algoritmos, de tiras de nmeros, um corpo completamente desencarnado.

  • 14

    f) O corpo digitalizado: este tipo de corpo se refere ao projeto The vi-sible human, um plano de muitos anos da NLM (National Library of Medicine, USA), que criou, a partir de dois cadveres doados para esse fim, representaes tridimensionais, completas, anatomicamente detalhadas dos corpos humanos, masculino e feminino.

    g) O corpo molecular: este corpo tem estado no centro das atenes des-de que a decifrao do sumrio bsico do genoma humano foi posta a pblico. Pelas tcnicas da bioengenharia e engenharia gentica, as manipulaes do material gentico podem ir desde as experincias transgnicas at a clonagem do ser humano.

    Pouco tempo depois (2004, p. 100), explicitei que fui levada a essa classificao dos corpos biocibernticos no apenas por meio da observa-o dos processos em curso no ciberespao, mas tambm pela convivncia com trabalhos de artistas. Isso veio trazer munio para a hiptese, que pas-sei a perseguir, de que os artistas cumprem o papel fundamental de moldar as tecnologias ao projeto evolutivo da sensibilidade humana. Tanto isso verdade que o texto em que desenvolvi esses tipos e subtipos de corpos est recheado de exemplos de obras de artistas que se enquadram com justeza em cada uma das modalidades.

    Ainda em 2004 (p. 53-55), depois de ter maturado as ideias na escrita de Culturas e artes do ps-humano (ibid.), consegui enunciar explicaes mais racionais para a escolha do biociberntico em lugar de ciborgue. Na verdade, nunca dissociei os sentidos de biociberntico e de ciborgue. Este ltimo nasceu da juno de cyb(ernetic)+org(anism), cib(ernti-co)+org(anismo). Entretanto, tenho preferido o termo biociberntico, de um lado, porque bio apresenta significados mais abrangentes do que org, de outro lado, porque biociberntico expe a hibridao do bio-lgico e do ciberntico de maneira mais explcita, alm de que no est culturalmente to sobrecarregado quanto ciborgue com as conotaes triunfalistas ou sombrias do imaginrio flmico e televisivo.

    As simbioses do corpo com as tecnologias tornaram-se to evidentes que o vocabulrio para se referir a elas no tem se limitado ao ciborgue, mas

    Transfiguraes artsticas do corpo tecnolgico

  • 15arte_corpo_tecnologia

    apresentado uma variao de sinnimos que buscam todos eles referenciar o mesmo fenmeno hbrido entre o biolgico e o artificial, entre o carbono e o silcio, tais como: corpo prottico, ps-orgnico, ps-biolgico e ps-hu-mano. Embora a palavra prtese seja bem funcional para caracterizar as extenses tecnolgicas do corpo, o significado dessa palavra ficou muito co-lado ao aspecto visvel das extenses, ideia que, desde o princpio, procurei evitar, tendo em vista o fato de que a tendncia das extenses tecnolgicas do corpo a de aderir nossa fisicalidade at o ponto de habitar nossos interiores, tornando-se invisveis e mesmo imperceptveis.

    A histria dos aparatos computacionais funciona como uma evidn-cia exemplar dessa tendncia imperceptibilidade at o extremo da invisi-bilidade. No incio, os computadores eram enormes com interfaces muito pouco amigveis. Logo depois, entraram em nossas casas sob a forma dos PCs com os suplementos de visualizao e de interao, o monitor e o mouse. No passou muito tempo para que o tamanho dos computado-res diminusse trazendo consigo a portabilidade dos laptops. Hoje, os ta-blets e os smartphones, com sua miniaturizao e suas interfaces de toque funcionam como demonstraes eloquentes de que eles provavelmente tambm devero ceder passagem para os ambientes inteligentes e para a internet das coisas que j est comeando a pingar em nossas vidas. Ento, as tecnologias j estaro de tal forma naturalizadas, ou seja, adaptadas ao humano e vice-versa, que a hibridao entre o bio e o ciber nem ser mais percebida.

    Nessa mesma poca (2004, p. 53-64), em meio profuso de aspectos que as complementaridades, interfaces e hibridizaes do corpo com as tecnologias apresentam, estabeleci trs vetores na relao entre corpo e tecnologia:

    a) O vetor de dentro para fora do corpo. Este se refere s conexes permiti-das por servios informticos telecomunicacionais, acessveis por meio de um enxame de dispositivos que vo desde os computadores port-teis, telefones celulares, pagers, i-pads etc. at a telepresena, realidade

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    virtual, aumentada etc. Tais dispositivos possibilitam ir alm dos limi-tes espao-temporais do corpo fsico.

    b) O segundo intersticial, quer dizer, exibe-se na aparncia do corpo, localizando-se entre fora e dentro. So as tcnicas de body building e body modification pelo emprego de drogas, anabolizantes, cirurgias plsticas.

    c) O terceiro vem de fora do corpo para dentro dele. Trata-se dos im-plantes e prteses que pretendem corrigir funes orgnicas avaria-das, ou ampli-las, transform-las e at mesmo criar novas funes.

    Rompendo, como se pode ver, todas as fronteiras entre dentro e fora, natural e tcnico, seleo natural e seleo artificial, no de se estranhar que o corpo, na multiplicidade de facetas e dimenses que apresenta, te-nha se convertido em um dos grandes temas da cultura.

    A centralidade do corpo nos discursos da cultura

    Foi a partir da obra de Nizia Villaa (1999); Villaa e Ges (1998, 2001) uma das maiores especialistas brasileiras na problemtica cultural, filo-sfica e poltica do corpo, que passei a enxergar o corpo como foco de in-dagaes e contestaes para o qual converge grande parte dos discursos culturais. Em funo disso, busquei explorar as possveis determinaes socioculturais e psquicas que levaram a esse estado de coisas. Levantei e discuti cinco dessas determinaes, como se segue.

    a) As feridas narcsicas que as descobertas freudianas provocaram ao diagnosticar as desordens identificatrias que constituem o eu, do qual a imagem corporal, sempre fragmentada, inseparvel.

    b) A espetacularizao do mundo provocada, entre outras coisas, pela proliferao de imagens, pela multiplicao crescente e assoberbante das imagens do corpo nas mdias. Vem da o poder que a glorificao

    Transfiguraes artsticas do corpo tecnolgico

  • 17arte_corpo_tecnologia

    e exibio do corpo humano passaram a assumir no mundo contem-porneo, poder que efetivado por meio das mais diversas formas de estimulao e exaltao do corpo.

    c) Os avanos da biologia, em especial da biotecnologia e do biopoder, que transformaram a questo da vida em um problema enroscado em ambiguidades, ambivalncias e contradies.

    d) As mquinas exploratrias para o diagnstico mdico. Ao mesmo tempo em que trazem um bem para a sade, elas so excessivamente reais, colocam em exposio o real nu e cru da carne. Cobram, por isso, um preo psquico: a leso que causam no imaginrio do corpo e nas fantasias a respeito da aparncia corporal.

    e) As inquietaes provocadas pelos processos de corporificao, des-corporificao e recorporificao propiciados pelas tecnologias do virtual e pelas emergentes simbioses entre o corpo e os dispositivos tecnolgicos (ver Santaella, 2010, p. 213-218).

    Longe de estar margem dos discursos sobre o corpo, a arte, ao con-trrio, a esfera da cultura que toma a dianteira fazendo emergir comple-xidades at ento insuspeitadas e que as teorias e crticas das artes buscam deslindar. Conforme j ocorreu em outros perodos da histria, quando a realidade humana colocada em questo, so os artistas que se lanam frente, desbravando os novos territrios da sensibilidade e imaginao.

    O corpo como suporte e condio da arte

    Ora, se o corpo, de fato, se tornou um tema magno da cultura contempo-rnea e se o artista, de fato, a antena da raa, ento, a questo do corpo deveria estar presente na arte bem antes da emergncia ostensiva do corpo biociberntico. Walter Benjamin escreveu que o presente mirante privi-legiado para enxergar o passado. Em vez de pensar o presente a partir do

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    passado, tomar o presente como ponto de vista para o passado. Eis a lio. Empreendi, portanto, uma jornada a contrapelo. No teve erro.

    Por todo o sculo 20, desde as vanguardas estticas, o corpo foi cada vez mais se tornando suporte e condio da arte. De objeto representado, o corpo do artista passou a ser o sujeito e objeto do seu trabalho. Ao mes-mo tempo, foram crescendo exponencialmente tanto os nmeros quanto as variaes de tendncias dos trabalhos que exploram o prprio corpo do artista como fonte material primria de suas obras. Dentre as diferentes face-tas apresentadas pela arte do sculo 20, essas tendncias se constituram em uma faceta que tenho chamado de transgressoramente dionisaca. So elas que exploraram a fundo as relaes entre arte e vida, arte e acontecimento em eventos performticos, que se expandiram nas artes do gesto contesta-trio, das instalaes, da body arte e da emergncia notvel das cruzadas femininas na arte (Santaella, 2003, p. 251-270).

    Realmente, nada pode ser comparvel crescente centralidade do corpo nas artes a partir das vanguardas estticas no incio do sculo pas-sado. Alm de onipresente, no decorrer do sculo 20 at hoje, o corpo foi deixando de ser uma representao, um mero contedo das artes, para ir se tornando cada vez mais uma questo, um problema que a arte vem explorando sob uma multiplicidade de aspectos e dimenses que colo-cam em evidncia a impressionante plasticidade e polimorfismo do corpo humano. o corpo como algo vivo, na sua vulnerabilidade, seu estar no mundo, suas transfiguraes, que passou a ser interrogado.

    Quer os artistas estivessem trabalhando ou no com dispositivos tecno-lgicos, o corpo foi se tornando objeto nuclear das artes porque as mutaes pelas quais o corpo vem passando produzem inquietaes que se incorpo-ram ao imaginrio cultural. Mesmo que essas mutaes no sejam imedia-tamente visveis e mesmo que as inquietaes no sejam conscientemen-te apreendidas, elas tm estado no cerne da cultura h algum tempo. Um indcio disso encontra-se muito justamente nas artes, pois so os artistas que sabem dar forma a interrogaes humanas que as outras linguagens da cultura ainda no puderam claramente explicitar (Santaella, 2004, p. 65-78).

    Transfiguraes artsticas do corpo tecnolgico

  • 19arte_corpo_tecnologia

    Entretanto, preciso reconhecer, algo que agora fao, que as simbioses da arte com a tecnologia no tiveram incio apenas no sculo 20. Devem existir embries anteriores, pelo menos desde a irrupo da revoluo in-dustrial que comeou a povoar de mquinas a realidade cotidiana da vida social, s quais os artistas, dotados de uma sensibilidade sismogrfica, no podiam estar alheios.

    Embries da arte e tecnologia no sculo 19

    Antes do sculo 19, predominava a viso do corpo como mquina, uma ideia originria de Descartes. Para ele, h duas espcies de substncia: a pensante, res cogitans, coisa que pensa cuja natureza espiritual. Portanto, o pensamento vem do esprito. A outra substncia externa, res extensa, cuja natureza material: o corpo. Este age como mquina e funciona maneira de toda realidade fsica restante, de acordo com leis universais que a cincia tem por tarefa estudar.

    Com a entrada da revoluo industrial, essa ideia do corpo-mquina foi colocada em crise. J Edgar Allan Poe, fascinado pelas transformaes que a cincia estava trazendo para as concepes do corpo, explorou o modo como o entendimento dos processos da vida tornam a integrida-de do corpo uma quimera, borrando as distines entre vida e morte. A cincia do seu tempo lhe demonstrava que a vida no unitria, mas uma coleo de processos inter-relacionados, e a morte, uma srie de mo-mentos que se aplicam a diferentes sistemas: respirao, batida cardaca, controle nervoso, conscincia. Isso explica a obsesso de Poe por rgos desconjuntados e personagens enterradas vivas. Em seus contos, o corpo pode at estar separado de si mesmo. Seus duplos so, nesse sentido, pros-tticos, eus distribudos em corpos distintos (Armstrong, 1998, p. 91).

    H certo consenso na considerao de que foram quatro os grandes inventos tecnolgicos do sculo 19 que apenas semearam o terreno para o advento de uma srie ininterrupta de descobertas do sculo 20 at o incio

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    do 21. So eles: a eletricidade, a telefonia, a locomotiva e a fotografia. Es-ses inventos so inseparveis do dilogo direto com a cincia. Assim, no haveria Thomas Edison sem Michael Faraday e Joseph Henry. Tambm no haveria o telefone de Alexander Graham Bell se ele no contasse com as pesquisas de Hermann von Helmholtz, assim como Heinrich Rudolf Hertz e James Clerk Maxwell esto na base do sistema de telegrafia de Marconi.

    No que diz respeito arte, antes da luz eltrica os teatros opersticos eram iluminados a gs. Seus pontos de luz foram, ento, reconstrudos para abrigar as lmpadas eltricas que provocaram grandes mudanas no estilo e na esttica da iluminao teatral. Com respeito ao imaginrio cor-poral, entretanto, nada pode ser comparado mquina a vapor.

    Por analogia com a mquina a vapor e a eletricidade, o corpo foi re-conceitualizado como um motor. O grande emblema da revoluo indus-trial foi, sem dvida, a mquina a vapor que converte a energia qumi-ca do carbono em energia cintica e, finalmente, em trabalho mecnico. Qualquer motor tem seu impulso em alguma energia no mecnica e um output em um trabalho mecnico (Marcus, 1997, p. 19). Por analogia, o corpo era visto como um glorioso motor de aquecimento, queimando algum tipo de combustvel em vez do glicognio dos msculos humanos.

    A ideia do corpo como mquina mecnica, infelizmente, perdura at hoje no imaginrio coletivo, quando se apresenta qualquer tipo de simbio-se entre corpo e tecnologia. Digo infelizmente porque, h um bom tem-po, as mquinas deixaram de ser estritamente mecnicas, gerando agora simbioses inconsteis com o corpo. Entretanto, cegamente, persistem os preconceitos prprios do mecanicismo em relao a quaisquer tipos de laos entre corpo e mquina, o que tambm afeta os julgamentos relativos ao trinmio arte-corpo-tecnologia.

    Tais preconceitos j remontam aos experimentos com o uso de mlti-plas cmeras para captar o movimento, levados a cabo no final do sculo 19, por Muybridge e outros, experimentos que se realizaram pela equali-zao das energias do corpo na sua relao com o aparato industrial. Do

    Transfiguraes artsticas do corpo tecnolgico

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    mesmo modo foi incompreendida, e muitas vezes at hoje mal compreen-dida, a celebrao do corpo mecanizado, ou do corpo ligado mquina no modernismo. No por acaso que se levou tanto tempo para a fotografia e outras artes maqunicas serem aceitas no panteo das artes, apesar da nfase nas teorias sobre a extenso dos rgos e suas produes nas artes de vanguarda. De l para c, entretanto, o redemoinho tecnolgico no cessa de girar e desse redemoinho os artistas ousados no temem tomar a parte inquietante que lhes cabe.

    Referncias bibliogrficas

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    Transfiguraes artsticas do corpo tecnolgico

  • TRADUES DO CORPO: IMAGENS DA CINCIA NOS PROCESSOS DE CRIAO Lucia Leo 1

    Fontes de inesgotvel fascnio, as imagens corporais cientficas circulam em abundncia na cultura e no imaginrio contemporneo. Advindas de diferentes tecnologias de visualizao (desenho, pintura, fotografia, raio X, ultrassom, tomografia, ressonncia magntica, entre outros) essas ima-gens povoam os imaginrios miditicos. Nesse contexto, o objetivo do presente artigo promover uma reflexo crtica a respeito de processos criativos que operam com imagens que retratam o corpo humano nas cincias. Partimos do pressuposto de que toda e qualquer imagem cien-tfica fruto de uma srie de mediaes. O artigo inicia apresentando o contexto da produo e circulao de imagens corporais cientficas na cul-tura e, em seguida, prope uma categoria trplice de processos de criao.

    palavras-chave processos de criao nas mdias; arte, cincia e tecnologia; corpo; imagem de corpo; imaginrio.

    1 Lucia Leo professora do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Semitica da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. autora de vrios livros, entre eles: O labirinto da hipermdia e O chip e o caleidoscpio. Ps-Doutora em Artes pela UNI-CAMP. Doutora em Comunicao e Semitica pela PUC-SP. [email protected].

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    Looking into a body and mapping its organic details is never an innocent act; a scan may confront people with ambiguous information, haunting dilemmas, or uncomfortable choices. This predicament, including its ethical, legal, and social implications, does not simply arise as a consequence of new medical imaging tech, but it is intrinsic to their very development and implementation.(Van Dick, 2005, p. 8). 2

    Introduo

    As imagens cientficas que desvelam universos do corpo humano so cada vez mais presentes nos fluxos informativos da cultura e imaginrio con-temporneos. No presente artigo, compreendemos imaginrio no sentido proposto por Gilbert Durand, ou seja, o conjunto das imagens e das rela-es de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens (1998 p. 14).

    Figuras fascinantes e complexas, essas imagens so encontradas em filmes de fico, documentrios, programas de televiso, seriados, jornais, revistas e mdias impressas, isso sem mencionar os arquivos digitais e programas de compartilhamento de imagens na Internet. Nesse contexto, exposies grandiosas revelam partes da anatomia humana e viajam por pases de todo o globo, atraindo milhares de visitantes, so exemplos que no podem passar despercebidos. As sries de exposies Bodyworlds apresentam cadveres de corpos humanos preservados atravs do mto-do de plastinao desenvolvido pelo mdico alemo Gunther von Hagens (www.plastination.com). Nessa tcnica, os corpos passam por processos

    2 Olhar para um corpo e mapear os seus detalhes orgnicos nunca um ato inocente; uma varredura pode confrontar pessoas com informaes ambguas, dilemas obsessi-vos, ou escolhas desconfortveis. Esse impasse, incluindo suas implicaes ticas, legais e sociais, no surgem simplesmente como consequncia dos novos aparatos mdicos de imagem, mas intrnseco a seu prprio desenvolvimento e implementao. (traduo nossa).

    Tradues do corpo: imagens da cincia nos processos de criao

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    de remoo de lquidos e gorduras e, em seguida, so introduzidas subs-tncias plsticas como silicone e polister. Com isso, possvel manter a cor original dos tecidos e impedir a putrefao e seus odores tpicos. Extremamente polmicas, as peas criadas por von Hagens dialogam com obras de arte bastante conhecidas como So Bartolomeu, de Michelan-gelo, O Pensador, de Rodin, Vnus de Milo com Gavetas, de Salvador Dal e Os Prottipos do Movimento no Espao, de Umberto Boccioni. Tambm utilizando a tcnica de plastinao, porm adotando uma pers-pectiva diferente, a srie de exposies Bodies The Exhibition busca priorizar os aspectos cientficos dos corpos e rgos apresentados.

    A produo de imagens da anatomia interna do corpo humano, em seu percurso histrico, inicia-se com desenhos e pinturas realizados a partir de observao direta. O museu iconolgico de imagens produzidas nessas linguagens guarda exemplos clssicos com as ilustraes de Car-ter para o livro de anatomia de Gray e os estudos cerebrais de Ramn y Cajal. Embora catalogadas enquanto imagens tcnicas, visto que, em seu contexto histrico, estavam inseridas em pesquisas cujo principal objeti-vo era produzir informaes cientficas, essas imagens carregam qualida-des pictricas inegveis. Alm disso, importante ter em mente que essas mesmas qualidades visuais foram vitais para a compreenso dos objetos analisados.

    Com a inveno de tecnologias de produo e reproduo de imagens, como fotografia, cinema e raio X, ocorrida no sculo XIX, discursos a respeito de possibilidades visuais associadas a uma visibilidade mecni-ca emergem. Alm disso, a utilizao do raio X permitiu mudanas na maneira de acesso a partes internas do corpo. Em O corpo transparente, Van Dijck (2005) desenvolve uma anlise cultural das imagens cientficas do corpo humano. Em seu estudo, a professora de mdias comparadas da Universidade de Amsterd discute as implicaes que decorrem do fato de as imagens mdicas terem se tornado parte da textura da vida social contempornea. Van Dijck, em seu percurso histrico, apresenta, por exemplo, como a inveno do raio X impactou os imaginrios miditicos

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    da poca. Com o advento das tecnologias digitais e novos sistemas de vi-sualizao de dados, a produo de imagens anatmicas assume propor-es gigantescas e alguns dos impactos na cultura podem ser observados nos discursos do cotidiano.

    cones do imaginrio biomdico, essas poderosas figuras aparecem atualmente em grandes exposies com curadorias multidisciplinares e buscam revelar as intrincadas relaes entre cincia e arte. A mostra organizada por Martin Kemp e Marina Wallace, Spectacular Bodies: The Art And Science of the Human Body From Leonardo to Now, presente na Hayward Gallery de Londres, em 2000, e publicada em livro poste-riormente, um exemplo de destaque. A ideia do projeto foi relacionar elementos da cultura visual mdica com trabalhos artsticos e reuniu mais de 300 objetos entre modelos de cera, instrumentos cirrgicos e obras de arte clssicas de Durer, Leonardo, Michelangelo, Stubbs, Rembrandt, Hogarth, Courbet, Gricault e Degas. Entre os artistas contemporneos, a curadoria selecionou Bill Viola, Tony Oursler, Gerhard Lang, Christine Borland, e Marc Quinn.

    Partimos do pressuposto de que existem relaes entre a criao po-tica e a criao cientfica. Para Vilm Flusser, por exemplo, existem para-lelos entre a criao das teorias cientficas e a criao artstica medida que o novo criado ao se abrir o velho para o ainda no articulado. Toda criao cientfica obra de arte, toda criao artstica articulao de conhecimento (Flusser, 1998, p. 175).

    Nesse contexto, o objetivo do presente artigo promover uma refle-xo crtica a respeito de processos criativos que operam com imagens do corpo humano nas cincias. Originrias do campo biomdico, as imagens cientficas se introduzem em variados campos da vida social e suas tradu-es reverberam em discursos da cultura, polticas pblicas e instituies jurdicas, entre outros. importante esclarecer que o conceito de tra-duo adotado acompanha o pensamento desenvolvido por Haroldo de Campos que afirma os potenciais crticos e poticos do ato de traduzir (Campos, 1992). A perspectiva analtica escolhida est fundamentada na

    Tradues do corpo: imagens da cincia nos processos de criao

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    teoria dos processos de criao (Salles, 2006; Leo e Salles, 2011) e busca organizar procedimentos criativos em categorias. Os processos criativos so investigados enquanto sistemas complexos, em permanente trans-formao e em rede com as caractersticas da poca (Salles, 2006). Vale ressaltar que as categorias propostas no so territrios estanques, mas, ao contrrio, so cartografias que organizam lgicas operacionais e nos ajudam a compreender as riquezas que permeiam os processos em redes.

    Contextos e imaginrios miditicos

    As imagens do interior do corpo humano pululam em diferentes con-textos contemporneos. Maos de cigarro carregam em suas embalagens imagens de pulmes doentes e adotam essa estratgia com a desculpa de que as imagens fazem parte das recomendaes da sade. Inscritas em um discurso da medicina preventiva, essas campanhas defendem que as ima-gens funcionam para alertar sobre as possveis consequncias do uso da nicotina. Por outro lado, produtos de beleza adotam discursos cientfi-cos e incluem em suas campanhas publicitrias imagens da epiderme ou dos cabelos, em geral mostrando as transformaes que o produto pode gerar. Em diversos pases, imagens de fgados doentes presentes em gar-rafas de bebidas alcolicas aparecem acompanhadas de recomendaes como as frases: Consumir com moderao. O abuso desse produto pode gerar doenas.

    As imagens anatmicas tambm se fazem presentes em outros espa-os miditicos e so consumidas nos realities shows de televiso que tra-tam de doenas, nos blogs e vdeos da Internet, nas redes sociais, entre outros. Em algumas dessas redes sociais, as pessoas no s conversam sobre suas doenas, mas tambm publicam as imagens resultantes de seus exames mdicos. Ser que estamos refletindo a respeito desse tipo de inscrio nos imaginrios miditicos? Lembrando Foucault, bom ter sempre em mente que para cada um desses discursos uma lgica institucional exercida.

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    No caso especfico das imagens do crebro, grandes projetos com metas ambiciosas so responsveis por uma gigantesca produo de dados. Nos seus movimentos, imagens impactantes passeiam por blogs, listas de dis-cusso, e redes de compartilhamento como Instagram, Flickr e YouTube. Incorporadas em discursos do universo pop, as neuroimagens se traduzem e visitam diferentes contextos: capas de discos3, estamparias e papel de pa-rede. Na Internet possvel encontrar vrios tipos de Atlas do Crebro Hu-mano, com diferentes imagens e sistemas de visualizao. Entre eles, des-catam-se: The Human Brain Atlas da Michigan State University (https://www.msu.edu/~brains/brains/human/ ); The Atlas of the Human Brain (http://www.thehumanbrain.info/); The Whole Brain Atlas - Harvard Medical School (www.med.harvard.edu/aanlib/home.html) e o Atlas inte-rativo do Allen Institute for Brain Science (http://human.brain-map.org) que oferece uma representao tridimensional da neuro-anatomia e das ati-vidades bioqumicas dos genes. Projetos de divulgao cientfica vinculados a grandes instituies de pesquisa tambm oferecem uma grande gama de informaes sobre o crebro, neuro-imagem e neurocincia. O Blog Brain facts, (http://blog.brainfacts.org/), por exemplo, uma iniciativa da Society of Neuroscience dos Estados Unidos. The Human Brain Project, projeto que rene vrias instituies de pesquisa da Unio Europeia, busca criar um modelo que simule o comportamento de um crebro humano com ob-jetivo de entender seu funcionamento. Do seu banco de dados online, figu-ras que remetem a abstraes coloridas desvendam intrincadas linhas que compem as paisagens cerebrais. Tambm com objetivo de visualizar a ati-vidade cerebral, The Brain Initiative: brain research through advancing in-novative neurotechnologies, tambm conhecido como Brain Activity Map Project rene grandes centros de pesquisas norte-americanos e conta com o apoio federal (NSF, National Science Foundation). Recentemente, foi lan-ado o Understanding the Brain, um portal que ir divulgar os resultados das pesquisas financiadas pelo NSF. Outro projeto notvel, o Human Con-nectome Project, dos EUA, tem por objetivo mapear o funcionamento de todos os neurnios do crebro. E, finalmente, podemos citar o livro Por-

    3 Ver, por exemplo, a utilizao da neuroimagem na capa do disco da banda inglesa de rock alternativo Muse, The 2nd Law, de 2012.

    Tradues do corpo: imagens da cincia nos processos de criao

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    traits of the Mind: Visualizing the Brain from Antiquity to the 21st Century organizado por Carl Schoonover. O projeto apresenta diferentes conjuntos de tcnicas de estudos e representaes do crebro e disponibiliza vrias das imagens em seu website.

    Nossa percepo do corpo e dos rgos vitais cotidianamente bom-bardeada por discursos que se dizem neutros e objetivos, mas, que sabe-mos, no so. Nesse sentido, podemos retomar uma afirmao de Michel Serres: o nico mito puro a ideia de uma cincia purificada de qualquer mito (1974). Ou seja, a ideia de uma cincia objetiva, neutra, desprovida de razes obscuras uma grande iluso. Mas, embora saibamos disso, a maneira como as imagens se inscrevem nos imaginrios miditicos to prevalente que, muitas vezes, no temos o tempo e a distncia necessrios para uma anlise de suas implicaes. Assim, muitas dessas imagens so decodificadas como objetivas. Como afirma Haraway, no existe cmera passiva ou fotografia no mediada:

    There is no unmediated photograph or passive camera obscura in scientific accounts of bodies and machines; there are only highly specific visual possibilities, each with a wonderfully detailed, active, partial way of organizing worlds. All these pictures of the world should not be allegories of infinite mobility and interchangeability, but of elaborate specificity and difference and the loving care people might take to learn how to see faithfully from anothers point of view, even when the other is our own machine.(Haraway, 1991).4

    Em suma, retomando o que j afirmamos anteriormente, com o ob-jetivo de promover uma reflexo crtica a respeito de processos criativos

    4 No existe fotografia que no seja mediada ou cmera escura passiva nos estudos cien-tficos de corpos e mquinas; h apenas possibilidades visuais altamente especficas, cada uma com uma maneira maravilhosamente detalhada, ativa, parcial de organizar mundos. Todas essas imagens do mundo no devem ser entendidas como alegorias de mobilidade infinita e permutabilidade, mas de especificidade elaborada e diferena e a dedicao apaixonada de pessoas para aprender a ver com fidelidade a partir de outro ponto de vista, mesmo quando o outro modo aquele da nossa prpria mquina. (tra-duo nossa).

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    que operam com imagens das cincias, veremos trabalhos criativos que buscam uma perspectiva crtica ao adentrar nos complexos discursos dos imaginrios miditicos.

    Dilogos entre imagens da cincia e investigaes poticas

    Inmeros trabalhos criativos buscam na cincia fonte de imaginao po-tica. A natureza dos dilogos e os modos de aproximao, no entanto, so complexos e no se reduzem a um nico tipo de abordagem. Vejamos agora uma possvel cartografia das pulses que orientam as aproximaes. importante dizer que esse artigo est inserido dentro de uma pesquisa que desenvolvemos a respeito dos processos de criao e que, segundo nossa leitura, alguns desses processos trabalham com procedimentos l-gicos de traduo e remixagem (Leo, 2011).

    A princpio, propomos trs diferentes tipos de intenes que im-pulsionam os procedimentos poticos. Pensamos nessas pulses como aglutinadoras de processos criativos e como sistemas organizadores das relaes dialgicas. Para cada categoria que conseguimos vislumbrar, escolhemos trazer imagens e processos. Assim, podemos falar em trs grupos que, de acordo com seus mtodos e processos, compartilham similaridades. importante destacar que independentemente das par-ticularidades e singularidades das imagens criadas, nossa classificao no foi norteada pelas caractersticas pictricas das obras. Buscando uma perspectiva de anlise de processo, nossa rede de conversao foi estruturada a partir das lgicas que sustentam as aproximaes com a cincia e os imaginrios cientficos. Outro aspecto importante na nossa classificao diz respeito ao fato de adotarmos uma perspectiva anacr-nica na escolha das obras de arte (Didi-Huberman, 2008).

    Tradues do corpo: imagens da cincia nos processos de criao

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    Poticas das tradues

    O primeiro grupo rene projetos que entrelaam de forma clara e inten-cional procedimentos investigativos dos dois campos. Nesse grupo, as imagens so geradas na convergncia entre os dois olhares. Ou seja, no possvel falar em apropriaes de imagens da cincia pela arte ou vi-ce-versa. Estamos no campo das invenes e os processos de criao de imagens emergem de um pensamento complexo, interessado tanto nas propriedades estticas das imagens como tambm nos procedimentos da cincia. Denominamos esses procedimentos de poticas das tradues.

    O pensamento sem fronteiras de Leonardo da Vinci um exemplo clssico de convergncia entre procedimentos estticos e metodologias investigativas. Em seus processos de dissecao de cadveres, Leonardo buscava extrair os elementos necessrios para a realizao de suas ima-gens artsticas. Da mesma forma, seu interesse investigativo se traduziu em um olhar acurado na observao de corpos em exerccios de coleta de signos visuais e sistematizao de suas descobertas em arquivos-cadernos.

    Exemplos notveis de interseco da cincia e da arte so os estudos de proporo da anatomia humana do artista alemo Albrecht Durer. Pu-blicados em Nuremberg, em 1528, os volumes foram escritos e ilustrados pelo prprio Durer. Composto por xilogravuras em praticamente todas as pginas, esse tratado pioneiro na discusso da antropometria compara-tiva e diferencial.

    Embora no costumem ser considerados como projetos de arte, os desenhos de tecido cerebral elaborados por Ramon y Cajal poderiam tam-bm participar dessa categoria. Ricamente detalhados, so exemplos de imagens provenientes de um pensamento cientfico, mas que, devido s suas qualidades pictricas, tangenciam o campo da esttica.

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    Poticas das apropriaes

    O segundo tipo de aproximao entre os imaginrios da cincia e o fazer potico agrega projetos que afirmam terem sido inspirados por imagens da cincia. Denominamos esse grupo de poticas das apropriaes. Nes-se grupo, as imagens produzidas no campo da cincia so transportadas, traduzidas, reinterpretadas, remixadas e ou ressignificadas nas reflexes e nos procedimentos que acompanham os processos criativos. Ou seja, possvel situar e indicar claramente (atravs de documentos de processo) o encontro com imagens cientficas e que esse fato tenha sido o catalisador de processos criativos. Muitos desses trabalhos poderiam ser classifica-dos como projetos de apropriao, uma vez que utilizam imagens prove-nientes da cincia para a criao de outras narrativas, em geral, alheias ao contexto ou significado prvio das imagens em suas origens. Tambm nesse grupo esto obras que adotam procedimentos de citao e, embora construam universos poticos imaginativos, indicam claramente os traos que remetem relao das imagens citadas com o imaginrio biomdico.

    O artista Jean-Michel Basquiat, no documentrio The Radiant Child, relata a importncia que o contato com o livro Anatomia de Gray teve em sua trajetria. O livro, escrito pelo fisiologista ingls Henry Gray no sculo XIX5 , at hoje, um clssico sobre anatomia humana. Com mais de oitocentas ilustraes do corpo humano, essa obra teve impactos tanto no ensino das cincias mdicas como na cultura. No caso de Basquiat, o artista conta que recebeu esse livro de presente de sua me ainda criana, depois de ter sofrido um acidente e ter passado por uma cirurgia para a retirada de seu bao. Basquiat comenta que o livro o deixou maravilhado: podia ver como era o interior do corpo humano6. Rastros desse interesse 5 A primeira edio do livro surgiu na Inglaterra, no ano de 1858, com o ttulo GraysA-

    natomy: DescriptiveandSurgical. Atualmente, uma verso digital encontra-se dispon-vel em http://www.bartleby.com/107/.

    6 Ver documentrio Jean-Michel Basquiat: The RadiantChild., dirigido por Tamra Da-vis de 1985.

    Tradues do corpo: imagens da cincia nos processos de criao

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    e fascnio podem ser observados em vrias de suas obras que apresentam imagens de ossos e crnios como protagonistas. Alm disso, outras res-sonncias do contato com o livro de anatomia podem ser percebidas na constante utilizao de textos ao lado de imagens. Sem dvida alguma, esses procedimentos de hibridizao de linguagens foram fundamentais na definio do estilo pictrico de Basquiat.

    Mindscapes (2012), projeto de Fernando Velzquez, um trabalho que opera com o conceito de esttica do banco de dados (Manovich) e traz imagens do crebro como paisagens imaginrias. Transitando por terri-trios como memria, metfora e redes complexas dinmicas, Minds-capes se atualiza enquanto performance ao vivo, instalao e imagens impressas. Por sua natureza transmiditica, problematiza questes como representao e permanncia (Velzquez e Leo, 2012).

    Kiki Smith revisita imagens da medicina em seu fazer potico. No tra-balho The Vitreous Body (2001), Smith desenvolve um livro de artista onde fragmentos de texto de Parmnides de Elia aparecem em situaes dialgicas com desenhos. As imagens de corpo revisitam desenhos anat-micos detalhados e carregam uma visualidade com aromas tcnicos. O dilogo que a artista estabelece com o texto tecido por uma composio visual delicada, formada por sinuosas linhas condutoras. Nos percursos a que somos convidados, camadas transparentes de papel desvelam relaes topolgicas.

    Poticas transdisciplinares

    Na terceira categoria, poticas transdisciplinares, esto os processos criativos vivenciados por equipes compostas por especialistas de diferen-tes campos do conhecimento, que adotam procedimentos de criao fun-dados nas conversaes e que almejam realizar o ideal da transdisciplina-ridade (DAmbrosio, 2009). Caracterizam-se por projetos que dependem

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    de dilogos e parcerias e se estabelecem como projetos colaborativos. medida que compreendem propostas que trabalham nas interseces de saberes, exigem que relaes dialgicas ocorram dentro na elaborao do prprio projeto e, muitas vezes, operam com propriedades emergentes. Nesse grupo esto os maiores desafios para se pensar uma produo de conhecimento em rede, algo que de fato signifique estudar a cultura com uma viso multidimensional e que talvez nos permita reatar o n grdio, como diria Latour. Reatar o n grdio assumir a natureza hbrida de es-tar instalados precariamente no interior das instituies cientficas, meio engenheiros, meio filsofos, um tero instrudos sem que o desejssemos (Latour, 1994, p. 9).

    GNOM 7 um projeto que tem como meta desenvolver acesso a bancos de dados de redes genticas. Coordenado por Santiago Ortiz e Luis Rico, o projeto parte do estudo topolgico das redes e se dedica a estudar diferentes possibilidades de visualizao dos processos interativos entre os genes. Como se sabe, as estruturas em rede formadas pelas inte-raes moleculares definem aspectos genticos funcionais de grande im-portncia. As pesquisas cientficas com redes genticas (tanto na rea da biologia como da gentica e da bio-informtica) envolvem grandes volu-mes de dados e informao relacional. O gerenciamento dessa informao possibilita inmeras combinaes e a maneira como se visualiza os dados nunca neutra ou inocente. Nesse sentido, o objetivo do projeto permi-tir interaes de qualquer pessoa com o sistema. Na opinio da equipe de trabalho, a partir das interaes, pessoas leigas podem, potencialmente, compreender a lgica que sustenta o modelo cientfico das redes genticas e desenvolver suas prprias anlises.

    7 Projeto com apoio do MediaLabMadrid e Protein Design Group do Centro Nacional de Biotecnologia da Espanha (CBN / CSIC). Ver: http://moebio.com/santiago/gnom/english.html

    Tradues do corpo: imagens da cincia nos processos de criao

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    Consideraes finais

    As imagens cientficas que retratam o corpo humano no so inocentes ou neutras. A grande prevalncia dessas imagens nos contextos culturais e nas redes requer se dedique estudos crticos quanto natureza de seus dis-cursos. No presente artigo procuramos verificar processos criativos que tm essas imagens como fonte de inspirao e questionamento. Para reali-zar nossas anlises, organizamos os processos a partir de um exame da l-gica que orientam seus procedimentos. Vimos que preciso buscar com-preender as lgicas que engendram os discursos e perceber que para cada imagem cientfica que circula nos imaginrios miditicos h um universo de foras que se entrelaam e camadas de sentido podem ser extradas.

    Na cartografia que propomos, foi possvel falar em trs tipos de pro-cedimentos poticos. No primeiro, pensamos um tipo de investigao que conjuga arte e cincia e os procedimentos so de natureza hbrida. Proje-tos artsticos cuja qualidade cientfica inegvel e tambm trabalhos tc-nicos e cientficos que revelam qualidades poticas singulares so exem-plos dessa categoria. Denominamos esses procedimentos como poticas das tradues.

    No segundo grupo, alocamos as poticas que trabalham com apro-priaes, citaes e tradues de imagens do corpo na cincia. Para esse pensamento criativo, a imagem corporal cientfica elemento de inspira-o que comparece revisitada no fazer potico. Nessa categoria, as ima-gens da cincia esto deslocadas de seu contexto original e passeiam como personagens de paisagens onricas. Essas propostas compem aquilo que denominamos poticas das apropriaes.

    Uma terceira categoria engloba os projetos que operam no campo da transdisciplinaridade. Nesses processos criativos, os dilogos e as trocas informacionais funcionam como sistemas de mediao que favorecem a emergncia. A rigor, so projetos que no seriam possveis sem a presena de diferentes campos do saber e dependem de um espao de conversao. Pode-se dizer que a multivocalidade de saberes a caracterstica deter-

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    minante desse tipo de processo de criao e que seus frutos so resulta-dos de projetos em redes comunicacionais. Nessa categoria, estamos nos territrios das poticas transdisciplinares e as redes criativas operam a partir de negociaes, discusses crticas, tradues e apropriaes. Nesse sentido, esse grupo rene procedimentos j apontados nas categorias an-teriores, mas vai alm medida que trabalha com dilogos entre pares. A criao do espao dialgico assim a produo de um espao colaborati-vo, onde o imprevisto e o impensado podem emergir.

    As imagens cientficas do corpo e suas inter-relaes com as poticas desvelam campos investigativos em permanente ebulio. Esperamos que o olhar trplice proposto, seus parmetros e perspectiva analtica (funda-da nas teorias dos processos criativos), possam contribuir para futuras reflexes no campo da arte, da cincia e da tecnologia e nos inspire novas leituras e percepes do corpo.

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    VAN DIJCK, J. The Transparent Body. A Cultural Analysis of Medical Imaging. Seattle: University of Washington Press, 2005.

    VELZQUEZ, Fernando e LEO, Lucia. Mindscapes. So Paulo: Zipper, 2012.

    Tradues do corpo: imagens da cincia nos processos de criao

  • 39arte_corpo_tecnologia

    PARTE IIO corpo no ambiente do ciberespao:

    alguns conceitos e experincias

  • PERCEPES E AFEIES DE UM CORPO TELEMTICOIvani Santana1

    Este texto faz uma reflexo sobre as novas demandas impostas para pro-fissionais da dana que atuam no escopo da arte tecnologia e, de forma mais especfica, no campo da Arte em Rede no que diz respeito ao uso da telemtica e das exploraes da noo de presena em configuraes arts-ticas realizadas de forma distribuda atravs de sistemas computacionais e vias de telecomunicao. Nessa anlise, compreende-se o corpo como um processador seletivo de informao (Hansen, 2004, p. 22) e a linguagem da dana realizada atravs da mediao tecnolgica como um ambien-te frtil para investigar a percepo humana e as suas alteraes, expan-ses e restries promovidas na articulao corpo novas mdias. Neste sentido, a atuao da dana nesse contexto pode colaborar nos estudos que assumem a arte tecnologia como pertencente e implicada ao corpo (embodied) e, portanto, contrria s afirmaes da arte desencorporada (desembodied).

    palavras-chave corpo, presena, telemtica, embodiment, imagem e esquema corporal.

    1 Ivani Santana lder do Grupo Poticas Tecnolgicas: corpoaudiovisual e editora chefe da Revista Eletrnica MAPA D2. . .

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    O nosso conhecimento orgnico do mundo formado pelo gesto soberano de mostrar e encobrir realidades do mundo. (Sloterdijk, 1992, p. 66).

    A Arte em Rede ainda uma configurao artstica pouco conhecida do grande pblico e at mesmo de parte da comunidade artstica, apesar da obra considerada referncia Hole in Space (1980) ter ocorrido h mais de trs dcadas2. Com o crescimento exponencial das redes de tele-comunicao, o interesse e o nmero de criaes nesse campo tm cres-cido muito. A tendncia que essa forma de produzir arte, seja ela vincu-lada a qualquer das linguagens artsticas, torne-se uma forma comum de expresso, assim como o uso corriqueiro de aplicativos como WhatsApp, Skype, Gtalk, Hangout, dentre outros, bem como das redes sociais que se tornaram ambientes comuns de sociabilizao, ou seja, um novo compor-tamento para reunir-se em sociedade, de civilizar-se, segundo a defini-o do verbo sociabilizar pelo dicionrio Aurlio3. Como consequncia e dentre vrias indagaes inditas, chamamos a ateno para o entendi-mento de presena que surge com essa nova possibilidade de relao entre os sujeitos da cultura digital, uma vez que a atualidade apresentou uma outra noo (sensao, compreenso, vivncia) de distncia e da condio da presena, indagando o que significa esse estado de estar em tempos de Internet e tecnologias mveis.

    Trata-se de uma configurao (ou talvez configuraes) que prescinda de um contorno exato e de batizmo oficial. Vrios ttulos so emprega-dos: Network Art ou Networked Art, como comumente denominada na lngua inglesa, principalmente no campo da msica, ou ainda, CyberArt,

    2 Apesar de Hole in Space ser mais conhecida pelo sucesso provocado ao abrir uma ja-nela virtual entre Los Angeles e Nova York, a primeira obra foi Satellite Arts Project (1975), as duas de autoria da dupla Kit Galloway e Sherrie Rabinowitz.

    3 http://www.dicionariodoaurelio.com/Sociabilizar.html

    Percepes e afeies de um corpo telemtico

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    Arte Telemtica, Arte Distribuda, Ciberperformance ou Cybertheater (os dois ltimos normalmente voltados para trabalhos das Artes Cnicas), dentre outros4.

    Junto com o Grupo de Pesquisa Poticas Tecnolgicas: corpoaudio-visual (GP Poticas5, vinculado Universidade Federal da Bahia, tenho realizado diversos projetos de dana distribuda desde 2005 quando inau-guramos a Rede Ip, a qual ganhava naquele momento o mesmo status e condies das redes de alto desempenho como a Internet 2, dos EUA, e a europeia GANT.

    Atravs do potencial e da especificidade da telemtica, propusemos a investigao e experimentao prpria desse meio com o objetivo de encontrar uma esttica especfica para essa configurao. Sendo assim, o interesse no apenas transmistir a imagem de um espetculo ou per-formance (broadcast), mas utilizar a conexo entre vrios pontos (multi-cast) e as condies da rede (latncia, velocidade de transferncia, reso-luo etc.) para explorar as competncias perceptivas do danarino de tal forma a desafi-lo para novos caminhos de criao corporal e cnica. Nesse processo, vrios aspectos so revistos, a saber, a relao danarino-pblico que inclui o usurio da rede com seu dispositivo onde quer que esteja, bem como o pblico dos teatros que absorvem a relao (presen-a) de corpos fsicos com corpos virtuais; a relao obra-pblico virtual, a qual promove outras formas de participao (e presentificao); o processo de criao que passa a compor vrias estruturas cnicas inter-ligadas, pois cada ponto uma face de uma mesma obra, apenas para citar alguns exemplos.

    4 Discuto sobre esse assunto em SANTANA, I. Novas configuraes da Dana em processos distribudos das Redes. 2013. Plataforma Eletrnica Internacional Xanela Comunidad TecnoEscenica. Maro de 2013. Disponvel em: e em .

    5 www.poeticatecnologica.ufba.br

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    Contudo, vale ressaltar que minha primeira experincia no campo ha-via acontecido durante a residncia artstica que realizei no Enviorments Lab, Dance Department, da Ohio State University, entre 2001 e 2002, como convidada do ento coordenador, Johannes Birringer. Apesar do objetivo principal da minha viagem ter sido a pesquisa em captura de movimento (motion capture), a qual desenvolvi no Advanced Computing Center for the Arts and Design, na mesma instituio, tive a oportunidade de conhecer e participar dos encontros peridicos realizados pela ADaPT Association of Dance and Performance Telematic6. Minha experincia nesse campo re-sultou em uma performance ao final da residncia artstica, a qual ocor-reu entre dois pontos remotos Sullivant Theater e Studio V , e que foi intitulada Pele, Study n.1 Drywet. Portanto, essa foi minha primeira criao de dana em rede e o incio de uma longa trajetria de investiga-o desse campo.

    No Brasil, meu primeiro espetculo de dana distribuda foi elabora-do especialmente para o lanamento da nova Internet acadmica, a Rede Ip. Essa obra inaugural Versus (2005) foi um desafio corporal, cnico e tecnolgico que conectou trs cidades brasileiras: Salvador e Braslia, com cinco danarinos cada uma, e Joo Pessoa, de onde a msica era gerada em tempo real pelo compositor Didier Guigue e seu grupo. O projeto foi uma parceria entre vrias instituies, mas teve uma atuao direta e con-tnua do GP Potica e do Laboratrio de Vdeo Digital da Universidade Federal da Paraba. Toda a pesquisa foi realizada atravs do suporte tc-nico, logstico e financeiro da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa, sendo Versus apresentada como uma homenagem ao 10 aniversrio do Mi-nistrio de Cincia e Tecnologia.

    Logo de incio, compreendi que a explorao das condies do mundo digital propiciava novas posturas e elaboraes corporais para os dana-

    6 Disponvel em: .

    Percepes e afeies de um corpo telemtico

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    rinos que atuavam nesse contexto, pois estavam imersos em um ambiente que redimensionava os corpos como, por exemplo, na cena que Flvia Castagno danava com a enorme mo da sua parceira remota Thainah Aquino (Figura 1). Como tudo ocorre em tempo real na Arte em Rede, a grande mo da Thainah e o corpo todo da Flvia tinham que entrar em completa sintonia e, apesar da latncia que era superior a um segundo naquela poca, era preciso interagir de acordo com os estmulos e tempos de acontecimento e reao.

    A percepo e afeio entre os danarinos do espetculo apenas po-deria ocorrer pela relao de corpos distantes, recebidos por imagem, voz e msica. Isso significa que eles deveriam sentir-se estimulados no pelo toque fsico do outro, mas pelo acionamento de outras construes perceptivas descobertas durante o processo. Por isso necessria uma imerso intensa nesses ambientes para que o danarino tenha condies de incorporar a mediao tecnolgica de ambientes telemticos e, assim, ganhar outras sensaes, outras maneiras de perceber o espao e o outro. Consideramos tal experincia como um processo de embodiment7, con-forme ser explicado nesse artigo.

    Para trazer um exemplo da vida cotidiana, podemos fazer um correla-to entre essas percepes do ambiente telemtico e a video-endoscopia na medicina. Nesses exames, o paciente v o interior do prprio corpo apre-sentado em um monitor, o que promove um deslocamento (de parte) da-quele sujeito. Ou mesmo do ponto de vista do mdico que no olha para o paciente, e sim para a imagem daquele corpo deslocado para o monitor. Tais possibilidades de deslocamento do corpo no significam, para a re-

    7 O termo embodied referente aos estudos da Embodied Mind Thesis, vertente das Cin-cias Cognitivas, a qual considera que a natureza da mente humana formada pelos aspectos do prprio corpo. De acordo com esses estudos, a construo de conceitos, a condio de categorizao e a possibilidade de julgamento do ser humano, por exemplo, esto implicados em como agimos no mundo de acordo com nosso sistema perceptivo e nossas capacidades sensrio-motoras. Essa vertente , portanto, contrria s linhas do Cognitivismo, Computacionalismo e Dualismo Cartesiano. O termo ser utilizado em ingls para evitar compreenses equivocadas com a traduo encarnada ou incorporado.

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    flexo desse artigo, uma dissoluo ou desmaterializao do corpo, muito ao contrrio, pois so compreendidas como novas formas de se perceber e de perceber o outro. No caso da medicina, para o mdico, o paciente o reflexo de tudo aquilo: de uma materialidade fsica entrelaada imagem digitalizada e somada aos dados de anamnese daquele sujeito. Esse deslo-camento o mesmo que ocorre na Arte em Rede.

    | Figura 1. Espetculo Versus, 2005 |

    A danarina Flvia Castagno, no palco de Braslia, em sintonia com sua parceira remota Thainah Aquino, da qual recebamos a imagem de Salvador da

    sua mo hiperdimensionada.

    Outro exemplo da obra Versus pode ser bastante ilustrativa para compreender a ideia de deslocamento colocada anteriormente. Em deter-minada cena, a danarina Monica Santos tinha como propsito mover-se para as direes indicadas pelo seu parceiro remoto. Considerando a la-tncia na rede e a visibilidade da danarina apenas atravs de monitores colocados em cada lado do seu espao cnico e que continham imagens das aes realizadas nos instantes passados por ela e o companheiro vir-tual, uma outra demanda perceptiva era imposta: mover-se a partir da prpria imagem, na qual aparece com outra pessoa e em tempo defasado pela latncia no sistema de transmisso. Justamente so essas outras for-mas de perceber e sentir (ter afeio) impostas pelo ambiente da rede que me interessam investigar em projetos estticos de dana telemtica.

    Percepes e afeies de um corpo telemtico

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    | Figura 2. Espetculo Versus , 2005 | com Hugo Leonardo (Braslia) e Monica Santos (Salvador).

    Em contraste com Versus, que teve como foco principal a interao entre danarinos distribudos, em 2006 foi realizado um exerccio para articular tanto dana como msica a partir de pontos remotos. Essa inves-tigao foi intitulada Por Onde Cruzam Alamedas e inspirou-se na obra Jardim das Veredas que se Bifurcam (1945), de Jorge Luis Borges. Alm de explorar a articulao remota e composio entre dois pontos, nesse ex-perimento foi desenvolvido um conceito que denominei princpio de ca-madas, que construa a narrativa a partir da sobreposio de imagens em tempo real e imagens pr-gravadas. Danarinos interagiam imersos nesse contexto de camada de imagens, enquanto DJs criavam simultaneamente uma trilha sonora para a obra.

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    | Figura 3. Por onde cruzam alamedas, 2006 | com Thainah Aquino (Reitoria, UFBA), Flavia Castagno, Hugo Leonardo (Escola de Dana, UFBA) e, na imagem pr-gravada (camada interna),

    Juliana Rocha.

    Apesar de, tambm em 2006, termos participado do Proyecto Paso apresentado na Bienal Internacional de Artes de Sevilha, realizado em par-ceria e a convite da coregrafa espanhola Salud Lopes, numa performan-ce que interligou Espanha, Estados Unidos e Brasil, foi apenas em 2009 que conseguimos uma investigao mais efetiva e contnua entre pases separados pelo Atlntico. Era o incio do Grupo de Trabalho em Mdias Digitais e Artes8, que recebeu suporte por dois anos da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa para a criao de uma ferramenta computacional com foco no gerenciamento de fluxo de informao (vdeo, udio, dados) atravs das redes avanadas de telecomunicao. O processo de pesquisa possibilitou o desenvolvimento da ferramenta Arthron e do espetculo e_Pormundos Afeto. A importncia desse trabalho est no apenas na elaborao desse dispositivo computacional e no processo artstico em parceria com o grupo catalo Knic Thtr, mas na continuidade da inves-tigao e possibilidade de apresentar vrias verses da obra permitindo que, a cada nova oportunidade de apresentao, a implicao esttica/tec-nologia fosse impulsionada e aprimorada.

    8 Disponvel em: www.lavid.ufpb.br/gtmda.

    Percepes e afeies de um corpo telemtico

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    e_Pormundos Afeto (2009 a 2011) foi uma das melhores oportuni-dades para confirmar nossas argumentaes sobre as percepes e afei-es entre corpos remotos na dana. Como toda tecnologia, a telemtica comprovou ser tambm restritiva para algumas condies e ampliadora em outros aspectos. Por exemplo, o fato de no poder tocar o outro, no ter o cheiro ou a sombra do parceiro, restritivo, mas, por outro lado, o desafio perceptivo exigido nessas situaes benfico para o desenvol-vimento de novas formas de estmulo sensrio-motor, ou seja, a prpria condio de tornar prximo aquele que est distante exige do companhei-ro uma disposio corporal especfica para esse dilogo; ou, ainda, poder enxergar o parceiro remoto por outros pontos de vista ou dimenses que so impossveis no mundo fsico pode intensificar uma possibilidade per-ceptiva que apenas nesse contexto poderamos experienciar, apenas para citar alguns exemplos. Tais fatores presentes na Arte em Rede, bem como as consideraes colocadas anteriormente, tais como o sistema sensrio-motor implicado com a imagem do monitor, a alterao da qualidade de movimento em virtude da latncia, dentre vrias outras que temos perce-bido durante quase uma dcada de experimentos nesse campo, so fortes o suficiente para permitir que novas compreenses sobre o estado de estar presente venham tona.

    O interesse na investigao dessa vertente da arte, e em consonncia com as proposies artsticas do mundo contemporneo, no reivin-dicar uma ontologia, ou questionar o que danar com outro que no est aqui fisicamente, pois o importante o como, o processo, a reflexo sobre como se d essa configurao, a qual vai alm do fato de danar com algum remotamente. a partir dessa reflexo que se pode pensar quais as implicaes na performance de um danarino e na esttica de um criador. A questo da presena do outro, ou da sua distncia, torna-se um dos pro-blemas centrais (mas no o nico) para compreender esse acontecimento.

    Convencionalmente, a dana parece impor uma necessidade de con-tato fsico o qual foi colocado em cheque com a chegada das mdias digi-tais e, principalmente, com os sistemas telemticos. Num rpido passar de olhos sobre o percurso da histria da dana, pode-se perceber que ela se

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    libertou dos libretos para ganhar o corpo-psique, desviou-se dos mitos para pregar o corpo-pelo-corpo (qualquer movimento pode ser dana-do), trouxe baila o corpo-pedestre do cotidiano, embrenhou-se pelo corpo-do-improviso, emaranhou-se pelos corpos-em-contato e foi em busca do somtico, do movimento integrado cabea-corpo, apenas para relembrar pontos-chave e no necessariamente ocorridos nessa ordem. Desse retorno e busca de um corpo-sujeito, surge o corpo-imagem do mundo digital e seus avatares, desafiando a compreenso sobre qual su-porte corpreo a dana pode ocorrer. A Dana em Rede intensificou esse processo delatando um corpo feito de informao, o corpo-cdigo.

    E como compreender ento que esse corpo-cdigo (auditivo, visual, informacional) do outro que est distante no uma simples iluso, ou apenas um trao virtual daquele sujeito? Traria ele as idiossincrasias da-quele que est longe? Seria apenas uma iluso imagem do outro recebida pelos danarinos? Ou seria uma forma que encontramos de nos teletrans-portar sem a necessidade do Holodeck imaginado na fico cientfica Star Trek? Ou talvez, no seria essa a condio de fazer existir um Holodeck cujo transporte no carrega o corpo-fsico, mas o corpo-cdigo pas-svel de codificao-decodificao de um corpo-sujeito por um outro corpo-sujeito?

    Tais aspectos podem ser discutidos luz das reflexes do filsofo ale-mo Peter Sloterdijk (1992) sobre a transio da viso de mundo ptolo-maica com a do mundo copernicano para tecer as relaes e contradies do mundo moderno e ps-moderno. Conforme exemplo que ele apresen-ta, uma vez que compreendemos e aceitamos que o sol no est nascendo ou se levantando do horizonte, pois a terra que est a girar, somos obri-gados a aceitar que nem tudo que vemos da forma que enxergamos, que a vida passiva e conformada pelos sentidos de Ptolomeu (70-168 d.C.9) teria que dar lugar ao mundo de inferncias do astrnomo polons Nico-lau Coprnico (1473-1543).

    9 Data aproximada. No existem registros que comprovem o ano de nascimento de Clau-dio Ptolomeu, cientista de Alexandria, Egito.

    Percepes e afeies de um corpo telemtico

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    O choque copernicano demonstrou que no percebemos o mundo como , mas que precisamos imaginar sua realidade pela reflexo, contrariando a impresso dos sentidos para compreender como ela . Eis o dilema: quando o sol se levanta, o sol no se levanta. No h correspondncia entre nossa viso e a razo informada pela astrofsica. (Sloterdijk, 1992, p. 56).

    Contudo, mesmo cientes de tal conhecimento, nossa percepo con-tinua traindo a verdade descoberta e deixa-nos sensveis e crveis na ma-ravilha de uma alvorada ou de um lindo pr do sol, os quais, seja aqui na Bahia ou l no Hava, aplaudimos com grande entusiasmo o feito da terra. Esse o desarmamento ptolomaico proposto por Sloterdijk (1992), um retorno vertigem da antiga crena, mas agora cientes de que l no h realidade e sim nossas afeies ao mundo que nos rodeia, o qual, posso acrescentar, carrega um sistema complexo de fices e realidades embara-lhadas pela potncia da cultura digital. Todavia, muito antes da chegada dos alucinantes processos computacionais que burlam nossa percepo da realidade, a discusso sobre a viso como confirmao de uma reali-dade sempre existiu.

    O sistema perceptivo humano integrado, mas a viso sempre teve papel de destaque. No toa so utilizadas foras de expresso tais como desvelar, luz de, tendo em vista que etc. No toa h quem conside-re o momento atual como o da Cultura Visual. Tal aspecto tem duas con-sequncias importantes para a discusso pretendida nesse artigo: por um lado, a compreenso sobre presena ficou estagnada com a ideia daquele ou aquilo que se pode ver, ou ainda, presena como o fato de estar ali em carne-e-osso, diante dos olhos e que permita tocar. Por outro lado, as novas tecnologias encantam nossa viso com suas recolocaes (ou re-criaes) de mundo. Apesar de aceitarmos essa segunda condio, ainda existem aqueles que rejeitam a ideia que estar presente no significaria estar prximo fisicamente, em sua materialidade. Entretanto, os mesmos que comungam dessa afirmao, a que prega pela presena como estado de estar ali em carne-e-osso diante dos olhos, so tambm aqueles que

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    aceitam a iluso do videogame e se sentem como se fossem o prprio ava-tar, e so os mesmos que possuem amigos virtuais nas redes sociais. No caso do videogame, as aes do jogador alteram o tnus muscular e esti-mulam uma ao real no corpo, vrios acionamentos ocorrem no sistema sensrio-motor. Questionamos ento: que estado de presena possvel aceitar nos dias de hoje a partir dessas compreenses? Qual seria a dife-rena entre um corpo (um ser humano) que pode estar ali junto a voc, e o olhar trocado entre voc e seu par atravs do Skype? Considerando que o mundo e o ser humano so sistemas dinmicos e coevolutivos, portanto em constante transformao, quais as mudanas trazidas pela cultura di-gital e como elas interferem na nossa percepo dessa realidade?

    Compreende-se ento que no so nossas percepes isoladas as ba-lizadoras do julgo de uma realidade. Nossa percepo tambm pode nos iludir, pois o sol no se ergue ou se debrua sobre o horizonte. Talvez seja possvel dizer que percebemos a realidade de um mundo no necessaria-mente real ou verdadeiro. Uma experincia verdica aos nossos olhos e sentidos mesmo no sendo verdadeira pela nossa compreenso. Por exemplo: quando vemos a colher e a consideramos plana dentro da gua, sabemos que, na verdade, ela curva e a percepo deformada que temos ocorre apenas porque est embaixo da gua (Ne, 2004). Sendo assim, nosso corpo coevolutivo, que aprende e apreende atravs da experincia exercida no meio que habita, sabe que nossa percepo nos ilude.

    Segundo o filsofo Alva Ne, a experincia perceptiva um tipo de atividade que adquire contedo graas aplicao do percebedor de um tipo de conhecimento sensrio-motor. Isso no quer dizer que o mundo seja dependente da nossa existncia, da nossa natureza biolgica. No es-tamos aqui caindo no subjetivismo e empirismo puro, muito ao contr-rio. A relao sempre: percebedor-mundo-objeto. Entretanto, somente pela nossa natureza biolgica que esse mundo existe para ns e que ns temos acesso a ele.

    O contedo da percepo no como o contedo de uma pintura. O mundo detalhado no dado para a conscincia todo de uma vez como na forma detalhada

    Percepes e afeies de um corpo telemtico

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    de uma pintura. Tanto na viso como no toque, ns ganhamos contedo perceptivo por inferncia e explorao ativa (do corpo, dos olhos, das mos). [] Nosso sentido de presena dos detalhes para ser entendido em termos do nosso acesso aos detalhes graas a nossa posse de habilidades sensrio-motoras. (Ne, 2004, p. 73).

    Segundo Ne, nossa relao sensorial com o mundo tem duas dimen-ses: a) dependente do nosso movimento, ou seja, quando qualquer mo-vimento do nosso corpo modula a estimulao sensorial e, b) dependente do objeto quando o movimento do objeto nos provoca estmulo sen-sorial. Para explorar a aparncia e ento explorar o ambiente, o mundo. Para descobrir como as coisas so, de como elas aparecem, descobrir uma ordem ou padro em seus aparecimentos. O processo de perceber, de encontrar como as coisas so, um processo de encontrar o mundo, uma atividade de explorao habilidosa desse corpo, ou seja, de um su-jeito competente em mover-se e mover as coisas desse mundo, a capa-cidade de senti-los e sentir-se nessa experincia. O contedo perceptivo necessita ento que o reconhecimento pela percepo seja uma forma de encontrar no somente como as coisas so, mas como as coisas esto em relao ao percebedor.

    Sendo assim, quando estamos nos relacionando com o companheiro remoto, nossa percepo sabe que aquele sujeito no est ali de carne-e-osso, mas, pela nossa habilidade sensrio-motora, construda no embate dirio com o mundo digital, compreendemos e aceitamos aquele sujeito como presente, pois ele se presentifica para ns. Tanto a forma como nos movemos nesse contexto como a forma que aquele corpo se apresenta quando transmitido pela rede aceito atravs da nossa percepo molda-da pela nossa habilidade sensrio-motora treinada com o meio. Por isso, so importantes projetos contnuos de dana telemtica, pois apenas vi-venciando o contexto por um longo perodo que esses artefatos cognitivos (Clark, 1997; 2003) so encorporados e que o processo de embodiment (Ne 2004; Gallagher, 2005; Hansen, 2004) pode realmente ocorrer.

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    Portanto, a discusso no saber em qual dessas situaes a presena verdadeira: a de corpos que esto em um mesmo espao-tempo, prxi-mos fisicamente, ou aqueles que se encontram atravs de uma interface tecnolgica. O intuito aqui no comparao para negao. Muito menos essa reflexo est interessada em atribuir valor comparativo entre essas condies do estar do sujeito. O objetivo mostrar que ns construmos nossas verdades e realidades de acordo com a percepo e reflexo que temos do nosso mundo. Temos que considerar que a relao com nosso contexto, como o ambiente que pertencemos com seus elementos e ha-bitantes, foi alterada pelos novos artefatos cognitivos (Clark, 1997; 2003) que surgiram e, por consequncia, com a imagem corporal que ganhamos e os esquemas corporais que nos expandiram (Gallagher, 2005), os quais propiciaram uma outra forma de estar, manipular, elaborar e refletir sobre nosso mundo e ns mesmos. Essa relao possvel por ser um processo de embodiment desses artefatos cognitivos e por esse corpo ser um pro-cessador seletivo de informao (Hansen, 2004, p. 22).

    No livro Natural-Born Cyborgs, o filsofo Andy Clark afirma que ns existimos apenas como coisas pensantes que somos, graas a uma complexa dana de crebros, corpos e muletas culturais e tecnolgicas (2003: 11). Esses artefatos cognitivos fazem parte da nossa existncia, das primeiras lanas criadas, passando pelo invento do lpis, da caneta, do dirio, do calendrio, dos livros etc., at chegar cultura digital e ganhar ferramentas computacionais miniaturizadas e mveis. Ao utilizarmos es-ses artefatos da cultura digital (computador para diferenciadas tarefas, os telefones mveis inteligentes etc.) e vivenciarmos ambientes implicados com eles como as redes avanadas de telecomunicao e a Internet, pro-piciamos outras formas de compreender (e construir) nossa prpria ima-gem (Gallagher, 2005), ou seja, a percepo que temos de ns mesmos nossa imagem corporal (Gallagher, 2005). Mas para formar esse campo perceptivo que cria nossa imagem corporal, dependemos de como nossas capacidades sensrio-motoras constrem nosso esquema corporal, o qual opera abaixo do nvel de intencionalidade autorreferencial10.

    10 Nas palavras de Gallagher, os termos so assim definidos: eu defino imagem cor-

    Percepes e afeies de um corpo telemtico

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    Desta forma, os usos dos artefatos cognitivos implicam em um pro-cesso de embodiment, independentemente da nossa vontade. O fato de exercitar todos os dias e em diversas situaes a sociabilizao atravs dos dispositivos de telecomunicao (telefone mvel e internet) faz com que o sistema sensrio-motor opere de acordo com o contexto desenvolvendo um esquema corporal especfico a essa condio.

    O martelo do carpinteiro torna-se uma extenso operativa da mo do carpinteiro. (...) O esquema corporal um sistema que permite o corpo ativamente integrar sua prpria posio e respostas para lidar com seu meio sem o requerimento de uma conscincia reflexiva monitorando diretamento o corpo. Essa uma performance dinmica e operativa do corpo, ao contrrio de uma conscincia, imagem ou modelo conceitual dele. (Gallagher, 2005, p. 32).

    O embate que temos com os dispositivos e interfaces da cultura digital, atravs do processo de embodiment, desenvolve nosso esquema corporal o qual nos permite viver nesse mundo como vivemos, mesmo sem parar-mos para refletir sobre as consequncias de cada uso e cada ao. Mas isso no significa um mecanismo automtico por completo, pois uma carga de intencionalidade sempre existe. Por exemplo, as pessoas no esto preocu-padas em descobrir o que est acontecendo com sua propriocepo e sua percepo do outro e do mundo quando esto em um bate-papo atravs do Skype ou aplicativos do gnero, nem mesmo quando esto conversan-do com vrias pessoas ao mesmo tempo no chat do Facebook. Mas h uma inteno primeira para que tudo aquilo acontea: o interesse e escolha de comunicar-se com algum distante atravs de um dispositivo tecnolgico, e essa atitude e crena nessa ao reflexo da imagem corporal.

    poral como um sistema (algumas vezes consciente) de percepes, atitudes, crenas e disposies pertencentes ao prprio corpo. (...) Esquema corporal, em contraste, um sistema de processos sensrio-motores que constantemente regulam postura e mo-vimento processos que funcionam sem uma ateno reflexiva ou da necessidade de monitoramento perceptivo. (2005, p. 37-38).

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    importante notar que nossas crenas e atitud