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UNIVERSIDADE DE LISBOAFACULDADE DE BELAS-ARTES
Arte e RealidadeAproximao, diluio e simbiose no sculo XX
Cristina Pratas Cruzeiro
VOLUME I
DOUTORAMENTO EM BELAS-ARTES
Especialidade em Cincias da Arte
ANO 2014
UNIVERSIDADE DE LISBOAFACULDADE DE BELAS-ARTES
Arte e RealidadeAproximao, diluio e simbiose no sculo XX
Cristina Pratas Cruzeiro
VOLUME I
DOUTORAMENTO EM BELAS-ARTES
Especialidade em Cincias da Arte
Tese orientada pelo Professor Doutor Fernando Antnio Baptista Pereira
ANO 2014
Resumo
O tema desta tese de doutoramento incide sobre o caminho de aproximao, diluio e
simbiose entre arte e realidade tangvel no sculo XX. A emergncia do caminho de
aproximao entre arte e realidade foi anterior ao dealbar do sculo XX, podendo ser
entendido como consequncia do pensamento racionalista e materialista do mundo
moderno. Ainda assim, foi ao longo do sculo XX que o mesmo se desenvolveu de uma
forma totalmente indita, ou seja, sem o recurso a qualquer tipo de representatividade.
As prticas artsticas que aqui se evocam fazem um manuseamento directo da realidade
tangvel a partir de trs dimenses essenciais da mesma: a material, a contextual e a
social. A dimenso material corresponde ao sentido fsico e palpvel da realidade. A
dimenso contextual ao sentido espacial e vivencial da realidade. A dimenso social
corresponde produo de sentido social e como o nico inteiramente criado pelo ser
humano, corresponde simultaneamente ao modelo de sociedade em que cada sujeito e
cada sociedade acredita. Este pois tambm o terreno onde as ideologias e propostas de
transformao social mais se arreigam. Sendo dimenses distintas, na prtica elas esto
em constante interaco, pelo que se considerou que a anlise particular de apenas uma
delas corresponderia a uma viso parcial da problemtica em discusso. Optou-se por
isso por uma estrutura que pudesse integrar as trs dimenses, distinguindo-as, mas
mantendo sempre a possibilidade de dilogo com as restantes.
Abstract
The theme of this PhD thesis focuses on the path of approach, dilution and symbiosis
between art and tangible reality in the twentieth century. The emergence of this path had
happened before the twentieth century and it can be understood as a consequence of the
rationalist and materialist thinking of the modern world. Still, it was during the
twentieth century that the approach, dilution and symbiosis between art and tangible
reality has developed a totally new way, without the recourse to any kind of
representation. Artistic practices that are mentioned here make a direct handling of
tangible reality from three essential dimensions of her: the material, contextual and
social. The material dimension corresponds to the physical and palpable sense of reality.
The contextual dimension corresponds to the spatial and experiential sense of reality.
The social dimension corresponds to the production of social meaning and since it is the
only entirely created by us, also corresponds to the model of society in which every
person and every society believes. Is in this dimension that the ideologies and proposals
for social change grows. Being different dimensions, in practice they are in constant
interaction, therefore it was considered that the particular analysis of only one of them
corresponds to a partial view of the problem under discussion. Because of that, we had
opted for a framework that could integrate the three dimensions, distinguishing them,
but always keeping the possibility of dialogue.
Palavras-chave:
Arte - Art
Real/realidade Real/ Reality
Sculo XX - Twentieth Century
Vanguarda Avant-garde
Aproximao Approachment
Diluio Dilution
Simbiose Symbiosis
Agradecimentos
Ao Professor Fernando Antnio Baptista Pereira, meu orientador, quero deixar expressa
a gratido pela confiana que depositou neste projecto desde o primeiro momento,
assim como a orientao construtiva e crtica ao longo do perodo de desenvolvimento
da tese. Agradeo ainda a todos os docentes, investigadores e artistas com quem fui
discutindo este tema e que por vrias razes se mostraram uma ajuda inestimvel.
Agradeo Fundao para a Cincia e Tecnologia o apoio prestado atravs da
atribuio de uma bolsa de investigao sem a qual teria sido difcil a realizao desta
tese.
Agradeo ainda a todos os meus amigos e familiares que com carinho, pacincia e
confiana foram fundamentais para ultrapassar as situaes adversas levando o barco a
bom porto. Aos que me acompanharam no s neste projecto como em muitos outros no
passado uma palavra especial: Aos meus pais, Maria e Joo, pelo amor incondicional;
ao meu companheiro, Jaime, pelo amor, constante incentivo e pacincia; minha irm,
Catarina, amiga sempre presente; ao Miguel, pela amizade e optimismo e ao Rafael e
Toms, com quem compartilho muitos momentos fundamentais mesmo que disso no
se apercebam. Ainda Pasi, companheira e presena fiel das horas em frente ao
computador.
ndice
INTRODUO...............................................................................................................13
PARTE 1
MAPEANDO O RELACIONAMENTO ENTRE ARTE E REALIDADE: NOVAS
ABORDAGENS E APROXIMAES DESDE O MATERIAL AO SOCIAL............27
1 Aproximao material entre arte e realidade: Insero de tcnicas e materiais
extra-pictricos na realizao da obra de arte.............................................................27
1.2. Da abertura matrica, da experincia do sensvel, da matria como sujeito45
1.3. Descontextualizao do objecto...................................................................77
1.4. Ressemantizao do objecto........................................................................95
2 Aproximao contextual entre arte e realidade: Insero da prtica artstica no
contexto da realidade tangvel .................................................................................119
2.1. A experincia do vivido na arte.................................................................126
2.2. A experincia do Espao e Lugar da realidade tangvel............................151
3. Aproximao social entre arte e realidade: Insero da prtica artstica no
contexto da realidade social......................................................................................180
3.1. A politizao da arte..................................................................................183
3.2. Vanguarda e transgresso da ideia de essencialismo identitrio da arte ...226
4 Do artista produtor ao espectador como agente artstico....................................243
PARTE 2 DA DILUIO SIMBIOSE ENTRE ARTE E REALIDADE.............271
1 Da realidade em crise hiptese da sua construo...........................................271
1.1. A realidade em crise..................................................................................271
1.2. O regresso da realidade..............................................................................286
1.2.1. O Real............................................................................................288
1.2.2. O poltico e o social.......................................................................296
2 Arte e realidade, Realidade e arte: Da diluio simbiose.................................358
2.1. Diluio material entre arte e realidade: Insero de novas tcnicas e
materiais...............................................................................................................363
2.2. Diluio contextual entre arte e realidade: Insero e interveno nos
contextos .............................................................................................................384
2.3. Diluio social entre arte e realidade: Insero, interveno e aco poltica
directa...................................................................................................................414
2.4. Associao simbitica entre arte e realidade tangvel...............................444
CONCLUSO...............................................................................................................463
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................471
NDICE ONOMSTICO..............................................................................................497
INTRODUO
Pues esta vez, para el artista, se trata de que la creacin, comoprioridad, se haga cargo de la realidad antes que trabajar dellado del simulacro, de la descripcin figurativa o de jugar com elfenmeno de las apariencias.
Paul Ardenne, Un arte contextuel
O tema desta tese de doutoramento o caminho de aproximao, dilui e simbiose entre arte e
realidade tangvel no sculo XX foi motivado pela busca de respostas a uma srie de questes que
se foram acumulando no decorrer da formao acadmica anterior. A histria do encontro com este
tema assim uma histria longa que comeou no momento em que o interesse por arte
contempornea conduziu deciso por uma formao em histria da arte. No decorrer dessa
formao, algumas respostas foram encontradas mas uma permaneceu sempre por responder:
durante o sculo XX existiu um caminho de aproximao entre arte e realidade tangvel? Esta
primeira questo, que aparecia recorrentemente de cada vez que me deparava com uma obra, uma
declarao de artista ou um ensaio que pareciam sustentar uma resposta afirmativa, nunca ficava
respondida de forma totalmente satisfatria. Talvez isso se devesse ao facto, reconhece-se agora, de
a associao da arte realidade ser sempre complexa e existir uma forte renitncia em admiti-la,
particularmente se se seguirem determinados parmetros da filosofia e da esttica. Assumiu-se
ento que se faria o mapeamento do relacionamento entre arte e realidade no sculo XX tendo em
mente essa primeira questo, ou seja, fazendo convergir esse mapeamento com um caminho de
aproximao.
Entenda-se aqui que se assume a noo de 'realidade' a partir de dois aspectos que Paul Watzlawick
define da seguinte forma:
O primeiro tem a ver com as propriedades puramente fsicas e objectivamente discernveis dascoisas, e est intimamente ligado a uma percepo sensorial, senso comum ou verificaoobjectiva, repetvel e cientfica. O segundo aspecto a atribuio de significado e valor a essascoisas, e que se baseia na comunicao. (1991, p.127).
Os dois aspectos correspondem a domnios diferentes ainda que tendencialmente se tenda a preterir
o primeiro, objectivo e fsico, ao segundo, subjectivo. Significa isto que se existem factos, aspectos
e coisas que consensualmente consideramos reais, no menos real o significado e o valor que lhes
atribumos. Se em determinadas reas do conhecimento o domnio objectivo assume um maior
relevo, em outras o segundo que se destaca. Contudo, os dois domnios no esto em plos
13
opostos. Esto interligados de forma indissocivel, como a prpria esttica1 ou mais recentemente
os discursos crticos sobre o espao pblico2 tm demonstrado. Essa atribuio de significado est
pois dependente da observao da realidade, sendo a sua relao menos dicotmica e mais
dialctica. Essa a razo para se utilizar o termo 'realidade tangvel', procurando desta forma
reafirmar o sentido de que a realidade composta por esses dois aspectos e sem um deles nunca
poderia ser tangvel, ou seja, nunca poderia ser compreendida.
A emergncia do caminho de aproximao entre arte e realidade foi anterior ao dealbar do sculo
XX, podendo ser entendido como consequncia do pensamento racionalista e materialista do mundo
moderno. Durante o sculo XIX, a compreenso do mundo ocidental foi marcada pelo
conhecimento cientfico, um marco da sociedade industrializada e capitalista. Com ele deu-se a
emergncia do pensamento positivista que determinou uma explicao da realidade arredada da
teologia e da metafsica. Baseado na observao do concreto, ele estabeleceu uma reviso da
experincia sensvel assim como uma reviso da importncia da visualidade e da observao.
Opondo-se a esta objectividade positivista, o surgimento do materialismo histrico-dialctico de
Marx e Engels representou uma importante alterao deste pensamento, embora tivesse mantido
uma componente materialista fundamental. O Marxismo considera que o pensamento positivista
ignora a mutabilidade da sociedade, insistindo na importncia de se considerarem os seres
objectivos como elementos constitutivos da realidade do mundo. Estabeleceu por isso um
pensamento dialctico centrado na relao entre as partes materiais e imateriais e introduziu o
condicionalismo histrico-social. Este pensamento dialctico eliminava o pensamento determinista
acerca dos destinos do ser humano e rejeitava a criao de uma cincia social neutra, arredada de
julgamentos polticos e valores sociais, como o positivismo propunha. Neste mbito, a importncia
do Marxismo reside no facto de ter defendido que a realidade no tinha sentido por si mesma. Era o
sujeito que lhe dava sentido pelo que muitas das propostas e prticas sobre as quais se reflectir
descendero desta teoria marxista de anlise e transformao da sociedade.
A influncia deste pensamento filosfico na arte teve consequncias que se prolongaram para o
sculo XX e acabaram inclusive, de certa forma, por se 'naturalizar'. Nas prticas artsticas, a
1Atravs de interpretaes radicadas na dualidade forma/contedo, signo, significado e significante, entre outras.
2 Que incluem no apenas o espao concreto como o espao discursivo. Precisamente sobre o assunto RosalynDeutsche referiu:
When critics draw an apposition between real or concrete spaces, which are supposedly constitutedby extradiscursive process, and other spaces that are held to be merely metaphorical or discursive, theynot only drastically restrict the field of reality; they also conceal the politics through which the space oftheir own categories is constructed, presupposing that the object of their discourse is a purely objective fieldconstituted outside any discursive intervention. Unproblematized references to real spaces seal off the spacesin question from contestation precisely by repressing the fact that spaces are produced. (Deutsche, 1996,p.374-375).
14
crescente valorizao dos processos produtivos disso exemplo, uma vez que determina uma
ateno a factos e valores observveis e concretos, ou seja, determina uma ateno ao caminho e
no apenas ao objecto entendido como auto-suficiente. um facto que os modos de produo
industrial, o desenvolvimento tecnolgico, a serializao, a nova percepo do tempo e do espao,
entre outros, foram determinantes para as propostas artsticas que se desenvolveram a partir de
meados do sculo XIX, projectando-se com todo o vigor durante as primeiras dcadas do sculo
XX. Por exemplo, o nfase na montagem, na repetio compositiva, na recorrncia a sries, a
objectos ou a materiais serializados, impressos e despersonalizados, na importncia da
processualidade ou, com mais evidncia na segunda metade do sculo, na incidncia do contexto
em detrimento do objecto e na incidncia da capacidade social de transformao do mundo
demonstram uma aproximao metodolgica entre as prticas artsticas deste perodo e o paradigma
industrial.
A arte sempre manteve um relacionamento prximo com a realidade tangvel. Alis, ela prpria
parte dessa realidade. Mas se a aproximao da arte realidade j tinha acontecido em outros
momentos, entre eles o realismo histrico, cumpriu-se no sculo XX no por uma via indirecta
dada pela representao pictrica mas por uma via directa, sem mediao material, contextual ou
social. Essa mudana paradigmtica alterou simultaneamente as abordagens de leitura como a
relao da arte com o mundo tangvel, aproximando-os e, em alguns casos, diluindo-os no que toca
a questes de identificao e identidade.
No sculo XX, essa aproximao pautou-se pelo rompimento com a tradicional centralidade
hegemnica de disciplinas, suportes e estruturas ligadas estritamente s artes plsticas,
particularmente a pintura e a escultura. Essa ruptura determinou uma dialctica directa e sem
precedentes entre a realidade tangvel e o artista, a obra de arte, os contextos artsticos, polticos,
sociais, etc.. Ao longo desse sculo, vrias propostas em reas distintas da actividade artstica foram
sendo incorporadas num regime das artes que trouxe consigo uma aproximao realidade tangvel
do ponto de vista material, contextual e social.
As trs dimenses aqui focadas a material, a contextual e a social correspondem a dimenses
fulcrais do nosso relacionamento com a realidade. A dimenso material corresponde ao sentido
fsico e palpvel da realidade. A dimenso contextual ao sentido espacial e vivencial da realidade. A
dimenso social corresponde produo de sentido social e como o nico inteiramente criado
pelo ser humano, corresponde simultaneamente ao modelo de sociedade em que cada sujeito e cada
sociedade acredita. Este pois tambm o terreno onde as ideologias e propostas de transformao
social mais se arreigam. Sendo dimenses distintas, na prtica elas esto em constante interaco,
pelo que se considerou que a anlise particular de apenas uma delas corresponderia a uma viso
15
parcial da problemtica em discusso. Optou-se por isso por uma estrutura que pudesse integrar as
trs dimenses, distinguindo-as, mas mantendo sempre a possibilidade de dilogo com as restantes.
No plano material compreendem-se propostas objectuais da arte que exploraram tcnicas,
metodologias e materiais transportados da vivncia quotidiana para as obras ou fazendo-os coincidir
com a prpria obra. A explorao experimentalista das mesmas operou uma aproximao da obra
com a realidade tangvel que em muitos casos teve a sua origem na resistncia s convenes
axiolgicas e ontolgicas existentes. Noutros casos comportou alteraes no prisma discursivo, no
circunscrito apenas obra mas em simultneo ao contexto. Naturalmente que a apropriao de
materiais ou tcnicas do quotidiano para a produo da obra no implicou necessariamente que o
artista manifestasse um desejo consciente de abalar a concepo de arte vigente nem sequer a
instituio de arte. Contudo, significou uma alterao comportamental em relao ao fazer artstico,
assumindo o carcter experimental do mesmo e significou em simultneo uma alterao conceptual
em relao ao entendimento de obra enquanto objecto material que pertence ao mundo tangvel.
O plano contextual compreende essencialmente propostas artsticas processuais que se centraram
em valores sensoriais como a experincia, o efmero, a vivncia e o estado de partilha e encontro
como formas de arte. Compreende tambm propostas que se fazem acontecer em espaos
indiferenciados ou no estritamente relacionados com a arte, como por exemplo, no espao 'real' do
corpo, das relaes emocionais e sociais directas. Algumas destas propostas mobilizaram-se
ideologicamente e assentaram numa perspectiva critica e de aco poltica, manifestando um desejo
coincidente e inseparvel de contestao artstica e social. Outras, no se constituindo
manifestamente nesse prisma, podem ser enquadradas na valorizao conceptual que tendo ocorrido
em situaes pontuais no incio do sculo XX, haveriam de se desenvolver sobretudo a partir da
segunda metade do mesmo.
O plano social compreende tambm prticas artsticas essencialmente processuais que entendem a
sua prtica no mbito da interveno poltica. So por isso propostas com um elevado
comprometimento com o contexto social em determinado espao e tempo especfico. Aqui, a
questo desloca-se da prioridade esttica para a prioridade social e poltica, pelo que as questes
que as motivam se afastam do edifcio esttico tradicional. A sua problematizao centra-se num
entendimento da arte como ferramenta essencial para o projecto de edificao e transformao
social.
Os trs planos, ainda que analisados separadamente por razes que se prendem com a
sistematizao dos saberes, tm aspectos em comum e em algumas situaes cruzam-se no mesmo
projecto, na mesma obra ou no mesmo contexto geogrfico e histrico. Ainda assim, possvel
afirmar que o plano material viu a sua origem e desenvolvimento pleno durante a primeira metade
16
do sculo XX e esteve associado inquestionavelmente ao relevo que a inovao formal e plstica
teve para as primeiras vanguardas que nesse aspecto seguiram na esteira do modernismo. O plano
contextual teve o seu perodo de desenvolvimento pleno na segunda metade do sculo XX. Embora
existam exemplos precursores, foi durante este perodo que surgiram as tendncias conceptuais e,
mais importante ainda, as formas de expresso artstica que se centram na especificidade dos
contextos e na interaco com o pblico. Estas assumem precisamente estes elementos como
'matria' primordial de trabalho, recusando ou subalternizando a criao de 'objectos' e centrando-se
na experincia enquanto conceito da prtica artstica. Quanto ao plano social, emergiu na primeira
dcada do sculo XX, em particular no perodo pstumo Revoluo de Outubro de 1917 na
Rssia. A ideologia que motivou estas prticas, assim como as metodologias de aproximao s
pessoas e ao contexto real foram replicadas posteriormente em diversas prticas artsticas. A elas
juntaram-se novas metodologias e ideologias que, ainda assim, mantiveram sempre um
relacionamento prximo com esse contexto de emergncia.
No fundo, em certa medida e no contexto que esta tese trata, podemos dizer que determinada arte
assumiu a matria e o contexto espacial, vivencial e social da realidade tangvel como factores
determinantes para a produo artstica e portanto tem sido empenhada na aproximao sociedade,
s pessoas, aos produtos e coisas que a circulam. Nos ltimos meses, devido consolidao de uma
crise financeira grave na Europa, tem-se falado bastante de 'democracia real', ou seja, de uma
democracia prtica que assente no poder efectivo e directo do povo. Com as devidas distncias
metafricas, poderamos dizer que a arte aqui tratada efectivou 'uma arte real', ou seja, sem
mediaes, prxima da vida comum e aspirando a um poder de actuao directo na realidade
tangvel.
Considerou-se que dada a extenso de tendncias, obras, propostas e artistas que ao longo do sculo
XX estabeleceram essa ponte, seria imperativa uma anlise selectiva sobre algumas tcnicas,
processos, metodologias, obras e entendimentos de arte que se considera serem essenciais para a
compreenso desse caminho. Para alm disso, do mapeamento teria que fazer parte no apenas a
reconstituio do caminho mas simultaneamente a sua anlise crtica, procurando perceber qual a
sua importncia e relevo no mbito geral da produo artstica deste perodo, que incongruncias e
falhas o mesmo demonstra e, porque estamos j num outro sculo, que repercusses e efeitos o
mesmo ter tido para as prticas artsticas actuais e para a compreenso que actualmente podemos
fazer delas. precisamente essa dinmica que interessa estudar: que efeitos isso transportou para os
cdigos de produo e entendimento artstico e, em simultneo, que efeitos isso produziu na
realidade tangvel. A essas questes ir tambm esta tese procurar responder. Importa por isso
sublinhar que esta investigao no pretende assumir uma sistematizao neutra do tema em
17
anlise. Ela desenha um percurso que assumidamente perspectivado sob a ptica da autora. Isto
significa que nem sempre as obras, as prticas e as teorias em anlise procuraram responder s
mesmas questes. Se em alguns casos a problemtica que levantam coincidente com o que se
analisa, noutros casos ela ultrapassa o mbito do problema em anlise. A sua utilizao pois
selectiva, ou seja, aqui inserida e discutida apenas nos aspectos que podem ajudar a compreender
e a reforar a pertinncia do pensamento que se defende.
A formao acadmica em histria da arte e teoria da arte influencia o percurso que esta tese toma.
No se partilha da ideia de que a arte contempornea actual no faz parte do terreno de
operacionalidade da histria da arte, reservando-se essa matria de investigao para reas como a
crtica de arte, a curadoria ou a cultura visual. Tambm no se partilha da ideia de que a histria de
arte se tenha que manter num terreno circunscrito s suas metodologias tradicionais e que tudo o
que saia delas tenha que ser designado no mbito de propostas de investigao mais recentes, como
as de cultura visual ou estudos culturais. A histria de arte define-se pela articulao que mantm
com a historicidade dos factos, ou seja, com a firme convico na histria, na sua existncia e na
sua importncia para se conhecer e compreender o passado mas tambm o presente. Ainda assim,
considera-se de extrema importncia a adopo de uma postura interdisciplinar que possa articular
diferentes reas do conhecimento por forma a fazer jus s prprias prticas artsticas que estaro em
estudo e ao prprio tempo histrico onde as mesmas se incluem que, como se sabe, foi de extrema
importncia para um entendimento alargado e interdisciplinar dos fazeres e dos saberes. Assim, a
presente tese de doutoramento cumpre os requisitos da rea em que est includa as cincias da
arte vocacionando-se para uma perspectiva histrica do tema que no exclui, pelo contrrio inclui,
o contributo de diferentes reas como a histria da arte, a sociologia, a antropologia, a psicologia, a
filosofia, a geografia, os estudos culturais e os estudos polticos e sociais. Assim, pode-se dizer que
se trata de uma tese inserida num territrio de entendimento expandido da histria da arte, uma
exigncia da prpria contemporaneidade e em particular do tema em discusso.
A pesquisa foi direccionada simultaneamente para duas reas: a teoria e a prtica, sendo que em
tempos recentes as duas acabam muitas vezes por se fundir no territrio da prtica artstica.
Procura-se que as duas reas tenham uma presena similar nesta tese, articulando-se mutuamente
com vista ao cumprimento dos objectivos propostos. As questes atrs formuladas foram motivadas
pela observao e estudo constante da prtica artstica pelo que a ela que fundamentalmente esta
tese responde. Mas as reas da teoria s quais se recorre fundamentam essa mesma prtica,
sistematizam-na, podem em alguns casos t-la inclusive motivado e por isso considera-se que a sua
presena igualmente importante.
A estrutura apresentada nesta tese reflecte uma forma indita de pensar o tema. Do ponto de vista
18
terico e prtico, os autores e artistas tm tendncia a conduzir a sua anlise e investigao para
apenas uma das dimenses, centrando-se ora no plano material, ora no contextual, ora ainda no
plano social. So opes que tm vantagens e desvantagens. No caso especfico desta tese, assumiu-
se que a grande vantagem em faz-lo consistiria na construo de um panorama alargado que
responderia melhor problemtica temtica da tese que diz respeito s trs dimenses,
considerando-as componentes igualmente importantes da realidade tangvel assim como da
percepo e compreenso que fazemos dela. Para alm disso, a anlise centrada em apenas um dos
planos denota com frequncia um pensamento de fundamento ontolgico sobre arte, procurando-se
a partir dessa anlise defender determinado entendimento de arte especfico. No essa postura a
que aqui se adopta. Considera-se mais importante aferir sobre o contributo que cada um desses
entendimentos de arte deu para o processo de significao das obras e prticas artsticas do que
aferir sobre determinado entendimento de arte em absoluto. Esse facto releva da convico de que o
lugar das obras e prticas artsticas na investigao sobre arte no o de servirem de pretexto para
determinada reflexo terica nem to pouco o de servirem para ilustrar um ou outro entendimento
terico de arte. O seu lugar na investigao sobre arte deve ser central. No obstante, considera-se
tambm que as obras e prticas artsticas no tm um valor e significado absoluto em si mesmas,
ganhando apenas sentido em relao s suas condies de produo e de recepo, condies essas
sempre histricas e culturais.
Foram por isso vrias as abordagens tericas a que se recorreu. Como se disse, nenhum estudo com
que se tenha contactado aferiu de forma global sobre o caminho de aproximao entre arte e
realidade atravs da anlise das trs dimenses da realidade tangvel. Ainda assim, como o critrio
cronolgico adoptado foi circunscrito s prticas artsticas ocorridas desde o incio do sculo XX,
foram vrias as abordagens que ajudaram no entendimento de cada um dos planos em particular.
Transversais a eles esto as teorias crticas da sociedade feitas em grande medida por filsofos,
antroplogos, socilogos e historiadores, sendo que as que se mostraram de maior pertinncia foram
as de influncia marxista. O materialismo histrico-dialctico de Karl Marx e Friedrich Engels
como mtodo de compreenso e anlise da histria e das dinmicas sociais foi, como disse, uma
influncia determinante para o pensamento do sculo XX. Mas se at aos finais dos anos sessenta
essa influncia se traduziu numa compreenso minimamente consensual no seio do pensamento a
partir da emergiram uma srie de correntes e teorias que, advindas do Marxismo, o procuraram
actualizar, modificar ou simplesmente renegar, mantendo contudo com ele uma relao de
proximidade. A todas elas se deu espao nesta tese uma vez que se considerou que determinadas
prticas artsticas estavam imbudas de determinado pensamento crtico da sociedade. Por exemplo,
na anlise do processo de aproximao e diluio material entre arte e realidade resultaram de
19
grande importncia os ensaios de Gilles Deleuze, Alain Badiou e Slavoj iek. Em relao anlise
da aproximao e diluio contextual entre arte e realidade foram os ensaios de Henri Lefebvre,
Michel De Certeau, Marc Aug e David Harvey que se mostraram de maior pertinncia. J em
relao aproximao e diluio social entre arte e realidade, os autores que com maior incidncia
referiram aspectos de relevo para o tema foram Louis Althusser, Walter Benjamin, Antoni Negri e
Michael Hardt, David Harvey, Chantal Mouffe e Ernest Laclau e Jacques Rancire.
Outras tendncias da teoria crtica da sociedade foram tambm utilizadas, particularmente para a
anlise de momentos histricos em particular. Os filsofos do ps-modernismo como Jean
Baudrillard, Gianni Vattimo, Jean-Franois Lyotard, Fredric Jameson e Gilles Lipovetsky
marcaram o pensamento dos anos setenta e oitenta e foram essenciais para se analisar esse perodo
no contexto de uma pretensa 'crise' da realidade com repercusses ao nvel das prticas artsticas.
A Escola de Frankfurt foi determinante para se pensar acerca das condies de produo da arte e
sobre as relaes da arte com a sociedade. Por exemplo, os ensaios de Walter Benjamin escritos na
dcada de trinta continuam hoje a ser essenciais no momento de tratar questes como o impacto das
novas tecnologias para o contexto das artes ou o processo de dissoluo da autoria. Os filsofos e
tericos associados ao ps-estruturalismo, em particular Roland Barthes e Michel Foucault, foram
essenciais no momento de analisar a importncia que a figura do autor e do artista adquiriam no
decorrer do sculo XX assim como o foram os autores e filsofos Hans Robert Jauss e Wolfgang
Iser ambos pertencentes Teoria da Recepo Umberto Eco, Nicolas Bourriaud e Claire Bishop
para a anlise dos processos de integrao do espectador como agente artstico.
No que se refere concretamente teoria crtica da arte e anlise das propostas artsticas, como se
disse, as abordagens utilizadas centraram-se em cada um dos planos em particular. Assim, para a
aproximao e diluio material entre arte a realidade foi importante o pensamento crtico que
Clement Greenberg produziu nos anos sessenta sobre o cubismo. O discurso produzido pelo crtico
foi sobretudo importante quando contraposto com os discursos de poca dos prprios artistas e
crticos como Pablo Picasso, George Braque ou Guillaime Apollinaire, assim como com os de
Harold Rosenberg que tambm produziu alguns ensaios acerca do cubismo e da colagem. Mas
pode-se dizer que a anlise dos movimentos das primeiras vanguardas foi marcado pelo estudo de
dois autores com perspectivas muito distintas. Um deles o do j referido Clement Greenberg e o
outro o de Peter Brger. Ambos marcaram os discursos da teoria nos anos sessenta sobre o
comportamento que as primeiras vanguardas teriam adoptado em relao instituio de arte.
Partindo de entendimentos opostos, o primeiro defendeu que o comportamento destes movimentos
em particular os do cubismo e da abstraco se tinha dirigido para a autonomia da arte em
relao realidade. O segundo defendeu que o comportamento destes movimentos em particular
20
das vanguardas russas, do dadasmo e do surrealismo se dirigiu para um rompimento com a
instituio de arte e reintegrao da arte na realidade ou na prxis da vida. Considerou-se que esta
oposio traria vantagens para o estudo que se desenvolveu em relao aproximao material
entre arte e realidade na medida em que ambos, embora de forma distinta, acabam por se referir ao
mesmo caminho de aproximao. Ainda na ptica da aproximao material entre arte e realidade
foram importantes as teorias filosficas de Arthur C. Danto, em particular as que se referem ao
objecto descontextualizado, assim como as de Hal Foster, um dos primeiros autores na rea da
crtica da arte a referir a importncia da realidade e do Real para as prticas artsticas da segunda
metade do sculo XX. J o pensamento de Mario Perniola, que tem incidido sobre a utilizao do
Real pela arte contempornea, foi evocado atravs da definio de alguns conceitos importantes por
si formulados como os de 'realismo psictico' e de 'idiotia'.
No que respeita dimenso de aproximao e diluio contextual entre arte e realidade o estudo de
Paul Ardenne, 'Un arte contextuel', foi particularmente relevante na medida em sistematizou as
prticas artsticas realizadas em relao ao contexto em diferentes perspectivas, centrando-se
naquelas que ocorreram particularmente a partir dos anos setenta. A este nvel, outros autores o j
tinham feito. Os ensaios de Suzanne Lacy e Lucy Lippard representam uma primeira tentativa de
sistematizao de prticas artsticas recentes como o eram as contextuais pelo que foram utilizadas
tendo em conta essa perspectivao histrica. O ltimo ensaio de Claire Bishop 'Artificial Hells:
Participatory Art and the Politics of Spectatorship' publicado em 2012, foi tambm uma referncia
importante para a anlise de aspectos metodolgicos como a participao numa perspectiva mais
complexa que a da 'esttica relacional' criada por Nicolas Bourriaud. So cada vez mais os centros
de investigao universitrios que actualmente estudam a aproximao contextual entre arte e
realidade. Dos estudos e investigaes que em anos recentes foram publicados por esses centros de
investigao destaca-se 'Community Art' (2011), da responsabilidade do grupo de investigao 'Arts
in Society' do Fontys College for Arts nos Pases Baixos, essencial para um mapeamento abrangente
da arte de carcter contextual. Sublinham-se nesse volume os textos de Pascal Gielen e de Paul De
Bruyne pela intensidade das problemticas que levantam em torno das noes de 'comum' ou de
'comunidade' assim como em torno de uma problematizao esttica e social destas prticas
artsticas, propondo por exemplo diferentes tipologias para as identificar. Outro centro de
investigao que tem publicado diferentes ensaios sobre o tema da 'arte pblica' encontra-se sediado
em Barcelona. Do centro de investigao 'Polis' da Universidade de Barcelona destacam-se entre
outros os textos de Antoni Remesar. Os textos de artistas como Allan Kaprow, George Brecht, John
Cage, Internacional Situacionista, Oda Projesi, Marta Traquino, entre outros, revelaram-se neste
mbito de grande importncia por mostrarem uma investigao e pensamento particular sobre o seu
21
trabalho mas tambm sobre as prticas artsticas contextuais em geral. Neles, foi frequente o
cruzamento com o desejo de aproximao realidade atravs da experincia do vivido ou da
compreenso das noes de espao e de lugar.
A aproximao e diluio social entre arte e realidade, assim como a associao simbitica entre
arte e realidade foram igualmente pensadas articulando o trabalho terico-prtico dos artistas com o
pensamento terico produzido por diferentes autores. Por se ter centrado a questo em torno da
politizao da arte, da arte activista e do activismo artstico foi importante uma perspectiva histrica
para a qual se considerou essencial o j referido ensaio de Peter Brger e a compilao de textos
sobre a arte activista da segunda metade do sculo XX realizado por Nina Felshin. O ltimo ensaio
j referido de Claire Bishop, assim como outros textos de referncia da mesma autora, sobre a
actuao poltica das prticas artsticas activistas, foram tambm utilizados em articulao com o
pensamento poltico representado por Chantal Mouffe e Ernest Laclau, nomeadamente sobre as
noes de antagonismo e agonismo. Por sua vez, os estudos de Gregory Sholette referentes ao
colectivismo e interveno politica da arte e dos artistas mostrou-se de importante relevo. Sendo
este um autor que se posiciona criticamente em relao ao ps-marxismo, tem feito uma
investigao nesta matria recorrendo a artistas e filsofos, em particular Toni Negri, que
contrapem na actualidade a perspectiva de que os princpios do marxismo assentes na luta de
classes e numa organizao social de base econmica esto ultrapassados. Para alm disso, tendo
em conta que os colectivos de arte activista criados aps os anos oitenta se centram na aco directa
e na auto-organizao, este autor tem motivado a investigao e o encontro entre tericos que se
debruam sobre a importncia estratgica das metodologias e do entendimento de arte para a
actuao das prticas artsticas em discusso. Os artistas que em anos recentes se tm dedicado a
trabalhar atravs de uma interveno poltica directa so, por regra, produtores terico-prticos.
Assim, os textos que publicam so tambm uma importante fonte de reflexo sobre a matria,
destacando-se nesta tese o trabalho que Marcelo Expsito tem realizado a este nvel. Expsito foi
um dos primeiros artistas a observar a importncia que a produo visual e artstica tem tido nos
ltimos anos na organizao, divulgao e aco de diferentes movimentos sociais. neles que se
identifica uma associao simbitica entre arte e realidade pelo que os seus textos sobre a matria
so fundamentais.
A tese de doutoramento encontra-se dividida em duas partes. Estando as duas partes ligadas
tematicamente, a primeira revela o enquadramento histrico da segunda parte. Embora esta
estrutura no reflicta uma linearidade cronolgica uma vez que em cada captulo se recorre a
tempos e espaos cruzados existe um percurso que corresponde na primeira parte emergncia da
aproximao entre arte e realidade, tal como se enuncia no ttulo da mesma. Assim, nesta parte so
22
analisadas e reflectidas as prticas artsticas que ocorreram desde o incio do sculo XX at
sensivelmente dcada de setenta. Como j se referiu, o mapeamento foca-se no percurso de
aproximao material, contextual e social entre a prtica artstica e/ou as obras e a realidade
tangvel. No primeiro captulo 'Aproximao material entre arte e realidade: Insero de tcnicas e
materiais extra-pictricos na realizao da obra de arte' so abordadas diferentes questes
relacionadas com a introduo de tcnicas e de materiais nas obras de arte. No sub-captulo 1.1.
intitulado 'A colagem e a valorizao do heterclito para a produo artstica', introduzem-se as
questes que dizem respeito colagem como procedimento novo no contexto das artes plsticas,
entre as quais a fragmentao da imagem, a significao material e cultural dos materiais. No sub-
captulo 1.2. intitulado 'Da abertura matrica, da experincia do sensvel, da matria como sujeito'
so abordadas as intenes e os efeitos que a introduo de determinados materiais e objectos
tiveram em diferentes movimentos de vanguarda do sculo XX como o cubismo, o futurismo, o
informalismo e a arte povera. No sub-captulo 1.3. intitulado 'Descontextualizao do objecto'
analisada a problemtica inerente ao ready-made e significao que a questo da
descontextualizao do objecto teve para diferentes movimentos de vanguarda e artistas posteriores
actividade de Marcel Duchamp, destacando-se o Nouveau Ralisme. Por ltimo, no sub-captulo
1.4. intitulado 'Ressemantizao do objecto' analisa-se o enquadramento e destaque que o dadasmo
e o surrealismo deram ao objecto no contexto da produo artstica assim como a transposio da
noo de material para a de objecto. A questo da ressemantizao do objecto foi tratada por estes
movimentos de vanguarda assim como o foi mais tarde por diferentes artistas, sendo que se destaca
neste aspecto Joseph Beuys.
No segundo captulo da primeira parte, intitulado 'Aproximao contextual entre arte e realidade:
Insero da prtica artstica no contexto da realidade tangvel' aborda-se a questo do processo de
desmaterializao da obra de arte contextualizando-se o seu desenvolvimento pleno com a
emergncia de questes como a experincia do vivido e a experincia do Espao e do Lugar. O sub-
captulo 2.1., intitulado 'A experincia do vivido na arte', comea com uma abordagem arte de
aco nos EUA e Europa, articulando-a com pensadores e artistas essenciais para a compreenso da
matria e seu posterior desenvolvimento. No sub-captulo 2.2. 'A experincia do Espao e Lugar da
realidade tangvel' destacam-se as prticas artsticas que a partir dos anos sessenta foram
paradigmticas para a investigao sobre o espao, assim como posteriores propostas, colectivos e
percursos artsticos que at dcada de setenta pensaram e reflectiram sobre o tema, em especial a
Internacional Situacionista e Gordon Matta-Clark.
O captulo 3, intitulado 'Aproximao social entre arte e realidade: insero da prtica artstica no
contexto da realidade social', centra-se no contexto de emergncia e desenvolvimento do processo
23
de politizao da arte assim como a contribuio da ideia e prtica de vanguarda para a transgresso
da identidade essencialista de arte. No sub-captulo 3.1., intitulado 'A politizao da arte' estabelece
esta problemtica a partir do contexto da Revoluo de Outubro de 1917 na Rssia e mais tarde, na
Europa, do Maio de 68 atravs da anlise dos movimentos de vanguarda russos desse perodo e do
colectivo da Arte Sociolgica que ocorreu na dcada de setenta. No captulo 3.2., intitulado
'Vanguarda e transgresso da ideia de essencialismo identitrio da arte' discute-se a ideia de
vanguarda em articulao com a aproximao sociedade, realidade tangvel e ptica
essencialista de arte, no sentido da sua superao.
O ltimo captulo da primeira parte, intitulado 'Do artista produtor ao espectador como agente
artstico' centra-se no processo terico-prtico de dissoluo da autoria e reverso do espectador
como agente artstico ao longo de todo o sculo XX recorrendo a autores e diferentes correntes da
filosofia e da crtica do pensamento.
A segunda parte da tese, intitulada 'Da diluio simbiose entre arte e realidade' tratar de prticas
artsticas produzidas a partir dos anos oitenta do sculo XX. Ultrapassados os constrangimentos
materiais, contextuais e sociais entre arte e realidade tangvel, observou-se uma clara tendncia de
diluio das fronteiras ainda erigidas entre arte e realidade tangvel. O estudo e reflexo sobre este
processo de diluio, que ocorreu durante as trs ltimas dcadas do sculo XX, foi centrado na
observao de prticas processuais, participativas e colaborativas. A diluio entre arte e realidade
acontece quando o fazer arte tem como objectivo circunstancial ou principal fazer realidade. Daqui
depreende-se que existe uma motivao que impe a coincidncia entre dois fazeres a arte e a
realidade. Essa motivao e objectivo pode compreender diversas intenes ou fins especficos,
nomeadamente os sociais, os polticos, os ticos, os estticos, os de inovao, etc., mas aquilo que a
define em primeira instncia a vontade de um artista ou colectivo, por via da actividade que
exerce, transformar e interferir directamente na realidade tangvel. Tratam-se de prticas que
'fabricam' realidade sob uma ptica totalmente comprometida com a histria imediata e que se
estabelecem em parmetros totalmente novos para a arte. As prticas compreendidas neste
posicionamento so distintas quanto aos objectivos, mas tm uma coisa em comum: a imposio e
construo de realidade como fim a atingir.
Observou-se ainda que a diluio entre arte e realidade surgiu na sequncia de um momento que
filosoficamente questionava o controlo do ser humano sobre a realidade, como aconteceu na dcada
de setenta e oitenta pelos autores associados ao 'ps-modernismo'. Como interpretar ento que este
tenha sido um momento essencial no relacionamento da arte com a realidade tangvel? Utilizando-a
numa ptica material, contextual ou social, como caracterizar determinadas prticas artsticas que
objectivamente se movem a partir da construo de realidade, controlando-a e dominando-a a partir
24
de mecanismos diversos? A sua postura consentnea com a destes filsofos ou divergente?
O primeiro captulo desta parte, 'Da realidade em crise hiptese da sua construo', analisa
precisamente esse perodo de 'crise' da realidade a partir da sua coincidncia com o que foi
identificado como nova fase do sistema capitalista em articulao com as noes de ps-
modernidade e de ps-modernismo. Analisa ainda o perodo que se lhe seguiu, sensivelmente partir
de meados da dcada de oitenta, quando apareceram os primeiros indcios do que seria um 'regresso
da realidade'. No sub-captulo 1.1., 'A realidade em crise', aborda-se a filosofia do ps-modernismo
e o impacto da mesma sobre uma viso 'apocalptica' sobre a histria e sobre os destinos da
sociedade. No sub-captulo 1.2., 'O regresso da realidade' analisa-se o processo de inverso de um
pensamento indiciador de afastamento realidade, partindo-se para tal de duas abordagens
diferentes: o Real e o Poltico e Social.
No captulo dois da segunda parte, 'Arte e realidade, Realidade e arte: Da diluio simbiose'
segue-se a mesma estrutura revelada na primeira parte da tese em torno das dimenses material,
contextual e social. Ainda assim, porque aqui nos referimos a teorias e prticas artsticas que
ocorreram sensivelmente a partir da dcada de oitenta, acompanha-se o que se considera ser a
continuidade da aproximao entre arte e realidade embora de uma forma intensificada orientada
para a diluio. No sub-captulo 2.1., 'Diluio material entre arte e realidade: insero de novas
tcnicas e materiais' acompanha-se o percurso das artes na ligao ao Real a partir de um realismo
extremo que procura uma interveno fsica com a realidade. Esse percurso parte da anlise de
prticas artsticas que recorrem s cincias naturais e a tcnicas da cincia para operarem
transformaes fsicas em seres vivos, como acontece com a bio-arte. No captulo 2.2., 'Diluio
contextual entre arte e realidade: insero e interveno nos contextos' analisam-se as prticas
artsticas dirigidas ao Lugar que a partir da dcada de oitenta vo ter como terreno de operaes a
esfera pblica e cujo objectivo se centra na construo e transformao das noes de espao
pblico em articulao com o sujeito. No sub-captulo 2.3., 'Diluio social entre arte e realidade:
insero, interveno e aco poltica directa' analisam-se as prticas artsticas que procuram uma
interveno poltica atravs da integrao nos movimentos sociais, assim como os processos de
colectivismo dos anos noventa, suas metodologias e ambies. Por ltimo, no sub-captulo 2.4.,
'Associao simbitica entre arte e realidade tangvel' reflecte-se sobre uma nova forma de
relacionamento entre a prtica da arte e a aco poltica observada nos movimentos sociais que
utilizam a arte como ferramenta poltica de aco.
Adverte-se ainda para as opes de redaco contidas na presente tese de doutoramento. Dada a
intensa discusso e falta de consenso dos especialistas em relao adopo do Novo Acordo
Ortogrfico, optou-se por escrever esta tese de acordo com a regra ortogrfica anterior ao mesmo.
25
Optou-se pela adopo das normas de citao conformes ao sistema de Harvard tal como descrito
no cap. 9.4. da NP 405-1:1994 e no cap. 9.4. da ISO 690:1987, por se considerar ser este o mtodo
mais directo de reconhecer o trabalho de um autor, mencionando de imediato o autor e data de
publicao no texto que est a ser elaborado. Optou-se ainda por manter as citaes na lngua em
que as mesmas foram consultadas. Tendo existido um esforo para que essa consulta fosse
conforme lngua original em que as mesmas foram escritas, nem sempre foi possvel assim
acontecer, preferindo por isso conservar-se todas as citaes tal como foram consultadas.
26
PARTE 1
MAPEANDO O RELACIONAMENTO ENTRE ARTE E REALIDADE: NOVAS
ABORDAGENS E APROXIMAES DESDE O MATERIAL AO SOCIAL
1 Aproximao material entre arte e realidade: Insero de tcnicas e materiais extra-
pictricos na realizao da obra de arte
Um dos aspectos mais directos da aproximao material entre arte e realidade deu-se no inicio do
sculo XX, quando comearam a ser inseridos na construo da obra de arte materiais e pequenos
objectos que at ento eram considerados estranhos ao fazer artstico. A utilizao que os artistas
deram a estes novos materiais, substncias e objectos foi desde a sua emergncia heterognea.
Como se sabe, inevitvel associar esta aco ao cubismo, uma proposta esttica claramente
figurativa ainda que afastada da representao mimtica. Apesar disso, o interesse em materiais da
realidade tangvel no se fez sentir apenas em linguagens figurativas. Ao longo do sculo XX, a sua
utilizao aconteceu tanto em linguagens figurativas como abstractas e naturalmente foi alm do
universo da construo da imagem onde esse tipo de classificaes por princpio no tem lugar ou
no determinante.
Por materiais da realidade tangvel entendem-se todas as tipologias de materiais pr-existentes na
natureza ou sociedade. So materiais que dado o seu contexto original no-artstico, comportam
patamares discursivos diferenciados, particularmente no que se refere construo da imagem,
percepo sensvel, descontextualizao e ressemantizao objectual e transgresso de
categorias e fronteiras disciplinares. Qual o seu papel? Que interesses manifestaram os artistas
nesses materiais? Como deve ser interpretada a sua incluso nas obras? Ao longo do sculo XX
surgiram vrias respostas, oriundas do ramo da filosofia, da histria da arte, da critica de arte, da
cultura visual e naturalmente da prtica artstica. Os discursos da decorrentes, marcados em alguns
momentos por uma clara oposio interpretativa, revelam que a questo no linear.
A insero destes materiais e objectos deu-se inicialmente no contexto da pintura e da escultura,
comportando uma ligao destas disciplinas realidade tangvel a dois nveis: o objectual, uma vez
que os materiais e objectos introduzidos no tinham sido criados com propsitos artsticos e
circulavam no quotidiano com funes diversas da arte e o cultural, uma vez que, por um lado, esta
introduo se fez por via da colagem, uma tcnica maioritariamente utilizada em contexto popular e
27
at ento s residualmente nas belas-artes3 e por outro lado, porque a natureza dos materiais
carregava consigo significaes sociais.
No que se refere emergncia destes materiais no contexto das artes plsticas impe-se
naturalmente uma questo: porque que pintores associaram pintura uma tcnica que determinava
no pintar? Os artistas que primeiramente o fizeram, como Pablo Picasso e George Braque, no
esclareceram claramente os seus propsitos. Ainda assim, coube posteridade interpretar este acto e
as reflexes que surgiram em seu redor foram diversas.
Em termos historiogrficos, o perodo da emergncia da colagem foi marcado pela perda de
influncia e significncia cultural da pintura, nomeadamente por responsabilidade do
desenvolvimento e influncia da fotografia. No obstante, parece claro que em primeira instncia se
tratou de uma resposta a um processo de inquirio aos modos de produo, condio artstica e
naturalmente prpria recepo. Como sabido, as primeiras vanguardas:
() afrontan su tarea con la conciencia apodctica de que no estn determinadas a sentarse sobreunas reglas de juego preestablecidas por instancia alguna, ni siquiera por la propria andadura delas vanguardias precedentes o incluso coetneas, sino que pueden y deben trazarlas ex-novo,materializando as, aunque sea en miniatura, el universo propuesto por la voluntad alternativa dela que parten o en la que desembocan al hilo de su proprio desarrollo histrico. (Brihuega, 1996,p.129).
Actuando como alternativa terico-prtica ao contexto acadmico e institucional, as primeiras
vanguardas empenharam-se na novidade imagtica, semntica e contextual expressando-a na
adopo de princpios fundados na inovao e originalidade. Significa isto que os artistas de
vanguarda se empenharam na defesa do acto criativo do artista, pelo que a importncia atribuda
obra final surgiu a par da enfatizao dos modos de produo. Esta atitude foi determinante para o
ecletismo axiolgico e questionamento ontolgico que se viveu no contexto das artes nas primeiras
dcadas do sculo XX, dos quais fez parte a colagem e a introduo de materiais originalmente
extra-pictricos.
Durante as primeiras dcadas do sculo XX a vontade de experimentar e testar mtodos, materiais e
processos novos tornou-se uma questo incontornvel da prtica artstica em geral e do cubismo em
particular. Admitindo que a experimentao operativa e a inquirio aos modos de fazer estiveram
na base da adopo destes materiais, ser de considerar que a mesma se possa ter devido
objectivamente a uma sequncia de casualidades. Esta tese ganha sustentao quando associada
importncia que factores como a intuio, a indeterminao, a imprevisibilidade e a aceitao dos
resultados da advindos teve para as primeiras vanguardas.
3 Sobre a origem popular da colagem ver Wescher, Herta. (1977) La historia del collage : del cubismo a la actualidad. Barcelona : Gustavo Gili.
28
Mas mais importante que a ponderao sobre as intenes dos artistas a ponderao sobre os
efeitos que a aco comportou e que, naturalmente, no podem ter sido medidos previamente. A este
respeito, como Helder Gomes referiu, quaisquer que tenham sido as preocupaes imediatas que
em cada momento conduziram a produo artstica de um autor, no possvel circunscrever-lhes o
sentido e o alcance da obra (2004, p.22) pelo que as consequncias afectas prtica artstica so
tambm sempre imprevisveis para o prprio artista. Para alm disso, a relevncia que o seu
trabalho adquire depende substancialmente mais dos sentidos que posteriormente se atribuem a ele.
Desta forma, uma coisa so as intenes do artista, se as houve de uma forma plenamente pensada e
racional e outra coisa so as leituras e os sentidos que a aco e a prpria obra permitem fazer.
Na ptica de uma dimenso formalista possvel inserir a utilizao de materiais e objectos da
realidade tangvel na tradio vanguardista de inovao formal. De facto, esta teve lugar e traduziu-
se nas primeiras dcadas do sculo XX pela adopo extraordinria de novas metodologias, novos
procedimentos e novos materiais em prol da noo de obra de arte enquanto objecto. Estes materiais
e objectos podem ser interpretados tendo em conta a plasticidade e a imagtica que criam,
nomeadamente texturas, volumes, contrastes e demarcao de planos, entre outros. Para alm disso,
a sua heterogeneidade determina a ausncia de unidade formal da obra, pelo que para alm de
consubstanciarem uma atitude produtiva diferente, onde o artista em vez de conceber as partes da
imagem utiliza a matria que o rodeia, tambm consubstanciam uma prtica de leitura da obra
diferente da tradicional. Os materiais e objectos da realidade tangvel inseridos na pintura e na
escultura exigem por isso que o mtodo de leitura seja orientado das partes para o todo,
fragmentando a prpria imagem e criando uma nova imagtica onde a ideia de coerncia e
totalidade no corroborada.
Particularmente na pintura, a introduo destes materiais acompanhou o prprio entendimento de
obra de arte enquanto objecto material. sabido que o modelo da pintura enquanto 'janela' do
mundo estava em declnio pelo menos desde o sculo XVIII. As teorias afectas autonomia da arte,
como o formalismo e a pura visualidade foram relevantes para a conscincia da pintura enquanto
objecto fsico. A superfcie passou a ser a realidade que possibilita todas e quaisquer metodologias
de trabalho dentro das prprias caractersticas e limitaes fsicas do suporte. Este entendimento foi
importante para muitas propostas das primeiras dcadas do sculo XX e os materiais introduzidos
ou colados na obra no deixaram de contribuir indelevelmente para ele. At porque contribuam
para o acto criativo e corpo expressivo ou conceptual da obra.
Para alm disso, como Giulio Carlo Argan referiu, confrontada com a reproduo mecnica e a
indstria, a tcnica sui generis da arte passou a ser um resduo, na era industrial, do sistema
tecnolgico de uma poca anterior e ultrapassada (Argan, 1993, p. 92) pelo que foi necessrio
29
alargar os procedimentos, as metodologias e os materiais para alm dos tradicionais. A insero
destes materiais est pois associada tambm crise das tcnicas artsticas que no incio do sculo
XX levou a um primeiro nivelamento entre tcnicas especificamente artsticas e tcnicas no-
especificamente artsticas.(Argan, 1993, p. 91). Este nivelamento fez-se acompanhar ainda pela
passagem da importncia da produo tcnica para a produo conceptual, sendo que o virtuosismo
da mo perdeu terreno no mbito da identidade e valorizao da obra de arte e valores associados
inovao ou conceptualizao se tornaram centrais4.
Com o fortalecimento dessas questes, a relao da arte com a iluso, com a representao e de
ambas com a realidade tangvel foi-se alterando, criando novos dilogos e posicionamentos
nomeadamente no que se refere ao desejo de insero da vida do quotidiano e dos hbitos visuais e
culturais a ela associados no sistema artstico e nas obras de arte, assim como a situao inversa
tambm aconteceu.
No obstante, se a insero de materiais e objectos da realidade tangvel se deu inicialmente no
contexto da pintura e da escultura, rapidamente, pelas caractersticas que a aco comporta,
conquistou uma autonomia prpria, associando-se a novos dispositivos artsticos que foram
amplamente utilizados no universo das artes visuais. Da collage assemblage ainda associadas
ao universo dessas disciplinas rapidamente se passou para o ready-made e para as construes
objectuais que representam uma autonomizao do objecto encontrado em relao s mesmas. Este
pequeno passo de gigante acentuou as questes inerentes descontextualizao e ressemantizao
objectual e trouxe tambm a semente de uma redefinio ontolgica da arte. Esta iria sobretudo ter
frutos j na segunda metade do sculo XX, nomeadamente no que se refere importncia e
determinao do contexto para a classificao do objecto enquanto obra de arte, assim como ao
nvel do conceptualismo e de um sentido da arte mais prximo da filosofia.
Interessa aqui considerar um outro nvel de leitura adjacente incluso destes materiais. A sua
natureza e a forma como foram utilizados pelo artista impe uma discusso cujo cerne vai alm da
plasticidade e da construo imagtica. Independentemente se ter sido ou no essa a inteno dos
artistas o enquadramento institucional e contextual destes materiais determinante. A insero de
um papel colorido numa pintura comporta analogias distintas da insero de um fragmento de papel
impresso de jornal. O segundo, para alm da plasticidade e da interferncia simblica, transporta
consigo um contexto e funo que inevitavelmente resiste no contexto da obra de arte. Com a
autonomizao dos materiais e objectos da realidade tangvel em relao aos meios tradicionais essa
questo tornou-se mais clara. O ready-made que levou a problemtica para um terreno claramente
4 A este respeito ver, por exemplo: Benjamin, W. (1992) Sobre Arte, tcnica, linguagem e poltica. Lisboa: RelgioD'gua Editores. ISBN: 972-708-177-0., pp. 93 -114) e Krauss, R. E. (1991) The originality of the Avant-Garde andother Modernist Myths. London: The MIT Press. ISBN:0-262-11093-8.
30
conceptual tornou inequvoca que a deslocao de materiais e objectos para o contexto da arte
questiona a especificidade cultural da arte e a realidade do real (Gomes, 2004, p. 32).
Do ponto de vista conceptual e filosfico, a questo do deslocamento objectual opera num duplo
sentido. Por um lado, o material ou objecto da realidade tangvel perde a funo original, perdendo
com isso parte da significao que a sociedade lhe d ao mesmo tempo que se realam as suas
qualidades sensveis. Por outro lado, a ligao ao seu contexto de provenincia nunca desaparece
pelo que impretervel ter em conta esse balano.
A ambivalncia identitria que os materiais e objectos da realidade tangvel podem adquirir quando
inseridos numa obra ou produo artstica conduziu a um novo pensamento filosfico e crtico que a
associou a uma redefinio dos valores institucionais da arte e da sociedade, mais permissivos e
permeveis hierarquizao da produo cultural. A emergncia e fortalecimento de um
pensamento social e cultural abrangente e expansivo que deixou de considerar a existncia de
lugares privilegiados para o conhecimento como exemplo o campo de estudo da cultura visual
foi determinante neste processo de encontro entre o quotidiano e o objecto artstico, na medida em
que a ponderao dos limites de actuao artstica se foram tornando imprecisos e cada vez mais
alargados.
1.1. - A colagem e a valorizao do heterclito para a produo artstica
A introduo de materiais at ento considerados no artsticos, sendo anterior ao sculo XX,
assumiu a partir da uma relevncia que permite identific-la como uma caracterstica essencial da
arte desse perodo. Desde a primeira dcada do sculo XX at ao seu trmino, inmeros artistas com
propostas e convices distintas recorreram a materiais naturais ou manufacturados para o labor
artstico que desenvolveram. E embora a emergncia desta prtica esteja associada ao contexto da
pintura, ela extravasou os limites de qualquer disciplina at porque como se sabe esses limites
tornaram-se difusos no decorrer do sculo.
No mbito da pintura onde a construo da imagem dependia tradicionalmente menos das
matrias e mais da representao pictrica a utilizao de materiais diversos permitiu explorar
novos efeitos ao nvel da experincia sensvel. At a, a pintura assentava particularmente numa
gramtica de ordem visual e portanto texturas, volumes, massa e qualidades tcteis ou espaciais,
introduzidas por estes materiais, no eram o seu terreno. Historicamente, so conhecidos alguns
pintores que recorreram esporadicamente a alguns materiais para trabalhar determinado tipo de
efeitos ou contrastes pticos, entre eles Carlo Crivelli no final do sculo XV que foi uma referncia
31
para os artistas das primeiras vanguardas, particularmente os italianos5. Tambm no mbito da
escultura possvel traar exemplos anteriores, entre os quais Edgar Degas e a obra 'Petite danseuse
de quatorze ans', de 1880-81, que se revelou paradigmtica por a danarina ter sido vestida com um
fato de tecido, calada com sabrinas e inclusive ter cabelo real, aproximando a escultura de um
realismo material com poucos precedentes. Estes exemplos so suficientemente elucidativos da
atitude pontual que diferentes artistas adoptaram em tempos histricos distintos em relao s
qualidades plsticas dos materiais oriundos do quotidiano e ao contributo dos mesmos para uma
mais expressiva ou imediata activao da percepo sensorial e em simultneo, para um
relacionamento ambguo entre o terreno da esttica e o da realidade tangvel.
No sculo XX, os primeiros artistas a trabalharem com materiais desta natureza foram Pablo
Picasso e George Braque, durante a fase do cubismo designada de cubismo sinttico. Ao encontro
da pintura e do desenho com estes materiais numa superfcie bidimensional chamou-se collage. Mas
a disseminao da sua utilizao rapidamente se estendeu do terreno da bidimensionalidade para o
da tridimensionalidade, dando-se o nome pstumo de assemblage s estruturas construdas com
diversos materiais6. Entre uma e outra, ambas associadas de certa forma s disciplinas tradicionais
da pintura e da escultura, a utilizao de materiais diversos, especialmente os do quotidiano, ganhou
independncia e autonomia no terreno das artes plsticas e visuais, tal como os conceitos de ready-
made e objet trouv demonstram. Todos eles emergiram num curto espao de tempo
compreendido entre sensivelmente 1912 e 1920 e embora existam naturalmente diferenas
processuais e intencionais, a aco subjacente a todas elas revela que esse momento histrico
representou um ponto de viragem no posicionamento da arte com a realidade tangvel. Esse ponto
deve ser analisado a partir da resposta a duas perguntas: o que acontece a esses materiais quando
passam para a categoria de arte e at que ponto mantm a relao com o contexto de origem? E o
que acontece categoria de arte e ao sistema artstico com a sua incorporao?
Antes de se responder a estas perguntas importa relacionar a utilizao de materiais do quotidiano
5 Gino Severini referiu nas suas memrias que a ideia de introduzir materiais reais na tela lhe ter ocorrido nos finaisde 1912, quando Apollinaire mencionou a obra de alguns artistas de finais do sculo XV. Diz Severini que:
che [Apollinaire] mi parl di alcuni primitivi italiani che avevano messo nei quadri degli elementi di verarealit; osservando che tale presenza, e il contrasto da essa provocato, aumentavano la vita delle pitture etutto il loro dinamismo. Mi port l'esempio di un S. Pieto esposto all'Accademia di Brera di Milano, che hain mano delle chiavi vere, e di altri santi con altri oggetti, senza contare le aureole tatte con vere pietrepreziose e vere perle. Fu cosi che mi venne l'idea di fare un ritratto di Paul Fort con le copertine di 'Verset Prose' e di altri suoi libri di poesie, e di costruire una bailerina con delle forme in rilievo sulle qualiincollai dei veri lustrini di ballerini. (Severini, cit. por Poggi, 1992, p.171).
6 O termo assemblage foi criado por Jean Dubuffet em 1953, para se referir a alguns trabalhos que estava a realizaraos quais chamou assemblages d'empreintes. Embora estas mais no sejam do que colagens, o artista procuroudistanciar-se da prpria tradio da colagens associada s primeiras vanguardas. Por esta razo, o termo comeou aser utilizado de uma forma alargada no se distinguindo em alguns casos da prpria colagem. Contudo, com otempo, a assemblage passou sobretudo a ser associada juno de materiais de origem diversa em estruturastridimensionais.
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com a tcnica da colagem, uma vez que foi esse o contexto da sua emergncia e a relao entre
ambas to incontornvel como a que acontece entre a tinta e a pintura, na medida em que matria
e tcnica/processo condicionam a aco do artista e determinam as caractersticas da composio.
Enquanto tcnica, a colagem tanto pode produzir imagens bidimensionais como tridimensionais
(considera-se a assemblage uma extenso dos princpios da colagem), sendo portanto esquiva a
classificaes rgidas. Sem praticamente restries matricas, o seu princpio elementar
metodolgico e assenta na composio de uma imagem com elementos de natureza heterognea.
Assim, a composio assume pelo menos a mesma importncia que a recolha e escolha dos
materiais a utilizar. De uma colagem emana todo o caminho percorrido at obra final, uma vez
que da escolha dos materiais dependem a composio e os efeitos visuais e sensoriais da obra, por
princpio tambm eles heterogneos. Harold Rosenberg afirmou que a colagem, sendo uma forma
de fazer arte, no era nem uma forma de arte especfica nem um estilo (1983, p. 173). A colagem
era um processo de construo que lies in the metaphysics of mixing formal and material realities
through introducing the concreteness of the paste-in. (Rosenberg, 1983, p.175). Desta definio
ressalva-se o facto de a unidade da colagem residir na heterogeneidade dos elementos que a
compem, tendo por isso uma essncia heterclita.
Antes de ser utilizada por artistas a colagem era j utilizada na sociedade para diversos fins. A
documentao, a manipulao ou a sistematizao de conhecimento foram algumas das utilizaes
mais frequentes dadas colagem em meios profissionais ligados, por exemplo, s cincias naturais.
Neles, no era propriamente a construo da imagem que importava mas antes as vantagens de
inventariao e organizao dos saberes, pelo que no esta a finalidade que interessa aqui
desenvolver.
Mas enquanto mtodo associado construo da imagem a colagem foi associada durante sculos a
uma linguagem popular. Ela apenas assumiu um carcter profissionalizante a partir dos finais do
sculo XIX quando William Nicholson e James Pryde descobriram as possibilidades da tcnica para
a construo de cartazes publicitrios (Wescher, 1977, pp.18 e 19). Durante esse mesmo perodo, a
colagem popularizou-se na construo de cartes de agradecimento e de aniversrio, pautando-se
pela utilizao de materiais to diversos como flores secas, papeis, fragmentos de objectos ou
conchas.
ainda de referir neste contexto o surgimento da montagem fotogrfica que consiste na criao de
uma imagem a partir da utilizao de mltiplas imagens e que partilha com a colagem alguns
princpios essenciais, nomeadamente ao nvel da construo a montagem e dos modos de leitura
das partes para o todo. Desta forma possvel considerar a montagem fotogrfica como uma
extenso da colagem que surgiu com a disseminao da fotografia. O ingls Oscar Gustav Rejlander
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foi um dos primeiros fotgrafos a criar uma imagem a partir da conjugao de outras. A composio
fotogrfica 'Two Ways of Life', de 1857 (Figura 1), construda atravs de mltiplos negativos
cautelosamente unidos tornou-se sobejamente conhecida no apenas por ter uma clara inspirao
das pinturas renascentistas mas tambm porque foi exibida pela primeira vez, juntamente com
outras fotografias, ao lado de pinturas e esculturas, numa exposio ocorrida em 1857 no
Manchester Art Treasures. O facto de Rejlander ter colhido reaces extremamente negativas levou
a que escrevesse o primeiro texto da histria fotogrfica que falava especificamente da
fotomontagem (por ele chamada photographic composition)7 (Pavan, 2008, p.253), associando-se
desta forma ento recente discusso sobre a fotografia como forma artstica com especificidades
prprias, que haveria de se prolongar durante dcadas.
No que se refere fotomontagem que implica o corte fsico de vrias fotografias e a utilizao dos
fragmentos da resultantes para a composio de uma nova imagem foi a partir do inicio do sculo
XX que conheceu uma disseminao popular de relevo8. A concepo e circulao de postais
tornou-se uma importante forma de comunicao visual em pases como a Alemanha, a Frana, a
Inglaterra ou os EUA. Os postais impressos feitos a partir de montagens de fotografias foram um
sucesso pela versatilidade em tratar a fantasia, o humor, a crtica social ou a stira poltica, algo a
que os dadastas alemes ou os construtivistas e produtivistas russos, entre outros, no foram
alheios. Com o irromper da Primeira Guerra Mundial a relevncia destes postais para a
comunicao entre pessoas no diminuiu, pelo contrrio. Os pequenos cartes foram, por exemplo,
uma importante forma de contacto entre os soldados e as suas famlias e as encomendas de postais
com fotomontagens que uniam como 'por magia' o soldado aos entes queridos tornaram-se uma
moda em pases como a Frana, a Alemanha ou a Gr-Bretanha. (Figura 2).
Assim, falando em termos culturais, possvel afirmar que enquanto processo de construo de uma
imagem, a colagem no era propriamente uma novidade na sociedade ocidental e portanto as
caractersticas essenciais da imagtica da resultante tambm no. A novidade residiu na associao
desta tcnica s belas-artes ou artes 'eruditas', como ento eram entendidas no contexto de um
sistema visual e cultural ainda fortemente hierarquizado. Edmond Couchot prope precisamente
uma leitura sobre o recurso colagem por parte de Picasso e Braque baseada na influncia que os
artistas teriam tido da comunicao de massas. A disseminao da imprensa e das revistas ilustradas
comprova na opinio do autora familiaridade que os artistas teriam com a fuso entre imagem e
texto. Neste sentido, o que o autor destaca a aco dos artistas, que teriam transportado essa
7 Este texto foi lido publicamente pela primeira vez a 06 de Abril de 1858 para a Photographic Society e publicadologo a seguir com o ttulo On Photographic Composition no Liverpool and Manchester Journal. (Pavan, 2008,p.253)
8 Isto embora sejam conhecidas algumas experincias durante as ltimas dcadas do sculo XIX, como asfotomontagens polticas realizadas por Eugne Appert durante a Comuna de Paris.
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imagtica para o terreno da pintura. No seu estudo, Couchot considera existir um paralelismo entre
o fim da coerncia do espao figurativo do cubismo (1998, p.39) perpetrado em grande medida
pela colagem e os parmetros visuais utilizados pela imprensa das primeiras dcadas do XX,
observando que:
Par ailleurs, la presse, les revues et les ouvrages illustrs grce la similigravure avaient habitul'oeil au mlange intime du texte et de l'image, de la photo en particulier: une page de journalillustr est une sorte de tableau cubiste o cohabitent des espaces htrognes (caractres, dessinsou schmas, photos sous la forme de clichs trams, couls dans la mme matire), sans point devue unique, la fois clats et ordonns. (1998, p.40).
O que caracteriza o seu estudo ento o paralelismo estabelecido entre os procedimentos adoptados
pelo cubismo na construo da obra e os da composio tipogrfica que d'abord une manipulation
d'objets: caractres, espaces, lignes, filets, colonnes et clichs de plomb. (1998, p.40). Assim, tal
como L'imprimeur opre sur la matire et non sur une image (Couchot, 1998, p.40) a adopo da
colagem manifestou que Objets, matires, formes, couleurs et textures tendent s'amalgamer,
voire se substituer a l'image. (Couchot, 1998, p.40) ao mesmo tempo que os objectos se
transfiguravam em imagem quando projectados realmente na tela. (Couchot, 1998, p.41).
Esta leitura ganha sustentao se pensarmos que o princpio heterogneo da colagem foi aplicado
no apenas nas artes plsticas como tambm na literatura, na msica, no teatro ou no cinema, por
autores to distintos como Victor Hugo, John dos Passos, Hans Christian Andresen, Vertov, etc. De
tcnica popular a colagem passou a esttica utilizada culturalmente de uma forma transversal,
ultrapassando a barreira institucional e hierrquica da cultura e ultrapassando de igual forma os
limites disciplinares at ento convencionados e que as vanguardas, apresentando-se enquanto
alternativa, tanto se empenharam em alterar.
Particularmente nas ltimas dcadas, depois do crescimento e importncia atribuda aos estudos
culturais e cultura visual, so vrios os autores que identificam a emergncia da colagem com a
instabilidade das fronteiras culturais e categorias disciplinares. o caso de Francis Frascina que,
reconhecendo que as referncias cultura popular no era propriamente uma novidade, sublinha
que at ao sculo XX nunca tinha pressuposto trabalhar fora do mbito estrito dos meios
tradicionais como o leo e a tela. (Frascina, 1993, p.87). O autor considera ainda que a adopo da
colagem, particularmente por Picasso, poder ter sido motivada por uma reaco atitude anti-
imprensa adoptada por alguns sectores da intelectualidade francesa, nomeadamente os associados
ao aos movimentos neo-simbolistas que aconteceram em Paris entre 1905-8. Estes, semelhana do
que Mallarm e outros simbolistas tinham pensado, consideravam que the newspaper was debased
literary journalism in contrast to 'the book', which was a 'Spiritual Instrument' (Frascina, 1993,
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p.162), pelo que a utilizao de papel de jornal e o recurso a uma imagtica utilizada pelos meios de
comunicao impressos seria um confronto com este pensamento.
Partindo da observao das colagens e construes de Picasso e Braque, Frascina considera que a
negao dos valores simbolistas se expressa no uso de elementos que so a anttese dos
pressupostos da arte autnoma ou pura, como os recortes de jornais com eventos socio-polticos,
com fragmentos de romances, inovaes cientficas, anncios e propaganda (Frascina, 1993, p.165).
Para o autor isso foi conseguido inevitavelmente by rendering unstable the conventional
boundaries for 'art' and for 'mass culture'. (Frascina, 1993, p.163).
Thomas E. Crow, por seu turno, prope a este nvel uma leitura em certa medida inversa e
coincidente com a da Escola de Frankfurt, particularmente a de Adorno, uma vez que considera
que:
The Modernist practice sustains its claim to autonomy by standing, in its evident formal coherence,against the empty diversity of the culture industry, against market expediency, speculativetargetting of consumers, and hedging bets. But it has achieved this contrast most sucessfully byfiguring in detail the character of the manufactured culture it opposes. (Crow, 1998, p. 32).
Nesta medida, a prpria insero de materiais do quotidiano e de procedimentos como a colagem,
dislocate the apparently fixed terms of that hierarchy into new and persuasive configurations (...)
o que advm de uma productive confusion within the normal hierarchy of cultural prestige.
(Crow, 1998, p. 33). Crow reitera que independentemente da forma como se leia a questo9, as
relaes entre os movimentos de vanguarda e a cultura popular foram uma constante, articulando-se
sempre entre as problemticas estticas e o desenvolvimento da sociedade capitalista. Nessa
medida, necessrio ter em linha de conta que esse relacionamento teve consequncias no apenas
ao nvel da imagtica mas do prprio comportamento artstico. Atendendo a que popular culture,
as well as a whole literature called popular () present themselves essentially as arts of
making this or that, i.e., as combinatory or utilizing modes of comsuption. (De Certeau, 1988,
p.XV), este relacionamento pressups uma viragem das artes visuais para os modos de produo.
Ao adoptar a colagem e outros procedimentos da cultura popular estes artistas procuravam a way
9 Crow considera que a questo tem sido articulada em interpretaes dicotmicas que assumem apenas um dos ladosda problemtica:
The social iconographers of modernism (the most recent trend in art history) largely limit themselves to itsraw material. The aesthetic dialecticians, Adorno holding out until the end, concentrate on the moment ofnegativity crystallized in form. The triumphalists of modernism the later Greenberg and his followers, forexample celebrate the initial recuperation of that form into a continuous canon of value. Finally, thatrecuperation is the object of the attack from two contradictory strains of postmodernism: the version offeredby the Left sees in this moment a revelation that modernist negation was always a sham, never more than away to refurbish elite commodities; that offered by the Right, advancing a relaxed and eclectic pluralism,sees this recuperation as insufficient and resents the retention of any negativity even if it is sublinatedentirely into formal criteria. (1998, p.36).
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of thinking invested in a way of acting (De Certeau, 1988, p. XV), um comportamento at ento
exclusivo da cultura popular.
No mundo das artes plsticas, a colagem rapidamente foi assumida como metodologia profissional
de construo da imagem e meio inovador de expresso e desde que surgiu, no contexto do
cubismo, foi amplamente adoptada por artistas, largamente comentada por crticos de arte e
claramente fomentada por alguns dos principais marchants de arte de Paris, como Daniel-Henry
Kanweiler10.
A insero directa de matrias e pequenos objectos ou fragmentos dos mesmos nos universos da
pintura e da escultura, linguagens plsticas ligadas intimamente representao pictrica, criou
inevitavelmente novas problemticas ao nvel dos procedimentos produtivos e dos modos de leitura.
No que se refere aos procedimentos produtivos, a ideia de criao artstica pressupunha a 'inveno'
de todas as componentes de uma imagem. Em pintura e escultura, at ao sculo XX, essa
construo era tradicionalmente realizada por via da representao plstica figurativa. O que a
aco de colar alterou foi precisamente essa ideia, libertando definitivamente o artista de valores
ligados demonstrao das suas capacidades tcnicas de reproduo da realidade tangvel e
permitindo-lhe uma aproximao matrica e conceptual da obra de arte.
Colar requeria uma abordagem metodolgica diferente da de pintar ou esculpir. Ao contrrio da
tinta, da grafite, da pedra, enfim, dos meios que serviam para criar a forma, o material colado era
em simultneo o meio e a forma, ainda que essa forma pudesse ser manipulada. A colagem impunha
uma redefinio dos valores tradicionais associados criao e embora a valorao da originalidade
e inovao se tenha mantido predominantemente inclumes durante as primeiras vanguardas, a
utilizao de materiais praticamente no transformados pelo artista implicava uma abordagem a
esses valores inequivocamente descentrada da virtuosidade convencional associada ao fazer.
Naturalmente que a dissociao do discurso artstico ao virtuosismo tcnico estava j em marcha
antes do perodo cubista. No entanto nunca at a os artistas tinham optado por recolher e montar
em vez de criar todas as componentes da obra. Para alm disso, os materiais colados eram oriundos
do ambiente prximo ao artista que se tornava um recolector11 que montava uma imagem a partir de
10 Meses depois de Picasso e Braque comearem a utilizar a colagem por via dos papier coll, Braque celebra um novocontrato com Kahnweiler (30 Novembro de 1912) que faz referncia explicita s obras com colagem, reportando-ses mesmas como drawings with wood-paper, marble, or any other accessory. (Rubin, 1989, p. 411). Nesse mesmocontrato foi estabelecido o acordo de Braque receber de Kahnweiler 40 francos por desenho, 50 ou 75 francos porcada desenho com colagem e 250 francos por cada tela, o que demonstra o apoio do marchant utilizao da tcnicano contexto das Belas-Artes. (Rubin, 1989, p. 411)
11 Giulio Carlo Argan, em Arte e Critica de Arte, referindo-se arte da segunda metade do sculo XX na Europa, ondeos processos de recolha de materiais do quotidiano se tornou comum, referiu que:
estes e outros processos anlogos, que, aos olhos do pblico habituado impecvel preciso da tecnologiaindustrial, parecem escandalosamente antitcnicos, pertencem de facto a um diferente tipo de tcnica: achamada tcnica do bricolage, que o antroplogo Lvi-Strauss indica como prpria dos primitivos
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matrias com provenincias diversas. Esta nova atitude introduzida pelas colagens leva