Artigo Edgard Leite

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    Perspectivas tericas no estudo dos judasmos do segundo templo.

    Edgard Leitehttp://lattes.cnpq.br/4323981692424724

    Prof. Dr. Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

    Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.Resumo:

    Este estudo uma anlise das recentes perspectivas tericas relativas ao perodo

    do segundo templo. nosso objetivo entender alguns aspectos e implicaes das

    proposies de Jacob Neusner, relativas existncia de judasmos no perodo

    anterior a 70 E.C.

    Palavras-chave:

    Judasmos do segundo templo Origens do cristianismo Histria da Teologia

    Crtica Bblica - Teoria da Histria

    Abstract:

    This study is an analysis of recent theoretical perspectives concerning the second

    temple period. Our goal is to understand some aspects and implications of the

    propositions by Jacob Neusner on the existence of Judaisms, in the period before 70CE

    Key-words:

    Second Temple Judaism - Origins of Christianity - History of Theology Biblical

    Criticism Theory of History

    I

    Alguns historiadores, a partir dos anos 70 do sculo passado, tenderam a menos-

    prezar a possibilidade da Histria, disciplina, dar alguma contribuio compreen-

    so do presente (Breisach: 407), ou, mais precisamente, de fornecer elementos de

    percepo de sentidos histricos. Especialmente aps os influentes trabalhos de

    Hayden White e Edward Said, (Soughate: 541), ampliaram-se as crenas anti-

    realistas, que sustentam que a histria uma construo do presente, basicamen-

    te, sem vnculos reais com o passado (Pataut: 201) (Munz: 839). Donde na prtica

    http://lattes.cnpq.br/4323981692424724http://lattes.cnpq.br/4323981692424724http://lattes.cnpq.br/4323981692424724
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    ser incua para a criao de reflexes sobre sentidos, substncias e naturezas, ou

    essncias histricas.

    Para aqueles historiadores, no entanto, que sustentam posies realistas, quer re-

    presentativas (o passado real e podemos acess-los atravs dos documentos),quer analticas (que podemos discernir algo daquilo que passou, mesmo que no

    seja a realidade em si), quer marxistas, (que acreditam tambm na realidade do-

    cumentvel de certas foras e entidades, como o trabalho) (Murphey: 182-183), a

    crena na existncia de substncias histricas ainda continua a cumprir um impor-

    tante papel terico na elaborao da obra historiogrfica. Tais substncias usual-

    mente estabelecem elos entre os momentos e apontam para diferentes perspecti-

    vas de vnculos entre temporalidades. Nesse sentido tais estudos histricos podem

    ter algo a dizer sobre o presente ou sobre a experincia histrica como um todo, e

    na verdade , s vezes, um de seus objetivos a elaborao dessas redes de signifi-

    cados.

    Na crena realista o trabalho historiogrfico uma operao que lida com uma rea-

    lidade simultaneamente prxima e estranha. Estranha porque tudo no passado

    radicalmente diferente e misterioso. O passado um pas estrangeiro, escreveu

    David Lowenthal (Lowenthal). E, no entanto, pode-se percebe-la, entende-la por

    diferentes mecanismos que revelam elos substanciais e essenciais, o que a torna

    inteligvel. Tanto a realidade do passado em si quanto a do nosso presente, alis,em sua funo. Pode-se, por exemplo, levantar questes importantes sobre o pre-

    sente, ao reconstruir realidades cuja percepo ou estranhamento apontam a uma

    dada constatao sobre nossa existncia no agora, j que os elementos do presen-

    tes so oriundos do passado. Por outro lado, parece igualmente claro que a identifi-

    cao de essncias no passado est relacionada diretamente nossa experincia do

    presente, atravs dos mecanismos pelos quais o experimentamos, inclusive pelo

    prprio acmulo do saber historiogrfico. A crena na realidade documental afasta,

    no entanto, as acusaes ps-modernas de autoritarismo discursivo do realismo,pois os realistas constroem certamente abstraes, generalizaes, mas no, evi-

    dentemente, a partir de nosso presente, mas sim dos critrios daqueles que ento

    estavam vivos (Munz: 851). As correlaes que fazemos entre essas realidades

    atendem, claro, a diferentes formulaes tericas e s diferentes perspectivas

    realistas.

    Nessa direo existe uma constante redefinio das perspectivas tericas no campo

    dos estudos de histria do judasmo do segundo templo, e do desenvolvimento de

    suas concepes teolgicas, que se refletem, certamente, tambm nas pesquisas

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    sobre origens do cristianismo. E que traduz discusses maiores no prprio campo

    dos estudos histricos sobre a religio.

    A Histria no possui compromissos maiores com construes teolgicas nem com

    as instituies religiosas, e pelo menos desde Espinosa, em direo ao sculo XVIII,o saber historiogrfico moderno se colocou em franca oposio ao predomnio da

    teologia nos pressupostos tericos de estudo do passado (Israel: 235). Sem que

    isso signifique, claro, uma renncia a toda metafsica. A realidade documental e

    objetiva oferece prioritariamente os elementos centrais para a reflexo. Desde o

    sculo XVI os elementos documentais tem sido, portanto, decisivos para a aproxi-

    mao realidade de outros momentos histricos do judasmo. E forneceram,

    quando desejado, material para uma reflexo sobre sentidos maiores das institui-

    es e concepes religiosas judaicas. Os temas da crtica textual e histrica, numa

    dimenso, e os da arqueologia do prximo oriente, em outra, acabaram fundando

    os elementos para a discusso realista das dinmicas do judasmo da antiguidade.

    E as diferentes inclinaes tericas lidam sempre em maior ou menor representa-

    o ou anlise com os documentos, ou com a forma com que emergem dos diferen-

    tes mtodos interpretativos.

    II

    Tem-se claro, hoje em dia, que a viso retrospectiva que o Pentateuco masortico

    tem sobre as origens das concepes teolgicas judaicas no corresponde s reali-

    dades documentadas. Uma leitura crtica da literatura bblica, na Bblia hebraica, no

    Tanach, notadamente em seus livros ditos histricos, e os achados arqueolgicos,

    h muito revelaram que certas idias centrais da Pentateuco (e no s o masorti-

    co, mas todas as suas diferentes recenses), como o monotesmo ou a centralidade

    da Lei da Moiss, datam, do ponto de vista documental, do perodo final da monar-

    quia ou do momento da restaurao do Templo de Jerusalm aps o cativeiro babi-

    lnico e atendem a interesses histricos especficos (715-610 a.e.c.- c. 517 a.e.c.)

    (Smith: 33) (Blenkinsopp). claro que as concepes teolgicas desenvolvidas

    nesses momentos estavam baseadas em formulaes anteriores, de cunho profti-

    co (o que evidente nos textos histricos e na literatura proftica do perodo do

    primeiro templo) (Leite, 2007). E tambm so claramente oriundas de concepes

    desenvolvidas no prximo oriente nos sculos que antecederam o reinado de Eze-

    quias (c.715 687 a.e.c.) bem como em textos jurdicos mesopotmicos. Mas at

    Ezequias e Josias, como nos indica a literatura histrica bblica e os achados arque-

    olgicos- que atestam a proliferao de muitas divindades entre os hebreus que

    gravitavam em torno do primeiro templo (c.1000- 567 a.e.c.)-, no havia maiores

    http://en.wikipedia.org/wiki/715_BChttp://en.wikipedia.org/wiki/687_BChttp://en.wikipedia.org/wiki/687_BChttp://en.wikipedia.org/wiki/715_BC
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    consensos em torno no monotesmo e muito menos na crena relativa a um livro

    sagrado.

    Alm do mais, aps a inflexo histrica de Josias e o exlio babilnico, no perodo

    da grande produo literria do segundo templo(516 a.e.c- 70 e.c.), continuou aexistir muita discordncia sobre alguns elementos teolgicos centrais, como pode

    ser claramente percebido quando colocamos lado a lado a literatura de fonte sacer-

    dotal, a apocalptica e a literatura sapiencial (Leite, 2009). As tentativas de unifica-

    o teolgica a partir da centralizao cultual e administrativa, iniciadas por Eze-

    quias e Josias, e continuada pelos sumo-sacerdotes do perodo persa e pelos sobe-

    ranos hasmoneus, sempre esbarraram em defeces e contestaes. Fato compro-

    vado pelos manuscritos de Qumran, que testemunham a existncia de consistentes

    e contraditrias tradies intelectuais letradas.

    O que isso significa em termos de histria da teologia judaica antiga controverso.

    Ed Sanders, trabalhando com o perodo final do segundo templo (1977, 1985,

    1990, 1992), entendeu que o judasmo tinha ento certas crenas essenciais, que

    permitiam o estabelecimento de um corpo razoavelmente monoltico de doutrinas

    teolgicas. Evidentemente que as dificuldades documentais em comprovar tal posi-

    o so grandes, principalmente quando se considera os momentos que antecede-

    ram as origens do cristianismo, muito confusos do ponto de vista doutrinrio, se-

    gundo todas as fontes, e se pensa na documentao descoberta em Qumran, tam-bm plural em termos de doutrina.

    Lawrence Schiffman, recusando o perfil de fenmeno monoltico, considerou o

    judasmo como um desdobrar histrico de experincias em torno de mesmos temas

    (Schiffman, 1998). Mais prximo dos vestgios documentais, tal tese, no entanto,

    contm provavelmente a imposio de certos paradigmas teolgicos posteriores,

    rabnicos e cristos, principalmente, sobre um universo de proposies teolgicas

    antigas que de fato no entendiam os mesmos temascomo os mesmos. Fontes

    crists e rabnicas medievais tendiam a ver o judasmo do perodo anterior era

    comum como cenrio de contradies, mas que variavam em torno de certos con-

    sensos. Por exemplo, a centralidade simblica do Templo de Jerusalm. Restringin-

    do-nos apenas aos acontecimentos anteriores ao cristianismo, parece, ao contrrio,

    que as diferenciaes eram profundas e engendravam, na verdade, identidades

    hostis entre si. Isso j ocorrera, de forma exemplar, e paradigmtica, no caso dos

    samaritanos, nas origens do segundo templo (Bocaccini, 2002:84) (Leite,2009) e

    provavelmente tratava-se do caso que envolvia os autores dos documentos ditos

    sectrios de Qumran.

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    Shaye Cohen, numa outra vertente, preferiu entender o judasmo da poca como

    expresso de uma identidade tnica caracterstica (Cohen, 1987). Estando as con-

    cepes teolgicas subordinadas a comportamentos e atitudes daqueles que se en-

    tendiam como judeus. Por isso ele considerou que o pensamento de Paulo era uma

    variedade de judasmo, mas que deixara de se-lo quando se distanciou dos elemen-

    tos tnicos que o caracterizavam anteriormente. Essa proposio, igualmente inte-

    ressante, parece entretanto menosprezar o fato de que entre os que se diziam ju-

    deus na poca, muitos, como os samaritanos, mais uma vez, estavam afastados de

    outros judeus. A afirmao que os samaritanos no eram judeus no era sua pr-

    pria, mas sim daqueles que gravitavam teologicamente em torno do monte zion.

    Judeus que viviam em reas mais distantes, como em Elefantina, no Egito, inclusi-

    ve, tendia a ver em igualdade de condies identitrias os judeus de Jerusalm e os

    da Samaria (Modrzejewsi, 1997) (Porten, 1968). Isto , ser do povo de Israel,

    no significava necessariamente a mesma coisa para todos.

    No momento, assim, parece razovel a posio de Jacob Neusner, que defendeu a

    realidade histrica no de um judasmo, mas sim de diversos judasmos, no plural

    (Neusner, 1987, 1994, 1998). Neusner defendeu que a experincia religiosa e tni-

    ca judaica sempre foi o palco de divergncias entre diversos sistemas judaicos,

    expressando diferentes organizaes institucionais conflitantes. Nunca houve um

    judasmo singular, unitrio e linear (apud Blenkinsopp: 13). Na verdade, segundo

    ele, esse carter fragmentrio caracterstico da histria judaica at os dias de

    hoje.

    A iluso de uma uniformidade conceitual, ou de uma propriedade exclusiva sobre os

    padres de identidade, que implica na idia de que certas proposies teolgicas

    so prprias ou imprprias diante de uma determinada tradio, parece estar pre-

    sente em muitas teorias que projetam sobre o presente, a partir de vises retros-

    pectivas do passado, a fantasia de poder absoluto. Tais discursos so certamente

    autoritrios pois sustentados principalmente a partir de padres contemporneos eespecficos, buscando uma hegemonia poltica e ideolgica. Isso particularmente

    caracterstico dos discursos teolgicos, cuja subjetividade fantstica possui a neces-

    sidade de buscar o absoluto para alm da realidade. Donde sua inerente fragilidade

    diante da realidade do mundo, mas sua potncia diante da ignorncia ou negao

    do real.

    As distines entre os sistemas judaicos do segundo templo parecem ter sido, por-

    tanto, fundadas em diferentes projetos de poder, dotados de proposies teolgicas

    especficas, que se viam como excludentes, muitas vezes. Os limites dos sistemas,

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    claro, so, para ns, s vezes obscuros e discutveis, e o foram tambm para al-

    guns, naquela poca, mas nada nos impede de reconhecer, por exemplo, que o

    cristianismo, do ponto de vista histrico e teolgico, era um judasmo. Mesmo

    quando passou a denunciar os judeus, ainda mais quando suas idias, aparente-

    mente originais, davam na verdade continuidade a proposies existentes em di-

    versos movimentos judaicos anteriores. Ele de fato acaba por intitular-se, como os

    demais, nico e autntico herdeiro do pacto do povo hebreu com Deus.

    Observemos que mesmo dentro do universo judaico posterior queda do segundo

    templo, muitas pluralidades e contradies existiam. Por exemplo, os diversos mo-

    vimentos judaicos, institucionalizados, que proliferaram nos primeiros sculos da

    era comum, como os dos Banaim, dos Hipistarianos, dos Hemerobatistas e a dos

    Magharia- todos evocavam razes em momentos arcaicos da histria judaica (Man-

    soor: 232-233). Da mesma maneira os caratas, que a partir do sculo IX, princi-

    palmente, sustentaram uma viso muito particular e excludente do que vinha a ser

    judeu, tambm reivindicaram origem na essncia mesmo do povo israelita, recu-

    sando a afirmativa de que eram apenas uma seita rabanita. O que de fato hoje

    corroborado pelas pesquisas, que traam as origens caratas at o perodo do se-

    gundo templo. Nesse caso, interessante que os caratas, cujo status judaico foi

    historicamente negado pelos rabanitas, pelos rabinos, so aparentemente os res-

    ponsveis pela consolidao do texto masortico (Hofman et alii: 785-802). Deve-

    se realar que a qualidade dos critrios pelos quais os rabinos reivindicavam sua

    legitimidade no eram diferente da dos caratas. Ambas repousavam em elementos

    da metafsica ou da tradio.

    Mas se nos dedicarmos a estudar a prpria intimidade do meio rabnico, veremos

    que suas contradies e controvrsias internas traduzem a existncia de ortopraxi-

    as, formas corretas de fazer as coisas, muito diferenciadas. A idia de que as posi-

    es minoritrias se submetiam s majoritrias para os redatores talmdicos no

    obscurece a realidade da existncia de tradies entendidas como minoritrias emcerto contexto e dominantes em realidades especficas. Nunca houve, mesmo entre

    os rabinos, consenso absoluto, por exemplo, sobre o que vem a ser um judeu. O

    carter muito vago das fronteiras dos judasmos, por conta, basicamente, da carac-

    terstica tenso entre serem proposies de salvao universal, e ao mesmo tempo

    particular, impedia uma posio absolutamente consensual. J que o universal lida,

    certamente, com a pluralidade e o dissenso. Em um paralelo ilustrativo, o do bu-

    dismo, tambm sistema universalista, podemos perceber que a necessidade de ser

    de todos implica em assumir diferentes perfis. Muitos pesquisadores do princpio dosculo XX tenderam a defender que os diversos budismos deveriam ser entendidos

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    como diferentes religies (Stcherbatsky: 41). Os judasmos, ao contrrio dos bu-

    dismos, no entanto, possuem sempre essa tendncia busca do consenso total,

    talvez expressando uma certa fantasia sobre o carter absoluto do poder do seu

    Deus nico.

    III

    Ernst Breisach dimensionou, corretamente, a importncia da new left history na

    historiografia contempornea. H uma tendncia nos estudos histricos norte-

    americanos em aprofundar-se no individualismo e a recusar padres coletivistas

    (Breisach: 392), o que influenciou o pensamento historiogrfico ocidental. No se

    pode deixar de obstar, portanto, que a tese de que existiriamjudasmosno pero-

    do do segundo templo, talvez implique na transferncia, para o interior da histria

    antiga judaica, de determinados conceitos e idias prprios da contemporaneidade,

    e no do mundo antigo. Caractersticos de uma historiografia do particular e do

    individual. O reconhecimento de particularidades/ individualidades, emergindo do

    processo de emancipao que vivemos desde o sculo XVIII, provavelmente no

    era caracterstico do perodo. Para cada um dos diferentes grupos judaicos da po-

    ca no havia outros judasmos, mas apenas o seu prprio judasmo.

    No parece, no entanto, que se trate aqui do caso de emanciparteoricamente, as

    diferentes correntes de opinio e de poder judaicos do perodo do segundo templo.

    Sabemos, hoje, que no campo teolgico (e em outros campos, alis) os consensos

    so circunstanciais e efmeros e coexistem em paralelo com muitas opinies dife-

    rentes e divergentes. Tal realidade para ns repleta de significao poltica, e a

    entendemos como positiva, associado-a a um projeto de sociedade democrtica

    capaz de comportar muitas tendncias de opinio que no devem deixar de ser o

    que so mesmo sob o governo de uma delas. O que quer dizer que tendemos a ver

    nos modelos autodenominados unnimes uma capa construda sobre e contra

    opinies diversas. Mas a considerao dos judasmos, est mais relacionada no a

    essas ponderaes, e sim investigao dos diferentes projetos de poder que se

    enfrentaram no perodo do segundo templo e que forneceram as bases para todo

    desenvolvimento futuro das tradies teolgicas abrmicas. As tradies teolgicas,

    de fato, como anotou Helmut Perkuet, tem diversas funes, mas uma delas, a

    mais perversa, consiste na explorao da angstia da existncia e do desespero

    dos seres humanos no sentido de legitimar o poder dos sistemas religiosos (Perku-

    et:353).

    As circunstncias polticas do perodo do segundo templo, assim, acima de tudo,nos foram a reconhecer a existncia de muitos judasmos. Em grande parte tal

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    realidade expressa, desde o princpio, dois problemas daquela poca. Problemas

    relativos gnese do poder legitimador discursivo. O primeiro deles diz respeito ao

    monte Zion e seu papel na construo das concepes teolgicas judaicas. Esse

    um tema que vem do perodo do primeiro templo e tem a ver com a existncia de

    outros importantes centros cultuais, e seus colgios sacerdotais, entre os israelitas.

    Bem como com o carter muito sincrtico do primeiro templo at as reformas de

    Ezequias e Josias.

    O segundo problema est relacionado existncia de permanentes dvidas, em

    diferentes meios judaicos, sobre a legitimidade do colgio sacerdotal do segundo

    templo de Jerusalm. Trata-se aqui, inicialmente, das dissenses entre os cls sa-

    cerdotais diante e em funo do poder dos benei zadok, o cl dos zadokitas, a par-

    tir da inaugurao do segundo templo. Tal quadro se agrava muito aps a rebelio

    dos hasmoneus e a deposio do colgio sacerdotal. A centralidade do problema

    zadokita e hasmoneu evidente em toda a literatura da poca. Tal questo reflete-

    se diretamente nas discusses gerais e especficas relativas literatura sagrada,

    pois os textos se situam sempre, por exemplo, em oposio ou concordncia com

    os sacerdotes do templo e em convergncia ou divergncia com sua literatura e

    proposies teolgicas. Isso se reflete nos pressupostos que norteiam as normas

    jurdicas necessrias para a observncia dos elementos gerais do comportamento

    ritual e religioso judaico. A isso deve-se associar, claro, o problema central sobre

    quem judeu, considerando que muitos povos que viviam na regio, tanto antes

    quanto depois do segundo templo, mantinham centenrias ou circunstanciais asso-

    ciaes clnicas entre si, que implicavam, muitas vezes, na aceitao de determi-

    nados pressupostos teolgicos e legais deste ou daquele judasmo (Horbury,

    2008:200-203).

    Tais problemas configuram de fato um quadro geral de fratura no apenas tnica,

    mas, considerando a natureza elevada da produo intelectual do perodo, eminen-

    temente institucional e teolgica. Nesse sentido tanto as fontes crists quanto rab-nicas concordam que tal era a realidade poltica e teolgica do universo judaico da

    poca. Que isso tem efeitos sobre os estudos relacionados origem do cristianis-

    mo, evidente. J procuramos demonstrar, anteriormente (Leite, 2008, 2009b,

    2009c, 2010) que os cristos eram parte integrante do universo judaico, e muitas,

    ou a maior parte, de suas teses teolgicas centrais podem ser localizadas em do-

    cumentos oriundos de movimentos judaicos anteriores. Parece claro, portanto, que

    o cristianismo foi um dos judasmos do perodo do segundo templo. E, como os

    demais, os temas identitrios eram particularmente importantes na digresso teo-lgica, como evidente em Paulo, por exemplo.

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    As conseqncias da afirmativa de que o cristianismo um judasmo transcendem,

    evidentemente, os estudos do perodo do segundo templo. Inicialmente, podemos

    dizer que implicam em um novo olhar sobre o desenvolvimento do pensamento

    teolgico no Ocidente. Da mesma maneira a experincia rabnica medieval deve,

    provavelmente, ser relida a partir da idia de que, herdeiros ou no dos fariseus, os

    rabinos representavam apenas uma das faces sobreviventes ao desastre de 70. E

    que outros grupos judeus, por eles estigmatizados posteriormente, como os cara-

    tas, no podem ser excludos das experincias histricas do judasmo. Devem ser

    considerados, pelos historiadores, evidentemente, tambm como detentores de

    uma forma de judasmo, datando-se sua origem mais remota no perodo do segun-

    do templo. Durante a II Guerra Mundial, nazistas e autoridades rabnicas, ambos

    distantes dessa realidade historiogrfica, concordaram que os caratas no tinham

    origem judaica. Tal ignorncia determinou o seu destino, pois foram poupados doextermnio e excludos da soluo final(Hofman et alii: 785-802). Um observador

    mais agudo pode argumentar, em funo disso, que o conhecimento histrico, de

    fato, amplia nossos horizontes de entendimento da realidade, mas pode tambm

    potencializar a capacidade humana de destruio.

    Tais perspectivas suscitam novas abordagens sobre a natureza da identidade dos

    grandes movimentos religiosos e nos fazem refletir sobre o real papel que as pro-

    postas totalitrias, homogeneizadoras, ou projetos hegemnicos, tem na explicao

    dos acontecimentos do passado ou no desenvolvimento do pensamento teolgico

    nas instituies religiosas. A construo das instituies religiosas, como das polti-

    cas, apesar de ter na busca dessa consenso absoluto, identitrio e teolgico, um

    dos seus movimentos mais prprios, no tem como ser entendida seno a partir da

    multiplicidade e pluralidade de tendncias e movimentos que reprime ou expressa.

    difcil que alguma teologia possa ser compreendida sem esse entrechoque de

    tendncias que aspiram normalmente uma experincia institucional, muitas vezes

    conflitante com outras. O extermnio de muitos judasmos do segundo templo pelosromanos no impediu que essa pluralidade continuasse a emergir no perodo medi-

    eval- e na modernidade, claro. Se buscamos substncias da histria que possuam

    continuidade ou identidade para alm do momento, no tempo (Udehn:210). E que

    confiram sentidos a pequenos, mdios ou grandes processos, parece que no pero-

    do do segundo templo encontramos uma dinmica histrica centrada na pluralidade

    de proposies teolgicas e institucionais que buscam de forma permanente a he-

    gemonia, a alcanam, e que se dissolvem em pluralidade novamente. Judasmos

    dentro de um contorno maior que podemos chamar de Judasmo, mas sabendo queeste tambm s pode ser compreendido em sua multiplicidade.

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