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1 Generalidade Lógica e Sentido e Referência na Formação do Juízo Luciano Carvalho Cardoso Resumo Em Sobre o Sentido e Referência (1892), Gottlob Frege estabelece a distinção entre o sentido e a referência de um enunciado, bem como a distinção entre pensamento e o campo das referências. A partir dessa distinção, Frege traça um roteiro pelo qual podemos nos perguntar sobre a verdade. Em seus escritos póstumos, especificamente em Generalidade Lógica (1924), o autor amplia a dimensão da generalidade sobre os enunciados e sobre o pensamento, nos levando a indagar como o caminho estabelecido por Frege em 1892 pode ser compreendido diante das reflexões de 1924. Generalidade Lógica e Sentido e Referência na formação do juízo Entre 1889 a 1892, Gottlob Frege estabeleceu as bases de seu pensamento de maturidade a partir de três artigos que se tornaram referências para o trabalho do autor. Função e Conceito, Conceito e Objeto e Sobre o Sentido e Referência apresentam a elaboração mais ampla do pensamento de Frege, definindo a estrutura funcional dos enunciados, a relação entre conceito e objeto e a distinção entre sentido e referência de uma sentença. Referente à distinção entre sentido e referência, Frege afirma: É, pois, plausível pensar que exista, unido a um sinal (nome, combinação de palavras, letras), além daquilo por ele designado, que pode ser chamado de sua referência (Bedeutung), ainda o que eu gostaria de chamar de o sentido (Sinn) do sinal, onde está contido o modo de apresentação do objeto.(FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referência, pg. 131) A distinção estabelecida por Frege é fundamental para resolver o problema referente ao que antes o autor denominava conteúdo asserível, que não deixava clara essa distinção, o que comprometia a interpretação acerca da igualdade entre os termos, isto é, se a igualdade implicaria igualdade entre dois objetos ou entre os nomes ou sinais desses objetos. Distinguir o sentido da referência nos permite compreender de forma clara o modo de apresentação do objeto, o modo como este objeto se apresenta na estrutura do pensamento. Um nome dado a um objeto o referencia, mas o sentido demonstra o modo como esse objeto, referido por um nome, se apresenta no contexto de um pensamento 1 . Segundo Frege: O sentido de um nome próprio é apreendido por todos que estejam suficientemente familiarizados com a linguagem ou com a totalidade de designações a que o nome próprio pertence; isto, porém, só de maneira parcial elucida a referência do nome, caso ele tenha urna. Para um conhecimento total da referência, exigir-se-ia que fôssemos 1 Pensamento não deve ser considerado o pensarpessoal e subjetivo. Nosso pensar individual não produz sentido, mas sim representaçõesou ideias, que não podem ser compartilhadas. O pensamento, por identificar-se com o sentido, pode ser comunicado ao longo de gerações, tal sua conexão com as leis do pensamento. Ver Sobre o Sentido e Referência pg. 134.

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  • 1Generalidade Lgica e Sentido e Referncia na Formao do Juzo

    Luciano Carvalho Cardoso

    Resumo

    Em Sobre o Sentido e Referncia (1892), Gottlob Frege estabelece a distinoentre o sentido e a referncia de um enunciado, bem como a distino entrepensamento e o campo das referncias. A partir dessa distino, Frege traaum roteiro pelo qual podemos nos perguntar sobre a verdade. Em seus escritospstumos, especificamente em Generalidade Lgica (1924), o autor amplia adimenso da generalidade sobre os enunciados e sobre o pensamento, noslevando a indagar como o caminho estabelecido por Frege em 1892 pode sercompreendido diante das reflexes de 1924.

    Generalidade Lgica e Sentido e Referncia na formao do juzo

    Entre 1889 a 1892, Gottlob Frege estabeleceu as bases de seu pensamento dematuridade a partir de trs artigos que se tornaram referncias para o trabalhodo autor. Funo e Conceito, Conceito e Objeto e Sobre o Sentido e Refernciaapresentam a elaborao mais ampla do pensamento de Frege, definindo aestrutura funcional dos enunciados, a relao entre conceito e objeto e adistino entre sentido e referncia de uma sentena.Referente distino entre sentido e referncia, Frege afirma:

    , pois, plausvel pensar que exista, unido a um sinal (nome,combinao de palavras, letras), alm daquilo por ele designado, quepode ser chamado de sua referncia (Bedeutung), ainda o que eugostaria de chamar de o sentido (Sinn) do sinal, onde est contido omodo de apresentao do objeto.(FREGE, G. Sobre o Sentido e aReferncia, pg. 131)

    A distino estabelecida por Frege fundamental para resolver o problemareferente ao que antes o autor denominava contedo asservel, que nodeixava clara essa distino, o que comprometia a interpretao acerca daigualdade entre os termos, isto , se a igualdade implicaria igualdade entre doisobjetos ou entre os nomes ou sinais desses objetos. Distinguir o sentido dareferncia nos permite compreender de forma clara o modo de apresentaodo objeto, o modo como este objeto se apresenta na estrutura do pensamento.Um nome dado a um objeto o referencia, mas o sentido demonstra o modocomo esse objeto, referido por um nome, se apresenta no contexto de umpensamento1.Segundo Frege:

    O sentido de um nome prprio apreendido por todos que estejamsuficientemente familiarizados com a linguagem ou com a totalidadede designaes a que o nome prprio pertence; isto, porm, s demaneira parcial elucida a referncia do nome, caso ele tenha urna.Para um conhecimento total da referncia, exigir-se-ia que fssemos

    1 Pensamento no deve ser considerado o pensar pessoal e subjetivo. Nosso pensar individual noproduz sentido, mas sim representaes ou ideias, que no podem ser compartilhadas. Opensamento, por identificar-se com o sentido, pode ser comunicado ao longo de geraes, tal sua conexocom as leis do pensamento. Ver Sobre o Sentido e Referncia pg. 134.

  • 2capazes de dizer, de imediato, para cada sentido dado pertence ouno a essa referncia. Isto, porm, nunca conseguiremos fazer. (Idem,pg. 132)

    A despeito da dificuldade em conhecer todas as relaes possveis entre ossentidos e suas referidas referncias, a distino estabelecida por Frege torna-se importante para compreendermos a funo do juzo. Todo juzo, para Frege, uma assero, um reconhecimento da verdade de uma sentena. Essaverdade dada por meio das relaes entre sentido e referncia. Fregeidentifica o sentido com o pensamento, ou seja, a parte da sentena quecontm o pensamento o sentido dessa sentena. Alm disso, temos alinguagem, veculo que expressa esse pensamento de forma perceptvel a ns.A terceira parte de uma sentena o conjunto de referncias aos quais osentido referencia. Nesse artigo, Frege nos diz que nem todos os sentidospossuem referncia e indaga:

    Mas por que queremos que cada nome prprio tenha no apenas umsentido, mas tambm uma referncia? Por que o pensamento nonos suficiente? Porque estamos preocupados com seu valor deverdade. (Idem, pg. 138)

    Embora nem todo pensamento possua referncia, procuramos por ela seprocuramos pela verdade de uma sentena. Por esse motivo, Frege estabelecenesse artigo que, em todo juzo, o valor de verdade reconhecido como areferncia de uma sentena. Depreende-se disso que em todo o juzo mesmo o mais evidente dado o passo do plano dos pensamentos para oplano das referncias (objetivo) (idem pg. 139). Sentido e referncia tornam-seos pontos de uma passagem que todo juzo deve fazer. Mas como essapassagem ocorre? O juzo seria apenas o reconhecimento do valor de verdadeentre as diversas formas de apresentao do objeto nos contextos dopensamento? Qual seria o papel da generalidade no pensamento?

    Essa relao entre generalidade e pensamento encontra-se presente emGeneralidade Lgica (ps 1923), quando investigamos a funo atribuda generalidade presente na linguagem. Para o autor, a generalidade no seapresenta como recurso prprio da linguagem, mas sim do pensamento. Deacordo com Frege:

    A linguagem pode aparecer para oferecer um meio paraque, por um lado, as sentenas sejam percebidas pelossentidos e, por outro, elas expressem pensamentos. Comoveculo para as expresses do pensamento, a linguagemtem que modelar a si mesma sobre o que acontece aonvel do pensamento. (FREGE, G. Logical Generality, inPosthumous Writings, pg. 259)

    Dessa maneira, Frege concebe a linguagem como uma ponte doperceptvel para o imperceptvel (Idem). a partir dessa ponte perceptvel quepodemos chegar ao pensamento, em geral presente na linguagem. Como aparte visvel aos sentidos consiste nas sentenas, a partir delas podemos,como que por um espelho, chegar at o prprio pensamento. Acerca disso,Frege afirma:

  • 3Aqui, no uma questo de entender a linguagem do dia-a-dia, de considerar os pensamentos expressos nela; uma questo de considerar a propriedade de pensamentosque eu chamo generalidade lgica (FREGE, G. Idem).

    A generalidade lgica, parte presente nos pensamentos, pode serexpressa na linguagem por meio de diferentes quantificadores, como todos,todo, nenhum, etc., e tambm por indicadores indefinidos da sentena, comoalgum, ou letras, como a, b, ou c. Essa estrutura de generalidade, Fregedenomina linguagem-objetiva, a forma de expresso do pensamento enquantogeneralidade, em contraposio forma usual na qual escrevemos ou falamos,que o autor denomina meta-linguagem.

    Essa forma de generalidade pertencente ao pensamento encapsula osparticulares que surgem na meta-linguagem, como Napoleo, Csar e toda amultiplicidade indiferenciada na forma de linguagem-objetiva.

    Percebemos que Frege, nesse e em outros registros do mesmo perodo,parece traar uma arquitetura do pensamento alicerada na generalidade. Nocaso acima, encontramos a identidade subsumida na generalidade lgica eexpressa na linguagem-objetiva. Mas tambm, no mesmo manuscrito,encontraremos outro fator preponderante para Frege, relativamente ao juzo:Segue-se do que foi dito que as sentenas da linguagem-objetiva nuncaconferem fora assertrica. (Idem, pg. 261).

    A generalidade expressa na linguagem-objetiva no possui foraassertrica, pois ela no apresenta nomes prprios e nem pode atuar comopremissa para inferncia. Isso relativamente importante para indicar quesentenas que contm ou expressam generalidade na forma de linguagem-objetiva no possuem valor de verdade, mas conferem condio para agerao de sentenas com valor de verdade.

    A fora assertrica referenciada nesse artigo no consiste em umanovidade em Frege. Em Sobre o Sentido e a Referncia (1892), o autor jreferenciava que de nada adianta acrescentar o termo verdadeiro a umasentena, pois o pensamento expresso continua sendo apenas umpensamento expresso, e no pensamento asserido. No referido texto, lemos:

    De fato, poder-se-ia dizer: O pensamento de que 5 umnmero primo verdadeiro. Porm, um exame maisacurado mostra que essa sentena nada acrescenta aoque dito na simples sentena 5 um nmero primo. Aassero da verdade reside, em ambos os casos, na formada sentena assertiva. E quando a assero perde suafora usual, digamos, na boca de um ator no palco, mesmoa sentena O pensamento de que 5 um nmero primo verdadeiro contm apenas um pensamento, a saber, omesmo pensamento da simples sentena 5 um nmeroprimo.

    No presente caso, a fora assertiva reside no fato de que uma sentenadeve possuir referncia. Na voz de um ator de palco, onde tudo o que se diz fico, no existe fora assertiva. Mas tambm no existe essa mesma fora

  • 4assertiva na generalidade lgica. Os motivos, entretanto, seguem de maneiradiferente. No primeiro caso, o motivo deve-se ao fato da fico, da simulao,da representao que no investiga a verdade das proposies e nemtampouco se ocupa das referncias que poderiam ou no possuir. O segundocaso deve-se ao fato de a generalidade lgica tornar indistinta a identidade,mas prescrever condies para que essa identidade seja asserida por umprocesso de inferncia e reconhecida em seu valor de verdade pelo juzo,embora, em sua forma de generalidade, no possua fora assertrica e,portanto, valor de verdade. Essa fora assertrica que aqui mencionamos eque nada tem de relao com a adio da expresso verdadeiro sentena,tem relao com outro elemento importante na obra de Frege, que consiste nadefinio ostensiva, parte fundamental da dinmica presente em Funo eConceito (1891) e Sobre Conceito e Objeto (1892). Esse processo, no qual aextensionalidade se torna presente na mecnica de subsuno dos objetos aosconceitos, parece ser contextualizada na dinmica da generalidade, na medidaem que esta, ao se particularizar, abre a entrada para a multiplicidade, sem aqual no pode haver uma referncia.Ricketts (2010) nos apresenta um quadro interessante referente generalidadeem Frege. Ricketts defende que:

    Generalidade quantificacional e identidade esto interligadas paraFrege. Generalidade quantificacional generalidade sobre umamultiplicidade de distintos, objetos determinados, quantadeterminados, por assim dizer. Diferenciao , assim, incorporada concepo de Frege de um objeto: no h entidade sem identidade(RICKETTS, T. op. cit., pg. 156).

    Essa passagem corrobora o que expomos at o momento, isto , a ideiade que a generalidade lgica se sobrepe multiplicidade de elementosindividuais. No olhar de Ricketts, a generalidade quantificacional no apenasmanteve a importncia no trabalho tardio de Frege, mas ainda determinantedo contexto lgico de identidade dos objetos, na medida em que sua estruturalgica geral anteciparia, nas leis do pensar, as condies de verdade para assentenas enunciadas. Entretanto, a incluso da generalidade lgica no nosdemonstra como um juzo passa do sentido para a referncia. Ela apenas nosindica a estrutura geral do pensamento, onde os enunciados particulares seassentam, permitindo estabelecer o sentido das relaes entre os elementos.Tambm acrescenta uma dificuldade. A fora assertrica, que nos permitefazer o juzo e reconhecer a verdade de um enunciado, no se encontra nalinguagem, como vimos em Sobre o Sentido e a Referncia. Tambm no seencontra no pensamento, como vimos em Generalidade lgica. Como possvel traar um juzo nessas condies? A soluo de Frege em 1892 foianalisar a relao entre sentido e referncia de cada parte da sentena, em umprocesso de desmembramento da mesma em partes:

    Vimos que a referncia de uma sentena pode sempre ser procuradaonde a referncia de seus componentes esteja envolvida, e isto sempre o caso quando, e somente quando, estamos investigando seuvalor de verdade. (idem, pg. 138)

    Mas a partir de Generalidade Lgica, essa soluo ainda suficiente? Aodesmembrar uma sentena, o sentido expresso pela linguagem-objetiva no se

  • 5perde, ficando apenas a estrutura particular da meta-linguagem? Essa questono respondida pelos presentes artigos. Porm, podemos considerar se ojuzo considerado por Frege em 1923-25 o mesmo juzo analtico do artigo de1892, uma vez que o autor submetia suas concepes a fortes mudanasestruturais. Somente uma pesquisa mais ampla pode encontrar subsdiossuficientes para preencher essas lacunas.