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O caráter polissêmico do item linguístico ficar.

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  • RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    VOLUME II, NMERO VIII - Jan-Mar 2004

    V O L U M E I I N M E R O V I I I Janeiro - Maro 2004

    A R T I G O V

    A expanso de sentidos do verbo ficar e os mecanismos responsveis pela organizao cognitiva de suas significaes.

    Profa. M. A . Roza Maria Palomanes Ribeiro

    Doutoranda em Lingstica UFRJ 1. INTRODUO

    A Lingstica Cognitiva uma corrente terica recente e ainda pouco conhecida no Brasil, no entanto, apesar disso constitui hoje um verdadeiro paradigma. Uma de suas principais bandeiras a motivao semntica das estruturas gramaticais. Consiste, sobretudo, numa viso bem especfica de como a linguagem motivada pela cognio: a funo cognitiva da linguagem passa a constituir o objeto de uma investigao sistemtica e coerente.

    Para esta corrente terica, a existncia de palavras polissmicas demonstra existirem relaes sistemticas entre diferentes modelos cognitivos ou entre elementos de um mesmo modelo, i.e, uma mesma palavra pode ser usada para diferentes conceitos pelo fato de j formarem uma categoria dentro do sistema conceitual. Esses sentidos mantm relaes entre si por meio de processos como a metfora e a metonmia.

    A polissemia aponta para a verdadeira funo do lxico, que dar suporte organizao do sistema conceitual. O essencial no fenmeno da polissemia est no fato de os vrios sentidos para a mesma palavra estarem relacionados entre si, direta ou indiretamente.

    1.1. Pressupostos tericos

    A elaborao deste estudo centra-se na existncia de acepes para um item especfico o verbo ficar. E as concepes da Lingstica Cognitiva do suporte terico a este trabalho. Tais concepes so compatveis com nossas idias sobre o funcionamento da linguagem e a primazia do significado lingstico: para a Lingstica Cognitiva, a questo bsica exatamente a da significatividade expresses lingsticas so ligadas a conceitos e modelos cognitivos do sistema conceitual, tornando-se significativas por sua ancoragem na experincia do ser. o princpio da escassez do significante (Salomo: 1999), segundo o qual o significante apenas guia complexas operaes mentais das quais resulta o trabalho da interpretao.

    Como objetivo geral do presente estudo evidenciar o alcance da perspectiva cognitiva em Semntica, comeamos por apresentar a Lingstica Cognitiva, expondo, resumidamente, seus princpios e fundamentos tericos:

    1) A linguagem est intimamente ligada a outros domnios cognitivos, havendo, pois, necessidade de investigao interdisciplinar;

    2) A estrutura lingstica depende da conceptualizao, que por sua vez, condicionada pela experincia de mundo do falante;

    3) As unidades lingsticas esto sujeitas categorizao e so tipicamente polissmicas.

    4) A gramtica motivada por aspectos semnticos.

    5) A significao de uma unidade lingstica uma estrutura conceptual convencionalmente associada a essa unidade.

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    VOLUME II, NMERO VIII - Jan-Mar 2004

    Lakoff e Langacker figuram no rol dos autores mais representativos da semntica cognitiva. A semntica lexical numa abordagem cognitiva toma, principalmente duas formas: a teoria da categorizao ou do prottipo (como tambm conhecida) e o papel dos modelos cognitivos baseados na experincia humana. Dos estudos de Lakoff que contriburam para nosso trabalho destacamos categorizao, efeitos de prototipicidade e tipos de prottipo; metfora e metonmia; e polissemia e estrutura radial das categorias. De Langacker retiramos as noes de perspectiva, escopo e recorte.

    O conceito de semelhana por familiaridade, muito citado em nossa anlise, foi extrado de Wittgenstein (1953) e significa que os elementos de uma categoria se associam entre si na base de similaridades parciais, i.e., cada elemento pode partilhar 1 propriedade com um outro, sem ser necessrio haver sequer 1 nica propriedade comum a todos os elementos.

    Lakoff (1987) apresenta a Lingstica Cognitiva, contrapondo-a ao Realismo Objetivista que concebe a relao linguagem/conhecimento de um pretenso modo correto e nico de captar o que existe na realidade, sem levar em conta as caractersticas do organismo humano. Essa perspectiva objetivista est especialmente vinculada Teoria Clssica da categorizao, segundo a qual as categorias existem efetivamente, sendo determinadas por um conjunto de propriedades objetivamente partilhadas por seus membros, que seriam condies necessrias e suficientes para a sua definio classificao.

    So temas de especial interesse da Lingstica Cognitiva as caractersticas estruturais da categorizao lingstica, como, por exemplo, a polissemia.

    A Lingstica Cognitiva considera a polissemia um fenmeno espervel, resultante dos processos de motivao cognitiva, como a metfora e a metonmia. Esses so dois importantes processos cognitivos que, no nvel lexical, so responsveis por estender semanticamente os itens lexicais a outros significados. A Lingstica Cognitiva atribui a eles uma funo cognitiva, concebendo-os como um recurso que a linguagem possui a seu alcance como dispositivo de expresso. A metfora, assim, admitida como um processo cognitivo que se baseia numa relao de similaridade, enquanto a metonmia baseada numa relao de contigidade.

    1.2 Metodologia utilizada

    O primeiro passo do trabalho foi verificar as acepes do verbo ficar presentes no corpus Discurso & Gramtica seo Rio de Janeiro. Embora o corpus apresente a produo oral e escrita de informantes de 1, 2 e 3graus de escolaridade e de CA supleti vo e infantil, s nos interessou utilizar a produo oral dos informantes com 1, 2 e 3 graus de escolaridade.

    Analisamos a fala de 68 informantes do corpus. 33 so alunos da 4 srie do 1 grau, 12 dos informantes so alunos da oitava srie do 1 grau, 15 so do 2 grau e 8 de 3 grau.

    Escolhemos a modalidade oral por representar um discurso prximo do espontneo e no-planejado, e tais nveis de escolaridade, por serem mais adequados aos nossos propsitos, j que buscamos dados que nos parecem mais comuns entre informantes pr-adolescentes a adultos jovens. Essa escolha nos permite um levantamento das variadas acepes do verbo ficar, sobretudo no que se refere aos usos novos, que so mais detectados na linguagem oral dos informantes com esse perfil.

    2. RESULTADOS ANALTICOS

    Fundamentados nas concepes da Lingstica Cognitiva, procuramos detectar que relaes unem as diversas acepes que o verbo ficar apresenta. Aps um levantamento das acepes do verbo no corpus[1], foi feita uma diviso de acordo com as especificidades de cada acepo como demonstrado a seguir. Para facilitar a anlise das diversas acepes do verbo ficar, fizemos uma diviso das acepes encontradas no corpus em grupos menores, que abarcam conjuntos de sentido que apresentam, por um lado, traos comuns entre si e, por outro, traos que os diferenciam dos demais grupos.

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    O Quadro a seguir sintetiza os grupos de sentidos encontrados: GRUPO DE SENTIDOS

    CARACTERSTICAS DO GRUPO ACEPES

    1

    Indica idia de permanncia:

    a) no espao: com valor essencialmente de verbo esttico.

    b) no tempo;

    c) em relao a domnios mais abstratos

    Acepo 1 (estacionar em algum lugar; no sair dele; permanecer),

    (1) sueca divertido por causa disso... n? uma dupla perde... a entra outra... e... sempre fica::/ eu sempre fico na mesa... porque eu sempre ganho no jogo

    Acepo 2 (estar situado),

    (2) a televiso fica assim num canto em cima... a tem o som tambm que fica embaixo da televiso...

    Acepo 3 (restar; sobrar),

    (3) a... entrou falando... n? de... de criao... eh... eh... que Deus tinha criado a mulher... que pra... procriar... eu falei p... se ele no tivesse criado o homem tambm no tinha ((riso)) no tinha adiantado nada... entendeu? e inclusive tinha uma garota na roda falando aqui assim... eh... voc no v a... j pensou se o mundo fosse eh... se... ficasse s as mulheres no mundo?

    Acepo 4 (no ir alm de)

    (4) foi interessante o que aconteceu comigo num tempo atrs... mas tambm foi triste... numa parte foi triste... interessante porque... eu:: eu tenho dois filhos... a minha mais velha est com seis anos... e eu no pretendia ter mais filhos... entendeu? era s ela e ia ficar s nela...

    Acepo 5 (permanecer ou continuar em determinada disposio de esprito ou situao)

    (5) ... a voc comea a ganhar bem... a voc pra e fala assim no... estou bem pra caramba... a... fica naquilo a vida inteira...

    2 Indica mudana de estado. Pode apresentar valor de tornar-se, vir a estar em determinado estado ou situao.

    Acepo 6: (6) Quando que voc vai defender sua dissertao e ficar mestre? (exemplo nosso)

    3

    Trata-se de um sentido diferente dos demais, por isso observado separadamente: seu novo uso significa namoro descompromissado,

    Acepo 7: (7) ele pegou e saiu com ela... ficou com ela... namorando ela..aquilo pra mim foi um choque..foi uma desiluso

    Vejamos, com mais detalhes, as diferenas entre os grupos de sentidos e as vrias acepes que os compem.

    a) Grupo de Sentidos 1:

    O grupo de sentidos 1 caracterizado pela idia de permanncia e engloba o sentido bsico espacial (permanncia em um determinado espao fsico) e as acepes que implicam extenses metafricas desse sentido bsico, indicando um continuum de abstratizao que vai do domnio do espao para o tempo e, da, para domnios mais abstratos.

    A esse respeito interessante mencionar a anlise de Lakoff e Turner (1989), segundo a qual a metfora estados so localizaes constitui um elemento bsico para a estrutura da cognio humana.

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    Vejamos um exemplo de cada um desses trs nveis:

    (8).a televiso fica assim num canto em cima... a tem o som tambm que fica embaixo da televiso... (espao)

    (9) Ela no evoluiu. Ficou nos anos sessenta. (tempo)

    (10) ... a voc comea a ganhar bem... a voc pra e fala assim no... estou bem pra caramba... a... fica naquilo a vida inteira... entendeu? (domnios mais abstratos)

    Entretanto, os trs nveis que compem o grupo de sentidos 1 at aqui apresentados parecem no dar conta de todas as nuances semnticas que caracterizam a polissemia de ficar. Vejamos, por exemplo, o trecho abaixo:

    (11) meu quarto assim ::... o lugar onde que eu mais gosto de ficar... um quarto comum... vou descrever pra voc... voc pediu para eu descrever... n? um quarto de pi::so ((riso)) antes era uma cama beliche... a meu irmo mais velho casou... eu tirei a cama beliche... ficou com a cama de baixo...

    Nesse caso, ao lado da noo de permanncia, que se caracteriza pelo fato de o mvel permanecer no local, existe a idia de que essa permanncia o resultado de o falante ter tirado a cama beliche. Em outras palavras, o verbo ficar parece absorver um sentido de conseqncia ou de resultado de uma atividade precedente, que nos contextos anteriores no apresentava. Observe outro exemplo retirado do corpus:

    (12) voc pega uma outra folha inteira... dobra no meio... a voc pega uma outra folha... corta uns pedacinhos pequenininhos... e cola no telhado... para prender na casa... nas paredes da casa... a fica uma casa...

    Estamos chamando esse valor de ficar de sentido resultativo, j que expressa a conseqncia de algo anterior. O termo foi retirado de Travaglia (1994), para quem a noo de resultatividade constitui uma noo no aspectual geralmente ligada ao aspecto verbal que, entre outros valores, indica o estado resultante de uma situao dinmica que ainda no se concluiu.

    Para compreendermos esse uso de ficar, devemos nos reportar s noes de perspectiva, escopo e recorte (Langacker: 1987), que so de grande importncia no que diz respeito ao modo como o falante constri uma determinada situao ou cena. Salomo (1990) chama ateno para a importncia do papel que a perspectivao desempenha na estruturao semntica da linguagem humana. O conceito de perspectiva central para a teoria dos frames semnticos, j que categorias lingsticas so vistas como indicaes de estruturas cognitivas, impondo a elas um recorte seletivo.

    Percebemos que, no exemplo dado, a idia de permanncia est presente, mas o falante parece ampliar o escopo da cena, deixando de recortar apenas a permanncia do objeto em um local ou situao, passando a relacionar essa permanncia com uma situao anterior que a proporcionou. Estamos compreendendo escopo no sentido de Langacker (1987), que prope que o escopo de uma predicao definido pelas pores de uma cena que ela efetivamente inclui.

    Processo anlogo acontece em casos como o exemplificado abaixo:

    (13) sueca divertido por causa disso... n? uma dupla perde... a entra outra... e... sempre fica::/ eu sempre fico na mesa... porque eu sempre ganho no jogo...

    Novamente a idia de permanncia clara, mas o verbo parece implicar uma expectativa de trmino do estado. Ficar aqui tem um valor de no sair, dentro de uma conveno de que quem ganha continua no jogo e quem perde sai. Novamente o falante abre o escopo da cena para incluir o movimento de

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    sada, fazendo-o parte do quadro que est querendo construir acerca do jogo de cartas chamado sueca. Estamos chamando de sentido progressivo esse uso de ficar. O termo progressivo no deve aqui ser compreendido como tendo valor de cursividade ou desenvolvimento gradual, como normalmente acontece nos estudos sobre aspecto verbal, mas com apresentando um valor de progresso, ou de algo que olha para frente e tende a avanar.

    Assim, no quadro a seguir se podem ver as acepes de ficar relacionadas ao Grupo de sentidos 1 que se apresentam como extenses metonmicas associadas a um movimento, predominando, nelas, o valor esttico, sendo distinto o foco dado ao momento que antecede ou sucede o movimento que levou o ser quela condio de permanncia. Observe:

    Grupo de sentidos 1

    resultativo progressivo Foco na cena esttica, levando-se em conta o movimento que antecede a situao por se tratar de uma acepo que indica o resultado de algum tipo de operao desempenhada anteriormente:

    Ex: (14) a meu irmo mais velho casou... eu tirei a cama beliche... ficou com a cama de baixo...

    Foco na cena esttica:

    Ex: (15) ... eu gosto de ficar no meu quarto... n? l tem... a cama que fica encostada na parede... do lado da cama tem uma mesinha desse tipo de mesinha de cabeceira... n?

    Foco na cena esttica, levando-se em conta o movimento seguinte que levar a situao a um trmino de alguma forma esperado:

    Ex: (16) sueca divertido por causa disso... n? uma dupla perde... a entra outra... e... sempre fica::/ eu sempre fico na mesa... porque eu sempre ganho no jogo...

    O quadro esquemtico acima permite que se veja entre esses usos uma relao metonmica, desde que se compreenda, com Lakoff e Turner (1989), que esse tipo de relao se d entre um elemento de um esquema e o esquema como um todo, ou entre elementos do mesmo esquema. Nesse sentido, pode-se observar, no quadro acima, um esquema de movimento, segundo o qual a idia de permanncia em um local ou estado apenas um estgio de um movimento maior, podendo implicar um deslocamento anterior em direo a esse local ou estado e, por outro lado, um deslocamento posterior de afastamento em relao a esse local ou estado. Dentro dessa perspectiva, a relao entre permanncia e aproximao/ afastamento em relao a esse local ou estado metonmica. O interessante dessa viso que ela passa um quadro dinmico da referncia (Langacker: 1987), j que o ato de permanecer normalmente parte de um processo maior.

    b) Grupo de Sentidos 2 (Verbo de processo):

    O chamado grupo de sentidos 2 constitudo basicamente pela acepo de tornar-se, vir a estar em determinada condio, indicando, portanto, uma mudana de estado.Eis abaixo um exemplo dessa acepo:

    (17) a eu falei assim como que a cachoeira? ela assustadora? ele falou assim por causa que todo mundo diz... que tem... um homem que morreu l... um homem que/ ele passava limo... pra poder ficar deformado...

    Interessante ressaltar que, nesse contexto, o verbo ficar, por expressar a idia de mudana de estado, est diretamente relacionado com o sentido resultativo, apresentado no grupo de sentidos 1. Observe o exemplo abaixo:

    (18) ... j pensou se o mundo fosse eh... se... ficasse s as mulheres no mundo?

    Acreditamos que a acepo tornar-se (mudana de estado) obteve do sentido resultativo, a idia de vir a estar em determinada condio como resultado de um processo de mudana de estado atravs de um processo metonmico por tratar-se de um conceito individual com parte de um todo. Alm disso, na conceptualizao do sentido de tornar-se funcionou um princpio metonmico geral do tipo causa-efeito.

    Foi observado, tambm, que, como verbo de mudana de estado, o ficar somente pode ocorrer atravs

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    da combinao com um atributo, funcionando como verbo relacional, como ilustrado a seguir:

    (19)... no meu modo de ver... falando de novo... no fica assustada no... porque eu tenho mania muito de falar no meu modo de ver... no meu modo de pensar... sabe? minha me costuma at falar que eu sou... meio assim... meio poltico..

    (20) meu pai estava andando... ele morava no outro lado da Penha... e:: ele estava passando por... por baixo da pa... da passagem subterrnea do trem... a dois caras... um escuro alto... forte e um branco tambm alto... forte... esbarraram nele... e ele anda com aquelas capangas... a:: a capanga caiu no cho... abriu... os documentos... dinheiro ficou tudo espalhado no cho... e eu/ ele abaixou pra... catar os documentos... quando ele abaixou... os caras falaram que era um assalto... a pegaram o dinheiro..

    c) Grupos de Sentidos 3:

    A respeito do sentido 3, pode-se dizer que se trata de um sentido de carter metafrico, que, possivelmente, se originou da transposio a um campo semntico especfico da idia de durao limitada ou ilimitada associada ao verbo ficar, ou seja, o domnio semntico que se mostrou particularmente propcio a essa metaforizao o da durao. A opo pelo verbo ficar em lugar de namorar pode dever-se ao ponto de vista do qual o locutor considera a atividade que, neste caso, parece ser observada quanto durao, apesar de j se apresentar com algumas nuances que diferenciam o uso atual de seu uso primeiro. Observe os exemplos a seguir retirados o corpus:

    (21) uma amiga minha me contou... que foi uma viagem que a gente fez... e:: a gente viajou com... com/ eram/ tinham doze pessoas na casa... e um deles era filho de um deputado... t? e/ s que ela... ela... ela::... tipo... estava nam/ comeou a namo/ namorou no... ficou com o cara l no carnaval

    (22) ficou com ela... namorou e tudo... ela estava super feliz... super apaixonada... a depois... ele foi... brigou com ela... depois de um ms de namoro... ele brigou com ela...

    Como difcil apresentar a origem especfica desse novo uso, pois se trata de um estudo sobre o qual no se encontra material bibliogrfico para consulta e pesquisa que auxiliem na corroborao das hipteses levantadas, aventamos algumas possibilidades que possam ter levado ao surgimento desse sentido novo. A busca da expresso nova para uma situao nova motivou essa extenso semntica. A opo pelo ficar em lugar de namorar pode dever-se basicamente a dois fatos: em primeiro lugar, ficar, nesse contexto, constitui um sentido mais neutro do que namorar, noivar, casar ou transar, que j esto institucionalizados como representativos de situaes de relacionamento estabelecidos socialmente. Isso faz do ficar uma oposio ao demais verbos citados; o termo que representa bem a realidade nova e menos compromissada que surge entre os jovens, refletores de uma sociedade de consumo em que maior status detm aquele que consome mais, buscando sempre estar na moda; jovens que crescem dentro de uma realidade em que as coisas no so feitas para durar muito, at mesmo para se estimular um maior consumo.

    Mas por que se optou pelo verbo ficar para se expressar essa nova situao? Em nossa anlise, isto se deve ao fato de o verbo ficar criar uma expectativa de trmino de estado, o que perfeito para se expressar essa nova forma de relacionamento que pelo menor compromisso que implica, tende a no durar muito tempo. Aqui encontramos uma outra relao de semelhana por familiaridade entre esta acepo e o sentido progressivo apresentado no grupo de sentidos 1.

    3. CONSIDERAES FINAIS

    As principais concluses a que chegamos versam sobre a comprovao da polissemia do verbo ficar, ou seja, sobre a extenso de seus usos marcada por processos metafricos e metonmicos que o caracterizam como verbo pleno e auxiliar. Detectamos ser difcil tratar do fenmeno da significao, captar e especificar as propriedades dos contextos em que o ficar empregado em cada uma das

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    acepes encontradas no corpus, selecionar que parmetros permitem diferenci-las, decidir sobre que tipos e graus de diferenas de sentido constituem ou no acepes distintas.

    Porm, a comprovao, no s da existncia, mas tambm da essencialidade da polissemia lexical, particularmente na viso defendida pela Lingstica Cognitiva, permitiu perceber que as acepes se relacionam atravs da semelhana por familiaridade. Com base nos comportamentos sinttico-semnticos de ficar discutidos neste trabalho, corrobora-se nossa viso inicial de considerar o ficar um verbo polissmico, uma vez que seus usos tm a mesma origem e no se distanciam no sentido, podendo-se perceber traos comuns entre eles.

    Pde-se perceber a existncia, pelo menos parcial, de uma estrutura bsica e do domnio que ela representa, surgindo, da, outros empregos de ficar. Estes empregos compem estruturas que, na escala de gramaticalizao, vo do menos ao mais gramaticalizado, manifestando certas nuanas semnticas que os inter-relacionam.

    Das entrevistas usadas como corpus do trabalho, foram recolhidos 298 dados em que o verbo ficar aparece como pleno. Como foi visto no captulo que trata da anlise do verbo, foi feita uma diviso em 3 grupos menores. Aps agruparmos as acepes que expressam a idia de permanncia, englobando o sentido bsico espacial (permanncia em um determinado espao fsico) e as acepes que implicam extenses metafricas desse sentido bsico, ou seja, indo do domnio do espao para o tempo e, da, para domnios mais abstratos, relacionados a situaes da vida, percebemos que os trs nveis que compem o grupo de sentidos 1 no do conta de todas as nuances semnticas que caracterizam a polissemia de ficar. Chegamos, ento, a uma concluso importante e, por assim, a contribuio do nosso estudo: as acepes de ficar relacionadas ao Grupo de sentidos 1 se apresentam como extenses metonmicas associadas a um movimento, predominando, nelas, o valor esttico, sendo distinto o foco dado ao momento antecedente ou precedente do movimento que levou o ser quela condio de permanncia. Utilizamos, para chegar a essa concluses, as noes de perspectiva, escopo e recorte de Langacker, que dizem respeito ao modo como o falante constri uma determinada situao ou cena, i.e, o falante deixa de recortar apenas a permanncia do objeto em um local ou situao e abre o escopo da cena para incluir os movimentos de chegada ou sada, fazendo-os parte do quadro que est querendo construir. Assim, defendemos que a idia de permanncia em um local ou estado que o ficar expressa neste contexto apenas um estgio de um movimento maior, podendo implicar um deslocamento anterior em direo a esse local ou estado e, por outro lado, um deslocamento posterior de afastamento em relao a esse local ou estado.

    Com relao ao Grupo de sentidos 2 em que o ficar apresenta-se como verbo de processo, indicando mudana de estado, conclumos que, atravs de um processo metonmico, esta acepo obteve do sentido resultativo do grupo de sentidos 1, a idia de vir a estar em determinada condio como resultado de um processo de mudana de estado, i.e., indica o resultado de uma operao desempenhada anteriormente. Ficar triste pressupe que algo o levou a esta condio.

    Vale ainda comentar, por ser relevante para a compreenso da natureza das extenses de sentido do ficar, que a metfora est presente em praticamente todas as acepes do verbo. Tambm vimos que, em vez de recursos meramente estilsticos, como so vistas na literatura tradicional, metforas apresentam-se como instrumentos de compreenso de situaes de experincia, permitindo que tais situaes compreendidas por analogia a outras. Um tipo de acepo metafrica em que se pode ver a influncia que as situaes que uma palavra usada para representar tm no sentido que tal palavra vai adquirindo a acepo 7 (namoro descompromissado), ou seja, essa acepo especializada para uma situao bastante particular parece demonstrar que o uso dos recursos expressivos j disponveis para a representao de novas situaes estendido.

    Uma das propostas deste trabalho defender a gramaticalizao do verbo ficar. Encontramos no corpus dados que nos permitem tal defesa. Certas estruturaes de que participa o ficar, em certos contextos, contm acepes semnticas distintas, mais ou menos gramaticalizadas. Observou-se que o ficar apresenta nveis de gramaticalizao: o ficar pleno com comportamento primordialmente lexical, o ficar funcional com comportamento lxico-gramatical, at chegar ao ficar auxiliar com comportamento gramatical.

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    No caso especfico da gramaticalizao do verbo ficar, questes metonmicas se mostraram particularmente importantes. Por isso mesmo, quando tratamos dos casos de gramaticalizao, mencionamos mais os processos metonmicos do que os metafricos.

    A metonmia foi vista, neste trabalho, como um processo fundamental de extenso de sentido, permitindo que se estabelecessem conexes entre entidades que co-ocorrem numa determinada estrutura conceptual. Dentro de uma viso mais estrutural, compreendemos que a transferncia metonmica um mecanismo que predomina na mudana por gramaticalizao. Esta constitui um processo estrutural de mudana de sentido.

    Alcanou-se, portanto, o fim deste estudo com o seguinte resultado concreto: o ficar um verbo polissmico e certas estruturaes de que participa, em certos contextos, contm acepes semnticas distintas, mais ou menos gramaticalizadas. E baseados na certeza de que todo conhecimento cientfico pode (ou deve) ser repensado e reconstrudo, no dada por encerrada a discusso em torno da polissemia do verbo ficar. Referncia Bilbiogrfica

    LAKOFF, G.. Women, fire and dangerous things. Chicago: The University of Chicago Press,1987.

    LAKOFF, George e TURNER, Marc. More than cool reason: a field guide to poetic metaphor. Chicago: University of Chicago Pres. 1989.

    LANGACKER, Ronald W. Foundations of Cognitive Grammar. Stanford, California: Stanford University Press. 1987. Volume I and II

    ........................................A Linguagem e sua Estrutura.Petrpolis: Editora Vozes. 1972.

    SALOMO, Maria Margarida M. s/d. Idiomaticidade e motivao cognitiva: a face-de-Jano da gramtica. UFJF: Mimeo

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    SILVA, Augusto S. da A semntica de deixar: uma contribuio para a abordagem cognitiva em semntica lexical. Braga: Fundao Calouste Gulbenkian e Fundao para a Cincia e tecnologia. Tese de Doutorado. 1999.

    TAYLOR, John R. Linguistic categorization: prototypes in linguistic theory. New York: Oxford University Press. 1995.

    TRAVAGLIA, L.C. O aspecto verbal no Portugus: a categoria e sua expresso. Uberlndia: Ed. Universidade Federal de Uberlndia,1994.

    VASCONCELOS, Zinda Maria C. de O processo da Expanso de Sentido e a Questo da (ir)representabilidade Semntica Tese de Doutorado. PUC/RJ

    [1] Corpus Discurso & Gramtica seo Rio de Janeiro( UFRJ): produo oral de 68 informantes de 1, 2 e 3graus de escolaridade (33 alunos da 4 s rie do 1 grau, 12 da oitava srie do 1 grau, 15 do 2 grau e 8 de 3 grau).