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As cartas dos livreiros: Manuais escolares e mercado editorial entre Rio e Paris, 1870-1874. Rodrigo Camargo de Godoi (Pós-Doc Cecult/Unicamp/Fapesp) Supervisor: Prof. Dr. Sidney Chalhoub Palavras-chave: Correspondência, Livreiros, História do Livro. Nos últimos anos a correspondência tem se tornado uma fonte muito importante para os historiadores. Da perspectiva de uma história cultural que procura articular práticas e representações, “o gesto epistolar é um gesto privilegiado”. Para Roger Chartier, a carta seria superior a qualquer outra forma de expressão escrita, pois enlaçaria subjetividade e sociabilidade. 1 Marie-Claire Grassi aponta três dimensões nas quais as cartas podem ser estudadas, ou seja, dos pontos de vista histórico, social e literário. 2 Neste último caso, os leitores brasileiros contam com importantes estudos de epistolografia, a exemplo do livro organizado por Walnice Galvão e Nádia Gotlib, bem como com as traduções de Emerson Tin de tratados epistolários dos séculos XII e XVI. 3 Já nos domínios da história dos impressos, as cartas apresentam um potencial de investigação inestimável, seja a correspondência trocada entre leitores e autores, autores e editores, editores e livreiros, etc. Para Marie-Claire Hoock-Demarle a simbiose entre o livro e a carta nas décadas finais do século XVIII encontraria sua expressão máxima no romance epistolar. Porém, salienta a autora, a carta estaria no centro do próprio mercado livreiro, cumprindo a dupla função de estabelecer redes e disseminar informações: “a correspondência permite acompanhar de perto o percurso que vai do autor ao leitor, passando por aquele intermediário incontornável que é o editor, colocado, este, no cruzamento entre uma ou várias legislações a respeitar, entre prováveis autores e leitores cada vez mais diversificados”. 4 1 CHARTIER, Roger (Org.). La correspondance: les usages de la lettre au XIXe siècle.Paris: Fayad, 1991, p. 9-10. 2 GRASSI, Marie-Claire. Lire l’epistolaire. Paris: Armand Colin, 1997. 3 GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Orgs.). Prezado senhor, prezada senhora: estudos sobre cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. TIN, Emerson. A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio. Campinas: Editora da Unicamp, 2005. 4 HOOCK-DEMARLE, Marie-Claire. L’Europe des lettres: réseaux épistolaires et construction de l’espace européen. Paris : Albin Michel, 2008, p. 201. Ver principalmente o capítulo 5. “Une symbiose biblio-épistolaire européenne”.

As cartas dos livreiros: Manuais escolares e mercado ... · 16 Carta de Nicolau Antonio Alves a Viúva Aillaud, Guillard e Cie, 5 jun. 1870. Revista cível entre partes, 1878. 17

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As cartas dos livreiros:

Manuais escolares e mercado editorial entre Rio e Paris, 1870-1874.

Rodrigo Camargo de Godoi (Pós-Doc Cecult/Unicamp/Fapesp)

Supervisor: Prof. Dr. Sidney Chalhoub

Palavras-chave: Correspondência, Livreiros, História do Livro.

Nos últimos anos a correspondência tem se tornado uma fonte muito importante

para os historiadores. Da perspectiva de uma história cultural que procura articular

práticas e representações, “o gesto epistolar é um gesto privilegiado”. Para Roger

Chartier, a carta seria superior a qualquer outra forma de expressão escrita, pois

enlaçaria subjetividade e sociabilidade.1 Marie-Claire Grassi aponta três dimensões nas

quais as cartas podem ser estudadas, ou seja, dos pontos de vista histórico, social e

literário.2 Neste último caso, os leitores brasileiros contam com importantes estudos de

epistolografia, a exemplo do livro organizado por Walnice Galvão e Nádia Gotlib, bem

como com as traduções de Emerson Tin de tratados epistolários dos séculos XII e XVI.3

Já nos domínios da história dos impressos, as cartas apresentam um potencial de

investigação inestimável, seja a correspondência trocada entre leitores e autores, autores

e editores, editores e livreiros, etc. Para Marie-Claire Hoock-Demarle a simbiose entre o

livro e a carta nas décadas finais do século XVIII encontraria sua expressão máxima no

romance epistolar. Porém, salienta a autora, a carta estaria no centro do próprio mercado

livreiro, cumprindo a dupla função de estabelecer redes e disseminar informações: “a

correspondência permite acompanhar de perto o percurso que vai do autor ao leitor,

passando por aquele intermediário incontornável que é o editor, colocado, este, no

cruzamento entre uma ou várias legislações a respeitar, entre prováveis autores e

leitores cada vez mais diversificados”.4

1 CHARTIER, Roger (Org.). La correspondance: les usages de la lettre au XIXe siècle.Paris: Fayad,

1991, p. 9-10. 2 GRASSI, Marie-Claire. Lire l’epistolaire. Paris: Armand Colin, 1997. 3 GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Orgs.). Prezado senhor, prezada senhora:

estudos sobre cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. TIN, Emerson. A arte de escrever cartas:

Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio. Campinas: Editora da Unicamp, 2005. 4 HOOCK-DEMARLE, Marie-Claire. L’Europe des lettres: réseaux épistolaires et construction de

l’espace européen. Paris : Albin Michel, 2008, p. 201. Ver principalmente o capítulo 5. “Une symbiose

biblio-épistolaire européenne”.

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Para o século XVIII, a obra de Robert Darnton é a prova cabal das

potencialidades das cartas para a história do livro. Grande parte dela foi elaborada a

partir de pesquisas nos arquivos da Société Typographique de Neuchâtel, editora suíça

de livros franceses no período pré-revolucionário. Entre os 50 mil papéis deste acervo o

historiador encontrou, por exemplo, as 47 cartas de Jean Ranson, um comerciante de La

Rochelle entusiasta da obra de Rousseau, bem como a correspondência de Isaac-Pierre

Rigaud, um livreiro de Montpellier às voltas com a comercialização das Questions sur

l’Encyclopédie de Voltaire. Isso sem contar a história editorial da Encyclopédie

igualmente narrada a partir dos arquivos da STN. Como avalia Darnton, “a profusão de

informações pode aniquilar o pesquisador; um punhado de cartas de um livreiro é capaz

de revelar mais do que uma monografia inteira sobre a atividade livresca”.5

Para o século XIX, os arquivos da editora Blackwood também guardam

raridades. Entre elas, as cartas que revelavam as dores de cabeça dos editores John e

William Blackwood ao publicarem o relato do oficial britânico John Hanning Speke,

um explorador do continente africano que, não obstante a coragem, escrevia mal.6 Ao

que tudo indica, para o século XIX brasileiro, dossiês completos como os encontrados

por Robert Darnton na Suiça e David Finkelstein na Escócia ainda não foram

localizados. Em minhas pesquisas sobre o editor Paula Brito na Biblioteca Nacional do

Rio de Janeiro localizei um número bastante reduzido de cartas. Ao todo três missivas,

entre as quais uma em que o editor ameaçava interromper a publicação do prestigioso

periódico da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional.7

Por conseguinte, o conjunto de 13 cartas trocadas entre o livreiro carioca

Nicolau Antonio Alves e a firma da Viúva J.-P. Aillaud, Guillard e Cie, de Paris, torna-

se relevantes para a história dos impressos no Brasil do século XIX. Principalmente no

5 DARNTON, Robert. “Os leitores respondem a Rousseau: a fabricação de sensibilidade romântica”. In:

O grande massacre de gatos: e outros episódios da história cultural francesa. Trad. Sonia Coutinho. São

Paulo: Paz e Terra, 2014. DARNTON, Robert. “O que é a história dos livros?” In: O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

DARNTON, Robert. Iluminismo como negócio: história da publicação da Enciclopédia, 1775-1800. Trad.

Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 15. 6 FINKELSTEIN, David. “Africa rewritten: the case of John Hanning Speke”. In: The House of

Blackwood: author-publisher relations in the Victorian Era. Pennsylvania: Pennsylvania State University

Press, 2002. 7 Carta de Francisco de Paula Brito a destinatário ignorado explicando a razão de não imprimir o

Auxiliador. Rio de Janeiro. BN, Manuscritos, I-28, 02, 028, 25/06/1854. Sobre a trajetória de Francisco

de Paula Brito, ver: GODOI, Rodrigo Camargo de. Um editor no Império: Francisco de Paula Brito,

1809-1861. São Paulo: Edusp, 2016.

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que concerne ao mercado editorial transatlântico que unia Paris e os portos de Havre,

Lisboa e Rio de Janeiro. Porém, antes rompermos os envelopes, cumpre saber mais

sobre os missivistas e a razão da escrita de tantas linhas.

Dois livreiros no século XIX

Nicolau Antonio Alves chegou ao Brasil em 1839, aos 11 anos de idade. Em

1854, o imigrante português abriu a Livraria Clássica na Rua dos Latoeiros, nº 54,

iniciando um próspero negócio familiar que, anos mais tarde, incluiria seu sobrinho

famoso, o editor Francisco Alves.8 Anúncios publicados na imprensa do Rio dos anos

1850 a 1870, sugerem que a Livraria Clássica havia se especializado na comercialização

de livros escolares, como os “livros preciosos” adotados pelo Colégio de Pedro II, os

compêndios de medicina e as gramáticas.9 Muitos desses livros eram importados, como

demonstram os manifestos do movimento do porto. Em abril de 1861, o paquete francês

Extramadure que vinha de Bordéus via Lisboa trouxe “8 caixas [de livros] a Garnier, 2

a José Ferreira de Souza, 2 a Domère, 1 a Lombaerts, 1 a Nicolau A. Alves, 1 a Lebellot,

1 a Daenicker”.10 No entanto, em fins dos anos 1860, Nicolau A. Alves lançou-se como

editor de manuais escolares na corte, publicando, por exemplo, os Elementos de

Geografia Moderna e Cosmografia de P. de Abreu, professor do Colégio Pedro II.11

Neste sentido, a reforma do ensino primário e secundário empreendida por Luís

Pedreira do Couto Ferraz, Ministro do Império do Gabinete chefiado pelo Marquês de

Paraná, impactou o mercado livreiro da capital do Império. Disposições do Decreto Nº

1.331-A de 17 de fevereiro de 1854, que regulava a reforma, informavam que o

fornecimento de compêndios nas escolas públicas do Rio de Janeiro correria por conta

do governo, sendo proibidos os livros não autorizados. Caberia ao Inspetor Geral da

Instrução Pública selecionar os manuais didáticos, bem como premiar os autores ou

8 HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: uma história. São Paulo: Edusp, 2005. p. 279. 9 “Colégio Pedro II”, Correio Mercantil, 8 fev. 1856, p. 3. “Colégio Pedro II”, Correio da Tarde, 8 fev.

1856, p. 4. “Livros de Medicina”, Correio Mercantil, 31 mar. 1856, p. 3. “Crônica Geral”, A Reforma, 19

dez. 1871, p. 2. “Seção Especial: Prêmios de Colégios”, O Apóstolo, 25 nov. 1877, p. 3. 10 “Importação, Manifestos, Paquete Francês – Extramadure – de Bordéus por Lisboa”, Correio

Mercantil, 19 abr. 1861. Grifo meu. 11 “Publicação Literária”, Diário do Rio de Janeiro, 16 jul. 1867, p. 2.

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tradutores de livros aprovados.12 Em síntese, a Reforma Couto Ferraz transformara o

governo no maior comprador de livros do Rio de Janeiro, ou seja, um cliente e tanto

para livreiros como Nicolau Antonio Alves que então acabara de iniciar-se no ramo. E

foi precisamente a edição de um manual escolar o motivo troca de cartas entre Nicolau e

a casa Aillaud, já no início da década de 1870.

Conforme Diana Cooper-Richet, o papel desempenhado pela família Aillaud no

mercado editorial entre França, Portugal e Brasil ainda espera uma investigação mais

aprofundada. A história remonta ao século XVIII, quando, em 1770, Jean-Pierre Aillaud

fundou uma livraria em Coimbra. No século seguinte, seu filho homônimo estabeleceu-

se em Paris, tornando-se o maior editor de livros e períodicos na língua de Camões da

capital francesa. Os catálogos da Casa Aillaud anunciavam, já na década de 1840, “os

livros clássicos adotados nas escolas de Portugal e do Brasil”.13 Aníbal Bragança

demonstrou que os negócios editoriais entre os Alves e os Aillaud foram longos e

frutíferos, avançando as primeiras décadas do século XX.14

Livreiros na justiça

As 13 cartas aqui analisadas foram localizadas numa Revista Cível entre Partes

julgada no Supremo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em maio de 1878. O processo

originou-se em um Auto de Justificação movido em setembro 1874, no qual Nicolau

Antonio Alves, por intermédio de seu advogado, alegava a propriedade e pedia o

embargo das edições dos Trechos Clássicos e Beautés de Chateaubriand pirateados

pelos livreiros Serafim José Alves e João Martins Ribeiro:

O Suplicante prova o direito que lhe assiste em relação a essas obras com os

documentos juntos por onde faz certo que por aviso do Ministério do Império de 20 de

setembro de 1870 a edição do suplicante é a que é admitida no programa para o exame de preparatórios sob a denominação “Trechos Clássicos” de [ilegível] do suplicante,

12 Decreto Nº 1.331-A de 17 de fevereiro de 1854 Aprova o Regulamento para a reforma do ensino

primário e secundário do Município da Corte. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/. Acesso em 26

mai. 2016. 13 COOPER-RICHET, Diana. “Paris, capital editorial do mundo lusófono na primeira metade do século

XIX?” Vária História, Belo Horizonte, v. 25, n. 42, jul.-dez., 2009. 14 BRAGANÇA, Aníbal. Rio de Janeiro, Paris et Lisbonne: la présence de Francisco Alves dan le monde

éditorial européen. In : COOPER-RICHET, Diana; MOLLIER, Jean-Yves. Le commerce transatlantique

de libraire. Campinas : Publicações do IEL-Unicamp, 2012.

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assim como, as cartas adiante exibidas torna incontestável e certo o direito do suplicante

como dono exclusivo da obra intitulada “Beautés de Chateaubriand”.15

Por conseguinte, as cartas trocadas entre Nicolau Antonio Alves e a Viúva J.-P.

Aillaud, Grillard e Cie foram anexadas ao processo como provas de que Nicolau era o

proprietário das edições. Os autos guardam as cartas originais, bem como as traduções

de trechos importantes para o processo feitas por Rodolfo Júlio Balbi, tradutor público

juramentado e intérprete matriculado no Tribunal do Comércio do Rio de Janeiro. O

caso se estenderia por quatro anos, de 1874 a 1878, quando da revisão da sentença a

princípio favorável ao tio de Francisco Alves.

Figura 1 – Carta da Viúva Aillaud, Guillard e Cie para Nicolau Antonio Alves, 2 ago. 1870.

As cartas dos livreiros

Entre cartas que formam a série, cinco foram escritas por Nicolau Antonio Alves

no Rio de Janeiro, sete pelos representantes da firma Viúva Aillaud, Guillard e Cie e

uma pelo Tabelião de Paris. O tema central da correspondência é a publicação de um

compêndio escolar para os exames na Instrução Pública. Porém, além disso, três cartas

15 Revista cível entre partes. Nicolau Antonio Alves, Recorrente. Serafim José Alves, Recorrido. ANRJ,

Supremo Tribunal de Justiça, BU.O.RCI.887, 1876-1878.

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trazem pedidos de livros e acertos de contas entre os livreiros. Não obstante o papel fino

empregado nas missivas, de modo geral a conservação dos documentos é satisfatória,

permitindo sua leitura e transcrição sem maiores dificuldades.

Na primeira carta, de 5 de junho de 1870, Nicolau A. Alves escreveu a Paris

encomendando a casa Aillaud um livro contendo capítulos do Génie du Christianisme e

do Le Martyrs, ou le Triomphe de la foi chrétienne de François-René de Chateaubriand,

publicados originalmente em 1802 e 1809. Nicolau tinha por modelo, incluindo o tipo e

o papel a serem empregados na edição, os Morceaux choisis editados por Jules Delalain.

Com efeito, a seleta deveria apresentar uma “notícia literária e histórica acerca de

Chateaubriand”, sendo preparada por pessoa instruída, como León Jacques Feugère ou

Didier, conforme o livreiro, já conhecidos no Brasil.16

Porém, algo deve ter acontecido entre os dias 5 de junho e 6 julho de 1870, na

medida em que antes de receber a resposta à primeira carta, Nicolau escreveu

novamente a Paris alterando substancialmente o plano original do livro. Para além dos

trechos dos Génie du Chistianisme e do Le Martyrs de Chateaubriand, a obra deveria

conter passagens do Teatro Clássico Francês:

Rio de Janeiro, 6 de julho de 1870.

Eu vos tinha incumbido de procurar em Paris um pessoa para coordenar a

“Seleta” dos Martyrs e de Génies du Christianisme de Chateaubriand. Agora vos peço que trateis com essa pessoa para fazer essa Seleta que também deve contar um extrato

das melhores passagens do Teatro Clássico francês.

As passagens das suas obras de Chateaubriand e do Teatro Clássico devem juntas formar um só volume.

Espero com impaciência o cálculo desta impressão a fim de remeter a sua

importância.

A escolha do teatro clássico deve ser das melhores passagens do Cid, de Horace, de Cinna, do Polyente de Corneille, de Britannicus, da Esther, da Athalie de

Racine, de Me[ilegível] de Voltaire, do Misantrophe, de Voltaire, digo de Molière.

Nicolau Antonio Alves.17

A resposta à primeira carta foi redigida em Paris um mês depois, no dia 8 de

julho. Nela, a casa Aillaud aceitava a encomenda, sendo a preparação do livro entregue

16 Carta de Nicolau Antonio Alves a Viúva Aillaud, Guillard e Cie, 5 jun. 1870. Revista cível entre partes,

1878. 17 Carta de Nicolau Antonio Alves a Viúva Aillaud, Guillard e Cie, 8 jul. 1870. Revista cível entre partes,

1878.

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aos cuidados de François-Leopold Marcou, uma vez que Léon Feugère e Didier haviam

falecido. Em 1859, aos 33 anos, Marcou havia defendido uma tese sobre Paul Pellisson

na Faculdade de Letras de Paris18. Conforme informava a carta, naquele momento

Marcou atuava como professor de literatura grega e latina em um dos Liceus da capital

francesa. Sua experiência editorial podia ser atestada pela publicação de uma seleta de

poemas latinos recolhidos por seu antigo professor no Colégio Louis Le Grand, M.

Chardin, em 1864.19 Além de informações sobre o organizador do livro, a carta oferecia

detalhes sobre a impressão por meio de três orçamentos para a publicação de 1.100,

2.200 e 3.300 exemplares.20

Já a resposta à segunda carta de Nicolau, que solicitava alterações no plano do

livro, foi escrita em Paris no dia 2 de agosto. Os franceses mostraram-se indignados

com as mudanças:

A vossa carta de 5 de julho próximo passado era muito positiva relativamente ao Morceaux de obras de Chateaubriand. Vós nos recomendais que estivéssemos prontos

para principiar a impressão quando assim o delibereis na próxima carta. Ora, nos

estávamos prontos quando a vossa carta de 6 de julho veio modificar as vossa primeiras ordens! Sentimo-lo, pois que a obra tinha sido bem imaginada na primeira vez e que os

extratos de tragédias eram uma espécie de apêndice. A notícia biográfica e literária

acerca de Chateaubriand explicando a escolha e classificação dos trechos dava ao livro, faria sobressair as suas (demais) partes e explicava a escolha. Agora, porém, se se quiser

acrescentar uma passagem de Cinna de Corneille ou do Mysantrophe... será impossível

explicar o motivo lógico. Além disso, a escolha das passagens tinha de ser feito de

modo a formar um volume igual ao de Didier, vós nos dizeis agora que lhe acrescentemos alguns extratos do teatro clássico, ficando sempre nos mesmos limites!

Será, pois preciso suprimir algumas passagens de Chateaubriand... o que não deixa de

ser desagradável! Finalmente a vossa carta de 5 de junho não é ainda suficientemente positiva para nos

habilitar a dar começo à impressão.21

Os franceses visivelmente se assustaram com aquele Frankstein literário

proposto por Nicolau Antonio Alves. Para além da descompostura, no entanto, a carta

trazia uma extensa relação de livros a serem remetidos ao Rio de Janeiro.

18 MARCOU, François-Leopold. Étude sur la vie et les ouvrages de Pellisson. Paris: Didier et Cie; Aug.

Duran, 1859. 19 MARCOU, L. DELTOUR, F. Choix de matières et de pièces de vers latins recueilllies par M. Chardin,

ancien professeur de second au Lycée Louis-Le-Grand. Paris : Imprimerie et Libraire Classiques de Jules

Delalain, 1864. “Bibliographie”, Reveu de l’instruction publique, Paris, 16 jun. 1864, p. 167. 20 Carta de Nicolau Antonio Alves a Viúva Aillaud, Guillard e Cie, 6 jul. 1870. Revista cível entre partes,

1878. 21 Carta da Viúva Aillaud, Guillard e Cie a Nicolau Antonio Alves, 8 set. 1870. Revista cível entre partes,

1878.

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Ainda sem receber a resposta indignada de Paris, Nicolau Antonio Alves

autorizou o início da impressão dos trechos de Chateaubriand e do Teatro Clássico

Francês em carta do dia 5 de agosto. O livreiro carioca batizou o livro como Beautés de

Chateaubriad et du Théatre Classique, tentando diferenciá-lo de outro livro impresso

por Jules Delalain.22 No dia 8 de setembro, os franceses escreveram ao Rio informando

o recebimento da carta de 5 de agosto. A impressão do livro encomendando por Nicolau

deveria se iniciar “tão depressa finde a horrível crise por que estamos passando”.23

Certamente uma referência a Guerra Franco-Prussiana que se estendeu de julho de 1870

a maio de 1871, a qual acabou por derrubar Napoleão III. Neste sentido, a próxima carta

enviada de Paris foi escrita após o fim do conflito, em junho de 1871:

Escusado é numerar-lhe os espantosos acontecimentos que já sobrevieram no nosso

país; terá por certo V. S. lido nos jornais essas horríveis circunstâncias. Devemos somente dizer-lhe que, pela vontade de Diversa Providência, não fomos envolvidos

nessas imensas ruínas – Já faz algumas semanas que tomamos precauções para por a

salvo do roubo e do incêndio os nossos principais interesses; e, além disso, as nossas

edições como os nossos tipos foram preservados sendo o nosso bairro um dos mais poupados pela guerra civil. Então, agradecendo a Deus, vamos tornar a começar os

nossos trabalhos interrompidos a fim de servir os nossos correspondentes com o nosso

costumado zelo.24

Além de informações sobre a Comuna de Paris, a missiva trazia a fatura da

publicação das Beautés de Chateaubriand: 4.197,70 francos pela primeira edição, mais

1.362,55 francos pela encadernação de mil exemplares. Esta carta foi respondida por

Nicolau Antonio Alves no dia 22 de julho de 1871:

Confirmo a minha carta de 6 do corrente. Recebi pelo valor Gironde, de Bordéus, a caixa número 447 contendo as Beautés de Chateaubriand.

Este livro ficou a meu gosto, exceto na parte relativa ao Théâtre Classique que deveria

ter tido mais desenvolvimento; entretanto assim mesmo se venderá. Creio que daqui vos pediram alguns exemplares que vendereis a 5 f líquido cada exemplar em folha. Creio

22 Carta de Nicolau Antonio Alves a Viúva Aillaud, Guillard e Cie, 5 ago. 1870. Revista cível entre

partes, 1878. Na carta Nicolau por certo se referia aos Morceaux choisis des classiques français, à

l’usage des classes de grammaire ; recueillis et annotés par Léon Feugère, ancien censeur des études au

lycée impérial Bonaparte. 16e édtion. Extraits de poésie. In-12, XII-288 p. Paris, impr. et libr. Jules

Delalain. 23 Carta da Viúva Aillaud, Guillard e Cie a Nicolau Antonio Alves, 2 ago. 1870. Revista cível entre

partes, 1878. 24 Carta da Viúva Aillaud, Guillard e Cie a Nicolau Antonio Alves, 15 jun. 1871. Revista cível entre

partes, 1878.

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que tereis pedidos deste livro tanto daqui como da Bahia e de Pernambuco, porque vou

trabalhar para que seja adotado nos colégios.25

Nicolau Antonio Alves previa que pedidos do livro seriam feitos diretamente a

Paris por livreiros do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Mas, interessante neste caso,

conforme esclarece a carta de 4 de março de 1872, foi a malandragem proposta por

Alves:

Houve má interpretação a respeito do frontispício (titre) das Beautés de Chateaubriand:

vós nos [havia escrito] uma vez que desejaria que este livro não parecesse ter sido feito

para o Brasil; que era preciso que ele pudesse ser considerado como tendo sido destinado para os Liceus de Paris; em virtude disso julgamos que não queríeis que o

vosso nome figurasse no frontispício (titre). A não ser isto, podeis ficar certo que nós

teríamos imprimido o vosso nome em primeiro lugar, e o nosso depois em tipo menor, como se faz com o nome dos impressores. Podemos fazer isso na seguinte edição, se se

fizer outra.26

Os meninos e meninas do Império que estudassem francês por aquele manual

deveriam acreditar que usavam o mesmo livro adotado em Paris. Porém, o tiro saiu pela

culatra, pois, num lapso de honestidade, os franceses não omitiram o nome de Nicolau

Antonio Alves da folha de rosto da primeira edição das Beautés de Chateaubriand.

Figura 2 – Frontispício de duas edições de 1871 das Beautés de Chateaubriand, a primeira

contendo referências à Livraria Clássica de Nicolau Antonio Alves no Rio de Janeiro.

25 Carta de Nicolau Antonio Alves a Viúva Aillaud, Guillard e Cie a, 22 jul. 1871. Revista cível entre

partes, 1878. 26 Carta da Viúva Aillaud, Guillard e Cie a Nicolau Antonio Alves, 4 mar. 1871. Revista cível entre

partes, 1878.

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As duas cartas seguintes já datam no início do processo que Nicolau Antonio

Alves moveu contra Serafim José Alves e João Martins Ribeiro pela contrafação do

livro. Na carta de 18 de setembro de 1874, Nicolau questionava “se o senhor Serafim

José Alves, desta cidade, lhes fez algum época a encomenda de alguns exemplares da

obra de minha propriedade Beautés de Chateaubriand de Marcou”.27 A resposta foi

curta:

Paris, em 2 de novembro de 1874.

Senhor Nicolau José Alves. 54, Rua de Gonçalves Dias, Rio de Janeiro.

Nós expedimos em março de 1872 ao Sr. Serafim José Alves, no Rio de Janeiro,

treze Beautés de Chateaubriand.

Estes treze exemplares fazem [ilegível] dos 220 de que não vos prestamos conta em março de 1874.

Desde essa época (1872) não vendemos nenhum diretamente e respondemos

invariavelmente a todos os pedidos que toda a edição estava no Rio de Janeiro em vossa casa.

Dignai-vos senhor, aceitar as nossas saudações.

Sr. J. P. Aillaud Guillard e companhia.28

Como demonstram documentos anexados ao processo, até março de 1872,

muitos livreiros do Rio de Janeiro compraram as Beautés de Chateaubriand diretamente

em Paris, prova de que o livro de fato foi adotado nos colégios como prometia Nicolau

Antonio Alves. No entanto, foi a partir de seus treze exemplares que Serafim José Alves

iniciou a contração dos livros apreendidos em setembro de 1874. O que fica da análise

de parte desta documentação é, para além das cartas dos livreiros, a importância dos

manuais didáticos para a dinâmica do mercado editorial brasileiro no século XIX.

27 Carta de Nicolau Antonio Alves a Viúva Aillaud, Guillard e Cie, 18 set. 1874. Revista cível entre

partes, 1878. 28 Carta da Viúva Aillaud, Guillard e Cie a de Nicolau Antonio Alves, 2 nov. 1874. Revista cível entre

partes, 1878.

Page 11: As cartas dos livreiros: Manuais escolares e mercado ... · 16 Carta de Nicolau Antonio Alves a Viúva Aillaud, Guillard e Cie, 5 jun. 1870. Revista cível entre partes, 1878. 17

Fontes (Jornais, Manuscritos e Legislação)

Correio Mercantil, 1856; 1861.

Correio da Tarde, 1856.

A Reforma, 1871.

O Apóstolo, 1877.

Diário do Rio de Janeiro, 1867.

Reveu de l’instruction publique, Paris, 1864.

Carta de Francisco de Paula Brito a destinatário ignorado explicando a razão de não

imprimir o Auxiliador. Rio de Janeiro. BN, Manuscritos, I-28, 02, 028, 25/06/1854.

Revista cível entre partes. Nicolau Antonio Alves, Recorrente. Serafim José Alves,

Recorrido. ANRJ, Supremo Tribunal de Justiça, BU.O.RCI.887, 1876-1878.

Decreto Nº 1.331-A de 17 de fevereiro de 1854 Aprova o Regulamento para a reforma

do ensino primário e secundário do Município da Corte. Disponível em:

http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1331-a-17-fevereiro-

1854-590146-publicacaooriginal-115292-pe.html. Acesso em 26 mai. 2016.

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