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Universidade de Lisboa
Instituto de Educação
As formigas e os carreiros
Uma abordagem de inspiração biográfica aos percursos de
aprendizagem e à construção identitária de Assistentes Sociais
Isabel Cristina da Conceição Passarinho
Doutoramento em Educação Especialidade em Formação de Adultos
2012
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Universidade de Lisboa
Instituto de Educação
As formigas e os carreiros
Uma abordagem de inspiração biográfica aos percursos de
aprendizagem e à construção identitária de Assistentes Sociais
Isabel Cristina da Conceição Passarinho
Orientado por Professor Doutor Rui Fernando Canário
Doutoramento em Educação
2012
3
A formiga no carreiro
Vinha em sentido contrário
Caiu ao Tejo
Ao pé dum septuagenário
Lerpou, trepou às tábuas
Que flutuavam nas águas
E do cimo de uma delas
Virou-se ‘pró formigueiro
Mudem de rumo
Já lá vem outro carreiro
A formiga no carreiro
Vinha em sentido diferente
Caiu à rua
No meio de toda a gente
Buliu, abriu as gâmbeas
Para trepar às varandas
E de cima de uma delas
(…)
A formiga no carreiro
Andava à roda da vida
Caiu em cima
Duma espinhela caída
Furou, furou à brava
Numa cova que ali estava
E do cimo de uma delas
Virou-se ‘pró formigueiro
Mudem de rumo
Já lá vem outro carreiro
Zeca Afonso, Álbum «Venham mais
cinco» (1973)
4
À memória dos meus pais José e Ema,
que me amaram muito e cujas vidas
foram exemplos de dignidade e
sabedoria, que nunca esquecerei.
Aos meus filhos, Nuno e Gonçalo,
homens da minha vida que inspiram
futuros.
À Sónia pelos anos de inestimável
apoio.
Aos meus amigos e parentes
significativos por serem como são, e
pela amizade e suporte, mesmo em
ciclos de vida onde estive menos
disponível.
Aos colegas e amigos do trabalho e
da profissão por toda a inspiração,
compreensão e disponibilidade.
A todos que procuram interrogar os
«rumos» e «carreiros» da vida e que
durante estes anos me ensinaram que
pensar e fazer em ‘conjunto’ é uma boa
maneira de encontrar soluções.
5
AGRADECIMENTOS
Fazer uma tese não se traduz apenas no «produto» final. O processo de
elaboração deste trabalho constituiu um marco de formação e aprendizagem
que, pela sua exigência, complexidade e morosidade, cruzou a minha vida com
muitas outras, numa mistura de tempos, espaços e «formas de pensar».
Destaco neste processo, motivações e circunstâncias que permitiram a sua
finalização: as primeiras, ligadas à curiosidade pelos processos de produção de
conhecimento, à reflexividade e questionamento pessoal, à visibilidade que
procurei dar às trajectórias e representações dos assistentes sociais que
colaboraram neste estudo e ao contributo que pretendi dar à profissão; as
segundas, que constituíram a oportunidade e a possibilidade desta trajectória.
Em conjunto, todas constituíram reforços positivos sobretudo, nas alturas mais
solitárias desta trajectória, em que foi decisiva a colaboração e incentivo de
outros. Importa, assim, expressar um agradecimento sincero a todos os que
colaboraram e possibilitaram este processo e este «resultado».
Gostaria, de agradecer ao meu orientador – Professor Doutor Rui Canário – pela sua
sabedoria e humanidade, pela confiança que depositou em mim, pelo incentivo e
estímulo na procura de respostas às minhas dificuldades e por ter aceite os meus
períodos mais confusos e caóticos.
A nível institucional, agradeço à Câmara Municipal de Cascais, em especial à
autarca responsável, aos dirigentes e colegas do Departamento de Educação,
a oportunidade de compatibilizar este processo com o desempenho das minhas
funções; destaco também a importância das perguntas sobre ‘o que andava a
fazer’ – ao longo do tempo, as respostas que fui dando permitiram-me
importantes tomadas de consciência sobre as minhas narrativas e sobre o
próprio processo de pesquisa e aprendizagem.
Aos assistentes sociais que foram sujeitos neste trabalho e sem os quais esta
tese não seria possível, um imenso obrigado pela sua disponibilidade para
6
conversar sobre a profissão e a vida e por me terem confiado as suas reflexões
sobre o Serviço Social.
Estou muitíssimo grata aos colegas e/ou amigos que me apoiaram de perto
(com quem me cruzei nos meus espaços profissionais e não-profissionais),
através das conversas e partilhas que tivemos; entre eles gostaria de destacar
a Irene Santos (que leu, interrogou, comentou, reviu o texto e me deu um
suporte inestimável), a Miriam Sampaio (que deu uma colaboração fundamental nas
questões da forma), a Fernanda Cristino (que ajudou na revisão e a manter ‘a cabeça
no lugar’), a Sónia Martins (que me motivou e apoiou em todas as fases deste longo
processo) e a Manuela Correia (que, na recta final, me possibilitou condições de
trabalho favoráveis para finalizar a tese) – a todos (os que nomeei e os que não
nomeei) faço um agradecimento especial.
Não esqueço também a importância e a gratidão que tenho para com a minha
rede de afectos, a que chamo carinhosamente «o meu centro comunitário» e
que é constituída por pessoas que se gostam, cuidam e estão disponíveis, nos
bons e nos maus momentos.
Um último agradecimento especial «aos de casa», aos que ocupam uma
posição central na minha vida e «bem-querer» e a quem, muitas vezes, não
dedico o tempo e a atenção que merecem.
Para todos e todas, o meu muito obrigado!
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RESUMO
Este trabalho de investigação resulta de um caminho de “prática-investigadora”
que pretende aprofundar a reflexão sobre a profissão de Assistente Social
numa perspectiva a partir de dentro do campo e no entendimento de que a
profissão se constrói e se aprende, no diálogo entre a sua própria explicitação
e as teorias sobre o mundo. A área científica em que se insere é uma das suas
particularidades, já que foi desenvolvido no campo da Educação/Formação de
Adultos e tem como eixo central o interesse pela compreensão dos percursos
formativos e de construção identitária dos assistentes sociais.
A análise realizada parte do pressuposto de que, num tempo de ultra-
racionalidade instrumental, o conceito de profissão está em mutação; e, no
caso, a profissionalidade dos assistentes sociais não será excepção, pela sua
prática interventiva conotada com as pessoas em situação de pobreza e/ou
vulnerabilidade social, «colada» às instituições e ao Estado-providência e
estigmatizada como «placebo» do Capitalismo. Contudo, será importante
pontuar que o trabalho social, com a complexidade, multidimensionalidade e
transversalidade que lhe estão associadas, constitui um campo próprio onde
exercem genericamente os chamados trabalhadores sociais e, de entre eles,
@s assistentes sociais como grupo profissional específico.
Estes profissionais partilham as problemáticas, os contextos e os riscos e são
actores de «inclusão e exclusão» numa sociedade que tende a desvalorizar os
seus fazeres e saberes, tal como o faz com as populações com que trabalham.
Por um lado, branqueando a profissionalização e a profissionalidade numa
categoria genérica de ‘técnicos superiores’ e, por outro, exigindo uma prática
baseada em ‘evidências’ prescritas e quantificáveis que pouco têm a ver com o
seu ‘Know-how’ específico e/ou com as respostas às necessidades das
pessoas. Em simultâneo, os próprios profissionais, por vezes, não se
descrevem nem se reconhecem como actores e autores ao serviço de uma
cidadania democrática.
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A presente tese analisa e reflecte o Serviço Social, como uma profissão e uma
disciplina que procuram novas legitimidades entre velhas dicotomias, num
processo de reflexão emancipatória que equacione a construção profissional,
entre as heranças e dinâmicas de um percurso histórico e o imperativo de
explicitar a profissionalidade. Neste processo de explicitação, são questionados
aspectos como a «colonização disciplinar», a adaptabilidade e a neutralidade
da profissão, entre outros, que dificultam espaços de autonomia e produção de
conhecimento e onde @s assistentes sociais parecem cada vez mais
confinados a espaços de exercício sujeitos à ‘funcionalização’ e à ‘evidência’.
Nesta conjuntura, a realização de entrevistas de inspiração biográfica a
dezanove assistentes sociais e a análise das suas narrativas permitiu dar-lhes
voz e esboçar tipologias de percursos de aprendizagem da profissão e
tipologias de formas identitárias. O material empírico recolhido durante a
pesquisa revela uma grande diversidade, mas também contradições e tensões
presentes no campo profissional, a que não serão estranhas as relações de
força e poder dentro e fora do campo científico e profissional.
A passagem do comunitário ao societário implica uma modificação da própria
estrutura da identidade pessoal, o aparecimento de novas formas de
subjectividade e a conversão identitária que faz passar os indivíduos de
membros submissos a sujeitos actores – o que, embora os torne muito mais
incertos e expostos, pode fazer emergir oportunidades de transformação.
O Serviço Social, na medida em que se afasta da identidade que o
estigmatizou como mediador de um pensamento conformista, vai recuperando
diversidade interna e oportunidades de construção de novas formas de
participação nos processos de mudança social. E ao equacionar a necessidade
de produzir conhecimento sobre os processos pelos quais se aprendem e se
constroem saberes, numa tentativa de desocultar e nomear o que se vive e
aquilo a que se atribui significado nestes contextos de intervenção, pode
restaurar-se um espaço público de profissionalidade como lugar de visibilidade
de si e do outro, pela acção e pela palavra. E também de identidades co –
construídas na interacção com muitos «outros».
Palavras-chave: profissão, autoformação, percursos de aprendizagem, formas
identitárias, Serviço Social
9
RESUME
This investigation work comes from a “practical-way” that pretends to deepen
the reflexion about the social worker job in a perspective from inside the field
and in the knowledge that the profession is build and learned in the dialogue
between it’s own explication and the theories about the world. The scientific
area in which is inserted it’s one of his particularities, since it was developed in
the field of Education/Adults Formation and has as central axis the interest for
the comprehension of the formative routes and the construction of the identity of
the social workers.
The analysis held goes from the assumption that in an ultra instrumental
rational time, the concept of the profession is changing; and in the case that the
professionalism of the social workers won’t be an exception, by his
interventional practice connoted with the people in a poverty situation and/or
social vulnerability «glued» to the institutions and the welfare state and
stigmatized as capitalism placebo. However, it will be important punctuate that
the social work, with the complexity, multidimensionality and transversality that
are associated to it, constitutes an own field where exercise generically the so
called social workers as a specific professional group.
This professionals share the problematics, the contexts and the risks and are
actors of “Inclusion and exclusion” in a society that tends to overestimate their
doings and knowledge, just as it does with the populations that they work with.
In one way, bleaching the professionalization and the professionalism in a
generic category of “superior technicals” and in another way, demanding a
evidence practice based, prescribed and quantified, what have little to do with
their specific “know-how” and/or with the answers to the people necessities.
Simultaneously, the own professionals, sometimes, don’t describe neither
recognize themselves has actors and authors in the service of a democratic
citizenship.
The present thesis analyses and reflects the Social Work, as a profession and a
discipline that looks for new legitimacy between old dichotomies, in process of
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emancipatory reflexion that balances the professional construction between the
inheritance and dynamic of an historic process and the imperative of explaining
the professionalism. In this process of explanation, some aspects are
questioned, such as the “disciplinary colonization”, the adaptability and
neutrality of the profession, among others, which difficult spaces of autonomy
and production of knowledge, and where the social workers look even more
confined to spaces of exercise subjected to “functionalization” and to
“evidence”.
In this conjuncture, the realization of interviews of biographic inspiration to
nineteen social workers and the analysis of their stories allowed giving them
voice and identify typologies of ways of learning the profession and typologies
of identity forms. The empiric material collected during the research reveals a
huge diversity, but also contradictions and tensions present in the professional
field, to which are not strange the relations of strength and power inside and
outside the scientific and professional field.
The passage from the community to the corporate implicates a modification of
it’s own structure of personal identity, the appearing of new ways of subjectivity
and the identity conversion which makes move the individual of submissive
members to actors subject – which, though makes them more uncertain and
exposed, can make emerge transformation opportunities.
The social service, in the way that goes further away from the identity that
stigmatized it has a mediator of a conformist thinking, goes recovering intern
diversity and the opportunities of constructing new ways of participating in the
processes of social changing. And equating the necessity of producing
knowledge over the processes by which learn and builds knowledge, in a way of
uncover and nominate what is living and what we give significance in this
intervention contexts, can restore a public space of professionalism as a place
of visibility of self and other, by the action on the word; and also of identities co-
build in the interaction with “others”.
Key words: Profession, self-training, learning pathways, identity forms, social
work
11
ÍNDICE
Agradecimentos…………………………………………………………………. 5
Resumo ............................................................................................................ .7
Introdução ....................................................................................................... 14
A origem deste projecto ............................................................................. 18
O Objecto de Estudo.................................................................................. 24
Uma determinada perspetiva ..................................................................... 29
A entrada pela Educação ........................................................................... 32
Capítulo 1 - Serviço Social: uma profissão e uma disciplina que procuram
novas legitimidades ....................................................................................... 37
1.1. . Entre a (s) Ideologia (s), a (s) Prática (s), a (s) Técnica (s) e a (s) Ciência
(s) .................................................................................................................. 38
1.2.Sistema identitário e Sistema simbólico na profissionalidade ................. 45
1.3.Os espaços e os tempos da aprendizagem da profissão ........................ 54
1.4.A formação contínua e a produção de conhecimento ............................. 70
Capítulo 2 - A (des) construção profissional do Serviço Social ................ 78
2.1.Heranças e Dinâmicas de um percurso histórico .................................... 80
A institucionalização e a profissionalização .............................................. 85
O referencial do Capitalismo e da Pobreza ………………………………..89
A legitimação da profissão e a «bandeira» do bem-estar social ................ 97
A Participação, a Mudança e os Movimentos de reconceptualização ..... 105
Os Direitos Humanos e a Justiça Social numa época de globalização
111
2.2.Uma Profissão a Explicitar .................................................................... 120
Revisitar a profissão ................................................................................ 124
O que significa «ser» profissional? .......................................................... 136
De que falamos quando falamos do «social»? ........................................ 148
Ambiguidades de uma profissão que se adapta ...................................... 156
(Re) Situar velhos e novos problemas ..................................................... 165
Da «descolonização disciplinar» à Transdisciplinaridade ........................ 169
A neutralidade técnica em debate ........................................................... 175
Capítulo 3 – O lugar do «não-saber» face ao saber dos outros ............... 180
3.1.O conhecimento pertinente ................................................................... 184
- Formar assistentes sociais .................................................................... 189
12
- As competências ................................................................................... 195
- A articulação e a produção de saberes ................................................. 199
3.2.Os processos de Construção Identitária ............................................... 205
- Formas identitárias ................................................................................ 210
- Identidades profissionais em tempos de incerteza ................................ 216
3.3.Autoformação ........................................................................................ 223
- As abordagens biográficas .................................................................... 226
- A dialéctica entre explicação e compreensão ........................................ 230
- Reflexões sobre «compromissos» ......................................................... 234
Capítulo 4 - Metodologia - Percurso de investigação ............................... 237
4.1.Questão de partida e questões orientadoras ……………………………238
4.2. Opções e Estratégia metodológica ...................................................... 245
- Da pertença às Ciências da Educação ………… 248
4.3. Desenho da investigação de inspiração biográfica ………….……….253
- Os tempos e as «fases» das diferentes «conversas»……………………….258
4.4. A análise dos dados …………………………………………………………261
Capítulo 5 - A (s) voz (es) dos actores da profissão ................................. 263
5.1. Trajetórias profissionais e biográficas………………………………….......262
- @s seniores………………………………………………………………………..265
- Os do tempo da ‘luta’: Inês e António ......................................................... 297
- Os primeiros doutores………………………………………………….………..312
- Os mais novos ……………………………………………………….………….348
5.2. Percursos de Aprendizagem da profissão…………………………………375
5.3. Sobre a importância de prosseguir com uma análise temática…………..413
Capítulo 6 - Formas identitárias: Esboço de uma tipologia…………….. 415
- Desafios da construção tipológica……………………………………………..418
6.1. «Ecossistemas protegidos»…………………………………………………..421
- A relação dos profissionais com o sujeito coletivo……………………………422
a) Modos de entender o estatuto socio profissional……………………………423
b) Modos de entender o relacionamento com a organização coletiva……….426
13
c) Modos de entender a abertura e o fechamento social da profissão……….433
6.2. «Trilhos seguros»……………………………………………………………..439
- A relação de aprendizagem da profissão com 'o que se sabe'………………440
a) Em relação aos saberes de experiência……………………………….…….443
b) Em relação aos saberes de organização e procedimento…………….…...448
c) Em relação aos saberes temáticos e especializados……………………....454
d) Em relação aos saberes de explicitação……………………………………..459
6.3. «Abrir Caminhos»……………………………………………………………..464
- A relação de 'quem se é' com a aprendizagem da profissão……………….468
a) @s tecelãs/ões de histórias……………………………………………………469
b) @s semeadores do estado social……………………………………………..476
c) @s hibridas/os……………………………………………………………………480
6.4. «Inventar Carreiros»…………………………………………………………..485
- A relação com a heterogeneidade e a incerteza………………………………487
a) Processos de resistência e experimentação social………..……….…….…490
b) A construção de novo vocabulário e novos «palcos» para a profissionalidade
………………………………………………………………………………………493
Síntese conclusiva…………………………………………………………………497
Limitações do Estudo e investigações futuras………………………………….512
Bibliografia………………………………………………………………………….514
Anexos……………………………………………………………………………….531
14
INTRODUÇÃO
Este relatório pretende dar conta do trabalho realizado durante os anos em que
me propus fazer o Doutoramento no Ramo da Educação no Instituto de
Educação, da Universidade de Lisboa.
Para este projecto de investigação, o objecto de estudo foi/é a própria
profissão, na procura de entender os processos de formação dos assistentes
sociais, identificar as aprendizagens realizadas nos seus percursos
profissionais e os significados que lhes atribuem e os processos das suas
construções identitárias, a partir de uma análise de inspiração biográfica.
Na impossibilidade de suspender a vida para dar conta do processo formativo,
diria que este tempo foi marcado pelo trabalho e pelo gosto, pela curiosidade e
pela inquietação mas também pela complexidade, pelas dúvidas e por
movimentos de fluidez e intermitência de tempos, espaços e investimento.
A área científica em que se insere este trabalho é talvez a primeira
particularidade, já que foi desenvolvido no campo da Educação/Formação de
Adultos, e tem como eixo central o interesse pela compreensão dos percursos
formativos e de construção identitária dos Assistentes Sociais.
Esta abordagem realizada a partir de uma perspectiva fenomenológica onde
também se cruzam a minha realidade subjectiva e o contexto histórico, social e
cultural onde me inscrevo, liga-se com um objecto construído na área do
Serviço Social e mobiliza muitos conceitos de outras áreas científicas. De uma
forma sintética, diria que esta investigação procura conhecer e produzir
conhecimento sobre a formação (com especial enfoque na autoformação) de
Assistentes Sociais, procurando identificar os seus percursos profissionais, os
significados que lhes atribuem e quais os processos das suas construções
identitárias, a partir de uma análise de inspiração biográfica.
A escolha, dentro dos adultos possíveis, de Assistentes Sociais, prendeu-se
com razões endógenas (porque sendo pares talvez possa compreender e
compreender-me melhor, num processo que também pretende ser de
autoformação) e razões exógenas – porque, numa altura de morte anunciada
do Estado-providência e das respectivas políticas, com consequências
15
nomeadamente ao nível das práticas, do emprego e do trabalho disponível
para estes profissionais, procura-se entender que «profissão» é esta que,
apesar de tudo, construiu uma história, diversificou-se e equaciona actualmente
possibilidades de futuro, para além da utopia impossível de humanizar um
capitalismo, cada vez menos humanizável.
Neste caminho de “prática-investigadora” (no conceito de Berger, 1992:36)
parto do princípio que todo o conhecimento é autobiográfico e que, tenho
percorrido tempos e espaços onde se misturam informações, referências,
acontecimentos, dúvidas e sentimentos (muitas vezes sem conseguir fazer
deles uma leitura clara ou encontrar sentidos), procuro com este trabalho de
investigação compreender, por aproximações sucessivas, os percursos
profissionais e de formação. Boaventura Sousa Santos, refere que “No
paradigma emergente, o carácter autobiográfico e auto-referencial da ciência é
plenamente assumido” (1991a:53) o que suporta, de certa forma, este
posicionamento.
De igual modo, procurei percepcionar as representações e a(s) identidade(s)
como dimensões interactivas, dinâmicas e estruturantes da actividade
profissional, entendendo que as actividades profissionais se traduzem num
“conjunto ordenado de práticas, de representações e de identidades capazes
de se adaptarem aos constrangimentos da organização e de se auto regularem
sob a pressão dos atores coletivos” (Blin, 1997:160). Ao mesmo tempo que
procuro identificar as representações da profissão e dos contextos de trabalho,
procuro aprofundar um entendimento crítico da profissão em termos macro,
contribuindo para a reflexão sobre a sua situação, no contexto da actual
organização do trabalho.
Conceber os assistentes sociais como sujeitos passou por colocá-los no lugar
central da sua própria formação, num entendimento próximo do Movimento de
Educação Permanente, que defende que todos os espaços/tempos são
potencialmente formativos. Procurar entender as suas perspectivas sobre os
seus próprios processos de formação e de construção identitária, talvez
contribua para conhecer melhor que quadros de referência utilizam quando
intervêm com as respectivas populações e como justificam o seu trabalho -
para si, para os outros e para a sociedade em geral.
16
Actualmente e, entendendo ainda a questão da política social, enquanto
política pública de co-responsabilização estatal, tem-se assistido a uma
progressiva erosão do Estado de bem-estar, fundado originalmente em direitos
sociais de carácter universal.
Vivem-se hoje tempos de incerteza, de crise generalizada nos países ditos
desenvolvidos e de manipulação dos actores políticos pelo poder financeiro
sem rosto nem país. Uma incerteza que é também
“…crise de um modelo de sociedade, crise essa que, só a lógica da aniquilação de uma das conquistas civilizatórias mais importantes da humanidade – a responsabilidade solidária e colectiva do Estado face à protecção dos cidadãos – pode ajudar a explicar os propósitos de desmantelamento indiscriminado do Estado-providência” (Rodrigues, 1999: 20).
Se a persistência, renovação e alargamento de fenómenos de pobreza, de
desigualdades sociais e de cada vez maior vulnerabilidade social, questiona as
medidas redistributivas e a eficácia das políticas sociais, o problema da
pobreza parece residir, além de mais, na repartição primária do rendimento, da
propriedade e do poder - o que remete este fenómeno para a política
económica e para os baixos salários, para além do desemprego e da
precariedade contratual (Costa, 2008:197).
Apesar do «luto» que muitos de nós fazemos pelo «desmantelamento do
Estado-providência», admite-se na linha deste autor que a via das políticas
sociais é claramente insuficiente para quebrar o ciclo persistente da pobreza e
da vulnerabilidade social.
Na crise de modelo de sociedade associada a este «desmantelamento», a
privatização e a desregulação têm sido meios de ajustamento estrutural do
Estado à economia global – um processo simultâneo de globalização e
localização com consequências ao nível da perda de legitimidade e autoridade
política e com a erosão do projecto de modernidade, onde a educação como
um todo perde a sua orientação (Finger e Asún, 2003:106). Esta realidade (a
que alguns autores chamam «pós-moderna» e outros de «modernidade
tardia») tem no individualismo uma característica marcante, quer para a prática
da educação de adultos, quer para a acção social.
Neste entendimento, não resisti a associar o conceito de “não-lugares” à
possibilidade de que a profissão de Assistente Social se torne uma “não-
17
profissão”, tendo-se apenas a si própria por referência, sem atender ao
compromisso com uma dimensão ética, histórica e política e com um modelo
de sociedade comprometido com os princípios de direitos humanos e de justiça
social. Marc Augé refere em torno deste conceito de «não-lugares» a metáfora
da viagem que me é útil neste processo de investigação-aprendizagem:
“A viagem constrói uma relação fictícia entre o olhar e a paisagem. E, se chamamos «espaço» à prática dos lugares que define especificamente a viagem, devemos ainda acrescentar que há espaços em que o indivíduo se experimenta como espectador sem que a natureza do espectáculo para ele conte realmente. Como se a posição de espectador constituísse o essencial do espectáculo, como se, em última análise, o espectador (...) fosse para si próprio o seu próprio espectáculo. (...) O espaço do viajante será assim o arquétipo do não-lugar. (...) estamos em condições de redescobrir a evocação profética de espaços onde nem a identidade, nem a relação, nem a história fazem verdadeiramente sentido, em que a solidão se experimenta como superação ou esvaziamento da individualidade, em que só o movimento das imagens deixa antever por instantes àquele que as vê fugir e que as olha a hipótese de um passado e a possibilidade de um futuro” (Augé, 2006:74).
Nesta perspectiva que arrisco a definir como estando na tensão entre
espectadora e actor/autora destaco a necessidade que as pessoas continuam
a ter de atribuir sentido,
“…dar um sentido ao mundo, e não a certa aldeia ou a certa linhagem. Esta necessidade de dar um sentido ao presente, senão ao passado, é a contrapartida da superabundância de acontecimentos que corresponde a uma situação que poderíamos dizer de “sobre modernidade”, a fim de darmos conta da sua modalidade essencial: o excesso” (Augé, 2006:28,29).
Este “excesso” de que fala Augé, com teorias, acontecimentos, «coisas»,
perspectivas, conflitos, fontes de informação, nas suas diferentes modalidades,
acentua paradoxos e institui a complexidade e a imprevisibilidade.
Por sua vez, Sousa Santos (2005:21) refere que o excesso de teorias em
desequilíbrio sobre o que ainda está, constitui em simultâneo um deficit teórico
e um grande desafio. Em todo o processo senti o cruzamento desse deficit e
desse desafio mas procurei deixar-me interrogar pelos contributos dos vários
autores de muitos campos teóricos, pela recolha empírica e pelas narrativas
das pessoas entrevistadas.
A estrutura deste trabalho está subdividida em seis capítulos: no primeiro
aborda-se o Serviço Social, enquanto profissão e disciplina que procuram
novas legitimidades e desenvolvem-se as questões teóricas que norteram este
18
processo de investigação e a respectiva pesquisa; o segundo capítulo prentede
abordar e (des) construção profissional do Serviço Social, entre as heranças e
as dinâmicas do seu percurso histórico e o interesse em revisitar a profissão,
em confronto com um questionamento de algumas questões consideradas
centrais e no entendido de que esse questionamento constitui simultaneamente
um campo de possibilidades de futuro(s); no capítulo três, intitulado “O lugar do
«não-saber» face ao saber dos outros”, desenvolvem-se perspectivas de
relação com o conhecimento e os saberes, desenvolvendo três aspectos,
respectivamente sobre o conhecimento pertinente, os processos de construção
identitária e a autoformação; no quarto capítulo explicita-se o caminho
metodológico utilizado neste percurso de investigação, pontuando as opções e
a estratégia metodológica, a questão de partida e as questões orientadoras, o
desenho da investigação e a pesquisa empírica; no quinto capítulo, é dada
centralidade à(s) voz(es) dos actores da profissão em resultado da análise e
interpretação do material empírico recolhido e no sexto e último capítulo,
esboçam-se tipologias dos percursos profissionais e das formas identitárias,
fazem-se as conclusões da pesquisa e as pistas de investigação futura.
A ORIGEM DESTE PROJECTO
Neste processo de formação e de investigação, ao procurar entender como os
assistentes sociais se formam ao longo da sua vida, e em particular ao longo
da sua trajectória profissional, parti do pressuposto que uma profissão se
aprende, exercendo.
Privilegiei o contexto não formal e informal das relações de trabalho com os
vários intervenientes dos processos de intervenção social, para procurar
desocultar os processos de aprendizagem destes adultos, através da
experiência reflectida e no contacto com muitos outros.
Neste âmbito, achei necessário explicitar o lugar e a perspectiva de quem
investiga, pois como diz Remi Hess (2005), defender uma tese significa
defender um ponto de vista.
No caso, o meu lugar é o de uma mulher que já passou os 50 anos, de origem
social modesta, filha única de uma família rural oriunda da zona oeste que
19
migrou para os arredores de Lisboa à procura de melhores oportunidades de
vida. Fiz o meu percurso escolar com gosto e sem incidentes, mas com a
consciência de que a escola era uma via privilegiada para a mobilidade social
ascendente e que o conhecimento tinha uma função emancipadora.
Não tive uma juventude politizada (tinha 14 anos no 25 de Abril de 1974) e,
passei pelo período revolucionário com preocupações mais «sociais» do que
«políticas». Desta época, lembro sobretudo a nível familiar, as discussões
político/partidárias que aqueceram os ânimos dos membros da família mais
chegada com quem compartilhávamos os momentos de lazer e festividade e o
seu consequente afastamento e o envolvimento do meu pai no partido
comunista (um envolvido do qual não se falava em casa e era apenas inferido
por meias conversas, pelas discussões familiares e pelos livros que o meu pai
lia). A nível do contexto onde vivia, recordo o tempo das RGA/Reuniões Gerais
de Alunos no Liceu de Oeiras a que assisti sem grande entusiasmo, a “balda”
no ensino que apanhou sobretudo os colegas que estavam a terminar o
secundário e as manifestações em Caxias (lugar onde creci e existe a prisão
homónima) a propósito da libertação dos presos políticos.
Uma recordação desta época que jamais esquecerei foi uma exploração que
eu e uma série de outros miúdos fizemos às celas subterrâneas da prisão de
Caxias onde estiveram os presos políticos, e que entretanto foram
desactivadas.
Nunca esquecerei as condições dessas celas cujo acesso era feito por um
fosso dentro das instalações prisionais a que tivemos acesso porque alguns
dos meus amigos eram filhos de guardas prisionais. As celas eram autênticas
grutas escavadas no monte até ao nível de um lençol de água subterrâneo,
distribuídas por corredores imensos, com chão de terra húmida e paredes de
pedra escritas e pintadas, onde não entrava a luz e a humidade era muito
elevada. Imaginar que tinham estado ali pessoas a viver anos seguidos, presas
pelas suas convicções e privadas das mais elementares condições de vida, foi
algo que me impressionou e me provocou uma indignação que me acompanha
até aos dias de hoje.
Em termos culturais as minhas referências eram muito «misturadas» e, por
exemplo, na música, tanto ouvia e gostava dos músicos de intervenção
20
portugueses, como da música popular portuguesa ou dos artistas franceses,
ingleses e italianos que estavam na moda.
A opção por Serviço Social surgiu no final do ensino secundário (1976), em
resultado dos testes psicotécnicos que começavam a ser correntes na época -
das três possibilidades apresentadas: Direito, Artes e Serviço Social, optei por
exclusão de partes; nas Artes, não tinha certeza de encontrar sustento nem
convicção de talento e do Direito afastava-me a possibilidade de defender
causas em que não acreditava ou que iam contra os meus valores.
Após um interregno de sete anos (em que fui cobaia do indescritível ano
«propedêutico», interrompi os estudos, vivi um ano em casa de familiares
emigrados na Suíça e comecei a trabalhar num emprego indiferenciado) voltei
a estudar para completar o 12º ano e segui para a formação em Serviço Social
(1983/1988).
Entrei no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa com uma média alta
que me teria permitido entrar noutros cursos nas faculdades públicas e sem a
consciência de que o curso de Serviço Social não atribuía o grau de
licenciatura.
Durante os quatro anos do curso fui estudante trabalhadora (porque as
propinas eram caras e queria preservar uma certa independência familiar),
numa altura em que não havia turma nocturna, o que implicava ter aulas de
manhã e trabalhar de tarde, dilatando quer os horários de trabalho em
compensações necessárias para a entidade patronal, quer os horários de
estudo e de realização de trabalhos.
De uma forma geral gostei do curso e, ultrapassada uma crise no 3º ano que
quase me fez desistir, posso dizer que a formação inicial, e sobretudo alguns
profissionais que fui encontrando, quer como docentes, quer como orientadores
de estágio, foram constituindo a malha identitária onde me situei.
Sem qualquer originalidade, diria que a construção da minha identidade
profissional tem dois marcos profundos, um na importância da «escola» de
formação inicial e outro, na socialização profissional e organizacional, marcada
por vários contextos e várias figuras de referência.
Terminei o curso consciente de algumas fragilidades teóricas e metodológicas
mas convencida que levava as «ferramentas» para continuar a aprender.
21
Também saí pouco agradada com a «escola» como organização, com a sua
dimensão demasiado pequena, doméstica e feminina e com as «guerras de
alecrim e manjerona», onde nunca consegui identificar o que separava ou unia
as pessoas em torno de «facções» rivais.
A esta distância, recordo-me de achar que a renovação do Serviço Social e a
luta contra os problemas sociais se iria fazer pela substituição de «velhas»
práticas assistencialistas e pela injecção de novos profissionais com outras
perspectivas e outras formas de intervir. Com o tempo, percebi o quanto esta
perspectiva era simplista...
Hoje, como assistente social a intervir ao nível territorial e municipal desde
1988, continuo identificada com a escolha profissional que fiz. Acumulo com a
experiência de uma década como professora na formação inicial de assistentes
sociais, com a experiência como formadora e supervisora na formação
contínua de interventores sociais e com a experiência de terapeuta familiar,
mas nunca quis deixar de ser assistente social.
Salientando os aspectos mais positivos do meu percurso profissional, diria que
foram a riqueza e a diversidade de aprendizagens em diferentes exercícios
profissionais e a mobilidade por vários contextos de intervenção; embora
reconheça que só foi possível realizar este percurso numa situação de
emprego «fixo», onde a conjugação da oportunidade, com a possibilidade e o
gosto, permitiram acumular papéis profissionais, conciliando também com
apoios relevantes na esfera privada. Por outro lado, esta variedade de papéis
profissionais e de contextos de intervenção cumpriu vários objectivos, desde os
mais prosaicos de ajudar a garantir o sustento familiar, até o propósito de
ajudar a contrariar a tendência de instalação em zonas de conforto que não
facilitam a aprendizagem contínua.
No exercício profissional da ‘função pública’, o risco de nos tornarmos
funcionários, meros especialistas de procedimentos, é particularmente elevado,
pois o que é globalmente pedido aos técnicos, seja qual for a sua formação, é
que sejam rigorosos nos procedimentos, independentemente do «para quê?»,
do «para quem?» ou do «com quem? E como?» intervimos.
Ademais, o aprofundamento do rigor técnico e conceptual, nem sempre é tido
como uma mais-valia nas organizações, onde ainda imperam «carreiras» cujos
critérios de ascensão a cargos com maior reconhecimento social e mais poder
22
atribuído são pautados por critérios de «confiança» e de «pertença» a grupos
bem posicionados por relação aos poderes instituídos.
Honoré de Balzac, no seu livro sobre «Os funcionários» descrevia em 1830 de
forma jocosa, sete categorias de funcionários e dez categorias de amanuenses,
definindo genericamente como funcionário “um homem que vive do seu
ordenado e que nada mais sabe fazer do que mexer, remexer e escrevinhar em
papéis” (2007:11).
Em posição divergente com esta lógica, o meu lugar e a minha perspectiva
foram-se construindo de forma plástica, no plural, através de duas estratégias
complementares:
1ª) Assumir o trabalho como um projecto com princípio, meio e fim, foi-me
permitindo mudar de contexto organizacional de intervenção sempre que
considerei esgotadas as minhas possibilidades de aprendizagem e de
compromisso com o que estava a fazer e/ou com o serviço onde exercia;
2ª) Assumir a responsabilidade de formação contínua como minha, o que foi
fundamental para sentir que sou uma profissional que não se esgota no posto
de trabalho (apesar da repercussão que tem no exercício profissional e na
organização onde se exerce).
Estas duas estratégias, tornadas conscientes ao longo do meu percurso de
vida, permitiram-me circular por entre muitas perspectivas e posicionamentos,
o que facilitou cruzar informações, reflectir, procurar outras fontes de
conhecimento e atribuir um significado de reflexividade e de autoformação a
este percurso, a partir da posição de «profissional-prática» no conceito de Remi
Hess ou, no caso, de “prática-investigadora” na terminologia de Berger.
Nesta trajectória, o que me mobilizou desde sempre foi a intervenção social
(como contributo para mudar algo na sociedade/no território/no grupo/na
pessoa), qualquer que fosse o contexto, o projecto ou o(s) público(s) em causa
e entendi sempre a pesquisa, o aprofundamento teórico e/ou a investigação
como um alargamento de referenciais ou de metodologias para procurar intervir
melhor. Clara e assumidamente, não sou uma académica no sentido em que o
meu compromisso não é com o conhecimento enquanto conhecimento.
Paradoxalmente, não optei por um projecto de Investigação-Acção no processo
de doutoramento, o que teria sido mais coerente. Achei que podia aproveitar a
23
oportunidade para «fazer um balanço» e, no actual projecto de formação e de
investigação (não esquecendo a fase do ciclo de vida em que me encontro) a
motivação foi sobretudo de desenvolvimento pessoal, com a tentativa de me
pôr à prova sim, de dar um contributo para a profissão e de obter feedback por
parte da comunidade científica e dos pares sim, mas sobretudo de fazer o
balanço de uma história de vida profissional e procurar uma relevância
formativa em toda esta trajectória, que gosto de considerar «atípica».
Desde já identifico que, se existiram variáveis que marcaram claramente, quer
a minha formação inicial de assistente social, quer todo o meu percurso
profissional e de formação contínua, foram o «gosto por trabalhar com
pessoas», a «interacção e a relação» que esse trabalho foi permitindo, a forte
convicção de trabalhar para a «mudança» e para o «desenvolvimento» e a
«interdisciplinaridade» absolutamente necessária, quer do ponto de vista
conceptual e metodológico, quer do ponto de vista operacional.
Contudo, mesmo assumindo a hipótese de que a divisão disciplinar é uma
convenção datada e cada vez menos útil para enfrentar a complexidade do
mundo contemporâne, não deixo de experimentar alguns desconfortos no
relacionamento quer com as áreas disciplinares que me têm atraído
(Sociologia, Gestão/Administração, Psicologia, Ciências da Educação, …), quer
com a minha própria área disciplinar: nas primeiras, porque me sinto uma
«outsider», alguém que não aprofunda suficientemente o pensamento analítico
ou o conhecimento explícito para ser um parceiro pleno na discussão e, na
segunda, porque estando o Serviço Social em fase de afirmação académica
como «campo científico» entendem-se, por vezes, estes movimentos por
outras áreas disciplinares como «dissidências».
A estes desconfortos somo o sentimento de pouca especialização. Dizia-me
uma colega que entrevistei neste processo que «os assistentes sociais têm a
mania que sabem de tudo» e, de facto, os assistentes sociais podem correr
esse risco.
Ao fim de quase três décadas de exercício profissional como Assistente Social,
do que é que eu sei? E como é que eu sei que sei? Como é que eu legitimo e
partilho esse conhecimento? E para quê, ao serviço de quê é que coloco esse
conhecimento?
24
O OBJECTO DE ESTUDO
Foram interrogações como estas que estiveram na origem deste projecto de
formação e desta interrogação sobre «como se formam» os assistentes
sociais? Ou, afinal, o que é ser assistente social?
São interrogações que continuam a fazer sentido, mesmo sabendo que não
são originais, porque as obras produzidas a este propósito – e destaco ‘What is
social case work?’ (1922, NY) da pioneira Mary Richmond e ‘What is
Professional Social Work?’ (2006, UK) de Malcolm Payne - reportam-se a
épocas e contextos muito diferentes.
No meu caso, o processo de problematização foi demorado e complexo, sendo
particularmente difícil a cadeia de opções que envolveu e, em última análise, a
dificuldade em admitir o imperativo da possibilidade – tentar fazer o trabalho
possível, nas minhas circunstâncias e com consciência das várias limitações.
«Olhei» o objecto de estudo de muitos lados, fiz pesquisa bibliográfica por
muitos autores e perspectivas, comecei e abandonei tantos caminhos, que
dificilmente conseguirei explicitar essa exploração.
A necessidade foi a de reflectir e tentar compreender o que é a formação e qual
o lugar que nela ocupam as experiências, ao longo das quais se formam e se
transformam as nossas identidades e a nossa subjectividade (Josso, 2002).
Sabendo que ia correr um risco acrescido ao investigar a própria classe
profissional, ao não ter distanciamento que facilitasse a objectividade, ao
participar necessária e simultaneamente na investigação como sujeito e como
objecto, encontrei em Berger os fundamentos do posicionamento que me
podiam fazer sentido. Diz ele,
“…o aparecimento de práticos-investigadores e o desenvolvimento da investigação (…) é um fenómeno que, tendo implicações práticas, metodológicas e epistemológicas, tem fundamentalmente um significado social. O problema da participação na investigação, da produção da investigação corresponde de facto a uma revolta de uma espécie de classe média no domínio das práticas sociais que se recusa a ver elaborar à sua margem um saber que a esmaga, que a trata como objecto, e que, em consequência desta revolta procura transformar-se em investigadora de si própria” (Berger, 1992:25,26).
Este posicionamento, que se tem desenvolvido quer no seio dos trabalhadores
sociais, quer entre enfermeiros e professores, tende a tornar-se num
25
verdadeiro desafio para a investigação. “Um desafio onde intervém também um
terceiro parceiro – o poder político – que procura jogar o papel de árbitro entre
as duas partes definindo os papéis de quem sabe e de quem tem direito ao
produto do conhecimento” (Berger, 1992:26).
Os modelos de investigação mobilizados constituem-se assim, grosso modo,
como diferentes modalidades das ciências sociais se relacionarem com o
objecto de estudo e de se integrarem numa luta que se trava entre um saber já
pré-construído e erudito e um outro, que resulta de transformações sociais
onde é notória a redução da distância entre os que sabem e os que agem, ou
entre «autores» e «actores», mas onde também se assiste ao acentuar da luta
em torno da posse da produção do saber e do reconhecimento do saber que se
possui.
Valerá a pena recordar que, a ciência moderna enquanto construção histórica,
tem como primeiro referencial a física de Newton - baseada na existência de
uma dicotomia entre o mundo da Natureza e o mundo do Humano, assente na
exterioridade e neutralidade do observador, na quantificação, na abordagem
analítica cartesiana e no modelo hipotético-dedutivo, o que fez com que fosse
uma ciência marcada pela «exactidão» e por uma busca das leis universais
que regiam a Natureza. Mas, se o alastramento desta concepção positivista da
ciência às ciências sociais (e note-se, a título de exemplo, a designação da
Sociologia como ‘Física Social’ precisamente por Augusto Compte, um dos
seus fundadores) permitiu inegáveis avanços, também teve como
consequência a interiorização de um sentimento de menoridade das ciências
sociais em função do seu hipotético «atraso».
Apesar da produção teórica mais recente de sentido inverso, quer dentro das
ciências da natureza, quer nas ciências sociais, quer na própria investigação
realizada em Serviço Social, este sentimento de menoridade persiste e foi
ainda constatável na recolha empírica, estando claramente identificado na
narrativa de algumas das pessoas entrevistadas.
O que será tanto mais curioso quanto a própria dicotomia entre ciências da
natureza e ciências sociais passa a estar abalada no quadro de um paradigma
emergente (Sousa Santos, 1987; 1989) onde se entende a unidade do real e o
carácter total dos fenómenos.
26
O entendimento deste novo paradigma questiona as fronteiras entre as várias
ciências baseadas em segmentações fictícias da realidade. Sobre este aspecto
Rui Canário refere:
“Da análise da pluralidade das ciências sociais e da sua conflitualidade interna, é possível concluir pelo carácter histórico, contingente e sempre provisório das fronteiras existentes entre as várias ciências sociais. Elas exprimem, em cada momento, formas de divisão de trabalho condicionadas por circunstâncias históricas e sociais. Por outro lado, essas fronteiras são porosas e nenhuma disciplina tem hoje o monopólio dos conceitos, de assuntos, ou de métodos e técnicas de recolha e tratamento da informação empírica. (...) será mais fecundo concentrar esforços na construção de objectos científicos e metodológicos, próprios e singulares para cada investigação, fazendo apelo ao património teórico e conceptual que tende a ser comum às várias ciências sociais e promovendo a consciente e deliberada transgressão das fronteiras disciplinares (...) ” (2003:8).
Este foi mais um posicionamento que me inspirou a explicitar como construí o
«olhar» que condiciona o presente trabalho, feito a partir do interior do campo
que pretendi investigar, porque pertenço ao mesmo «universo» que é
simultaneamente o meu objecto, e esse «universo» faz parte do meu sistema
de pertença e de finalidades (Guy Berger, 1992). Assim, as questões que
orientam a investigação em curso não são estranhas ao meu próprio processo
de autoconhecimento e de autoformação, alimentado na dinâmica entre a
estabilidade, o incómodo e a mudança.
O estado de dissociação quase permanente entre os apelos, os ritmos, os
espaços e os tempos da intervenção profissional e a sedução dos tempos, da
linguagem e do debate de ideias no campo académico, tornou difícil gerir estas
tensões. Mesmo sabendo que a pesquisa é um processo inacabado por
definição, o facto de trabalhar nela por fases, quando foi possível, de vez em
quando, fez com que tenha tido a sensação de que em cada recomeço,
começava do zero.
Esta é uma sensação familiar, pois toda a formação contínua que fiz, quer a de
curta duração, quer a de longa duração1, foi em «corrida», retirando tempo e
energia aos meus outros compromissos e espaços de vida, foi uma formação
suportada financeiramente por mim e com tempo limitado para maturar
1 Destaco a formação mais longa e significante, nomeadamente a 1ª pós-graduação em Administração (com duração de 2 anos lectivos), o Curso de Terapeuta Familiar (com duração de 5 anos) e o Mestrado em Ciências da Educação (que resultou no ano curricular, com a 2ª pós-graduação em Ciências da Educação e passagem directa para o processo de doutoramento).
27
conteúdos. Sem me querer vitimizar, não posso deixar de dizer que tenho uma
enorme nostalgia de algo que só conheço por relatos como «ter tempo pago
para ler, reflectir e escrever»...
Provavelmente, na organização social do trabalho, esta é uma dimensão pouco
disponível para os profissionais do terreno, ou dito de outra forma, elegível
sobretudo para os «profissionais das terras altas», na terminologia de Schon
(1996). Donald Schon aborda a questão da segmentação entre a teoria e a
prática do ponto de vista de um “dilema entre o rigor e a pertinência” e utiliza
uma metáfora muito interessante para expressar a distinção entre “os
profissionais das terras altas” (os que optam por uma prática profissional
estritamente técnica e podem fazer um uso eficaz das teorias e das técnicas
provenientes da pesquisa) e os “profissionais das terras baixas” (aqueles que
se comprometem deliberadamente com os problemas complexos mas cruciais
e que, se lhes pedirmos para descreverem os seus métodos de investigação,
falam de experimentação, de tentativa e erro, de intuição e de improviso). Esta
metáfora é útil para ajudar a entender a dificuldade que alguns trabalhadores
sociais (entre eles muitos Assistentes Sociais), na qualidade de «profissionais
das terras baixas», têm em «dizer o que fazem». Como afirma A. Martins
(1998), sabe-se que a profissão do Assistente Social não foi reconhecida e
identificada por contribuir para a produção de um saber específico, mas pelo
modo como historicamente intervinha nas situações sociais, como
desempenhava as atribuições institucionais e a política do serviço onde se
inseria, privilegiadamente associada às políticas sociais. Acrescentando a
mesma autora que:
“…não se esperava que os assistentes sociais dominassem os fenómenos e processos sociais e participassem na produção de conhecimentos, mas que agissem e fossem interventores com o conhecimento produzido pelas ciências sociais. O profissional de serviço social é, assim, concebido para agir e não para produzir conhecimentos, inserindo-se na divisão social do trabalho, que separa produtores do conhecimento e interventores na realidade social” (Martins, 1998, pp. 98).
Com o modelo tecnicista do Serviço Social, nos anos 60 e 70, são pedidas aos
Assistentes Sociais formas de intervenção que constituam respostas novas ao
agravamento das questões sociais e são de destacar, neste campo, as
intervenções ao nível do desenvolvimento de novas competências como as de
planificação e do estudo/investigação das comunidades. Por outro lado, a
28
formação inicial dos assistentes sociais, embora tenha sofrido influências de
épocas, modelos e contextos diferentes, assentou de uma forma genérica, até
meados dos anos 80, sobretudo em conceitos, apresentação de produtos e
resultados do processo de investigação em diferentes áreas das ciências
sociais, sem ultrapassar o patamar da transmissão dos resultados da produção
e das divulgações destas ciências, já que o assistente social não era formado
para investigar, e menos ainda para dominar o próprio processo de construção
do conhecimento.
Actualmente, o conhecimento parece ter mudado de natureza e de estatuto,
sendo reconfigurado como rede comunicacional e informacional e como
mercadoria. Então, se nas sociedades actuais, o conhecimento e a informação
estão a transformar-se em força motriz da produção, “os grupos ligados à sua
criação e manipulação passam de reprodutores a produtores” (Stoer e
Magalhães, 2005:52). Nesta perspectiva de entender o conhecimento como
veículo de formação este:
“…configura-se de uma forma dúplice: como competências, como competências essenciais que dão azo, pelo menos em parte, a iniciativas como a da «gestão flexível do currículo»; e, como formação integral do indivíduo que está longe de se esgotar na sua relação com o trabalho. Com o surgimento da sociedade em rede esta duplicidade parece esbater-se, dado que a oposição entre o conhecimento como competência e o conhecimento como formação, ela própria, se reconfigura, dadas as transformações da natureza do trabalho, do mercado de trabalho, da vivência da cidadania e da afirmação sem precedentes das identidades pessoais e grupais” (Stoer e Magalhães, 2005:51).
Estas questões assumem grande importância para os assistentes sociais, cuja
história profissional é essencialmente marcada pela reprodução do
conhecimento e da norma e, mais recentemente, pela «forma dúplice» de se
relacionar com o conhecimento e com a informação. Mas de uma forma muito
geral pode afirmar-se também que, apesar da conotação do Serviço Social com
a conformidade e a reprodução da norma, têm existido movimentos
profissionais com posturas críticas e alternativas ao «Serviço Social
Tradicional», comprometidas com a dignidade, a autonomia e a libertação das
populações mais vulneráveis.
Recorda-se que, em última análise, o paradigma crítico visa (na linha de
Habermas, 1971), a libertação humana. Para este autor, a questão decisiva é
29
colocada ao nível de «ao serviço de quê» está esse conhecimento,
considerando igualmente válidas as formas de conhecimento conseguido
através do positivismo (que privilegia o pensamento empírico-analítico) e as
formas do conhecimento histórico-hermenêutico, que procuram a compreensão
de significados. Na verdade, para ele os vários tipos de conhecimento devem
estar ao serviço da libertação humana, reservando para o conhecimento crítico
os papéis de revelar os interesses, os poderes e as ideologias e criar mudança
social.
Outros autores mais recentes como Beck (1992) ou Giddens (1990) apontam
para uma «segunda cientifização», onde o conhecimento é enformado pela
reflexividade e articula-se com novas formas de cidadania e de afirmação
identitária, contendo a possibilidade renovada do conhecimento ser
reconfigurado por essa mesma reflexividade.
UMA DETERMINADA PERSPETIVA
Imersa na vida quotidiana e nas múltiplas práticas de intervenção e acção nos
contextos onde interajo e, onde se vive tudo ao mesmo tempo, procuro
fundamentar a minha perspectiva do mundo actual no cruzamento dos papéis
complementares de cidadã, de aprendente, de interventora social e de
formadora.
As reflexões, que tentarei explicitar ao longo deste trabalho sobre o processo
de produção social do Serviço Social, evidenciam um conjunto de questões
muito diversas:
i) questões que se colocam no decurso do seu processo histórico;
ii) questões que se cruzam com as concepções de conhecimento e com
a distribuição histórica das profissões em cada época e contexto;
iii) questões que se cruzam com a dinâmica da sua formação, inicial e
contínua e com as construções identitárias dos seus profissionais.
A diversidade ideológica presente nesta profissão enfatiza a sua dimensão
sociocultural e evidencia também a sua capacidade de se renovar, admitindo
como «ferramentas» uma pluralidade de esferas (conceptual, metodológica,
emocional, pessoal e intuitiva) que permitem interpretar o mundo e as práticas
30
deste grupo profissional. Para tal parto da perspectiva de que o conhecimento
científico constitui uma das formas específicas, entre muitas outras
modalidades de conhecimento, de conhecer o mundo. E «conhecer o mundo»
é aqui entendido como um processo que perspectiva a realidade como
construída e co-construída socialmente, remetendo a compreensão sociológica
da “realidade” e do “conhecimento” para um terreno que se situa «num meio-
termo entre a Compreensão do homem comum e a do filósofo» (Berger e
Luckmann, 2004:14). Estes autores defendem ainda que, ao longo dos tempos,
apenas uma minoria em cada sociedade, se dedicou ao pensamento “teórico” e
às “ideias”, mas que todos participamos de diferentes formas, do seu
“conhecimento” e da sua construção da realidade: “Dito de outra forma, só
muito poucas pessoas se preocupam com a interpretação teórica do mundo,
mas todas vivem em algum tipo de mundo” (Berger e Luckmann, 2004:26). E
inevitavelmente diria eu, fazem construções sobre os seus mundos.
Este entendimento da multiplicidade de formas e modos de «conhecer o
mundo» e de que, participar desse conhecimento é, na perspectiva utilizada,
uma inevitabilidade (nossa e dos outros), esteve na génese desta tentativa de
juntar saberes de diferentes tipos e proveniências. Nomeadamente, a
valorização do saber experiencial, associado com frequência às pessoas de
baixa escolaridade e em contraponto à formação científica mas que, neste
processo, se revaloriza ao longo do percurso de vida, centrada na pessoa e na
descoberta e desenvolvimento das suas potencialidades, numa lógica
emancipatória.
Ser «pessoa» é uma qualidade que une os assistentes sociais e os seus
diferentes interlocutores (‘públicos’, chefias, pares e decisores), numa
perspectiva de que o «indivíduo» é um ‘ser em devir’ e não é estritamente
individual, mas sim, um conjunto de relações dinâmicas e em constante
transformação, com a natureza, com os artefactos e com as outras pessoas e
respectivos contextos sócio-historicos.
Este projecto de formação e de investigação pretende partir da perspectiva
transdisciplinar que fui construindo e preocupar-se com uma interpretação
teórica, se não do mundo, pelo menos do «mundo» de uma dada actividade
profissional e científica, observada e analisada a partir de um determinado
31
ponto de vista – o das tensões existentes entre saberes de diferentes
proveniências (os saberes experienciais e as competências que as pessoas
constroem ao longo da vida, os saberes profissionais e os saberes
académicos) e lógicas que se confrontam e se interpelam mutuamente.
Nomeadamente a tensão entre saberes académicos, marcados pela lógica do
conhecimento científico, fragmentado, declarativo e cumulativo e saberes
profissionais e experienciais na óptica dos saberes integrados e
contextualizados. E se, nos critérios do conhecimento científico, o que parece
distinguir a «ciência» da «não ciência» reside na capacidade de colocar
problemas e de constituir respostas provisórias a partir de uma recolha
sistemática e controlada da informação empírica, quando se coloca o problema
de saber se determinada actividade (o Serviço Social, por exemplo) pode ser
adjectivada de científica, ou não, estamos a questionar qual a relação dessa
actividade com a teoria e com o método. Sendo o método que lhe permite
pensar-se e explicar-se de forma permanente, o que, na verdade constitui uma
oportunidade de compreensão do modo como se alterou a relação entre
saberes e práticas sociais.
Em qualquer sociedade, os saberes são simultaneamente expressão e produto
de processos sociais, na medida em que actuam sobre esses processos
transformando-os, numa relação permanente e constitutiva da própria
sociedade. A par do efeito de criação e de destruição de saberes, é forçoso
admitir que as sociedades contemporâneas (simultaneamente «sociedades do
conhecimento» e «sociedades de risco») se pensam mais a si próprias, ao
mesmo tempo que se alargam as camadas sociais envolvidas nessa
reflexividade social, ela própria condição de cidadania.
As relações entre o conhecimento e as práticas e a contextualização dos
saberes, acham-se assim em questão no que respeita aos processos de
apropriação social do conhecimento e desafiam nomeadamente, a
possibilidade de formação generalizada de uma cultura científica e técnica.
Assim, adequa-se bem ao objecto de estudo uma abordagem ao uso do
conhecimento como uma relação social, de saber, dependente da relação
particular que os sujeitos desenvolvem com o mesmo, na linha do que
defendem autores como Charlot e Schon :
32
“(…) a ideia de saber implica a ideia de sujeito, de actividade do sujeito, de relação do sujeito com ele mesmo, de relação desse sujeito com os outros (que co-constroem, controlam, validam, partilham esse saber)” Charlot (2000:61); ” (…) o nosso conhecimento é ordinariamente tácito, implícito nos nossos padrões de acção e no nosso sentido para aquilo com que estamos a lidar; parece correcto dizer-se que o nosso conhecimento está na nossa acção” Schon (1983:49).
Identificar estas relações e os processos pelas quais os assistentes sociais
podem tornar conscientes os seus saberes, para si e para os outros, implicará
um contributo para abordagens menos dicotómicas e mais fecundas.
A ENTRADA PELA EDUCAÇÃO
Sinto necessidade de explicitar a opção de entrada pelas Ciências da
Educação. O que me trouxe inicialmente a este campo disciplinar foram
principalmente duas ordens de razões: umas razões de ligação efectiva e
afectiva à Formação de Adultos, com umas reminiscências positivas do tempo
em que utilizei o método de Paulo Freire na alfabetização de adultos,
continuadas posteriormente pelo meu percurso como docente e formadora de
interventores sociais e, outras razões de ordem prática, já que o meu actual
exercício profissional numa autarquia se realiza num campo híbrido de
cruzamento entre o «social» e o «educacional».
Posteriormente, pude constatar a riqueza do novo referencial e realizar novas
conexões com as anteriores aprendizagens de outras áreas disciplinares,
sendo que tem sido neste cruzamento de saberes que, à semelhança dos
ecossistemas naturais, me tem sido possível desenvolver formas plurais de
entendimentos – de mim, dos outros e das construções sociais das realidades
que vou vivenciando.
As Ciências da Educação têm uma produção teórica própria já legitimada e um
campo de investigação e autores de referência que a tornam uma disciplina
mais ou menos reconhecida, embora a sua profissionalidade seja ainda
incipiente. Partilha, no entanto, com o Serviço Social alguns aspectos:
i) a ausência de abordagens consensuais, no sentido dado por Khun;
ii) o carácter multiparadigmático do seu estatuto epistemológico;
33
iii) a porosidade entre o campo da produção do conhecimento, o campo da
decisão política e o campo da acção profissional;
iv) e a persistência de uma distinção binária entre a teoria e a prática,
segundo a qual os investigadores produzem os conhecimentos em que
se baseiam e que contribui para a distinção dicotómica entre uma
«Ciência de autores» de uma «Ciência de actores».
A Educação de Adultos nasce mais tardiamente do que o Serviço Social, a
seguir à 2ª Grande Guerra, à boleia dos «30 gloriosos anos» assentes na
Teoria do Capital Humano, em que se entendia que a Educação era essencial
para o Desenvolvimento e se pretendia prolongar a escolarização aos adultos.
Historicamente, tem uma perspectiva predominante de extensão escolar ou
educação de segunda oportunidade, num modelo de Estado-nação, e outras
perspectivas mais abrangentes (mas também mais periféricas), onde se
incluem os sectores formal, informal e não formal, visando a construção de
uma sociedade educativa e educadora e de uma maior autonomia e
emancipação dos seus cidadãos.
A diversidade de conceitos que lhe estão associados (Cidadania, Trabalho,
Formação, …) varia ao longo dos tempos e das latitudes e tem sido fortemente
dependente das ideologias dominantes.
Utiliza conceitos de construção social que são criados e evoluem na base de
tensões e contradições permanentes, quer nas experiências dos países
escandinavos e anglo-saxónicos, quer nas experiências de Educação Popular
na América Latina, onde a obra de Paulo Freire é incontornável ou ainda nos
movimentos cívicos e educativos que surgiram após a II Guerra, por exemplo,
em França, onde a Educação Popular conduziria, já nos anos 60 e 70 do
século passado, ao Movimento da Educação Permanente, um conceito de base
alargada e essencialmente humanista.
A definição abrangente que hoje é consensual provém da UNESCO (e data de
1976, com revisões em 1997 e 2009) e é feita por justaposição, somando os
diferentes subsectores que, ao longo da história, se têm inserido neste vasto e
variado campo da acção educativa e está relacionada com a formação de um
cidadão com acesso à cultura e informação e também, na valorização dos
princípios da democracia e de uma participação activa na vida cívica e política.
34
A UNESCO tem assim, um importante papel na sua legitimação e
reconhecimento e produz documentos incontornáveis sobre a Educação de
Adultos, inscritos numa batalha travada contra a pobreza e o
subdesenvolvimento. Por outro lado, o campo da qualificação profissional surge
em paralelo mas são duas histórias e duas tradições com vias distintas.
Neste campo acentua-se actualmente o paradoxo entre o pedido para a
Educação de Adultos garantir um processo ao longo da vida que assegure a
integração das diferentes dimensões do desenvolvimento e da
‘empregabilidade’ das pessoas - o que remete para a responsabilização
individual, segundo a qual caberá a cada trabalhador ou candidato a
trabalhador e, ao longo de toda a sua vida, garantir condições para ser e
manter-se ‘empregável’ - em sociedades onde o direito ao trabalho está em
vias de extinção e onde a rescisão do Contrato Social (no caso de muitos
países do hemisfério norte que desenvolveram o Estado Providência)
‘desobriga’ o Estado dos chamados direitos humanos de terceira geração.
Valerá a pena recordar (segundo Stoer e Magalhães, 2005) que a modernidade
assume o sistema escolar como um dos instrumentos centrais da sua
realização, onde o conhecimento surge ao mesmo tempo como «mediador
entre a ignorância e o saber e como organizador da relação entre a natureza e
a humanidade» (é atribuída à socialização escolar o papel de transformar a
natureza natural dos homens em natureza social). Neste ponto é notória a
convergência da pedagogia com o contrato social moderno, na medida em que
coloca o sujeito no centro do processo de ensino/aprendizagem.
No quadro destas abordagens pode verificar-se que a institucionalização
académica da Educação de Adultos corresponde ao cruzamento e fusão de
várias dimensões: o desenvolvimento local, a escolaridade de segunda
oportunidade, a educação popular, a animação e educação não formal e a
formação profissional – e essas dimensões têm constituído também campo de
intervenção da acção social, com intervenientes do Serviço Social e de outras
profissões sociais.
A Educação de Adultos liberta-se do paradigma escolar na medida em que cria
referências externas, modelos e quadros teóricos unificados em relação aos
diferentes públicos da educação mas, segundo Canário (1999) mantém por
35
muito mais tempo a visão instrumental, que é complementada por uma visão
técnica das práticas educativas, e que reflecte frequentemente a procura da
«eficácia» e da «qualidade», transportando critérios de ordem empresarial para
a esfera educativa.
Com este ‘pano de fundo’ que também envolve os assistentes sociais na sua
múltipla condição de profissionais, muitas vezes a intervir em contextos de
educação não formal e de pessoas, trabalhadores, investigadores, cidadãos,
actores e autores, poderei estabelecer uma relação contingente entre o
estatuto social da sua intervenção profissional e a formação das suas
configurações identitárias, verificáveis no presente e no decurso do processo
histórico de construção da profissão.
Entre muitas outras analogias e cruzamentos que arriscarei fazer entre as
ciências da educação e o serviço social, não resisto a colocar em comum esta
tendência para uma visão instrumental, quer na educação, quer na intervenção
social, complementando-se para compor uma conformidade com muitas faces.
36
CAPÍTULO 1 - SERVIÇO SOCIAL: UMA PROFISSÃO E
UMA DISCIPLINA QUE PROCURAM NOVAS
LEGITIMIDADES
Este capítulo tem por objectivo situar as questões centrais do presente trabalho
de investigação.
Pretendo aprofundar a reflexão sobre a profissão de Assistente Social numa
perspectiva a partir de dentro do campo e no entendimento de que a profissão
se constrói e se aprende, no diálogo entre o exercício e a reflexão sobre si
própria e o mundo. A partir da exploração das suas singularidades por relação
às profissões sociais, interroga-se o saber profissional, as suas construções
identitárias, os processos de formação inicial e ao longo da vida, a
permeabilidade ao poder e às ideologias e a produção de conhecimento
próprio.
Assim, o capítulo é estruturado em torno de quatro pontos: no primeiro, propõe-
se uma problematização e uma ‘recriação’ da profissão numa visão
transdisciplinar que ultrapasse referenciais e representações, tradicionalmente
antagónicos e dicotómicos e que colocam a profissão como estando «entre»
direcções irreconciliáveis.
No segundo, aborda-se a profissionalidade, ou seja, situa-se o debate sobre o
‘como’ se constrói o conjunto articulado de saberes requeridos para o exercício
profissional, na defesa de que esses processos são marcados (e marcam) as
respectivas dimensões identitárias e simbólicas.
No terceiro, são identificadas as perspectivas utilizadas sobre a formação e a
aprendizagem da profissão, desbravando caminho pelas várias possibilidades
e dando conta da escolha conceptual realizada.
No quarto, é identificada a relação entre a formação e a produção de
conhecimento, valorizando os saberes tácitos e implícitos da experiencialidade,
e querendo com isso defender a possibilidade de que estes saberes possam
ser explicitados, objectivados, formalizados e colectivizados, explorando a
recontextualização do conhecimento próprio deste campo profissional, como
uma das formas de encontrar novas legitimidades.
37
1.1. ENTRE A (S) IDEOLOGIA (S), A (S) PRÁTICA (S), A (S)
TÉCNICA (S) E A (S) CIÊNCIA (S)
Em tempos de fluidez de teorias e paradigmas o conhecimento do Serviço
Social terá de ter em conta a “etnodiversidade que sempre caracterizou a
profissão” (Mouro: 2009), dado que a sua expansão resulta de diferentes
formas de agir e de pensar situadas entre os processos de contextualização
cultural e política e as formas de actuar sobre os problemas sociais.
No contexto da sociedade do risco e em face da pressão exercida pelo
processo de Globalização em curso, o desenvolvimento da profissão e da
disciplina dependerá quer da forma como os próprios profissionais conseguem
legitimar e credibilizar um processo interno de inovação com a produção de
conhecimento, quer da maneira como forem capazes de se posicionar nos
processos de transformação social, de governança dos problemas sociais e do
seu próprio processo de trabalho.
Quando se reflecte sobre a complexidade e a legitimidade do Serviço Social
importa utilizar formas de ‘leitura’ que deixem espaço para percepcionar
movimentos, por vezes muito subtis, contraditórios e diversos. E esta
aproximação não enjeita a importância das aproximações disciplinares mas
implica também a aceitação de espaços fluidos situados entre as fronteiras, ou
para além das zonas clássicas de objectivação, bem como o reconhecimento
da implicação pessoal no acto cognitivo, de um sujeito em formação
permanente e em transformação ao longo da sua vida.
Do ponto de vista epistemológico, o conceito de transdisciplinaridade parece
bastante fecundo para abordar este desenvolvimento da profissão e da
disciplina, na medida em que tenta dar resposta a uma nova visão do homem e
da natureza através duma ultrapassagem integrativa do paradigma actual.
“A Transdisciplinaridade abre as ciências, em particular as ciências humanas e sociais, a uma relação diferente entre objecto e sujeito, ao mesmo tempo mais matizada (pelo conceito de níveis de realidade) e mais larga» (Paul e Pineau, 2005:5).
A transdisciplinaridade, segundo estes autores, assemelha-se com efeito a
uma epistemologia dos limites, de zonas fluidas, quer dizer ‘entre’, ‘através’, ou
‘para além’ dos campos identificados, promovendo um diálogo, não tanto pela
existência de um território comum, mas por um alargamento das margens, de
38
pontes e de fronteiras entre os campos disciplinares. Ela define-se como um
processo epistemológico e metodológico de resolução de dados complexos e
contraditórios situando as ligações no interior de um sistema global
hierarquizado mas sem fronteiras imutáveis entre as disciplinas, de forma a
encontrar soluções práticas.
Neste entendimento, distancio-me de um «etnocentrismo científico-disciplinar»
e sinto-me relativamente confortável com a possibilidade de questionar a
profissão da qual faço parte numa perspectiva de reflexividade que procura
colocar em debate aspectos que suponho importantes para os interventores
sociais, sejam ou não, de serviço social.
Entendo que o Serviço Social faz parte das «profissões sociais», no sentido
mais próximo do conceito anglo-saxónico das ‘care professions’ e mais
abrangente do que as designações francófonas de ‘trabalho social’ ou de
‘intervenção social ‘ (Branco, 2009), embora estas últimas designações
também sejam utilizadas por fidelidade às respectivas fontes.
Não defendo uma neutralidade e tenho consciência de que este trabalho está
centrado na subjectividade dos actores sociais (inclusive, na minha e, no caso,
dos assistentes sociais entrevistados) ou seja, assente num estudo que
evidencia a representação social que estes actores (e autores) têm da sua
posição num campo social específico e nas normas e valores que lhes
permitem interpretar os processos de interacção social que descrevem. E
admito que a necessidade de «novas» legitimidades tem acompanhado a
trajectória do Serviço Social.
Recuando à genealogia do Serviço Social recorda-se que já para a pioneira
Mary Richmond a prática profissional deveria ser reflectida e objecto de
diagnóstico, embora a definição dos problemas que foram móbil do Serviço
Social fosse mudando. Para Mary Richmond, o problema social situava-se na
personalidade; mais tarde passou a considerar-se que se situava no indivíduo e
no meio e no significado do meio para o indivíduo; e com a perspectiva
marxista veio a compreensão das trajectórias sociais e dos grupos de
referência, passando-se a considerar a ligação e a interdependência entre
indivíduo e sociedade.
39
As diferentes leituras dos problemas que eram, foram e são objecto do Serviço
Social foram mudando, conforme o seu enquadramento sócio-histórico e as
influências teóricas e ideológicas, com múltiplas tensões entre o individual e o
colectivo, o controlo e a autonomia, a assistência paliativa e a ‘capacitação’, a
reprodução da ordem e da moral e a produção de novas ordens e saberes,
entre outras dimensões em tensão.
Hoje, persiste a necessidade de reflectir a profissão de Serviço Social,
conjugando aspectos dos modelos mais presentes e actuais, numa lógica de
compreensão antropológica do homem e das sociedades e numa visão que
pretende ser mais integradora.
Esta visão não se resume à integração de conhecimentos, defendendo a
necessidade de novos posicionamentos, quer nos autores que se
comprometem com a mudança social como Desrumaux – Zagrodnicki
(1998:137) e que apontam o Serviço Social como uma «profissão que tem por
finalidade a produção de mudanças», através do desenvolvimento de
capacidades sociais, quer nos autores que perspectivam uma intervenção mais
individualizada como Garnier (1999) na defesa de uma ética comprometida
com a empatia, com a compreensão e o respeito pelas lógicas conceptuais dos
sujeitos de intervenção.
O debate sobre a natureza da profissão protagonizado pela escola latino-
americana a partir do movimento da reconceptualização do Serviço Social, foi
prosseguido pela atenção dada pela escola anglo-saxónica ao espaço da
profissão face às novas profissionalidades em matéria de intervenção social.
Enquanto a primeira exprime a atenção atribuída à relação da profissão com as
suas questões existenciais, a segunda reflecte uma preocupação especial com
os alinhamentos da profissão face a outras profissões, essencialmente quando
a diferenciação e a especialização funcional se transformaram num ‘problema
de fronteiras’ (Giddens:2001).
Com a recomposição da segmentação profissional e a crescente
transdisciplinaridade, impõe-se uma atitude auto reflexiva sobre a prática dos
assistentes sociais e a importância de uma compreensão mais ampla da
profissão. Como refere Helena Mouro:
40
“…o conhecimento sobre o seu ethos foi alicerçado através da desconstrução e reconstrução da sua trajectória para, em função da realidade percebida e em articulação com os conhecimentos produzidos fora da área do Serviço social, se investir na projecção do seu futuro” (2009:p.412).
Na actualidade passou a considerar-se que a intervenção social implicava
decisões e actuações complexas e que seria preciso articular os saberes
teóricos mais genéricos com os saberes construídos na prática. Mas a crítica
interna do campo aponta a fragilidade destes saberes referindo que, muitas
vezes a sua exposição fica-se pela mera descrição, sem formalizar uma
estrutura epistemológica que dê significado ao empírico e evidencie as
componentes, as relações e as funções mais significativas.
Segundo Desrumaux – Zagrodnicki (1998), a dificuldade de reconhecimento
das profissões do ‘social’ prende-se com a sua história (não nasceram de uma
ciência, mas sim de ideologias) e com o facto de se constituírem
essencialmente como práticas. Apesar do reconhecimento de que o Serviço
Social se possa definir como profissão, devendo dotar-se de métodos de
avaliação reconhecidos no plano científico, a sua formação privilegiou a
aprendizagem sobre o terreno e o conjunto da profissão ainda evolui a partir do
pragmatismo. E se a qualificação científica não parece resolver a insuficiência
de conhecimentos integrados, a explicitação dos conhecimentos adquiridos por
via experiencial, por si mesma, parece não ser suficiente para o aumento
pretendido (em quantidade, qualidade e diversidade) da produção de
conhecimento específico de Serviço Social.
Teresa Zamanillo (2001), numa abordagem de orientação sistémica, chama a
atenção para o facto dos trabalhadores sociais se moverem no nível da
experiência, explicitando que a sua acção se alimenta do conhecimento
imediato, cujo critério de verdade é o «êxito da acção» na resolução do
problema. Esta posição contribui para manter uma relação de externalidade
entre a teoria e a realidade, ilustrada pela voz corrente entre muitos
profissionais de que “a formação recebida é muito teórica”, o que pretende
significar que as teorias são pouco válidas/úteis para explicar e resolver os
problemas quotidianos com que se defrontam.
Esta posição evidencia também a ambiguidade (e por vezes a divergência)
entre «compreender» e «controlar», assumindo a autora atrás citada que os
41
trabalhadores sociais têm uma grande necessidade de controlar a realidade e
alguma dificuldade em lidar com a desordem, o caos e o vazio. Ao invés, o
compreender, permite conectar a teoria com a prática, relacionando o
conhecimento comum com o conhecimento teórico e com a experiência.
Esta autora defende a necessidade de ordenar os conhecimentos em teorias já
existentes e produzir novo conhecimento a partir de uma investigação de
campo, que desenvolva conceitos sensibilizadores numa dinâmica
interdiscisciplinar; ao invés de prosseguir uma teoria e uma metodologia
próprias – o que ela designa de tarefa impossível que pretende uma identidade
falsa pelo seu carácter auto referencial.
Esta posição está longe de ser consensual mas existe, em concomitância com
muitas outras perspectivas, o que também demonstra alguma vitalidade
reflexiva dentro do campo profissional. E aos Assistentes Sociais continuam a
ser solicitadas competências para intervir e controlar, o que nesta perspectiva,
tem assegurado mais postos de trabalho aos profissionais mas constitui uma
dificuldade acrescida para o seu reconhecimento profissional.
Esta dificuldade situa-se entre múltiplas tensões, nomeadamente a tensão
entre os conhecimentos teórico-metodológicos e experienciais (que, na prática,
parecem cada vez mais preteridos) e os saberes procedimentais das
organizações de trabalho que tendem a ser sobrevalorizados como
conhecimento operacional. O que recoloca uma questão que hoje continua a
ser importante colocar, enquanto princípio epistemológico da concepção formal
da ciência, é a de saber qual é o objecto do Serviço Social?
Qual é o elemento do todo social que focaliza o Serviço Social? O que é que
determina o seu conhecimento e a sua prática?
Na tentativa de equacionar estas questões encontra-se com frequência alguma
confusão entre «o quê» (problema social, necessidade social), o «quem»
(‘indivíduo desajustado’, ‘homem oprimido e explorado’) e o «onde» (área de
interacção entre o indivíduo e o meio), dando a todos estes termos a categoria
de objecto, dependendo do momento histórico, da área geográfica e/ou da
ideologia.
Apesar destes termos serem elementos constituintes para a construção do
objecto, são aspectos parciais de uma realidade que envolve o sujeito
42
contemporâneo e que se pode sintetizar no conceito de «mal-estar», onde
constituem apenas a ponta visível do iceberg os estados de carência, os
problemas sociais actuais e a falta de cobertura das necessidades em muitos
grupos da população.
Para Zamanillo, a produção e reprodução destas condições é o que gera este
«mal-estar» de que não podem fugir os indivíduos, na sua condição de sujeitos
interdependentes. Então a proposta de objecto é formalizada como sendo:
“…todos os fenómenos relacionados com o «mal-estar» psicossocial dos
indivíduos, ordenado segundo a sua génese sócio-espacial e as suas vivências
pessoais” (Zamanillo, 2001:141).
Por mais perspectivas que se possam nomear, o Serviço Social situa-se neste
espaço paradoxal que designei de «entre». Nomeadamente entre o ‘mandato’
das instituições na aplicação de medidas de política social, na redistribuição de
recursos e no controle social e as populações sem voz junto dessas mesmas
instituições, que desempenham um papel de interface entre a procura e a
oferta de bens e serviços sociais.
Neste âmbito, é frequente a incompatibilidade das relações intersubjectivas de
ajuda, mais ou menos terapêuticas e das dinâmicas mediadoras de processos
de desenvolvimento que os assistentes sociais desenvolvem com as pessoas
que os procuram, ou a quem se juntam, e a função de trabalhadores por conta
de outrem com um mandato institucional em que lhes é pedido que
implementem respostas relativamente tipificadas em contextos de organização
e de trabalho cada vez mais baseados em evidências quantificáveis e
actuações de curto prazo. Por outro lado, a fragmentação dos profissionais por
diferentes ‘sectores’ e áreas de intervenção e a tendência para assumirem uma
postura camaleónica nos respectivos contextos faz com que pareçam assumir
um compromisso prioritário com a instituição e a respectiva área de intervenção
em detrimento da profissão e das pessoas com quem trabalham.
São frequentes as narrativas profissionais que evidenciam, quer a utilização de
léxico de sector (saúde, justiça, segurança social, autarquias…), quer a
construção de quadros de referência e de metodologias de intervenção mais
próximas da área de intervenção do que de uma especificidade da profissão.
43
Este fenómeno de «desprofissionalização» tem tradução do lado dos poderes
instituídos e é particularmente visível na tendência actual de utilizar
designações genéricas de, por exemplo «Técnico de reinserção Social»
(utilizada na Justiça) ou «Técnico Superior» (utilizada na Função Pública em
geral) para designar funções que correspondem a postos de trabalho no campo
da intervenção social, para as quais é elegível qualquer formação na área das
Ciências Sociais e cujo conteúdo funcional é semelhante, independentemente
da formação inicial e da profissão.
A ‘recriação’ do Serviço Social está influenciada por movimentos centrípetos e
centrífugos que se desenvolvem na profissão, sendo que os primeiros utilizam
a acção social como elemento galvanizador da sua especificidade e elemento
de salvaguarda do poder profissional adquirido por via da sua herança cultural,
e os segundos fragmentam o centro de gravidade da intervenção profissional,
sendo a inclusão tomada como ponto fulcral da sua orientação (Helena Mouro,
2009). Esta perspectiva dinâmica e tensional, destaca dois movimentos com
uma comparação dicotómica entre um “cenário vivido/experimentado” de
características etnocêntricas e um “cenário proposto” de características
ecocêntricas, com diferenças ao nível das finalidades (controlo e regulação dos
problemas sociais ou emancipação social e individual?), dos objectivos (a
gestão do equilíbrio da vida ou a requalificação da vida quotidiana na
sociedade do risco?), das culturas (proteccionista ou igualitária?) e dos
paradigmas (inserção social ou pedagogia da autonomia?).
As possibilidades de divergências e incongruências entre estes cenários,
podem contribuir para que alguns profissionais sintam clivagens quase
esquizofrénicas entre o «vivido» e o «pretendido», entre o que «pode» e o que
«deve» ser feito, entre o «discurso» e a «acção», entre as «realidades» e os
«mapas teóricos» - só para nomear algumas dessas clivagens.
Para que os assistentes sociais possam estar «entre» tantos cruzamentos,
movimentos e tensões, sem serem esmagados e/ou indiferenciados e, sem se
tornarem eles próprios executantes acéfalos de um sistema em decadência,
precisam de saber «quem são», «o que fazem» e «para que fazem».
Outra tendência protagonizada por autores científicos reconhecidos, como
Boaventura Sousa Santos no campo da Sociologia, acentua a necessidade de
44
desdogmatizar a ciência, advogando a necessidade de analisar as condições
históricas e teóricas da produção do conhecimento para entendê-la no seu
tempo e no seu contexto.
Conceber a ciência como imbricada nas relações sociais, implica alterar
práticas, construir novas relações sociais e narrativas científicas, reconhecendo
o conhecimento como parcial e inerentemente social e político.
Neste âmbito os sentimentos de “perda” expressos pelos assistentes sociais,
especificamente no quadro político de (des) legitimação do Estado-providência,
ao mesmo tempo que questionam legitimidades, exercícios e identidades
profissionais, abrem um espaço privilegiado para negociar novas legitimidades.
Helena Mouro, a este propósito, refere que a profissão consignou-se
socialmente como um dispositivo de conversão de poderes tanto de ordem
profissional, como política. De ordem profissional, na medida em que se tornou
num objecto de disputas profissionais entre os diferentes actores profissionais
envolvidos na procura de um lugar próprio no “não-lugar” onde se insere a
intervenção social e, de ordem política, uma vez que se tornou num meio ideal
para enfatizar o investimento político na redução de custos sociais da
“exclusão” (Mouro, 2009: 433).
O reconhecimento de que os modelos de conhecimento e de «verdade»
dependem das relações sociais estabelecidas num determinado contexto
histórico e dos interesses em presença, remete para que «entre» as
possibilidades de uma meta teoria se possam encontrar o reconhecimento
da(s) identidade(s), como fragmentada, plural e, eventualmente, em conflito.
Neste posicionamento, a linguagem e as relações sociais tornam-se centrais
para a reflexividade sobre a experiência e para a produção de conhecimento,
nas suas componentes de competência e formação.
45
1.2. SISTEMA IDENTITÁRIO E SISTEMA SIMBÓLICO NA
PROFISSIONALIDADE
A profissionalidade é aqui tomada enquanto conjunto articulado de saberes,
saberes-fazer e atitudes requeridas pelo exercício profissional. Neste âmbito,
têm-se multiplicado os estudos referentes às identidades sociais e profissionais
em contextos de acção empírica, mas estes têm reunido alguma unanimidade
ao afirmar que problematizar as construções das identidades sociais dos
actores em contextos de trabalho não significa reduzi-las a estatutos de
emprego ou a níveis de formação.
A pessoa, antes de adquirir uma determinada habilitação profissional, possui já
uma identidade (étnica, religiosa, sexual, de classe), onde a reconstituição
identitária posterior, como será o caso da que ocorre em contexto de trabalho,
é condicionada pelo conjunto de experiências e vivências anteriores e ainda
pelos construídos identitários preexistentes.
Dubar (1997a), que parte de uma reflexão alimentada pelas perspectivas
psicanalítica e fenomenológica, define identidade como o resultado
simultaneamente estável e provisório, individual e colectivo, subjetivo e
objectivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização, que
conjuntamente constroem os indivíduos e definem as instituições. Nesta
concepção, a identidade incorpora as representações do sujeito sobre si
próprio e sobre os outros e, nesse sentido, é construída numa dinâmica de
interacção permanente na qual intervêm as representações de si e o olhar do
outro.
A construção da identidade é assumida como um processo de transacções
objectivas e subjectivas; as transacções objectivas (onde predomina a
atribuição) procuram acomodar a identidade para si à identidade para o outro, e
as subjectivas (ou internas ao indivíduo) variam entre a necessidade de manter
identificações anteriores e o desejo de construir para si novas identidades no
futuro. Este autor não defende, ao contrário do que outros fazem, o
estabelecimento de diferenciação entre identidade individual e colectiva; para
ele, a identidade construída pelo indivíduo no decurso do processo de
socialização pode ser analisada alternadamente como produto interiorizado das
46
condições sociais anteriores objectivas e como expressão dos desejos
particulares mais subjectivos, mas é necessariamente marcada pela dualidade
entre o processo biográfico e o relacional.
Em paralelo, vários autores referem-se à identidade como algo paradoxal
dando conta de que a identidade diz respeito simultaneamente ao que parece
idêntico e diferente, único ou aproximado aos outros (Lipiansky, 1992). Por
outro lado, o estudo das identidades a nível científico, implica a abordagem de
um paradoxo que consistiria em tentar articular diversas perspectivas de
fenómenos sociais diferentes.
Paradoxal, ou não, o conceito de identidade utilizado aponta para uma
interacção dinâmica entre o indivíduo e o seu grupo de pertença e,
paralelamente, para a representação que possuem do grupo e da sua posição
social no seu interior.
Os modelos da identidade social das escolas de Bristol e de Genebra, no
âmbito da Psicossociologia e da Sociologia compreensiva, tiveram uma grande
repercussão nos estudos sobre a identidade, o primeiro pretendendo não só
ultrapassar as extrapolações do nível individual e interindividual para o nível
das relações intergrupos, como questionar a importância do conflito na
ocorrência da discriminação entre grupos sociais; o segundo, com estudos
orientados segundo o interaccionismo e o construtivismo, onde o indivíduo era
simultaneamente visto como alvo dos condicionamentos do meio e agente
activo sobre esse meio, elaborando sistemas de organização e coordenação
das suas acções com as dos pares, em ordem a estruturar a acção colectiva.
Os abundantes e variados estudos de ambos os modelos, que se focaram na
identidade vivida e na identidade atribuída, revelam precisamente as
dimensões biográfica e relacional, onde o espaço de trabalho se traduz numa
recursividade permanente entre as duas dimensões.
A identidade profissional designa, assim, simultaneamente a imagem que o
indivíduo possui de si próprio e a forma como se define por referência às
instâncias que o rodeiam, designadamente ao grupo de pertença (Dubar,
1998).
Sainsaulieu é um autor que desenvolveu estudos que se inscrevem, em grande
medida, na linha dos estudos desenvolvidos no interior da escola de Genebra e
47
que apontam, entre outras, para duas dimensões existentes nos contextos de
trabalho que condicionam a construção das identidades: a ideologia e o poder.
Segundo este autor (Sainsaulieu, 1977) a identidade constitui-se um campo de
investimento (das práticas, do trabalho, dos saberes, da relação), no decurso
do qual se registam transacções entre o indivíduo e a sociedade.
Pelo que referi até aqui verifica-se que o conceito de identidade, que pretende
ser central neste trabalho, é polissémico e bastante complexo, até porque
recolhe diferentes usos sociais (psicológicos e sociológicos) e comporta a
noção de identidade enquanto processo dinâmico e simultaneamente biográfico
e relacional (Dubar, 1997a).
Diria que para este trabalho me situo na concepção de identidade filiada na
perspectiva interaccionista (inspirada em Mead) onde se entende a acção
humana como algo que se constrói na comunicação frente a frente, com os
outros, e não estritamente comandada pelas normas e valores sociais
impostos, reconhecendo a participação activa dos sujeitos na construção da
sua identidade.
Recorda-se que o interaccionismo simbólico teve origem nos E.U.A., surgindo
ligado aos princípios filosóficos do pragmatismo defendidos, entre outros, por
autores como William James, George Mead e John Dewey que consideravam
que a pessoa humana é o produto das interacções sociais, nomeadamente das
que se produzem a partir da linguagem e do jogo. No âmbito da sociologia, o
interaccionismo, cujo objecto é a estrutura da experiência individual na vida
social, tem-se constituído como pólo centralizador de um debate de ideias,
alimentando diversas perspectivas interpretativas e dinâmicas da
problematização social (Goffman, 1993).
A questão das socializações e da identidade remete-nos por sua vez para o
conceito de profissionalização e para a dinâmica de uma profissão, e segundo
Rodrigues “este é devedor mais da perspectiva interaccionista do que da
perspectiva funcionalista” (1997: 20-22). As representações que os
profissionais fazem de si (bem como as representações que os outros fazem
da profissão e dos profissionais) dependem das crenças, valores e referências
culturais que se adoptam no quotidiano, mas também de patrimónios
simbólicos herdados e construídos ao longo dos tempos.
48
Uma vertente que ainda está presente nessas representações é a concepção
da profissão como essencialmente feminina, o que condicionou parte da
identidade profissional ao papel de género que a sociedade esperava da
mulher, na valorização da actividade observável e na desvalorização da
dimensão intelectual da prática profissional.
Valerá a pena recordar que na sua emergência era uma ocupação
predominantemente feminina e elitista, exigindo para o exercício profissional a
“vocação e a boa formação moral” e tendo como postulado que “só por amor
ao próximo” se abraçava esta profissão. Só com a introdução das teorias
sociais e humanas, na formação académica e profissional e na análise dos
processos sociais, foram adoptadas pelo Serviço Social concepções teóricas e
metodologias específicas (o método de caso, de grupo e, mais tarde, o de
comunidade) que lhe permitiram alargar os campos de intervenção e
sedimentar a construção identitária.
O desenvolvimento desta função em todas as esferas da actividade
socioeconómica é uma das características das civilizações do tipo ocidental e
um dos operadores essenciais do processo de racionalização da sociedade, no
sentido de Max Weber.
Apesar de uma primeira visão da profissão linear e psicologizante, a detenção
e a transmissão de um saber e de uma prática, de um «saber – fazer»,
contribuiu para o reconhecimento profissional dos Assistentes Sociais enquanto
grupo específico. Garnier é um dos autores que defende que os assistentes
sociais conseguiram criar um «modelo autónomo», referindo que:
“…foi construído a partir do envolvimento profissional, baseado sobre uma ética, com um valor dominante, o humanismo, fundado na relação com as pessoas, sobre a confidencialidade e o segredo profissional, baseado num processo pedagógico de transformação do indivíduo, utilizando um saber e um saber fazer psico – educativo” (1999: 25-43).
Este modelo estava ligado à permanência da relação de ajuda como princípio
fundador da identidade, tornando o assistente social num profissional “que
ajuda” e permanecendo até a prática do Serviço Social se inserir no âmbito das
políticas sociais, as quais têm por base o modelo democrático ancorado nos
direitos do homem: um homem – cidadão, agora visto como sujeito portador de
direitos e deveres. Do ponto de vista da sua prática profissional, estas
49
mudanças de perspectiva implicaram mudanças na intervenção do Serviço
Social, passando a sua actuação a privilegiar uma concepção mais
tecnologizante da gestão social.
O Serviço Social adoptou um «modelo instrumental e tecnicista», onde a acção
dos Assistentes Sociais reforçou a instrumentalidade da acção social,
consistindo na organização da vida, na divisão e coordenação das diversas
actividades, sobre a base de um estudo preciso das relações entre as pessoas
que procuram os serviços onde eles estão, os instrumentos e o meio, visando
uma maior eficácia e rentabilidade.
Na década de 60 a profissão de Serviço Social é influenciada por sectores
intelectuais de esquerda, que a concebem como uma forma de regulação e
controle social. O movimento de reconceptualização contribui, assim, para uma
nova reflexão sobre o seu papel e a sua eficácia, levantando a questão da sua
relação com o capitalismo e as classes sociais e proporcionando um repensar
da profissão pelos próprios assistentes sociais, relativo aos seus pressupostos
teórico – políticos. Este movimento acabou por permitir a introdução de uma
prática do Serviço Social “politicamente orientada, inserida no processo de luta
de classes, e crítica do sistema capitalista de exploração e dominação,
possibilitando um questionamento da prática institucional de adaptação social e
uma articulação do Serviço Social com os movimentos sociais” (Faleiros, 1996:
10), ao mesmo tempo que também questionou as condições estruturais da
visão adaptadora.
Associado a este movimento, surgem na divisão social do trabalho, outros
profissionais da área das ciências humanas. Esta inserção de outros
profissionais no campo da intervenção social prendeu-se com aspectos ligados
à racionalização do trabalho na sociedade contemporânea e à mudança de
alguns indicadores sociais.
O Serviço Social não ficou alheio a estas mudanças, que lhe questionaram o
simbolismo, a legitimidade e o monopólio do campo profissional procurando,
em simultâneo, fazer a autocrítica dirigida à dimensão moralizadora e
normativa que estigmatizava a sua prática profissional. Tornou-se, assim
inevitável uma reflexão profunda sobre as funções básicas e tradicionais do
Serviço Social, e sobre a sua identidade e prática.
50
Da emergência à institucionalização e desta à actualidade foi feito um percurso
por várias gerações de assistentes sociais e, apesar das crises, tensões e
contestações, oriundas quer de dentro, quer de fora, do campo profissional, o
Serviço Social foi fazendo reflexões, cedências, rupturas e evoluções que
constituem uma história e, foi ainda utilizando margens de autonomia para se
posicionar, adaptar e/ou evoluir.
Identifico-me com a proposta do Serviço Social como uma «profissão
complexa» que se diferencia mais «pelos seus objectivos do que pela sua
tecnologia» e que ao partilhar um mesmo corpo de conhecimentos com outras
profissões de ajuda (como é o caso por exemplo, da Psicologia, da Sociologia,
da Pedagogia), distingue-se sobretudo por ter objectivos de “ justiça social,
cidadania e autodeterminação” (Mc – Donough,1999:101).
Neste movimento interno de construção de novas identidades profissionais,
reaproxima-se das Ciências Sociais e avalia as suas capacidades para
ultrapassar a inevitabilidade da partilha do processo de intervenção social, mas
também acentua dilemas para os profissionais entre os objectivos «prescritos»
e o trabalho real em intervenções movidas, na maioria das vezes, por
imperativos e procedimentos organizacionais rigidificados.
A nível da profissionalização do Serviço Social pode constatar-se o reavivar de
outros dilemas (por exemplo, o suposto carácter missionário, a auto-
representação da profissão como vocação e a histórica tendência da
substituição da intervenção profissional, que também pode ser tida, em alguns
casos, como paliativa e paternalista, por actividades voluntárias) recolocados
pelas condições de trabalho e pela persistência de uma acção profissional
intuitiva, mais inspirada na experiência pessoal do Profissional do que na
mobilização de referenciais teórico-metodológicos. Mas apesar desta situação
estrutural, cresce a convicção de que, para satisfazer as necessidades de bem-
estar, não chegam os preceitos neo-liberais, nem as novas filantropias e de
que é preciso mudar a sociedade através de processos individuais e colectivos
de participação e implicação.
Se o processo de profissionalização foi marcado por uma tecnicidade, por uma
racionalização de procedimentos e por uma preocupação com os
51
conhecimentos específicos da disciplina científica (que tiveram o seu papel
nessa «evolução»), a partir da década de 90, assiste-se a um maior
questionamento sobre o sentido do Serviço Social na defesa dos Direitos
Humanos e das suas próprias fontes de legitimação.
Com base nas sucessivas crises da sua trajectória e, na medida em que o
Serviço Social se afasta da identidade que o estigmatizou como mediador de
um pensamento conformista (em perspectivas mais abrangentes mas também
mais periféricas), vai recuperando diversidade interna e oportunidades de
construção de novas formas de participação no processo de mudança social.
Voltando a Giddens e questionando de que forma a «modernidade tardia»
causa impacto no projecto reflexivo, o autor refere que:
“…uma das características distintivas da modernidade é uma intercomexão crescente entre dois extremos da «extensionalidade» e da «intencionalidade»: de um lado influências globalizantes e, de outro, disposições pessoais (…) Quanto mais a tradição perde terreno, e quanto mais se reconstitui a vida quotidiana em termos da interacção dialéctica entre o local e o global, mais os indivíduos se vêem forçados a negociar opções de estilos de vida no meio de uma série de possibilidades (…). O planeamento da vida organizada reflexivamente (…) torna-se característica fundamental da estruturação da auto-identidade” (Guiddens, 1991:1,5)
Por outro lado, visões menos optimistas, colocam em causa a possibilidade da
reflexividade na «sociedade em rede», que:
“… está fundamentada na disjunção sistémica entre o local e o global para a maioria dos indivíduos e dos grupos sociais e também, na separação entre diferentes estruturas de tempo/espaço, entre poder e experiência. Portanto, (…) o pensamento reflexivo da vida torna-se impossível” (Castells, 2007:9).
Estes posicionamentos divergentes sobre a hipótese ou não hipótese de
«planeamento da vida» questionam a construção identitária em múltiplas
dialécticas (nomeadamente entre as dimensões global e local) evidenciando a
questão da autonomia das pessoas para decidir entre diferentes possibilidades
(ou para submergir aos condicionalismos societários) e essas concepções
afectam necessariamente quer as formas como os assistentes sociais se
perspectivam, quer as formas como entendem as pessoas com quem
trabalham, quer as formas como influenciam as decisões nas organizações
onde intervêm, quer ainda os contributos que dão para as formas como as
populações com quem trabalham se identificam.
52
Neste âmbito, destaco duas concepções de proveniências diferentes
(Sociologia e Psicologia) que ilustram posições críticas sobre o papel
«técnico», no sentido de aquele/a que domina uma dada tecnologia:
a concepção de «aprendizagem da desqualificação social» do sociólogo
francês Serge Paugam (2003) que nos destaca, entre outros aspectos «a
carreira psicológica dos assistidos» e a «constituição de uma identidade
negativa» nas populações que recorrem aos serviços de acção social,
marcada pelos «mecanismos de desqualificação social da comunidade»,
pelos efeitos da intervenção social num plano normativo e pela «eficácia da
intriga discriminatória e da etiquetagem da população»;
a concepção do psicólogo e terapeuta familiar português, José Manuel
Almeida e Costa, que destaca as “intromissões pseudoprotectoras das
«fábricas» estatais, especializadas em «integrar» famílias de classe baixa
na normapatia vigente, coisificando-as” (in Gameiro, 2011:14).
Estas perspectivas ilustram, a título exemplificativo, que os fenómenos de
«desqualificação social» e/ou de «coisificação» (no sentido de perda de poder
e autonomia) são produto de construções sociais para as quais também
contribuem os Trabalhadores Sociais (entre eles, os assistentes sociais).
Não quero (nem poderia) com a inclusão destas perspectivas diabolizar os
assistentes sociais, mesmo que na sua vertente mais normativa e paliativa;
mas parece-me de grande importância analisar as criticas e as perspectivas
que as sedimentam de forma a reflectir sobre «o quê», «como» e «para quê»
se intervém, no entendimento de que já não nos basta o mandato social para
realizar análises competentes e válidas, no plano legal e científico.
Estas análises, por outro lado, têm um efeito (por vezes, menos visível e
menos consciente) de contributo para constituir o mundo no qual vivemos e
para legitimar definições e interpretações da realidade, tendo também
consequências para a burocratização e para a construção dos sistemas
simbólico e identitário, quer dos profissionais, quer das organizações, quer das
populações com quem interagem.
Nestes processos ganham importância quer dimensões de auto-identidade (no
conceito de Giddens), quer dimensões relativas à socialização e à identidade
atribuída. Em relação às primeiras impõe-se a questão do significado atribuído
53
e da procura de sentido (s) num projecto reflexivo que orienta a vida e a
necessidade de aprendizagem permanente – e recorde-se que para este autor:
“…a auto-identidade não é um traço distintivo apresentado pelo indivíduo. Trata-se do próprio ser apreendido reflexivamente pela pessoa em relação à sua biografia. (...) o que define ser humano é saber (...) tanto o que se está a fazer como por que se está a fazer algo (...). No contexto da ordem pós-tradicional, o próprio ser torna-se um projecto reflexivo” (Giddens, 1991:35).
Em relação às segundas, será possível:
“… abordar a questão da socialização numa perspectiva da mudança social e não somente da reprodução da ordem social. Ao relacionar a questão da diferenciação do social em “esferas‟ especializadas dotadas de uma autonomia cada vez maior e à constatação da tendência para a formação se generalizar ao conjunto da existência biográfica, esta teoria permite definir a mudança social como um processo conjunto de “construção de um mundo específico” e de “transformação de uma identidade especializada” e, portanto, da socialização secundária em ruptura com a socialização primária (…) qualquer análise dos processos e condições de mudança ou da inovação se confronta com a questão da aprendizagem colectiva pelos actores das capacidades de «invenção» de novos jogos, de novas regras e de novos modelos relacionais” (Dubar, 1997a: 98/99).
Neste sentido, a mudança social é inseparável da transformação das
identidades, isto é, simultaneamente inseparável dos «mundos» construídos
pelos indivíduos e das «práticas» que decorrem desses «mundos» - para o que
contribui a problemática da «construção social da realidade» que faz a apologia
das possibilidades de mudança nomeadamente através de uma modificação
das interacções, das relações sociais, em suma, através da acção
comunicacional.
54
1.3. OS ESPAÇOS E OS TEMPOS DA APRENDIZAGEM DA
PROFISSÃO
Quando me penso, quer como formanda, quer como formadora, penso-me nos
territórios anfíbios em que o ensino e a aprendizagem, embora com recurso a
processos diferentes, se cruzam. Esta opção não pretende sublinhar a
dicotomia no espaço e no tempo destas duas faces da mesma «moeda», mas
apenas evidenciar alguns aspectos de relação e interacção destes processos,
quer no debate sobre o ensino académico dos assistentes sociais, quer na
relação que o profissional faz com o seu processo de aprendizagem inicial e ao
longo da vida, com a apropriação dos conhecimentos, com a relação da
formação com o trabalho e com a relação deste com o reconhecimento dos
saberes.
A formação, à qual está ainda subjacente uma lógica técnico-instrumental, não
pode ser só formação «por» qualquer coisa e «para» qualquer coisa, tem
também inerente um processo e um percurso inerente à relação do homem
consigo próprio - a individualidade - à relação com os outros - a sociabilidade -
e à relação com o mundo que o rodeia – mundanidade - e com o tempo que lhe
é simultaneamente imanente e transcendente - a temporalidade. Essa mesma
temporalidade marca o historial do Serviço Social, com algumas tensões,
paradoxos e crises, mas também com processos de institucionalização e
academização que constituem um campo de reconhecimento entre os próprios
assistentes sociais.
Respeitando os diferentes sentidos e as várias relações necessários para
conjugar os vocábulos «formação» e «educação» no plural, partilho aqui uma
concepção de fundo que tem percorrido a experiência deste processo de
investigação: a produção da vida, através da apropriação da experiência e dos
processos de formação dos seus profissionais, acompanha as mudanças e a
produção da profissão de assistente social.
As práticas de formação enquanto processo, valorizam as experiências e as
vertentes informais da formação (Pain, 1990), o papel central de cada sujeito, e
a temporalidade longa - Aprender uma profissão está para além da formação
55
em sentido estrito e remete para a aprendizagem contínua dos próprios actores
numa multiplicidade de espaços e tempos. Esta temporalidade longa, de
acordo com Honoré (1990), está inerente à dinâmica de formatividade.
A propósito lembro outros autores que considero centrais, um da sociologia
política e outros do próprio campo do serviço social:
Donzelot (1994:231-34) que tece uma posição bastante crítica sobre a
«Invenção do Social» no declínio das paixões políticas e fundamenta a
critica ao Estado-providência e os seus críticos (entendidos como faces da
mesma moeda). Este autor encontra o gérmen de uma solução na medida
em que ocorra a possibilidade de negociação com a base da sociedade, no
suposto de que o renascimento dos conflitos na base surgirão na medida
em que as formas centrais e globais de transacção fiquem cada vez mais
descredibilizadas. Para este autor a observação destes novos dispositivos
(de base local), e sobretudo da linguagem que eles utilizam, revela a
natureza do mecanismo que eles irão jogar; acrescentando que o princípio
da formação permanente é significativo do mecanismo de articulação entre
«o desejo de mudar a vida com a necessidade de mudar a sociedade»;
Chris Rojek et al (1988), na tese central do livro «SocialWork & Received
Ideias» defendem que o Trabalho Social é sobre pessoas e sobre palavras,
argumentando que a linguagem que os assistentes sociais são ensinados a
utilizar para «libertar» os seus ‘clientes’ frequentemente tem o efeito de os
aprisionar a eles próprios. Estes autores destacam que, apesar da
existência de muitas diferenças de referente epistemológico e de contextos
de exercício profissional, o que une estes profissionais é o objectivo de
promover o ajustamento do ‘cliente’ às condições existentes na sociedade.
Fazem um percurso nesta obra desde o que denominam «Trabalho Social
Tradicional» até ao «Trabalho Social Radical» - que identificam como uma
terceira via que se apoia no construtivismo crítico para explorar e
desenvolver possibilidades.
O termo «Trabalho Social» é aqui utilizado como sinónimo de Serviço Social,
apesar da génese diferente de uma e outra designação. Como já referi, esta
diferença de terminologia traduz historicamente diferenças conceptuais, em
que a segunda decorre do modelo francófono e a primeira do modelo anglo-
saxónico. Enquanto «Serviço Social» se associa à ideia de um serviço prestado
56
à sociedade na lógica do assistencialismo ligado ao humanismo cristão,
«Trabalho Social» identifica-se com uma actividade realizada em benefício da
sociedade, focada no aconselhamento social para capacitar os indivíduos a
potenciar os seus recursos disponibilizados pela sociedade. Divergem ainda na
forma atribuída à sua vinculação académica e à natureza da sua filosofia de
formação. Enquanto o modelo francófono se pauta por uma ética social de raiz
religiosa e um conteúdo de formação essencialmente doutrinário, o modelo
anglo-saxónico caracteriza-se por ser mais ecléctico, expressando a sua
formação uma simbiose entre o pragmatismo social e o pragmatismo científico.
O que me pareceu mais interessante nestas perspectivas foi o lugar de
destaque da linguagem como forma narrativa de descrever a intervenção e a
leitura da sociedade onde esta ocorre, e o alimento da controvérsia do campo
profissional a propósito da diversidade de práticas, entendimentos e
posicionamentos.
Destaco então três aspectos que fundamentam a importância da linguagem:
i) a ausência de neutralidade. A linguagem é evocativa de uma herança
específica da profissão onde se congregam as «ideias recebidas» e os
códigos de intervenção que organizam o mundo profissional;
ii) a existência de um léxico específico. As «ideias recebidas» do serviço
social consistem em termos-chave tais como «respeito», «risco»,
«tolerância», «necessitado de ajuda», «confidencialidade»,
«responsabilidade profissional»… os quais são bastante elásticos e
resistem a uma definição fechada, sendo símbolos que condensam,
misturam e re-arranjam crenças, especulações, percepções, factos,
expectativas, memórias e emoções e, muitos dos termos combinam um
alto nível de irrealidade com alguma ambiguidade e constrangimento por
parte dos «clientes»;
iii) a linguagem profissional do serviço social como uma forma de poder -
Ela dá oportunidade ao assistente social para etiquetar o «cliente» e
regular o seu comportamento que é definido como «em risco»,
«inadequado», «disfuncional» ou «anormal».
A utilização da «discourse theory» parece uma abordagem útil para reflectir e
entender muitos aspectos no Serviço Social na contemporaneidade,
contribuindo para o distinguir da «prática ideológica».
57
A propósito da perspectiva de uma prática profissional ideologicamente
conotada será importante distinguir dois níveis de ideologia: por um lado, um
nível geral, onde se pode assumir que cabe aos assistentes sociais trabalhar
numa sociedade marcada por uma ideologia de classe e modelo de
desenvolvimento dominantes - o que quererá dizer que os nossos
pensamentos, sentimentos e acções são quotidianamente sublinhados como
relações de poder; e, por outro lado, um nível específico, onde uma ideologia
prática enforma as ideias, crenças e teorias do trabalho diário.
A distinção entre uma prática ideológica e a ideia de que o Serviço Social vive
e convive com «ideias recebidas» e códigos de prática de uma história
profissional e de formação, assenta sobretudo na possibilidade do profissional
reconhecer essa «herança» e optar por a seguir, ou não. Assim, a linguagem
«tribal» do Serviço Social, nas suas versões mais tradicionais ou mais radicais,
faz uma utilização extensiva dos conceitos humanistas, tais como «pertença»,
«necessidades partilhadas», «acções necessárias», etc., na defesa de que a
pessoa é composta por capacidades, necessidades e vontades comuns e
naturais que podem ser desenvolvidas progressivamente através de uma
orientação sensata e racional. Este código coloca o assistente social no centro
do problema social e requer dele ação, numa dualidade de papel: por um lado,
um actor que desempenha um «papel heróico» de quem luta (e tem poder)
para aliviar o sofrimento e as necessidades dos outros e, por outro lado, um
papel de vítima, «ensaduichado» entre as populações e as organizações,
colocado nas instituições essencialmente para gerir respostas sociais,
redistribuir recursos e promover a conformidade à norma em nome da «coesão
social», em postos de trabalho onde a sociedade requer que ele «faça» e que
faça as «coisas certas».
Estes são profissionais cujo exercício é, cada vez mais, realizado sob fortes
pressões institucionais para estereotipar e mecanizar os procedimentos, na
tentativa de produzir eficácia e camuflar e reprimir a incerteza e a
conflitualidade. Nestas situações a excessiva normatividade contribui para
produzir acções e respostas rígidas, que não permitem ao profissional admitir a
dúvida, as contradições e os paradoxos.
58
Quando nos perguntamos «o que é o serviço social», teremos que perguntar o
que é que na nossa cultura é «social»? E que formas de «acção social» são
oficialmente sancionadas, reprimidas e punidas?
Teremos que perguntar o que é que na nossa cultura é definido por
«normalidade» e que critérios de moral normativa - o que é considerado
«intolerável»? (para quem e por quem) estão definidos na nossa cultura e são
objecto de passagem geracional?
Estas questões encontram-se em relação directa com a forma como se
entende o conceito de «social», aqui utilizado na perspectiva de Donzelot como
incluindo simultaneamente um leque de respostas que providenciam
mecanismos compensatórios (para o desemprego, a doença, a velhice, …) e
as práticas de assistência associadas aos trabalhadores sociais e que o autor
define como
“…um conjunto de significados que permite à vida social escapar das pressões materiais e das incertezas político-morais; o vasto leque de métodos que fazem com que os membros da sociedade se sintam relativamente seguros” (Donzelot, 1979:26).
Esta perspectiva complexa com vários ângulos inclui desde logo os
«significados», o que evidencia a subjectividade dos actores. Neste âmbito, tive
em consideração a ideia de que «a acção faz o actor» como defende Isabel
Guerra:
“A construção do actor colectivo, e do próprio sistema de acção, pode ser assim considerado um fenómeno identitário. Em qualquer grupo humano, a capacidade de representação simbólica (...) não pode ser separada do sistema de relações sociais. Se se podem identificar os actores, está, ainda, por identificar o processo da sua constituição – prática e simbólica – como actores colectivos no contexto das interacções, negociações e relações com o ambiente externo e as problemáticas em causa” (2006:23).
O Serviço Social, sendo simultaneamente um actor colectivo e uma profissão
de actores que se institucionalizou na modernidade, só pode estar em debate
sobre a sua formação, o seu exercício e a sua identidade plural. Este debate
tem a importância (e a necessidade) não só de reflectir referências e
posicionamentos, mas também de dar um contributo para a disciplina, que
encontra a sua justificação e reconhecimento na prática profissional mas que
continua a procurar fontes de legitimidade e novas construções identitárias.
Aliás, a identidade parece nunca ter estado tão interdependente das suas
dimensões científicas e profissionais como hoje: na medida em que ao mesmo
59
tempo que a disciplina se procura credibilizar e fazer reconhecer no terreno
académico, a profissão corre riscos de desprofissionalização e de
instrumentalização tecnocrática, ao ser essencialmente comandada pelas
lógicas instrumentais vigentes.
A situação de risco e incerteza é também composta pela grande diversidade de
teorias em conflito sobre os problemas sociais e o trabalho de intervenção
social; sendo que, em tese, caberá ao assistente social escolher. Mas não será
uma falsa «escolha» já que remete para a esfera individual escolhas que são
fundamentalmente societárias? E qual o papel da formação?
Neste domínio, partilhamos a convicção de que existem saberes que
funcionam como «modelos de referência», os quais ultrapassam as fronteiras
tradicionais – construídos através de redes, articulações e filiações – e que, ao
serem apropriados pelos actores, transformam as práticas locais de acção.
No entanto, este facto não se traduz directamente na homogeneização ou
uniformização de tendências, se se tiver em conta que a pós – modernidade é
simultaneamente mais diversa e mais homogénea do que a modernidade
(Nóvoa, 2001).
A importância atribuída hoje, no campo das teorias da aprendizagem e da
formação à experiência é incontornável e articula-se com a reflexão que os
sujeitos fazem sobre si próprios e sobre a sua acção no mundo. Neste
processo é valorizado o papel do sujeito e o processo experiencial que o
indivíduo desenvolve para a realização das suas aprendizagens significativas.
Assim, a aprendizagem é um processo holístico de adaptação à vida,
envolvendo transacções entre o sujeito e o meio e, por isso, é também um
processo de criação e de conhecimento.
Se os conceitos de educação e formação são susceptíveis de significados
muito variados, também o conceito de aprendizagem é polissémico, com
destaque para quatro grandes teorias construídas no campo da psicologia – as
teorias comportamentalista, cognitivista, humanista e da aprendizagem social.
60
À luz do paradigma hermenêutico e interpretativo, toda a acção humana é
portadora de sentido e só pode ser compreendida e interpretada a partir de
contextos históricos e culturais, valorizando o conhecimento como local e
particular. A reflexão na acção e sobre a acção, a que se refere Schon (1996)
apela a uma relação dialéctica entre saberes teóricos e saberes adquiridos na
acção. A este respeito, Canário (1999:111) refere que:
“A ideia que hoje tende a ser prevalecente, no campo das teorias da formação, nomeadamente da formação de adultos, conferindo uma importância decisiva aos saberes adquiridos por via experiencial, e ao seu papel de ‘âncora’ na produção de saberes novos, procura articular uma lógica de continuidade (sem referência à experiência anterior não há aprendizagem), com uma lógica de ruptura (a experiência só é formadora se passar pelo crivo da reflexão crítica) ”.
Se defendermos, como Dubar (1997a), que o problema da mudança (individual
e colectiva) das práticas profissionais é, acima de tudo, um problema de
socialização profissional, então, essa mudança supõe o desenvolvimento, no
contexto de trabalho, de uma dinâmica formativa e de construção identitária
que corresponde a reinventar novas modalidades de socialização profissional.
Se seguirmos a ideia de Rui Canário de que essa reinvenção só é possível na
acção, temos que admitir que os processos formativos passam a instituir-se
como processos de intervenção nas organizações de trabalho (Canário, 1998:
19), o que se revela particularmente desafiante com o desemprego em massa
e as relações de trabalho cada vez mais precarizadas.
A teoria cognitivista ou construtivista entende o
saber como um modo dinâmico de conhecer,
como um processo em que a aprendizagem é
concebida num movimento circular entre o
aprendente, a sua experiência e o meio
envolvente.
A aprendizagem é entendida como um processo
de reorganização dos elementos que constituem
uma representação.
A teoria comportamentalista concebe a
aprendizagem como uma actividade
intencional, com uma resposta esperada e
satisfatória a estímulos externos, sem grande
participação consciente do sujeito.
A teoria da aprendizagem social valoriza a
modelagem como via para adquirir e modificar
condutas e, fundamentalmente, atitudes.
A teoria humanista, identifica o carácter único
da experiência pessoal e centra a
aprendizagem no desenvolvimento pessoal do
aprendente.
61
Na linha da explicitação que acho necessário fazer de conceitos polissémicos,
opto pela concepção de «formação» de Bernard Honoré (1977) que entende a
formação como uma dimensão fundamental da vida e, neste sentido, afasta-se
quer das perspectivas funcionalistas de treino mais ou menos instrumental,
quer do paradigma escolar, aproximando-se da corrente das “histórias de vida”.
Honoré defende a sua «teoria da criação e da elaboração do projecto» (1977)
no pressuposto de que a formação é uma propriedade evolutiva na história
individual e colectiva dos seres humanos, em que as experiências de formação
só são formativas na medida em que ganham sentido na história pessoal de
cada um, numa perspectiva de educação regida por princípios de
desenvolvimento dos sujeitos em que fica sublinhada a importância da
formação para aqueles que a vivem.
O conceito de Educação que utiliza este autor (vocábulo que prefere ao de
formação) rege-se por princípios de desenvolvimento pessoal dos sujeitos,
embora limite o espaço e o tempo da formação às experiências de formação
inseridas em actividades educativas.
Dominicé (1984) diverge deste aspecto em particular e constrói uma concepção
que acentua o processo de formação, onde as acções educativas são apenas
uns dos lugares e momentos possíveis desse processo de formação. Pierre
Dominicé, é um autor de quem se integra uma ideia de formação como
articulação entre experiência e aprendizagem. Para este autor, o percurso
individual de formação decorre num processo global de socialização, onde se
articulam inserção profissional e institucional, contextos socioculturais e
económicos, e em que a história individual e os acontecimentos históricos que
modelam uma sociedade estão em interacção constante.
Gaston Pineau (2004) por sua vez, propõe uma revolução paradigmática
baseada numa dialéctica entre Autoformação e Heteroformação, identificando
esta última como uma educação pelos outros (através de processos
diversificados como a formação escolar, profissional e sociocultural) e
Autoformação, entendida como uma apropriação do poder de formação por
parte dos indivíduos. Desenvolveu também o conceito de Eco formação,
concebido como um processo de autoformação que decorre na ausência dos
outros, que reenvia o sujeito a si mesmo e às coisas do seu habitat físico
elementar e de ‘Co formação’, pela abertura a uma comunicação social mais
62
profunda. No processo de mudança de representações e modos de relação
aparece com particular importância uma problematização sobre as
necessidades de formação, associada ao modelo de resolução de problemas.
Em contracorrente, a formação como processo de desenvolvimento pessoal
tem necessariamente um carácter reflexivo e de apropriação dos recursos em
presença, assumindo o profissional o ‘empowerment ‘pela sua própria
aprendizagem e pelo significado que lhe atribui, na diversidade cada vez maior
de ofertas formativas e de formas de entendimento. E promover a diversidade
significa
“…aceitar a formação como um processo de pesquisa, em que o erro desempenha um papel importante no processo colectivo de aprendizagem”, aceitando igualmente que “a acção educativa não é redutível a ‘receitas’, qualquer que seja o seu grau de elaboração, nem a modelos acabados, universalmente válidos” (Canário, 1994: 67).
Neste sentido, importa aos assistentes sociais, como diz o dito popular “não
deitar fora a criança com a água do banho”, ou seja, apesar da recente
legitimação de um saber conquistado por via académica, não esquecer o
domínio da aprendizagem experiencial que é perspectivada no sentido de
Josso (1989) como uma capacidade para resolver problemas, mas
acompanhada por uma formação teórica e/ou de uma simbolização e a sua
importância como domínio de saber específico da profissão.
No meu percurso profissional aprendi precisamente pela via experiencial o
papel e o valor do erro nos processos individuais e colectivos de
aprendizagem. Pessoa ou equipa que não erra é porque não arrisca, não
inova, não tenta construir soluções à medida dos problemas identificados e
com a participação de quem tem esses mesmos problemas.
A posição de Christine Josso (1991) é a de que, por convenção, os saberes
resultam da experiência e que os saberes socialmente valorizados são
elaborados segundo modalidades socioculturais precisas. Refere a autora que
as experiências são objectivadas a partir do trabalho consciente, e são
descritas em registos de expressão de dimensões diferentes (psicológico,
cultural, sociológico, psicossociológico, político e económico), e a riqueza pode
estar no trabalho feito a partir dos diferentes registos.
63
A transformação do vivido para a experiência implica, segundo Josso (1991)
três variáveis mediadoras: i) a linguagem e as competências culturalmente
adquiridas; ii) os contextos socioculturais nos quais os acontecimentos se
produzem; iii) as diferentes vias de acesso aprendizagens, com grande
diversidade de lógicas individuais e de contextos; ou, “Dito de outra forma, se a
lógica da educação é a de transmitir padrões culturais, a lógica da formação é
a da sua integração e a da sua subordinação negociada” (Josso, 1991: 32).
Esta posição parece-me particularmente interessante para pensar as
dificuldades que alguns assistentes sociais evidenciam, nas (co) relações entre
os contextos muitas vezes «marginais», «deprimidos» e «estigmatizados» onde
actuam e as respectivas aprendizagens – quer as próprias, quer as das
pessoas com quem trabalham, quer ainda as das organizações onde actuam;
para além das tensões que alguns profissionais experimentam entre lógicas
transmissivas de padrão cultural e lógicas de negociação (apesar do
vocabulário corrente entre os profissionais utilizar a «contratualização» como
prática corrente).
A valorização da experiência tem sido ambivalente quer no domínio restrito do
campo dos profissionais de Serviço Social, quer no âmbito, mais global, de
uma concepção educativa que privilegia a aprendizagem do conhecimento
científico tradicional em detrimento da aprendizagem reflectida da experiência.
E ambivalente, porque apesar de ser considerada como um elemento central
na aprendizagem dos adultos, também serve a muitos profissionais para
justificar a protecção do seu campo de intervenção e do valor da «tutoria» que
aceitem fazer para introduzir os novos profissionais no terreno nebuloso do
«conhecimento da realidade», furtando-se ao esforço de explicitar e comunicar
em que consiste esse conhecimento.
Defende-se aqui a possibilidade de dirimir o antagonismo entre a
«experiencialidade» e a «cientificidade» dando contributos para ultrapassar a
dualidade entre considerar o Assistente Social como um técnico/executor ou
um cientista social/artesão. Para situar este debate apoio-me numa distinção já
antiga que Lévi-Strauss (1962) estabelece entre os mapas cognitivos
accionados por técnicos especializados na realização do seu trabalho (que lhes
permitem utilizar novos recursos e instrumentos cognitivos adaptados às
64
finalidades atribuídas à acção) e aqueles que sustentam a acção do artesão,
que se apoia num conjunto de recursos e instrumentos cognitivos, produzidos
ao longo do tempo, cuja integração depende mais do princípio de que eles
poderão servir ‘para alguma coisa’ do que da sua congruência com critérios
de funcionalidade imediata. Por outro lado, era/é frequente ouvir as
pessoas especializadas pelos saberes experienciais dizer «que não sabem
dizer como fazem, nem ensinar o que sabem» o que remetia os sistemas
de aprendizagem «artesanais» para uma formação em exercício, muito
próxima da partilha e observação do trabalho do «mestre-artesão».
No Serviço Social, como em outras profissões sociais academizadas, esta
formação «artesanal» está cada vez mais distante, mantendo-se contudo a
necessidade de promover vivências reflectidas e aprendizagens experienciais,
que os livros, as metodologias e as teorias não podem ‘ensinar’.
Garnier é um dos autores do campo profissional que considera que:
“…o Serviço Social não é uma entidade desligada da profissão, muito pelo contrário, está presente na estrutura semântica, à qual a profissão se deve reportar, retornando ao «métier» para lhe dar sentido, constituindo-se este, como um vector para consolidar a profissão” (1999: 253).
A análise da profissão enquanto «ofício» propõe que a profissão de assistente
social, tenha como objectivo a reafiliação social, em duas vertentes: a
reafiliação identitária (acção individualizada) e a reafiliação contributiva (acção
concertada). Estas duas acções fazem parte de uma mesma estrutura, e
não podem ser trabalhadas uma sem a outra. A primeira diz respeito à
valorização pessoal dos factores do sujeito e a segunda aos aspectos sócio
relacionais nas esferas da família, dos grupos de pertença, da comunidade
e da sociedade em geral.
Em profissões, como a dos assistentes sociais, com vertentes relacional e
simbólica muito fortes, esta questão carece de grande aprofundamento - por
maioria de razão, quando as socializações e os desempenhos profissionais são
realizados em contextos organizacionais, e esses próprios contextos são
simultaneamente promotores de aprendizagens de rotinas, de procedimentos,
de regras e de conteúdos teórico-práticos significativos.
65
Nestes processos a «subordinação negociada» de que nos fala Christine Josso
nem sempre está presente, até porque os profissionais tendem a desvalorizar a
sua própria capacidade negocial assumindo alguns a mesma submissão e
condicionamento à autoridade recebida que gostam de reconhecer nas
populações com quem trabalham.
A socialização e a aprendizagem organizacionais ocorrem quando os
indivíduos de uma organização, agindo a partir das suas representações,
detectam convergências ou desvios entre os resultados esperados e os
resultados obtidos. Quando se constata a existência de desvios, os indivíduos
procuram a sua correcção, formulando novas hipóteses e criando novas
estratégias (Argyris e Schon, 1978). Para que exista aprendizagem
organizacional, estas descobertas têm de ser codificadas nas representações
partilhadas pelos indivíduos, ou nos elementos das “teorias em uso” na
organização. Se esta codificação não ocorrer, os indivíduos terão aprendido,
mas as organizações não o terão feito.
Esta dimensão parece de grande importância, quando a constatação empírica
nos remete para organizações cristalizadas, apesar de nelas intervirem
profissionais qualificados e reflexivos que, em dado tempo e contexto
favorável, promovem intervenções não rotineiras, que introduziram
mudanças significativas mas que não conseguem alterar as “teorias em
uso”. E apresenta-se em consonância com a abordagem da aprendizagem
experiencial atrás referida, que é uma fonte legítima, a partir da qual,
através de uma dinâmica reflexiva, é possível dar forma ao ‘vivido’ e
transformá-lo em conhecimento.
Por outro lado, aguça a curiosidade científica para investigar a perspectiva das
“organizações qualificantes” que se podem constituir como relevantes
contributos, nomeadamente para a democratização do trabalho, a valorização
das suas valências qualificantes, a articulação entre saberes formais e
informais, entre outros (Correia, 1997). Esta perspectiva abre enormes
potencialidades, nomeadamente no que respeita, a um recente campo de
pesquisa que procura entender os saberes adquiridos pelos adultos à margem
dos sistemas formais de educação/formação, em contexto de trabalho, ou em
66
contextos não-formais ou informais, com uma especial atenção ao papel da
experiência reflectida e ao papel do sujeito no ‘controle’ do seu próprio
processo de formação.
“Estes saberes desenvolvem-se numa multiplicidade de situações e de contextos de vida, e obedecem a uma lógica de construção e de difusão distinta daquela que tem sido até muito recentemente a lógica dominante (disciplinar, transmissiva), traduzida no âmbito educativo através de um conjunto de modelos e práticas pedagógicas” (Pires, 2005: 111).
A propósito, não resisti à tentação de mobilizar o já velho marco - o Livro
Branco - para uma apreciação crítica do que parece estar ainda instituído como
norma sócio – política em matéria de educação/formação. O Livro Branco,
lançado pela Comissão Europeia em finais de 1995, faz parte de uma linha de
acção comunitária com vista à análise e definição de linhas orientadoras no
campo da educação e da formação. Este documento procura sintetizar as
principais questões que actualmente se colocam aos sistemas de
educação/formação, e apresenta algumas propostas respeitantes a iniciativas a
desenvolver no contexto comunitário. Por um lado, procura identificar desafios
emergentes no domínio da educação/formação, no contexto europeu e, por
outro, delinear orientações e linhas de acção que contribuam para o
desenvolvimento da qualidade destes sistemas. Como refere a autora,
“Destacando a importância que a educação/formação detém no plano económico, no acesso ao emprego e na manutenção da empregabilidade, no combate ao desemprego e à exclusão social, e na promoção da igualdade de oportunidades, o Livro Branco realça ainda o papel que a educação e a formação desempenham na «identificação, integração, promoção social e realização pessoal» dos cidadãos europeus, procurando conciliar a perspectiva da inserção social, da empregabilidade e da realização pessoal” (Pires, 2005: 77).
Contudo, como também realça esta autora, o discurso que foi amplamente
divulgado e faz parte de um senso comum alargado, encontra-se repleto de
contradições e paradoxos, nomeadamente:
A existência de um «objectivo» na aprendizagem versus uma
aprendizagem, entendida numa perspectiva holística, globalizante, que
remete para a diluição de fronteiras (espácio-temporais), e não se
confina a resultados predeterminados, nem a contextos e instituições
formais. Cabe aqui equacionar, quer o papel não previsto das
67
aprendizagens realizadas em contextos não-formais e informais, quer o
‘lugar’ de quem aprende;
A aprendizagem como «melhoramento dos conhecimentos, aptidões e
competências» versus a perspectiva de que os conhecimentos, as
aptidões e as competências não se melhoram, desenvolvem-se,
constroem-se com o papel activo da pessoa. Na base está uma
diferença essencial, entre considerar a pessoa a partir do seu deficit, ou
através do seu potencial;
O «aprender a aprender» e a «adaptar-se à mudança» é a competência
considerada – chave para a aprendizagem ao longo da vida e para
responder à necessidade dos mercados de trabalho. Contudo, o versus
aqui ainda é mais estrutural: Aprender o quê a para quê? Aprender
como? O que questiona directamente as práticas e os modelos
tradicionais de ensino-aprendizagem desenvolvidos pelos sistemas de
educação/formação (Pires 2005: 96, 98).
As modificações que se têm operado, quer no contexto político e económico
das organizações, quer nos seus processos de gestão, fizeram com que
emergissem novas práticas de formação mais integradas, com maior simbiose
entre as situações de formação e de trabalho, de modo a permitir aquilo que as
teorias das organizações aconselham: “pensar ao mesmo tempo o indivíduo e
a organização”.
Nesta linha advoga-se que a convergência real entre a evolução dos modelos e
referentes teóricos da formação contínua e a evolução dos modos de
organização e administração das instituições, não significa que exista uma
relação instrumental entre formação e organização (formar primeiro, para
mudar depois), mas sim que as pessoas ‘se organizam, formando-se’ e que ‘se
formam, organizando-se’. Neste sentido, as organizações, enquanto
construções sociais, são encaradas como um processo permanente de
formação contínua. E as formações, enquanto contextos de trabalho, são um
processo permanente de desenvolvimento organizacional.
Resta saber se todo este movimento de qualificação dos profissionais de
Serviço Social (ao nível académico e profissional) está a resultar num
movimento de qualificação das práticas e em mudança organizacional, no
sentido de também, as próprias organizações, se tornarem aprendentes.
68
A propósito será de interesse convocar Rui Canário (2000) na abordagem
daquilo que mudou na formação entre os anos 70 e 90 com a passagem do
modelo da qualificação para o modelo da competência, sendo que este autor
remete para uma «autêntica mutação cultural» que permitiu a transição de uma
«visão social e humanista da educação permanente» para uma «visão
económica e realista da produção de competências», dizendo expressamente
que:
“Se o modelo da qualificação, corresponde a um nível preciso de formação, o modelo da competência remete, nos anos 90, para um requisito de empregabilidade. (…) É ao nível da relação com o saber e da relação de poder que se situam as escolhas educativas fundamentais e se justifica falar de inovação e analisar e discutir o ‘como’ e o ‘por quê? ‘. Produzir, por um lado, um acréscimo de pertinência e, por outro, um acréscimo de democracia emergem, hoje, como os eixos finalizantes e estruturantes da produção de inovações na educação e na formação” (Canário, 2000: 45).
O mesmo autor (2006) evidencia o paradoxo entre a inspiração humanista no
movimento da educação permanente na década de 70, sob a égide da
UNESCO, e as políticas e práticas de formação que contrariam essa inspiração
fundadora, assente na produção de indivíduos definidos pelas suas
capacidades de produtividade, de competição e de consumo. Esta situação
paradoxal é polarizada entre uma lógica de pessoa e uma lógica de indivíduo.
Estas lógicas e paradoxos (e provavelmente outros) atravessaram, e
continuarão a atravessar, a formação – inicial e contínua - dos assistentes
sociais. A aprendizagem da profissão de Assistente Social foi, em cada época,
marcada por correntes e ideais-tipo presentes na época e na sociedade, onde
o que parece ser específico (uma história, uma identidade e formas de acção
colectiva) é exactamente a construção colectiva de regras do jogo onde um
grupo profissional se reconhece para além das divergências ou convergências
face aos interesses imediatos.
No ideal – tipo da «sociedade pós-industrial» proposta por Daniel Bell (1976) e
convocada por Dominique Schnapper (2000), o conceito de pós-industrialismo
abrange cinco dimensões:
a «economia» que passa da produção de bens a uma economia de serviço;
69
a «distribuição das profissões» ou «estrutura social» onde ele consagra a
«proeminência da classe de técnicos e similares»;
o «princípio axial da organização social» que se define pela centralidade do
saber técnico para produzir inovação e inspirar a comunidade;
as «perspectivas de futuro» que se caracterizam pelo «controlo do
desenvolvimento técnico e o controlo normativo da tecnologia»;
e o «processo de decisão» que conduz a «uma nova ‘tecnologia’ do
intelecto».
Todas estas dimensões estão ligadas a um traço essencial que me importa
evidenciar constituído pela «transformação da natureza e da difusão do saber»
num corpo autónomo de saber.
No entendimento de que o conhecimento é um recurso fundamental e, como
diz Isabel Guerra, é em torno da sua apropriação e do seu controlo, que são
desencadeados conflitos
«…porque ele é condição para revelar a natureza real das relações sociais a nível simbólico. Sair da ideologia e produzir conhecimento, ter capacidade de análise e de reflexão, ter capacidade de comunicação e de auto-reflexividade tornam-se recursos-chave para a acção colectiva» (Guerra, 2006:50).
Esta «acção colectiva» é algo que, na proposta de Neveu (1996) é entendida
como uma «acção comum tendo como objectivo atingir fins partilhados» e é um
objectivo de intervenção possível para a profissão de Assistente Social explorar
uma das suas vias de legitimidade e construção identitária.
70
1.4. A FORMAÇÃO CONTÍNUA E A PRODUÇÃO DE
CONHECIMENTO
Os domínios teóricos abordados ao longo deste capítulo revelaram-se
fundamentais para enquadrar teoricamente o objecto de estudo e parte dos
princípios e pressupostos orientadores da pesquisa.
Tive necessidade de balizar alguns termos e conceitos do campo semântico
que mobilizei, quer para mapear campos conceptuais complexos, quer para
explicitar o que pretendia significar quando utilizo determinado termo ou
conceito. Começando pelo termo «educação de adultos», exemplarmente
polissémico e multireferencial, é possível identificar diferenças substanciais nas
suas representações e práticas, e esta constatação desafia a construção de um
caminho de desocultação de perspectivas e de controvérsias que facilitem
entendimentos plurais dos diferentes discursos e que interrogam as minhas
convicções e a minha prática.
Primeiro, «Educação de Adultos» ou «Formação de Adultos»?
A resposta a esta questão não é simples e alimenta-se de uma vasta produção
teórica. Mas importa-me aqui apenas iluminar estes conceitos que no senso
comum são conotados respectivamente com «alfabetização» e «formação
profissional», no entendimento de que sendo a «flutuação terminológica
relativamente frequente na literatura científica» e, embora a distinção entre
«formação» e «educação» remeta para tradições e campos sociais distintos, na
prática conduz a uma utilização frequente destes vocábulos como sinónimos
(Canário, 1999). No presente trabalho, utilizo «Educação de Adultos» no seu
sentido mais lato, como sendo a totalidade dos processos educativos que estão
presentes ao longo da vida, incluindo assim, todas as modalidades educativas.
Segundo, fazer este percurso a pretexto de desbravar caminhos no campo das
Ciências da Educação/Formação de Adultos foi também revisitar a minha
formação inicial em Serviço Social e re-olhar os seus contributos para o meu
quadro de referência, para a minha fomação contínua e para a minha prática.
No percurso feito por diferentes abordagens, coloco o enfoque em poder
pensar a formação (como refere Abílio Amiguinho) como uma reflexão sobre o
modo como os indivíduos se formam; sobre a forma como os adultos se
71
apropriam de um determinado tempo e espaço educativos e o integram no seu
percurso de formação; sobre aquilo que é de facto significativo e formador na
vida de cada um; sobre a maneira como as experiências e os saberes
profissionais, sociais e culturais podem ser mobilizados no processo global de
formação.
“…em vez de formar preferem falar em formar-se ou educar-se, numa clara alusão a que, em qualquer caso, a formação pertence sempre àqueles que se formam, através de um processo reflexivo sobre si próprio, sobre as situações, os acontecimentos e as ideias.” (Amiguinho, 1992:34).
As Abordagens Pragmatista, Humanista e Marxista - utilizando a categorização
de Finger e Assún (2003), com influências e desenvolvimentos diferentes entre
si e ‘inter’ si, têm influenciado não só os autores e interventores subsequentes
das Ciências da Educação, como constituem ainda hoje referentes do
pensamento e da formação dos assistentes sociais. Nomeadamente:
A «Tradição pragmatista americana»
Incontornável, John Dewey (1859-1952), na sua perspectiva filosófica e
antropológica, tido como o pai da Educação de Adultos americana, atribui à
Educação uma função central no processo evolutivo da espécie humana.
Na sua caracterização da espécie humana, Dewey evidencia três capacidades
distintivas: a linguagem, a construção de ferramentas (e a possibilidade de,
com elas, transformar o mundo) e a plasticidade (um dos contributos mais
originais deste autor que entende por «plasticidade» a capacidade de aprender
com a experiência, ou seja, com os erros e construir sobre essa aprendizagem.
A aprendizagem pela experiência é a encarnação do método científico).
Nesta concepção a ciência é «a plasticidade aplicada» (Finger e Asún:
2003:37), onde a aprendizagem, a educação e a ciência apenas fazem sentido
como parte do processo de humanização, crescimento e desenvolvimento.
A teoria da educação de Dewey divide a educação em 4 funções: a educação
como preparação, como potencial, como acção e como oportunidade de
participação na mudança através do «aprender-fazendo». A partir de Dewey e,
sobretudo de Eduard Lindeman (1895-1953), a tradição pragmatista americana
da educação de adultos tomou duas vias diferentes: a aprendizagem
experiencial de Kurt Lewin, David Kolb (diagnosticar ou facilitar o ciclo de
72
aprendizagem), Chris Argyris e Donald Schon (aprendizagem em dupla-volta)
entendida sobretudo como um mecanismo de diagnóstico e de resolução de
problemas e, o interaccionismo simbólico onde a resolução de problemas é
aplicada ao auto desenvolvimento da identidade, representado por autores
como Peter Jarvis e Jack Mezirow, entre outros.
Esta perspectiva remonta a Chicago, no início do século XX, onde a famosa
«Escola de Chicago» fazia confluir um conjunto de trabalhadores sociais e
cientistas de várias ciências, com preocupações sociais e políticas, para quem
os problemas humanos (as questões da delinquência, do desvio social, a
pobreza urbana, o desemprego, etc.) ganhariam com uma nova metodologia,
simultaneamente participativa e biográfica. Nesta última abordagem, o papel da
educação de adultos é o de facilitar a «resolução simbólica de problemas»
entre o ‘self’ e o ambiente, ambos simbolicamente construídos.
Nos autores de concepções mais alargadas, como Mezirow, este processo é,
não só de auto desenvolvimento, mas também de mudança social, num sentido
mais compatível com as «perspectivas inclusivas, diferenciadas, permeáveis e
integradas» de aprendentes adultos criticamente reflexivos.
Apesar do fascínio por estes autores e por estas vias, nas suas complexidades
e complementaridades, não posso deixar de reconhecer pertinência à crítica
feita por Finger e Assún à educação de adultos pragmatista, ao evidenciar que
não são conceptualizadas as instituições e estruturas sociais e não é
problematizado o desenvolvimento e o crescimento social.
A escola do Humanismo.
Esta «corrente» teve origem na Psicologia Humanista de Abraham Maslow e
em Carl Rogers. Indo à sua génese é importante situar que a Psicologia
Humanista era considerada uma «terceira via» entre a Abordagem Behavorista
(Watson, Pavlov e Skinner) e a Abordagem Psicanalítica (Freud, Jung e
Erikson). Enquanto a perspectiva Behavorista colocava o enfoque no
comportamento observável e mensurável que considerava a aprendizagem
como uma questão de condicionamento e reforço, por meio do estímulo-
resposta, a Abordagem Psicanalítica focalizava-se nas componentes
subconscientes e irracionais do comportamento: mecanismos de defesa,
necessidades e transferência. Por seu lado, de Carl Rogers salientam-se os
73
conceitos de «centralidade da Pessoa» e de «não-directividade», entre muitos
outros contributos. Esta «terceira via» que pretendia respeitar o controlo de
cada um sobre o seu destino, teve a sua transposição para o campo da
educação de adultos com Malcom Knowles (1913-1997) assente em três
conceitos-chave:
- a «andragogia», entendida como «arte e ciência de ajudar os outros a
aprender», e que Knowles considerava como a antítese da pedagogia;
- a «facilitação» entendida, nesta perspectiva, como o processo de fomentar,
através de um clima e ambiente favoráveis, o crescimento, o desenvolvimento
e a aprendizagem auto-dirigida, no sentido de Rogers e Dewey, ajudando a
pessoa a controlar esse processo;
- e a «aprendizagem auto dirigida» que é um conceito-chave de duplo
significado que, por um lado, contempla a passagem do indivíduo da
dependência para a maturação, para a autonomia e para a independência
(Rogers) e, por outro, é um processo que conduz a um maior controlo sobre o
ambiente em que se vive (Dewey).
Knowles combina ambos os significados no conceito de «crescimento» que
articula «auto-realização» com «acumulação de experiências», as quais são
tidas como recurso para a aprendizagem. O seu quadro de referência é
fundamentalmente terapêutico, com o fim último de ajudar o indivíduo a
«crescer». Este processo de desenvolvimento e crescimento pessoal é
caracterizado por uma contínua incongruência entre a experiência (por
natureza, existencial) e o seu significado, para a própria pessoa. A teoria
humanista identifica, assim, o carácter único da experiência pessoal, centrando
a aprendizagem no aprendente, na ajuda positiva, na auto-aprendizagem, na
auto-realização e no desenvolvimento pessoal. A educação de adultos
humanista propõe-se «facilitar o processo de aprendizagem», procurando criar
as condições óptimas para o desenvolvimento humano. A promoção das
condições externas do ambiente e o importante papel do facilitador visam
libertar o indivíduo das suas resistências à mudança, ao desenvolvimento e ao
crescimento.
A crítica a esta abordagem acentua a sua «ingenuidade sociológica» ao
presumir que «indivíduos auto-realizados, conduzem automaticamente a uma
sociedade melhor, isto é, a um melhor ambiente que, por sua vez, facilita a
74
auto-realização dos indivíduos» (Finger e Assún: 2003, p.70). Os mesmos
autores identificam o risco de continuar a promover o individualismo e ainda
consideram que é uma abordagem ideológica, «a-histórica, a-estrutural, a-
política e não institucional».
A escola do Marxismo
Na sequência de duas gerações de autores da Escola de Frankfurt, foi a Teoria
Crítica de Habermas que foi transposta nos anos 70 e 80 para vários campos,
entre eles a «pedagogia crítica» e, mais tarde nos finais da década de 80 e 90,
a «educação crítica de adultos». Estas abordagens, essencialmente teóricas,
constituem discursos sobre a importância e a necessidade de “tornar-se
crítico”. A Teoria Crítica, a Pedagogia da Libertação de Paulo Freire e a
Investigação-Acção Participativa são provavelmente os maiores contributos na
área da Educação.
Do ponto de vista da prática, é o filósofo e educador brasileiro Paulo Freire que
se distingue, desafiando-nos a “reinventar” o mundo com a sua «pedagogia da
libertação», onde a formação pertence sempre àquele que se forma, embora
ninguém se eduque sozinho. A conscientização e a prática crítica são os
processos pelos quais se pode atingir a libertação, sendo fundamental a
dimensão colectiva da aprendizagem: é colectivamente que as pessoas
resolvem os seus problemas e transformam as suas condições sociopolíticas.
Paulo Freire, com raízes intelectuais no humanismo católico, no Marxismo, na
filosofia alemã e na teoria do desenvolvimento e, no contexto do movimento
intelectual da América Latina, desenvolve a Teologia da Libertação,
concebendo a pedagogia como a “acção cultural para a libertação, um
processo através do qual se pode extrair a consciência opressora que «vive»
na consciência oprimida” (Freire, 1985: 85).
O contacto com a Fenomenologia, na tradição alemã do Existencialismo, fez
Freire aperfeiçoar o seu pensamento sobre a linguagem. A linguagem e as
condições de vida, ambas manipuladas e manipuladoras, levam à
interiorização da opressão e à identificação dos oprimidos com os opressores.
O formador deixa de ser neutro e passa a ser um animador empenhado na
causa das pessoas com quem trabalha.
75
Na crítica à pedagogia da libertação sobressaem os argumentos de que a
maior fragilidade conceptual advém da mistura entre a epistemologia e a
política e de que Freire se mantém acrítico em relação às instituições e ao
processo global de desenvolvimento.
A Investigação-Acção Participativa (IAP) é outra das abordagens práticas da
mudança social através da aprendizagem que se desenvolveu nos finais de 70
e década de 80 do século passado. Convém destacar que a IAP se distingue
da Investigação-Acção, sobretudo pelos respectivos contextos sociopolíticos,
respectivamente defensores de modelos de desenvolvimento diferentes e como
crítica epistemológica da prática corrente das ciências sociais que se
desenvolveu na Alemanha e em França na década de 70 (com especial
enfoque nas questões epistemológicas e metodológicas ao «estilo do Norte»,
de que Alan Touraine foi um dos autores eventualmente mais difundido entre
nós). O objectivo da IAP é o desenvolvimento auto-sustentado ou alternativo,
com a libertação da dependência do Norte e a proposta de recuperar o
conhecimento endógeno para fazer dele o suporte dos esforços de
desenvolvimento auto-sustentado. A IAP é particularmente crítica do
«desenvolvimento», tem uma dimensão epistemológica, está muito
contextualizada e reflecte sobre as ferramentas e a tecnologia, situando-as no
contexto social.
No entanto, a crítica a esta abordagem evidencia algumas fragilidades, como
sejam a subsistência da crença no processo de desenvolvimento, o facto de
não situar os problemas do desenvolvimento na economia global e a ideia de
que o pensamento endógeno pode ser recuperado e activado.
A interrogação sobre «como se formam os adultos?» foi o mote para tentar
identificar e nomear os processos de aprendizagem, bem como os significados
que os assistentes sociais lhe atribuem. De outro lado da questão não se pode
esquecer, segundo Rui Canário que existe um entendimento instrumental da
Educação que se objectiva numa visão dos processos formativos e num
‘mercado de formação’: “… a subordinação da educação à lógica mercantil,
induz a que a própria educação se organize adoptando a racionalidade
económica do mercado” (Canário, 1999:90).
76
Mas em paralelo, a Educação de Adultos, como o Serviço Social, prosseguem
uma agenda de ‘responsabilidade social’, através da qual procuram contribuir
para humanizar o desenvolvimento. Só que o próprio processo de
desenvolvimento «tornou-se tão distorcido que já não há praticamente nada a
humanizar» (Finger e Asún, 2003:95).
Ainda segundo os mesmos autores, a referência teórica e prática da Educação
de Adultos ao «paradigma do desenvolvimento» colide com quatro tendências
actuais que a afastam deste referencial:
i) a «globalização ou o «turbocapitalismo», que está a destruir os próprios
alicerces do desenvolvimento, substituindo-o pelo comércio e pela
especulação financeira;
ii) o pós-modernismo, que está a apagar os próprios fundamentos culturais
do desenvolvimento e a substituir todo o projecto de modernidade pelo
individualismo;
iii) a erosão do Estado e da sua política tradicional, o que representa o fim
da unidade e do actor mais relevante para o desenvolvimento;
iv) a crise ecológica que conduz o ideal de desenvolvimento para um beco
sem saída».
Nos últimos tempos o cruzamento e agravamento destas dimensões, entre
outras, generalizou esta metáfora de «beco sem saída» para o «paradigma do
desenvolvimento» (e dentro dele para o lugar do trabalho, da educação e da
acção social) e tem vindo a instalar radicalismos e/ou alienações, que
dificilmente contribuirão para encontrar alternativas societárias.
Em termos do local e da função do conhecimento no processo educativo é
possível identificar em muitos autores uma tensão entre «educar para as
competências» e «educar para a formação»; assumindo que o primeiro
processo corresponderia à pressão exercida pelas exigências do mercado de
trabalho reconfigurado onde, em teoria, apenas os indivíduos competentes têm
lugar e o segundo corresponde à pressão resultante da exigência da educação
como uma mistura ambígua de emancipação individual e local.
Contudo, autores como Stoer e Magalhães (2005) têm uma posição menos
dicotómica que desvaloriza a clivagem do conhecimento como formação ou
como informação, passando a recentrar sobretudo num campo de batalha
ideológico a respeito do seu potencial de intervenção sociopolítica. Dizem eles:
77
“A fragilidade epistemológica do conhecimento não dilui o seu carácter formativo e ao mesmo tempo o informacionismo, em si mesmo, não esvazia o conhecimento do seu potencial de intervenção política e social. A questão que surge como central não é tanto a dos termos «informação» e «conhecimento», mas a sua relação com os contextos de agência social” (Stoer e Magalhães, 2005:58).
Se é verdade que a necessidade de Educação permanente se tornou hoje
parte integrante da vida, como verificamos pela banalização de expressões
como «sociedade da aprendizagem» (União Europeia, 1995) e «Sociedade do
Conhecimento» (Comissão da União Europeia, 1997), também será importante
pontuar que a Educação perdeu o seu projecto de emancipação e mudança
social ao ser amplamente privilegiada a vertente instrumental que, em teoria,
as pessoas podem usar na sua luta competitiva por melhores oportunidades de
vida económicas, sociais e culturais.
Consciente destas ambiguidades e das suas repercussões na formação inicial
e contínua dos assistentes sociais, destacam-se enormes desafios, seja para o
aumento da produção de conhecimento próprio do Serviço Social, a partir da
sua experiência e reflexividade interna, seja para «recuperar» ou realizar
projectos de emancipação e mudança social – necessariamente diferentes de
outros que já defendeu e abandonou em épocas e contextos precisos, mas
ainda assim comprometidos com abordagens novas ao processo de
conhecimento e às práticas.
78
CAPÍTULO 2 - A (DES) CONSTRUÇÃO PROFISSIONAL DO
SERVIÇO SOCIAL
Pretendo com este capítulo revisitar o processo histórico da criação da
profissão, abordando alguns contornos sobre um puzzle de conceptualizações
que podem servir à análise da profissionalização do Serviço Social e à sua
desconstrução e construção profissional.
Neste processo destaco duas ideias que me deram contribuições decisivas: a
ideia de construção social da «realidade» e da mudança constante a que está
sujeita (Berger e Luckmann, 1971), e a ideia de que o Serviço Social é
indissociável da interacção entre o profissional, o (s) cidadão (aõs) com quem
trabalha e o (s) contexto (s) onde actua.
Na primeira contribuição os autores destacam o entendimento que permite uma
co-construção da «realidade», entre muitas outras diferentes e possíveis, mas
também a noção de que existem «visões partilhadas» e que são essas visões
partilhadas que dão fundamento às convenções sociais e à sua respectiva
institucionalização.
Uma «construção social» é, nesta perspectiva, uma visão acordada (pelo
menos em parte) do mundo que é aceite dentro de um grupo social como uma
«realidade». Sendo este um processo circular entre indivíduos e sociedade, em
que os indivíduos contribuem para a criação do significado social dentro das
estruturas sociais das sociedades, e as sociedades, através da participação
dos indivíduos nas suas estruturas, criam as convenções, criando e recriando
essas estruturas.
Na segunda contribuição, a tese de construção social que aqui pretendo
explorar apresenta uma relação reflexiva e com influências recíprocas entre os
Assistentes Sociais, os seus «clientes» e os respectivos contextos. O que
afasta desde logo a hipótese da universalidade para os reconhecimentos da
natureza desta profissão e coloca a possibilidade de identificar e caracterizar
79
uma variedade de actividades que tem características comuns na maioria das
suas construções sociais.
Este foi também um processo de tomada de consciência do pouco que sabia
sobre a percurso da profissão, sobre as ligações aos respectivos contextos
sociais e políticos e sobre as produções mais actuais, quer da investigação
portuguesa, quer da produção teórica internacional. Mas foi essa tomada de
consciência que me fundamentou a necessidade de estabelecer uma espécie
de genealogia que tal como nas famílias, permite a cada elemento saber ‘quem
é’ e ‘de onde veio’ através da apropriação da história colectiva e das ‘histórias’
que herdou e/ou das quais é protagonista, directa ou indirectamente, e que
também na profissão permite uma apropriação singular e viva dessa história
colectiva. Esta apropriação singular não tem nada de linear como por vezes, a
estrutura de um trabalho académico, pode fazer crer ou aconselhar.
Do ponto de vista da estrutura, o capítulo subdivide-se em dois pontos: no
primeiro situam-se as heranças e as dinâmicas do seu percurso histórico,
tentando nomear alguns marcos que fazem parte dessa trajectória. Entre eles,
torna-se inevitável reflectir sobre as construções das ideias de Capitalismo e de
Pobreza, do «Bem-estar social» nos Estados-providência, do «social», dos
Movimentos de reconceptualização e da Globalização na medida em que a
profissão é influenciada e influencia as alterações societárias e os contextos
históricos. No segundo, proponho-me explicitar a profissão e reflectir sobre a
sua existência e sobrevivência, equacionando significados de «ser profissional»
num quadro de desprofissionalização crescente e «falência» do Estado Social
e tentando (re)visitar os velhos e novos problemas em conjugação com as
ambiguidades de uma profissão que se tem adaptado.
Defendo a necessidade de explicitar a profissão, enquanto exercício reflexivo e
de apropriação do conhecimento dos e pelos profissionais, mas também
enquanto forma de activismo social, no sentido de tomar parte dos processos
políticos de mudança em que participam e aponto a transdisciplinaridade como
uma das formas possíveis de superação da «colonização disciplinar» e da
«neutralidade» que têm marcado o Serviço Social.
80
2.1. HERANÇAS E DINÂMICAS DE UM PERCURSO HISTÓRICO
Os Assistentes Sociais constituem um grupo cuja prática organizada teve lugar
em finais do século XIX nos Estados Unidos e na Holanda (1899), na primeira
década do século XX na Inglaterra e na Alemanha (1911) e, nos anos 30, em
França e Portugal (Costa e Silva, 2003).
Entre outros profissionais fazem parte das “profissões sociais” que aparecem
para regular as políticas sociais e o acesso aos serviços e às novas medidas
de política, dando resposta à situação das classes trabalhadoras e
contribuindo, em simultâneo, para atenuar as tensões sociais (Martins, 1999).
Este grupo (onde se incluíam para além dos assistentes sociais, as
enfermeiras, educadoras e animadores especializados, entre outros) vai-se
constituindo como um grupo profissional heterogéneo que se configura, a partir
dos anos 70 do século passado, no quadro da designação mais genérica de
“trabalhadores sociais”. Contudo, existe uma mobilização reivindicativa por
parte dos assistentes sociais que, desde cedo, procuraram manter-se como um
grupo profissional específico e para o qual terá contribuído o contexto de acção
nas instituições criadas pelo Estado Providência.
Apesar da institucionalização e profissionalização da «relação de ajuda» ou do
«cuidar» (conforme se privilegiem as influências francófonas ou anglo-
saxónicas) e da legitimação da actividade como profissão, persistem
dificuldades sobre a sua construção profissional e identitária, em especial
quanto aos elementos sociais da sua prática.
A designação de «Serviço Social Clássico» a que alguns autores se referem
para situar a sua corrente mais tradicional está fundeada sobretudo na
literatura norte-americana de Serviço Social (caracterizada pelo empirismo e
que procura explicar o comportamento dos indivíduos através dos modelos
mecânicos e organicistas de John Dewey) e aparece associada a termos como
‘igualdade’, ‘democracia’, ’patologia’, ‘função/disfunção’ e ‘culpa’, com uma
visão dos problemas sociais centrada na inadaptação dos indivíduos à
sociedade.
81
O modo de actuação profissional tradicional dominante, ao priorizar a
casuística, desvalorizou as forças políticas e sociais nas quais se desenvolvia a
vida dos cidadãos e contribuiu para camuflar os problemas colectivos sofridos
por aqueles que estavam oprimidos e viviam na pobreza, sendo vulgarmente
identificado com modelos de actuação de vertente caritativa e assistencialista.
Na sua fase mais «tecnológica» o discurso tornou-se menos moralista e
doutrinário e mais asséptico, perante a emergência de novos métodos de
organização da política social, não deixando de ser associado a um mecanismo
de regulação social do Estado, cujas funções passam pela integração do
indivíduo na sociedade e pela reprodução da ordem social vigente.
A uma primeira concepção do Serviço Social de Casos (com inspiração
freudiana e conotada com o liberalismo económico), sucedem-se o Serviço
Social de Grupos (que surge como meio de controlar os problemas de
‘desadaptação’ manifestados pelos mutilados da 1ª Grande Guerra e os
desempregados da crise 29-30) e de Comunidade - que integrava a vertente de
organização e desenvolvimento de comunidades - de que se destaca a
publicação em 1952, por Murray Ross, nos E.U. A. , de um dos livros clássicos
desta concepção «Organização da Comunidade – Teoria e Prática».
A ampliação e diversificação das formas de intervenção em Serviço Social,
com uma estrutura tripartida dos métodos de Serviço Social Clássico que se
manteve até aos anos 60 do século XX, foram constituindo formas de dar
resposta aos problemas sociais que marcaram cada época, de acordo com as
teorias e as ideologias em voga.
“Na área da Segurança Social, a dicotomia entre seguro social e assistência tem contribuído para a manutenção da acção social enquanto área de «não direitos». Esta dicotomia persistiu como uma herança do modelo corporativo, apesar da tentativa de ultrapassagem em 1974, quando a assistência teve de mudar de nome para acção social, dada a carga negativa que possuía. É também esta dicotomia que tem alimentado a ideia de que só as prestações contributivas são direitos legalmente exigíveis” (Santos e Ferreira, 2002:191).
Generalizando, arriscaria a dizer que o papel das políticas sociais no quadro de
um “quase-Estado Providência” em Portugal, tem sido o de uma resposta
remediativa aos desequilíbrios e que não se tem mostrado capaz de garantir
uma sustentada progressão na luta contra a pobreza. Como defende Bruto da
82
Costa (2008), para diminuir a pobreza é preciso actuar nos mecanismos que a
produzem e esses não estão ao alcance das políticas sociais.
Sobre a génese da profissão, coexistem concepções que consideram a
profissão como uma decorrência necessária da racionalização e organização
da filantropia e da assistência social; outras, que defendem que o diferencial
entre as actividades caritativas e o Serviço Social estaria localizado no sistema
de saber, no estatuto teórico da profissão e na sua fase técnico-instrumental e,
outras ainda, que defendem que a profissão nasce no interior de um projecto
reformista conservador e localiza-se nos pedidos históricos e sociais,
comprometidos com a manutenção da ordem social. Mas nesta diversidade é
central a consideração de que a «questão social» do século XIX foi o elemento
propulsor do Serviço Social, embora coexistam diferentes lógicas que podem
ajudar a compreender melhor as memórias desta trajectória e que tornam
possível interrogar o significado da tradição ao nível da sua ordem prática e
conceptual, nomeadamente com as tensões existentes entre abordagens que
privilegiam diferentes aspectos como as de Marilda Iamamoto (1992) e de
Gustavo Parra (2001):
- Iamamoto defende que o Serviço Social é um produto da cultura moderna. Na
sua perspectiva, a construção social da profissão assentou em compromissos
estabelecidos com o filantropismo, com o feminismo burguês e com os
movimentos de renovação do papel das organizações religiosas, num processo
de flexibilização da estrutura política e identitária defendida pelo Iluminismo;
- Parra defende a tese de que o Serviço Social surgiu como uma força anti-
modernista e identifica três matrizes de análise: 1) um teor doutrinário -
construído entre as preocupações humanistas e o compromisso com as ordens
sociais preexistentes; 2) uma base racionalista e laica - com fortes influências
do positivismo e empenhado em criar respostas para descomprimir os
antagonismos sociais, o que reforça um conservadorismo social que legitima o
individualismo; 3) e uma raiz filosófica – que reflecte, entre outras, a influência
da filosofia de Habermas, traduzida no papel de mediador do assistente social
na relação entre a assistência social como dever do Estado e os direitos
humanos.
83
Apesar das diferenças de enfoque, parece consensual o facto de se sobrepor a
questão relacionada com a sócio-espacialidade dos problemas sociais, em
relação a uma reflexão sobre os agentes de produção do bem-estar e de
regulação social, quer na literatura de outras áreas disciplinares, quer na
própria produção teórica de Serviço Social. Esta lógica estende-se também às
representações sociais e colectivas de bem-estar, dissociando-as dos
fenómenos de vulnerabilidade, de invalidação e de desafiliação social (Castel,
2003). No entanto, sendo o campo profissional dos assistentes sociais
atravessado por paradoxos, controvérsias e alguma constância entre um
humanismo-cristão e uma «crítica anticapitalista romântica», será cada vez
mais importante alimentar a reflexão quer sobre as narrativas históricas, quer
sobre os fins e meios utilizados, bem como as suas implicações, tanto para a
sociedade como para o corpo profissional.
Falar dos movimentos da história do Serviço Social, ainda que de forma
intermitente e parcelar, passa por tentar referenciar alguns conceitos (dos
muitos possíveis e importantes) que fazem parte do referencial da acção de
uma profissão. Assumindo, como já anteriormente referi, que o seu campo
profissional tem contribuído para a manutenção da ordem social e
desempenhado um papel na reprodução social, mas assumindo também que
ele é sobre determinado pela aplicação de medidas políticas, exercidas no
campo institucional que o limitam, regulam e condicionam.
Fazer uma narrativa da história sob determinada perspectiva, sem ter a
pretensão de que exista «uma» única história, implica sempre uma maneira
muito particular de seleccionar informação e pontuar uns aspectos em
detrimento de outros.
Recorda-se que a palavra «narrar» remete para o verbo latino «narrare» que
significa «expor, contar, relatar» e possui a característica de pressupor o outro
a quem se expõe, conta ou relata – o que é uma tónica importante no trabalho
desenvolvido que tem a veleidade de pressupor os diferentes «outros» a quem
se dirige e, muito em especial, os assistentes sociais. A narrativa aqui realizada
pretende situar o património genético desta profissão no quadro das relações
desenvolvidas entre o Estado, a Economia e a Cultura e desconstruir alguns
84
consensos estabelecidos sobre a sua capacidade de gerir os aspectos
simbólicos do Serviço Social e os riscos de desagregação social.
Nesta sequência, sublinho apenas a possibilidade de que estes diferentes
«raciocínios» e/ou «argumentos» não se excluam, numa lógica de «isto» ou
«aquilo» em sequências temporais e espaciais mas que se articulem como
diferentes «aspectos» do leque de entendimentos que se têm produzido sobre
a profissão, muitos deles em coexistência nas mesmas épocas e contextos.
Neste contexto e porque a formação em Terapia Familiar Sistémica foi muito
significante e inspiradora para mim, não resisti à tentação de transcrever parte
da deliciosa parábola sobre o seu nascimento e primeira infância, com a qual
Salvador Minuchin introduz a obra de Celia Falicov sobre as transições
familiares (citada em Relvas, 1999:19,20).
“A Terapia Familiar nasceu nos finais da década de 1950.É claro que não surgiu já completa do cérebro de Zeus. Não! Como todo o nascimento humano foi produto da união de duas famílias. Famílias muito distintas, na verdade: diferiam geograficamente, assim como nas suas tradições, rituais, linguagens, mitos e estilos cognitivos. Um delas – a materna? – tinha raízes no Nordeste. Era uma família numerosa com muitas tias, tios e primas, quase todos eles vinculados ao meio universitário e, indubitavelmente, ao establishment. (…) As crenças desta família constituíam uma continuação dos sistemas de crença psicodinâmicos, é claro que com modificações, conflitos e desafios. Mas o diálogo e a sua linhagem não davam lugar a dúvidas: a influência do passado sobre o presente; a importância de dominar certas experiências em determinadas etapas para alcançar um domínio conseguido e harmonioso das seguintes… Poder-se-ia dizer que os conceitos evolutivos influenciavam o pensamento e crenças de todos os seus membros, por intermédio de Freud, Sullivan, Erickson ou mesmo Piaget, tios-avós cujos retratos se podiam ver ainda nos seus gabinetes. Este ramo da família acreditava, de resto, na importância das emoções, dos processos inconscientes ou involuntários e em acontecimentos cataclísticos (…). Às vezes, todas estas crenças misturavam-se de formas estranhas e desconcertantes. (…) Era certo sentirem-se esmagadas por todas estas crenças e indagações minuciosas, e estavam dispostos a acolher novas ideias, novas linguagens e novos mitos. Na realidade, iniciaram a sua própria busca, mas os velhos sistemas de crença permaneciam ali, submersos mas influentes, umas vezes apareciam à luz do dia e, outras vezes, conservavam-se como parte da bagagem guardada na despensa. A família da costa Oeste era diferente. Era constituída por rebeldes e revolucionários. Antes de mais rejeitavam a sua linhagem e declaravam ter nascido já completos de ventre de Bertanlanffy, Weiner, Bertrand Russell… Seleccionaram para pais linguistas, teóricos da comunicação, místicos e filósofos, enquanto apedrejavam psicólogos e psiquiatras antiquados e queimavam os seus templos como castigo pelos seus velhos pecados. O primeiro a incorporar-se por eleição absoluta foi Bateson, o avô e líder do bando de jovens turcos; com ele vieram os outros membros da família
85
mais chegada: Jay Haley, Weakland, Jackson, Virginia Satir. Outros se lhes juntaram, Watzlawick, Fish… Tinham a vantagem de viver todos juntos num grande castelo em Palo Alto. A partir daí empreenderam o seu bem sucedido ataque contra a verdade estabelecida, proclamaram a relatividade de toda a verdade e iniciaram a construção de um novo sistema de crenças que teria a vantagem de não estar enraizado em questões sociais. (…) Assim nasceu a Terapia Familiar. No momento do seu nascimento, os membros de ambas as famílias sorriram – como fazem todas as famílias nessas ocasiões – e formularam votos de que a recém-nascida fosse um motivo de orgulho para eles. É claro que, quando nasce o primeiro neto, sempre há rivalidades e competição entre famílias. E Jay Haley convidou Milton para o baptismo; era um convidado bastante estranho, que pertencia a ambas as famílias sem, no entanto, pertencer a nenhuma. (…) A Terapia Familiar mamou de ambos os peitos e cresceu dividida. À medida que se foi desenvolvendo, coligou-se por vezes com a família da costa Oeste e outras com a da costa Nordeste, como costumam fazer as crianças. Com cada coligação, adquiria maior competência nalguns campos e, em igual proporção, tornava-se mais incompetente noutros. Além disso, começou a conhecer e a diferenciar tios e tias e descobriu que esse grupo, que ao princípio lhe havia parecido uma família homogénea, era na realidade um conglomerado, um bando alegre e turbulento de parentes estreitamente unidos e, algumas vezes, renitentes nas suas opiniões. (…) Em ambos os ramos abundam alianças, coligações e paradoxos… como em qualquer família “ (Minuchin, in Falicov, 1988: IX-X).
Esta longa citação a propósito da Terapia Familiar, com todas as diferenças de
conteúdo que tem com o Serviço Social parece-me uma narrativa interessante
e uma forma possível de (re) olhar esta profissão, com as suas heranças
particulares e as dinâmicas do seu processo histórico, no suposto que sem a
integração crítica do passado não é possível equacionar futuro (s).
A INSTITUCIONALIZAÇÃO E A PROFISSIONALIZAÇÃO
O processo de institucionalização da formação escolar em Serviço Social
desenvolveu-se no tempo e no espaço, apesar das singularidades de cada
conjuntura e das diferentes expressões que materializaram os vários aspectos
simbólicos de que se rodeou. O fenómeno de institucionalização de escolas de
Serviço Social tem início quase ao mesmo tempo em realidades sócio-
gegráficas muito diferentes, embora um marco relevante seja colocado em
1898, com a abertura da Escola de Filantropia Aplicada, por Mary Richmond,
nos EUA.
86
A profissionalização da actividade de «ajuda social» exercida até então no
âmbito do voluntariado social, surge “como forma de concertação dos
multifacetados interesses ideológicos, sociais e científicos, e resulta num
envolvimento da sociedade civil e da comunidade intelectual na reinvenção do
sistema de regulação social” (Mouro, 2001:29). A institucionalização das
primeiras escolas de formação do voluntariado já existente acontece em
Londres, em 1890 e nos EUA, em 1898, num contexto de mudança de
paradigma inerente à revolução industrial e ao desenvolvimento do capitalismo.
No âmbito de uma (então) desejada síntese entre a moral cristã e os valores
burgueses, põe-se em evidência um certo compromisso social entre
movimentos filantrópicos e científicos para prevenir ou apaziguar a
conflitualidade social e exercer uma reforma moral que imunizasse contra a
‘utopia revolucionária’ permitindo o crescimento das instituições assistenciais
de apoio à população pobre, em modelos mais ou menos inovadores.
Desde esta fase diferenciam-se, como já referi, “o modelo francófono” com a
utilização da designação de “Serviço Social”, do “modelo anglo-saxónico” com
a designação de “Trabalho Social”. Mas, de uma forma geral, esta fase de
crescimento e consolidação profissional particulariza-se por:
“…não ter tido a necessidade de enfrentar uma partilha de actuação no campo da intervenção social, por ter recuperado os campos vazios criados pelo processo de secularização da sociedade e por ter fornecido um carácter missionário ao trabalho «educativo» junto dos utilizadores dos serviços onde exerce a sua actividade profissional” (Mouro, 2001:41).
Os profissionais entretanto formados desenvolvem a sua actividade em
actuações centradas na família, nos menores (modelos francófono e anglo-
saxónico); no meio hospitalar, em especial psiquiátrico, no meio escolar, no
meio correccional (modelo anglo-saxónico); nas empresas e no contexto
médico-social (modelo francófono).
Embora seja reconhecido que o movimento instituidor da profissão é de
natureza conservadora, reconhece-se desde as suas origens, uma tensão
entre uma variante mais conservadora e individual e outra mais progressista e
comunitária (Amaro, 2009). Esta tensão remonta às suas duas figuras
instituidoras, respectivamente Mary Richmond e Jane Adams. A primeira,
assumida como a figura instituidora prevalecente numa corrente «diagnóstica»,
87
individual e adaptativa, e a segunda, na variante mais reformista que rejeitava o
modus operanti da época (as «visitas amigáveis aos pobres») e introduziu o
conceito de justiça social e que, a partir de sua posição social privilegiada
trabalhou em causas (Voto das Mulheres, Legislação e reforma da justiça, …),
em movimentos de ideias e de lutas por direitos (contra o Trabalho Infantil,
pelos direitos dos trabalhadores, sobretudo Imigrantes, …), na produção de
respostas inovadoras («Hull House») e na produção cientifica (trabalhou com
George H. Mead,1910).
Fazendo recurso à biografia-padrão mencionada por Helena Mouro (2009) será
importante caracterizar a trajectória social da profissão, da qual se destacam a
sua pertença de origem à sociedade industrial e o entendimento das suas
práticas profissionais como um produto cultural situado historicamente.
Apesar da perspectiva institucional que domina a nossa memória histórica, a
actuação profissional foi inicialmente influenciada pelas correntes positivistas
que elegeram como campos prioritários de intervenção a área da família, do
trabalho e da saúde, até ao surgimento das políticas sociais no pós-segunda
Guerra Mundial – altura em que o Serviço Social se tornou elemento activo da
consolidação de um processo político que tinha por objectivo firmar a elevação
do padrão médio de vida social, bem como pluralizar e democratizar o
consumo de bens e serviços.
Este contexto obrigava à implementação de um modelo de actuação mais
técnico e eficiente e impõe-se nos profissionais de Serviço Social uma vontade
organizada de assumir uma profissionalização como vector da política social.
Esta é, apesar de tudo, uma fase de qualificação onde se geram mudanças
significativas na cultura profissional, iniciando-se uma sistematização crescente
da acção empírica, uma procura de fundamentação teórica para as técnicas
utilizadas e uma preocupação com o próprio “agir” profissional.
Simultaneamente, a perda de referenciais colectivos permitiu a diversidade
interna e fomentou no campo profissional uma certa demarcação em relação
ao passado e ao Serviço Social Tradicional.
Nomear as tensões, as dinâmicas, os paradoxos… dentro do corpo profissional
contribui, na perspectiva utilizada, para enfraquecer o estereótipo da Assistente
Social como agente de reprodução social.
88
Para os autores de inspiração marxista, a naturalização dos processos sociais
e a óptica da fragmentação e da formalização estão presentes no Serviço
Social desde sempre, na totalidade dos elementos que compõem o acervo
cultural da profissão: desde a perspectiva do conhecimento até ao âmbito dos
valores, objectivos, práticas, instrumentos e técnicas. Salientam que os
conhecimentos e os valores são retirados de campos diferentes, constituindo
um referencial profundamente ecléctico mas, as mais das vezes, comprometido
com a manutenção da ordem social.
Nas correntes ecológicas (Pincus e Minahan, 1973; Germain e Gittermn, 1980
por exemplo) bem como nos enfoques dos autores marxistas, radicais (Rojek,
1988; Mullaly, 1993) e de capacitação (Rees, 1991) e também para os autores
do campo profissional que defendem uma perspectiva crítica (como por
exemplo Dominelli, 2002), a profissão de assistente social nasce no seio de um
projecto reformista conservador, onde a presença de um humanismo
assistencialista e, mais tarde, de uma racionalidade instrumental, pretenderam
humanizar e racionalizar os efeitos do capitalismo.
Para este vasto conjunto de autores (sobretudo os de filiação marxista) é
impossível a conciliação entre a defesa dos direitos e interesses das Pessoas,
consideradas individual e colectivamente, e os interesses do Estado e do
Mercado através da implementação de políticas sociais conjugadas, pelo que a
profissão parece confinada às opções dicotómicas de ser «revolucionária» ou
de ser «conformista», mantendo nesta última opção o efeito placebo que os
mais críticos lhe atribuem.
Mesmo a autocrítica da profissão reconhece que a profissionalização do
Serviço Social (bem como dos outros Trabalhadores Sociais), com o
crescimento exponencial de profissionais disponíveis no mercado de trabalho,
terá também contribuído para a passividade, a alienação e dependência das
camadas mais vulneráveis da população, em simultâneo com o aumento da
«patologização» das dinâmicas individuais, familiares e comunitárias.
No entanto, coloca-se a hipótese de que na ‘impossibilidade’ de conciliar os
interesses das pessoas e os interesses do Estado e do Mercado possa radicar
uma noção de «crise» de identidade e de legitimidade (que, por circunstâncias
variadas, se mantém ao longo de várias épocas o que a tornará menos uma
89
crise e mais uma característica) e simultaneamente, a presença de
oportunidades do corpo profissional para se questionar a partir de dentro, o que
pretende significar possibilidades de se constituir mais solidamente como
objecto de conhecimento de si, dos ‘públicos’ e contextos com que intervém e
dos movimentos societários em que participa, construindo novas práticas e
novas legitimidades com identidade múltiplas e diversas.
O REFERENCIAL DO CAPITALISMO E DA POBREZA
O processo de crescimento e consolidação profissional desenvolveu-se a par
com o crescimento do Capitalismo, conceptualmente sustentado em modelos
concebidos em função de interesses político-religiosos que pretendiam
naturalizar as desigualdades sociais. Se o Capitalismo equivale a transformar o
indivíduo em mercadoria, o que o torna obrigado a encontrar um comprador da
sua força de trabalho se quiser satisfazer as suas necessidades elementares,
pelo contrário, o Estado-providência é «o capitalismo com rosto humano», um
sistema de mercado onde a oferta e a procura de trabalho não regem toda a
vida social num processo a que Esping-Andersen (1999) chama
«desmercantilização».
Na verdade, como nos recordam os liberais, o indivíduo moderno devia
aprender a medir os riscos e a sociedade desenvolvida supostamente oferecia-
lhe os meios para se segurar em função do grau de risco. Mas, na prática, a
apreciação dos riscos, tanto quanto a possibilidade de assumir os seus custos
individualmente é muito desigualmente partilhada e nalguns casos, como nas
situações de crise cíclica, impossível de prever. E, como também refere este
autor, o capitalismo pode produzir o melhor e o pior: o melhor – numa
concepção utilitária da existência mas que, aparentemente, foi suficiente para
satisfazer a procura de sentido durante bastante tempo com um crescimento
económico e de nível de vida difíceis de alcançar noutro regime económico; o
pior, na medida em que se faz acompanhar de crises brutais que colocam fora
do mercado de trabalho cada vez maior número de pessoas que se encontram
impossibilitados de satisfazer as suas necessidades e de verem reconhecida a
sua cidadania.
90
O que se passa ao nível macro social passa-se igualmente ao nível individual.
Quando, por uma qualquer razão, uma pessoa se encontra incapacitada de
«ganhar o seu pão» – por acidente, doença, velhice, desemprego, … – não
encontra resposta no ideário liberal e a instalação do capitalismo de mercado
equivale analiticamente ao enfraquecimento ou ao desaparecimento do
conjunto de solidariedades primárias e de barreiras jurídicas ou morais que
protegiam os indivíduos.
Vale a pena recordar que a opacidade da pobreza era quase total até à década
de 70 do século passado. Até à I Guerra Mundial prevaleceu a ideia optimista
do progresso no mundo, fundada na supremacia absoluta da ciência e da
tecnologia, na exploração dos recursos do planeta tidos como inesgotáveis e
no desabrochar das capacidades humanas para produzir riqueza e controlar o
meio ambiente. Seguiu-se um profundo sentimento de desespero, quando se
tornou moda falar sobre o «declínio do Ocidente».
A Grande Depressão, o Fascismo, a II Grande Guerra e o Holocausto
forneceram amplas provas de pessimismo que, só foi ultrapassado nos anos 50
do pós-guerra, quando a Europa e o Japão conseguiram reconstruir as
economias com impressionantes taxas de crescimento económico. Na
sociedade da abundância e dos milagres económicos não havia observações
substantivas da pobreza.
“A crise económica mundial, desencadeada no início dos anos 70, pelo primeiro choque petrolífero, veio pôr em evidência as limitações de um modelo desenvolvimentista, reduzido à vertente do crescimento económico, baseado no pressuposto da energia barata e, portanto, numa exploração massiva e não controlada dos recursos naturais. (…) Por outro lado, este modelo também não conseguiu corresponder às expectativas de um bem-estar crescente e generalizado, à escala de cada país e à escala planetária, contribuindo para uma maior igualdade e para uma justiça social” (Martins, 1999: 62).
Apenas na sequência de um conjunto de movimentos que agitaram o mundo
durante a década de 60 é que a pobreza ganha dimensão pública e muita
gente começa a chamar a tenção para a reapreciação da doutrina do
desenvolvimento. Vozes dissonantes avisaram da eminência da destruição
planetária, como por exemplo, em 1972, o Clube de Roma (um grupo de
gestores, engenheiros e cientistas de várias nações) que publicou ‘The limits of
Growth’. Esta publicação marcou uma época e provocou uma reacção em
91
cadeia de estudos para refutar ou confirmar a mensagem central de que um
sistema de recursos finitos, como a Terra, não podia sustentar infinitamente um
crescimento (populacional e produtivo) cumulativo.
A este primeiro momento cuja tónica foi colocada nos ‘limites de crescimento’,
seguiu-se um segundo momento em que se tornaram evidentes os efeitos
devastadores do modelo desenvolvimentista ao nível ambiental, conduzindo na
direcção do que Max-Neef (1992) chamou de «suicídio colectivo».
Neste âmbito, é importante um posicionamento na forma de perspectivar a
«Questão Social» pois, ela pode ser vista como um continuum com dois pólos,
um do lado do capitalismo, enquanto «conjunto de problemas económicos que
o surgimento da classe operária impôs ao curso da constituição da sociedade
capitalista» (na definição de Cerqueira Filho, cit. Martins, 1999) e outro do lado
da classe operária como “expressão do processo de formação e
desenvolvimento da classe operária e do seu ingresso no cenário político da
sociedade, exigindo o seu reconhecimento como classe (...) manifestação no
quotidiano da vida social da contradição entre o proletariado e a burguesia” (na
concepção de Marilda Iamamoto, cit. Martins, 1999). E se a «questão social»
era, desde a revolução industrial até à crise do início da década de 70, a
questão das condições de vida dos trabalhadores e dos mecanismos de
exploração e dominação capitalista geradores de desigualdades sociais, alguns
autores defensores do Welfare State concluem que nos países desenvolvidos
essa questão tendeu para a sua resolução com o pacto social em que se
fundaram os Estados – Providência e as economias do bem-estar.
Por seu lado a «actividade profissionalizada» dos assistentes sociais vai-se
consolidando como resultado da intervenção do Estado nos países
industrializados, com medidas de política social, a par com outras intervenções
de âmbito não estatal promovidas por vários grupos sociais e patronais.
As mudanças do último século na organização do capitalismo – o seu alcance
global, as inovações tecnológicas revolucionárias, a centralização em
empresas e instituições financeiras gigantes e transnacionais – resultaram no
aumento de assimetrias (no interior das regiões dos países ditos
desenvolvidos, entre países ‘ricos’ e países ‘pobres’, entre o norte
92
industrializado e o sul subdesenvolvido), e na exclusão de grande número de
pessoas pobres do mundo, da participação económica, social e política.
“A pobreza foi, durante todo esse tempo, ou bandeira de sectores conservadores da velha tradição filantrópica e assistencialista, ou objecto de interesse antropológico pelo subproletariado desadaptado em relação à evolução do capitalismo moderno, ou ainda, vector de interpretação das estruturas do subdesenvolvimento em países periféricos ou semi-periféricos” (Capucha, 2000: 9).
Mas o conceito de Pobreza (Costa, 1985) evoluiu de uma formulação que
privilegia sobretudo os rendimentos familiares e as necessidades de
sobrevivência para uma formulação que reflecte diferentes contributos,
evidenciando uma progressiva desmultiplicação do conceito por várias
dimensões que procuram enquadrar novas realidades associadas à pobreza -
nomeadamente as dicotomias que nos dão conta da multiplicidade de
significados que o conceito pode assumir: pobreza absoluta/relativa, pobreza
objectiva/subjectiva, pobreza tradicional/nova pobreza, pobreza rural/urbana,
pobreza temporária/duradoura, entre outros.
Em torno da pobreza enquanto fenómeno social surgem múltiplas abordagens
teóricas, das quais se destacam a abordagem socioeconómica e a abordagem
culturalista. Na primeira, a pobreza é associada a situações de privação por
relação à subsistência e às necessidades básicas resultantes da insuficiência
de recursos económicos. Na óptica de Luís Capucha (1992), os estudos
realizados nesta perspectiva limitam-se a descrever situações e categorias
mais vulneráveis à pobreza, privilegiando a utilização de metodologias
extensivas e segmentadas por dimensões.
Na segunda abordagem, a pobreza é associada ao conceito de ‘cultura da
pobreza’ e centra-se no carácter antropológico de comunidades, famílias e
indivíduos, sendo privilegiadas as relações interindividuais, as representações
e práticas sociais, as estratégias de vida, a organização familiar, os padrões de
consumo e os sistemas de valores que configuram modos de vida
diferenciados afectos à vivência da pobreza, que com frequência se transmitem
intergeracionalmente (Ferreira, 1997). Nesta tradição de análise faz-se recurso
a técnicas qualitativas, introduzindo na análise dos modos de vida das pessoas
pobres, as dimensões simbólica e espacial do fenómeno da pobreza e
privilegiando as micro-análises (Capucha, 1992).
93
Partimos assim, da concepção de que existe relação entre os modos de
«estudar» e entender a pobreza e a(s) luta(s) contra a pobreza, o(s) modo(s)
de conceber a política e as políticas sociais, as medidas e os instrumentos
através dos quais se pretende travar esse combate e a focagem na
territorialização da pobreza e nos processos de distribuição do rendimento.
Nos finais da década de 80 do século passado por influência francesa, surge o
conceito de «exclusão social» com a pretensão de substituir o conceito de
pobreza. No entanto, e apesar das tentativas de explicitação, vai tendo uma
utilização bastante fluida e por vezes, equívoca.
Apesar de defender que, hoje o conceito de «exclusão social» é pouco útil,
parece-me importante colocá-lo em perspectiva a partir de algumas posições
defendidas por autores que me serviram de referência, em determinada altura,
mesmo sabendo que a sociologia contemporânea tende a privilegiar o estudo
da ruptura e não da coesão. Segundo Capucha (1998), a exclusão resulta de
uma desarticulação entre as diferentes partes da sociedade e os indivíduos,
gerando uma ‘não-participação’ num conjunto mínimo de benefícios que
definem um membro de pleno direito dessa sociedade, opondo-se claramente à
noção de integração social.
A exclusão surge nesta elaboração como a agudização das desigualdades,
indissociável dos seus mecanismos de produção, resultando numa dialéctica
de oposição entre aqueles que efectivamente mobilizam os seus recursos de
participação social (recursos que ultrapassam a esfera económica e englobam
os que derivam dos capitais cultural e social dos actores sociais) e aqueles
que, por falta desses mesmos recursos, estão incapacitados de o fazer.
Já a sociologia do século XIX se debruçou bastante sobre os mecanismos de
exclusão social como podemos recordar em Durkheim com a distinção
estabelecida entre solidariedade mecânica e orgânica. A exclusão é concebida
como um produto de um défice de coesão social global, não se reduzindo a
fenómenos individuais nem a simples agregações de situações (Lamarque,
1995). Acrescem ao carácter cumulativo, dinâmico e persistente da exclusão,
os processos de reprodução, através da transmissão geracional, e a evolução
que constituem simultaneamente causa e consequência de múltiplas rupturas
na coesão social, implicando dualismos e fragmentação social.
94
Desta forma, os processos de exclusão são pensados como estando ligados à
quebra de laços de solidariedade e ao risco de marginalização, à desintegração
do sistema de actividade associada às mutações económicas e de organização
do trabalho e à desintegração das relações sociais e familiares, assumindo
também a forma de uma ruptura dos laços simbólicos (Xiberras, 1996). Esta
noção, cuja origem pode ser procurada nos mecanismos estruturadores do
funcionamento das sociedades modernas, remete para uma crise estrutural
que abala os fundamentos das sociedades contemporâneas.
Martine Xiberras (1996) afirma que a exclusão é resultado da dificuldade de
integração ou de inserção, colocando essa dificuldade do lado dos indivíduos
que não conseguem cumprir as normas sociais ou alcançar os níveis
socialmente considerados como regulares. A autora para definir o conceito
coloca em relação o «espaço de referência que provoca a rejeição» e «as
formas» pelas quais a exclusão se produz. Nesta óptica, a exclusão social é
produzida quando a “sociedade não oferece a todos os seus membros a
possibilidade de beneficiar dos direitos nem de cumprir alguns deveres que lhe
estão associados” (1996:28). Xiberras chama ainda a atenção para o facto de
que as sociedades tendem a aceitar a diferença ou o desvio, quando esses
fenómenos acontecem apenas num determinado ponto em relação às
respectivas «representações normalizantes», mas que a acumulação de
diferenças ou desvios já é bastante inadmissível.
A análise da vulnerabilidade à pobreza e à exclusão social implica uma
dimensão subjectiva que englobe, quer o sentido dado às suas vivências pelas
populações caracterizadas como desfavorecidas, quer os modos de adaptação
das mesmas aos constrangimentos situacionais que as rodeiam. Um dos
autores portugueses que se debruça sobre esta questão refere que:
“…o conceito de pobreza, analisado enquanto situação de escassez de recursos de que um indivíduo, ou família, dispõem para satisfazer necessidades consideradas mínimas, acentua o aspecto distributivo do fenómeno (a forma como os recursos se encontram distribuídos entre os indivíduos e/ou famílias na sociedade). Já o conceito de exclusão social acentua os aspectos relacionais do fenómeno, quando encaramos este conceito enquanto situação de inadequada integração social” (Pereirinha, 1992:170).
95
Não parece irrelevante privilegiar os aspectos distributivos ou relacionais do
fenómeno da pobreza, sendo que a mudança de designação socialmente
utilizada vem acentuar a inadaptação individual, responsabilizando os
indivíduos pelas suas condições de vida.
Nas sociedades actuais e segundo Paugam (1996), o debate sobre os
fenómenos de ruptura e de crise identitária que trespassam e caracterizam os
processos de exclusão já não se restringe à argumentação sobre o carácter
desigualitário da sociedade e sobre o fenómeno de pauperização que lhe é
inerente. A noção de exclusão ultrapassa a de desigualdade, conferindo-lhe um
outro sentido, assente não na oposição de interesse entre grupos sociais, mas
essencialmente sobre a fragilidade, fundada na ausência de reivindicações
organizadas e de movimentos com potencialidades ao nível do reforço da
coesão identitária das populações menos favorecidas (Paugam, 1996:15).
A tipologia de beneficiários dos serviços de acção social definida por Paugam e
utilizada para operacionalizar o conceito de «desqualificação social» considera
este processo de etiquetagem e a diversidade de estatutos que definem as
identidades pessoais e os sentimentos subjectivos da situação vivenciada em
três categorias: intervenção pontual (os fragilizados), intervenção regular (os
assistidos) e infra-intervenção (os marginais). Nesta linha, estas
representações são, na sua constituição, objecto de um processo de
etiquetagem e de estigmatização que as reforça e que reforça as dificuldades
de integração social acrescidas pela incapacidade destas categorias sociais
superarem o processo de etiquetagem que as identifica como desfavorecidas.
Como também defende Capucha,
“A exclusão social liga-se, precisamente, à falta de oportunidades e à incapacidade dos grupos com menores recursos materiais, culturais e sociais e com menor capital político para expressarem os seus interesses e para reivindicarem a ruptura com as condições e as imagens que os marcam” (2000: 10).
Ainda segundo o mesmo autor na relação entre os conceitos de
‘desenvolvimento’ e ‘pobreza’, o que tende a ficar esquecido é o lado activo dos
agentes, sobretudo quando a análise se remete para o nível das estruturas de
rendimento, das condições de vida ou das relações com o emprego e a
segurança social; e também a questão do território (que era lateral na tradição
96
marxista, mas era central na tradição culturalista da Escola de Chicago) que
coloca em contexto as formas de organização da sociedade e a crise de
identidade e de filiação social vivida pelas pessoas.
Neste quadro faz sentido e, utilizando uma expressão de Bruto da Costa (1985)
falar da «agonia de um paradigma» para referir o esgotamento do modelo
desenvolvimentista. Como também fará sentido, lembrar que a partir dos anos
70 e 80 do século passado começou a emergir uma outra concepção de
desenvolvimento sintetizada na expressão «pensar globalmente, agir
localmente».
A emergência deste novo paradigma, é marcada por 3 aspectos principais: a
multidimensionalidade, uma lógica qualitativa e uma valorização do local
(Canário, 1999: 63), mas arriscaria a dizer que não foram estes os aspectos
que têm prevalecido, apesar da sua inequívoca presença. A recusa da
mediação dos aparelhos centrais do Estado, preparou o terreno para a
regulação descentralizada que, assentou em procedimentos de implicação,
dando lugar a um novo tecido institucional, na procura de transferir para a base
os problemas e os conflitos que emergiam ou se concretizavam localmente.
Através da «Glocalidade» (Pensar Global e Agir Local) era pretendido
conseguir no plano local, as convergências possíveis sobre as questões que
afectam a vida económica e social, através do confronto e do debate entre
adversários que desta forma se transformariam em parceiros, obrigados a
encontrar soluções. Mas segundo a voz crítica de Marília Andrade,
“Os novos dispositivos de acção e os novos procedimentos, respondem exactamente a uma despolitização progressiva da vida pública e a um controle dos espaços públicos políticos, já que a acção pública se reduz a um nível estritamente gestionário e imediato. Ou seja, a tensão entre o presente e o futuro desaparece, as políticas sociais tendem a ser operacionalizadas no plano local, territorialmente ao nível dos municípios (o infra-estatal), por vezes sem que sejam transferidas para o local, as condições necessárias a essa gestão” (Andrade, 2001: 90).
Mais uma vez, foi possível segundo a mesma autora, constatar a distância
entre o pensamento teórico e os resultados práticos obtidos pela aplicação das
medidas de política de base local, dado que não foram atingidos os objectivos
previstos: i) não foram reduzidos os problemas e a importância dos conflitos; ii)
não ficou facilitada a arbitragem; iii) nem contribuiu para a mobilização da
sociedade e para a coesão e restabelecimento dos laços sociais.
97
No discurso político a noção de «progresso» passou a ser substituída pela de
«mudança social», alvitrando a possibilidade do nascimento de um «social do
terceiro tipo» que, num registo próximo de Bourdieu, seria um social que
passou para o campo da sociedade, tentando abranger quer o campo do
Estado, quer o campo do mercado. Nesta linha e, apesar da profissão de
assistente social ter sido “…frequentemente convertida em instrumento de
realização do capital, razão pela qual a crítica e a autocrítica realizadas pela
profissão remetem ao acervo técnico-instrumental e não à sua
instrumentalidade ao capitalismo, donde a perspectiva integrativa e adaptativa,
de carácter reformista” (Y.Guerra, 2001:273), não se podem esquecer
movimentos e profissionais que apostaram em «renovações» (mais do que em
«revoluções») comprometidas com processos de mudança social.
A LEGITIMAÇÃO DA PROFISSÃO E A «BANDEIRA» DO BEM-ESTAR SOCIAL
A legitimação da profissão, balizada pela I Guerra Mundial (1914-18) e pela
Revolução Russa de 1917, aproveita de uma ideia de reconstrução do tecido
ideológico como forma de conter as ideias socialistas e também do marco de
publicação da obra de Mary Richmond, Diagnóstico Social, que reflecte um
amadurecimento e um esforço de sistematização, bem visto pelo positivismo
que dominava as ciências sociais.
A profissão valoriza-se assim no contexto académico, em que as teorias da
personalidade assumem um papel importante no enfoque dado à análise dos
problemas sociais e mantém a legitimidade para a arbitragem dos conflitos
sociais “evitando a sua generalização” e passando “a ser prestigiada pela
autoridade moral que lhe advém do facto de, socialmente, se fazer impor como
mecanismo redutor de conflitos” (Mouro, 2001:37). O Serviço Social tenta
desvincular-se da cultura assistencialista e adoptar novos procedimentos
metodológicos de intervenção social, aproximando-se das Ciências Sociais - o
que também vai contribuir para colocar a questão da partilha do campo e dos
processos de intervenção social.
Apesar da presença consolidada no ideário da profissão de Serviço Social das
políticas sociais do Estado de bem-estar como «um meio natural de vida e
98
exercício profissional» e de persistirem territórios protegidos (nomeadamente
em alguns serviços dos sectores da saúde e da segurança social), arrisco-me a
colocar a hipótese de que muito do debate em torno da sobrevivência, ou não
sobrevivência do Estado-providência (mais Wellfare ou mais Workfare), das
suas mutações, legitimidades, crises, rupturas ou superações não tem
constituído espaço de implicação de grande parte de corpo profissional.
No cumprimento das suas múltiplas funções de «formiguinhas» do sistema e
na certeza de que, diariamente, dão grandes contributos para «segurar as
pontas» de novelos emaranhados, tanto do ponto de vista das situações
individuais ou familiares, como do ponto de vista das respostas
organizacionais, os assistentes sociais correm o risco de ficar numa posição
particularmente incómoda de «bode expiatório» - simultaneamente das
incongruências, paradoxos e ineficácias do sistema institucional de que fazem
parte e pelo qual muitas vezes «dão a cara» e dos movimentos de cidadãos
(com quem teoricamente estão comprometidos) que questionam o «status
quo» e reivindicam mudanças, mais ou menos radicais.
Equacionar e debater as políticas sociais e a «bandeira do bem-estar» parece
um caminho promissor para retirar linearidade ao entendimento de que este é
um meio ‘natural’ e ‘privilegiado’ da vida profissional. E sabendo que o mercado
económico é reactivo a qualquer regulação e o equilíbrio é precário por
definição, esta reflexão não pretende mascarar os dilemas contemporâneos do
«social» no seio do capitalismo.
O Estado de bem-estar, fundado no projecto moderno de construção dos
estados-nação, tinha como base da sua arquitectura política o «contrato social»
que garantia aos cidadãos um conjunto de deveres e protecções sociais e
políticas, agarrados a um conceito de cidadania delimitado pelo Estado-nação.
“A legitimidade da nacionalidade-cidadania-individualidade era assegurada pela meta narrativa da modernidade que localizava o Eu no cruzamento dos seus três eixos fundadores: a Razão, o Homem e o Estado. Estes três eixos desdobravam-se, por seu turno, em mediadores narrativos como a ciência, a filosofia, a arte, as instituições e o estado” (Stoer e Magalhaes, 2005:89)
Segundo estes autores, é na figura do cidadão que os três eixos referenciados
se cruzam, numa universalidade da Razão que, na herança cartesiana, parecia
99
a coisa mais bem distribuída do mundo. Contudo, o contrato social da
modernidade que expressa a troca da pertença local pela lealdade nacional
está, no contexto europeu, pressionado por factores de ordem económica
(como a reestruturação do mercado de trabalho), de ordem cultural (como, por
exemplo, o confronto entre modos de vida) e de ordem política (como, por
exemplo, os efeitos da construção europeia sobre as soberanias nacionais).
A reconfiguração para um contrato social emergente apresenta-o como
delimitado por três dimensões/exigências: a «empregabilidade» que implica
estar em contínuo estado de ‘formável’; a «identidade local», que implica
expressar as diferenças; e a «cidadania europeia», que envolve a construção e
os dilemas de uma «comunidade imaginada».
As dificuldades e os impasses do desenvolvimento dos Estados-providência
que se desenvolvem com base na cidadania social de Marshall (1950),
contribuíram para o questionamento das transformações do capitalismo desde
o século XIX através de diferentes formas de «capitalismo social» (passe o
paradoxo), no seio das quais o mercado continua a ser um mecanismo
importante mas, mais ou menos, contrariado e canalizado pelos esforços dos
governos para evitar os efeitos demasiados negativos sobre as populações e
desenvolver uma redistribuição económica de «compensação».
Na sequência da revolução industrial, o Estado-providência (na pluralidade das
suas formas) tornou-se um dos elementos mais estruturantes da vida social na
medida em que criou empregos, transformou o destino das mulheres, apoiou a
reestruturação das grandes empresas industriais e ajudou a formar mão-de-
obra e a substituir os trabalhadores mais velhos por trabalhadores mais jovens
e ‘maleáveis’. Mas, por outro lado, as suas políticas são a continuação das
trajectórias históricas que em grande medida modelaram determinadas opções
dentro da linha de pensamento liberal, no pós segunda Grande Guerra (período
marcado pelas necessidades de reconstrução e de animação da economia),
revelando que a sua natureza é uma forma institucional, complexa e instável de
compromisso com os imperativos do capitalismo.
Após a II Guerra Mundial, sobretudo nos gloriosos 30 anos que se lhe seguem,
a profissão de assistente social aproveita da consolidação e crescimento dos
Estados Providência e da ideologia desenvolvimentista que supõe um
100
crescimento económico acelerado, continuado e auto-sustentado no pleno
emprego mas também se defronta com tensões internas e novos intervenientes
no campo de intervenção social. Por toda a Europa os Estados-providência
desenvolvem sistemas de protecção, desenhando políticas sociais
concretizadas em medidas, mais ou menos redistributivas, mas que, em última
análise desenvolvem sistemas de bem-estar para que os indivíduos se
adaptem. Segundo Boaventura Sousa Santos, os elementos estruturais que
estão na base do Estado-providência (e que lhe permitem concluir que o
Estado português não é um Estado-providência no sentido pleno do termo)
são:
- a construção de um pacto social entre capital e trabalho sob a égide do
Estado, cujo objectivo último é compatibilizar democracia e capitalismo;
- a relação sustentada entre duas tarefas do Estado potencialmente
contraditórias: a promoção da acumulação capitalista e do crescimento
económico e a salvaguarda da legitimação;
- um elevado nível de despesas nas políticas de bem-estar;
- uma burocracia estatal que internalizou os direitos sociais como direitos dos
cidadãos e não como benevolência estatal (Sousa Santos, 1990:42).
O Estado capitalista, necessitando de promover a sua ideologia de igualdade e
de solidariedade, realiza um esforço de investimento nas políticas sociais,
alargando os benefícios sociais em prol do “bem-estar social”.
As motivações que presidiram à sua edificação são muito diversas e vão desde
a resposta às pressões do mundo operário, mas também à vontade de
suplantar as deficiências do mercado, ao humanismo esclarecido, não
esquecendo a dimensão de reforço da lealdade dos trabalhadores ou a
institucionalização das divisões sociais (Esping-Andersen, 1999). Este autor
aborda as consequências da criação dos Estados de Bem-estar não apenas do
ponto de vista da protecção social dos cidadãos, mas igualmente do ponto de
vista da estratificação social, do lugar das mulheres na sociedade e das
implicações na criação de emprego na era pós-industrial. A trama do livro
intitulado «Os três mundos do Estado-providência» cruza o nível de
«desmercantilização», a estrutura de classe beneficiária das políticas sociais e
101
a forma do laço existente entre o Mercado e Estado, em tentativas de encontrar
equilíbrios entre os imperativos do mercado e os imperativos da «compaixão».
No entanto o debate científico prossegue com contributos para a controvérsia
sobre a história do Estado-providência e dos dilemas políticos, produzindo
entendimentos sobre questões como: i) a imposição de uma forma de regime
político favorável aos interesses do mundo operário apoiando-se nas
instituições parlamentares; ii) o desenvolvimento de uma política favorável aos
interesses da classe operária quando esta é uma minoria da população; iii) a
constituição de um Estado social que reforce as solidariedades operárias sem
abandonar os «deixados por sua conta» na vida industrial, e pós-industrial (e
desprezadas tanto pelos operários quanto pelas classes médias ou superiores).
Destaco assim, este posicionamento de Esping-Andersen (1999) que reflecte
sobre a existência de vários Estados-providência profundamente diferentes
pela sua história, pelo modo de relação entre a sociedade e a sua protecção
social, pelo lugar acordado para o Estado e mais genericamente, pelo
paradigma que subentende a acção em matéria de política social. Neste
âmbito, lembramos as suas categorias «ideal-tipo» dos modelos ou dos
regimes de Bem-estar:
a) um Estado-providência liberal que limita ao essencial a sua protecção aos
mais fracos, desprotegidos e estigmatizados;
b) um modelo conservador, corporativo, um modelo de protecção social
endossado ao trabalho assalariado, visando não uma transformação da
sociedade num objectivo de equidade social, mas a manutenção dos estatutos
sociais e profissionais;
c) um Estado-providência social-democrata caracterizado não somente por um
nível elevado de protecção social contra os riscos e por uma oferta importante
de serviços sociais, mas também por uma vontade claramente afirmada de
redistribuição dos recursos recolhidos pelos impostos.
Ainda segundo a análise deste autor, podemos classificar os Estado-
providência em fortes, médios ou fracos, em função da possibilidade que eles
oferecem legalmente aos indivíduos de suprirem as suas necessidades,
mesmo ficando de fora do mercado de trabalho.
102
Não é possível encetar uma reflexão séria sobre a evolução social dos Estados
modernos sem fazer referência às etapas de desenvolvimento da democracia e
da cidadania social, ignorando a diferença entre os Estados-providência
institucionalizados e as formas residuais de Estado-providência, entre o nível
de desenvolvimento económico e o das despesas sociais, entre os processos
de edificação dos Estados modernos, o acesso das massas à democracia e o
desenvolvimento das políticas sociais, nem ainda subestimar os processos
concretos de invenção das políticas públicas.
A grande maioria das ciências económicas actuais sustenta ainda que só
através do crescimento do mercado pode desaparecer a precariedade,
ignorando que esta é chamada pela riqueza e que, ao mesmo tempo que existe
pobreza absoluta também faz a riqueza relativa - o que leva a levantar a velha
questão da apropriação e distribuição dos recursos e de quem tem o poder
para o fazer.
Não podemos esquecer que os Estados providência do pós-guerra se
edificaram sobre a promessa do pleno emprego na ideologia da sociedade de
abundância capitalista. Sabemos hoje o quanto esta promessa era arriscada,
mas os países comprometeram-se em políticas estruturalmente distintas que
foram o prenúncio da crise actual. Alguns, à falta de obter a moderação salarial
por via de compromissos neocorporativistas preferiam a inflação, outros
recorreram maciçamente ao emprego púbico e as compensações sociais
diferidas constituíram um elemento das políticas e do mundo social nos anos
gloriosos. Mas todas as estratégias utilizadas mostraram os seus limites num
mundo em acelerada mudança e onde os jogos sociais se resumem a um jogo
de soma nula e à compensação social pelo aumento do défice público.
Hoje a diferença crescente entre o número de activos e de inactivos faz pesar
tensões financeiras extremas sobre os Estado-providência continentais e os
encargos financeiros acabam por ter efeitos negativos no emprego.
A tendência para recorrer à redução da oferta de trabalho é uma das medidas
passivas em detrimento de medidas activas de acesso ao emprego que faz
pesar os seus custos crescentes sobre o trabalho.
Esping-Anderson realiza uma abordagem complexa dos Estados-providência
colocando em evidência que eles não são apenas uma criação do movimento
103
socialista e que o movimento operário e o liberalismo económico tomaram
igualmente parte dessa construção numa teia de interesses e compromissos –
não esquecendo que já o projecto social de Bismarck era de natureza
conservadora e visava o reforço do poder central e que os Estados-providência
trazem também a marca da igreja católica. Mas a forte mobilização do
movimento operário é apenas uma pré-condição para a nascença de um
Estado-providência na via social-democrática, enquanto a sua manutenção e
enraizamento foram essencialmente função da capacidade de criar interesses
comuns entre a classe operária e a classe média. Esping-Anderson coloca
ainda em evidência os efeitos de interacção entre outros factores: a capacidade
de construir aliança com o campesinato, mas também o modo de formação da
classe operária, a estrutura económica, as preferências ideológicas e políticas
dos fundadores dos primeiros tipos de regimes, o percurso histórico dos
primeiros regimes de protecção social e as preferências induzidas no seio das
classes médias.
Sobre os cenários de futuro, este autor indica que é preciso levar a sério a crise
actual dos Estados-providência. Se as crises precedentes foram sobretudo
crises de legitimidade política, a crise actual é também efeito de alterações
profundas nos pressupostos de democraticidade existentes entre os Estados e
os cidadãos. Neste âmbito, o cidadão passa a ser responsabilizado pelo seu
destino, quando tudo parece estar fora do seu controlo.
Sousa Santos a propósito refere que “…a sua responsabilização é a sua
alienação; alienação que, ao contrário da alienação marxista, não resulta da
exploração do trabalho assalariado mas da ausência dela” (1994: 28).
Este fenómeno é o que Robert Castel (1995) designa de «nova questão social»
no âmbito da qual ser excluído já não é sinónimo de ser explorado pelo capital
(paradoxalmente, ter trabalho e ser explorado é quase um privilégio), mas ser
excluído passa a significar «estar a mais». Como refere Sousa Santos,
“Esta metamorfose do sistema de desigualdade em sistema de exclusão ocorre tanto a nível nacional como a nível local. (…) A nível nacional, a exclusão é tanto mais séria quanto até agora não se inventou nenhum substituto para a integração pelo trabalho. (…) A erosão da protecção institucional, que sendo causa, é também um efeito do nono darwinismo social” (1994: 27).
104
Com o desenvolvimento destas concepções e estratégias políticas, o Serviço
Social (que deteve uma posição hegemónica na respectiva área de
intervenção), alarga o seu campo de actuação profissional e passa a orientar a
sua actuação por uma concepção tecnologizante da gestão do social. Contudo,
este alargamento veio evidenciar fragilidades na identidade histórica do
exercício profissional: por um lado, o Serviço Social (sobretudo norte
americano) pretendia determinar o seu espaço profissional em função de uma
articulação entre as necessidades histórico-sociais e os interesses de
crescimento e valorização profissional; por outro lado, a estratégia seguida
para desenvolver o Serviço Social europeu, optou por instalar-se na dinâmica
do processo político e adaptar-se às necessidades instrumentais da política
social. Este eclectismo redundou num processo descontínuo de qualificação e
numa certa descaracterização da actuação profissional
“...ligada a um processo social em que o serviço Social na sua intervenção profissional começou a confundir o acidental com o essencial, a ter um comportamento profissional imitativo, a empenhar-se na resolução de conflitos secundários, a dimensionar o exercício profissional de uma forma difusa e a investir num discurso profissional estereotipado” (Mouro, 2001:47).
A par disto, a vinculação ao aparelho do Estado (tornado o maior empregador),
contribuiu para esvaziar o imaginário profissional, numa altura em que a
“bandeira” empírica do Serviço Social choca com um movimento das Ciências
Sociais marcado pelo Positivismo e onde se começa a dar conta de uma
cidadania «reclamada» pelos indivíduos e pelos grupos contra as instituições e
respectivas racionalidades (Stoer e Magalhães, 2005).
Os assistentes sociais, que como outros trabalhadores sociais, têm enfrentado
dificuldades de se desvincular da meta narrativa da modernidade, situaram-se
privilegiadamente do lado das instituições, assumindo a lógica do contrato
social moderno através da «cidadania atribuída», que se veio a revelar incapaz
tanto de traduzir o reconhecimento da cidadania participada como de
responder à «cidadania reclamada».
“Esta grande narrativa da modernidade, portanto, legitimava, por um lado, a acção dos estados nacionais na sua centralidade; e, por outro, a determinação de quem são os «eles», de quem são os «outros». Actualmente, mesmo os discursos e as práticas mais envolvidas com o respeito pela diferença, pela alteridade, são frequentemente vítimas da matriz moderna de que partem. Continuam a ser estes discursos o locus em que se determina o que é a diferença, o que é a diferença aceitável
105
(tolerada) e quem é verdadeiramente o Outro e o eventual «bom» interlocutor” (Stoer e Magalhães, 2005:98).
Esta «matriz moderna», onde a recomposição do contrato social e as formas
emergentes de cidadania não têm lugar, tem colocado grandes dilemas aos
trabalhadores sociais e às suas intervenções.
Isto significa que existem tensões, com tradução quer na educação, quer na
acção social, no sentido de reivindicar uma justiça cultural e socioeconómica,
com base na(s) identidade(s) e numa política de reconhecimento da diferença.
Nestas «áreas», problemas como o absentismo, o insucesso escolar ou a não
adesão dos «utentes» às medidas que lhes estão destinadas, questionam se
os vários «outros» já não atingiram uma situação de «intolerância» face à
generosidade de que são objecto, precisamente por se recusarem como
objecto e pretenderem assumir a voz de sujeitos de si.
Esta «intolerância» faz-nos reflectir, como actores da política redistributiva que
ficam frequentemente enleados e parados no seu desenvolvimento, sobre uma
eventual renovação do campo e sobretudo da acção dos trabalhadores sociais
que dependerá da capacidade de descentração de lógicas de desenvolvimento
já esgotadas (e de uma cidadania que era sobretudo social) e contemplará o
apelo da «cidadania reclamada» como uma das suas vertentes.
A PARTICIPAÇÃO, A MUDANÇA E OS MOVIMENTOS DE
RECONCEPTUALIZAÇÃO
A relação do Serviço Social com a «participação» e a «mudança» tem sido
eventualmente um dos eixos de maior tensão na profissão, desde as dinâmicas
clássicas instaladas pela adesão ao espírito protector do modelo social
beverigdeano até à visão de Desenvolvimento Local e de Desenvolvimento
Participativo, no pólo oposto, que se legitimou na década de 60 como um dos
modelos de Desenvolvimento em que os assistentes sociais se envolveram.
A título de exemplo, refere-se o ‘desenvolvimento comunitário’ que foi utilizado
em vários períodos pelo governo inglês com o objectivo de preparar países
colonizados para a independência e foi definido pela ONU como uma forma de
“…designar os esforços da população, aliados aos do governo, para melhorar a situação económica, social e cultural das comunidades, integrá-
106
las na vida da nação e torná-las capazes de contribuir decisivamente para o progresso nacional” (ONU, documento 2/1956).
Ora este pressuposto de «aliança» entre os interesses, poderes e os esforços
de populações e governos constitui um dos constrangimentos/dilemas que
ainda hoje subsiste na profissão e que faz parte da tal «matriz moderna» de
que atrás se falou. Helena Mouro ilustra esse constrangimento, a propósito da
relação entre o Serviço Social Comunitário e o Desenvolvimento referindo que:
“Pese embora o facto de o Serviço Social na Comunidade ter estado mais adstrito ao exercício alargado da acção social ou da solução de problemas do que a questões intrínsecas ao desenvolvimento local (…), o certo é que, se por um lado (…) valorizava a participação como meio de descomprimir tensões ou de exercitar a cidadania, quando integrava a vertente da acção social fazia com que a sua função política se tornasse complexa, na medida em que a sua relação com o desenvolvimento podia tornar-se parasitária” (2009:113).
Esta citação evidencia a possibilidade da «acção social» se confinar a uma
intervenção estritamente micro social, tornando-se assim «parasitária» em
processos de mudança mais estruturais, eventualmente por não descolarem de
uma «comunidade imaginada» (Anderson, 1983) que, em nome do que era
«comum» a todos, atribuía o poder legítimo ao estado.
Para esta reflexão, assume importância o conceito de Desenvolvimento
Alternativo como um processo de ‘conscientização’ social e político cujo
objectivo a longo prazo é reequilibrar a estrutura de poder na sociedade,
salvaguardar o meio-ambiente e a natureza, amplificar as formas e os meios de
participação das pessoas na gestão dos seus próprios assuntos e redistribuir o
rendimento de forma menos assimétrica.
O carácter ideológico da profissão e a sua vinculação ao aparelho de Estado,
agravada pela burocratização do sistema de protecção social e pela própria
segmentação do social, tem dificultado uma reflexão endógena e aprofundada
sobre o futuro profissional. Helena Mouro defende que “A crise do capitalismo
arrastou consigo uma crise do Serviço Social” (Mouro, 2001:49), que acabou
por o deixar colado ao estigma de uma acção profissional “moralizadora e
normativa”.
Uma das tendências do corpo profissional no sentido de uma «revalorização da
prática» procura reinventar as «funções do Serviço Social» na
contemporaneidade. Recorda-se que o tema das «funções» constitui-se como
107
um pólo privilegiado de análise durante toda a década de 70, denotando uma
grande preocupação em definir e delimitar os espaços ocupacionais da
profissão e o seu papel no processo de mudança. Na verdade, o que estava
em jogo era a questão da sua identidade específica e distintiva, aliada à
convicção de que a clarificação das funções de Serviço Social levaria à
superação dos dilemas profissionais (Martinelli, 2006:23).
Já em Ander-Egg (1975) se identificam seis tendências para o Serviço Social e
classifica-as de acordo com o enfoque que sugerem: enfoque no científico; no
tecnológico-metodológico; no ideológico-político; na profissionalização; na
prática e no compromisso existencial.
Apesar da distância temporal arriscar-me-ia a dizer que estas tendências se
mantêm, embora de forma combinada e em cruzamento com novas tendências
(de modelo(s) de formação, de inscrição no mercado de trabalho e nas
organizações e ainda de perdas substanciais de legitimidade de intervenção),
num campo cheio de constrangimentos e cada vez mais partilhado entre
«interventores voluntários» e «interventores de muitas outras formações».
No caso do Serviço Social Europeu, a sua estratégia de afirmação alia-se à
estratégia de legitimação ideológica do capitalismo, mantendo vestígios do seu
humanitarismo cristão. O exercício profissional situa-se entre as solicitações do
mercado empregador e a gestão do social, ainda muito marcado por um
conjunto de funções que visam, em última análise, neutralizar as tensões
sociais.
É no contexto destas tensões que emergem movimentações internas, quer com
a produção de estratégias alternativas de reconstrução dos espaços de
intervenção profissional, quer com o reconhecimento da necessidade de maior
cientificidade, de que é exemplo o “Movimento de reconceptualização” ou o
“Movimento da Geração 65” - Movimento criado no sul do Brasil que se
destacou pelo debate crítico da Metodologia do Serviço Social, centrando-se na
reconceptualização da profissão, onde para além da análise histórica da
natureza do Serviço Social, eram também discutidas as suas funções no
quadro de um processo de mudança social.
Deste movimento destacam-se participantes como Herman Kruse, José Lucena
Dantas e Maria Lúcia Carvalho da Silva. Na América Latina e, particularmente
no Brasil, entre 1960 e 1964, existiram experiências de pequenos grupos de
108
assistentes sociais, apoiados pelas Escolas de Serviço Social do Nordeste, que
se envolveram no Movimento de Educação de Base, apresentando uma
postura profissional fundamentada na análise crítica da sociedade,
evidenciando as contradições do sistema capitalista e requerendo mudanças
estruturais. Este Movimento nascido em 1958 teve um crescimento
considerável ao lado dos Centros de Cultura Popular e dos Movimentos de
Cultura Popular, tendo sido iniciada uma campanha de mobilização nacional
contra o analfabetismo (Pinto:1986).
Estes Movimentos nasceram do interesse de intelectuais, políticos e
estudantes em promover o envolvimento do povo no processo de participação
política e na tomada de consciência da problemática brasileira no final da
década de 50. A perspectiva educativa caracterizou-se pela adequação de
métodos pedagógicos e visava um processo de conscientização e participação
política de que Paulo Freire (1980) é um dos autores mais divulgados, na
mudança significativa do homem à condição de «sujeito».
O seminário de Araxá, em 1967, na herança destes movimentos
comprometidos com a actuação sobre as causas dos problemas sociais conduz
ao «Movimento de reconceptualização» que traduzia as preocupações das
próprias ciências sociais nesse momento e a inadequação dos métodos
tradicionais à realidade ‘subdesenvolvida’ do Brasil e da América Latina.
Por seu lado, a grave situação socioeconómica existente na América Latina
facilitou a penetração das ideias socialistas, ampliando a influência das
ciências sociais e mostrando que as mudanças internas no Serviço Social, quer
em termos de metodologia, quer em termos de ideologia, ocorrem a partir de
influências externas.
Este debate encobria um sério impasse com o qual o Serviço Social se via
envolvido, na medida em que as suas práticas restritivas, reducionistas e
micro-sociais não conseguiam responder de forma efectiva aos complexos
problemas que se viviam. Assim, no seu parágrafo 34, o Documento de Araxá
resultante do Seminário de 1967 afirma que: “…impõe-se a reformulação do
Serviço Social em novas linhas de teoria e de acção para melhor servir à
pessoa humana e à sociedade” (1984:13).
109
Este questionamento sobre a identidade profissional foi fecundo e teve
consequências no alargamento do debate interno sobre os princípios, os
valores e as metodologias do Serviço Social. Porém, não foi hegemónico e
criou várias linhas ou tendências que segundo Helena Mouro (2009), se
manifestaram a partir de diferentes concepções teóricas e algumas cisões
entre o Serviço Social Europeu (tido como mais conservador), o Serviço Social
da América do Norte (mais reformista) e o Serviço Social da América Latina
(mais revolucionário).
A partir dos anos 70 do século passado os processos de reconceptualização de
intervenção profissional ganham visibilidade social, embora de forma
diferenciada, numa nova fase de afirmação. Numa perspectiva abrangente,
passou-se a assistir a um investimento no reforço da sua qualificação
profissional, o que criou rupturas com um “praticismo” de carácter “doméstico”
e “familiar” e contribuiu para um exercício profissional que se expressa numa
mudança de práticas, agora mais voltadas para as alterações dos
comportamentos sociais e para a compreensão das situações de âmbito
conjuntural.
Os Movimentos de reconceptualização do Serviço Social na década de 60 não
foram alheios, como vimos, aos movimentos de contestação da época e
construíram posições críticas sobre as formas como o poder político orientou a
intervenção no campo do social.
Na perspectiva desta trajectória, sumariamente identificada, persiste a reflexão
de que o Serviço Social tem uma identidade histórica atribuída pelo capitalismo
“…e constituída de avessos – coerção, intimidação, repressão - e era, na verdade uma forma mistificada de controlo social (…) onde a função social da assistência era submetida à sua função económica, substituindo o educativo pelo assistencial e transformando a crítica em resignação, em passiva aceitação” (Martinelli, 2006:158).
Contudo, na sequência das alterações contextuais e do insucesso dos métodos
tradicionais de protecção social e de ajuda social, nasce um novo método de
acção que consiste em responder à reivindicação pela oferta de implicação,
num princípio da «contratualidade da acção» (Donzelot, 1994). É então que
surgem os procedimentos operativos baseados nas noções de ‘missão’, de
110
‘contrato’ e ‘Metodologia de projecto’, dando lugar a políticas sociais
pretensamente transversais. Mas também aí,
“…o certo é que não se encontra, na fundamentação dessas vias, uma problematização e uma configuração do social com base numa noção de social abrangente, que englobe o mundo da vida assim como o mundo da política e o mundo do pensamento de forma articulada “ (Andrade, 2001: 105).
Segundo Illich (1976), para ultrapassar os «mecanismos contra produtivos»
(ou, como outros diriam, para deixar de fazer mais do mesmo) é preciso abrir
crise, querer mudar a sociedade, pensar futuros - o que implica uma alteração
profunda nos comportamentos individuais, sociais e no papel do Estado.
O debate está assim, instituído para além da instrumentalidade do Serviço
Social (e da eficácia, ou ineficácia, dos seus resultados), gerando-se no
questionamento do seu objecto, da direcção social dos resultados, nos
objectivos, nas finalidades, nos princípios ético-políticos e nos fundamentos
teórico-metodológicos, onde as racionalidades se confrontam e articulam.
Mas também será importante reconhecer que o Serviço Social não foi
engendrado por si próprio. Ele surge como parte de uma estratégia de classe,
no momento em que o Estado assume para si o tratamento das questões
sociais e onde as políticas sociais inauguram um mercado de trabalho para os
assistentes sociais, apostados em produzir “reformas na ordem” e em ‘integrar’
as classes mais desfavorecidas.
Estes campos de actuação contribuem para tornar o Assistente Social um
elemento activo de um processo político que começou por pretender elevar o
padrão médio de vida, bem como alargar o consumo de bens e serviços sociais
num clima de baixa tensão social.
Mas se não naturalizarmos a vinculação orgânica do Serviço Social ao
Capitalismo, podemos assumir que a história é essencialmente um movimento
que se constrói a cada momento e nessa construção, traz novas possibilidades
como refere Pinto,
“Uma sociedade em mudança exige de uma profissão uma postura científica de Investigação-Acção críticas e uma renovação da acção profissional, sempre atenta às transformações sociais, estruturais e conjunturais da sociedade onde exerce” (1986: 33).
111
Hoje, como ontem, são muitas as oportunidades de participação em
movimentos que reivindicam mudanças e co constroem processos de
aprendizagem partilhada para inventar «o novo» e «o diferente», e onde para
além dos resultados que estes caminhos experimentais possam gerar, a
participação dos assistentes sociais em processos participados pode constituir
fonte de aprendizagem e ganho de legitimidade que lhes permitam assumir
posições de paridade e de activismo com outros actores sociais que procuram
reconfigurar a sua cidadania individual e colectiva.
OS DIREITOS HUMANOS E A JUSTIÇA SOCIAL NUMA ÉPOCA DE
GLOBALIZAÇÃO
É frequente associar a globalização à produção de mudanças profundas que
reintroduziram a prioridade das políticas económicas e questionaram a
centralidade do Estado nacional na concepção e sustentação das suas
políticas, nomeadamente as sociais. Segundo a definição do Banco Mundial
(2002), globalização é a crescente integração das economias e das sociedades
do mundo, devida aos fluxos maiores de capital, de mercadorias, de
informação e, embora mais contido, ao fluxo populacional.
A Globalização começa por ser um fenómeno económico, com a abertura de
fronteiras, o recuo do peso do Estado e a organização mundial do comércio e
passa a um fenómeno político, no pressuposto de que o neo-liberalismo
diminuiria a pobreza e de que a abertura de fronteiras para o comércio
internacional, em simultâneo com o recuo do peso do Estado, possibilitariam
aumentar a riqueza e o desenvolvimento para todos os países. Contudo, a
pobreza aumentou de uma forma geral, aumentando sobretudo a discrepância
(de ordem territorial e de grandeza) entre as populações mais ricas e mais
pobres.
As posições e teses desenvolvidas ao longo das últimas décadas têm
desenhado, de formas muito variadas, perfis das actividades estatais no
domínio do bem-estar, defendendo quer a resistência do Estado-providência,
(com mais ou menos renovação e reordenamento), quer a sua extinção, o que
seria o ideal supremo numa sociedade de mercado.
112
Nos anos 80, nos países com um Estado-providência mais forte dá-se uma
viragem que vai afectar a sua forma organizativa e vai também alterar
estruturalmente a sociedade civil e o mercado, bem como a sua inter-relação e
nos anos 90, o desemprego em massa, atribuído a exigências de
racionalização de efectivos, por via das mutações tecnológicas, e a alteração
da composição social dos grupos excluídos, despoletou a negação das bases
compensatórias do Estado Providência no “modelo fordista-keynesiano-
familiar”, preparando a sua deslegitimação.
Estaríamos então perante uma miríade de modelos de interpretação e
reinvenção societárias que foram reflectindo formas e modelos distintos, entre
eles:
a «sociedade bloqueada» (Crozier, 1983), que foi concebida como uma
sociedade administrada pelo Estado, que apesar de manter os sonhos de
progresso e democracia, não comunicava com os cidadãos, deixando-os
alheados das decisões sobre o futuro da sociedade;
o «capitalismo flexível» (Harvey, 1989) que se manifesta através do
processo de flexibilização do processo produtivo, dos contextos e de toda a
organização do trabalho, enquadrando a transformação do trabalho e da
sua organização;
a «sociedade de risco» (Beck, 1992) que designa um estado de
modernidade no qual as ameaças produzidas começam a predominar até à
«crise ecológica actual»;
a «sociedade em rede» (Castells, 1996) que é uma sociedade de
informação, onde se privilegia o capital informacional e constrói uma nova
relação entre o «mapa» e o território.
No seio de uma sociedade globalizada cabem todas as «diferenças» e todas as
perspectivas, embora a tarefa de escolher, apropriar e dar sentido(s) a essa
informação remeta para processos complexos e difíceis . Por outro lado, a
possibilidade de constituição de uma «sociedade convivencial», no sentido de
Ivan Illich (1976) não poderá descurar aspectos como o direito ao trabalho, o
respeito e a promoção do pluralismo cultural, uma justa redistribuição, o
equilíbrio do sistema económico e do sistema social, o acesso universal à
satisfação das necessidades básicas, o desenvolvimento das formas de
113
democracia directa e participativa e as políticas activas no sentido da protecção
social e ambiental. Dizia Illich há mais de 30 anos que:
“Os sintomas de uma progressivamente acelerada crise planetária são evidentes. Por todos os lados se procurou o porquê. Antecipo, por meu lado, a seguinte explicação: a crise radica no malogro da empresa moderna, isto é, na substituição do homem pela máquina. O grande projecto metamorfoseou-se num implacável processo de servidão para o produtor e de intoxicação para o consumidor (Illich, 1976:23).
À semelhança desta «explicação», coloco a possibilidade de que também os
assistentes sociais se deixaram subjugar pelas «ferramentas», perdendo de
vista o sentido ético-político da sua intervenção. E eventualmente mais grave
do que se deixarem «funcionalizar», tem sido por um lado a sua «servidão» a
uma matriz moderna de estado e sociedade (com as suas políticas sociais e as
respectivas medidas de implementação) e a modelos de conhecimento que
mimetizam, mas não integram, nem reflectem e que acabam por os colocar
«contra» as pessoas que supostamente seriam o sujeito da intervenção.
Na tentativa de superar o «amadorismo» das práticas anteriores e de obter
reconhecimento científico e tecnológico, o Serviço Social colou-se a uma
concepção de tecnologia social (Ander-Egg, 1996) ou de engenharia social que
o distancia da posição de actor e de autor em defesa dos Direitos Humanos e
da Justiça Social.
Enfrentamos hoje velhos e novos «bloqueios» em que estados
progressivamente mais fracos perdem a sua legitimidade e protagonismo, a
favor de um imperialismo financeiro, numa (des) orientação que alguns autores
introduzem como «pós» qualquer coisa: por exemplo, uma «democracia pós-
industrial» na expressão de Boaventura Sousa Santos (2011) com tradução em
formas de “estado pós-bem-estar” na expressão de Fernanda Rodrigues
(1999).
Da noção de «democracia pós-industrial» saliento as estratégias de uma
«democracia partidocrática» que passam pelo controlo e subversão das
instituições «criadas para obedecer a cidadãos que passam a obedecer a
banqueiros e mercados» mas, onde também se defende que os cidadãos têm
potencial para reconhecer que esta forma de democracia está esgotada, na
medida em que passem da resignação e do choque à indignação e à revolta.
114
Apesar das novas formas assumidas pelo estado de «pós-bem-estar» com a
substituição parcial da sua obrigação política por relações contratuais com
cidadãos, empresas e organizações não-governamentais, continua a ser
defendido um padrão de estado intervencionista e regulador, numa democracia
que se pretende mais «deliberativa e participativa».
Na Europa, a globalização produziu, entre outros efeitos, uma
desindustrialização acelerada e uma continuada deslocalização das actividades
de produção para outros continentes, com impactos nomeadamente na
quantidade e qualidade do trabalho disponível, nos sistemas fiscais e de
financiamento do Estado e nas políticas sociais.
Neste âmbito, não podemos esquecer que nas décadas de 50, 60 ou 70 do
século XX (dependendo dos países), o Estado educador foi uma bandeira do
Estado desenvolvimentista, em prol da lógica do desenvolvimento económico e
social em que o estado deveria pilotar a economia e fazer uso da Educação
como instrumento de desenvolvimento e coesão social. Este processo de
massificação da escola permitiu que novas camadas sociais tivessem acesso
ao ensino e que camadas mais pobres da população aspirassem a uma vida
melhor.
Em simultâneo, estabeleceu-se uma nova relação com a construção cultural de
alternativas de regulação social e rupturas sociais, onde se inscreve a
intervenção social. Neste debate, o contributo de Robert Castel identifica o
Estado social como um actor central que face a determinadas estratégias
desempenha também o papel de preparar transições. Alertando ainda para a
ideia de que o Estado-providência também é produtor do individualismo, o que
por sua vez também é característica da Globalização e que os efeitos de
democratização e de reprodução social ajudaram a criar as sociedades
contraditórias contemporâneas.
“Quando se proporciona aos indivíduos esse pára-quedas extraordinário que é a garantia da assistência, permite-se que todas as situações da existência se libertem de todas as comunidades, de todos os pertencimentos possíveis, a começar pelas solidariedades elementares de vizinhança” (Castel, 2003:507).
Este autor é particularmente crítico quanto às formas de pensar e intervir na
«exclusão», entendida como um dos fenómenos actuais mais prementes, que
115
não pode ser visto como arbitrário e acidental. A propósito apresenta como
essencial a perda da identidade pelo trabalho baseada na condição de
assalariado, num clima de precariedade estabelecida e refere que,
“É no centro da questão salarial que aparecem as fissuras que são responsáveis pela «exclusão»; é antes de mais na regulação do trabalho e dos sistemas de protecção que estão ligados ao trabalho que é preciso intervir para «lutar contra a exclusão» ” (Castel, 2003:525).
No contexto de crise da sociedade contemporânea, a cultura de «exclusão»
assumiu uma importância sintomática no quadro da governabilidade da gestão
social, mas o seu significado pluralizou-se, transformando a «exclusão» numa
espécie de «contentor» dos problemas sociais.
É quanto muito estranho que a exclusão surja como norma, como referem
Stoer e Magalhães (2005), numa altura em que se fala tanto de inclusão -
«sociedade inclusiva», «educação inclusiva». Acrescentam estes autores que a
razão para tal reside no facto dos fluxos de capital terem deixado de estar
submetidos às regulações nacionais e, na sua «lógica de casino» (Harvey,
1989) reconfigurarem as relações sociais, deslocando-as intensivamente.
“Se a inclusão for, efectivamente, definida a partir do mercado, pode ser vista como um dos processos que permite a esse mesmo mercado desterritorializar as relações sociais ao nível do estado-nação para as reterritorializar, depois, a um nível supranacional” (Stoer e Magalhães, 2005:11)
Assim, a paradoxalidade do processo de inclusão pelo consumo (onde quem
não é consumidor é excluído) reside no facto de divulgar um mercado global
onde todos os indivíduos, independentemente das suas diferenças, parecem
poder ser incluídos, ao mesmo tempo que erradica essas mesmas diferenças,
excluindo os que não estão aptos para uma «cidadania do consumo». Por
outro lado, o impacto dos processos de produção que estruturam o capitalismo
transnacional na educação/formação revela-se quer na forma como utilizam os
conhecimentos (são «conhecimento-intensivos e não trabalho-intensivos»
como referem Stoer e Magalhães, 2005:12), quer na forte pressão que
exercem sobre os conhecimentos para que se construam sob a forma de
competências. Segundo os mesmos autores, a questão da elaboração das
políticas sociais e educativas, numa época de globalização, quer na
recomposição dos próprios campos social e educativo, quer no que diz respeito
116
aos actores sociais, faz apelo a uma reconfiguração de triplo mandato,
nomeadamente no que respeita ao desenvolvimento individual, à formação dos
cidadãos e à preparação para o trabalho.
Nas últimas décadas as transformações que se produziram nos mecanismos
de regulação social tiveram consequências não só por relação à crise dos
Estados-nação, mas também nas suas funções sociais. E mais
particularmente, no papel do Trabalho Social face à política social, pois este
está no centro de contradições e de mudanças nas nossas sociedades.
“A par das dificuldades relativas à sua intervenção face à produção e distribuição de recursos para um desenvolvimento apoiado, assiste-se, face à globalização das economias, a um desajuste do estado, que se tornou demasiado pequeno para resolver os grandes problemas da vida e demasiado grande para resolver os pequenos problemas da vida” (Rodrigues, 1999:55).
Prosseguir os objectivos de luta pelos Direitos Humanos e pela Justiça Social é
um campo de possibilidades de desenvolvimento da profissão em múltiplos
formatos que faz dela, agente de escolhas políticas.
Por relação a um passado feito de práticas assistenciais, mais ou menos
filantrópicas, mas também de muitos activismos subscreve-se neste trabalho a
referência de Faleiros (2006): a ideia de colocar a especificidade do Serviço
Social no jogo entre o colectivo e o individual, entre a estrutura e o sujeito.
Para isso, será necessário reflectir que o compromisso estatal com a política
social celebra a orientação para políticas configuradas:
i) numa relação tensional de interesses antagónicos;
ii) numa concepção de desigualdades sociais como problema colectivo
que deverá suprir necessidades sociais;
iii) numa articulação com momentos e contextos específicos
o que coloca os assistentes sociais (e outros trabalhadores sociais) no campo
dessas tensões, concepções e articulações. Por outro lado, o compromisso
com as pessoas coloca os assistentes sociais face a princípios de:
i) estabelecer relações contextualizadas que tenham em conta a
intervenção multinível;
ii) assumir a incerteza e a ambiguidade;
117
iii) reconhecer a natureza interactiva da relação entre profissional e
«utente»;
iv) assumir como referencial para a acção os Direitos Humanos e a
Cidadania;
v) compreender a multiplicidade e a fluidez da identidade humana;
vi) conhecer e trabalhar no sentido do desmantelamento das dinâmicas de
opressão;
vii) lidar com a complexidade e subtileza das relações de poder;
viii) trabalhar com as forças das pessoas, não esquecendo as suas
fragilidades;
ix) reconhecer as diferenças e celebrar a diversidade como parte do seu
referencial;
x) abordar o outro como sujeito de conhecimento e compreender as
repercussões do trabalho desenvolvido (Dominelli, 2004:252).
As relações, muitas vezes tensionais, entre as «orientações» e os «princípios»
dos quadros de referência e dos contextos de intervenção dos assistentes
sociais colocam dilemas nem sempre fáceis de resolver, sobretudo na condição
de «trabalhador por conta de outrem» com margens limitadas de autonomia.
“Platão dizia que o mau homem de Estado julga poder medir tudo, misturando a consideração do inferior e do superior em busca do que convém mais ao fim pretendido. A nossa atitude para com a produção foi modelada, ao longo de séculos, por uma longa sucessão deste género de homens de estado. Pouco a pouco, as instituições não só se adaptaram à procura, como deram também forma à nossa lógica, isto é, ao nosso sentido da medida. Em primeiro lugar pede-se o que a instituição produz, depois julga-se que não se pode viver sem isso. E quanto menos se pode usufruir do que chegou a tornar-se uma necessidade, mais fortemente se sente a necessidade de o quantificar”(Illich, 1976:34).
No entendimento de que as respostas também induzem a procura, num ciclo
muitas vezes vicioso e «governado» pelo «sentido da medida», trata-se da
possibilidade de utilizar o espaço da profissionalidade para inverter a lógica de
aceleração competitiva e produtivista aplicada ao social.
Se não é possível eliminar os conflitos e os paradoxos, será importante
aprofundar a produção de sentido dos novos movimentos sociais no sentido de
superar o capitalismo - o que implica evitar as armadilhas do neo-liberalismo
mas não recusar aspectos que funcionem.
118
Bernard Charlot (1997) defende que, apesar dos efeitos negativos, a
globalização também tem potencialidades, nomeadamente com a
mundialização da lógica da solidariedade e afirma que, na medida em que
conseguirmos fazer recuar o capitalismo e a lógica neo-liberal, será possível
fazer ressaltar a perspectiva ecológica, socioeconómica e cultural-educativa.
Quando pensamos na Globalização, sobretudo enquanto fenómeno
socioeconómico de integração das economias, torna-se necessário distinguir
(segundo Charlot, 1997) quatro processos interligados:
i) A mudança estrutural do capitalismo mundial, ocorrida na sequência do
Estado desenvolvimentista da década de 70 do século passado. Nesta
mudança nem tudo pode ser imputado à Globalização, como por
exemplo o facto da Educação e da Acção Social funcionarem numa
lógica económica que precede a Globalização;
ii) As novas lógicas psico-educativas (que tiveram inicio na década de 80)
e impõem padrões de qualidade, eficácia e territorialização e que,
embora possam servir à globalização, não decorrem dela;
iii) Os efeitos da própria globalização em todos os níveis da vida, teve uma
repercussão positiva no acesso à informação e à educação de vários
países, nomeadamente nos países do sul;
iv) A solidarização da espécie humana e a maior conscientização sobre a
sobrevivência do Planeta, de que se destacam marcos importantes
como os Fóruns Sociais Mundiais e o Movimento das Nações Unidas
que defende a «Educação para todos».
Outros Movimentos Internacionais da actualidade questionam a lógica neo-
liberal onde o poder financeiro constitui uma fonte ilegítima e ‘invisível’ de
poder e prosseguem uma alter-mundialização com a bandeira da solidariedade
entre a espécie humana, onde o homem possa assumir uma nova posição em
defesa de sociedades mais justas e sustentáveis.
No relacionamento da globalização com a democracia, Rodrigues diz que:
“A tradução da globalização como forma de «governação sem governo» conota-a com um território onde as orientações assumem um cunho à margem dos mecanismos habituais de decisão, nos quais melhor se identificam os actores e alvos dos processos de negociação e de reivindicação (traço fundamental na dinâmica da política social e do Estado social) ” (1999:42).
119
Esta posição destaca uma característica de funcionamento da globalização
como estando «fora» de qualquer controlo dos cidadãos e das organizações
que teoricamente os representam, conforme instituído nos Estados de Direito
das democracias ocidentais. Admitindo que um dos efeitos da globalização é a
mudança estrutural do poder e do papel dos Estados nacionais, será que o
estado-social (nas suas diferentes modalidades) tem futuro como espaço de
regulação? E com, ou sem estado-social, que futuro(s) para os direitos
humanos e para o ideal de ‘justiça social’ ? Continuarão relacionados com a
procura de uma maior justiça redistributiva?
120
2.2. UMA PROFISSÃO A EXPLICITAR
A necessidade de explicitação desta profissão, que tem «produtos» pouco
visíveis, não utiliza «tecnologias» muito específicas e tem um corpo teórico
multireferencial, prende-se fundamentalmente com a importância de nomear os
contextos, os actores, as forças e os fenómenos vividos e experienciados no
decurso da profissão, numa teia de compromissos com os «destinatários» das
intervenções sociais, com as instituições, com a profissão enquanto actividade
ligada à reflexividade, com a produção de conhecimento próprio e específico e,
a um nível macro, com a mudança societal.
Esta necessidade, ou esta exigência de explicitação, não é nova nem exclusiva
dos Assistentes Sociais. No caso dos professores, Rui Canário sublinha a
importância dos processos de explicitação e de fundamentação das práticas,
traduzindo em linguagens simbólicas que tornem possível a produção de um
saber na acção, comunicável a outros. O autor salienta que:
“…estes processos de explicitação são caminhos alternativos para superar uma relação de causalidade linear entre a formação e a mudança em que a prática profissional é encarada como uma modalidade de aplicação do saber transmitido por especialistas (…) a importância de privilegiar estratégias ecológicas e indutivas em que os profissionais e as organizações mudam ao mesmo tempo (…) através de uma acção transformadora que assume a forma de um processo colectivo de aprendizagem” (in Prado e Soligo:2005:12).
Nesta linha dos «processos de explicitação e fundamentação das práticas
comunicáveis a outros», colocam-se questões complexas relativas aos códigos
e aos canais para viabilizar essa comunicação. Colocam-se também questões
«internas», referentes aos valores, ao conhecimento e aos sentidos atribuídos
pelos profissionais aos seus exercícios, onde toma lugar a questão da
especificidade e da complementaridade dos diferentes saberes, e também a
tomada de consciência e o compromisso com a «acção transformadora» que
possibilita, ou não, os referidos processos colectivos de aprendizagem que, em
teoria, facilitam a mudança de profissionais e organizações em simultâneo.
É nossa convicção de que a questão social carece de ser novamente colocada
como uma questão política que liga os problemas das pessoas e as
determinações das sociedades.
121
Neste entendimento coloca-se a hipótese de que será na medida em que os
Assistentes Sociais puderem tomar consciência que também eles/elas são
actores e vítimas das lógicas impiedosas do mercado (tanto quanto os públicos
que se lhes dirigem), que talvez possam continuar a garantir a construção de
uma profissão que precisa de ser reflectida, contada e relegitimada.
Na medida em que os profissionais conseguirem reconhecer, enquadrar,
apropriar, e dar a conhecer as tensões e lutas políticas, quer seja no
crescimento reivindicativo dos direitos das pessoas, ou nas mudanças
importantes em torno da implementação e avaliação das acções, ou ainda em
volta das competências e da evolução das profissões e dos conhecimentos
próprios construídos ao longo das trajectórias de vida, talvez a profissão possa
conquistar espaços de autonomia e reconhecimento, constituindo-se como um
campo de participação na mudança social e afirmando o seu potencial de
intervenção política e social.
Reafirma-se assim que este debate se situa num campo de batalha ideológico,
onde se activam múltiplos actores e movimentos sociais, em busca de uma
reconfiguração dos limites e das potencialidades do próprio conceito de
«mandato» - o que se apresenta como um campo de possibilidades para o
corpo profissional se pensar e aproveitar mais uma crise na sua construção
profissional, de modo a afirmar identidades, necessariamente múltiplas e
variadas, em novos modelos e formatos que possam permitir uma «acção
crítica no sistema e uma acção crítica fora do sistema» (Stoer e Magalhães,
2005:57).
Para mim, que me defino por uma multiplicidade de vertentes
intercomunicantes e interactivas (que conjugam «papéis», genealogia,
espaços, tempos…), uma miríade de «pertenças» e de «afinidades» mas
também como pessoa activa, trabalhadora e profissional, é relevante a
concepção sistémica de que «o todo é maior do que a soma das partes».
É precisamente com este mote que me debruço sobre uma das ‘partes’, a
profissional, sabendo que só por exercício analítico, esta separação é possível.
Na ‘parte’ que responde pela designação profissional de Assistente Social foi
importante partir de um caminho de reflexão a partir de dentro deste campo
profissional, embora com uma abordagem que procura colocar interrogações e
122
não se confina a um «espírito de corpo» ou a uma pretendida disciplinaridade,
embora seja participante na vida profissional e na formação continuada de
assistentes sociais.
A herança cultural da profissão admite uma grande pluralidade, cujos traços
são entendidos como marcadores de culturas específicas, muito embora a sua
conotação mais frequente seja acompanhada como tentei abordar, pelas
metamorfoses simbólicas da pobreza.
O discurso histórico sobre o Serviço Social é actualmente um campo de
investigação (nomeadamente os trabalhos de pós-graduação de Maria Isabel
Santos, 2008, 2009) mas não é por aí que pretendo enveredar.
As motivações que me norteiam têm a ver com a convicção de que, mais
importante do que apropriar «o» percurso da profissão, importará que cada
profissional possa constituir a «sua» história sobre a herança do Serviço Social,
conhecendo, divergindo ou confluindo com autores ou referências
(necessariamente parcelares), mas posicionando-se e construindo o seu
‘reportório’ próprio.
Foi o que procurei fazer, utilizando para tal contributos de assistentes sociais
que têm reflectido e produzido sobre estas questões e cruzando
necessariamente com a história de ‘como me tornei assistente social’ num
dado tempo histórico e em determinados contextos.
Esta é uma complexidade que reflecte a complexidade da vida e, neste
pressuposto, faz-me sentido a visão defendida por Payne de que
“…o trabalho social é um discurso entre ideias em acção que nos alerta para a importância de olhar para os padrões de relações entre teorias e os seus apoiantes” (1997:395).
Se entendermos que as teorias são visões do mundo mas não são o mundo,
percebemos a sua importância para nos organizar e orientar mas também as
diferenças entre as teorias – quer as que são mobilizadas de campos de
conhecimento próximos, quer as teorias próprias do Serviço Social construídas
a partir do conhecimento interno do campo profissional – e os problemas e as
«realidades» que as pessoas enfrentam.
As perspectivas teóricas dão-nos referências que nos ajudam nomeadamente,
a entender o alcance macro das questões que temos de enfrentar, a tomar
posição nas opções ideológicas, políticas e sociais e a mobilizar um corpo de
123
conhecimentos para a acção, mas a maioria de nós combina essas ideias à
medida das circunstâncias e do que vai precisando - como um músico de Jazz
que faz «improvisos» mas para os quais tem de ter profundos conhecimentos
musicais.
As ideias do construtivismo social apontam para um meta-nível sobre a
profissão e o seu objecto, construído na intersecção do social e do individual.
A linguagem e a comunicação pelas quais nos construímos e construímos as
ideias do mundo em que intervimos, as estruturas sociais onde somos agentes
e que nos limitam e nos legitimam, e os modos de pensamento e
comportamento são alguns dos aspectos presentes na diversidade e fluidez do
objecto do Serviço Social. Como refere Payne (1997) é tão difícil ver o trabalho
social em qualquer caso individual como isolado dos seus aspectos sociais,
como é investir na mudança social, sem respondermos às necessidades
individuais.
A perspectiva da crise endémica leva-nos a concluir que a modernidade se
caracteriza pela contingência e instabilidade generalizadas e reposiciona a
crise transformando-a numa «característica» da modernidade e num «campo
minado» de crise dos paradigmas analíticos das ciências sociais, onde a pós-
modernidade questiona as macro-abordagens e valoriza as «micro narrativas».
Eventualmente estas possibilidades de «explicitar a profissão» parecerão a
muitos Assistentes Sociais tão mais distantes quanto nunca terá sido tão difícil
como hoje arranjar e manter trabalho, o que não parece oferecer condições
para dedicar tempo e energia para construir a profissão enquanto «sujeito
colectivo». No entanto, a profissão parece estar tanto mais em risco de
indiferenciação ou de extinção quanto os profissionais se deixarem subjugar às
lógicas instrumentais e se limitarem a uma «luta» individual por obter um posto
de trabalho, reduzido ao mínimo de autonomia ou eliminando a sua
«conscientização» e prática crítica.
REVISITAR A PROFISSÃO
Se tomarmos como referência a abertura da primeira escola com o Curso de
Serviço Social em Portugal (1935, em Lisboa), podemos afirmar que existe
124
uma história da profissão com quase 80 anos. Ao longo destes anos, foi feito
um caminho de qualificação técnica e académica, de intervenção nas
organizações e junto das populações, de conquista de ‘campo’ e de
reconhecimento social, mas também de reflexividade e de investigação na
procura de conhecimentos próprios como tentativa de consolidar a profissão e
fazer reconhecer a disciplina.
Contudo, é o questionamento como «profissão», sobretudo por autores
externos ao campo profissional, que aqui pretendo equacionar. E na
perspectiva aqui utilizada o debate sobre se, efectivamente, será ou não, uma
profissão não pode ser dissociado da controvérsia sobre a sua legitimidade.
A emergência desta profissão num dado tempo histórico pode ser justificada,
segundo Helena Mouro,
“… no quadro de vários raciocínios como uma profissão que resulta de uma dinâmica histórica do aperfeiçoamento da ‘arte de bem-fazer’; como uma profissão de ‘obreiras’ sociais que se servem de uma ‘química social’ para relativizar o corte epistemológico que a sociedade capitalista fez com o modelo clássico de práticas herméticas de regulação social; ou ainda, como uma sub-profissão ligada ao desenvolvimento das necessidades sentidas pelas ciências sociais em reutilizar as práticas de ajuda social para sufragar as exigências decorrentes do progresso do mercado científico e das mudanças do modelo de gestão política dos problemas sociais” (2001:31).
No entendimento utilizado nesta investigação caracteriza-se o Serviço Social
como uma profissão pós-industrial que ocupa um lugar na divisão sócio-técnica
do trabalho com um mandato que intervém na «questão social» e que ganhou
relevância nas sociedades industrializadas, na sequência de fenómenos sociais
em massa e da assumpção pelo estado de respostas sociais, com
enquadramentos políticos e ideológicos precisos. Esta consideração
fundamenta-se na medida em que:
Se refere a uma prática que exige uma formação especializada e
específica de nível superior, que corresponde a um trabalho reconhecido
e que se distingue dos outros;
Se integra no movimento societário geral de criação de grupos
ocupacionais que têm um papel atribuído e reconhecido publicamente;
Lhe é imputado um sistema de valores aceite e com responsabilidade
moral, que corresponde às expectativas atribuídas e que é
genericamente olhado como competente e eficaz (Payne, 1997).
125
Enquanto profissão, a trajectória de vida do Serviço Social não pode ser
desligada das diferentes perspectivas que equacionam a sua existência sócio
histórica. Neste suposto, a questão da legitimidade formal da profissão passa
por uma análise sobre a institucionalização, desde as formas de
profissionalismo aos seus jogos político-simbólicos, centrados nas questões do
estatuto social e do mercado, mas também da análise do «uso social da
ciência» e, mais particularmente, do trabalho dos grupos profissionais que
garantem o uso social dos sistemas periciais de conhecimento (Giddens,
1992).
De facto, ao longo da história da profissão verifica-se a influência (mais do que
a capacidade de influenciar) de todas as alterações e mudanças societárias e
de correntes de pensamento, a nível económico, político e social. Ou, como
diria Yolanda Guerra (2001) numa perspectiva mais determinista, a profissão é
«o produto de um arranjo teórico-político-doutrinário».
Na sociedade industrial, a profissionalização tornou-se assim um processo
central pela especialização de funções e também pelo processo de
«assalariazação»; neste entendimento e a título de exemplo, Michel Autés
refere-se às profissões sociais assalariadas como «semi-profissões», com um
estatuto híbrido de não serem nem totalmente assalariadas, nem totalmente
autónomas. Este autor refere que a verdadeira essência do trabalho social
joga-se na dimensão simbólica e caracteriza o trabalho social como um
trabalho da norma e sobre a norma, em que:
«…o seu fazer, o seu gesto, o seu dizer» inscrevem-se nesse espaço onde as técnicas são apenas pretextos e onde o que está verdadeiramente em questão «são as margens do social e, por vezes, a fronteira do humano» (Autés, 2004:233).
Referindo-se à sua posição estatutária (e destacando que os assistentes
sociais são maioritariamente assalariados) Chopart defende que o Serviço
Social é uma «quase profissão», na medida em que não lhes é conferida a
autonomia à qual pode aspirar um verdadeiro grupo profissional, embora
reconheça que:
“…são actividades «nobres» fundamentadas numa ética da ajuda e da compaixão para com o outro; e elas podem reivindicar algumas das características que definem a autonomia dos grupos profissionais: o fechamento através de ‘numerus clausus’, a existência de um código deontológico comum, um certo domínio do aparelho de formação, etc. “ (Chopart, 2003:97).
126
Por um lado, o Serviço Social materializa-se em narrativas de compromisso
com os direitos humanos, com a justiça social e com a auto-determinação das
pessoas em situação de vulnerabilidade social mas, por outro, a sua
legitimidade continua a advir das instituições onde os profissionais exercem
para operacionalizar medidas, de assistência ou de políticas sociais, redistribuir
recursos e/ou exercer controlo social, ou realizar projectos de desenvolvimento
social ou educacional.
Nesta análise e, já que os conceitos nunca são neutros e ficam ligados à
ancoragem teórica que se faz, parece importante a mobilização dos conceitos
de «profissão» e «campo profissional» para situar historicamente a profissão
de assistente social e compreender as dinâmicas de recomposição do grupo
actualmente designado de «trabalhadores sociais» no qual se inscreve e no
qual se incluem diversas actividades profissionais, diferentes formações e
diferentes qualificações (Ion e Tricart, 1985).
O termo «profissão» começa por ser utilizado nos tempos da Revolução
Industrial, para contrapor à designação de «artesão». Até então, um
determinado trabalho era concebido e realizado por alguém que dominava todo
o processo, o que caracterizava o processo artesanal de produção. Com a
divisão social do trabalho, assiste-se a uma crescente fragmentação e
especialização do trabalho que multiplicou as profissões e as organizações.
Verifica-se que tanto na linguagem científica como na linguagem comum sobre
os grupos profissionais, o conceito de profissão opõe-se à ideia de
amadorismo. E nos processos de afirmação de uma ocupação por oposição
aos modos amadores de desenvolvimento da respectiva actividade, tiveram
influência, designadamente, as mudanças tecnológicas, organizacionais e as
novas técnicas, o aumento dos níveis de qualificação de muitas ocupações, as
mudanças na organização do trabalho das profissões estabelecidas e mais
antigas (como a integração progressiva em organizações) e o aumento de
ocupações que aspiravam ao estatuto de profissão.
No âmbito da Sociologia, a Sociologia das Profissões e a Sociologia das
Organizações, com histórias e enfoques diferentes, têm produzido ampla
evidência científica. Sem pretender fazer uma análise das diferentes teorias
127
destes campos, situava apenas estes ramos da Sociologia como herdeiros dos
estudos de Durkheim, Weber e Marx, tidos como seus precursores.
O «ramo» da Sociologia das Profissões surge com identidade própria nos anos
30, nos E.U.A. no âmbito das teorias funcionalistas, sendo T. Parsons e, mais
tarde, nos anos 50, Merton, os autores mais identificados. No princípio do
século XX, o corte no mundo do trabalho nos Estados Unidos entre as
«profissões» (médicos, advogados, …) e as «ocupações» era muito vincado e
as teorias funcionalistas, distinguindo profissão de ocupação, defendem o
conceito de profissão quando existe organização de uma comunidade
reconhecida, ocupando uma posição social e/ou organizacional elevada e com
uma formação longa.
Nessa mesma época, também nos E.U.A. emerge uma nova corrente, ligada à
Escola de Chicago, designada de sociologia interaccionista, com E. Hughes
entre os seus principais pensadores. Os defensores das teorias interaccionistas
colocam a socialização no centro da análise das realidades de trabalho e
distinguem-se por caracterizarem as profissões pela valorização das
interacções dinâmicas. Ao considerarem a biografia e a interacção como
elementos importantes, consideram também que as actividades de trabalho
são processos, ao mesmo tempo, de relações dinâmicas com os outros e
subjectivamente significativos.
Os estudos consultados, na perspectiva do interaccionismo simbólico, centram-
se nos processos de profissionalização, da emergência, da consolidação e do
desenvolvimento de cada grupo profissional. Nesta perspectiva são analisadas
as práticas profissionais dos membros desse grupo e as estratégias que
desenvolvem no sentido de construírem uma identidade colectiva, de obterem
o reconhecimento social das suas competências específicas, de conseguirem o
monopólio de um certo domínio do saber e do trabalho, e de terem acesso a
níveis elevados de estatuto social. Assim, os conceitos de profissionalismo e
profissionalização encontram-se em estreita relação e particularmente
articulados com o conceito de profissão defendido pelo interaccionismo
simbólico:
o profissionalismo apela para os processos e estratégias de defesa e
promoção de um grupo profissional (melhoria de capacidades e
128
racionalização de saberes; estratégias de reivindicação para ascensão na
hierarquia das actividades; adesão às normas do grupo);
a profissionalização diz respeito ao processo a empreender para ascender
ao estatuto de profissão (Araújo, 1985).
No fim dos anos 60 e na década de 70, as teorias funcionalistas e
interaccionistas cedem lugar às teorias «neo» marxistas e «neo» weberianas.
Estas correntes integram os processos subjacentes ao movimento capitalista -
nomeadamente a passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo
monopolista que traz como consequências, entre outras, a concentração do
capital, a burocratização das empresas e o aumento de trabalho qualificado
face à evolução tecnológica e à especialização das funções de gestão.
Estes processos incluem aspectos relativos ao saber, com a institucionalização
do saber formal, e ao poder, através de formas de controlo do/no trabalho.
Apesar de existirem especificidades tipológicas na caracterização do conceito
de profissão, pode identificar-se, segundo Dubar (1997a), como pontos comuns
a existência: i) de princípios éticos e deontológicos para a regulação da
actividade profissional; ii) de saber científico, como garantia da competência e
da especialização de um grupo profissional.
Estes princípios e estes saberes serviriam, em simultâneo, para proteger o
campo, fazendo de barreira à entrada indiscriminada de indivíduos para a
profissão. Nesta abordagem sociológica são utilizados três elementos
fundamentais: a exclusividade profissional, a utilização do conhecimento
abstracto e a autonomia face aos clientes e face ao Estado.
No sentido de construir e fazer reconhecer uma profissão, podem identificar-se
duas vias históricas de relação entre poder e saber, quer através da iniciativa
do Estado que cria os “títulos escolares” e regula o acesso a estatutos sociais
de grupos profissionais em situação de monopólio; quer através da acção
colectiva de elites sociais, que fazem reconhecer uma disciplina dotando-a de
dispositivos cognitivos e práticos e obtendo dos poderes políticos o monopólio
de um mercado para a profissão (Dubar, 1997a)
Para que uma ocupação possa chegar ao estatuto de profissão, existem várias
dimensões a ter em conta designadamente:
129
“…a sua história, o seu conhecimento teórico e prático transmitido longitudinalmente, a formação de base e especializada ao longo da vida, a sua legitimidade em termos da regulamentação da actividade e aceitação pela sociedade” (Carvalho: 2003: 39).
Claramente, na história da profissão de Serviço Social, se percebe que estas
vias não se excluem mutuamente, quanto muito desencontram-se no tempo.
No caso, e dada a particularidade da situação portuguesa é difícil dizer onde
acaba a acção das elites e começa a do Estado.
Se do ponto de vista histórico, se pode referir que a construção e o
reconhecimento da profissão de Assistente Social processou-se numa primeira
fase pela pressão das elites e só mais tarde o Estado regulou a titulação,
também se verifica (aliás, o que não é um exclusivo do Serviço Social) a
grande importância do Estado como actor preponderante no seu processo de
nascimento e desenvolvimento, designadamente nos aspectos ligados à sua
emergência, reconhecimento, legalidade, mercado de trabalho, poder, prestígio
e às orientações políticas que a podem favorecer ou desqualificar (Negreiros,
1993: 9 – 11).
Por sua vez o conceito de «campo profissional» ainda parece mais difícil de
definir, conforme justifica Chopart (2003) numa publicação que nos dá conta de
um programa de investigação centrado em «Observar os empregos e as
qualificações das profissões de intervenção social». Partindo da constatação
de que neste campo profissional «mais ninguém sabe quem é e quem faz o
quê», o autor identifica alguns factores que contribuíram para esta situação
como:
“…a multiplicação de parceiros de intervenção, as estratégias diferenciadas dos empregadores, as evoluções das práticas e das modalidades da acção social e a rápida obsolescência das categorias tradicionalmente utilizadas para descrever o campo profissional…» (Chopart, 2003:15).
No estudo citado são identificadas duas teses distintas para abordar o «campo
profissional»:
A «tese do núcleo duro e da periferia» em que é defendida uma visão
próxima dos modelos profissionais anglo-saxónicos e onde sobressai a
hipótese de um «mercado interno» regido por lógicas de fechamento (com
um núcleo duro onde os empregos sociais são ocupados na sua maioria por
assistentes sociais diplomados ou reconhecidos pelas autoridades da
130
tutela) sendo a mudança, com o surgimento de novas especialidades,
entendida como periférica e situada nas margens;
A tese de que «é o conjunto do campo profissional que está em mutação»
em que se coloca a hipótese de que:
“…as categorias utilizadas para descrever este campo profissional (os sectores de intervenção, a denominação dos cargos, a suposta adequação entre os títulos possuídos e as actividades de trabalho) são, talvez dentro de uma certa medida, obsoletas, convindo, portanto, desconfiar de um possível artifício” (Chopart, 2003:16).
Situados os pólos deste debate, esta equipa de investigação adoptou uma
definição muito vasta que me esclarece pouco: o campo profissional é
constituído por “um conjunto de lugares onde exercem funções «trabalhadores
sociais». Em bom rigor, as definições do objecto e do método, respectivamente
como:
“…todas as actividades remuneradas por financiamentos com fins sociais, exercendo-se num quadro organizado, seja público seja privado, e visando pessoas ou públicos com dificuldades de integração social ou profissional numa perspectiva de ajuda, de assistência ou de controlo, de mediação ou de acções de animação ou de coordenação” e o método como “ estritamente indutivo, partindo da recolha de observações empíricas relativas às práticas e aos pontos de vista dos actores” (Chopart, 2003:17)
também não parecem avançar muito para além de uma tentativa de
explicitação. No entanto, esta investigação propõe uma interessante tipologia
de práticas de intervenção social, por referência aos conteúdos da actividade e
desligada das denominações profissionais (Chopart, 2003:41- 49). A saber:
Os trabalhos de «presença social» (trabalhos de acolhimento e trabalhos de
rua);
Os trabalhos de organização social (os quadros gestores de serviços, os
quadros intermédios que combinam a lógica de direcção e a lógica de
intervenção e os coordenadores de programas);
Os trabalhos de intervenção directa (o modelo de intermediação, o modelo
do acompanhamento de base processual, o modelo de acompanhamento
socializante).
Qualquer destas práticas pode, ou não, ser exercida por Assistentes Sociais
sendo que na década em análise (1986-1996) de entre as profissões
consideradas (Assistente Social, Educador Social, Monitor-educador, Educador
de crianças pequenas e Auxiliar Médico-psicológico), apesar de ser a profissão
131
com maior número de elementos, foi aquela que revelou menor taxa de
crescimento (Chopart, 2003:30).
Se os anos de crescimento económico permitiram às profissões sociais
(nomeadamente aos assistentes sociais) adquirir a sua legitimidade, estender o
seu campo de intervenção e ver o seu número de efectivos crescer
consideravelmente, a partir dos anos 80 nos países da Europa dita
desenvolvida e dos anos 90 em Portugal, assiste-se a uma fase de
estabilização.
Esta tendência que entrará em curva decrescente, associa-se ao crescimento
do número e diversidade de diplomados com formação e apetência para
trabalhar no campo profissional e vai conjugar-se com as restrições
orçamentais que começam a favorecer a opção por contratar pessoal menos
qualificado. Ao conjunto destes factores externos soma-se um movimento de
especialização das profissões sociais, em que aparecem novas funções e se
transformam as próprias profissões instaladas do Trabalho Social, permitindo o
desenvolvimento de outros empregos mais especializados (como por exemplo,
coordenadores de projecto, agente de desenvolvimento, etc.).
Temos assim um quadro em que a regulação dos sistemas de emprego não
parece privilegiar as certificações profissionais,
“…mas antes uma combinação variável de um conjunto de factores: o peso das profissões qualificadas combinado com a abertura do mercado de trabalho à retórica das competências, ao reforço de todos os níveis das exigências de qualificação geral, ao desenvolvimento predominante de profissões com mais fraca qualificação nas situações mais em contacto com o público, à transformação das organizações segundo lógicas gestionárias e, finalmente, segundo a importância dos contextos locais na construção de sistemas de emprego complexos, flexíveis e abertos” (Chopart, 2003: 59,60).
O mercado aberto das competências, neste ponto de vista, remete para um
modelo de profissionalidade gestionária que utiliza as noções de projecto, rede,
território, flexibilidade e avaliação (Demailly, 1998), reinscrevendo as profissões
sociais na Sociologia das Organizações e fazendo-as sair das figuras norte-
americanas da Sociologia das Profissões.
Os modelos de formação contínua de Lise Demailly são tomados como
modelos teóricos de análise das formas de socialização responsável pela
produção da identidade desejada pelas instituições formadoras.
132
Nóvoa a propósito da formação da profissão docente, observa que a forma
«interactiva-reflexiva» é a melhor forma de conceber uma “formação contínua
que contribua para a mudança educacional e para a redefinição da profissão”
(2002:55). Embora refira que as formações por competências ou os modelos
escolares ou universitários sejam mais eficientes a curto prazo, também
destaca que estes modelos tendem a reproduzir as realidades educacionais
existentes, dificultando o trabalho de invenção (e de produção) de «novos»
profissionais.
Estas mudanças de concepção não são homogéneas, totalitárias nem
consensuais, permanecendo uma auto-representação do Serviço Social como
«profissão» especialmente dotada para algum do trabalho social e continuando
as suas estruturas colectivas (nomeadamente a Associação de Profissionais) a
reivindicar uma protecção de campo e vias de acesso restritas aos seus
diplomados. A reinterpretação destes conceitos e perspectivas fora das lógicas
lineares e sequenciais, ganha proximidade com a análise das práticas
profissionais reais (e não das prescritas) e com as estratégias desenvolvidas
pelos profissionais nas diferentes interacções onde são actores, em posição
claramente divergente com perspectivas como a de Carvalho:
“A profissionalização tende para um sentido sequencial de eventos ou etapas seguidas pelos grupos ocupacionais até ao estádio do profissionalismo, como seja, a passagem da actividade amadora à ocupação a tempo inteiro; a criação de associação profissional; a protecção legal e a definição de um código de ética” (Carvalho: 2003:33 - 34).
A análise e produção de conhecimento sobre os processos de
profissionalização apesar da sua quantidade, diversidade e qualidade, estão
longe de se esgotar, subsistindo as possibilidades de novos entendimentos das
actividades de trabalho. Dubar (2006) neste âmbito, lembra ainda que:
Não existe profissão separada, do sistema profissional ao qual pertence;
Não existe profissão unificada, mas segmentos profissionais variavelmente
identificáveis, organizados ou concorrenciais;
Não existe profissão estabelecida, mas processos de reestruturação e
desestruturação profissionais;
Não existe profissão objectiva, mas relações dinâmicas entre instituições de
formação, de gestão, de trabalho e trajectórias biográficas no âmago das
quais se constroem identidades profissionais.
133
Na literatura de Serviço Social existe um discurso recorrente sobre a identidade
profissional, sobre a especificidade (ou a falta dela) e/ou sobre as
interrogações sobre o seu futuro que por serem tão constantes, arriscaria a
dizer que já fazem parte integrante da definição da profissão. Veja-se a este
propósito a posição de Lecomte (citado por Amaro, 2009:230) que refere ser o
“permanente debate que existe no Serviço Social a propósito dos seus
fundamentos, missão, limites e especificidades que conferem dinamismo e
força à profissão”.
O Serviço Social possui como já referi, uma história e uma formação
específica, que se veio a qualificar, nomeadamente com a sua graduação
académica. Coloco a hipótese de que este reconhecimento recente de grau
académico esteja ligado a uma certa necessidade de afirmação e conquista de
paridade científica e profissional, agravada na actualidade por uma enorme
disputa de «terreno» entre trabalhadores sociais, de diferentes formações.
Das condições mais problemáticas para o reconhecimento da profissão são a
questão dos seus saberes específicos e da legitimidade do Serviço Social que
continuam longe de consensos, dentro e fora do corpo profissional. Neste
âmbito, é fundamental a detenção de um corpus teórico-conceptual próprio,
reconhecido na comunidade científica e mobilizado pelo campo profissional.
As divergências sobre este último aspecto têm admitido vários cenários que
podem ir desde a «prática profissionalizada» à «quase-profissão» ou à
«profissão», conforme se entenda a existência, ou não existência, de um
‘conjunto articulado de saberes próprios’ e de uma certa autonomia, mas
também conforme o quadro teórico de análise e o entendimento do seu
objecto.
No terreno, a segurança sobre «o que e como se faz» e sobre «o que se sabe»
parecem estar aliadas com a insegurança sobre a validade desse «saber» por
relação aos referentes académicos. O significado e o estatuto «do que se
sabe» continuam a colidir com tensões internas e externas aos próprios
profissionais, num tempo em que os Assistentes Sociais quando encontram
trabalho estão (permanecem) sobre o imperativo de resolver problemas e não
de os colocar. Por outro lado, a diversidade de interpretações disponíveis sobre
134
os «problemas sociais» e as maneiras de os resolver/minorar e o poder
determinante das instituições sociais sobre as práticas profissionais dos
assistentes sociais, são factores a ter em conta no auto e no
heteroreconhecimento profissional:
“…a abundância de interpretações e de definições dos problemas sociais responde às incertezas ligadas à posição social ocupada e aos objectos da prática: as margens, o sofrimento, o sem nome e o sem lugar, o «problema social», que inquieta a racionalidade do conjunto societal” (Autés, 2004:234).
Por outro lado ainda, os tradicionais empregadores de Assistentes Sociais – o
sector público, as empresas e as instituições privadas sem fins lucrativos –
ampliam os vínculos de trabalho precários, flexibilizando os contratos e
introduzindo os contratos por tempo parcial. Estimula-se assim sobretudo as
actividades de gestão, administração e racionalização dos serviços,
transformando o Assistente Social num trabalhador temporário ou ‘micro
empresário de si’, prestador de consultadoria ou assessoria.
Segundo Faleiros, o contexto de intervenção que o Assistente Social encontra
hoje é o de “prestação individual de serviços e de articulação colectiva dos
sujeitos, de desenvolvimento do terceiro sector e do sector privado” (1996:15).
Esta situação tem consequências na rotatividade dos profissionais, na sua
instabilidade e perda de rendimento, mas também na desqualificação
profissional e numa maior fragmentação – o que reforça a fragilidade teórica e
analítica da profissão. Sendo uma profissão muito permeável, ou camaleónica
como gosto de lhe chamar, os desempenhos profissionais têm sofrido
profundas mudanças, na tentativa de gerar valor (e reproduzir valores) para
cada circunstância e tempo histórico.
Nas últimas décadas no mundo do trabalho, as transformações ocorridas têm
produzido modificações significativas para o Serviço Social, reordenando o
mercado formal de trabalho dos assistentes sociais, quer no âmbito das suas
condições objectivas e subjectivas de trabalho, quer nos seus espaços sócio-
ocupacionais. Destacam-se:
a metamorfose do Estado (historicamente o grande empregador de
Assistentes Sociais), com a consequente alteração de papel das políticas
sociais e o reordenamento e redimensionamento das suas funções;
135
a “refilantropização” da questão social, onde se esbatem os direitos sociais e
as necessidades das classes mais pobres são remetidas para o mercado e/ou
tornadas objecto de responsabilidade individual, submetidas à benevolência e à
solidariedade;
a transferência de serviços estatais para a sociedade civil, através de
sectores comunitários e organizações não governamentais.
Na tese de Inês Amaro (2009:213) podem verificar-se testemunhos de
profissionais do género: «os assistentes sociais são engolidos pelo dia-a-dia»;
«as instituições trituram-nos», «ficam colados à instituição», etc., o que faz
reflectir sobre os papéis institucionais que lhes são atribuídos na organização
do trabalho e que eles/elas aceitam desempenhar numa classe profissional que
se reconhece como muito individualista e com pouca visibilidade social.
No senso comum e, para grande parte das pessoas, à designação «Assistente
Social» são feitas associações com o apoio à população pobre e
«problemática», distribuição de recursos, atendimento individual de casos e/ou
retirada de crianças (em situação considerada de risco ou de perigo) às
famílias, entre outros componentes do estereótipo. Eu própria, ao longo do meu
percurso profissional e de vida tenho sentido a necessidade de explicitar «o
que faz» um/a Assistente Social, começando na maioria das vezes por tornar
claro «o que não faz» e o que se pretende com um trabalho desta natureza.
Partindo do princípio que, face ao desconhecido ou ao menos conhecido,
temos tendência a utilizar pré-conceitos, recorrer a estereótipos e
representações sociais para enquadrar as «realidades», faz-me sentido uma
constância de explicitação, pela sua função pedagógica e reflexiva, mas
também para multiplicar as narrativas socialmente disponíveis sobre este
trabalho complexo:
O serviço social como herdeiro de uma dupla genealogia entre a acção
tutelar do Estado sobre os indivíduos e o trabalho emancipatório no seio da
sociedade;
O serviço social constituído por diferentes lógicas (de gestão, de controlo,
de projecto, de participação, de investigação…);
O serviço social que se situa nos tais espaços «entre»; por exemplo, entre
práticas multisseculares de assistência e as capacidades da sociedade se
136
produzir a si própria, através de processos de mudança endógena,
ecológica e participativa.
Nesta perspectiva este questionamento constitui uma oportunidade para o
Serviço Social reavaliar e debater algumas das suas narrativas internas,
reconhecendo que ao mesmo tempo que tem problemas de ancoragem
epistemológica e de delimitação de campo, também tem uma enorme
plasticidade e capacidade de renovação. E sobretudo que, no Serviço Social
como em outras profissões, este debate está em aberto e poderá ser gerador
de evolução positiva.
O QUE SIGNIFICA «SER» PROFISSIONAL?
Neste tempo de mutações nas organizações e na natureza do trabalho, as
identidades ocupacionais parecem ter menor expressão. A identificação pelo
trabalho (no sentido das pessoas se definirem por aquilo que fazem) está para
muitas pessoas, cada vez mais distante, em circunstâncias de grande
heterogeneidade de desempenhos e de trabalho muito volátil marcado pelo
conceito de «performance», mais do que pelo «conhecimento».
Admite-se que as estratégias de classe ligadas a essas identidades
ocupacionais também estejam em mudança, pelo menos com sinais evidentes
nas profissões sociais. As novas classes médias, sentindo o seu estilo de vida
presente e futuro ameaçado pela fragmentação do trabalho e pela
reestruturação das profissões, procuraram tomar a supremacia na ascensão do
desempenho como uma cultura de aprendizagem, sublinhando em simultâneo
o abaixamento dos padrões académicos (Stoer e Magalhães, 2005:86).
Ao ler o livro de Maria Lúcia Martinelli sobre «Serviço Social – Identidade e
alienação» (2006) deparei-me com uma citação de Hegel constante num dos
seus trabalhos da juventude: «Pensar a vida, eis a tarefa». Convergindo com
esta autora sobre o eco que esta frase me provoca, intui que o que
verdadeiramente me mobiliza na análise das múltiplas entradas que poderiam
constituir objecto da presente tese é a tentativa de pensar de forma inteira a
profissão e a vida. O que não aconteceu na maioria do meu percurso de vida,
137
marcado por muitas dúvidas e interrogações sobre o papel que ocupou (e
ocupa) o trabalho na vida e me remete para a complexidade dos processos de
construção identitária.
Os pensamentos marcantes do nosso século, estão de acordo na crença em
que o trabalho não alienado, pode tornar-se o lugar da plena realização de si,
ao mesmo tempo que da utilidade social (Méda, 1999: 28-30).
Destas correntes de pensamento destaco:
1) o pensamento judaico-cristão que inscreve o trabalho na relação
fundamental com o outro e na ideia de utilidade social;
2) o pensamento humanista e sociológico, que concebe o trabalho como o
verdadeiro lugar da socialização real e da formação da identidade individual e
colectiva;
3) e o pensamento marxista, que defende que o verdadeiro trabalho é
fundamentalmente social uma vez que une, num esforço aceite por todos o
conjunto de produtores, que realizam juntos a produção necessária não só à
satisfação das necessidades humanas, mas também à realização dos desejos,
individuais e colectivos, numa resposta colectiva a necessidades colectivas.
Pensar a profissão em conjunto com a vida significa na terminologia de
Christine Josso (1991) «um caminhar para si» que se impõe para atingir a
pretendida «inteireza». O que pretende dizer que na identidade plural, múltipla
e diversificada com que me identifico, é possível abordar a(s) identidade(s)
profissional(ais). Problematizar o trabalho, a profissão, os futuros das
identidades profissionais é, de certa forma, admitir que na «sociedade do risco»
e de «incerteza» as noções de trabalho e de profissão estão em mudança e
enfrentam novas problematizações.
Neste âmbito, existe um eixo de debate profícuo entre os autores que
preconizam o fim do trabalho e os que continuam a defender a sua
centralidade. Dos primeiros, destaco Dominique Méda (1995) que mostra que
nas diferentes sociedades, em função das exigências económicas, das
condições técnicas e do sistema de valores, o trabalho toma formas e sentidos
diferentes e anuncia o fim do valor do trabalho, defendendo que se poderia
deixar de ter em conta a dupla dimensão, constitutiva das sociedades
138
modernas, da cidadania e do produtivismo; dos segundos, mobilizo Dominique
Schnapper (1998) que defende «sociedades cívicas», baseadas na criatividade
da economia, no estabelecimento de uma justiça social relativa e numa ordem
política legítima. Nesta abordagem a autora relaciona a desacreditação do mito
do pleno emprego com o enfraquecimento do elo social, e preconiza, num
quadro de contínua organização do trabalho, novas formas de actividade e
utilidade social, mantendo a relação entre trabalho e estatuto social, embora
seja um trabalho que já não é necessariamente sinónimo de emprego.
Neste sentido, acredita-se que a perspectiva de Dubar se encontra questionada
quando refere que:
“O Trabalho está no centro do processo de construção, destruição e reconstrução das formas identitárias, porque é no e pelo trabalho que os indivíduos, nas sociedades salariais, adquirem o reconhecimento financeiro e simbólico da sua actividade. É também apropriando-se do seu trabalho, conferindo-lhe um ‘sentido’, isto é, dando-lhe, ao mesmo tempo, uma significação subjectiva e uma direcção objectiva, que os indivíduos acedem à autonomia e à cidadania” (Dubar, 2003:51).
Com todas as mudanças ocorridas na divisão social do trabalho, nas condições
de trabalho e na própria existência, ou não existência, de empregos e de
trabalho disponível, tornou-se ainda mais complexo pensar o trabalho e a sua
organização, na medida em que a organização (agora eleita como nível de
análise privilegiado) não responde à questão central de saber se o sentido
social a atribuir ao trabalho se deve construir em torno da sua face visível, ou
se, pelo contrário, é o trabalho oculto que estrutura o sentido do trabalho visível
(Correia, 2003).
As Ciências do Trabalho, que tinham adoptado nos seus primórdios uma
atitude crítica relativamente ao Taylorismo realçando, nomeadamente, a
importância da interacção informal nas organizações e apelando para uma
organização de trabalho mais humanizada, viram dificultada a sua análise do
trabalho, numa situação de ruptura com as racionalidades accionadas nas
organizações. E acentuou-se ainda mais a distância entre o trabalho prescrito e
o trabalho real.
As identidades profissionais, por seu lado, constituem-se como zonas de
confluência entre trabalho e formação e para delimitar as formas identitárias
tem de se detectar a relação entre os diversos sentidos do trabalho e as
139
concepções de formação. Não se trata apenas de identidades no trabalho mas
de formas de identidades profissionais no seio das quais a formação é tão
importante como o trabalho e os saberes incorporados são tão estruturantes
como as posições do actor (Dubar, 1991). Quando se tenta articular as
diferentes formulações sobre a construção de identidades com o trabalho, será
necessário abranger diferentes dimensões macro sociais e ter em conta
também as vivências compartilhadas entre os trabalhadores; nessa esfera da
intersubjectividade produzida pelo trabalho, vivências e aprendizagens
incorporam-se à dimensão identitária dos sujeitos em interacção.
Deste ponto de vista, a socialização profissional nos contextos de trabalho é
central e o seu produto são as identidades profissionais individuais e colectivas,
onde a realização profissional e a criatividade social se constroem
mutuamente.
A questão das socializações e da(s) identidade(s) remete-nos por sua vez para
o conceito de profissionalização (Rodrigues, 1997:22) “é devedor mais da
perspectiva interaccionista do que da perspectiva funcionalista” ) e para as
dinâmicas das profissões.
Na perspectiva interaccionista e relacional, são as experiências que criam a
identidade pessoal e as experiências são necessariamente sociais, na medida
em que acontecem na interacção dos nossos papéis sociais com os dos outros
(Goffman, 2003) – pelo que, nesta lógica, a identidade só pode ser múltipla,
flutuante e situacional.
Para quem está comprometida e implicada, como eu estou, no quotidiano,
muitas vezes apresenta-se difícil mobilizar as concepções disponíveis e reflectir
sobre algo que, arriscaria a dizer, não faz parte da agenda destes profissionais.
Se nas narrativas quotidianas dos assistentes sociais e, de muitos outros
profissionais comprometidos com a prática, o conceito de identidade(s) é
relativamente periférico, foi curiosamente, ao trabalhar com populações pobres
que vivem em territórios social e economicamente estigmatizados que pude
constatar e aprender o quanto este conceito é importante, apesar de não ser,
na maioria das vezes, nomeado como tal.
Mas esta tomada de consciência não me isentou de dificuldades de orientação
na complexidade conceptual da temática. Primeiro, dei conta de uma grande
140
heterogeneidade, quer do ponto de vista disciplinar, quer metodológico e
teórico (não esquecendo a diversidade terminológica). Segundo, tive
necessidade de me situar num conceito de identidade em que me revisse, pelo
que optei por entende-la como um processo dinâmico, simultaneamente
biográfico e relacional (Dubar, 1997a) que recolhe diferentes usos sociais, tanto
psicológicos como sociológicos.
Esta concepção de identidade (s) distancia-se de oposições simplistas e
normalizadoras que demarcaram identidades fixas no passado e que serviram
para definir qual seria a identidade «válida», «normal», a partir da qual as
outras seriam «diferentes».
No caso dos assistentes sociais, porquê a necessidade (e a dificuldade) de
produzir conhecimento sobre os significados de «ser profissional»?
Situando-me na duplicidade estrutural do trabalho social, e embora sem a
pretensão de ser exaustiva, salientarei algumas ordens de razões:
Frágil debate interno sobre o significado atribuído a ‘ser profissional’;
Relação ainda pouco articulada entre os saberes teóricos e os
conhecimentos da prática;
Persistência de representações «clássicas» da profissão.
Em relação às primeiras, i.e., à insuficienêcia de debate interno sobre o
significado de ‘ser profissional’ diria que existem alguns factores que
contribuem para que estes profissionais ajam, e se sintam, com uma escassa
(quando não inexistente) margem de autonomia: a «centralidade do fazer», a
herança de representações assistêncialistas ou os profissionais vistos como
«técnicos neutros e executores», a progressiva precarização das relações de
trabalho, a efectiva concorrência com outros profissionais sociais, a falta de
profissionais com visibilidade positiva e consensual dentro da profissão que
sirvam de referências, as mudanças nas socializações profissionais e o actual
e dominante modelo da prática ‘evidence-based’, etc.
A esse propósito Sarah Banks, uma autora do Serviço Social, identifica como
perigosas as actuais mudanças dos exercícios profissionais, nomeadamente a
excessiva fragmentação e o trabalho em equipas pluridisciplinares. Sobre a
primeira, refere que:
“Um dos perigos da fragmentação é que as tarefas que os trabalhadores sociais desempenham se tornem tão diversificadas e especializadas que já
141
não são reconhecíveis como «trabalho social». Sobre o segundo, refere “Os perigos do trabalho multidisciplinar prendem-se com o facto de que as fronteiras entre os papéis e especialidades das profissões diferentes se esbatem não sendo possível definir um conjunto de valores distinto para o Serviço Social” (Banks, 2002:120).
Em boa verdade, não me é fácil identificar valores de referência exclusiva dos
assistentes sociais, sobretudo porque a minha socialização profissional e a
experiência que possuo enquanto interventora social, é a de trabalho em
equipas ‘multi’ e, cada vez mais, transdisciplinares onde partilho valores de
referência com muitos colegas de outras formações; e a expectativa de defesa
de novas fronteiras para um exercício profissional no campo social parece
irrealista em sociedades onde o trabalho técnico-intelectual se apresenta com
grande porosidade em relação às áreas de formação inicial.
Por outro lado, a argumentação que alerta para os «perigos do trabalho
multidisciplinar» acentua o fundamento proteccionista e esquece a tendência
contemporânea para que as organizações desenvolvam regras e
procedimentos para o trabalho, que limitam a autonomia e que substituem
valores profissionais por regras determinadas pelo Estado e pela Organização,
quer para os assistentes sociais, quer para os outros profissionais.
Sabe-se que o campo profissional onde se situa o Serviço Social começou por
ser muito diversificado e pouco especializado e, após um percurso de
tentativas de especialização e diferenciação, assiste-se hoje novamente á
partilha do campo profissional por uma pluralidade de profissionais com
diferentes formações. É assim, que os assistentes sociais tendem a ficar no
centro do debate que, sendo apenas aparentemente corporativo, em muito
ultrapassa de facto estas fronteiras para se situar ao nível das próprias
perspectivas sobre os fundamentos, finalidades e avaliação do trabalho social
no seu todo.
Este debate, apesar dos evidentes contornos ideológicos, abrange também
realidades que têm a ver, por exemplo, com a assunção do exercício de
funções sociais por parte de um vasto conjunto de profissionais, assim como
com a redefinição dos perfis de formação, a reorganização dos serviços e,
aspecto decisivo, com a própria dinâmica das questões sociais em
comunidades que, cada vez mais, recusam as doutrinas assistencialistas em
prol das lógicas de contrato e de autonomização.
142
Definindo profissional como “um prático que adquiriu, através de longos
estudos, o status e a capacidade para realizar com autonomia e
responsabilidade actos intelectuais não-rotineiros na busca de objectivos
inseridos em situações complexas” (Paquay at al, 2001:11), pode entender-se
quer as dificuldades individuais e colectivas desse exercício com autonomia
(ainda que relativa) em relações de trabalho por conta de outrem, quer a
dificuldade que muitas organizações empregadoras têm na aceitação dos
elementos que caracterizariam um profissional, como o domínio de
conhecimentos diversos, esquemas de percepção, de análise, de decisão, de
planeamento, de avaliação e outros, e as posturas e valores necessárias ao
respectivo ofício.
A questão da «desprofissionalização» não se coloca exclusivamente ou
prioritariamente aos assistentes sociais, embora assuma características
particulares nesta categoria profissional. Na recolha empírica e no contacto
com muitos profissionais, sobretudo os mais jovens, sobressaem relatos de
falta de autonomia profissional e de condicionamento a uma execução acrítica
e procedimental num campo profissional com profundas mutações onde se
assiste à «… simplificação das práticas frente à complexificação das
realidades” (Amaro: 2009:40). Por outro lado, não foram constatadas
evidências de que este debate esteja na agenda, quer dos profissionais, quer
das estruturas representativas da profissão.
A abertura do campo profissional a lógicas mercantis e à perspectiva das
competências (que, entre outros aspectos, relativiza o lugar do diploma
profissional de origem), pode fazer temer uma desqualificação do trabalho
segundo modos de organização que passam de um modelo de tipo «artesanal-
liberal», caracterizado pelo domínio global de cada acto por um profissional
autónomo, a um modelo de tipo mais «industrial», caracterizado por uma maior
divisão do trabalho e segmentação das tarefas que fundamentam esta situação
de «desprofissionalização» no seio dos trabalhadores sociais.
Reconhecendo as pesadas controvérsias presentes no debate sobre a
evolução das profissões sociais, este autor avança com uma tipologia que
cruza uma «organização hierárquica por níveis» (e não por profissões) com
funções ligadas a uma divisão do trabalho taylorista, com «níveis de
intervenção» e «campos de intervenção».
143
Os três níveis, respectivamente, «profissões de concepção, profissões técnicas
e profissões de execução», cruzariam então com quatro campos de
intervenção «o campo da animação territorial», «o campo da inserção e da
construção de percursos», «o campo do acompanhamento social de acesso
aos direitos» e o «campo do tutorado doméstico».
Esta perspectiva fundamenta a «dessectorialização» do campo, fazendo
convergir dimensões diferentes como se não tivessem colisões de interesses e
tensões entre elas: a reconfiguração das profissões de intervenção social, o
interesse dos profissionais e a garantia da qualidade dos serviços.
Por outro lado, a noção de autonomia profissional organiza-se em torno de uma
associação de senso comum que estabelece uma equivalência entre o uso
profissional do conhecimento abstracto e a técnica. Esta equivalência parece
revelar, por um lado, uma certa eficácia social que começa na identificação
social dos actores sociais com uma cultura profissional particular, mas por
outro, remete para inúmeras críticas ao designado profissionalismo
funcionalista.
Bourdieu referindo-se ao conceito de «autonomia relativa do campo científico»
alerta para o perigo de fechamento corporativista e realça que se trata de uma
forma de capital simbólico cuja utilidade social é revelada quando contribui
criticamente para “dissolver falsos problemas e problemas mal definidos”
(Bourdieu, 1977:71).
Nestes problemas mal definidos incluímos uma suposta neutralidade que tem
prejudicado os Assistentes Sociais enquanto actores sociais e enquanto sujeito
colectivo. No entanto, coloca-se aqui como hipótese a importância de revitalizar
o debate interno sobre «ser profissional» e as suas implicações na actualidade
para fazer emergir a diversidade que se acredita estar subjacente na profissão.
Em relação às segundas ordens de razões, i.e., à relação ainda pouco
articulada entre saberes de diferentes proveniências, os assistentes sociais
tendem a oscilar, entre uma representação pouco afirmativa dos seus saberes
profissionais - «a profissão é uma prática; é o que os profissionais fazem» mas
é como se fosse indizível a verdadeira especificidade do «que» fazem e do
«como» fazem - e uma representação muito afirmativa e proteccionista do
modo e do território de intervenção, mas que, muitas vezes, não ultrapassa as
144
narrativas tecnicistas e ideológicas. Esta última representação é
particularmente evidente em contextos marcados por pouca diversidade
profissional.
A fluidez do objecto de Serviço Social e o seu posicionamento como mediador
entre diferentes domínios profissionais e organizacionais, também facilita «um
sentimento de inespecificidade epistemológica que acabaria por redundar
numa posição de subalternidade deste campo» (Amaro, 2009:30).
No caso da «acção técnica» dos Assistentes Sociais atrevo-me a dizer que
existem sinais (de herança histórica mas ainda actuais) da referida
«neutralidade axiológica» e uma tensão constante entre um pólo confundido
com o uso instrumental do conhecimento ou com o uso operativo das
tecnologias de intervenção e outro pólo, que tenta preservar a autonomia
profissional, quer face aos ‘clientes’ (organizacionais e individuais), quer no
trabalho de intermediação e negociação com outros profissionais e decisores.
Aproveitando uma hipótese em aberto para estes «profissionais-técnicos»
admite-se a possibilidade de exercer com uma maior autonomia na acção a
partir do conhecimento reflexivo sobre regras e recursos e o exercício de uma
acção que estimule uma «dupla hermenêutica» mais esclarecida por parte do
cidadão comum, porque menos praticista e menos comprometida com o uso
rotineiro e reprodutivo das regras e recursos (Caria at al, 2005: 40).
O conceito de «dupla hermenêutica» associa o saber da experiência com o
conhecimento produzido e formalizado na investigação científica e tecnológica.
Este conceito tem um potencial de capacitação dos actores sociais e resulta,
em grande parte, do facto de ser assumido que os actores têm sempre algum
saber, ainda que tácito e implícito (consciência prática), sobre o funcionamento
regular e institucional do social, fruto da reflexividade social difusa na
sociedade, e desenvolve um potencial de mudança social como variável
relevante (Guiddens, 1996).
Numa profissão que tem culturas profissionais diversas e uma relação
problemática com o funcionamento dos sistemas de conhecimento abstracto,
importa fomentar o debate sobre a legitimidade e autonomia profissionais a
partir da análise da actividade que os profissionais desenvolvem.
A este propósito evidencio o modelo de análise em rede de Bruno Latour que
se centra em dois aspectos determinantes da natureza do trabalho profissional-
145
técnico e estabelece uma configuração de ligações em rede a partir daí. Esses
aspectos são: i) os actos de fazer e usar a ciência (e não nos seus produtos
pré-construídos) e ii) o hibridismo dos processos e mediações nas actividades
que inscrevem a ciência e que dela dependem (e não na sua pureza). E a
configuração de ligações entre as várias componentes que cria um sistema de
inter-dependências, do qual dependem a direcção e os resultados do trabalho
profissional-técnico nomeadamente: a autonomia profissional e organizacional,
a mobilização, instrumentação e armazenamento de informação e dos
recursos, a aliança e a divulgação social dos produtos científicos e da sua
utilidade e validade social (Latour, 2001: 22-31).
A proposta de Schon (1983) através do paradigma do profissional reflexivo,
capaz de articular um pensamento profissional em situação, concebido como
«uma reflexão dentro da acção», vem abrir possibilidades mas continuam em
aberto muitas outras questões: como se forma um profissional reflexivo? Como
é que as organizações empregadoras vêem a reflexividade dos seus
profissionais? Em que tempos e espaços pode ser fomentada essa atitude
reflexiva? Como é que os profissionais se comprometem com essa
reflexividade e com que objectivos? Porquê e para quê o farão?
No presente trabalho procurarei desbravar estas possibilidades e ponderar a
articulação entre os saberes de diferentes proveniências pelo cruzamento de
dois eixos: um eixo estrutural e funcional, através da descrição das estruturas e
do funcionamento cognitivo dos profissionais e, outro eixo da sua génese, ou
seja, através da descrição dos processos pelos quais se constrói.
Face à exigência que os grupos profissionais têm de utilizar conhecimentos
abstractos adquiridos em formação inicial nos contextos organizacionais
variados e exteriores ao campo científico onde trabalham, Stoer (1994) coloca
a hipótese de uma operação sócio-cognitiva designada «recontextualização
profissional do conhecimento abstracto».
Esta «recontextualização» tem uma dimensão de «transposição» de formas de
conhecimento, predominantemente científico-positivistas e centradas na
explicação e na intervenção com base em regularidades sociais, estruturais,
sistémicas ou estatísticas; e, uma outra dimensão, que advém dos contextos e
solicita os profissionais a construir conhecimentos, convocando-os para o
146
exercício de uma reflexividade que percepciona a possibilidade de ser criativo
com o uso de regras e recursos (Giddens, 1996).
A recontextualização de formas de conhecimento não se trata de uma
«aplicação» de conhecimentos como por vezes os profissionais sugerem, mas
sim de uma modificação das formas de conhecimento, que passam de uma
lógica informacional, de controlo social e de instrumentalidade no uso do
conhecimento abstracto, para uma lógica de saber (conhecimento enquanto
processo), em que o conhecimento está subordinado a uma epistemologia
prática (Schon, 1992, Caria, 2005).
O debate sobre a reflexividade leva inevitavelmente ao debate sobre a
«sociedade do conhecimento» e sobre as competências supostamente
necessárias ao exercício da cidadania na sociedade contemporânea, pelo que
importa reflectir sobre o que é, ou não, ciência (sem o espartilho positivista) e
sobretudo incentivar a explicitação da profissão e dos profissionais.
Na terceira ordem de razões que levo em conta para ampliar o debate sobre os
significados de «ser» profissional pondero a persistência de representações
«clássicas» da profissão, tanto na formação inicial quanto no exercício
profissional, embora admita que estão mais presentes nas representações
«para si» do que nas representações atribuídas pelos «outros» (pares,
públicos, empregadores e chefias).
Importa precisar que a representação constitui-se como um instrumento de
integração social e de identidade profissional, entendendo-se que as
representações são:
«…instrumentos cognitivos de apreensão da realidade e de orientação de condutas: as representações (…) podem ser consideradas como um dos meios a partir dos quais os profissionais estruturam o seu comportamento de intervenção e aprendizagem» (Charlier, 1989:46).
No caso dos assistentes sociais será também relevante o grau de congruência
ou de ruptura, tanto com as representações socialmente disponíveis, como
com as representações que cada profissional pode construir para si. Neste
âmbito, a recolha empírica e alguma literatura do campo (Restrepo:2003;
Fargion:2008; Amaro, 2009) dão conta da existência de uma tensão entre uma
visão humanitária e uma visão científica do Serviço Social – de que o quadro
de Picasso intitulado «Entre a caridade e a ciência» pode ser uma boa
147
metáfora simbólica. Enquanto a primeira é conotada com o serviço social
tradicional ou clássico, de cariz mais amador e assistencialista, a segunda
assume-se como «alternativa» e inscreve-se na tentativa de ser aceite e
reconhecida pela ‘família’ das Ciências Sociais, sendo bandeira dos
movimentos de profissionalização do serviço social.
Nesta última visão, as concepções do serviço social como ‘tecnologia social’ ou
como ‘engenharia social’ alinharam a profissão com o paradigma positivista e
advogaram um posicionamento de neutralidade e objectividade da prática, que
ainda hoje agrega muitos profissionais.
Numa incursão pelos estudos clássicos funcionalistas da sociologia das
profissões, guiada pela argumentação de Telmo Caria (2005), recorda-se que
mesmo esses estudos sempre colocaram em evidência que o profissionalismo
nunca partiu do ponto de vista de que a ciência e a técnica poderiam ser
socialmente neutros. Nos contributos incontornáveis de Max Weber e Jurgen
Habermas podemos encontrar um conceito de «acção racional», no caso de
Weber, que não exclui os valores e a subjectividade dos actores sociais e que,
no contexto da preocupação com a autonomia profissional da ciência face à
política, faz alusão à interdependência entre os conhecimentos abstractos e
uma configuração particular de valores.
Para Habermas, que critica a «neutralidade axiológica» da política do
capitalismo organizado, a ciência e a técnica foram transformadas em ideologia
ao associar-se à acção compensatória e proteccionista do Estado-providência
junto do mercado capitalista. Neste entendimento, a legitimação do sistema
capitalista passa a depender de meios técnicos na posse do Estado, capazes
de prevenir e minimizar os problemas sociais, tratando-os como problemas
técnico-administrativos e não como problemas políticos. Este processo remete
para uma acção técnico-instrumental onde os «peritos» e os «profissionais-
técnicos» se transformam em agentes ideológicos de uma racionalização
burocrática, supostamente apolíticos e distantes dos processos de interacção
social.
Estas abordagens clássicas permitem-nos olhar para a questão da autonomia
profissional e da sua relação com a cidadania como um espaço de
problematização constante e partilhado por muitas correntes e corpos
148
profissionais, com várias possibilidades de intermediação que podem ir do
conflito à complementaridade. Assim, profissionais como os Assistentes Sociais
que não podem ter a sua acção socialmente padronizada mas que não têm
uma grande tradição de autonomia profissional, ficam mais dependentes das
«modas» e «ditames» do mercado empregador (nomeadamente do Estado) e
dos usos dos sistemas de regras e procedimentos organizacionais.
Contudo, autores de Serviço Social, dos quais se destaca as posturas mais
actuais de autores portugueses do campo de Serviço Social (Fernanda
Rodrigues, Francisco Branco, Helena Mouro, Inês Amaro e outros) defendem a
reabilitação da «relação», da «estética» e da «ética» como valores
fundamentais do exercício profissional numa «terceira via» que não esquece o
passado e a vertente assistencialista, e que valoriza a prática em conjunto com
a necessidade de obter reconhecimento na comunidade académica, através de
uma maior produção de conhecimento próprio.
DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DO «SOCIAL»?
Não sendo minha pretensão dar conta da totalidade e da complexidade de
perspectivas sobre esta questão, referenciam-se apenas algumas que, no
momento, se revelaram fecundas para abrir janelas de leitura.
Gostaria de começar por situar a génese da assistência social em Durkheim e
nas influências do alemão Bismark, entre outros, no sentido de que procuraram
encontrar solução para os problemas sociais e políticos que o Estado
republicano enfrentava, reparando as injustiças mas mantendo a estrutura
social - «Agir sobre o indivíduo, ou sobre o meio?» torna-se a polémica
preferencial das correntes de pensamento de então.
Conceitos como «Social», «Solidariedade», «Direito Social» e «Contrato
Social» foram, em simultâneo, produto de um pensar historicamente situado
que deu lugar ao Estado Providência e ao campo profissional onde o Serviço
Social se veio a situar.
O «Social» surge na contradição entre o ideal democrático e os movimentos
reivindicativos dos direitos do homem, ambos de génese republicana.
149
Entendido genealogicamente como um conceito estratégico, o «social»
contribuiu para a constituição da solidariedade orgânica.
O conceito de «solidariedade» surge no discurso político francês dos anos 80
do século XIX. Para Durkheim, a questão fundamental eram as condições de
coesão social numa sociedade moderna, onde, a partir de uma tipologia de
sociedades, são estruturados os princípios da “solidariedade mecânica”
(resultante da divisão do trabalho e simultaneamente da individualização dos
membros da sociedade) e de “solidariedade orgânica” (entendida como o
aumento de dependência entre os indivíduos), onde estas duas faces da
mesma moeda pretendiam significar que a divisão de trabalho era o próprio
fundamento da coesão social. Ainda segundo este autor, a substituição
progressiva da solidariedade mecânica pela solidariedade orgânica define o
progresso da sociedade (Durkheim, 1998).
Este «social» ao inscrever a sua história, aparece associado ao conceito
Durkheimeano de «solidariedade». A «Solidariedade» foi o princípio de
governo que permitiu fazer convergir as exigências e as crenças contraditórias
da proclamação da República, assente numa crença comum de progresso,
produzindo a figura de Estado como garante do progresso da sociedade.
Enquanto para K. Marx, a divisão social do trabalho na sociedade capitalista é
vista como fonte de conflitos de classe, só superáveis com o derrube do
capitalismo e a implantação do socialismo, para Durkheim, a divisão do
trabalho é a base de coesão social e o fundamento do progresso, onde o
Estado se legitima pelo desenvolvimento da solidariedade orgânica.
Jacques Donzelot (1994) questiona com alguma ironia se a virtude do «social»
não será resultante de uma dupla negação (como nas operações matemáticas,
negativo com negativo, dá positivo) de duas ideias igualmente sedutoras e
enganosas: uma ordem civil naturalizada e uma ordem política que se
cumpriria no sentido histórico?
O «social» aparece como um registo híbrido, na impossibilidade, quer de
obedecer a uma imposição política das massas, quer de acantonar-se na
protecção da sociedade civil.
Por sua vez, o «Direito Social», fundamentado na solidariedade orgânica,
desenvolveu-se no final do século XIX, proporcionando uma intervenção
150
crescente do poder político nas relações privadas (com leis relativas às
condições de trabalho, à protecção do trabalhador em caso de perda da
capacidade de trabalho, leis protectoras da criança e da mulher na família,
medidas destinadas a zelar pelas condições de saúde, educação e moralidade,
etc.). O «direito social» constitui-se na base da socialização do risco e foi
institucionalizado através das técnicas de seguros sociais (por exemplo, o
seguro de acidentes de trabalho) mas contradiz políticas mais revolucionárias
que visavam alterar as relações sociais capitalistas.
O estatuto de “protegido da sociedade” é formado pelos direitos sociais que, no
fundo, mais não fazem do que proteger das consequências da divisão social do
trabalho, fazendo depender a concretização desses direitos do progresso social
e da intervenção do estado. Ou seja, não foi fazendo valer os seus direitos e
proclamando a injustiça da sua condição que o trabalhador beneficiou dos
direitos sociais, mas sim afirmando e insistindo na sua pertença à sociedade.
Por um lado, os direitos tornam-se iguais para todos, mas a sua realização
passa a ser condicionada por contingências limitadoras; por outro, reconhece-
se o princípio da promoção social ou progresso social, dentro dos atributos e
limites do próprio Estado.
Sobre o plano prático, os seguros sociais foram, sensivelmente até à I Guerra
Mundial, uma técnica capaz de realizar essa solidariedade e de modificar as
relações entre o capital e os assalariados, assegurando uma melhor
moralização do indivíduo pela transformação do meio social e, sobretudo,
concretizando o laço invisível entre os homens (assumindo-se que o Estado
era a expressão visível desse laço).
A fórmula ‘rousseaniana’ do «Contrato Social», na sua génese, pretendia
passar a articular a soberania política e a liberdade civil, configurando um modo
específico de organização da sociedade particularmente atento ao social e
articulando com as noções anteriormente afloradas de «solidariedade», de
«direito social» e de «negociação/contratualização».
No período entre as duas guerras mundiais, o pensamento organizou-se em
torno da oposição de duas abstracções antagónicas: «o social» e o
«económico». Tendo como pano de fundo, a perigosa oscilação do papel do
Estado entre estas duas forças opostas, entende-se o terreno fértil que
151
encontrou a doutrina Keynesiana, ao permitir ao Estado articular centralmente
o económico e o social, em vez de deixar que prevalecesse uma lógica sobre a
outra. Esta ideia de extensão da democracia, da gestão política da sociedade,
da gestão da vida económica e social recebeu o nome de «democracia
industrial». Mas o ponto de partida desta corrente seria a constatação do
falhanço dos partidos, assumindo que os cidadãos se agrupavam menos nos
partidos, do que nas grandes forças económicas e sociais. A síntese
pretendida defendia que em prol do «interesse geral», o «económico»
constituía um meio e o «social» designava a finalidade do progresso,
nomeadamente no contexto da reconstrução do pós-guerra e no surgimento do
Fordismo ou do «capitalismo organizado». Como Fernanda Rodrigues salienta:
“Em contraposição ao Estado neutro, o Estado interventor propunha-se reduzir a irracionalidade da economia, tendo pois um papel de administrador positivo do progresso. Neste percurso veio não só suscitar o investimento na solidariedade, tendo passado mesmo a ser responsável por ela” (Rodrigues, 1999:35).
Como sabemos o Estado Social surgiu depois da II Guerra Mundial, apesar do
seu embrião ser do século XIX e, nesse sentido, ele é simultaneamente
hegeliano, marxista, weberiano e durkheimiano (Correia, 2003). Passarei por
alguns dos contributos que destaco nestes autores:
Hegel teorizou o Estado como realização unificadora da Razão que ultrapassa
a conflitualidade existente na sociedade civil, cabendo a este o papel da
relação objectiva. Na sociedade civil, os indivíduos eram entendidos como
prosseguindo os seus próprios interesses, num misto de apetite natural e de
arbítrio.
Para que fosse possível lutar contra a arbitrariedade e o particularismo
vigentes, Hegel definiu estratégias que visavam a integração social, segundo
duas lógicas: uma, que exprime a linha de intervenção estatal e que aponta
alguns dos futuros traços do Estado Providência e uma outra, que segue a
linha da geração autónoma da solidariedade e da identidade e antecipa uma
forma pós-liberal de integração social, onde a corporação é o ponto de partida
da integração social. Esta desempenha como funções primárias a prestação de
assistência, a socialização e a educação, proporcionando aos indivíduos os
conhecimentos que lhes permitam interiorizar a noção de «bem comum» e de
«virtude cívica».
152
Para Marx, a irracionalidade da sociedade civil só poderá ser ultrapassada pela
realização histórica da Razão e consequentemente por uma nova organização
da comunidade política que impulsione os homens no sentido de uma
cooperação racional. O Estado Social é o produto da luta de classes que impõe
uma valorização crescente de novos direitos sociais, produto também de um
compromisso que tem subjacente uma dimensão conflitual. O Marxismo foi a
primeira ferida no universalismo burguês, o qual era fortemente limitado por
uma visão da cidadania restringida às suas dimensões civil e política e
fortemente ignorante quanto à sua dimensão económica e social.
Durkheim defende que a partir do momento em que as sociedades atingem
determinada complexidade, existe necessidade de uma forte intervenção
pública, sendo o Estado, o órgão da justiça social por excelência, através da
força reguladora do Direito. Assistia-se assim, na sua perspectiva a uma
actividade crescente de regulamentação jurídica no plano doméstico,
comercial, contratual e de uma forma generalizada nas relações sociais e
económicas.
Weber será um dos teóricos que primeiramente se debruçou sobre a «função
pública», no sentido em que advogou o aparecimento da burocracia como um
dos traços distintivos do estado moderno. A associação política não é definida
pelos seus fins mas pela escolha de meios mais eficazes para a obtenção de
determinados fins. A administração passa a ser um trabalho profissional levado
a cabo por funcionários contratados, em função de uma competência,
configurada em face da sua utilidade e das exigências colocadas à sua
actividade. Weber não deixará contudo, de alertar para os riscos de uma
tecnocratização generalizada da sociedade, resultante do risco da sociedade
se tornar «fria e desumanizada».
Por seu lado, a ligação entre o Estado social e a necessidade de gestão de
várias contradições resultantes do modo de desenvolvimento da sociedade
capitalista encontra expressão entre diversos teóricos que, na base dessa
relação, projectam a leitura do percurso e evolução do Estado de bem-estar.
Mas será sobretudo a partir de 1945 que, na economia, as ideias de Keynes se
generalizam, passando a ser aceite que o bom funcionamento da sociedade
exigia uma intervenção reguladora. Como refere Rosanvallon, Keynes está na
153
origem daquilo que poderíamos chamar a “revolução de Copérnico na
economia: esta deixa de ser considerada como um dado para ser apreendida
como uma construção” (1981:36). E esta mudança central que permite a
combinação de uma economia Keynesiana com as preocupações sociais de
Beveridge, suscita uma forte legitimidade política e implantação popular, onde
é assumido o papel «modernizador» do Estado na criação de condições para o
crescimento económico e para o pleno emprego.
O século XX foi o século do emprego, competindo ao Estado garantir a cada
um o posto de trabalho, por meio do qual o trabalhador teria acesso às
riquezas e a um lugar na vida social (Méda, 1999: 141). O lugar do trabalho nas
sociedades é um dos elementos de explicação da situação actual, cujas
características são, segundo Dominique Méda, o primado da abordagem
económica e a perspectiva de uma regulação cada vez mais automática dos
fenómenos sociais.
Nesta perspectiva, o estado social conseguiu substituir a utopia socialista de
um trabalho libertado por um objectivo aparentemente mais simples, que
consiste em fornecer aos trabalhadores, em troca do seu esforço, uma soma
crescente de bem-estar e a garantia do pleno emprego. Mas as sociedades
baseadas no trabalho são atravessadas por uma dupla lógica bastante
explosiva: por um lado, persistem em viver segundo o imperativo de
desenvolvimento/crescimento que assenta em aumentos cada vez maiores de
produtividade e consumo; por outro lado, devem garantir o pleno emprego a
todos, uma vez que são estruturadas pelo trabalho.
Esta contradição não explodiu mais cedo porque os países desenvolvidos
conheceram um crescimento da sua produção que lhes permitiu fazer intervir o
mecanismo da redistribuição, da integração e da distribuição de
compensações. Mas a partir do momento em que as taxas de crescimento são
menos elevadas ou em que as pessoas deixam de ter acesso ao sistema de
distribuição da riqueza, o sistema perde legitimidade.
O choque petrolífero, o fim do crescimento económico, o final do pleno
emprego associado ao crescimento do desemprego em larga escala, a crise
fiscal do estado e o consequente declínio dos financiamentos “sociais”
sobressaem, segundo Fernanda Rodrigues (1999), como os motivos de perda
154
de confiança no sistema, passando o intervencionismo estatal a ser
considerado como bloqueio para a resolução de problemas.
Desde logo é possível identificar dois eixos de interpretação para a crise do
Estado-providência: um, defendido pelas correntes conservadoras, que
retomam as teses liberais e assumem que o Estado é um mau administrador
dos recursos públicos e, outro, que radica a sua crítica na incapacidade do
Estado-providência se ajustar às mudanças na sua própria estrutura,
preconizando a tese da reorientação para fazer face às mudanças. Assim, as
dúvidas surgidas na década de 70 do século passado, sobre a viabilidade
económica do Estado de bem-estar universalista, deram lugar na década de 80
a profundas alterações nas despesas sociais dos orçamentos públicos, nos
novos métodos de prover e administrar os serviços, na adopção de esquemas
de privatização e subcontratação, que visavam retrair o Estado (Rodrigues,
1999). Até aí, no Estado-providência corporativo dos países da Europa
continental, os direitos estavam ligados ao desempenho no mercado de
trabalho e prevaleciam fortes mecanismos de controlo social.
A estratégia de adaptação seguida em países como a Alemanha, França e
Itália, foi a de subsidiar a saída do mercado de trabalho e de manutenção de
altos padrões de protecção social na área do seguro social.
Isto deu origem a uma dualização entre os trabalhadores com segurança no
emprego e aqueles que estão fora do mercado de trabalho, dependendo de
redistribuições sociais e a persistência de fenómenos de pobreza (em grande
escala decorrente da marginalização em relação ao trabalho disponível em
cada sociedade) que atinge significativamente segmentos da população e é,
sem dúvida, um dos problemas mais sérios que afecta o desenvolvimento
humano.
O desemprego, a pobreza e a exclusão social, nas últimas décadas, passaram
a integrar o discurso oficial e as agendas políticas e tornaram-se, dos temas
mais mediáticos, embora isso pouco se tenha traduzido nas actuações quer
dos responsáveis dos organismos internacionais, quer dos governantes de
diversos países. A pobreza aparece assim, como «avaliador de um padrão
civilizatório», elucidando também sobre o papel do Estado enquanto acolhedor
de desigualdades (Rodrigues, 1999).
155
Por outro lado, a experiência também nos mostra que o «social» pode significar
a um nível micro, mais do que as políticas e as respostas que as sociedades
entendem promover em cada tempo histórico e pode ter sobretudo a ver com
as pessoas e com as suas interacções, consideradas individual ou
colectivamente, nos diferentes tempos e espaços de vida. Nesta acepção
complementar será um «social» abrangente que tem a ver com a vida das
pessoas, marcadas por uma «totalidade» onde não se podem excluir as formas
de organizar o trabalho, a produção e a economia, entre outras dimensões
relevantes.
Recordo que nos primeiros tempos da minha trajectória profissional a
representação empírica de «social» era marcada por «espaços de ninguém»
que sobravam de segmentações disciplinares e profissionais mais consistentes
e radicadas, o que dava a ideia de que quando não se sabia o que fazer com
uma situação complexa, ela era seguramente uma «situação social».
Também do ponto de vista das representações e da linguagem, os
«habitantes» deste «social» eram sobretudo os pobres, os «sem recursos», os
«com problemas», assumindo muitas vezes, o assistente social o papel de uma
espécie de intérprete do «pobrez» (uma espécie de ‘língua’ oficial dos pobres)
na relação entre estes cidadãos estigmatizados e pouco escolarizados e os
outros técnicos ou serviços menos habituados (e preparados) para se
relacionarem com estas pessoas.
Nos vinte e cinco anos do meu percurso profissional quase tudo mudou, mas
ainda se mantém representações rígidas, híbridas e/ou fluidas de um campo
«social» com muitas variáveis, muitos poderes, muitos especialistas, muitas
fronteiras, muita competição e pouco esforço de explicitação sobre o que, em
cada momento e circunstância se entende por esta designação de «social».
Entendo que mais do acordar sobre uma designação comum, importa meta-
comunicar sobre ela, ou seja, ter a prática de clarificar em cada contexto e com
os agentes envolvidos, quais são as fronteiras do «social» que se acordam
para a finalidade do trabalho que se está a prosseguir.
AMBIGUIDADES DE UMA PROFISSÃO QUE SE ADAPTA
156
Interrogar a profissão de assistente social passa inevitavelmente por retornar à
sua formação, enquanto responsabilização por parte do grupo profissional pelo
controle das fileiras de formação inicial e contínua, pelo desenvolvimento do
saber e da ética na qual se baseia e finalmente pelo controle das condições de
admissão ao exercício profissional.
Neste olhar retrospectivo pela formação, salienta-se como um dos
componentes transversais a sua «adaptabilidade», o que pretende significar
uma conformidade em relação ao estabelecido em cada época e contexto mas
em simultâneo, uma capacidade de sobrevivência que revela a existência de
forças anímicas endógenas.
Entende-se que em Portugal a formação em Serviço Social tem uma tradição
de dependência ideológica, que é necessário contextualizar historicamente.
A sua génese, antecedendo o fim da I Republica, ocorre no contexto da
Ditadura Nacional (1926-1933), com origem nas preocupações e iniciativas dos
movimentos higienistas da Medicina Social e de protecção da Infância.
Com a 1ª Guerra Mundial, e por força das circunstâncias, as mulheres,
sobretudo das classes mais pobres, começaram a trabalhar em certas
indústrias fabris e noutros trabalhos reservados aos homens. Anteriormente à
implantação da República, a admissão das mulheres em empregos públicos só
era possível nos correios e no ensino primário. Mas foi sobretudo com a
criação do sistema de ensino republicano que a mulher começou a escolarizar-
se e a aspirar ao seu auto-sustento, conseguindo um aumento de participação
no mercado de trabalho e nas actividades económicas, sociais e culturais.
Como se sabe, a «Ditadura nacional» suspendeu a constituição anterior e
«legitimou» o golpe de Estado na eleição directa do Presidente da República,
encontrando dessa forma um subterfúgio para elaborar a nova constituição que
foi submetida a referendo em 1933 e levou à constituição do Estado Novo que
permaneceu até 1974.
O facto de a sociedade portuguesa ter vivido até ao 25 de Abril de 1974 sob um
regime autoritário, marca toda a trajectória do Serviço Social português
(Martins, 1999). É então no contexto ideológico e cultural do Estado Novo que
vai movimentar-se a formação e o exercício profissional dos Assistentes
157
Sociais que aconteceria em 1935 – sendo que logo em 1934 no I Congresso da
União Nacional foi proposta a criação do Instituto Superior de Serviço Social.
A formação em Serviço Social só é regulada pelo Estado em 1939 com um
plano de formação de 3 anos e um certificado que conferia o título profissional
de Assistente Social.
No contexto português, e segundo Alcina Martins (1999), nem a Igreja nem o
Estado assumem claramente as primeiras escolas (recorrendo a uma
associação de leigos e elementos da congregação francesa das Franciscanas
Missionárias de Maria), embora ambos se assegurem de que a formação se
enquadre nos princípios da doutrina social da Igreja e nos valores do Estado
Novo. Em Portugal, as políticas sociais têm sido um campo fragmentado, com
uma relação ambivalente com os direitos sociais e de compromisso público
fraco e intermitente, o que também não facilitou ao Serviço Social uma
trajectória em direcção aos direitos sociais numa lógica de política social.
“Todos os processos que poderiam adulterar a racionalidade estética da imagem social da sociedade passaram a ser reconhecidos como formas convergentes de desconstrução de uma ideia de pluralidade que não assentava numa razão crítica, mas sim numa razão ideológica que se servia da instrumentalização da pluralidade para sublimar os paradoxos existentes no seu desenvolvimento” (Mouro, 2009: p.81).
Em 1961, o curso de Serviço Social é reconhecido como curso superior e este
marco corresponde também a uma reorientação da formação com uma
progressiva introdução no ‘curricula’ das disciplinas das ciências sociais e dos
métodos em Serviço Social, sob influência do Serviço Social norte-americano e
de uma orientação do desenvolvimento humano e social adoptado no período
pós-guerra sob a égide dos vários organismos internacionais.
Esta orientação inovadora, coexistia com a vertente mais tradicional do
exercício dos assistentes sociais, entre outras com o Serviço Social corporativo
e do trabalho que consubstancia uma orientação doutrinária e conservadora.
Este período foi muito importante para o desenvolvimento da profissão, quer no
plano da expansão do corpo profissional (são registados mais de 1000
Assistentes sociais na década de 60 e apenas algumas dezenas nos anos 40),
quer no plano científico e técnico.
Em 1974, com as transformações institucionais, culturais e ideológicas
subsequentes à revolução de Abril, inicia-se uma nova fase marcada quer pela
158
dinâmica revolucionária e democrática, quer pelo clima de liberdade ideológica
e cultural. O movimento que associou os vários agentes a nível nacional
constituiu uma das dinâmicas mais significativas e culminou com o
reconhecimento do grau de licenciatura em 1989 e a consagração de uma
carreira específica de Serviço Social na administração pública em 1990
(Negreiros, 1999).
No domínio profissional assiste-se ao questionamento dos campos tradicionais
de intervenção (Assistência, Previdência, Trabalho e Saúde) e à emergência de
novas áreas de intervenção – numa primeira fase, acompanhando o período
revolucionário 74/75 através de alianças de sectores profissionais aos
movimentos populares (por exemplo, o movimento CERCI, estudado por
Negreiros: 1993) e, numa segunda fase, por via do alargamento das funções
sociais do estado e da descentralização político-administrativa (por exemplo,
na área das autarquias locais, o livro de F.Branco: 1998).
No plano da formação aprofunda-se a influência das correntes do Serviço
Social Crítico e Radical e, mais particularmente, do Movimento de
reconceptualização do Serviço Social de origem latino-americana, que
conduziria a um questionamento do seu objecto e da sua metodologia,
advogando um comprometimento profissional com os interesses das classes
mais pobres e um papel de agente de mudança institucional.
Após a adesão europeia, a configuração da assistência social teve estratégias
de duplo sentido: não se reconfigurou ainda como política de direitos, passou
muita da intervenção para o sector privado subvencionado pelo Estado e
introduziu comportamentos cívico-políticos marcados pela desconfiança do
sector público e pelo receio de fraude dos destinatários.
“A relativa progressão registada no financiamento da acção social tem de ser lida numa dupla vertente: reconhecimento da acção social como área crescente de investimento e, ao mesmo tempo, orientação restritiva de outras áreas sociais” (Rodrigues, 2002:293).
Acrescentando a mesma autora que a década de 80 introduziu na assistência
social um duplo movimento oscilando entre iniciativas de alargamento e de
restrição da provisão social.
Com a adesão à Comunidade Europeia saliento dois aspectos, a título de
exemplo, que tiveram grandes repercussões no Trabalho Social:
159
1) o financiamento através dos Quadros Comunitários de Apoio e Subvenções
Comunitárias e 2) a Internacionalização dos processos de trabalho e dos
«produtos» da intervenção social.
Em Portugal, apesar das grandes diferenças que marcaram as últimas décadas
do século passado, podem reconhecer-se períodos marcados:
- Por um aumento significativo das políticas distributivas, quer em termos de
medidas laborais ou salários directos, quer como relativas a políticas sociais ou
salários indirectos;
- Pela tendência de desvalorização progressiva dos direitos sociais, bem como
a emergência da lógica de mercantilização de bens e serviços (sobretudo, no
início da década de 80, época marcada pela preparação da integração no
espaço comunitário europeu);
- Pela adesão de Portugal à então Comissão Económica Europeia, o que inicia
um momento de avaliação e reequacionamento da provisão social existente,
relançando com o acesso aos fundos estruturais, dinâmicas e processos, com
a emergência de um número significativo de iniciativas e projectos locais.
No entanto, nos anos 80 e 90 do século passado o Serviço Social estava
centrado num movimento e numa luta pela qualificação académica e pela
licenciatura que congregou escolas, estudantes, professores e profissionais,
bem como as respectivas organizações e que não deixou espaço para outras
abordagens mais substantivas de questionamento da profissionalização. Mas
como refere Alcina Martins:
“Nesta conjuntura sócio-histórica, o projecto profissional incorpora as exigências de qualificação de quem trabalha com as expressões da Questão Social, os Direitos Humanos e Direitos Sociais, as Políticas Sociais, promovendo o desenvolvimento académico e a construção da área disciplinar de Serviço Social, inserindo-se então a investigação no elenco dos avanços significativos do Serviço Social em Portugal” (2008:33).
Este processo tem marcos em 1989 com a atribuição do grau académico à
formação nos Institutos Superiores de Serviço Social de Lisboa e do Porto, em
1990 com a mesma atribuição ao Instituto Superior Miguel Torga em Coimbra,
em 1991, com a criação da carreira de Técnico Superior de Serviço Social na
Administração Pública, em 1995 com a atribuição do grau de mestre e em 1997
com o início dos primeiros cursos de doutoramento em Serviço Social em
Portugal.
160
Apesar de a formação estar instituída desde os finais dos anos 30 do século
passado, apenas em 1987 tiveram inicio no Brasil os cursos de Mestrado em
Serviço Social, ao abrigo de um Protocolo de Intercâmbio entre a Pontífica
Universidade Católica de S. Paulo e o ISSSL, passando-se quase uma década
até que fosse possível realizar a formação pós-graduada em Portugal.
A partir de meados da década de 90 pode delimitar-se uma nova fase com uma
profunda transformação da formação em Serviço Social, com a mutação da
estrutura do mercado de trabalho e com o sector privado a tornar-se o sector
predominante de emprego dos profissionais em detrimento do sector público.
Tendo passado mais de 20 anos sobre o primeiro dos marcos referidos, parece
que os novos modelos de formação (a oferta de cursos passa de 3 para cerca
de 20, como refere Ernesto Fernandes em documento da APSS, 2007) ainda
não se têm traduzido numa incorporação mais efectiva dos dispositivos de
investigação e produção de conhecimento. Francisco Branco, que se tem
dedicado ao estudo desta «dissonância entre a formação para a investigação e
práticas não suportadas na pesquisa» coloca como hipótese explicativa que os
modelos de investigação «ensinados» na formação inicial promovam uma fraca
articulação com as experiências dos estágios curriculares, não favorecendo
uma socialização formativa na articulação entre conhecimento e acção
(Branco, 2008).
Entre um conhecimento próprio que se procura afirmar, um dualismo entre o
humanismo e o tecnicismo nas concepções da profissão, uma profusão de
teorias num quadro teórico que se procura que seja específico (mas que por
vezes aparenta ser um «puzzle desmanchado»2) e um espaço cada vez mais
estreito e disputado para o exercício profissional será forçoso que os
profissionais, os docentes e as instituições de ensino, investigação e
representação da profissão, encontrem pontes de convergência para
‘prospectivar’ a profissão. A título de exemplo da formatação existente nesta
profissão refere-se o documento realizado por solicitação do Instituto de
Emprego e Formação Profissional/IEFP à Associação de Profissionais de
Serviço Social (2005) e em que são descritas a natureza do trabalho, as
2 Alusão ao título do livro da Assistente Social Isabel Fazenda (2006).
161
possibilidades de emprego, a formação e evolução na carreira, as condições de
trabalho e as perspectivas futuras. No que respeita à natureza do trabalho é
salientado que:
“A identidade do Serviço Social na divisão social e técnica do trabalho reporta à administração e execução de serviços sociais através de uma prática de cunho educativo. (…) O serviço social visa a mudança societária, em particular face aos que sofrem as consequências de quaisquer formas de exclusão e injustiça social, nomeadamente por pobreza, desemprego, doença, cumprimento de pena ou violação dos Direitos Humanos. O assistente social vincula o seu projecto profissional ao processo de construção de uma ordem societária que permita o desenvolvimento dos seres humanos, salvaguardando o equilíbrio ecológico e os direitos das gerações vindouras. (…) A intervenção destes profissionais tem como objectivo fundamental promover o desenvolvimento de capacidades e competências sociais – sejam elas colectivas ou individuais – a três níveis: cognitivo (…); relacional (…) e organizativo”.
Esta narrativa denuncia um dos paradoxos fundadores do seu objecto, situando
os profissionais entre a «mudança societária que permita o desenvolvimento
dos seres humanos» (?) e «o objectivo fundamental de promover o
desenvolvimento de capacidades e competências sociais» dos seus elementos
mais fragilizados. A crença de que através desta «prática de cunho educativo»
se alcançaria linearmente a tal ordem societária idealizada, tem promovido a
«adaptabilidade» dos profissionais e a sua actuação reprodutiva junto das
populações.
Quanto às possibilidades de Emprego, o documento fundamenta a profissão na
“Classificação Nacional das Profissões (IEFP, 1994), enquadrando-a no sub-
grupo ‘Especialistas das Ciências Sociais e Humanas’.
Podemos ler neste documento que os licenciados em Serviço Social
desenvolvem a sua actividade profissional numa grande diversidade de
instituições: “nos serviços do Estado (…), nas Autarquias Locais (…), nas
Organizações Sociais não Lucrativas, Associações, Cooperativas e Sindicatos
(…) e nas Empresas (…)”.
No que se refere ao sector público, os últimos dados disponíveis, relativos a
1996 permitem constatar que as áreas de maior relevância para o trabalho dos
assistentes sociais eram no domínio da Justiça (25,4%), Segurança Social
(24,4%) e Saúde (21,7%), assumindo igualmente uma significativa expressão o
campo do trabalho nas Câmaras Municipais (13,8%), num domínio que
conheceu o seu grande desenvolvimento depois da restauração da democracia
162
em Portugal e particularmente depois de 1980. No entanto, é importante
salientar que estes dados são anteriores à implementação de políticas sociais
em Portugal com um significativo impacto no recrutamento de assistentes
sociais, como o Rendimento Mínimo Garantido (RMG) em 1996 e o Programa
Rede Social (1997). Após a grande oferta de emprego que estas medidas
proporcionaram, assiste-se a uma menor absorção pelo mercado, quer no
sector publico quer no sector privado, destes profissionais, em simultâneo com
o aumento do número de pessoas formadas na área específica e em áreas que
concorrem directamente para o mesmo campo de intervenção.
As Organizações Sociais não lucrativas já constituem actualmente o maior
empregador de assistentes sociais, sendo o campo de trabalho nestas
instituições relativamente protegido pelos acordos de cooperação que têm com
o Estado (mediante os quais estão obrigadas na sua grande maioria, a confiar
a direcção técnica ou, pelo menos, a ter no seu quadro de pessoal estes
profissionais). Segundo a Carta Social de 2001 publicada pelo MSST, 71% dos
equipamentos sociais existentes em Portugal eram propriedade de IPSS,
constituindo 87% das respostas sociais no domínio do apoio à população idosa
e infantil.
O Sector privado empresarial que, antes do 25 de Abril, concentrava o maior
número de serviços empregadores destes profissionais, tem vindo a perder
importância relativa, estimando-se segundo um estudo da APSS (2009), um
número residual de oito mil profissionais no activo.
Esta distribuição dos profissionais por sectores de actividade, se bem que com
alguma lacuna de números mais precisos e actuais, espelha a tendência de
diminuição do emprego no sector público e o aumento no sector privado de
organizações de solidariedade social. Embora exista ainda um núcleo de
profissionais do sector público relativamente protegido, esta tendência cruza-se
com a precarização da relação laboral que é transversal aos empregos em
qualquer um dos sectores.
No que respeita à formação e evolução na «carreira», começo por salientar a
associação ‘formação-carreira’ e a utilização do termo «carreira» como se
ainda existissem condições weberianas de fazer «carreiras» em burocracias
meritocráticas; após breve descrição da formação de base e pós-graduada, é
referido em relação à evolução profissional, uma distinção entre o sector
163
privado (explicitando a dependência das políticas internas da organização ou
as determinações nas convenções colectivas de trabalho) e o sector público,
onde é mais pormenorizado um percurso linear e ascendente e onde se pode
ler que:
“A evolução processa-se de acordo com o mérito evidenciado, o tempo mínimo de serviço na categoria e a abertura de vagas. No princípio da carreira, desempenham normalmente funções de intervenção directa com populações. No topo da carreira, assumem tarefas de planeamento, coordenação e avaliação de políticas (…).”
O assumir desta narrativa por profissionais com responsabilidade de
representação colectiva (mesmo sendo esta uma prática ainda corrente,
sobretudo no sector público) parece evidenciar a inspiração taylorista, tornando
bastante claro o paradoxo de que a intervenção directa com as populações
(que seria o seu objecto profissional) fica a cargo apenas dos profissionais
mais novos e inexperientes. Aliás, podemos assistir a este mesmo processo
com outras profissões, nomeadamente com os professores, para quem deixar
de dar aulas para exercer cargos dirigentes e/ou de planeamento é muitas
vezes, entendido como uma «subida» na carreira, especialmente disponível
para os profissionais mais experientes.
No que respeita às condições de trabalho e, após ser explicitado que:
“Estes profissionais desenvolvem trabalho, quer na sede dos serviços quer em contextos locais e comunitários (…) com um horário de trabalho semanal de 35 horas no sector público, vem o aviso de que “quando estão a desenvolver trabalho de campo não existe normalmente limite de horário, pelo que muitas vezes podem ter de trabalhar mais horas. No sector privado, especialmente no caso das IPSS, é comum estes profissionais terem flexibilidade de horário”.
Sendo corrente que os profissionais, tanto do sector público como privado,
trabalham bastante mais horas do que as que lhes são pagas e que a
apregoada «flexibilidade» queira significar na prática que não se tem horário de
saída, o que incomoda na mensagem é o que entendo como uma espécie de
naturalização da dilatação de horário, evocando um «espírito de sacrifício» ou
«missões de bem-fazer» de outras eras.
Esta é uma questão complexa e que me divide a título pessoal, porque eu
sempre trabalhei mais horas do que as que me eram pagas a pretexto de uma
responsabilidade e uma entrega à «causa pública» que fui assumindo nos
164
serviços e projectos onde trabalhei. E, de facto, este trabalho não é como
outros que podem ter horários rígidos mas é, como muitos outros que também
têm profissionais de fortes compromissos com os seus contextos e actores de
intervenção (médicos, professores, psicólogos…). No entanto, a partir da
constatação empírica, coloco a hipótese de que a prossecução destes
compromissos seja menos dependente de uma componente formativa ou
profissional e mais dependente do quadro de referência e das características
de cada pessoa. Durante o meu percurso profissional encontrei este forte
compromisso com o que se está a fazer nos mais variados profissionais e
contextos. Por último, sobre as perspectivas da profissão, o documento refere
que:
“Apesar da situação actual do mercado de trabalho não ser muito favorável à inserção profissional dos assistentes sociais devido designadamente às restrições que no actual contexto se registam na admissão destes técnicos na Administração Pública, é provável que a médio/longo prazo esta situação se venha a alterar. É possível que se observe um aumento da procura nas IPSS…”.
Estas palavras parecem evocar perspectivas de adaptação e de expectativa
que os cenários mudem o menos possível…
Sob o ponto de vista do «emprego» tenho a convicção (firmada nos exemplos
de muitas outras profissões extintas) que os assistentes sociais serão tão mais
dispensáveis para as organizações, quanto o que eles fazem, possa ser
traduzido numa qualquer check-list e feito por outros, menos diferenciados e a
um preço mais baixo.
Dar a conhecer os fenómenos com que trabalham, diversificar as formas de
intervenção e divulgar os resultados, fazer narrativas públicas que explicitem as
práticas e os problemas com que trabalham, podem ser contributos para
religitimar a profissão - quer dos que têm trabalho por conta de outrem, numa
perspectiva de auto-qualificação, de aprendizagem contínua e de formação em
exercício com os outros actores que se cruzam no campo profissional, quer dos
que estão fora do mercado de trabalho ou sem exercer a profissão. Para todos
fica a possibilidade da já referida «acção crítica», fora e/ou dentro do sistema.
(RE) SITUAR VELHOS E NOVOS PROBLEMAS
165
Na narrativa profissional as práticas dos assistentes sociais eram consideradas
como sendo uma ‘matéria-prima’ a que dificilmente as outras profissões sociais
tinham acesso. Eram práticas que se queriam marcadas por uma cultura de
proximidade com as realidades sociais e com as pessoas, o que permitia
acesso a um conhecimento «in locco» dos problemas sociais e dos seus
contextos. Como refere uma das assistentes sociais entrevistada:
“Os problemas que se colocam no dia-a-dia hoje, nos bairros, nas famílias, nas pessoas... não é o informático, não é o sociólogo, não é o psicólogo, que lá vão. Porque não se misturam com as pessoas. Eu acho que se há coisa que define o nosso campo é a mistura, é o estar por dentro. Se a gente não conseguir estar por dentro, estar próximo, não agarra nada. Porque é quando a gente está por dentro das situações, e se senta ao lado, e é igual, que nos passam as coisas, como que por osmose“ Maria (E RA2).
Admite-se que a situação actual desta cultura de proximidade estará diferente
na medida em que, por um lado, muitos outros trabalhadores sociais se
aproximaram das realidades quotidianas da vida das pessoas e dos fenómenos
sociais e, por outro lado, existiu um distanciamento dos assistentes sociais que,
a propósito do seu processo de reconhecimento académico, confundiram a
validade técnico-científica com uma «engenharia social» protegida em
gabinetes. Mas voltando à citação da entrevista de Maria (RA2), gostaria de
salientar a metáfora utilizada do ‘processo de osmose’, para referir que, por
vezes, os profissionais tendem a confundir os seus problemas com os
problemas sociais das pessoas que os procuram ou que eles procuram.
Na minha experiência como formadora, este é um assunto muito abordado em
grupos de profissionais que estão em formação contínua ou em supervisão e,
regra geral, carece de uma clarificação para que consiga ser feita uma
distinção entre os problemas que lhes são colocados (e que, por vezes, eles
acolhem como seus) e os problemas que, enquanto profissionais, eles
colocam. Por isso a clarificação de que os problemas que aqui pretendo
identificar são os problemas que, na perspectiva utilizada, são os dos
assistentes sociais.
Num processo contínuo, aos velhos problemas que o Serviço Social ainda tinha
por resolver - como, por exemplo, o aumento de produção e divulgação de
conhecimento próprio, o aumento da autonomia profissional, a diversificação
166
dos modos de exercício e a necessidade de trabalhar a visibilidade positiva da
sua intervenção profissional, somam-se novos problemas, como, por exemplo,
as perdas de legitimidade e uma enorme mutação e partilha do campo
profissional, no quadro de uma tendência para uma «desprofissionalização»
crescente.
Por um lado, ainda persiste a ideia da inespecificidade do Trabalho Social, de
que do «social» todos sabem e qualquer um que o deseje (e que o consiga)
pode tomar parte interventiva no campo, em posição profissional; por outro
lado, persiste a dificuldade em explicitar as Profissões Sociais e, neste caso
particular, o Serviço Social, pela dificuldade de nomear as dinâmicas e
interacções em que é actor, mas também pela dificuldade em reservar tempo
para ‘ganhar distância’ e amadurecer a reflexão – o que, na perspectiva
utilizada, está longe de ser uma fragilidade individual ou apenas deste grupo
profissional.
Outro dos ‘velhos’ problemas do Trabalho Social (e também não exclusivo dos
assistentes sociais) situa-se precisamente na característica que lhe é atribuída
de «apaziguador político» em sociedades onde está ‘apregoada’ uma cultura
de afirmação da livre escolha e da responsabilidade individual (Autès, 2004).
O Trabalho Social tem um mandato cada vez mais reduzido à sua expressão
mínima e centrado na gestão de dispositivos, com uma lógica de construção da
oferta que domina sobre uma lógica de respostas à procura, passando-se tudo
como se as instituições e os interventores soubessem o que é bom para os
outros e conhecessem antecipadamente a resposta às suas necessidades; por
outro lado, em nome de uma sociedade de indivíduos livres e autónomos,
provavelmente nunca existiram tantos meios de controlo (nos contextos da vida
pública e privada) como hoje, em que através das mais diversas tecnologias
parecemos estar todos num gigantesco Big Brother.
Na perspectiva de Autés (2004) a função simbólica de «laço social» está no
centro do trabalho social (ou da intervenção social) embora confrontado com
todas as alterações societais, com a turbulência da actualidade e com ligações
sociais enfraquecidas.
Elegendo a análise que Malcolm Payne (1997) faz do Serviço Social “como um
discurso que se situa entre três visões” - reflexiva-terapêutica, socialista-
167
colectivista e individualista-reformista (visões essas que, simultaneamente, se
criticam e se incorporam) terá de se admitir a pouca clareza deste objecto.
Contudo, a perspectiva deste autor dá um grande contributo para tipificar o
Serviço Social, conforme o papel e as funções que desempenha.
As perspectivas identificadas elegem três elementos do Serviço Social: i) a
mudança social (perspectivas transformacionais); ii) a resolução de problemas
individuais (perspectivas de ordem social); iii) e a autonomização das pessoas
para alcançarem maior bem-estar (perspectivas terapêuticas). São elementos
inseparáveis, uns dos outros e fazem apelo à integração articulada da
compreensão psicológica e sociológica, em compromisso com os valores da
Justiça Social e dos Direitos Humanos:
i) a Perspectiva Transformacional - de cariz “socialista-colectivista” - aparece
comprometida com a mudança social e com os mais oprimidos e vulneráveis
de cada sociedade, no sentido de os capacitar para que ganhem poder sobre
as suas próprias vidas;
ii) a Perspectiva da Ordem Social – de cariz “individualista-reformista”- está
comprometida com a resolução de problemas individuais e com uma lógica de
manutenção e reequilíbrio das pessoas mais vulneráveis, através de serviços;
iii) a Perspectiva Terapêutica - de cariz “reflexivo-terapêutico”- compromete-se
com o ‘empowerment’ e autonomização de indivíduos, grupos e comunidades
para alcançar o seu Desenvolvimento e Bem-estar.
As profissões sociais em nome da «coesão social» participam de uma política
de reconhecimento que faz apelo à construção de um mundo comum ou de um
«estar» em conjunto, mesmo para as pessoas que não têm assegurado o seu
nome, a sua identidade e o seu lugar nas sociedades de produção e consumo.
Se a génese do trabalho social está ligada a Bismark, na linha dos seguros
sociais da Alemanha dos anos de 1880, ao começo da segurança social que
pretendia partilhar rendimentos entre os trabalhadores e os que se
encontravam incapacitados para o trabalho e ao alastramento do Estado-
providência, hoje a impossibilidade de trabalhar - num mundo que não tem
emprego para todos – sobressai sobre as ‘incapacidades’ de outros tempos.
168
E será precisamente quando falta o emprego que o Trabalho Social se torna
um dos principais indicadores da inserção social, tornando-se num ponto
central para a nova «questão social».
Neste âmbito, acentuam-se dois fenómenos: i) o crescimento de um
assalariado pobre e o crescimento da insegurança social, no sentido atribuído
por Castel (2003) e ii) o aparecimento de novas categorias de pensamento e de
formas de relação dos sujeitos com a questão social em que se aprofunda a
noção de «exclusão» pelo trabalho e se amplia e a noção de «sofrimento
social» ou de «vulnerabilidade».
Recordo que já na minha formação inicial (1984-88) a questão do objecto de
Serviço Social era assumidamente problemática, sendo frequente que as/os
alunas/os saíssem do curso sem ter claro do que se tratava, o que aliás é
reforçado pelos testemunhos de algumas colegas entrevistadas na recolha
empírica.Bom, falava-se muito da «Questão social», da influência da doutrina
social da Igreja, de autores e teorias dos campos da Sociologia, da Psicologia,
da Antropologia, da Economia e do Direito, da história do Serviço Social e do
Movimento de Reconceptualização Brasileiro, do Estado-providência e das
suas políticas sociais e da «Mudança» como algo com que os assistentes
sociais ficavam comprometidos mas, para muitas pessoas, permanecia difuso
qual o objecto de Serviço Social.
Lembro-me que nessa época tinha o desejo intenso de conseguir explicar (e a
frustração de não o conseguir fazer) a pessoas comuns e com palavras simples
«o que era o Serviço Social» e «ao que se propunha».
Uma das dificuldades era ter de contar uma grande «história» que arriscava a
perder a atenção do interlocutor e não alcançava a simplicidade pretendida.
Ainda hoje, muitas vezes temos que começar pelos estereótipos (da «pessoa
que ajuda» ou da «pessoa que retira as crianças» e tem o poder de «dar, ou
não, subsídios») para chegar ao que fazemos e ao que pode ser feito. Mas é
neste campo profundamente paradoxal que se continua a realizar a sua
construção profissional.
Também a crónica da morte anunciada do social (na linha de um modelo
cultural dominante que procura responsabilizar os indivíduos por todos os
«males» que os oprimem e os atingem) é, segundo Michel Autès, marcada por
169
três grandes tendências: o enfraquecimento da lógica da dívida, a
individualização do Direito e as incertezas crescentes em torno dos
«mandatos» politicamente consignados ao trabalho social (Autés, 2004).
“O novo paradoxo do social é produzir respostas cada vez mais individualizadas, cujo modelo é o do percurso individual de inserção construído em torno de uma larga gama de ofertas de serviços alternativos do emprego, no quadro de uma retórica da resposta global e regional à questão social em lugar das estratégias já desvalorizadas da assistência” (Autés, 2000: 265).
Através de memórias, tensões e paradoxos, assumo hoje que cada profissão
cria os seus próprios investimentos e interpretações dos corpos de
conhecimento e que o Serviço Social, enquanto profissão plural e diversa tem
criado alguns «objectos» a partir de um vasto reportório de teorias diferentes
para as «recontextualizar» na prática e situar/conquistar a sua legitimidade em
cada contexto histórico. Em vez de uma definição de si próprio, o Serviço
Social redefine-se constantemente na medida em que é influenciado por outros
campos do conhecimento, pelas necessidades sociais e pela mudança social e
ainda pelo próprio discurso interno acerca da sua natureza.
DA «DESCOLONIZAÇÃO DISCIPLINAR» À TRANSDISCIPLINARIDADE
Na perspectiva transdisciplinar que tentei adoptar neste trabalho fiz a revisão
da literatura de Serviço Social mas também me apoiei numa vasta literatura
científica disponível sobre a profissionalização de outras profissões sociais,
nomeadamente de professores por a considerar inspiradora e útil para pensar
sobre os assistentes sociais.
Neste percurso não pude deixar de me confrontar com vários dilemas e com a
própria ambivalência do processo de profissionalização, nomeadamente nos
dois aspectos que lhe são indissociáveis: 1) a existência de profissionais para
quem a definição, o acesso e o exercício são objecto duma codificação
elaborada, e onde emergem organizações profissionais que pretendem ganhar
controlo sobre o conteúdo e o bom uso desses códigos; 2) e a acentuação do
valor acordado para a competência no exercício profissional num ‘corpus’ de
saber, saber-fazer e saber-ser que comporta ele mesmo poderosos factores de
institucionalização. Importante também será não esquecer o alerta das visões
170
radicais de Serviço Social que questionam a profissionalização, interrogando
até que ponto ela é favorecida pelo sistema educativo do trabalho social, em
detrimento dos interesses das comunidades oprimidas e dos clientes
individuais (Payne, 1997:301).
Neste entendimento, torna-se importante conhecer as formas como o Serviço
Social tem sido institucionalizado e controlado (e quais os papeis que
desempenhou nestes processos) e as formas como se tem relacionado com a
rede de ocupações e profissões com quem partilha o campo de intervenção – o
que remete necessariamente para equacionar também a sua profissionalidade,
enquanto conjunto articulado de saberes e atitudes requeridas pelo exercício
profissional e o seu profissionalismo, enquanto conjunto de princípios éticos e
valores orientadores do trabalho profissional. Payne a este propósito identifica
três conjuntos de forças que constroem o trabalho social:
“…aquelas que criam e controlam o trabalho social como uma ocupação; aquelas que criam clientela entre pessoas que procuram ou são enviadas para receber assistência do trabalho social e aquelas que criam o contexto social no qual o trabalho social é praticado” (1997:33).
Reconhecendo a existência de fragilidades no Serviço Social, admite-se que
essas fragilidades também lhe conferem especificidade na abordagem holística
das «situações-problema» e na hipótese de recurso ao pensamento complexo.
A complexidade do seu objecto e o seu lugar particular no cruzamento entre o
social, o político, o jurídico e o psicológico são encaradas como características,
ou seja, simultaneamente fragilidades e potencialidades.
Contudo, estas características podem também ter tradução na dificuldade em
“…definir uma identidade profissional que é por essência flutuante, pela perda de referenciais e pela dificuldade em se tornar explicitável, para o exterior e para os próprios, o que os trabalhadores sociais são e o que fazem, porque fazem de determinada maneira e não de outra, o que eles esperam dessa acção e que sentido tem ela, para eles próprios mas também, ou sobretudo, para as pessoas com quem trabalham» (Riffault, 2007:3).
Apesar das fragilidades mencionadas sobre o conhecimento próprio de Serviço
Social existem posições contemporâneas, como a de Malcolm Payne
(1997:23), que defendem que existe “…um paradigma do trabalho social, que é
socialmente construído e no qual todas as ‘teorias’ e práticas correntes podem
ser encaixadas.” Esta posição pode ser particularmente relevante se em vez de
171
procurarmos uma «teoria» de conjunto para toda a nossa prática, utilizarmos
misturas de ideias de diferentes fontes.
Esta hipótese de «misturar ideias» traz por um lado, desafios complexos e
aconselha a um bom entendimento sobre a proveniência dessas «ideias» mas,
por outro, abre um caminho de especificidade que é, em parte, semelhante ao
que os profissionais mobilizam na prática e, onde a explicitação é, de facto,
fundamental para dar inteligibilidade e validade a essas «misturas». Na
terminologia do Serviço Social a esta «mistura» chama-se «sincretismo». Este
é um termo de origem grega que significa a tentativa de conciliar doutrinas de
diversas origens, utilizado particularmente na Teleologia e na Mitologia da
Religião e que afirma uma unidade subjacente ou a influência exercida por uma
religião nas práticas de outra. O termo que faz parte do léxico profissional é
conceptualizado por José Paulo Netto (2001) que, entre outros autores, o
aborda como «um princípio constitutivo do Serviço Social» que traz uma marca
identitária mas que é simultaneamente «um problema a ultrapassar» e uma
«virtude» que lhe confere plasticidade.
Uma das características, muito difundida na literatura do Serviço Social sobre a
profissão é de que esta não construiu uma teoria própria, dispõe sim de uma
história. E é essa história que a particulariza enquanto tipo de especialização
de trabalho colectivo, gestada nos cruzamentos da intervenção do Estado na
sociedade civil, como resposta às exigências da expansão monopolista do
capital, através do recorte das políticas sociais (Iamamoto, 1992).
A propósito da inexistência de uma teoria própria, revela-se a importância de
explicitar o Serviço Social nos seus diferentes «fazeres», «dizeres» e
«pensares» e será bom lembrar, nas palavras de Jacques Riffault (2007) que:
“Trabalho Social construiu-se como um universo multireferencial em que a quase-saturação deste ponto de vista testemunha a riqueza e a vivacidade das práticas sobre a complexidade do real, mas também, e é um dos seus paradoxos, a fragilidade das suas bases teóricas e conceptuais” (Riffault 2007:2).
Como refere um dos assistentes sociais entrevistados:
“O Serviço Social é uma coisa tão aberta, tão humanista que acaba por se esboroar. Não tens suporte nenhum, o pessoal agarra-se aonde? Não consegue. E perante outras profissões tu não te consegues implantar, tu
172
não consegues arranjar nada muito parecido ao projecto de Arquitectura, que seja o teu projecto de Serviço Social “ e continua dizendo, “Às vezes sinto-me como os tocadores de ouvido, como aqueles tipos que nunca foram para a escola e que não sabem ler uma pauta. Os tipos tocam música tão bem como os outros. Mas são uma espécie de músicos analfabetos. Nós como andamos muito atrás das modas, é o seguinte, andamos ainda a estruturar o que os outros andam a desestruturar” António (AF1).
Quer na voz do paradoxo nomeado por Riffault, quer na voz deste assistente
social contemporâneo, a «colonização» do Serviço Social pelas «modas» de
outras fontes disciplinares, faz lembrar as culturas de transmissão
essencialmente oral (como, por exemplo, a cultura cigana) em que ao orgulho
da pertença, se misturam sentimentos de inferioridade em relação à «cultura-
norma» e de receio de explicitação e divulgação dos seus códigos e normas
culturais, como se ao fazê-lo pudessem trair os seus traços identitários mais
profundos. Esta analogia com uma etnia que tradicionalmente recorre aos
serviços onde trabalham assistentes sociais e com quem muitas vezes, estes
profissionais, têm relações tensas, contribui para colocar a questão da
importância socialmente atribuída às profissões estar em relação com os
«públicos» que abrange. E, nesta linha, não será de excluir a perspectiva de
que, como que por osmose, os assistentes sociais fiquem em posição tão mais
vulnerável e «excluída» quanto a sua «clientela» o for – uma profissão de
«pobres» e «excluídos» numa visão linear e redutora, mas que existe na
contemporaneidade e que privilegia a importância dicotómica dos profissionais
que trabalham «para, ou com, os sectores mais abastados das sociedades» e
os que trabalham «nos contextos de discriminação, pobreza e exclusão social».
A visão do Assistente Social confinado ao domínio exclusivo da pobreza e da
«disfunção social», ocupado prioritariamente com a redistribuição de recursos,
a normatividade e o controle social, comprometido com as respostas e
procedimentos organizacionais, é limitativa mas destaca vertentes da profissão
como «agente de adaptação» que privilegiam um efeito paliativo centrado nas
pessoas e nos seus problemas, em detrimento de uma intervenção preventiva
e estrutural nas sociedades.
Em concomitância, existem muitas outras vertentes e formas de exercício que
nos levam a defender para esta profissão uma plasticidade cultural onde as
173
transformações que foram ocorrendo ao longo do tempo resultaram mais de
“um processo contínuo de decomposição e recomposição ideológica e cultural
que se desenvolveu ao longo da sua trajectória de vida social” (Mouro,
2009:123), do que de profundas rupturas identitárias. Por exemplo e, ao longo
da sociedade industrial, a sua função na intervenção comunitária foi
condicionada essencialmente pela filosofia institucional do projecto de
intervenção e pelas características ideológicas do processo de gestão do social
- até então com a orientação Franco-belga sob influência da doutrina social da
Igreja católica (encíclica Rerum Novarum, 1891entre outras), e depois com o
desenvolvimento metodológico do «modelo funcional» de origem positivista.
Neste âmbito, será importante recordar a importância de duas fortes influências
que também marcaram as dinâmicas e a herança do percurso histórico do
Serviço Social: o Positivismo e o Funcionalismo.
Augusto Compte, considerado o «pai» do Positivismo, surge como filósofo na
primeira metade do século XIX, em França, e empenha-se numa filosofia com 3
temas básicos: i) a filosofia da história, visando mostrar como uma certa
maneira de pensar (filosofia positivista) devia imperar para que a sociedade
pudesse ser reconstruída através de uma reforma intelectual do homem; ii) a
fundamentação e classificação das ciências segundo a filosofia positiva; iii) a
sociologia, responsável pelos processos de modificação da sociedade, através
da reforma das instituições.
Compte defende também (entre muitos outros aspectos de uma vasta
produção não abordada) o conceito de grupo social, combatendo o
individualismo inspirado em Rousseau e fornecendo uma concepção de
sociedade como um organismo biológico, onde o conjunto de órgãos funciona
em perfeito equilíbrio. Nesta explicação a «ordem social» ganha um papel
relevante como garante do tal equilíbrio e regularidade, que são aspectos
importantes e fundamentais para mostrar a influência positivista no Serviço
Social. Segundo este paradigma o que é normal é o que está em equilíbrio e
mantém a regularidade do sistema, sendo essa regularidade que lhe confere a
noção de normalidade. O que ocorre fora dos padrões da normalidade é
considerado desvio e torna-se patológico no sistema social.
174
O funcionalismo social, por sua vez, parte do princípio de que a sociedade é
um todo orgânico e que cada parte tem uma função específica para a
manutenção equilibrada do todo e que o funcionamento social será definido e
controlado a partir do estabelecimento de regras e normas que estarão
fundamentadas pela consciência colectiva.
Vários aspectos do funcionalismo influenciam o Serviço Social, entre eles, o
objectivo de procurar a adaptação e integração do homem no meio social em
que vive (pois o indivíduo não ajustado corresponde a uma disfunção do
sistema social), o pressuposto da neutralidade, a dicotomia teoria-prática e a
própria metodologia do Serviço Social, expressa na tríade Serviço Social de
Casos, de Grupos e de Comunidade (Pinto, 1986).
Durkheim protagoniza uma influência marcante com questões como, por
exemplo, «a coesão e o equilíbrio através do princípio da integração», o
conceito de «solidariedade social», o conceito de «consciência colectiva» e a
noção de que os factos sociais devem ser tratados como exteriores ao
interventor. Posteriormente o modelo funcionalista de Émile Durkheim foi
aperfeiçoado por antropólogos e sociólogos como o britânico R. Radcliffe-
Brown, com os conceitos de «processo», «estrutura» e «função».
A partir de 1950, a sociologia americana, principalmente através de Talcot
Parsons e Robert Merton, vai detalhar o conceito de estrutura social e definir os
conceitos de «status» e «papel» para explicar as desigualdades sociais.
A influência do funcionalismo no Serviço Social faz-se notar através do
tecnicismo expresso no agir profissional e na prática asséptica e
descomprometida que, segundo Vicente Paula Faleiros (1981), revela na sua
suposta neutralidade um compromisso com a estrutura social vigente.
A relação muitas vezes ambígua estabelecida entre o Serviço Social e as
correntes de pensamento em voga (sejam a título do exemplo utilizado, o
Positivismo ou o Funcionalismo ou, mais recentemente as abordagens
Sistémicas, Criticas e Ecológicas) recoloca-se a questão da importância dos
profissionais reflectirem e se posicionarem sobre «em que medida» aderem à
«reprodução» das correntes de pensamento em voga e «em que medida»
podem contribuir para a produção de conhecimento.
A NEUTRALIDADE TÉCNICA EM DEBATE
175
Ao percorrer os processos de emergência, institucionalização e de
profissionalização do Serviço Social, dá-se conta da diversidade de formas que
podem tomar as teses sobre o Estado e as suas políticas sociais e pretende-se
evitar a conotação de neutralidade que, por vezes, lhe é atribuída.
Actualmente com uma crise estrutural do Capitalismo e sobretudo com a crise
da sua relação com os Estados, aumenta a complexidade e a diversidade de
análises e a necessidade de um contínuo aprofundamento, quer sobre o papel
dos Estados providência, quer sobre a própria natureza do Estado, quer sobre
os posicionamentos dos técnicos que nele (e/ou em nome dele) intervêm -
algures entre a influência weberiana de uma autonomia técnica e as influências
de paradigmas científicos que concebem o técnico como estando fora ou
dentro, dos sistemas em que intervém.
Sobre a concepção de Estado, opõem-se várias perspectivas, nomeadamente
as pluralistas e marxistas, divergindo fundamentalmente nas suas concepções
sobre a relação do Estado com a Sociedade. As teorias pluralistas, resultantes
da emergência e desenvolvimento da teoria política pluralista, no âmbito da
teoria liberal, apresentam o pluralismo como a reinterpretação do «bem
comum», assumindo o Estado uma posição de árbitro neutro e tendem a supor
que o Estado é bastante autónomo em relação à sociedade - o que tem
justificado uma posição de aparente neutralidade perante os diferentes grupos
de interesse, na tentativa de colocar o Estado e os seus agentes fora dos
conflitos sociais. As teorias marxistas, ao invés, definem o Estado pelo seu
compromisso com a classe dominante, atribuindo-lhe um papel de mediador de
conflitos no interior dessa mesma classe.
Quer numa, quer noutra perspectiva são grandes as influências para os
assistentes sociais que se tendem a posicionar entre estes dois extremos,
como estando fora dos conflitos sociais e/ou como tendo neles um papel
mediador, o que de certa maneira implica uma equidistância neutral.
Gosta Esping-Anderson (1999) referia que o Estado se proclamava então (e,
alguns ainda se proclamam) como «regulador», «animador», «supervisor» e
«mediador», renunciando tendencialmente ao uso da noção de «controlo» e
utilizando um novo léxico com termos como «monitorização», tornando
necessário que a análise se interesse por estas estratégias de acção estatal,
176
designadamente pelas que têm vindo a fazer apelo à «descentralização», à
«territorialização» e à «contratualização» das políticas sociais públicas.
Associadas a estas estratégias, diversas noções como «autonomia»,
«participação», «projecto», «contrato», «parceria», «partenariado», «território»
e «comunidade», só para referir alguns exemplos, têm sido abundantemente
utilizadas, quer no plano da acção local quotidiana, quer ao nível das políticas
públicas que se têm voltado para o local como forma de relegitimação da acção
estatal. O seu uso tem-se generalizado de tal forma que parece ter-se tornado
um vocabulário obrigatório para formular, descrever e analisar os problemas
sociais e educativos contemporâneos.
Uma das tendências actuais do Serviço Social aponta para formatos como o
«managerialismo», entendido como a aplicação dos princípios de gestão ao
campo da intervenção social (Dominelli, 2004:284) onde prevalece uma hiper
racionalidade instrumental. Neste domínio salientam-se como duas fortes
tendências contemporâneas da prática profissional a «Evidence-based
practice» e a «Competence-based pratice».
A primeira, de inspiração positivista, prossegue um objectivo de rigor e
cientifização da prática, com uma aposta na objectividade e planificação das
práticas (elaborando guias de procedimentos) de forma prévia e generalizada a
diversas situações (Webb, 2006:14), com o fim de maximizar a racionalização e
a eficiência dos serviços; a segunda, é de inspiração Fordista, propondo uma
padronização da intervenção através de uma decomposição da prática
profissional em procedimentos e permitindo assim uma maior monitorização do
desempenho dos profissionais e, supostamente, dos resultados atingidos
(Dominelli, 2004).
Estas tendências, apesar de constituírem fonte de tensão entre os
profissionais, parecem recolher a adesão de uma grande parte das
organizações sociais mas também de alguns trabalhadores sociais
(nomeadamente assistentes sociais) que entendem como ‘securizante’ ter
‘guide lines’ que prescrevam e balizem a sua intervenção. Por outro lado,
acentua-se o dilema para outros profissionais entre «o que os serviços nos
pedem que façamos» e «o que achamos que devemos fazer».
177
Neste domínio arrisco a convicção de que todos os profissionais que têm uma
vertente de trabalho com o comportamento humano, lidam com domínios
consideráveis de incerteza e imprevisibilidade e que se situam em campos de
intervenção onde as ‘guide lines’ poderão ter importância como horizonte e
referência, mas não podem ser entendidas como «receitas».
A ideia de ‘neutralidade’ que pretendo questionar também tem muito de um
sentimento de omnipotência sobre o outro (quer na vertente de diagnóstico dos
seus ‘males’, quer nas ‘boas soluções’ que se prende que ele/a implemente) e
onde o «paradoxo da ajuda» constitui um dos quadros de referência –
separando os contextos entre «ajudados» e providenciadores de «ajuda»,
estabelece uma relação dinâmica que reproduz o estatuto e a condição de
‘menoridade’ e ‘incapacidade’ dos «ajudados» em relação com a medida de
pressão e controlo que os «providenciadores de ajuda» exercem. E apesar dos
trabalhadores sociais, e no caso os assistentes sociais, terem realizado
abundantes tentativas de se reinventarem, adoptando novos quadros de
referência teórico-metodológicos e novos léxicos, muitas vezes, não chegam a
questionar «para que serve tudo isto?» num debate que se entende necessário
sobre as finalidades das intervenções e sobre as perspectivas e as
metodologias que em cada tempo e contexto histórico se tornam moda.
Uma intervenção ‘técnica’, ‘neutra’ e ‘exterior’ ao sistema em que intervém é
muitas vezes realizada com uma visão humanista centrada na adaptação da
pessoa «assistida» e no seu papel de «utente» de serviços e respostas sociais,
realizada simultaneamente nas estruturas institucionais e à margem delas - em
redes informais que estes técnicos são peritos em construir. Também, coloco a
possibilidade de que ao acolher e tentar «resolver» os pedidos que lhe são
colocados, estes profissionais dão uma ilusão de resposta institucional e de
justiça social que contribui para manter o «status quo» e as desigualdades de
origem.
Num outro posicionamento epistemológico que me é mais próximo (embora
seja respeitante a um nível micro de intervenção) e de acordo com a Teoria dos
Sistemas Observantes (Pakman, 1991), o interventor é encarado como
observador-participante na realidade em construção, implicando o processo de
intervenção uma «acoplagem» de dois sistemas (técnico e unidade de
178
intervenção: família/rede/organização,…) que se perturbam mutuamente e de
que resulta uma co-evolução.
Aceitando estas premissas, dá-se relevo à dimensão temporal e histórica dos
sistemas com que se intervém e, o Assistente Social não tendo capacidade de
controlo e previsão, posiciona-se como catalisador da mudança, privilegiando
na intervenção uma vertente estética e semântica, em detrimento de uma
vertente pragmática. Reencontra-se deste modo, a noção de capacidade auto-
curativa do sistema, de que falava Bateson onde o próprio «sistema-cliente»
participa como actor. Esta migração de conceitos de outras áreas do
conhecimento, concretamente da teoria geral dos sistemas (L. Von Bertalanffy),
da Cibernética (N. Wiener; H. Von Foester) e da Teoria da comunicação
humana (G. Bateson e Grupo de Palo Alto) chegou-me através da formação
em Terapia Familiar e pertence a um movimento científico e psicoterapêutico
global composto pelas vertentes epistemológica, teórica e prática, com o qual o
Serviço Social poderia «trocar» bastante conhecimento.
Ao entendermos a história da formação em Serviço Social como um percurso
contínuo, embora não linear, podemos identificar em extremidades opostas
duas ideias de formação com possibilidade de várias soluções intermédias e
combinadas entre elas: por um lado, a ideia de formar agentes de controlo
«meninas de boas famílias» para responder a uma «vocação» e cumprir a
«missão» de «reeducar» os pobres e prevenir a conflitualidade social e, por
outro, a ideia de formar agentes de mudança interventores sociais, mobilizados
por um ideal de mudança social, capazes de equacionar as variáveis
societárias e de participar na definição e gestão das medidas de política e
também de continuar a participar nos mecanismos de redistribuição nos
diferentes sectores sociais, contribuindo para montar mecanismos de apoio e
compensação à vulnerabilidade social.
Apesar desta caricaturização e da dicotomia estigmatizada mantém-se um foco
que tem prevalecido ao longo dos tempos, na mudança dos «pobres, excluídos
ou não-integrados», em detrimento de uma actuação mais abrangente nas
organizações e instituições ou de um questionamento sobre o próprio objecto
do Serviço Social e dos modelos de Estado e Sociedade. Até porque sendo os
assistentes sociais, na sua grande maioria, trabalhadores por conta de outrem,
179
com estatuto e reconhecimento públicos, a expectativa é de que resolvam
problemas, façam uma gestão eficaz e eficiente de dispositivos de apoio e não
que coloquem problemas.
Assumo como hipótese que os assistentes sociais encontram dificuldades
acrescidas quando pretendem investir numa actuação mais política e ético-
deontológica e, que sejam sobretudo docentes e/ou profissionais -
investigadores que, nessas qualidades, se encontram prioritária ou
temporariamente fora do campo organizacional da intervenção directa e sem
sujeição hierárquica ao nível da avaliação do «fazer».
Com ciclos de compromisso com a Questão Social, no seu enunciado «velho»
e «novo», com as Políticas Sociais do Estado-providência e com os Direitos
Humanos, os assistentes sociais têm sido formados para «humanizar» um
determinado modelo de desenvolvimento que naturaliza as categorias
dicotómicas de ricos e pobres, de incluídos e excluídos, de problemáticos e não
problemáticos e de funcionais e disfuncionais. Não se trata, como bem referem
Stoer e Magalhães, de dizer que:
“…estão esgotadas as tradicionais políticas sociais fundadas na consecução dos objectivos de igualdade, mas de enfatizar que essa perspectiva tem de abarcar outros aspectos que estão para além, e para aquém, da igualdade económica.” (2000:164)
Trata-se seguramente de encontrar saídas que não se inscrevam nas correntes
de pensamento que se encontram esgotadas.
A reinvenção da profissão passará pela humildade de interrogar a disciplina e a
«praxis», num debate onde o rigor se fará quotidianamente pela reflexão
contínua sobre as crenças, os preconceitos e as ideologias, mas também pela
interrogação da investigação científica que em dado momento se torna
pertinente e mobilizável, permitindo debater ‘o que se sabe’, ‘o que não sabe’ e
‘o saber dos outros’.
180
CAPÍTULO 3 – O LUGAR DO «NÃO-SABER» FACE AO
SABER DOS OUTROS
“Conhecer o mundo – o próximo e o distante – é o impulso central do espírito humano. Somos seres epistemofílicos – um desejo imenso e permanente de conhecimento, uma curiosidade infindável. Então, a forma como as coisas nos são apresentadas e o modo como as pessoas se nos dão a conhecer constituem factores essenciais na facilitação dos processos de aprendizagem, adaptação e transformação do real, seja, no acesso ao conhecimento e à acção”, é assim que o Professor Coimbra de Matos começa o capítulo “João dos Santos – O Mestre da relação”, no seu livro «Vária. Existo porque fui amado» (Matos, 2007:167).
Este tipo de narrativa que mobiliza uma ideia de «conhecimento» e «acção»
num jogo interactuante entre a «curiosidade» das pessoas por conhecer e os
«processos de aprendizagem, adaptação e transformação do real», sublinha
uma perspectiva em que o «saber» e o «não-saber» fazem parte de uma
condição humana para «conhecer o mundo», transformando-o em «realidades»
co-contruidas socialmente. Na sequência desta homenagem a João dos
Santos, que foi um homem de tanto e tantos saberes (designado nesta fonte
como «mestre-aprendiz»), continua dizendo:
“Investigar é fazer perguntas à realidade; mas ela só responde à nossa indagação se a pergunta for divertida, diversa da ritual. «Se não sabe porque é que pergunta?» interrogava/interrogava-se João dos Santos. Se não sabe, investigue! Contudo, se você não tem graça e espírito de aventura – propriedades do jogo -, a investigação será maçuda, desgastante e pouco pertinente; quanto muito, acrescentará minúcias ao já sabido; é a triste e tristonha evolução na continuidade. Queremos novidade, ideias fracturantes; e não ideias aconchegadas. O verdadeiro fruto da investigação é a revolução do conhecimento. A melhor resposta, diz quem sabe, é outra pergunta. «Não sabes? Eu também não. Vamos ver» - é um pequeno trecho de uma sessão de psicanálise de João dos Santos com uma criança. (…) O saber feito vem nos livros. Como produzir conhecimento, isso aprende-se com mestres de carne e osso, alma e coragem, abertos à experiência, tolerantes à dúvida e sempre em busca de evidências ainda ocultas” (Matos, 2007:168).
A longa citação serve de mote a este capítulo e diz melhor do que eu diria da
dificuldade de nos despirmos da omnipotência técnica para admitirmos uma
posição de humildade que sabe do que não sabe, e sabe que precisa dos
saberes dos outros para procurar conhecer. E não me refiro apenas aos
saberes académicos de outras ciências, refiro-me também aos saberes
181
(experienciais, tácticos, transversais…) com que contactamos diariamente no
exercício da nossa actividade e que construímos para agir.
Eu posso ter lido muitos livros sobre «toxicodependências» e, por exemplo,
saber o que a evidência científica refere sobre o fenómeno, até posso ter
bastante experiência no trabalho com pessoas com dependências de
substâncias, mas quando estou com determinada pessoa que tem uma
dependência e para quem isso constitui um problema que precisa resolver, eu
assumo que quem sabe do seu problema é ela. Neste entendimento, a
informação pertinente é aquela que vem do sistema e que volta a ele para
produzir «tomada de consciência» e provocar possibilidades de mudança
endógena.
No meio académico, esta posição de «curiosidade» e de «não-saber» de
autores de variados campos do conhecimento que reconhecimente sabem
muito, sempre me fascinou, em contraste com outros posicionamentos de
sapiência de conhecimentos ou procedimentos, que pareceram inflacionados e
pouco úteis. Em relação aos contextos não académicos e próximos da vida das
pessoas, abundam actores e autores que, independentemente da sua
instrução, e dos papéis que desempenham também são «mestres de carne e
osso» com quem podemos aprender muito e construir novos conhecimentos.
No entendimento de Barbier sobre a formação de adultos como “laboratório de
práticas novas” (Barbier at al 1991:135), partilho uma concepção de fundo que
tem percorrido a experiência deste processo de investigação, ao procurar
entender como os adultos se formam. Um dos princípios definidos, nesta nova
epistemologia da formação, é o de que se aprende em todos os lugares e
circunstâncias da vida, intencionalmente ou não, sendo as aquisições
escolares formais (que continuam a validar os conhecimentos) apenas uma
parte reduzida do saber global (ser, pensar, fazer, sentir) que cada adulto
possui, desenvolve e constrói. Esta concepção é sobretudo uma crítica a uma
concepção de formação como «acumulação» de conhecimentos.
Atendendo ao significado da experiência na história pessoal e aos seus efeitos
motivadores e desencadeadores de novas aprendizagens num percurso de
construção de saberes (Dominicé, 1984), trata-se essencialmente de mobilizar
essa experiência num quadro conceptual de produção de saberes. Assim,
182
parte-se do conceito de que a produção da vida, através da apropriação dos
processos de formação, acompanha as mudanças e a produção da profissão
de assistente social.
Neste processo assumidamente complexo, utilizei a referência de um dos
autores contemporâneos que propõe uma transformação epistemológica para
questionar o fechamento ideológico e paradigmático das ciências – Edgar
Morin. Este capítulo, inspirado no seu livro “Os sete saberes necessários à
educação do futuro” (2000) está estruturado em três pontos: no primeiro tento
reflectir sobre o «conhecimento pertinente», abordando a formação dos
assistentes sociais, as competências e a articulação e produção de saberes.
No segundo, reflecte-se sobre os processos de construção identitária que estão
em relação com os percursos formativos e de aprendizagens nos contextos. No
terceiro, tento mobilizar, através do conceito de autoformação, algumas formas
de formação não formal para reflectir sobre as potencialidades de relação com
as aprendizagens dos assistentes sociais ao longo da vida.
183
3.1. O CONHECIMENTO PERTINENTE
Parto do pressuposto de que para enfrentar os problemas complexos com que
trabalhamos é necessário fazer recurso ao pensamento complexo, ao invés de
simplificar e tipificar as respostas, como parece ser uma das tendências actuais
que afectam o exercício profissional dos assistentes sociais.
Na etimologia da palavra «complexo» que vem do latim, temos o significado de
«aquilo que é tecido em conjunto», e esta perspectiva propõe-nos que (re)
comecemos a estabelecer as ligações que a ciência cartesiana separou.
Entendendo que as pessoas são seres que se expressam, que podem ‘fabricar’
os seus próprios pensamentos e que criam os seus próprios símbolos,
entende-se que no pensamento complexo, a totalidade é maior do que a soma
das partes. Pascal dizia, já no século XVII “Não se pode conhecer as partes
sem conhecer o todo, nem conhecer o todo sem conhecer as partes”. Esta
citação recorda-nos que é importante valorizar o avanço das ciências e do
conhecimento (em especial na linha do contributo de Thomas Kuhn) no modelo
formado pelo ensino disciplinar e ter a noção de que as diferentes «disciplinas»
científicas continuam a ter a sua pertinência em domínios do conhecimento
analítico e especializado. Contudo, a atenção de alguns cientistas para o que
existe «entre» as várias disciplinas e para as conexões entre as «partes»
começou a revelar que apesar da invisibilidade destes aspectos, seria
interessante constituir um outro movimento que evitasse a fragmentação e
juntasse, interligasse e contextualizasse os dados para construir concepções
da «realidade», enquanto olhares multidimensionais, interactivos e provisórios.
Assim, o «conhecimento pertinente» que me serviu de inspiração, é um
conhecimento que não mutila o objecto (Morin, 2000).
Apesar da valorização dos saberes experienciais e tácitos, reconheço que têm
sido essenciais as fontes de conhecimento científico que o Serviço Social tem
mobilizado e produzido. De acordo com o Collins Dictionary of Social Work
(Pierson e Thomas, 2010) distinguem-se três níveis de teoria no Serviço Social:
as teorias tomadas de «empréstimo» das Ciências Sociais; as teorias sobre os
sistemas de bem-estar e as teorias desenvolvidas pelos que trabalham em
Serviço Social e campos afins.
184
Tentei que neste processo de investigação o ensaio desta abordagem
multinível levasse em conta estas diferentes «camadas» de conhecimento.
Segundo esta fonte, é feita a distinção entre os campos de pensamento mais
clássico de Serviço Social e os campos de pensamento mais renovadores: os
primeiros (A e B) que enfatizam o poder do sujeito como variável determinante
para a acção e o Assistente Social como um agente neutro, com competência
técnica para fazer o controlo social, para redistribuir recursos, «reeducar» e pôr
os sujeitos a cooperarem com o sistema, preservando a sociedade, numa
intervenção fundamentalmente a nível micro; e os segundos (C e D) que
enfatizam o poder da estrutura como variável determinante da acção, numa
intervenção fundamentalmente a nível macro.
A - Teoria Psicanalítica e Behavorismo (Howe, 1996:52-53)
Acção centrada no método e na situação. O indivíduo deve adaptar-se ao meio. Prática profissional (sobretudo de caso e no modelo clínico) voltada para procurar a estabilidade.
B – Teoria dos Sistemas e abordagens centradas no cliente.
Acção centrada na pessoa como um todo e como meio para a dotar de competências que lhe permitam melhor
adaptação ao contexto. Prática voltada para a procura de sentidos. Abordagem psicologizante dos problemas
sociais.
C – Humanismo (no conceito de Ander-Egg, 1996:249 que o denomina «novo humanismo» e o opõe ao
humanismo clássico»).
Enfatiza a centralidade e capacidade de acção do homem sobre o mundo. Prática comprometida na
consciencialização.
D - Serviço Social Estrutural e Serviço Social Crítico
Enfatiza as instituições como contexto de trabalho do AS e focaliza a totalidade social. Serviço Social com
projecto colectivista de mudança inspirado na escola marxista. Idealmente, nesta perspectiva o Serviço Social
só poderia actuar de fora das instituições para não favorecer e reprodução da ordem existente.
185
Esta «arrumação» conceptual tem as suas virtualidades, embora seja
importante fazer notar que, nem do ponto de vista teórico nem do ponto de
vista das práticas profissionais, existe unanimidade sobre ela.
Eventualmente as suas maiores vantagens situam-se na clarificação das
velhas dicotomias e tensões entre o foco no indivíduo e o foco na estrutura,
entre o compromisso com a estabilidade e a conformidade social e o
compromisso com a mudança; e também, na acepção de que os modelos e as
realidades são «coisas» bem distintas e as práticas são bastante mais
complexas e nelas se misturam, seguramente, algumas destas perspectivas.
Mas centrando na formação dos assistentes sociais, será importante evidenciar
também algumas destas tensões e as relações entre uma abordagem mais
centrada no indivíduo e na sua capacidade de desenvolvimento e adaptação (a
aprendizagem) e uma abordagem mais societal, mais política, centrada nas
estruturas e instituições sociais (mudança social), sabendo que me importa
criar pontes que permitam ultrapassar estas dicotomias. Segundo esta
perspectiva, é possível ultrapassar as restrições das concepções baseadas
numa abordagem racional da ciência, ou seja, no paradigma positivista que
considera que o conhecimento se baseia em certezas, e em referências fixas e
universais, procurando o conhecimento «objectivo» e o «domínio do mundo ao
serviço do desenvolvimento do homem».
Nesta linha, saliento quatro correntes de pensamento transversais às ciências
sociais com grande influência no Serviço Social – o Funcionalismo, o
Estruturalismo, o Construtivismo e o Interpretativismo. Segundo a
categorização mencionada por Amaro (2009) do cruzamento entre estas
correntes de pensamento e os dois eixos herdados da Teoria Social (o que vai
da «acção/subjectivo» à «estrutura/objectivo» e o que vai do
«conflito/mudança» à «ordem/regulação»), emergem quatro campos teóricos
onde se podem inscrever as diferentes teorias do Serviço Social, como se pode
visualizar na figura seguinte.
186
Figura 1 - Campos paradigmáticos das teorias do Serviço Social
Fonte: com base em Howe - David Howe, num artigo sobre a evolução da prática do Serviço Social da
modernidade à pós-modernidade, aponta que a emergência do serviço social como profissão vem
responder a um dos projectos da modernidade: inscrever disciplina e ordem, progresso e crescimento à
condição humana (1996:81).
O conjunto de problemas que enfrentam hoje as nossas sociedades cria a
oportunidade para reflectir e clarificar não só as teorias e os modelos, mas
também a perspectiva da mudança social e, por maioria de razão, o processo
de aprendizagem para chegarmos lá.
“A prática da aprendizagem da nossa saída está dependente da capacidade de relacionar a aprendizagem individual e colectiva, com a transformação institucional e organizacional, enquanto o futuro da educação de adultos está dependente da sua capacidade de estabelecer esta relação de nível teórico e conceptual” (Finger e Assún: 2003, p.150).
Paradigma
Alternativo
Conflito/Mudança
Estruturalismo
D Humanismo
C
Acção/
Subjectivo
Estrutura/
Objectivo
B A
Funcionalismo
Interpretativismo
Paradigma
Vigente
Ordem/regulação
187
Mesmo que de uma forma sumária pode-se, assim, constatar complexos
movimentos de ideias e construções conceptuais, em torno de eixos (Norte
versus Sul), de tendências (Utilitaristas versus Políticas), de modelos
(centrados no desenvolvimento individual ou na mudança social), de conceitos,
de níveis e de prioridades, só para evidenciar alguns dos aspectos sobre que
convergem ou divergem os diferentes autores e abordagens.
No entendimento de que o conhecimento não é um espelho da ‘realidade’, mas
sim uma espécie de tradução seguida de reconstruções, torna-se
particularmente importante uma «ética do género humano» que ligue as
pessoas como indivíduos com as sociedades e com a espécie humana. Edgar
Morin defende a interligação destes três elementos desde a publicação da sua
obra «O paradigma perdido: a natureza humana» (1973).
A concepção complexa do género humano comporta esta tríade, num ideal de
desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações
comunitárias e do sentimento de pertença à espécie humana. No pensamento
de Morin (1973) é articulado o lado biológico e natural do homem com o seu
lado cultural, definindo uma natureza que não se esgota nele, que é
simultaneamente singular e universal, e que também se pode encontrar em
múltiplas dimensionalidades que se interconectam. Assim, a concepção de
homem que se adopta parece ser fundamental para o desenvolvimento das
formas de interacção e de co construção das diferentes leituras sobre o que se
vive e o que se pensa.
Nesta perspectiva, a capacidade do ser humano de se regenerar
constantemente a partir da sua organização (auto-eco-organização) é uma das
facetas da natureza humana que Morin salienta, a par com a sua
multidimensionalidade e o entendimento de que a humanidade é uma
«reinvenção contínua» e dependente da interacção do homem com o mundo.
188
- FORMAR ASSISTENTES SOCIAIS
Formar assistentes sociais parece ter estado historicamente no centro de
tensões a que não foi alheio o facto de o Estado não ter incluído esta formação
na oferta formativa pública de nível superior, deixando a determinadas
entidades privadas (mais ou menos ligadas à Igreja) essa responsabilidade. A
constituição de uma formação composta por abordagens de vários campos
científicos que parecia uma desvantagem, pode constituir, na perspectiva
utilizada nesta investigação uma vantagem de posicionamento a partir das
zonas fluidas e «entre» as várias ciências.
O que será curioso verificar, para além das expectativas sociais existentes na
profissão e do seu mandato e legitimidade de intervenção, são as múltiplas
formas como os profissionais «deram a volta» a esse mandato e construíram
trajectórias profissionais em busca de significado para a sua «praxis».
Fazendo, muitas vezes, aprendizagens que o ensino não propunha, em
contextos e com interlocutores novos e não valorizados pelo conhecimento
académico, como refere o entrevistado Jaime (E JF7):
“A outra dimensão importante é que nós consigamos desenvolver equipas que tenham uma perspectiva reflexiva, ou seja, que se faça reflexão sobre aquilo que fazemos na prática. E para isso temos de fazer o exercício de escrever sobre a nossa prática. Quando pensamos em sistematizar, a nossa prática leva-nos a reflectir sobre ela e ao reflectir sobre ela, envolvemos os outros que estão à nossa volta, nessa reflexão, porque nós próprios pomos questões ou levantamos questões para as quais não conseguimos explicações... e aí também quando me envolvi na escrita de alguns artigos, escrevendo sobre várias perspectivas, levaram-me também a esse desenvolvimento e isso foi enriquecedor do ponto de vista da formação, do conhecimento. Porque também temos que integrar outras fontes, temos que ver outros métodos, outras formas de fazer...” Jaime (E JF7)
Contudo, o mesmo colaborador desta investigação, valoriza o ensino formal:
“Eu penso que a formação curricular, pós-graduada, da qualificação, toda ela é importante, do ponto de vista de nos dar um método, uma disciplina, um rigor, e uma coerência científica dentro da área em que estamos a trabalhar e a intervir; e dá-nos uma terminologia de linguagem comum para trabalharmos dentro daquela temática e daquele problema. Acho que aí sou defensor dessa formação estruturada, pensada, fundamentada e que seja de qualificação, que qualifica para, para ir mais longe – dá elementos para que, o profissional, se quiser, pode avançar muito mais para além daquilo que está a fazer. “Jaime (E JF7)
189
Reflectir sobre a formação dos assistentes sociais passará necessariamente
por pontuar a institucionalização dessa formação e para tal, em complemento
aos conteúdos já abordados no capítulo II deste trabalho, explicitar que segui a
genealogia da Professora Doutora Maria Augusta Negreiros (1998). Segundo
esta autora, o Serviço Social em Portugal surge enquanto área da formação
académica, em 1935, após as tentativas ligadas à Saúde e à Educação nos
anos 30 do século passado atrás mencionadas, com a criação da 1ª Escola –
Instituto de Serviço Social de Lisboa, tendo por suporte jurídico a Associação
de Serviço Social, sob tutela do Patriarcado de Lisboa. Posteriormente, são
criadas a Escola Normal Social de Coimbra, em 1937, pela Junta da Província
da Beira Litoral e, o Instituto de Serviço Social do Porto, em 1956, pela
Associação de Cultura e Serviço Social, sob tutela da Diocese do Porto.
O ensino de Serviço Social parece ter vivido uma tensão recorrente entre as
ideologias vigentes e as correntes científicas em presença, mas onde
prevaleceu por várias épocas e circunstâncias o compromisso com as
ideologias. As três Escolas existentes (Institutos Superiores de Lisboa, Porto e
Coimbra) são de natureza privada, o ensino nelas ministrado só em 1961 é
considerado superior e passarão quase três décadas até ser reconhecido o
grau de licenciatura para essas formações.
Em 1974, num quadro pós-revolucionário, os três Institutos exigem a sua
integração nas estruturas universitárias públicas; mas este processo de luta
pela “integração nas universidades” e pela “Equiparação a Licenciatura para
efeitos profissionais”, desenvolve-se ao longo de mais de uma década, sem
atingir o objectivo pretendido. Em 1985, o Instituto Superior de Serviço Social
de Lisboa complementa esta estratégia decidindo assumir-se como Instituição
de Ensino Superior Privada e vindo a constituir-se em Cooperativa de Ensino
Superior, um ano depois. O Instituto do Porto desenvolve um processo
semelhante - significando esta estratégia que só então a formação em Serviço
Social se desvincula formalmente das antigas estruturas de suporte jurídico-
legal que lhe deram origem, o que revela uma pertença de cerca de 50 anos
que não pode deixar de ter as suas marcas.
Sob o ponto de vista do nível académico da formação, os Cursos Superiores de
Serviço Social tiveram Planos Curriculares de quatro anos até 1985/86. Apesar
do seu nível de formação superior, do seu tempo de duração curricular e, de
190
terem os mesmos requisitos de acesso que o ensino universitário, até 1989
apenas conferiam um diploma profissional.
A partir de 1985, os Institutos de Lisboa e Porto, encetam uma estratégia no
terreno académico – científico, no sentido da obtenção do grau de Licenciatura,
propondo-se prolongar para cinco anos o plano curricular e qualificar
cientificamente o corpo docente de Serviço Social, através de Pós-Graduação
– Mestrados e Doutoramentos (na ausência de docentes com estas
habilitações e de formações pós-graduadas em Serviço Social nas
Universidades Portuguesas foi realizado um protocolo de intercâmbio com a
Pontifícia Universidade Católica de S. Paulo, no Brasil).
Os Institutos de Lisboa e Porto propõem, dada a não existência de peritos de
Serviço Social na “Comissão de Especialistas” submeter os Planos de Estudos
Curriculares a diversas Universidades Internacionais - Michigan State
University, University College Dublin, University Minnesota, Fachochschule
Munchen, Pontifícia Universiadde Católica de S. Paulo, com o objectivo de que
estas se pudessem pronunciar quanto ao nível académico e científico da
formação. Todos os pareceres foram inequívocos quanto à qualificação
científica dos Planos de Estudos. Contudo, as dificuldades deste processo
foram muitas, e apesar da avaliação científica dos Planos de Estudos por
Universidades Internacionais e do desenvolvimento de uma estratégia de
natureza política, foi necessário mobilizar o meio académico, o corpo
profissional e sensibilizar a opinião pública para atingir a meta de obter a
atribuição do grau de licenciatura.
Esta alteração teve repercussões na estrutura e reconhecimento da formação,
mas também na estrutura orgânica das instituições que separaram os três
poderes académicos (administração, pedagógico e científico) com a respectiva
divisão de competências; no reconhecimento da autonomia científica da
Instituição académica e na exigência de qualificação dos docentes com os
graus académicos universitários, o que veio a constituir recentemente uma
“massa crítica”, qualificadora da formação e das instituições académicas.
O Curso de Licenciatura em Serviço Social, iniciado em 1985/86, tem até
2001/02 uma duração de cinco anos. A partir desta data e, seguindo as
orientações de Bolonha impostas pelo Ministério da Educação, a Licenciatura
191
voltou a ficar com quatro anos, a partir do ano lectivo 2002/03. Mas a
concepção do perfil do Assistente Social a formar pelos Institutos Superiores de
Serviço Social matem-se sem alterações e define este profissional como
aquele que intervém no sentido de facilitar/ produzir mudanças sociais,
actuando especialmente nas inter-relações Homem – Sociedade, em ordem a
que possam ser alterados / melhorados determinados problemas,
necessidades e situações sociais.
Da análise do plano de estudos de cinco anos do ISSSL, pode constatar-se a
concepção de que a intervenção dos futuros profissionais consiste em
desenvolver capacidades sociais, individuais e colectivas, a nível cognitivo,
relacional e organizativo, sendo reforçada a componente teórica em três níveis:
i) nuclear, incluindo todas as disciplinas da área de Serviço Social; ii)
estruturante, integrando as áreas de Sociologia, Economia e Psicologia; iii)
funcional ou operativo, constituído pelas disciplinas de carácter instrumental,
para a intervenção no âmbito do Serviço Social.
“A formação estrutura-se nos 2 primeiros anos com uma forte componente teórica. Nos 3º e 4º anos, a par de uma componente teórica, introduz-se a componente teórico-prática a partir do treinamento e análise da intervenção profissional, através de estágios curriculares e seminários e, no 5º ano, aprofunda-se a componente teórico – analítica da intervenção” (Negreiros, 1998: 28).
Assim, a Investigação em Serviço Social (com relevo em termos curriculares)
tem pouco mais de uma década e só então é introduzido o ensino da
Administração, da Supervisão e da Filosofia e Deontologia em Serviço Social.
Este plano de estudos revela também uma abertura formativa ao espaço da
Comunidade Europeia e à Interacção Cultural nas Sociedades Complexas.
A componente experiencial e a «imersão» em vários contextos sociais e
organizacionais através de estágios durante quase toda a formação dos
assistentes sociais têm constituído um eixo marcante da formação, não só nos
respectivos processos de aprendizagem, como também na socialização com
profissionais seniores e na capacidade de estabelecer contactos e redes
relacionais, que tinham um importante papel na colocação profissional dos
profissionais recém-formados. Sobre esta componente diz Augusta Negreiros,
192
“Da componente teórico-prática da formação fazem parte os estágios curriculares, enquanto instâncias privilegiadas para a intervenção profissional com a qual se visa promover o desenvolvimento de estratégias de acção, apropriação e utilização integrada dos conteúdos teórico-operativos das diferentes áreas” (Negreiros, 1998: 29).
Esta foi claramente uma vantagem distintiva da formação se entendermos
como refere Josso que:
“…o que faz a experiência formadora é uma aprendizagem que articula, hierarquicamente, saber-fazer e conhecimentos, funcionalidade e significação, técnicas e valores num espaço-tempo que oferece a cada um a oportunidade de uma presença para si e para a situação pela mobilização de uma pluralidade de registos” (Josso, 2002: 28).
Esta «pluralidade de registos» tem sido outra das características encontradas
quer na análise bibliográfica e documental realizada, quer ainda no testemunho
dos assistentes sociais colaborantes desta investigação.
Se atendermos ao Guia oficial de Caracterização Profissional
(DGERT/MSST/GOV, 2004-05) podemos ler que:
“Aqueles que estiverem interessados em enveredar por esta área profissional podem optar pela licenciatura em Serviço Social, que forma os assistentes sociais, (...). A formação base assenta num conjunto de disciplinas da área científica de Serviço Social: Teoria do Serviço Social, Métodos e Técnicas de Investigação Social, Política Social, Serviço Social de Grupos ou Serviço Social de Comunidades ou, ainda, Desenvolvimento Comunitário. A sua formação inclui também disciplinas das ciências sociais e humanas como a sociologia, a psicologia, a antropologia, a economia ou o direito.”
Pode verificar-se na divulgação oficial de alguns cursos (por exemplo, o da
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra,
criado em 2005) a expressão dos seguintes princípios orientadores:
“…interdisciplinaridade científica; autonomia do estudante na construção do seu plano formativo; articulação coerente entre unidades curriculares e entre semestres (progressivamente mais práticos e orientados para conhecimentos específicos do domínio do Serviço Social); incremento de estratégias e metodologias orientadas para a aprendizagem prática e reflexão crítica; avaliação ‘on going’ ao plano de estudos e aos processos formativos.”
Quanto às competências chave a adquirir neste 1º ciclo de formação em
Serviço Social, aparecem identificadas como transversais (cognitivo-culturais,
prático-instrumentais e interpessoais) e específicas (planeamento e avaliação,
acompanhamento e orientação, mediação social, comunicacionais e
gestionárias).
193
No quadro da actual recomposição dos sistemas educativos, onde esta
formação é ministrada em mais de vinte instituições de ensino superior e
politécnico, torna-se particularmente difícil fazer a análise da situação
contemporânea da formação inicial dos assistentes sociais, pelo que recorri a
algumas fontes indirectas de estudos realizados por outros colegas.
É interessante verificar, fazendo recurso ao trabalho da tese de doutoramento
de Inês Amaro (2009), que o «modelo formativo» que emergiu da evidência
empírica trabalhada por esta colega foi o de “formações demasiado tecnicistas
e pouco reflexivas, tanto teórica como eticamente” (2009:375).
Na sua parte conclusiva, a autora identifica nove desafios que se colocam aos
profissionais, respectivamente: «Desafio da reflexividade e reprocessamento»,
«Desafio da singularidade versus atomismo social», «Desafio da resposta às
necessidades de segurança», «Desafio da prevenção e da proactividade»,
«Desafio do empreendedorismo», «Desafio da humanização», «Desafio da
instabilidade dos actores e da intervenção territorial», «Desafio do modelo
formativo». Em relação a este último desafio «do modelo formativo», são
salientadas algumas preocupações, nomeadamente com o aumento
exponencial da oferta formativa, com a diversidade de perfis, com o não
controle sobre a qualidade da formação e com a perda de características
identitárias – relacionada com a reestruturação dos currículos formativos ao
abrigo do processo de Bolonha, e com a consequente diminuição de tempo de
formação e maior fragilidade da formação inicial.
No entanto, e apesar da existência de um risco de que o Serviço Social se
torne numa ‘engenharia social’ e/ou deixe que se acentue um processo de
desprofissionalização, o que pretendo salientar sobre o processo de
institucionalização da formação (não obstante as suas tensões, paradoxos e
fragilidades) são aspectos como:
a importância da qualidade da formação para o reconhecimento da
atribuição do grau de licenciatura (anos 70/80/90) versus a actual
pulverização de formações e entidades formadoras sem «guide lines» de
garantia e controlo de qualidade formativa – conforme tem sido discutido na
Associação de Profissionais de Serviço Social e em artigos de vários
autores contemporâneos – ver Revista «Locus Soci@l» (2009)
194
a importância da componente teórico-prática e humanista nos processos de
ensino/aprendizagem dos assistentes sociais com um grande peso na
construção identitária versus uma tendência de academização com
incidência prioritária nas medidas de política social e respectivos contextos
de intervenção, que faz apelo a uma maior funcionalização;
as formas como a recente qualificação académica da profissão tiveram
impacto nos profissionais e no mercado de trabalho, interferindo na
legitimidade e no estatuto da profissão, na definição de competências para
o exercício profissional, na estruturação das «carreiras» profissionais e na
grelha salarial;
a constituição em curso de um campo científico próprio que produz
conhecimento sobre a profissão, os profissionais, os campos de intervenção
e o «mundo» na recente (e crescente) produção pós-graduada em/de
Serviço Social.
Neste âmbito, a formação contínua, recentemente academizada, tem assumido
particular relevância aproveitando da dinâmica criada primeiro, em torno dos
Institutos de Serviço Social e actualmente, em torno de várias faculdades e
institutos politécnicos espalhados pelo país, onde é leccionado Serviço Social.
Coloco a hipótese de que esta nova fase de ampliação, diversificação e
miscigenação dos contextos da formação inicial por várias Faculdades e
Institutos Politécnicos, apesar de colocar problemas importantes à construção
identitária, também pode constituir oportunidades – como, por exemplo, a de
colocar esta área de formação em contextos de interacção formativa com
muitas outras áreas, o que pode contribuir para um pensamento crítico e
renovado sobre a profissionalidade, sobre a qualidade da formação inicial e
contínua e sobre os desempenhos profissionais.
Volto novamente a Augusta Negreiros para lembrar que o Serviço Social,
enquanto categoria social que é, precisa de “tornar-se também ‘sujeito’ da sua
própria trajectória (…) através das articulações que estabelece, da mobilização
e luta que desenvolve nesse campo, e da construção e análise que elabora
através da explicitação dos saberes e das práticas” (Negreiros, 1998: 32).
Esta atenção a si próprio como «sujeito da sua trajectória» pode permitir aos
assistentes sociais ir construindo objectos de conhecimento cada vez mais
complexos e continuar a produzir o «conhecimento pertinente» onde a unidade
195
e a multiplicidade, o individual e o social, sejam possíveis de ser abordados nas
suas multidimensionalidades e interacções. E a pertinência deste
conhecimento explicitado tem razões que ultrapassam a sua profissionalidade
e que se prendem com o compromisso ético-político que estabelece com as
pessoas com quem trabalha e com as instituições em que intervém.
- AS COMPETÊNCIAS
Uma possibilidade complementar de entendimento sobre a formação diz
respeito à implicação do modelo da competência face à profissão. Este domínio
do conhecimento, tem um vasto conjunto de autores na área das Ciências da
Educação, que constituiu parte do meu referencial e que tentei mobilizar para o
Serviço Social, de forma crítica e enquanto possibilidade de fortificar a relação
entre os saberes de diferentes proveniências, bem como o seu processo de
mobilização nas situações concretas.
Defende-se neste trabalho que a abordagem das competências “pode
contribuir para melhores posicionamentos na sociedade e na vida, para uma
maior participação nos processos de decisão e para a decisão fundamentada
nos processos de mudança” (Pires, 2004: 437), mas sem com isso pretender
defender uma das tendências em voga que preconiza a redução do papel da
educação/formação à aquisição de competências orientadas para o mundo do
trabalho.
As competências remetem-nos para um conjunto dinâmico de saberes (saber
cognitivo, saber operacional e saber relacional) e capacidades (cognitivas,
sociais e físicas), mobilizáveis no exercício concreto da actividade profissional.
Esta perspectiva do conceito de competência integra aspectos cognitivos,
relacionais, interpretativos, intencionais e é uma visão contextualizada e
processual, que só pode ser compreendida a partir da relação estabelecida
com o meio envolvente. Numa abordagem holística, o conceito de competência
apesar de polissémico, ”integra o ponto de vista pessoal, a perspectiva pessoal
do papel profissional que desempenha, da sua capacidade de o desenvolver, e
os conhecimentos nos quais se alicerçam a sua identidade profissional e o
desempenho” (Pires, 2004: 435).
196
Para que se tenha competência (entendida como um processo e não como um
estado) é necessário que se disponha de um repertório de recursos, sendo
necessário que estas capacidades estejam em acção e em transformação.
Nesta perspectiva, a profissão é (conceptualmente e numa dada realidade),
associada à especialização para um trabalho num contexto durável. Mas esta
«especialização» quando se trata de trabalho social é algo que faz apelo à
natureza interactiva e composta dos saberes, das competências e do
conhecimento que vai sendo construído ao longo da vida.
Malcolm Payne distingue com aparente simplicidade que “o conhecimento é
sobre compreender uma situação e as competências, são sobre fazer algo com
ela” (Payne, 2006:70) e dá contributos importantes não só para problematizar
os conceitos, como para identificar algumas tipologias. A título ilustrativo
referem-se cinco potenciais fontes de conhecimento no Serviço Social que este
autor identifica: 1) conhecimento organizacional; 2) conhecimento prático; 3)
conhecimento da(s) politica(s) comunitária(s); 4) conhecimento de pesquisa; 5)
conhecimento de utilizador e de percurso, ganho com a experiência de utilizar
serviços e reflectir sobre eles.
Seja qual for o ângulo privilegiado, as «formas» de entender as competências
podem assumir vertentes complementares que compõem o perfil profissional
do assistente social, com todas as variáveis individuais que se possam
conjugar. Sobre as competências de Serviço Social, Payne (2006) descreve
três formas pelas quais podem ser vistas:
como actividades realizadas pelos profissionais, referindo-se tanto às
‘ferramentas para decidir o que fazer’ como ‘às capacidades para entender
diferentes aspectos de uma situação e reflectir criticamente’, passando pela
‘gestão da ajuda, trabalho comunitário, aconselhamento, competências
interpessoais e de negociação’;
como capacidades pessoais dos assistentes sociais, incluindo aspectos
como as competências nas relações humanas, na análise e na realização
do planeado, na comunicação, na liderança e na coordenação, na resolução
de problemas, no trabalho com outros e no desenvolvimento pessoal e
profissional;
197
como competências envolvidas nas tarefas do trabalho social, quer as mais
especializadas (levadas a cabo na protecção de menores ou na saúde
mental) quer as mais genéricas, como o controlo social, o aconselhamento
ou a protecção de pessoas em situação de fragilidade.
Não obstante a diversidade de autores que na literatura de Serviço Social
(sobretudo anglo-saxónica e norte-americana) abordam as competências
necessárias ao exercício profissional, também existe uma perspectiva crítica
que argumenta que este modelo se focaliza mais em áreas de especialidade
apropriadas sobretudo para os contextos de trabalho burocrático (e menos em
desenvolver vias criativas para os futuros requisitos de trabalho); que encoraja
a fragmentação em vez da integração; que pensa em formas convergentes de
exercer focadas nos resultados (em vez de promover a criatividade nos
processos); que se foca nos aspectos mensuráveis do desempenho; que ao
focar-se em técnicas e instrumentos dá menos importância aos valores, à
avaliação crítica e ao pensamento complexo; e que coloca a ênfase em adquirir
técnicas específicas, em vez de desenvolver capacidades para uma reflexão
crítica. Esta perspectiva crítica inscreve-se também na prudência com que
alguns autores de outras áreas científicas abordam os modelos das
competências.
Wittorsky (1998) por exemplo, refere que sabendo que os modelos de
organização do trabalho condicionam o tipo de competências desenvolvidas
para determinado trabalho, as competências produzidas e necessárias (aos
modelos prescritivos) são geralmente utilizadas em situações rotineiras e
tendem a tornar-se específicas dos contextos onde são mobilizadas. Deste
modo, dimensões fundamentais como a autonomia, a reflexividade, o
pensamento crítico e a abertura, são excluídas dos modelos de competências,
adjectivados de ‘instrumentais’ e ‘pragmáticos’.
Por outro lado, estando o trabalho em mudança tanto nas formas de que se
reveste (tipo de contrato, sistema hierárquico, espaço-tempo), como nos seus
conteúdos (complexificação dos sistemas, actividades de controle, gestão da
incerteza) qualquer que seja o emprego ou campo de actividade, a
educação/formação não se pode continuar a alhear da mutabilidade dos
contextos.
198
No paradigma da pós-modernidade é atribuído grande peso à
responsabilização individual, remetendo a educação/formação para uma
missão de preparar os futuros profissionais para se posicionarem, face a
lógicas de emprego, mutantes, incertas e competitivas e relaciona-se as
condições de vida das pessoas com as ‘competências’ que foram, ou não,
capazes de desenvolver para se tornarem social e economicamente ‘incluídas’.
A propósito lembra-se a noção de «falsa racionalidade» que Morin (2000)
identifica como um dos problemas mais graves do século XX pois não só se
revelou incapaz de travar os problemas mais graves da humanidade, como
restringiu a compreensão, a reflexão e a visão de longo prazo. Assiste-se, por
outro lado, às transformações de modos de vida e de produção e a mudanças
profundas dos quotidianos que re-colocam a necessidade de responder (ou
antecipar) às exigências dos processos de transformação social.
Autores tão diferentes como Pagès (1967), Sainsaulieu (1988, 1997) ou Dubar
(1997a) salientam a importância das aprendizagens culturais produzidas no
seio das organizações, no contexto de trabalho e no interior dos grupos a ele
ligados, para a formação de identidades no trabalho.
O contexto de trabalho constitui assim um importante espaço-tempo de
produção e de recomposição de saberes que, no entanto, tende a não ser
valorizado como recurso pelas próprias organizações.
Já Lévi-Strauss (1962) se referia a saberes que se transfiguram em actuações,
mais ou menos originais, contingentes, que resultam de um trabalho «de
bricolage» e exigem uma centralidade que se exprime na sua capacidade de
estabelecer relações entre saberes dispersos. E Bernard Charlot (2002)
entende que os saberes pertinentes para o trabalho resultam de aproximações
epistémicas, identitárias e sociais onde se evidencia o significado construído e
o sentido atribuído, emergentes da aproximação ao mundo, aos outros e a si
próprios.
As competências ficam, então, neste território do «saber como se faz» sendo
que a questão mais complexa se coloca neste «saber» que não é linear nem
listavel, e que mais do que transmitido é aprendido, experimentado e reflectido
e se operacionaliza através da mobilização de saberes e experiências de
muitos tipos para responder a situações complexas e contextualizadas. Na
expressão de Dodier (1995), os contextos de trabalho são «arenas de
199
habilidades» nas quais os actores se colocam à prova e se revelam, remetendo
para um lugar importante a produção e o reconhecimento de saberes. Contudo,
também a competência colectiva, noção esta que “reenvia à possibilidade de
construir modos operatórios e modos de acção colectiva inéditos que tendem a
rearticular as posições dos diferentes actores que fazem parte dos grupos”
(Courtois at al, 1996: 177) é actualmente valorizada sobretudo através das
sinergias criadas pelo trabalho em grupo e/ou em equipa.
Distinguindo os saberes individuais (como aqueles que são requeridos para o
lugar, reconhecidos por diploma, que permitem determinada codificação social
e que representam saberes potenciais para um trabalho prescrito) dos saberes
colectivos (como aqueles que são organizados e coordenados para agir em
função de um objectivo, que corresponde muitas vezes à resolução de
situações novas num dado tempo e lugar) esta ‘competência colectiva’ aparece
intimamente ligada a uma ‘identidade colectiva’ que permite que os grupos se
caracterizem por valores e afectos comuns, produzidos na acção colectiva –
entendida esta ‘acção-colectiva’ como a concretização “de uma lógica
interactiva de construção de saberes e de mobilização desses saberes nas
práticas” (Courtois at al, 1996: 180), onde se tende a integrar o espaço da
formação e do trabalho. A dimensão comunicativa e a valorização que os
actores atribuem à partilha de saberes e de dúvidas, reforçam esta dinâmica
entre trabalho e formação.
- A ARTICULAÇÃO E A PRODUÇÃO DE SABERES
Adoptei como um dos eixos central desta pesquisa, as questões relativas à
produção e reconhecimento de saberes de diferentes proveniências
(nomeadamente os teóricos e práticos) no exercício profissional dos
Assistentes Sociais. E, se na generalidade é bastante tensional a teia de
concepções e relações entre formação inicial, trabalho, formação ao longo da
vida, aprendizagens e produção de conhecimento, no caso particular do
Serviço Social essa teia parece ainda mais tensa, no suposto de a produção de
conhecimento ter sido uma constante problemática; muito embora tenha sido
200
esse mesmo conhecimento específico que contribuiu para a sua distinção e lhe
permitiu ganhar poder sobre o território social da sua ocupação.
Ao reflectir sobre essas relações, tensas e eivadas de contradições e tentativas
de domínio, entre saberes provenientes das teorias e saberes situados na
prática profissional confrontei-me com a necessidade de distinguir «prática» de
«acção». Entendendo a acção como o conjunto de comportamentos
observáveis que emergem da prática (Jarvis, 1987) entende-se, por sua vez, a
prática como um sistema complexo de interacções, ocorridas num dado meio,
que por sua vez enquadra a acção e a contextualiza com um conjunto de
símbolos, através dos quais lhe confere uma significação.
A prática implica a ocorrência de uma experiência e apela à produção de novos
saberes, na medida em que é um campo de interacções, de conflitos, de juízos
de valor, de jogos de poder e de transformações pessoais e colectivas. Como
refere Schon (1996) existe um saber oculto no agir profissional que só a prática
permite formalizar.
A reflexão na acção e sobre a acção, a que se refere Schon (1996) apela a
uma relação dialéctica entre saberes teóricos e saberes adquiridos na acção.
Esta tensão entre uma «lógica de continuidade» e uma «lógica de ruptura» é
algo que muitos assistentes sociais conhecem bem, com tentativas mais ou
menos bem resolvidas, de as articular. A este respeito, Canário refere que:
“A ideia que hoje tende a ser prevalecente, no campo das teorias da formação, nomeadamente da formação de adultos, conferindo uma importância decisiva aos saberes adquiridos por via experiencial, e ao seu papel de ‘âncora’ na produção de saberes novos, procura articular uma lógica de continuidade (sem referência à experiência anterior não há aprendizagem), com uma lógica de ruptura (a experiência só é formadora se passar pelo crivo da reflexão crítica) ” (1999:111).
Malcolm Payne no seu pragmatismo anglo-saxónico refere que o Serviço
Social descreve-se na sua narrativa interna, como um trabalho interpessoal,
uma prática. E ‘prática’ para este autor quer dizer, pelo menos, duas coisas: é
uma convenção, um padrão ou uma aproximação às coisas que o Serviço
Social faz e simultaneamente é uma ‘prática’, é algo provisório, é como a
pesquisa de um músico ou um improviso de um músico de jazz.
Esta ‘fluidez’ do Serviço Social articulada entre a continuidade e a ruptura,
entre a resposta às convenções e o improviso, é uma especificidade mas
201
simultaneamente produz incómodo nos profissionais na medida em que, por
um lado, têm maior reconhecimento nas suas práticas mais tradicionais e, por
outro, têm maior flexibilidade e incerteza na intervenção interpessoal e
simbólica, onde a utilização de si, do (s) outro (s) e do contexto são
ferramentas a ter em conta num trabalho com um grande peso simbólico.
Contudo, Payne clarifica que:
“O que os Assistentes Sociais fazem e, como eles interagem com outros, é flexível e variado, porque reflecte a variabilidade social e humana. Mas os seus instrumentos da prática – conhecimento, competências, objectivos de compreensão e valores – são passíveis de clarificação, coerência e consistência “ (Payne, 2006: 56).
Este posicionamento de «clarificação, coerência e consistência» dos
instrumentos da prática do Serviço Social pode colidir como uma tendência
organizacional contemporânea em que vários actores prefeririam aumentar a
previsibilidade (nomeadamente os gestores), numa meta neo-taylorista de
previsão e descrição de procedimentos a seguir pelos trabalhadores sociais.
Este modo de intervenção social prescrita (designada em muitas organizações
como «processos de qualidade») prossegue evidências de resultados,
sobretudo quantitativos e tem adeptos nos serviços comprometidos com
determinados modelos de gestão organizacional. Mas podem encontrar-se
adeptos tanto no meio académico como nos profissionais interventores: os
primeiros porque, por vezes, formulam as concepções teóricas em voga para
«aplicação» no terreno e retiram benefícios, entre outros, da facilidade de
acesso a dados de intervenção e caracterização de populações e fenómenos
sociais e, os segundos, porque se sentem mais seguros com a orientação de
‘guiões de práticas’ e aumentam o sentimento de controlo sobre os processos
de intervenção, diminuindo a incerteza e aumentado a noção de rigor.
Por outro lado e, com alguma frequência, a prática quotidiana não requer dos
próprios assistentes sociais que pensem e/ou definam os seus saberes
próprios, o que tem contribuído para tomar por garantido um conhecimento
‘não-dito’. Alguns profissionais também agem como se a prática se reduzisse
aos desempenhos observáveis e como se o conhecimento adquirido em
formação fosse «aplicável» ou «transferido» para essa mesma prática.
202
Os saberes práticos não podem ser entendidos como um simples meio de
adaptação dos conhecimentos às realidades e aos contextos, mas sim como
um meio de reaprender de outra forma e de assimilar os conhecimentos
anteriores através da sua mobilização na acção (Barbier, 1996). Este autor
refere ainda a coexistência de dois saberes teóricos: um saber normativo e um
saber epistemológico. E se as relações entre os saberes da acção, aqueles
que os interventores fazem nascer no dia-a-dia, e os saberes pedagógicos e
normativos são relativamente fortes, pelo contrário as relações com o saber
científico são muito mais ténues, ou inexistentes.
Por sua vez, o saber pedagógico ao visar a transmissão e ao fazer abstracção
de numerosos aspectos da prática, em particular do que ela tem de táctica,
constitui como que uma ilustração do saber prático e, deste ponto de vista, é
um saber teórico. O saber normativo, nas suas formas mais elaboradas,
propõe-se como um quadro teórico (no sentido doutrinal) para a prática, pelo
que ambiciona canalizar e antecipar os desenvolvimentos futuros; mas está
integrado nos numerosos elementos do saber prático com o qual, para ser
eficaz, tem de se compatibilizar. No limite, pode considerar-se que os saberes
práticos, os saberes pedagógicos e os saberes normativos formam um só e
mesmo saber, nutrido pelas experiências dos interventores. Mas este saber
composto, altamente contingente e em parte táctico, tem finalidades
operacionais e assemelha-se pouco ao saber científico, sobretudo na medida
em que este pretende ser um saber explicativo sobre o mundo ‘contabilizável’.
Neste campo, como em outros, existem diferentes lógicas em presença e
conflitualidades e tensões entre as diferentes lógicas. E se, na maioria das
vezes, estas tensões e contradições são apresentadas de uma forma muito
dicotómica, o que parece acontecer no quotidiano contextualizado é a
coexistência dessas lógicas, e o seu movimento dinâmico que ora faz
sobressair uma lógica em relação a outras, ora muda a distância relativa e a
dominância de algumas das lógicas em presença em função do contexto, do
território, das especificidades, da época ou das políticas que são privilegiadas –
como, por exemplo, as tensões (já clássicas) entre a lógica dos saberes
académicos, científicos e a lógica dos saberes profissionais, experienciais, ou a
lógica da racionalidade instrumental e a lógica emancipatória. As primeiras,
203
confrontam e interpelam-se mutuamente na dinâmica entre uma orientação
para a especialização e a fragmentação do saber e uma óptica de saberes
integrados e contextualizados e, as segundas, oscilam entre uma lógica
utilitarista que privilegia o pragmatismo e o instituído e uma lógica
antropocêntrica, centrada na pessoa em contexto e na descoberta e
desenvolvimento das suas potencialidades.
Isto reforça o grande número de variáveis em presença e a falta de consensos
sobre estas matérias dentro do próprio corpo profissional. Embora seja
importante problematizar a ideia de que na divisão social do trabalho (com
implicações na sua legitimidade e no mandato social que têm tido) estes
profissionais não foram formados para produzir conhecimento (entendendo
como tal um saber académico, disciplinar e científico), se atendermos a uma
reflexão sobre a sua cultura profissional pode verificar-se que a generalidade
dos profissionais realizou, ou participou, desde os finais do século XIX, em
estudos sobre as condições de vida de populações pobres, fazendo o
levantamento de necessidades locais e a organização de ficheiros sociais,
tendo em vista um processo de ajuda organizado (Mouro: 2009).
Desde as autoras clássicas do Serviço Social que existe um forte compromisso
com a pesquisa, se bem que numa vincada especificidade de encarar a teoria
como uma «orientação para a acção» (Vieira, 1981:90). Apesar das tensões
presentes em cada época e momento histórico, a produção teórica e reflexiva
dos profissionais de Serviço Social constituiu uma referência para a promoção
da sua imagem académica e desempenhou um papel na «capitalização» das
suas experiências profissionais. Contudo, a partilha de conhecimentos com as
Ciências Sociais e Humanas, a orientação analítica da ciência na sociedade
industrial e a dificuldade em constituir um saber declarativo que possa ser
exposto por escrito constituíram alguns dos constrangimentos que estiveram
presentes na produção desse conhecimento ao longo do tempo.
Ainda mais importante será inscrever diferentes perfis, como expressões das
tensões em presença que têm prevalecido desde a emergência desta profissão
(que está associada aos processos de industrialização, urbanização e
individualização dos meados do século XIX, bem como às subsequentes
204
transformações económicas, sociais, políticas e ideológicas) até à
transformação do seu objecto, reconhecendo e integrando as suas
ambiguidades iniciais e históricas - ambiguidades como as que a situam entre o
indivíduo e as estruturas sociais, entre a ciência e a técnica, entre o controlo e
a autonomia, entre a conformidade e a inovação … Assim, na actuação dos
assistentes sociais os saberes científicos, com as suas lógicas de divisão e de
especialização chocam-se e confrontam-se com os saberes, mais ou menos
ocultos e não nomeados, que circulam na acção quotidiana, apelando à
mobilização de categorias que se constituem numa lógica de recomposição e
complexidade. Esta acção quotidiana
“ (…) apela a saberes emergentes, e não meramente antecedentes, que lhe assegurem a viabilidade e o sentido, a pertinência e a relevância. (…) Trata-se de saberes indisciplinares e criativos, interpelantes e interpretativos gerados na (inter) acção e na experiência que ela proporciona” (Costa e Silva, 2007: 223).
Na actual complexidade, e não obstante alguns constrangimentos, existem
condições para aumentar a produção, a interacção e a divulgação dos saberes
teóricos - práticos do/no exercício profissional. Eventualmente, o maior desafio
será o de não enformar os saberes provenientes do exercício profissional,
deixando que expressem formas integradas de aprendizagem, formação e
experiencialidade e possam encontrar modos alternativos de se explicitar e de
constituir teoria, sem a dissociar do sentido e do local da sua produção e da
sua apropriação.
Formação e trabalho têm sido frequentemente pensados como valor de troca e
como objectos que circulam no mercado de consumo, estando por isso sujeitos
à respectiva flutuação de valor e ao não reconhecimento da actividade e da
autoria dos sujeitos implicados na produção de sentido. No entanto, a
perspectiva aqui utilizada constitui-se como alternativa ao modo tradicional
como formação e trabalho têm sido pensados, no entendimento de que têm
sido ignorados como realidade (s) habitadas por sujeitos que produzem sentido
(s) - ou seja, como objectos antecipáveis aos espaços-tempo da sua realização
(Charlot, 2004).
205
3.2. OS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA
Pretendo dar conta de uma concepção de identidade plural, múltipla e
diversificada que seja útil para os processos de configuração e reconfiguração
identitária dos assistentes sociais.
Se nas narrativas quotidianas dos assistentes sociais e, de muitos outros
profissionais comprometidos com a prática, o conceito de identidade(s) é
relativamente periférico, foi curiosamente, ao trabalhar com populações pobres
que vivem em territórios social e economicamente estigmatizados que pude
constatar e aprender o quanto este conceito é importante, apesar de não ser,
na maioria das vezes, nomeado como tal. Para quem está comprometida e
implicada, como eu estou, no quotidiano, muitas vezes apresenta-se difícil
mobilizar as concepções disponíveis e reflectir sobre algo que, arriscaria a
dizer, não faz parte da agenda destes profissionais.
Esta tomada de consciência não me isentou de dificuldades de orientação na
complexidade conceptual da temática. Primeiro, dei conta de uma grande
heterogeneidade, quer do ponto de vista disciplinar, quer metodológico e
teórico (não esquecendo a diversidade terminológica); segundo, tive
necessidade de me situar num conceito de identidade em que me revisse, pelo
que optei por entende-la como um processo dinâmico, simultaneamente
biográfico e relacional (Dubar, 1997a) que recolhe diferentes usos sociais, tanto
psicológicos como sociológicos.
Esta concepção de identidade (s) distancia-se de oposições simplistas e
normalizadoras que demarcaram identidades fixas no passado e que serviram
para definir qual seria a identidade «válida», «normal», a partir da qual as
outras seriam «diferentes». Mas por se tratar de um conceito complexo e
multifacetado, o debate sobre ele divide-se entre várias perspectivas das quais
destaco:
As correntes filosóficas «essencialista» e «nominalista», em que a primeira
defende uma singularidade essencial do ser humano, um ‘a priori’ herdado
à nascença e uma pertença que não dependem do tempo e a segunda, que
defende a existência de modos de identificação, variáveis e dependentes do
contexto, ao longo da história colectiva e da vida pessoal. Esta última
206
corrente distingue dois tipos de formas de identificação: as «identificações
para o outro» e as «identificações para si», podendo coincidir ou divergir
nas diferentes modalidades de identificação.
A vertente psicodinâmica (com origem na teoria freudiana da identificação,
processo pelo qual a criança internaliza aspectos do mundo externo e
produz uma estrutura psíquica, expressa numa identidade contínua, embora
conflituosa) e a vertente sociológica (mais recente); sendo que a primeira
enfatiza a constituição de uma estrutura psíquica mais ou menos estável,
mantendo a sua personalidade como um todo coerente (recorda-se a
propósito termos de utilização corrente como «crise de identidade» de
Erikson (1968) para descrever fenómenos de desajustamento social na
adolescência, ou «auto-imagem» e «auto-estima») e a segunda, trata as
identidades como instâncias constituídas em relação dialéctica com a
sociedade, sendo formada por processos e relações sociais, que as
mantém, remodelam ou transformam. Neste âmbito o ‘self’, como uma
estrutura social, só é concebido mediante as interacções a partir da
linguagem e da comunicação. Salienta-se neste campo o contributo de
George Herbert Mead (1963) com o «interaccionismo simbólico», pelo qual
a identidade seria sujeita às transformações ocorridas ao longo da
interacção do indivíduo com os grupos sociais. Na vertente Sociológica, a
individuação dá-se através da socialização, ou seja, são os outros que
tornam possível a singularidade (Veronese e Esteves, 2009:219).
As formas identitárias «comunitárias» e «societárias». As primeiras, mais
antigas e próximas do ideal tipo weberiano, salientam a importância do
grupo de pertença como fontes fundamentais de identidade, quer se trate
de «culturas», de «nações», de «etnias» ou de «corporações». As
segundas, supõem a existência de “colectivos múltiplos, variáveis,
efémeros, aos quais os indivíduos aderem por períodos limitados e que lhes
fornecem fontes de identificação que eles gerem de maneira diversa e
provisória” (Dubar, 2006:10), permitindo ter múltiplas pertenças e com
possibilidade de mudarem ao longo da vida.
As diferenças e tensões entre as diferentes perspectivas aconselham um
posicionamento pelo que, privilegio para este trabalho um ponto de vista mais
sociológico que defende que toda a identidade é construída e que a sua co-
207
construção ocorre em determinados contextos. A nível mais individual e, como
atrás já referi, escolhi a concepção de identidade (s) filiada na perspectiva
interaccionista onde se perspectiva a acção humana como algo que se constrói
na comunicação frente a frente, com os outros, e não estritamente comandada
pelas normas e valores sociais impostos, reconhecendo a participação activa
dos sujeitos na construção da sua identidade.
Recordo que o interaccionismo simbólico teve origem nos E.U.A., surgindo
ligado aos princípios filosóficos do pragmatismo defendidos, entre outros, por
autores como William James, George Mead e John Dewey que consideravam
que a pessoa humana é o produto das interacções sociais, nomeadamente das
que se produzem a partir da linguagem e do jogo.
Esta opção assume a desconstrução de uma noção de identidade una e
integral e que tenta ultrapassar a dicotomia entre identidade pessoal e
identidades sociais. Nesta perspectiva, as identidades serão assim,
construções relativamente estáveis num processo contínuo de actividade
social, baseadas no reconhecimento por outros actores sociais e na
diferenciação, assumindo a interacção um papel crucial neste processo e onde
a sua descontextualização e a recontextualização é um processo permanente
derivado das relações sociais conflituais entre os indivíduos e os grupos.
Então, o conceito de Identidade (s) remete-nos simultaneamente para o que é
igual (como por exemplo, a singularidade de uma pessoa, ou fazer parte de
uma família ou comunidade) e para o que é diferente (como as características
de género, etnicidade ou nacionalidade) e é objecto de vários usos, desde a
identidade individual (como na abordagem psicanalítica), a identidade colectiva
e social (de grupos sociais, étnicos, profissionais), passando pela identidade
vivida e atribuída, particularmente abordada nos estudos da Psicossociologia e
da Sociologia Compreensiva (Sainsaulieu, 1988; 1997; Dubar, 1997a; 1998;
2006; Dejours, 1993). Nestas formas múltiplas e compostas de identidade (s)
sobressai a possibilidade de procurar entender a construção identitária como o
resultado de «uma identificação contingente», marcada pela dinâmica entre
diferenciação (o que é diferente) e generalização (o que é comum).
Esta dinâmica, segundo Dubar (2006), também está na origem do «paradoxo
da identidade», sendo que este paradoxo só pode ser resolvido se se tiver em
208
conta o elemento comum a estas duas operações, ou seja, a identificação de e,
pelo, outro. Por exemplo, na população imigrante estas dinâmicas podem ter
especial visibilidade no processo de integração, ou não integração, de múltiplas
pertenças às culturas de origem e às culturas de acolhimento.
O uso do termo ‘Identidade’ implica assim, cada vez mais, um trabalho de
elaboração problemática que necessita de tomar em consideração as duas
pontas da corrente que vai dos factos macro-sociais marcados por
transformações maiores nas políticas económicas e nas relações de força entre
classes aos processos micro-sociais através dos quais os indivíduos acedem a
formas, cada vez mais, diversificadas de pertença subjectiva e de definição de
si mesmo e dos outros. Quantos aos primeiros, parece imprescindível
relacionar com a globalização, ou seja, com a intensificação dos fluxos
económicos, políticos, culturais e simbólicos a nível mundial, onde as pessoas
vêm teoricamente alargadas as possibilidades e os recursos disponíveis para a
elaboração de argumentos que justificam as suas identidades e os seus
processos de identificação. Quanto aos segundos, e apesar dos processos de
identificação serem, na perspectiva utilizada, sempre situacionais e históricos,
realça-se a necessidade de um sentimento individual de permanência
identitária elaborado narrativamente.
“As identidades emergem da narrativização do sujeito e das suas vivências sociais, e a natureza necessariamente ficcional deste processo não afecta a eficácia discursiva, material ou política das mesmas. As identidades constroem-se no e pelo discurso, em lugares históricos e institucionais específicos, em formações prático-discursivas específicas e por estratégias enunciativas precisas” (Mendes, 2005:491).
A identidade narrativa requer um trabalho biográfico constante que é
simultaneamente um processo de autoprodução biográfica, uma tentativa de
fixação identitária e uma produção constante de novas realidades, onde as
contradições e dissonâncias da vivência experiencial, requerem um diálogo
consigo, com o mundo e com os outros, não esquecendo a questão do poder e
das desigualdades no processo identitário. Também a relação da identidade
pessoal com o tempo institui nos relatos a construção não linear, o provisório, a
reelaboração e a ficção.
209
A definição de identidades como “negociações de sentido, como jogos de
polissemia, como identificações em curso” (Sousa Santos, 1994:119) e a
possibilidade dessas «negociações de sentido» serem contextualizadas e
multiculturais (sendo a subjectividade entendida como auto-reflexividade e
auto-responsabilidade) mostra-nos a multiplicidade do ser humano, na
concepção de que vemos a unidade e a diversidade em cada um de nós, ao
mesmo tempo que damos conta das diversidades culturais que nos tornam
simultaneamente, iguais e diferentes (Sousa Santos, 1994:207).
Nesta época de globalizações, a ‘identidade’
“…apresenta-se como um conceito crucial, porque funciona como articulador, como ponto de ligação, entre os discursos e as práticas que procuram interpelar-nos, falar-nos ou colocar-nos no nosso lugar enquanto sujeitos sociais de discursos particulares por um lado, e, por outro, entre os processos que produzem a subjectividade e que nos constroem como sujeitos que podem falar e ser falados” (Mendes, 2005:489).
Na concepção de que somos indivíduos interactuantes nas sociedades e
fazemos parte de uma espécie (que nos marca e que nós marcamos) que vive
num pequeno planeta perdido no cosmos, a ideia de «conquistar o mundo»
(como acreditavam Descartes, Bacon ou Marx) está em colisão com a
necessidade de preservar a sustentabilidade de um planeta e com ela, a
sobrevivência dos habitat e das espécies que partilham connosco esta
condição.
Neste âmbito, será necessário reconhecer o papel que teve o reagrupamento
de disciplinas em ciências pluridisciplinares na segunda metade do século XX
tornando a compreensão dos fenómenos tendencialmente mais global e
complexa - como por exemplo, na cosmologia que, efectivamente utiliza a
microfísica e os aceleradores de partículas, mas também uma reflexão
filosófica sobre o mundo, para tentar compreender os primeiros segundos do
universo; bem como a abordagem à complexidade e ao «grande paradoxo»
Unidade – Diversidade, explicitado por E. Morin (2003), numa concepção de
homem que não se reduz ao indivíduo isolado. Aliás, foi particularmente
evidente na recolha do material empírico as tensões entre a definição de si pela
pertença ao grupo estatutário dizendo «eu sou assistente social» ou
inversamente, «as pessoas não sabem que eu sou assistente social» e as
definições de «herança cultural», de «narração pessoal de uma história» e de
210
uma «reflexividade subjectiva» que muitas vezes não encontra espaço para
articulações entre os diferentes níveis de abordagem.
Se os assistentes sociais não têm facilidade em dizer de si e da sua profissão,
importará pôr em evidência as suas «formas identitárias» que
simultaneamente, constituem formas de viver o trabalho e de lhe dar sentido e
de conceber a vida profissional no tempo biográfico, através da sua trajectória
subjectiva. Nesta perspectiva, os processos de economia e cultura
desterritorializadas da globalização (com as respectivas práticas sociais e
culturais que assentam em formas de poder caracterizadas pelas trocas
desiguais de identidades e de culturas) são associados aos processos de
«reterritorialização», na redescoberta de sentido de si, do lugar e da
comunidade.
- FORMAS IDENTITÁRIAS
A tarefa principal e mais difícil para cada pessoa é a de integrar as suas
diferentes subjectividades, face ao risco de fragmentação das perspectivas em
presença, como já tinha sido analisado por Michel Foucault (1994 a). A noção
de «sujeito moral da acção» institui neste autor clássico a margem de variação
e transgressão do comportamento de indivíduos e grupos em relação aos
códigos morais em vigor, concluindo que os indivíduos procuram construir-se
como sujeitos morais por um trabalho de produção de uma ontologia histórica
de si mesmos. O importante seria precisar os acontecimentos que nos levaram
a constituir-nos como sujeitos do que fazemos, pensamos e dizemos através
de discursos, entendidos como acontecimentos históricos (Foucault, 1994 a).
Sensível a esta procura de «integração», fui procurando em vários autores
perspectivas que fossem iluminando diferentes aspectos do «jogo de
espelhos» e tornando possível ir compreendendo as formas de construção
identitária e os processos através dos quais elas se constroem.
Na análise de Manuel Castells são distinguidas três formas e origens de
construções de identidades: a) a «identidade legitimadora», instituída pelas
instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar a sua
dominação sobre os actores sociais e que produz uma «sociedade civil»; b) a
211
«identidade de resistência», criada pelos actores que se encontram em
posições desvalorizadas leva à formação de «comunas» ou «comunidades»; c)
e a «identidade de projecto», quando os actores sociais constroem uma nova
identidade capaz de redefinir a sua posição na sociedade e, ao fazê-lo,
procurar a transformação da estrutura social produz «sujeitos», na concepção
de Touraine, entendidos como «actor social colectivo» (2007: 2-4).
Este posicionamento de «sujeitos» na qualidade de «actores sociais
colectivos» contrasta mas coexiste com muitos outros posicionamentos e
enfoques, dos quais se destacam:
Goffman é um dos autores que explorou as múltiplas pertenças dos
indivíduos, sendo sua preocupação a estrutura dos encontros sociais e a
manutenção de uma definição da situação durante a interacção. Os seus
conceitos de «face» (entendido como o valor social positivo que um
indivíduo reivindica; é uma construção social, derivada das regras do
grupo e da definição da situação, em que o acto de manter «a face»
numa dada actividade implica uma atenção ao lugar que o indivíduo
ocupa na ordem social, aos constrangimentos exteriores e à interacção
imediata), «linha», «tacto», «ritual» compõem um sujeito, definido quer
como uma imagem composta a partir das implicações expressivas dos
acontecimentos em que participa, quer como uma espécie de jogador
num jogo de ritual em que se procura adaptar às contingências da
situação (Goffman, 1993).
A ambiguidade da análise deste autor quanto aos sujeitos e à subjectividade,
diz respeito à incontornável pressão socializadora dos grupos e dos rituais de
interacção quotidiana, como se o indivíduo só pudesse alcançar dignidade e
respeito na medida em que se adaptasse à linha proposta pelos grupos a que
pertence e se aderisse aos seus rituais. A visão do processo identitário como
«sobre-socializado» pode ser relativizada, na medida em que se reconhece
que a subjectividade se constrói socialmente, o que implica variadas
possibilidades, entre as quais a análise crítica, a resistência, o abandono ou a
autonomia, permitindo assim, colocar em perspectiva não determinística as
contingências que as pessoas encontram na interacção face-a-face e o
desenvolvimento político e as políticas actuais dos grupos a que os indivíduos
pertencem. Por outro lado, a distinção tipológica de Goffman permite explicitar
212
o vaivém permanente no processo de construção, reconstrução e
reconfiguração identitária, entre três tipos de identidade - Social, Pessoal e de
Ego.
Na obra de Bruno Latour surge o conceito de movimento entendido
como um alinhamento de traços (1997 a), em que há que atender ao
que está ligado, ao que se constitui em rede e ultrapassar os conceitos
tradicionais de actor e de contexto social. Para a questão das
identidades, o autor propõe a metáfora da «assinatura», afirmando que
cada pessoa tem múltiplas assinaturas, com histórias e inscrições
distintas, que obrigam a escolhas. A identidade (ou o eu) é algo que
circula entre diferentes cenários e figurações, como um fio que liga as
múltiplas camadas que envolvem a pessoa, camadas que foram
antecipadas e formatadas pelos outros.
Da perspectiva de Sousa Santos (1998) destaco a concepção de uma
equação permanente entre «raízes» e «opções» no processo de
construção identitária. Enquanto o pensamento das «raízes» é o
pensamento de tudo o que é profundo, permanente, único e singular,
que dá segurança e consistência, o pensamento das «opções» é de
tudo o que é variável, efémero, substituível, possível e indeterminado a
partir das «raízes». Quanto à temporalidade, as «raízes» são entidades
de grande escala marcadas pelo tempo glacial, enquanto as «opções»
são entidades de pequena escala, marcadas pelo tempo instantâneo.
Segundo o autor, a turbulência actual das escalas e a aceleração do
tempo desestabilizaram a equação entre «raízes» e «opções», sendo
que a multiplicação das «opções», em tempo de globalizações, concorre
em simultâneo, e em aparente contradição, com um tempo de
localismos, territorializações de identidades, de singularidades, de
genealogias e de memórias.
No trabalho de Paul Ricour (1995, 1990) encontra-se uma elaboração
teórica complexa da relação entre identidade e narrativa,
nomeadamente a narrativa ontológica que permite ver como os actores
produzem sentido e agem no quotidiano, como constroem as suas
múltiplas identidades num processo contínuo e, por vezes, contraditório.
Para este autor, a identidade pessoal articula-se num projecto de vida,
213
com grande importância atribuída à dimensão temporal que contempla
uma tensão entre o pólo da estabilidade e a alteridade. Esta identidade
que integra a alteridade, onde o indivíduo só se consegue pensar com o
outro, pode ser definida como o pólo ético do contínuo da identidade
pessoal – o que parece um conceito próximo da teoria do «habitus» de
Bourdieu.
A articulação entre estes diferentes pólos pode ser conseguida, segundo
Ricour, pela identidade narrativa. A narrativa reconfigura o tempo e, partindo de
uma memória construída na continuidade da vida, procura dar-lhe a forma de
uma experiência humana. Para este autor, a memória está subconsciente e é
pré-discursiva, articulada antes da verbalização e do aparecimento da
narrativização. E a identidade narrativa define-se como «o colocar em intriga
uma personagem», o que permite integrar na permanência, no tempo, a
variabilidade, a descontinuidade e a instabilidade – a configuração e
reconfiguração narrativas podem ser apreendidas pela noção de síntese do
heterogéneo, instituindo que a linearidade dos relatos é um facto provisório,
construído e em constante reelaboração que se caracteriza pela diversidade e
permite uma concepção dinâmica de identidade (Ricour, 1990:169).
Neste campo, pareceu particularmente útil mobilizar também as quatro formas
identitárias identificadas por Dubar (cultural, narrativa, reflexiva e estatutária),
lembrando que elas pretendem nomear uma combinação de transacções
relacionais (comunitárias e societárias) e biográficas (para si próprio e para os
outros) que consideram as análises históricas e que se revelaram um referente
adequado para fazer a análise das narrativas dos assistentes sociais que
participaram no trabalho empírico.
“Estas quatro formas de identificação são tipos de designação que cada um gere, combina, planeia na sua vida quotidiana. (…) Estas formas de identidade constituem maneiras de identificar os indivíduos e a sua combinação pode, teoricamente, permitir a caracterização de configurações históricas mais ou menos típicas. Mas elas coexistem na vida social. Cada um pode identificar os outros ou identificar-se a si mesmo, seja através de um nome próprio que remete para uma linhagem, uma etnia ou um «grupo cultural», seja através dum nome de função que depende de categorias oficiais de «grupos estatutários», seja através dum nomes íntimos que traduzem uma reflexividade subjectiva («si próprio»), seja através de nomes designando intrigas que resumem uma história,
214
projectos, um percurso de vida, em suma, uma narração pessoal («o para si»)” (Dubar, 2006:50).
O diagrama que se segue pretende fazer a ilustração gráfica deste campo de
possibilidades combinadas. “…estas quatro apelações constituem tentativas de
nomeação da combinação de transacções relacionais e de transacções
biográficas que tomam em consideração análises históricas” (Dubar, 2006: 48).
Figura 2 – Construção Identitária
Estas formas podem variar conforme os momentos históricos, variando
sobretudo os processos de identificação e as formas históricas do laço social,
mas nenhuma forma é considerada como dominante sobre as outras.
Os três processos históricos abordados são,
I) O «processo de civilização» - expressão de Norbert Elias que remete para
uma noção mais abstracta de identidade e para a passagem das formas
Forma Cultural
Identidade biográfica para outrem
De tipo comunitário, inscrição numa genealogia, numa cultura herdada e num grupo local. Supremacia do «Nós» sobre o «Eu».
Esta forma, dominante nas «comunidades tradicionais» está sujeita à dominação de género.
Forma Narrativa
Forma Narrativa
Identidade biográfica para si
De tipo societário, implica o questionamento das identidades atribuídas e um projecto de vida com longevidade, uma busca de autenticidade num processo biográfico e numa procura de sentido para a existência. Individualista e empresaria, implica a primazia da acção no mundo.
Sujeita á dominação de classe.
Forma Estatutária Forma relacional para outrem
Implica um «eu» plural, socializado pelo desempenho de papeís, constroi-se sob pressões de integração às instituições (família, escola, grupos sociais, Estado) e defini-se através de «categorias de identificação» nas diversas esferas da vida social.
Sujeita à dominação burocrática.
Forma Reflexiva
Forma relacional para si
Provém de uma «consciência reflexiva» (Giddens, 1987) em que o «eu» procura uma reflexão interior sobre si próprio e ser reconhecido pelos «outros significativos». Compromisso moral e convicções fortes, com eventual associação de pares que partilhem o mesmo projecto.
Sujeita à dominação simbólica.
Construção identitária
215
colectivas a formas individualizadas de identificação do tipo «Nós-Eu», que dão
origem à forma estatutária. Apesar de este processo político não evitar as
armadilhas do evolucionismo e ter actualmente um sentido diferente, destaca-
se a teorização de uma forma identitária dominante, societária e «orientada
para o acesso a uma posição estatutária, em função da aprendizagem (já não
da nascença) de um novo código simbólico e de interiorização de novas
maneiras de dizer, de fazer e de pensar valorizadas pelo Poder» (Dubar,
2006:28). Em paralelo Dubar refere formas de legitimar identidades nacionais,
como formas de identidade dominante, nomeadamente através dos Estados –
nação, do nacionalismo (com todos os revezes deste movimento que leva a
duas guerras mundiais) e da «comunidade cultural»;
II) O «processo de racionalização» que respeita à relação histórica entre as
relações comunitária e societária e que dá origem à forma narrativa.
Weber parte do interesse pelo significado subjectivo da análise da acção
humana (não usa o termo «identidade») e identifica dois tipos de acção que
implicam duas formas de relação social: 1) a forma comunitária, que vem da
tradição, dos laços familiares e das heranças culturais, com uma identificação
colectiva e emocional a um «líder» carismático; 2) a forma societária, que
designa relações sociais motivadas por racionalidades (axiológica, por relação
aos valores e económica, por relação à relação instrumental dos meios para
atingir os fins). Na tese de Max Weber, é defendida a existência de um
processo de racionalização que assegure a predominância da segunda sobre a
primeira, com um ideal-tipo marcado por uma «identidade empresarial
puritana». Este processo simbólico transforma as formas comunitárias
tradicionais em formas societárias, comprometidas com a transformação do
mundo pelo trabalho – «trabalho» esse que é visto como «vocação» e
«caminho da salvação».
III) E o «processo de libertação» de Marx e Engels que, na sua análise do
capitalismo do século XIX, defendem um processo revolucionário de libertação
do domínio de uma classe por outra, identificando «tipos de formação social».
As preocupações destes autores estavam longe do(s) conceito(s) de identidade
e passam, entre muitos outros conceitos, pela «consciência de classe», pela
«libertação e desenvolvimento dos indivíduos», pela sua «associação livre»,
pelo «fim da divisão do trabalho» e pelo «derrubamento do Estado» opressor.
216
O conceito de «configuração identitária» de Dubar, utilizado para designar as
modalidades de actualização das formas identitárias nas identidades
individuais, revela-se útil na análise da problemática da identidade num
contexto de crise da modernidade e na medida em que permite uma maior
plasticidade. As formas identitárias nominais (ou culturais), estatutárias (ou
profissionais), reflexivas (ou ideológicas) e narrativas (ou singulares) são
assim, combinadas de forma diferente, conforme os contextos ou as épocas e
constituem «formas discursivas», formas de falar da construção de si, em
interacção com os outros e com o mundo.
- IDENTIDADES PROFISSIONAIS EM TEMPOS DE INCERTEZA
Clarificando as identidades profissionais como “maneiras socialmente
reconhecidas para os indivíduos se identificarem uns aos outros, no campo do
trabalho e do emprego” (Dubar, 2006:85), arriscaria a dizer que genericamente
os assistentes sociais se reconhecem enquanto tal, mesmo que as suas
práticas e os seus quadros teóricos de referência sejam diferentes, admitindo
assim que existe «algo» que os une.
Pensar e nomear o que une e/ou separa os assistentes sociais, ou quaisquer
outros trabalhadores sociais é difícil e, fazendo eu parte do campo que procuro
reflectir, não escondo que parto com um pré-conceito de que nos separam
muito mais aspectos do que aqueles que nos unem e que os que nos unem
não têm sido suficientemente fortes para que a profissão tenha um percurso
mais afirmativo enquanto «sujeito colectivo» que procura actualizar as suas
legitimidades.
A formação inicial nos três Institutos Superiores existentes era algo que fazia
parte desse «mínimo denominador comum» mas, para além das constâncias
na formação inicial (que hoje em dia se perdem, na diversidade de propostas
de formação e de entidades formadoras), de uma inscrição na genealogia da
profissão e do domínio de um quadro de referência teórico e metodológico
traduzido na gíria profissional, os assistentes sociais enfrentam para além das
suas diversidades pessoais e sociais, várias dinâmicas, crises e tensões no
217
campo profissional que já abordei com algum pormenor, e que contribuem para
os distinguir.
Assumindo a importância da formação inicial para a construção da identidade
profissional dos assistentes sociais entende-se no entanto, que é no exercício
da profissão e a partir da reflexão das suas próprias experiências, que os
profissionais integram conhecimentos, constroem saberes, desenvolvem novas
práticas, competências e conhecimentos, reconstruindo em permanência as
suas formas identitárias.
Admite-se problematizar o conceito de identidade (s) profissional (ais), na
medida em que se admite que, na linha de Beck (2010) na «sociedade do
risco» e de «incerteza» as noções de trabalho e de profissão enfrentam novas
problematizações.
“O Trabalho está no centro do processo de construção, destruição e reconstrução das formas identitárias, porque é no e pelo trabalho que os indivíduos, nas sociedades salariais, adquirem o reconhecimento financeiro e simbólico da sua actividade. É também apropriando-se do seu trabalho, conferindo-lhe um ‘sentido’, isto é, dando-lhe, ao mesmo tempo, uma significação subjectiva e uma direcção objectiva, que os indivíduos acedem à autonomia e à cidadania” (Dubar, 2003:51).
Com todas as mudanças ocorridas na divisão social do trabalho, nas condições
de trabalho e na própria existência, ou não existência, de empregos e de
trabalho disponível, tornou-se ainda mais complexo pensar o trabalho e a sua
organização, na medida em que a organização (agora eleita como nível de
análise privilegiado) não responde “à questão central de saber se o sentido
social a atribuir ao trabalho se deve construir em torno da sua face visível, ou
se, pelo contrário, é o trabalho oculto que estrutura o sentido do trabalho
visível” (Correia, 2003:30).
As Ciências do Trabalho, que tinham adoptado nos seus primórdios uma
atitude crítica relativamente ao Taylorismo realçando nomeadamente, a
importância da interacção informal nas organizações e apelando para uma
organização de trabalho mais humanizada, viram dificultada a sua análise do
trabalho, numa situação de ruptura com as racionalidades accionadas nas
organizações. E acentuou-se ainda mais a distância entre o trabalho prescrito e
o trabalho real.
218
Neste âmbito, existe um eixo de debate que me pareceu interessante entre os
autores que preconizam o fim do trabalho (entendido simultaneamente como
forma de obter o reconhecimento financeiro e simbólico e como forma de
aceder à autonomia e à cidadania) e os que continuam a defender a sua
centralidade. Dos primeiros, destaco Dominique Méda (1999) que mostra que
nas diferentes sociedades, em função das exigências económicas, das
condições técnicas e do sistema de valores, o trabalho toma formas e sentidos
diferentes e anuncia o fim do valor do trabalho, defendendo que se poderia
deixar de ter em conta a dupla dimensão da cidadania e do produtivismo,
constitutiva das sociedades modernas; dos segundos, mobilizo Dominique
Schnapper (1998) que defende «sociedades cívicas», baseadas na criatividade
da economia, no estabelecimento de uma justiça social relativa e numa ordem
política legítima. Nesta abordagem a autora relaciona a desacreditação do mito
do pleno emprego com o enfraquecimento do elo social e preconiza, num
quadro de contínua organização do trabalho, novas formas de actividade e
utilidade social, mantendo a relação entre trabalho e estatuto social, embora
seja um trabalho que já não é necessariamente sinónimo de emprego.
Considera um autor de referência norte-americano, Nigel Parton, que apesar
da “teoria de Melano defender que a identidade profissional está
essencialmente associada às funções que o assistente social realiza será
contudo, importante lembrar que o desenvolvimento da legitimidade do Serviço
Social (…) deu-se, no seio de um híbrido, o ‘social’, situado entre as esferas
pública e privada, e produzido pelas novas relações estabelecidas entre a lei, a
administração, a medicina, a escola e a família” pelo que se tornaria muito
redutor resumir a profissão ao que os profissionais fazem em cada contexto e
época histórica (Parton, 2000:5).
Segundo esta perspectiva, talvez fosse mais gerador assumir a diversidade da
profissão de assistente social. E, como defende um outro autor inglês “ … não
nos deixarmos absorver pela procura da definição de Serviço Social, se isso
nos fizer perder de vista a variabilidade, a complexidade, ou o status polémico
que caracterizam a profissão” (Thompson, 2005:13).
219
Neste ponto a recolha e a articulação das identidades narrativas pode constituir
um campo de reflexão, investigação e aprendizagem muito promissor. Foram
destacadas as narrativas de quatro autores (uma autora brasileira, um autor
inglês e duas autoras portuguesas) com produção recente no campo do
Serviço Social e que abordam diferentes perspectivas e enfoques da identidade
profissional:
Maria Lúcia Martinelli (2006) uma autora brasileira comprometida com a
mudança social, coloca a hipótese de que a “ausência de identidade
profissional fragiliza a consciência social da categoria profissional,
determinando um percurso alienado, alienante e alienador da prática
profissional” (2006:17). A autora, no seu posicionamento crítico, defende
que:
“Os modos de produção da identidade, como categoria histórica, social e política, estão profundamente relacionados com o movimento da história, o que torna impossível estudar a identidade do Serviço Social sem estabelecer nexos de articulação com as revoluções burguesas, com o surgimento e ascensão do capitalismo e, em especial, com a luta de classes, expressão contundente das contradições e antagonismos que marcaram este modo de produção” (2006:18).
A análise desta inscrição histórica da profissão daria o mote para o fomento da
«consciência social» e para a libertação dos profissionais das suas práticas
«alienantes».
Malcom Payne (2006) na sua publicação intitulada precisamente ‘What is
Professional Social Work?’ defende a existência de diferentes identidades,
referindo nomeadamente que no percurso da profissão, o Serviço Social
tornou-se menos um movimento social e mais um emprego; menos uma
causa activista e mais uma ‘função’ de um Estado e de uma Sociedade
cada vez mais organizada.
Este autor situa a identidade dos assistentes sociais na luta dinâmica entre as
três perspectivas do trabalho social (transformacional, de ordem social e/ou
terapêutica) e a procura de encontrar um tempo e um espaço particular entre
os objectivos de interacção interpessoal e de mudança social.
Helena Mouro (2009), apesar de assumir que se desviou deliberadamente
da questão da identidade do Serviço Social dedica-se ao tema na obra
citada e refere que:
220
“…para se poder definir a moldura universal da identidade do serviço social de forma abrangente, e evitando uma leitura simplesmente segmentada, é essencial (…) que sejam ‘filtrados’ os grandes propósitos profissionais que, além de terem interferido sobre o processo de representação profissional, serviram também de meios de credibilizar as acções e definir a forma como estas se legitimaram. E, como a principal função que tem iconografado o trajecto de vida social e profissional do serviço social tem sido a humanização social e a gestão da pobreza, os seus traços identitários retratam a forma como a profissão tem agilizado a intervenção profissional de acordo com os conceitos de justiça social e de desenvolvimento social” (2009:174).
Segundo esta assistente social, docente e investigadora, a «identidade»
transformou-se no grande problema nuclear da profissão e, nessa medida,
gerou não só insegurança nos profissionais, mas também uma relativa paralisia
face à reorganização das competências profissionais e uma resistência passiva
ao desenvolvimento das novas profissões sociais,
Inês Amaro que na sua tese de doutoramento (2009) e em artigo
publicado na Revista «Locus Soci@l» (2009) identifica três grandes
momentos agregadores na construção identitária do Serviço Social: a
institucionalização da profissão, a academização que culmina com o
reconhecimento do grau de licenciatura em 1989 e a necessidade de
afirmação profissional no domínio público e a premência da regulação
do exercício e formação profissionais. Esta autora faz referência a uma
«dicotomização» presente na construção identitária do Serviço Social
contemporâneo que reflecte e traduz as tensões existentes e que
encontra reflexo na recolha empírica ao nível da forma como os
profissionais se designam - como «Técnico Superior de Serviço Social»
quando preconizam uma prática mais baseada em «critérios de
evidência» e como «Assistentes Sociais» quando apontam para uma
prática mais baseada na relação. Identifica ainda «uma identidade
incerta», «híbrida» e “um obscurantismo identitário, que é também
necessariamente conceptual, teórico e científico no Serviço Social. Esta
característica tem um efeito multiplicador/propagador na profissão, dado
que tem o seu âmago nas escolas, repercutindo-se, através da
formação, por toda a classe profissional” (2009:36). No entanto, aborda
algumas marcas identitárias da profissão, como sejam, por exemplo: o
«sincretismo», a tal «mistura» de concepções de que atrás falámos; a
«mediação», que coloca o profissional como agente de ligação entre os
221
indivíduos, grupos e comunidades e as estruturas sociais; a excessiva
individualidade dos percursos intelectuais no Serviço Social Português;
a insipiência teórico-científica deste campo e a existência de uma
comunidade científica em embrião com características de grande
fechamento e endogenia.
Nestes autores, que constituem inspirações e referências utilizadas neste
trabalho, aparecem muitos marcos do que pode «unir» e/ou «separar» os
assistentes sociais, dos quais saliento apenas três por me parecerem
consensuais e poderem constituir âncoras nas construções identitárias - um
«corpo de saberes», «um saber de fazeres» e a presença de «actores
referenciais».
Considerar o Serviço Social no seu quadro de profissionalidade, conducente a
uma identidade profissional, implica saber como se pode operacionalizar a sua
actividade nestes domínios, em torno de eixos. Recordo Musgrave (1979) que
ao estudar a profissionalidade docente, entendida como aquilo que caracteriza
determinado profissional e o distingue de outro, do técnico, ou do funcionário,
identifica quatro eixos estruturantes: a) A natureza específica da actividade; b)
O saber necessário para exercer a actividade; c) O poder de decisão sobre a
sua acção; d) O nível de reflexividade sobre a acção que vai permitir modificá-
la.
A dificuldade destes processos de estudo da profissionalidade faz com que, por
vezes, se consolidem alguns padrões identitários mais arcaicos ao mesmo
tempo que emergem novos padrões que reflectem a posição da profissão no
quadro dos dispositivos sociais instalados e o investimento na área do
conhecimento e na relação com outras profissões sociais e com a estrutura
organizacional e política das entidades condutoras dos programas de
intervenção social. Contudo, hoje parece cada vez mais difícil dizer «eu sou»
seguido da profissão, no sentido em que a actividade profissional, por ser muito
mais fluida, variável e incerta passou a ocupar um espaço menor na identidade
pessoal.
Dubar utiliza a noção de «crise das identidades profissionais» distinguindo
«três significados da palavra ‘crise’ consoante ela se aplica ao emprego (o mais
222
corrente), ao trabalho (o mais complexo) ou às relações de classe (o mais
escondido) ” (Dubar, 2006: 86). Estes diferentes significados servem para o
autor elaborar sobre as evoluções do emprego e as transformações do
trabalho, do ponto de vista do seu significado e das relações sociais que elas
põem em jogo. No entanto, a «crise identitária» que este autor analisa combina
«uma relação de exterioridade em relação ao emprego e uma relação
instrumental ao trabalho que torna delicada a reconversão nos outros papéis,
em particular familiares” (2006:109).
Retomando as categorias de Sainsaulieu de «identidade incerta» ou de
«identidade em rede», a narrativa hoje em voga atribui aos indivíduos a
responsabilidade de serem preparados, competitivos e capazes de enfrentar a
incerteza e a precariedade, descobrindo a(s) forma(s) de lhe dar sentido.
“Todas as formas anteriores de identificação a colectivos ou a papéis estabelecidos tornaram-se problemáticos. As identidades «taylorianas», «de ofício», de «classe», de «empresa», estão desvalorizadas, desestabilizadas, em crise de não-reconhecimento. Todos os «nós anteriores, marcados pelo «comunitário» e que tinham permitido identificações colectivas, modos de socialização do «eu» pela integração definitiva a estes colectivos são suspeitos, desvalorizados, desestruturados. O último grito do modelo da competência supõe um indivíduo racional e autónomo que gere as suas formações e os seus períodos de trabalho segundo uma lógica empresarial de «maximização de si» “ (Dubar, 2006:111).
Dubar também refere que atravessamos tempos de «crise identitária
permanente» e que cada vez mais temos «nichos identitários» que cultivam
identidades pessoais em detrimento das identidades a colectivos.
Mas esta oposição indivíduo/colectivo não permite compreender os processos
em curso, nem as crises que eles suscitam. E se no Serviço Social aliarmos os
sentimentos de alguma insegurança e baixa auto-estima profissional e a
escassez de consciência colectiva da profissão, com a proliferação da oferta
formativa e a competição no mercado de trabalho com outras formações que
também procuram trabalho no mesmo campo, temos alguns dos ingredientes
que nos «unem» pela negativa, embora também seja possível encontrar uma
versão inversa e positiva, quer para os próprios profissionais, quer para as
suas representações sociais.
Recorda-se que a recolha empírica partiu da concepção de que são os
«modelos culturais» ou as «lógicas de actores em organização» que permitem
223
articular as formas relacionais (a identidade de actores num sistema de acção)
e as formas biográficas (tipos de trajectórias ao longo da vida de trabalho).
3.3. AUTOFORMAÇÃO
Antes de explicitar o que pretendo nomear com este conceito de
«autoformação» recordo que a formação é entendida aqui, na concepção de
Gaston Pineau (2005) como um processo vital e permanente de morfogénese e
de metamorfoses emergente das interacções entre as pessoas e os contextos
psíquicos e sociais. Nesta óptica o processo de formação, inscreve-se num
paradigma da autonomia do ser humano, fundado numa teoria tripolar da
formação, cuja primeira formulação aparece no primeiro número da Revista
‘Education Permanente’ sobre Auto formação (nº78 – 79, 1985) com o título ‘A
autoformação no decurso da vida: entre a hetero e a eco formação’. Nos anos
subsequentes, foi feita a exploração por vários autores de cada um dos três
pólos (auto formação, no pólo psicopedagógico do sujeito ao nível micro;
hetero formação, no pólo dispositivo de formação técnico-pedagógico do nível
meso; e a eco formação, no pólo do contexto/meio ambiente sociopedagógico
do nível macro) numa figura piramidal, que ora revelava focos no pólo ‘auto’ ora
revelava a exploração do pólo ‘social e que relaciona os pólos dialecticamente
(G.Pineau, 2002).
A formação, no seu pólo ‘hetero’ é definida e hierarquizada pelo ambiente
cultural, que inclui a educação, as influências sociais as influências herdades
da família, do meio social e da cultura, das acções de formação inicial e
contínua, …. No pólo ‘eco’, a formação compõe-se de influências psíquicas,
climáticas e de interacções físico-corporais que dão forma à pessoa – no
entendimento de que o ambiente físico em todas as suas variáveis produz uma
forte influência sobre as culturas humanas, bem como sobre o imaginário
pessoal que organiza os significados dados às experiências vividas. Neste
esquema, a autoformação é concebida como uma componente da formação e
perspectivada como um processo tripartido entre a autoformação propriamente
dita (de si), a heteroformação (dos outros) e a eco formação (das coisas) e, por
224
outro lado, é composta por diferentes níveis de interacção entre a pessoa e
o(s) contexto(s): prático, simbólico e epistémico.
Figura 3 – Aproximação ternária da formação (Carré, 1995)
A autoformação, na perspectiva de Varela (1989), simboliza a tomada de
consciência e as retroacções das pessoas sobre as influências físicas e sociais
recebidas – sendo que essas tomadas de consciência e retroacções são
indissociáveis das interacções que lhes deram origem, o que torna claro a
paradoxalidade do processo de autoformação (que simultaneamente se nutre
das suas dependências). A autoformação ultrapassa assim os limites da
educação, entendida como uma transmissão - aquisição de saberes e de
comportamentos, integrando as tomadas de consciência e as retroacções
sobre as influências heteroformativas e eco formativas.
Esta abordagem ternária permite distinguir três níveis complementares de
análise e de acção que intervêm nos comportamentos de formação dos sujeitos
sociais, articulando os três níveis de organização (micro, meso e macro) numa
aproximação pluridisciplinar e «aberta» que permite o estudo da noção de
Sujeito
Nivel Micro - Psicopedagógico
(Auto)
Dispositivo de Formação
Nível Meso - Tecnopedagógico
(Hetero)
Contexto/Meio Ambiente
Nível Macro - Sociopedagógico
(Eco)
225
‘autoformação’ do ponto de vista da actividade formativa do sujeito, da
mediação educativa e das condições sociais nas quais se inscreve, conjugando
três aproximações disciplinares.
A formação nesta perspectiva de processo é então entendida como formar
alguém ‘em’ qualquer coisa, ‘para’ qualquer coisa e ‘por’ qualquer coisa (M.
Fabre, 1994). Este autor concebeu o «triângulo da formação» com os vértices
do ‘desenvolvimento pessoal’, da ‘situação socioprofissional’ e do ‘conteúdo e
método’, onde a interacção entre os três vértices constitui a dinâmica do campo
pedagógico.
Figura 4 - Dinâmica do campo pedagógico (M. Fabre, 1994)
Do ponto de vista reflexivo a exploração deste tipo de figuras oferece uma
estrutura de pensamento que permite sair do pensamento dicotómico e binário
e, por outro lado, permite abrir a pesquisa às interacções, às transacções e às
retroacções entre os diferentes elementos.
De facto, não parece possível pensar a autoformação e a autonomização do
sujeito sem articular a acoplagem interactiva pessoa/ambiente e a tomada de
consciência reflexiva (Galvani, 1997). A autoformação pode declinar-se em três
processos de retroacção: a retroacção de si sobre si (através dos processos de
subjectivização), a retroacção do ambiente social (através dos processos de
Lógica Social
(Situação socio-profissional)
Lógica Didática
(conteúdos e métodos)
Lógica Psicologica
(Desenvolvimento Social) INSTRUÇÃO - Formação didática
226
socialização) e a retroacção sobre o ambiente físico (através dos processos de
‘ecologisação’3).
Estas perspectivas do processo de formação e de auto formação apresentam
potencialidades para reflectir sobre o Serviço Social enquanto disciplina e
prática e para promover a consciência reflexiva dos seus profissionais.
- AS ABORDAGENS BIOGRÁFICAS
As abordagens biográficas e, sobretudo, a visão da formação permanente de
que são portadoras, abrem importantes perspectivas de mudança e ruptura
com o paradigma positivista que diminuiu as ciências sociais enformando-as
em lógicas que lhe eram estranhas.
Do ponto de vista das Ciências da Educação e, segundo Canário (2005) este
confronto com o paradigma positivista está associado a três movimentos ou
tendências que marcaram o último quartel do século XX:
o movimento da “Educação Permanente” que, sob a égide da Unesco,
procurou promover, na década de 70, a ‘humanização do
desenvolvimento’, afirmando o primado da pessoa e do aprender a ser,
encarando a aprendizagem como algo global e contínuo que ocorre em
todos os tempos e espaços;
o movimento das “Histórias de Vida” que ao adoptar a pergunta ‘Como
se formam os adultos?’ como questão fundadora, operou uma revolução
de paradigma na perspectiva de abordar os problemas da educação;
o movimento de valorização da educação não formal (a parte submersa
do iceberg educativo), traduzido na teorização e prática da animação
cultural.
Estes movimentos ou tendências, partindo do princípio que o saber é
construído inter – subjectivamente ao longo do processo de formação e
aprendizagem através de sínteses sucessivas, pressupõem não só uma nova
postura do investigador, como desafiam a que os sujeitos participem da
investigação e da produção de saber.
3 Este termo resulta da tradução directa do francês ‘ecologisation’ mencionado em Pineau, 2005:146.
227
“…a qualidade essencial de um sujeito em formação está então na sua capacidade de integrar todas as dimensões do seu ser: o conhecimento dos seus atributos de ser psicossomático e de saber-fazer consigo próprio; o conhecimento das suas competências instrumentais e relacionais e de saber-fazer com elas, o conhecimento das suas competências de compreensão e de explicação e do saber-pensar. O tema da procura da identidade que perpassa as narrativas de formação leva a pensar que um dos desafios da formação é pôr em prática a criatividade em todas estas dimensões ao longo de um processo de individuação” (Josso, 2002: 33).
O que está em jogo neste conhecimento de si próprio não é apenas,
compreender como é que nos formamos ao longo da nossa vida mas também
tomar consciência de que este reconhecimento de nós próprios como sujeitos,
permite delinear um itinerário de vida onde os investimentos e objectivos se
vão «encaixando», na base da auto-orientação possível que articule mais
conscientemente as heranças, as experiências formadoras, as pertenças, as
valorizações, os desejos e o imaginário com as oportunidades socioculturais
que soubermos agarrar, criar e explorar.
“Transformar a vida socioculturalmente programada numa obra inédita a construir, sendo guiado por um aumento de lucidez, tal é o objectivo central de transformação que oferece a abordagem História de Vida” (Couceiro, 1992).
O trabalho desenvolvido nomeadamente por Christine Josso oferece uma visão
geral das perspectivas teóricas desenvolvidas nas últimas décadas para a
construção de um novo conceito de formação. É assim que esta autora propõe
um percurso por disciplinas como a sociologia, a psicologia social e a
antropologia à procura dos seus contributos para a ideia de formação e que
veio a desembocar num campo teórico integrado (mas não consensual) nas
ciências da educação. Para Josso a ideia básica é a de ultrapassar o conceito
da formação como transmissão e reprodução de informações, no pressuposto
que assim ficam de fora muitas contribuições de diferentes áreas disciplinares
que alargam o conceito de formação. Reporta-se nomeadamente a duas
correntes: «a formação como processo de mudança e a formação como
projecto, produção da sua vida e do seu sentido» (Josso, 1991: 47).
Inspira-se também em vários autores, para quem a formação é considerada um
processo global e que implica as diferentes dimensões da vida, acompanhando
todo o seu decurso. Paulo Freire, de cuja obra a autora retira a ideia de que a
formação pertence sempre àquele que se forma, embora ninguém se
228
forme/eduque sozinho; B. Honoré, donde se salienta a «teoria da criação e da
elaboração do projecto» (1977) em que as experiências de formação ganham
sentido na história pessoal de cada um, articulando-se com outras e
preparando experiências futuras, numa perspectiva de educação regida por
princípios de desenvolvimento dos sujeitos; P. Dominicé (1984), de quem
integra uma ideia de formação como articulação entre experiência e
aprendizagem. Para este autor, o percurso individual de formação decorre num
processo global de socialização, onde se articulam inserção profissional e
institucional, contextos socioculturais e económicos, e em que a história
individual e os acontecimentos históricos que modelam uma sociedade estão
em interacção constante; G. Pineau (2002), que propõe uma revolução
paradigmática baseada numa dialéctica entre autoformação e heteroformação.
Heteroformação, identificada como uma educação pelos outros (através de
processos diversificados como a formação escolar, profissional e sociocultural)
e Autoformação, entendida como uma apropriação do poder de formação por
parte dos indivíduos. Mais recentemente, desenvolveu o conceito de Eco
formação, concebido como um processo de autoformação que decorre na
ausência dos outros, que reenvia o sujeito a si mesmo e às coisas do seu
habitat físico elementar e de coformação, pela abertura a uma comunicação
social mais profunda.
A história de vida de uma pessoa, para além de todas as subjectividades,
acontece num contexto espácio-temporal e a tecnologia, a conjuntura e a
mentalidade vigentes acabam por constranger, marcar ou influenciar de modo
semelhante toda a geração de determinado contexto – o que acaba por ser
social e não apenas singular. Para Josso (2002) a procura de compreensão
dos processos de formação de adultos é indissociável da globalidade da
pessoa no seu continuum de vida e o trabalho biográfico é, nesta perspectiva,
um dos meios para nos manter em contacto com a nossa totalidade e para
evitar ser agitado pelas prioridades estabelecidas pelos outros, encorajar uma
presença reflexiva nas actividades que fazemos e desenvolver uma
distanciação critica em relação a convicções que nos servem de referências
nas nossas maneiras de pensar e de trabalhar. Refere a propósito que:
229
“Se aprender a aprender parece ter-se tornado um dos objectivos da educação primária e secundária, não parece evidente para toda agente que aprender a aprender é estar consciente de como se faz para aprender, a fim de poder melhorar as suas competências na gestão da sua aprendizagem e de auto facilitar a tarefa nas aprendizagens novas.” (Josso:2002:108)
Assim e em particular, a abordagem das histórias de vida enquadra-se nas
actuais correntes epistemológicas das ciências sociais e humanas,
transportando-nos para um novo paradigma da formação e da investigação,
que revaloriza o papel do sujeito na investigação, atribuindo à subjectividade
um estatuto e ‘um valor de conhecimento’. As narrativas construídas sob esta
perspectiva são, desde logo, subjectivas na medida em que são narradas no
quadro de uma relação e interacção pessoal complexa e recíproca entre o
narrador e o observador - importa restituir à narrativa biográfica a plenitude da
sua natureza relacional e da sua intencionalidade comunicativa (Couceiro,
1992:45).
Ao contrário de uma lei geral, as histórias de vida afirmam o “paradoxo
fundamental do universal no singular” considerando que “se todo o indivíduo é
a reapropriação singular do universo social e histórico que o rodeia, podemos
conhecer o social a partir da especificidade irredutível de uma praxis individual”
(Ferraroti, citado em Couceiro, 1992: 45). Por outro lado, evidencia-se o
estatuto que se atribui à experiência no processo de aprendizagem e formação,
já não como mero lugar de aplicação de saberes teoricamente adquiridos ou
como material facilitador da codificação de saberes disciplinares, mas sim por a
considerar, quando reflectida, como fonte e produtora de aprendizagens, na
medida em que ao reconhecer-se e ao valorizar-se o que a experiência ensina,
se lhe atribui valor de conhecimento e produção de saber (es).
A originalidade do método de investigação-formação em Histórias de Vida
situa-se, em primeiro lugar, na constante preocupação de que os autores das
narrativas consigam atingir uma produção de conhecimentos que tenha sentido
para eles, que eles próprios se inscrevam num projecto de conhecimento que
os institua como sujeitos, numa exploração transdisciplinar.
As histórias de vida são, assim, um conceito que fornece instrumento/método
para investigar sobre os processos auto formativos e, simultaneamente, para
reforçar, em formação, os próprios fundamentos socio-pessoais da
230
autoformação (Couceiro, 1992: 49). Contudo, as nossas respectivas origens
disciplinares, dificultam a assunção do risco de uma posição transdisciplinar
que coloca em causa os territórios disciplinares e nos leva a mobilizar
referenciais teóricos disciplinares, em detrimento de um diálogo teórico com
produções dos investigadores em rede.
Para os assistentes sociais que ainda demonstram algumas inseguranças nas
intervenções multidisciplinares, o desafio desta posição transdisciplinar,
constitui uma possibilidade de constituir novos territórios de construção de
conhecimento e de explicitação das suas especificidades.
- A DIALÉCTICA ENTRE EXPLICAÇÃO E COMPREENSÃO
Os assistentes sociais têm-se mobilizado muito mais para produzir explicações
e formas de intervir sobre e com os fenómenos e as populações com que/quem
interagem, do que para produzir narrativas compreensivas sobre «como» e
«porque» intervêm e «como» atribuem significado às realidades que constroem
em conjunto com outros.
No desempenho da profissão de assistente social, a praxis inicial apoiava-se
na teoria produzida pelas Ciências Hermenêuticas como forma de
compreender os fenómenos sociais existentes e, a partir daí, formar «um
esquema operativo/funcional que foi dominante na actuação profissional dos
assistentes sociais» (Mouro, 2009:223).
A palavra hermenêutica tem origem no verbo grego ‘hermeneuin’ que significa
interpretar e está ligada à mitologia grega do deus Hermes (mensageiro-alado)
mas também existe outro sentido que se refere ao ‘explicar’, entendido por isso
a clarificação de algo mas também o significado atribuído a essa clarificação,
que compreende quem tenta explicar e o respectivo contexto.
Paul Ricoeur mostra-nos nas contribuições do seu pensamento (1976, 1986,
1990, 1995) algumas considerações sobre a hermenêutica que pareceram
importantes ser mobilizadas para este trabalho:
na primeira, refere-se à hermenêutica como um «enxerto», já que surgiu
numa disciplina que tinha por finalidade compreender os textos
sagrados;
231
na segunda consideração, a hermenêutica é definida como uma ciência
da compreensão linguística que serve de base para a concepção de
todos os tipos de interpretação de textos, definindo-se a si própria como
não disciplinar e propondo-se à sua própria compreensão;
na terceira, é considerada como base metodológica humanística para
as disciplinas que estivessem centradas na compreensão da arte, do
comportamento e da escrita do homem;
na quarta refere-se à compreensão existencial e fornece uma
explicação fenomenológica da existência humana (nomeadamente em
Heidegger) numa linha em que a compreensão é relacionada à
experiência estética e ao conhecimento histórico, significando que a
compreensão precisa de estar inserida num contexto no qual haja uma
fusão constante do passado e do presente por meio da linguagem;
na quinta consideração, a hermenêutica é tida como um sistema de
interpretação, como um processo que interpreta um conteúdo e um
significado manifesto ou escondido.
Ricoeur aponta como desmistificadores da hermenêutica autores como Marx,
Nietzsche e Freud, referindo que cada um deles interpretou a superfície da
realidade como falsa ao condenarem a religião e ao colocarem sob suspeita o
pensamento que o ser humano assentava na realidade, nas suas crenças e
motivações. Este autor traz um pensamento novo e contribuiu
significativamente com uma teoria da interpretação alicerçada na dialéctica
entre explicação e compreensão, mediada pela interpretação e seguindo um
método reflexivo que faz aliança com o vivido.
Na necessária mudança de representações e modos de relação aparece com
particular importância a problematização para fazer surgir necessidades de
reflexão e de formação, desassociando a formação do modelo de resolução de
problemas.
A formação como processo de desenvolvimento pessoal tem necessariamente
um carácter reflexivo e de apropriação dos recursos em presença, assumindo o
profissional a capacitação pela sua própria aprendizagem e pelo significado
que lhe atribui, na diversidade cada vez maior de práticas e de interacção com
muitos outros. E promover a diversidade significa “aceitar a formação como um
232
processo de pesquisa, em que o erro desempenha um papel importante no
processo colectivo de aprendizagem”, aceitando igualmente que “a acção
educativa não é redutível a ‘receitas’, qualquer que seja o seu grau de
elaboração, nem a modelos acabados, universalmente válidos” (Canário, 1994:
67). Neste sentido, importa aos assistentes sociais não esquecer o domínio da
aprendizagem experiencial - que é perspectivada no sentido “de uma
capacidade para resolver problemas, mas acompanhada por uma formação
teórica e/ou de uma simbolização” (Josso, 1989) - e a sua importância como
domínio de saber específico da profissão.
Apesar da experiência ser considerada como um elemento central nos
processos de aprendizagem contínua dos adultos, esta tem ainda uma
valorização ambivalente, quer no domínio restrito do campo dos profissionais
de Serviço Social, quer no âmbito, mais global, de uma concepção educativa
que privilegia a aprendizagem do conhecimento científico tradicional em
detrimento da aprendizagem reflectida da experiência. E ambivalente, porque
também serve a muitos profissionais para justificar a protecção do seu campo
de intervenção e do valor da «tutoria» que aceitem fazer para introduzir os
novos profissionais no terreno pantanoso do «conhecimento da realidade»,
furtando-se ao esforço de explicitar e comunicar em que consiste esse
conhecimento.
Como refere Josso (1991) a transformação do vivido para a experiência implica
a utilização de um mediador que é a linguagem, e a utilização de competências
culturalmente adquiridas. As experiências são objectivadas a partir do trabalho
consciente, e são descritas em diferentes registos de expressão de dimensões
diferentes (psicológico, cultural, sociológico, psicossociológico, político e
económico), que constituem a sua riqueza. Nesta linha, os saberes (que por
convenção, resultam da experiência) para que possam ser socialmente
valorizados carecem de elaboração de acordo com modalidades socioculturais
precisas (atendendo aos contextos socioculturais nos quais os acontecimentos
se produzem) e com a diversidade de lógicas individuais. A experiência só é
formadora na medida em que é possível explicitar (a priori ou a posteriori) as
aprendizagens, em “termos de capacidade, de saber-fazer, de saber-pensar e
de saber situar-se” (Josso, 2002).
233
Em profissões, como a dos assistentes sociais, com vertentes relacional e
simbólica muito fortes, esta questão carece de grande aprofundamento. Por
maioria de razão, quando as socializações e os desempenhos profissionais são
realizados em contexto organizacional, e esses próprios contextos são
promotores quer de aprendizagens (nem todas positivas), quer de instalações
em zonas de conforto.
Segundo Argyris e Schon (1978), a aprendizagem organizacional ocorre
quando os indivíduos de uma organização, agindo a partir das suas
representações, detectam convergências ou desvios entre os resultados
esperados e os resultados obtidos; quando se constata a existência de desvios,
os indivíduos procuram a sua correcção, formulando novas hipóteses e criando
novas estratégias. Mas para que exista aprendizagem organizacional, estas
‘descobertas’ têm de ser codificadas nas representações partilhadas pelos
indivíduos, ou nos elementos das “teorias em uso” na organização. Se esta
codificação não ocorrer, os indivíduos terão aprendido, mas as organizações
não o terão feito.
Esta dimensão parece de grande importância, quanto a constatação empírica
nos remete para organizações cristalizadas, apesar de nelas intervirem
profissionais qualificados e reflexivos que, em dado tempo e contexto favorável,
promovem intervenções não rotineiras, que introduziram mudanças
significativas mas que não conseguem alterar as “teorias em uso”.
Apresenta-se em consonância com a abordagem da aprendizagem
experiencial atrás referida, que é uma fonte legítima, a partir da qual, através
de uma dinâmica reflexiva, é possível dar forma ao ‘vivido’ e transformá-lo em
conhecimento. Por outro lado, aguça a curiosidade científica para investigar a
perspectiva das “organizações qualificantes” que se podem constituir como
relevantes contributos, nomeadamente para a democratização do trabalho, a
valorização das suas valências qualificantes, a articulação entre saberes
formais e informais, entre outros (Correia, 1997).
Esta perspectiva abre enormes potencialidades, nomeadamente no que
respeita, a um recente campo de pesquisa que procura entender os saberes
adquiridos pelos adultos à margem dos sistemas formais de
educação/formação, em contexto de trabalho, ou em contextos não-formais ou
234
informais, com uma especial atenção ao papel da experiência reflectida e ao
papel do sujeito no ‘controle’ do seu próprio processo de formação. Por outro
lado, o trajecto do Serviço Social no campo da investigação passou por uma
«relação de conveniência»,
“…que se traduziu num investimento relativamente à produção teórica disciplinar que tinha por objectivo (…) a construção de uma metodologia pragmática que reflectia as ressonâncias das ciências modernas e da democratização da ciência e que, ao mesmo tempo, produzia intervenções de ordem reparadora ou compensadora, mas não transformadora” (Mouro, 2009:224).
Esta forma de leitura pode justificar o aparecimento de uma produção teórica
essencialmente focada nos aspectos processuais de definição e organização
das metodologias da intervenção profissional e nos problemas de ordem social
dentro de um modelo de Estado ‘protector’.
- REFLEXÕES SOBRE «COMPROMISSOS»
Por «compromissos» pretendo significar o empenho e o envolvimento que
muitos assistentes sociais colocam no que fazem e na maneira como fazem.
Tidos por alguns por «formigas obreiras» são muitas vezes agentes pouco
visíveis mas muito «comprometidos» e «militantes» com causas, públicos,
projectos e/ou organizações. Segundo Bourdieu (2004) «Compreender» é, em
primeiro lugar, compreender o campo em que nos fizemos e contra o qual nos
fizemos, e esse tem sido um compromisso transversal no meu percurso
profissional. Escolhi o termo «compromissos» porque me parece
suficientemente abrangente para incluir diferentes possibilidades, mas também
com a necessidade de afastar a ideia tradicional de «vocação» para as
escolhas e exercícios destes profissionais. Continuo a pensar que escolher
tornar-se Assistente Social é uma escolha profissional exigente e corajosa (que
não termina no final da licenciatura) porque este tipo de trabalho coloca quem o
exerce em contacto directo com o sofrimento e a miséria humana, com as
injustiças e as desigualdades, mas também com as inúmeras questões
organizacionais que produzem frequentes dilemas e com as grandes correntes
e domínios da política, da ciência e da ideologia.
235
Jacques Riffault (2007) no seu livro «20 questões para pensar o trabalho
social» (que subdivide em três partes, designadas respectivamente «valor»,
«conhecimento» e «sentido» refere que estas profissões pouco valorizadas e
mal reconhecidas socialmente, assentam num compromisso individual forte e
que podem ser caracterizadas em quatro dimensões que parecem alimentar
esse compromisso:
Só se pode exercer de forma durável este tipo de profissão com um quadro
de leitura das injustiças sociais e uma crença na possibilidade de um
progresso social e humano. É a dimensão de «querer mudar o mundo» que
compromete muitos profissionais e, sem a qual, correm o risco de não
entenderem as situações das pessoas e de nada fazerem para que elas se
modifiquem;
Este compromisso deve nutrir-se de uma referência aos valores fundadores
do Serviço Social e da Democracia e só para citar alguns: o respeito
absoluto pela dignidade humana e pela liberdade das pessoas, a defesa e a
promoção dos seus direitos, a solidariedade e o desenvolvimento. Esta é
uma dimensão explicitamente política deste envolvimento;
A dimensão ética do compromisso aponta para a expectativa de que
existam em cada pessoa e em cada sociedade os recursos para poderem
modificar-se para melhor. A crença na reversibilidade das situações
problema é particularmente importante nas situações mais «obscuras» ou
«desesperadas»;
Este tipo de profissões implica uma racionalidade nunca alcançada, mas
sempre em construção, no esforço quotidiano de compreender e de se
compreender, de reflectir e de nomear o que se pensa, de se perguntar
porque pensa daquela maneira o que se está a tentar fazer e porque se faz
de determinada maneira e não de outra, e prestar contas a si mesmo, aos
outros e à sociedade.
Esta «ética do compromisso» necessita de ser reflectiva e reassumida, em prol
de desempenhos profissionais que não sejam simples trocas directas de
afectação de tempo por retribuição de um pagamento (que, de um modo geral,
é cada vez menos significativo e descondicente com o investimento na
formação). E, como referem ainda Bogdan e Bilklen (1994: 55),
236
“o significado que as pessoas atribuem às suas experiências, bem como o processo de interpretação, são elementos essenciais e constitutivos, não acidentais ou secundários àquilo que é a experiência. Para compreender o comportamento é necessário compreender as definições e o processo que está subjacente à construção destas. Os seres humanos criam activamente o seu mundo”.
Destas questões que alimentam, ou não, um leque variado de compromissos
possíveis, decorre a importância da formação inicial e contínua, formal, não
formal e informal para alargar a consciência e o poder de enunciação sobre os
dilemas, os constrangimentos e os paradoxos de um trabalho que implica muito
mais do que a aplicação de uma «tecnologia».
A análise de Boaventura Sousa Santos considera que a fase de transição do
Estado de bem-estar contém elementos novos e contraditórios por relação ao
que foi o paradigma dominante. Na concepção de Sousa Santos a transição
paradigmática do Estado de «wellfare» para «workfare» “... preenche em parte
a sua dimensão de bem-estar transferindo prerrogativas estatais para
instituições e associações não estatais, sempre que é necessário concretizar
inovações sociais” (1990:258)
Os trabalhadores sociais que se encontram no campo de muitas contradições e
paradoxos que os ultrapassam (mas que também os incluem), quer no âmbito
político ideológico, quer no domínio organizacional, precisam cada vez mais de
se posicionar para não ficarem reduzidos ao papel de meros executores dos
sistemas de redistribuição e controlo vigentes e perderem assim a
oportunidade de inovar quer nos seus modos de fazer, quer nas formas de
produzir formas de compreensão sobre os fenómenos sociais, tornando-as
socialmente disponíveis.
237
CAPÍTULO 4 - METODOLOGIA - PERCURSO DE
INVESTIGAÇÃO
Fui expressando a opção pelo tipo de investigação no referencial conceptual
«mestiço» que tenho vindo a mobilizar neste processo de pesquisa.
O enunciado teórico que pretende suportar e dar inteligibilidade ao projecto de
investigação, na tentativa de compreender o objecto de estudo e formular as
questões de pesquisa, foi radicado sobretudo num movimento conceptual de
uma «prática-investigadora» que experienciou uma aproximação entre o
conhecimento dos actores e o processo de produção de conhecimento
considerado científico.
A imersão no «objecto social» é uma particularidade de posicionamento que
mais do que assegurar uma dialéctica entre a autora e os actores, parte da sua
experiência reflectida num percurso profissional e académico e, num processo
cumulativo de alargamento de concepções e de visões que procura junto de
outros actores informação que pode ser convergente. Este processo de
«bricolage» (Lévi-Strauss, 1962) procurou sobretudo explicitar a matriz de
pensamento e encontrar significados que ajudassem a compreender e
identificar as unidades macro de análise do projecto de estudo. Pretendeu-se
assim: i) Construir uma narrativa da problemática da formação de Assistentes
Sociais ao longo da sua vida; ii) Centrar-se numa atitude crítica face a
concepções de cariz dualista que historicamente determinaram racionalidades
epistemológicas que conduziram os profissionais de Serviço Social a um tipo
de conhecimento teórico fragmentado e de tipo prescritivo; iii) Realizar um
movimento de natureza construtiva na busca de alternativas conceptuais que
visam fundamentar as possibilidades de integração dos saberes da teoria e da
prática numa perspectiva epistemológica da «praxis».
Este capítulo encontra-se estruturado em quatro pontos: no primeiro é
identificada a questão de partida e as questões orientadoras; no segundo
clarificam-se as opções e a estratégia metodológica definida; no terceiro, é
explicitado o desenho da investigação numa abordagem de inspiração
biográfica e no quarto, identifica-se o processo de análise efectuado.
238
4.1. Questão de partida e questões orientadoras
A questão central de partida consistiu em:
Compreender como se formam os assistentes sociais e como constroem
as suas formas identitárias ao longo da vida.
Com esta questão pretendia aprofundar a reflexão sobre a profissão de
Assistente Social numa perspectiva a partir de dentro do campo e no
entendimento de que a profissão se constrói e se aprende, no diálogo entre o
exercício e a reflexão sobre si própria, sobre os outros e o mundo. A escassez
de investigação neste «campo» específico, no sentido atribuído por Canário
(2000) o qual nos remete para diferentes práticas – práticas sociais de acção,
de reflexão e de (re) produção social, a fluidez da delimitação do campo
profissional e a consciência das tensões e paradoxos que o atravessam foram
conduzindo o projecto de investigação para caminhos que a questão central de
partida abriu, partindo de uma base teórica plural e «mestiça», embora com um
posicionamento na Educação.
Considerei a questão de partida como uma possibilidade de tentar produzir
entendimento sobre o(s) modo(s) como se cruzam os percursos de formação e
as trajectórias profissionais dos assistentes sociais e o(s) modo(s) como as
suas representações da profissão, do contexto de trabalho e da formação se
manifestam como «ideais-tipo» de uma profissão em debate.
A partir da exploração das suas singularidades por relação às profissões
sociais, interroga-se o saber profissional, as suas construções identitárias, os
processos de formação inicial e ao longo da vida, a permeabilidade ao poder e
às ideologias e a produção de conhecimento próprio. Contudo, como refere
Guess (1988) citado em Sousa Almeida (2011)
“…a amplitude do questionamento também encerra uma opção deliberada face
ao pressuposto epistemológico de que os fenómenos sociais são fenómenos sociais totais cuja compreensão implica a disponibilidade do investigador para os olhar a partir da sua multi-dimensionalidade, estando desperto para captar não só a homogeneidade mas também a variedade, a diversidade e o conflito que qualquer grupo humano encerra”.
Enquanto prática simbólica o trabalho social encontra-se com diferentes
domínios no seu limite, pelo que a acção inscreve-se na articulação de quatro
239
desses domínios: subjectividade, identidade, palavra e vínculo social (Autés,
1999). As características do trabalho social explicam, em parte, a dificuldade
estrutural que os assistentes sociais têm em descrever o que fazem,
dificuldade que se relaciona com a construção das práticas, nas quais a
construção do objecto se encontra profundamente ligada às estratégias de
acção – e as actividades do Serviço Social desenvolvem-se no registo da
relação e da linguagem (Dubet, 2002). Assim, no presente trabalho é central o
conceito de identidade, articulado com o campo da educação e formação de
adultos e o campo do trabalho. Esta questão centra o objecto de pesquisa na
reflexão sobre as pessoas e os seus contextos, assumindo-se “… a perspectiva
de recolocar o sujeito no lugar de destaque que lhe pertence quando desejar
tornar-se actor que se autonomiza e que assume as suas responsabilidades
nas aprendizagens e no horizonte que elas abrem” (Josso: 1989, pp.49).
Assim, foram identificadas as seguintes questões orientadoras:
• Que ligações estabelecem os Assistentes Sociais entre os saberes teóricos
e os saberes da prática?
• Qual a relação com o saber académico? Que perspectivas sobre a
interacção entre a formação inicial, a formação contínua formal e as
aprendizagens experienciais e organizacionais?
• Como e se constrói uma «reflexividade crítica» (na acepção da
«aprendizagem crítica» de Mezirow e Brookfield) no profissional e na
profissão?
• Como se forma a profissionalidade e a identidade profissional destes
profissionais? Quais as competências construídas - em que tempos,
processos e contextos? Qual a relação do domínio profissional com o
domínio familiar? E no ‘fim’ do seu ciclo de vida profissional – que balanços,
que crises e que projectos?
• Como se processa a «conquista do tempo pessoal» e a «transformação de
perspectivas»?
Neste âmbito, será importante explicitar que fui buscar o conceito de
«transformação de perspectivas» aos autores Brookfield (1995) e Mezirow
(1991) - este conceito pretende atribuir significado a dois processos
complementares, o processo emancipatório de conhecimento crítico que dá
conta de «como» e «porquê» a estrutura psico-cultural constrange as nossas
240
relações, e o processo de reconstrução dessa estrutura para permitir uma
integração mais inclusiva da experiência sobre novos entendimentos. O
conceito de «conquista do tempo pessoal» é um conceito de Josso (2002) que
refere a esse propósito que:
“A temporalidade da formação, tal como pode ser verbalizada e socializada numa narrativa de vida, é excepcionalmente contada como um milagre de instantaneidade. É o tempo de realizar uma tomada de consciência e de fazer um trabalho de integração e de subordinação...: fazer com...para se dar forma, fazer com...no tempo de transformar o meu tempo em experiências formadoras de competências e de qualidades» (Josso, 2002: 156).
Segundo esta autora, a aproximação à temporalidade biográfica faz-se tal
como a vida se deixa ver nas histórias de vida contadas sobre o ângulo das
questões: i) «como me tornei no que sou?»; ii) «Como acontece que penso o
que penso?»; iii) «Como aprendi o que creio saber, saber-fazer e saber-
pensar?».
Sem pretender ser exaustiva, diria que foram estas questões no seu conjunto
que orientaram a pesquisa.
Tomando o percurso (e os processos) formativo e de construção profissional
dos Assistentes Sociais como objecto de análise, procurei perceber, na
perspectiva dos profissionais entrevistados, quais os acontecimentos
marcantes, quais as suas circunstâncias e contextos, mas mais do que isso,
quais os significados atribuídos pelos próprios sujeitos da investigação à sua
construção identitária.
Para tanto e recorrendo a alguns aspectos dos tópicos anteriores, utilizei quatro
eixos da análise:
- O domínio da autoformação na relação com os saberes
- O processo de construção pessoal e a identidade profissional
- O «empowerment» na profissão e na vida
- As crises como oportunidades de mudança
As opções metodológicas enunciadas foram sobretudo, formas de tactear o
caminho da procura de desocultação e compreensão das lógicas subjacentes
aos processos de formação dos actores aqui considerados. Procurei ensaiar
uma postura dialógica, em que a construção do conhecimento pretende ser
feita por investigadora e investigados, através da intersubjectividade.
241
Esta pesquisa permitiu realizar um projecto de investigação (com tudo o que
esse processo tem de planificado e de caótico) mas simultaneamente permitiu
detectar dificuldades e aprendizagens realizadas e a realizar; colocando-me em
confronto quase permanente comigo, com as fontes, com as complexidades do
objecto de estudo e com as várias tensões produzidas pelo confronto dos
referenciais (conceptuais, metodológicos, técnicos e instrumentais) com os
limites dos meus próprios recursos.
O exercício de escuta, a leitura repetida e atenta das narrativas e a
interpretação realizada à luz das entradas escolhidas permitiu realizar o ponto
seguinte, precisamente sobre o trabalho empírico realizado.
Paralelamente fiz um «mergulho» no campo de Serviço Social traduzido em
duas estratégias paralelas: uma aproximação ao debate académico do campo
de Serviço Social e a intensificação do diálogo próximo com assistentes sociais
(e outros trabalhadores sociais) através de um ciclo de formação que desenhei
e desenvolvi para uma grande instituição do concelho de Lisboa, que possui
um elevado número de assistentes sociais nos seus quadros de pessoal
(2007/2008/2009).
Privilegiar a metodologia qualitativa, sobretudo de um ponto de vista
epistemológico e ontológico, pretende significar que o sentido destas
abordagens situa-se no próprio objecto de análise e no dos postulados a ele
ligados, e não apenas, ou fundamentalmente, no plano dos procedimentos e
técnicas. Mais do que situar-me na distinção dicotómica entre metodologias
quantitativas e metodologias qualitativas, preferi adoptar a noção de continuum
entre qualitativo e quantitativo, recrutando para já a «investigação
interpretativa», inspirada numa abordagem sistémica.
Será oportuno mobilizar Kuhn (1994) para afirmar que nenhum paradigma
pode, por si só, explicar todos os factos e facetas dos fenómenos que se
confrontam numa dada situação, sendo necessário continuar a procurar
alternativas. Em vez de uma opção metodológica inequívoca, preferi arriscar na
especificação do quadro conceptual e ir ensaiando para cada nível de
complexidade uma proposta metodológica que considerei adequada.
No contexto do paradigma interpretativo, o objecto de análise é formulado em
termos de acção – uma acção que abrange o comportamento físico e os
242
significados que lhe atribuem o(s) actor(es), centrando-se o trabalho do
investigador na variabilidade das relações comportamento/significado e
visando, ao nível do pólo teórico, a descoberta de «esquemas específicos de
identidade social de um dado grupo» (Erickson, 1986:132).
A investigação interpretativa sublinha assim, uma família de abordagens que
partilha um interesse fulcral pelo «significado» conferido pelo (s) actor (es),
entendendo-se esse significado como o produto de interpretação que
desempenha um papel chave na vida social. Assim, o principal interesse desta
investigação não poderia ser o de efectuar generalizações, descobrir leis ou
frequências dos fenómenos, mas antes particularizar e compreender os
sujeitos e os fenómenos ou experiências, como sendo únicos e singulares.
Para tal, contribuem algumas características da investigação em Educação:
• o objecto, o sistema de pertença e o sistema de finalidades, constituem um
universo interatuante, que se interliga também com o contexto, ou seja, a
instituição. O objecto é assim definido a partir do conjunto de práticas que
dizem respeito ao acto educativo;
• o problema da definição do estatuto dos conhecimentos produzidos em que
se entende que os conhecimentos são sempre situados, fazendo parte de
paradigmas. Esta característica, tão mais importante quanto se sabe que
estes conhecimentos não se assemelham aos conhecimentos científicos de
cariz cumulativo faz com que a confrontação dos resultados da pesquisa
seja, muitas vezes, uma confrontação de visões do mundo e de concepções
de educação, e não um confronto de resultados;
• a implicação do investigador, que é simultaneamente ‘libidinal’, institucional
e das próprias metodologias utilizadas;
• o objecto da investigação em Educação inscreve-se sempre numa «ordem
temporal» que nos permite evidenciar que estamos perante um tipo de
‘Epistemologia da escuta’. Diz Berger que, quando nos colocamos numa
posição de escuta envolvemo-nos na temporalidade dos fenómenos e que
nos tornamos sensíveis: “Trata-se de uma ordem que não é produzida por
aquele que escuta, que ele não domina, de uma ordem irreversível que o
243
faz assistir ao desenvolvimento progressivo de um conjunto de
acontecimentos” (1992: 34);
• a noção de sentido. Se uma dada situação educativa se desenvolve no
tempo e no espaço e se, simultaneamente, o que a caracteriza é o facto de
ela não ser apenas aquilo que se dá a entender ao investigador, mas
também um conjunto de sentidos que tem para aqueles que nela estão
envolvidos, então, o sentido da situação é um dos elementos que deve ser
apreendido para que o próprio investigador possa dar-lhe sentido.
Estas características não invalidam a cientificidade da investigação em
educação; pelo contrário, apenas aconselham uma prudência e um rigor
especiais, até por estar em presença de um objecto pleno de complexidade e
multidimensionalidade, não abordável de forma desdobrada ou parcelar.
Alguns autores, podem utilizar definições muito estritas de ciência,
considerando apenas como científica a investigação dedutiva e de teste de
hipóteses. Contudo, hoje em dia, uma parte significativa da atitude científica
passa por “uma mente aberta no respeitante ao método e às provas” (Bogdan e
Biklen, 1994: 64).
Do ponto de vista conceptual ainda tenho presente a dicotomia entre uma
posição mais tradicional (na qual me formei) que defende que uma das funções
desempenhadas pelas metodologias é a de construir uma aparelhagem que
vai, em simultâneo, proteger o investigador do ‘transfert’ que o outro faz sobre
ele e protegê-lo do ‘contra-transfert’ (isto é, da forma como ele reage à
interpelação do objecto de investigação) e uma outra posição que defende, no
quadro do método biográfico e do seu paradoxo epistemológico, a
subjectividade como uma legítima via de acesso ao conhecimento científico de
um sistema social, partindo da interacção social ocorrida nas entrevistas.
Ferrarotti defende, sobre esta questão que:
“… uma narrativa biográfica é uma acção social pela qual um indivíduo retotaliza sinteticamente a sua vida (a biografia) e a interacção social em curso (a entrevista), por meio de uma narrativa-interacção… A narrativa biográfica narra uma interacção presente por intermédio de uma vida” (1979:54).
Será ainda necessário aprofundar as diferenças entre os paradigmas
interpretativo e compreensivo, sobretudo na tentativa deste último privilegiar
244
linguagens que se afastam da «importação» dos métodos das ciências naturais
para as ciências humanas.
Tendo em vista a validade alargada às diversas fases da investigação,
considera-se que a proximidade entre o investigador e o meio em estudo
deverá ser estabelecida logo na fase de determinação da problemática da
investigação, assegurando uma adequada «triangulação». Entendo por
«triangulação», o processo de «validação instrumental» efectuado por meio de
uma confrontação de dados obtidos a partir de várias técnicas e por «validação
teórica» o confronto das inferências feitas relativamente a um mesmo
problema, quer entre os vários investigadores, quer entre o investigador e os
indivíduos entrevistados (Gaultier, citado em Ledssard-Hébert at al, 2005).
Num quadro conceptual multirreferenciado, procurei englobar os conceitos
teóricos de partida numa filiação em conjuntos teóricos que fossem permitindo,
à medida que se vai processando a análise de dados (referentes ao objecto
num «contexto de descoberta»), fazer escolhas e construir um quadro de
análise progressivamente elaborado através de um incessante questionamento
de dados e de referências.
A propósito da distinção entre abordagens que privilegiam o contexto de
descoberta e abordagens que privilegiam o contexto de verificação de
hipóteses, há a ideia por parte de posições críticas da perspectiva da
descoberta de que pelo menos algumas das descobertas das ciências sociais
são ilusórias e que as conclusões baseadas nelas são uma mera reafirmação
dos compromissos ideológicos dos investigadores; mas também existe a
perspectiva de que estes métodos permitem ao investigador fazer perguntas
que se baseiam nos factos estudados, e não nos pré-conceitos do investigador.
Como «práctica-investigadora» não posso deixar de referir que este processo
de investigação tem sido um processo de uma contínua resolução de
problemas, onde se põe continuamente à prova o referencial de partida, bem
como as estratégias metodológicas e o processo sobre o «como se faz» e o
«como se diz o que se faz» da investigação.
245
4.2.OPÇÕES E ESTRATÉGIA METODOLÓGICA
A ciência moderna tornou possível a primeira ruptura epistemológica e com
base nela separou-se do senso comum existente – o que constituiu uma matriz
racional-científica que se tornou dominante como modo de explicação do
mundo, da vida e das sociedades.
No entanto, uma vez realizada essa ruptura, diz-nos Sousa Santos, o acto
epistemológico mais importante é romper com ela e fazer com que o
conhecimento científico se transforme num «novo senso comum». Para isso é
preciso, contra o «saber», criar «saberes» e, contra os saberes, «contra-
saberes» (2002:93).
Esta noção dialéctica de «saber (es)» que se renova numa dinâmica a favor da
multiplicidade de «saberes» e «contra-saberes» é algo que marca
profundamente este processo de aprendizagem e explicitação, na linha do que
Stoer e Magalhães (2005) defendem como a existência de uma estreita
consonância paradigmática entre o saber científico acerca das coisas e a
necessidade de as governar.
A partir de um conjunto de autores que reflectem sobre a transição entre
paradigmas, seleccionei a distinção que Boaventura Sousa Santos (2002) faz
entre a “transição epistemológica” e a “transição societal”, assumindo que esta
última é bastante mais recente e complexa e entendendo por paradigma
«maneiras de pensar ou pautas» para a investigação que, quando utilizadas,
podem conduzir ao desenvolvimento de uma teoria. É nesta transição societal
e paradigmática que me mobilizo para a investigação e para o agir, como
profissional e como cidadã, situando-me num território conflitual entre
diferentes «pautas» para a investigação e diferentes modos de pensar o
desenvolvimento social.
Apesar da grande diferenciação interna de cada um dos paradigmas e da
existência de um conflito social e político sustentado por grupos e interesses
organizados, ainda que com poder e organização muito desiguais, situo-me na
linha do pensamento emergente, querendo com isso significar que:
“…para o paradigma emergente o objectivo central é lutar contra o apartheid identitário e cultural que o paradigma dominante pressupõe e tem vindo a
246
desenvolver constantemente. (...) no espaço-tempo mundial o conflito paradigmático é entre o paradigma do desenvolvimento desigual e da soberania excludente e o paradigma do desenvolvimento democraticamente sustentável e da soberania reciprocamente permeável” (Santos, 2004:293)
Em concomitância, o paradigma da complexidade (cf. Morin, 1991 [1973])
permitiu-me respondeu ao desafio de integrar diferentes perspectivas,
albergando a importância da compreensão dos fenómenos no seu contexto e
na ligação à vida, a partir da tecelagem de uma família de abordagens.
A abordagem fenomenológica, através da qual se tenta compreender o
significado que os acontecimentos e interacções têm para pessoas vulgares,
em situações particulares, acreditando que temos à disposição múltiplas
formas de interpretar as experiências, em função das interacções com os
outros e que a realidade não é mais do que o significado das nossas
experiências (Bogdan e Bilklen, 1994). Numa abordagem como esta são
privilegiados os dados experienciais, por serem eles que fornecem as
informações mais complexas relativamente aos significados próprios dos
indivíduos – e é entendido «indivíduo» como um «universo singular», um
homem «totalizado» e «universalizado» pela sua época, que e retotaliza,
reproduzindo-se nela enquanto singularidade.
A abordagem da interacção simbólica confere primazia às interacções
indivíduos – mundo, encontrando-se também a asserção de que a experiência
humana é mediada pela interpretação, sendo todo o significado atribuído,
pressupondo que o indivíduo possui uma certa liberdade de acção que o
distancia do determinismo social. Esta abordagem, da qual Margeret Mead é
uma autora de referência (também ligada à Escola de Chicago, onde leccionou
até ao início dos anos 30 e autora do primeiro trabalho de etnografia da
educação que põe a tónica no ensino e na aprendizagem fora da escola)
aborda a educação como processo social.
O construtivismo social, na linha de Vygottsky, L. (1978) estabelece que todos
somos participantes naquilo que observamos e aprendemos, tomando o que
cada um observa como parcial, subjectivo e participativo. A epistemologia
construtivista de Piaget (na sequencia da qual surge o construtivismo social)
questionou os conceitos de verdade, objectividade e realidade como
247
fundamento das visões e do conhecimento do mundo, privilegiando um
entendimento oposto ao behavorismo, em que o desenvolvimento das pessoas
é realizado por processos de aprendizagem activos. A «verdade» e a
«realidade», nesta perspectiva, estão relacionadas com uma construção social
e consensual que resultam viáveis para as práticas que orientam ou guiam
essas «construções». O papel da «cultura» e do «pensamento crítico» no
desenvolvimento das pessoas são dois factores explorados nesta abordagem,
que é muito próxima da Teoria da Aprendizagem Social.
Nesta tentativa de explicitação e posicionamento será ainda importante
diferenciar construtivismo social de construcionismo social (na linha do
precursor da Psicologia Social, Kenneth Gergen), salientando que o primeiro se
foca na aprendizagem individual entendida como processo resultante da
interacção com o grupo e o segundo se foca nas aprendizagens colectivas.
A propósito das contribuições do construcionismo social para a Psicologia e,
nomeadamente para o estudo do género fiz, a título de exemplo, uma relação
com o trabalho de Conceição Nogueira (2001, 2005) e achei interessante a
forma como esta autora questiona a cientificidade da Psicologia. Utilizando
uma perspectiva pós-modernista e afirmando que o construcionismo social se
alimenta de um conjunto amplo de influências e de disciplinas científicas, a
autora critica a neutralidade política da Psicologia e assume que a construção
social dos factos psicológicos através de meios humanos torna possível
imaginar a sua reconstrução de formas mais libertadoras e a um nível social
mais amplo.
O pós-modernismo permite, na sua «leitura» uma atitude de compreensão em
relação às grandes teorias ou meta-narrativas e, em simultâneo, questionar e
rejeitar a ideia de verdade última e enfatizar o pluralismo e a coexistência de
uma multiplicidade e variedade de formas de vida dependentes das situações.
De facto, esta posição crítica que nos dá conta do fim das grandes narrativas e
do conhecimento fornecido como «verdade», sugere que as categorias com
que se apreende o mundo não se referem necessariamente a divisões «reais»
e permite «misturar» autores e disciplinas, ligando-os numa espécie de
«parecença familiar» (Burr, 1995), por mais que a sua origem seja distinta.
248
Desenham-se assim, compreensões do mundo e de cada pessoa no singular
como artefactos sociais, produtos de inter - relações entre as pessoas, com a
sua especificidade histórica e cultural. Embora sinta falta da análise das
estruturas sociais, mesmo que consideradas como «artefactos», é muito
sedutora a análise que esta abordagem faz, entre outros aspectos, da
«linguagem», das «construções do mundo», das «relações de poder» e do
«pluralismo».
Da pertença às Ciências da Educação
No campo das Ciências da Educação, constrói-se hoje a articulação entre o
social e o psicológico, através da apreensão de trajectórias individuais e
colectivas, encaradas simultaneamente como uma história colectiva e como
uma história individual (Berger, 1992: 36) – o que foi desde cedo neste
percurso, uma perspectiva de entrada, quer para colocar a questão de partida,
quer para interpretar o material empírico recolhido.
As diferentes pertenças compõem um puzzle onde, como refere E. Morin
(2003), a «consciência do multidimensional» conduz-nos à ideia de que
qualquer visão parcelar e unidimensional, é pobre.
“Num sentido, diria que a aspiração à complexidade traz nela a aspiração à completude, uma vez que se sabe que tudo é solitário e tudo é multidimensional. Mas, num outro sentido, a consciência da complexidade faz-nos compreender que não poderemos nunca escapar à incerteza e que não podemos nunca ter um saber total” (Morin, 2003:100).
Bourdieu (1992) por sua vez, entendia que o objecto próprio das ciências
sociais não é nem o indivíduo nem os grupos sociais enquanto conjuntos
concretos de indivíduos, mas antes a relação entre os dois no processo
histórico. E fala até de um «politeísmo metodológico» para contrapor à
sofisticação técnica dos usos metodológicos, mas também ao seu uso
irreflectido, destinado a camuflar o vazio criado pela ausência duma visão
teórica.
“Com efeito, as escolhas técnicas, as mais “empíricas”, são inseparáveis das escolhas de construção do objecto, as mais “teóricas”. É em função duma certa construção do objecto que tal método de aferição, tal técnica de recolha ou de análise de dados, etc., se impõe” (Bourdieu, 1992: 197).
249
Esta opção metodológica «composta» segue assim «entre» as abordagens
micro e macro sociológicas: a primeira, inspirada no «fenómeno social total» de
Marcel Mauss que enfatiza a nossa vida quotidiana e o «acontecimento que
nos toca» e a segunda, onde o Movimento da Educação Permanente e os
conceitos de Autoformação e Competência fazem um cruzamento de
perspectivas (com muitas outras já descritas).
A separação fundadora do olhar científico entre sujeito e objecto está
contextualizada como condição da ciência mas, é também condição política
que atribui lugares, quer ao objecto, quer ao sujeito do conhecimento. Neste
ponto mobilizo a perspectiva de Stoer e Magalhães para referir a necessidade
de “uma humildade epistemológica e política mais consentâneas com aquilo
que reflexivamente vamos sabendo acerca de nós e dos outros” (2005:10).
Estas possibilidades de entendimento sobre outras formas de conceber o
conhecimento (diferentes na sua «apropriação», «aquisição», «aplicação» …) e
a sua relação com aqueles que o constroem, constituiu neste processo um
perigo e uma sedução – uma sedução pela inovação (pelo menos para mim) da
possibilidade de sair da «fôrma» positivista e tentar construir um percurso
metodológico próprio; e perigo, porque o receio do desconhecido é grande e
existem riscos acrescidos de perda de rigor e de queda no senso-comum, a
que é preciso estar sempre vigilante. Por outro lado, o percurso por este
caminho desconhecido tinha/teve/tem tantos cruzamentos, troços com muitos
sinais e outros sem sinal nenhum, atalhos, acidentes, referências que ajudam e
outras que distraem e enganam, que torna muito difícil seguir o rumo, chegar a
algum lado e, sobretudo contar como foi o percurso.
Mas neste caminho e neste cruzamento de perspectivas pode admitir-se que a
investigação em Ciências Sociais tende a ser um trabalho de reelaboração, de
reinterpretação de um conjunto de fenómenos que todos nós experienciámos,
se não no modelo tributário do modelo dominante das Ciências ditas Naturais,
pelo menos no modelo que, admite ser a tarefa do investigador (como a tarefa
de construção do saber) a de ir buscar junto daqueles que sabem, o discurso
de que são portadores (Berger, 1992). O papel das Ciências Sociais e, em
particular, o das Ciências da Educação, diz-nos este autor seria, em última
250
análise, trabalhar o saber de que as pessoas são portadoras, e não, o de
produzir saberes sobre as pessoas «coisificadas» que elas não seriam capazes
de saber.
Sobre a cientificidade da metodologia utilizada, recorro mais uma vez ao
trabalho de Rui Canário (2003), que identifica três questões fundamentais: i) a
questão das fronteiras - a especificidade do conhecimento científico? ii) a
questão da identidade - a fronteira entre o natural e o social?; iii) e a questão
da pertinência - a diferenciação das ciências da educação das ciências sociais.
Quanto à primeira, é assumido pelo autor que são duas as características que
permitem distinguir o conhecimento científico de outras formas de
conhecimento: o primado da teoria e a existência de um método consistente,
explicitado e permanentemente sujeito a revisão crítica. E como não existe um
critério único de cientificidade, fica ao critério de cada domínio disciplinar
elaborar os seus próprios critérios de cientificidade, embora com o respeito
pela permanente e rigorosa explicitação, por parte dos investigadores do que
fazem, como o fazem e por que o fazem.
Neste âmbito, as ciências da educação, o serviço social, ou a ciência em geral,
apresentam-se como variáveis históricas, onde através de um processo
histórico se deu origem às respectivas comunidades científicas, com os seus
mecanismos de regulação interna.
Quanto à segunda, a questão da identidade, permite-nos explicitar a existência
de vários critérios de cientificidade. A partir deste pressuposto deixa de fazer
sentido o debate sobre a cientificidade das ciências sociais e sobre o estatuto
epistemológico das ciências da educação (ou do serviço social), pois ele
decorre do pressuposto da superioridade do modelo positivista, da existência
de um critério único de cientificidade e da hierarquização das várias disciplinas
em função do seu hipotético ‘atraso’. Como refere Boaventura Sousa Santos
(2003), a distinção dicotómica entre ciências da natureza e ciências sociais
deixou de ter sentido e utilidade; a ciência pós-moderna é uma ciência
assumidamente analógica.
“Já mencionei a analogia textual e julgo que tanto a analogia lúdica como a analogia dramática, como ainda a analogia biográfica, figurarão entre as características matriciais do paradigma emergente: o mundo, que hoje é natural ou social e amanhã será ambos, visto como um texto, como um jogo, como um palco ou ainda como uma autobiografia. (...) Jogo, palco, texto ou biografia, o mundo é
251
comunicação e por isso a lógica existencial da ciência pós-moderna é promover a ‘situação comunicativa’ tal como Habermas a concebe” (Santos, 2003: 37 - 53)
No que respeita à terceira, a questão da pertinência da diferenciação das
ciências da educação (e/ou do serviço social) das ciências sociais, ela é
marcada por uma «ambiguidade epistemológica». Por um lado, inscreve-se no
movimento de traçar fronteiras entre as várias ciências sociais e, por outro, na
dificuldade em manter a suposição de que os objectos preexistem às
disciplinas e podem ser compartimentados e constituídos para a pesquisa.
“Esta tensão interna supõe a compreensão dos fenómenos sociais como totalidades e a aceitação de que as ciências sociais não estudam a realidade em si, ou fragmentos dela, mas sim objectos científicos, construídos pela própria actividade investigativa, na tentativa de reconhecer que o conhecimento fecundo de uma realidade social una apela a uma diversidade de abordagens, ou seja, de pontos de vista, na qual as ciências da educação participam” (Canário, 2003: 7).
Na perspectiva deste autor, e na medida em que a exaustividade está excluída,
o estabelecimento de fronteiras entre as disciplinas passa a ser um problema
menor relativamente ao problema da realização de «cortes» que podem ser
mais ou menos pertinentes e fecundos; sendo defendido que estes «cortes»
ganharão em ser feitos por referência ao problema a estudar e menos por
respeito às fronteiras estabelecidas.
Esta óptica institui a oportunidade de “reconceptualizar a abordagem do social
multiplicando a possibilidade de olhares multireferenciais” (Canário, 2003: 14) e
coloca as ciências da educação (e porque não o Serviço Social?) como
campos disciplinares que podem ser definidos como situando-se na «interface
de imperativos de ordem profissional e de ordem científica».
Este «interface» que, arriscaria a dizer, já é um território conhecido dos
assistentes sociais na mobilização para a acção, ainda não tem «nomes» ou
ainda tem poucos «nomes» quando se trata de explicitar percursos de
investigação. Coloco a hipótese de que radique aí uma das maiores
dificuldades de afirmação científica e de legitimidade desta profissão. Como
dizia uma colega que entrevistei neste processo, a propósito do trabalho que
desenvolvia com idosos numa determinada etapa do seu percurso profissional:
“Ainda hoje estava a falar com as minhas colegas ao almoço e elas diziam que as pessoas portuguesas não tinham consciência do que era o fascismo e do que era a ditadura, porque as minhas colegas nasceram em liberdade, depois do 25 de Abril e eu disse: - Sim, as pessoas portuguesas tinham total consciência do que
252
era o fascismo e do que era a ditadura, porque eu trabalhei em Samora Correia e eu tinha 60 «livros», que eram enciclopédias. Eu sentava-me ao lado dos idosos, com um caderno a escrever tudo, tudo, tudo, o que eles me diziam. E cada dia, ou ia para o chão, para o pé dos joelhos de um, ou ia para o braço da poltrona para o pé de outra (não era comum os assistentes sociais abraçarem e beijarem as pessoas), e eu adorava abraçar e beijar aquela gente, fazer-lhes festinhas e dizer-lhes: - Vocês são heróis! E eles diziam: - Coitadinha dela... Oh, filha, toda a gente sabe isto. Porquê que escreve? E eu dizia: - Não, não sabe. A vossa história está para fazer. Porque eu vim do País que diziam que era colonial e que escravizava as pessoas (é verdade que eu vim de um País colonial, é verdade que havia escravatura) mas aqui a escravatura era muito pior e vocês não tinham nomes para as coisas. Não davam nomes às coisas. Eu escrevi vidas dos idosos que trabalhavam nos arrozais das 6 da manhã às 7 da tarde, que trabalhavam na apanha da azeitona e que ficavam 4 e 5 meses longe da família, que iam para o sobreiro, que iam para a cortiça, que iam para o castanheiro, que iam para a ceifa. As pessoas eram arrematadas ao sábado de manhã, na praça pública. E quem não se apresentasse na praça pública, a polícia ia buscá-lo a casa e ia preso. As mulheres eram separadas para um pavilhão e dormiam no chão e os homens ficavam noutro pavilhão e dormiam no chão; e comiam meia fatia de broa e uma azeitona. Isto é anos 70, não é século XIX!” (Isaura/IV6)
Esta citação pretende ajudar a clarificar esta analogia de que «nós» (os
assistentes sociais) como «eles» (as pessoas com quem trabalhamos)
partilhamos a dificuldade de nomear e de valorizar o que experienciámos, o
que aprendemos com essas experiências e qual o contributo que a explicitação
dessas experiências pode ter para os outros e para a sociedade em geral. Este
excerto revela também como esta questão de «nomear» o nosso conhecimento
se relaciona com a percepção do poder que achamos que temos ou que não
temos.
Não gostaria de terminar este ponto sem falar do conceito de «ontologia social»
que aprofundei em Stoer e Magalhães (2005) e que nos remete para o modo
como, em diferentes contextos temporais, as relações sociais são vividas,
concebidas e explicadas/compreendidas no sentido de entendermos o que é
uma relação social e a sua legitimidade.
Para estes autores, desde o senso comum às ciências sociais que um dado
tipo de ontologia social está presente na organização dessas relações, ora
como «facto social» ora como «ordem social desejável». Neste percurso a
tentativa de desconstrução e co-construção dos vários tipos de ontologia social
que fui percebendo, foram absolutamente marcantes no meu percurso de
aprendizagem e na abertura de possibilidades reflexivas.
253
4.3 Desenho da investigação de inspiração
biográfica
Reconhece-se hoje que pode haver ciência do particular e do subjectivo, por
vias não positivistas e muitas vezes, paradoxais e crípticas, que resultem num
conhecimento que faz parte de um conhecimento científico geral. A propósito
da inspiração biográfica utilizada, identifico o que Ferrarotti refere sobre o
método biográfico:
“Subjectivo, qualitativo, alheio a todo o esquema hipótese - verificação, o método biográfico projecta-se à partida fora do quadro epistemológico estabelecido das ciências sociais. A sociologia não aceitou o desafio que lhe era lançado por esta diversidade epistemológica, e fez tudo para reconduzir o método biográfico para o interior do quadro tradicional. (...) por meio de um duplo desvio epistemológico e metodológico, procurou-se utilizar o método biográfico, anulando completamente a sua especificidade heurística” (1979:67).
O modelo de racionalidade positivista que ainda preside à Ciência convive com
um paradigma emergente, no sentido que Boaventura Sousa Santos (2002) lhe
atribuiu, que permite acolher numa outra concepção epistemológica a
autoformação, as histórias de vida e o método biográfico. Ainda segundo este
autor, o paradigma emergente que denomina “paradigma de um conhecimento
prudente para uma vida decente” utiliza quatro princípios sobre o
conhecimento: i) o conhecimento científico-natural é científico-social; ii) o
conhecimento é local e total; iii) o conhecimento é auto-conhecimento; iv) o
conhecimento científico visa constituir-se em senso comum.
Nesta perspectiva, a «crise do paradigma dominante» propicia uma reflexão
epistemológica sobre o conhecimento científico assente no questionamento do
conceito de lei e causalidade e na supremacia da forma (o conteúdo do
conhecimento assume maior relevância), o que revela uma atitude crítica
quanto à epistemologia sociológica marcada por características como: a
objectividade - recorda-se que os sectores mais críticos da sociologia põem em
causa a separação sujeito-objecto, desenvolvendo esforços para reintegrar o
observador no ‘framework’ epistemológico da sociologia, negando a
passividade «coisificada» que o método atribui à «coisa social»; e a
intencionalidade nomotética - a pesquisa das ‘leis sociais’ confrontou-se com
críticas crescentes que sublinham a inutilidade heurística e o formalismo
254
dessas leis, afirmando a historicidade imanente a todo o facto social e a sua
especificidade irredutível.
Esta posição crítica constitui uma oportunidade de (re) valorização do método
biográfico. Segundo Ferrarotti (1979), a especificidade deste método implica
ultrapassar o trabalho lógico-formal e o modelo mecanicista que caracteriza a
epistemologia científica estabelecida; e acrescenta se devem procurar os
fundamentos epistemológicos na razão dialéctica capaz de compreender a
«praxis» que governa a interacção entre o indivíduo e o sistema social, e
construir modelos caracterizados por um permanente ‘feedback’ entre todos os
elementos, modelos «antropomórficos» que não podem ser conceptualizados
pelo tipo de razão analítica ou formal.
Apesar do método já não ser novo (teve grande desenvolvimento nos trabalhos
da Escola de Chicago), situa-se numa encruzilhada da investigação teórico-
metodológica das ciências do homem e ainda subsiste o argumento de que os
trabalhos de investigação que o utilizam revelam por vezes, um
empobrecimento da biografia, traduzido frequentemente na sua redução a um
conjunto de materiais biográficos sobrepostos, a uma justaposição de
informações, a uma «fatia de vida» social utilizável como exemplo, caso ou
ilustração, num quadro interpretativo situado a um nível mais elevado de
abstracção e, mais do que isso, a uma «presença ausente» do observador.
Contudo, o novo paradigma que emerge da prática das histórias de vida em
formação, como refere Josso, apresenta-se como o deslocamento para uma
posição meta disciplinar na qual a busca de um «saber-viver» ou a procura de
uma sabedoria tenta uma reintegração operante dos conhecimentos no seio da
nossa existencialidade. “Esta arte de viver em ligação e partilha (…), consigo
mesmo, com os outros e o nosso universo, pode ser encontrada de muitas
maneiras” (Josso, 2002:119).
Apesar da pluralidade de possibilidades, faz muito sentido a formação como
processo de mudança que está, segundo esta autora, intimamente ligada:
“… à arte do tempo: arte de viver o seu tempo, arte de utilizar o seu tempo de vida a realizar com as experiências que nos demos a viver ou que nos foi dado viver, com ou sem o nosso conhecimento das temporalidades específicas, singulares, convencionais” (Josso:2002:119).
Com estes pressupostos, o projecto de investigação foi desenhado desde o
início para poder contar com a análise das narrativas produzidas pelos próprios
255
assistentes sociais como principal fonte de dados a privilegiar na co-construção
de conhecimento.
O pólo técnico de um processo de investigação corresponde à instância
metodológica segundo a qual se recolhem dados sobre o mundo ‘real’ e para
estabelecer uma articulação entre o mundo empírico e o quadro teórico de
referência. A recolha de dados implicou opções teóricas e selecções
inevitáveis, onde a observação nunca foi neutra e implicou uma mediação por
parte da investigadora e dos instrumentos e ferramentas usados para recolher
e registar os dados.
A eleição da narrativa biográfica, produzida numa situação dialógica,
pressupõe um trabalho de explicitação, constituindo:
“…uma ocasião de se explicar, no sentido mais completo do termo, quer dizer, de construir o seu próprio ponto de vista sobre si-mesmo e sobre o mundo e de tornar manifesto o ponto, no interior deste mundo, a partir do qual se vê a si mesmo e ao mundo, tornando-os compreensíveis, justificados, e antes de mais para si mesmos” (Bourdieu, 1993: 1408).
Uma acepção que considerei relevante, foi a de que as entrevistas pudessem
ser de utilidade mútua (para mim e para as pessoas entrevistadas) e só
lamento que o tempo possível para dedicar a esta investigação não tenha
permitido uma proximidade e troca mais continuadas, após o processo de
«marcação/recolha/devolução da transcrição/aprovação» das narrativas a
utilizar. Neste âmbito, é necessário mencionar alguns aspectos dos
procedimentos de recolha e tratamento das entrevistas de inspiração
biográfica. A entrevista é/foi assumida como uma interacção que produz
conhecimento a dois, na medida em que privilegia a intersubjectividade entre
entrevistadora e entrevistados. Durante a realização da entrevista
ocorrem/ocorreram relações sociais onde se denotaram papéis, expectativas,
normas e valores, ainda que, por vezes, apenas implícitos. Deste modo,
estiveram subjacentes tensões, conflitos, hierarquias de poder e reacções de
defesa. As formas e conteúdos da narrativa do entrevistado “variam consoante
o interlocutor e dependem do tipo de interacção que se estabelece entre
ambos” (Ferrarotti, 1979: 29) e como refere a entrevistada Maria/RA 2:
“Para mim foi muito bom ter feito este percurso para trás contigo, porque se fosse com outra pessoa, não teria feito tão bem. Não sei se fiz bem. Mas pelo menos, a mim soube-me muito bem. Mas tenho a certeza que se fosse com outra pessoa que não tu, não seria da mesma maneira”.
256
Na entrevista biográfica é/foi possível identificar ‘momentos charneira’, ou
momentos de viragem e a partir desses momentos tentar determinar o que foi
formador para os indivíduos (Josso, 1989). Quanto às entrevistas realizadas
cumpriram a função de revelar determinados aspectos do fenómeno estudado
e completar as pistas de trabalho sugeridas pelas leituras, por isso foi
importante que decorressem de forma aberta e flexível, com hipótese de
descobrir novas maneiras de colocar as questões (os guiões das entrevistas
encontram-se em anexo) e de ensaiar ideias e procedimentos, num contexto
muito rico de interacção humana.
O guião (A) utilizado para realizar as primeiras entrevistas estruturou-se com
uma questão de partida - Como foi o seu percurso profissional e o que nele foi
mais significativo/formador para si? Entendida como geradora da conversação
e algumas questões que pretendiam orientar para sub-questões que me
interessava abordar (formação inicial, formas identitárias, representação de
futuro (s) profissional, conciliação família/trabalho e projectos de futuro
pessoal/profissional).
No segundo guião (B) utilizado em seis entrevistas, mantive a questão de
partida para lançar a orientação da entrevista mas incluí outras questões que
com aquele «sub-grupo» e, na etapa em que me encontrava, fazia sentido
acrescentar, tal como, a história da escolha da formação, a produção escrita
dos assistentes sociais, a relação entre a academia e o campo profissional ou a
«feminização» da profissão). Estas questões foram abordadas de diferentes
maneiras e introduzidas na conversa quando o diálogo o permitiu, tentando não
cortar o fio condutor do raciocínio do entrevistado. Por último, senti a
necessidade de inserir, sobretudo com as pessoas com quem estava menos
familiarizada, uma questão final que pretendia dar espaço para abordarem algo
a que dessem importância e que não tivesse surgido no decurso da entrevista.
No terceiro e último instrumento utilizado junto de cinco pessoas – Questionário
(C) (ver anexo), as questões foram colocadas em forma de pergunta aberta,
porque apesar de ter um conhecimento prévio dos sujeitos envolvidos, não
existiu interacção face-a-face. Também senti necessidade de realizar
previamente com cada participante um enquadramento que contextualizasse
do ponto de vista epistemológico este processo de investigação e o
questionário enviado.
257
Tenho consciência que a utilização deste instrumento, de uma forma e num
contexto de pesquisa que não são os seus, foi um risco. Mas a decisão de
assumir este risco, mobilizando um instrumento de outro quadro epistemológico
e de o utilizar de forma não convencional foi pesada entre argumentos de
«utilidade» (apresentou-se como uma forma útil para recolher narrativas de
assistentes sociais que estavam fora do meu alcance geográfico e/ou temporal)
e «pertinência» (na mesma linha das entrevistas, apresentou-se como uma
outra forma possível de colocar aos actores um desafio reflexivo que
contribuísse em simultâneo para a pesquisa e para a sua própria reflexividade
– aliás, o que foi mencionado por alguns daqueles que responderam ao
questionário).
Apesar do peso estrutural das catorze entrevistas e dos cinco questionários na
pesquisa empírica, foi realizada sempre que necessário uma pesquisa
documental e estatística nos dispositivos acessíveis através das tecnologias de
informação, em consultas tradicionais em variadas bibliotecas e nas fontes
documentais das instituições colectivas da profissão.
No processo de recolha empírica, a utilização de diário de campo também foi
um instrumento que permitiu, através do registo, ‘não esquecer’ e constituir um
material de abertura reflexiva e de auto - consciencialização.
A opção pelo uso de diário de campo durante este processo de investigação
constitui um meio de registo que considerei importante e onde incluí o registo
de factos, acontecimentos, reflexões e interpretações decorrentes da
interacção com os sujeitos entrevistados.
Assumindo todas as margens de subjectividade, e dado o objecto que me
proponho investigar, pareceu-me um instrumento adequado para captar a
dimensão auto-biográfica e auto-formativa deste processo de investigação,
embora reconheça a impossibilidade de realizar uma adequada análise de
conteúdo.
“O conhecimento pós-moderno, sendo total, não é determinístico, sendo local, não é descritivista. É um conhecimento sobre as condições de possibilidade. As condições de possibilidade da acção humana projectada no mundo a partir de um espaço-tempo local” (Sousa Santos, 2003:48).
Esta citação foi inspiradora para me ajudar a assumir que no decurso da
investigação, a dimensão de auto-conhecimento também esteve/está presente,
e a perspectiva que tenho procurado construir tem a ver com a pessoa que
258
sou, na intersecção do meu espaço-tempo psicológico, familiar, profissional,
histórico e social. E a inspiração no trabalho biográfico permitiu uma mediação
que me levou a trabalhar com narrativas, constituídas por recordações de
experiências tidas como significativas nos processos de aprendizagem, com a
evolução nos percursos socioculturais e das representações que construímos
de nós próprios e do meio envolvente (Josso, 2002).
Os tempos e as «fases» das diferentes «conversas»
Foram dezanove os/as assistentes sociais, actores «do» e/ou «no» campo
profissional, que colaboraram nesta investigação, mas foram muito mais as
«conversas» partilhadas em torno do objecto de investigação.
A entrevista de inspiração biográfica processou-se, como já referi, num quadro
dialógico que exigiu uma escuta activa e respeitadora da argumentação e da
sequência narrativa do entrevistado e exigiu também “…a formulação de um
contrato de confiança, no momento em que se pede a uma pessoa para nos
contar aspectos da sua vida” (Cavaco, 2002: 50), pelo que se tornou imperioso
respeitar preceitos ontológicos e metodológicos. Não obstante, enquanto
interacção e troca verbal, as entrevistas foram sobretudo «conversas»
(Demazière, Dubar, 1999: 227).
Os tempos e as «fases» que marcaram estas conversas e as interacções que
permitiram recolher as narrativas não foram lineares: as entrevistas aos
diferentes assistentes sociais (identificados com nomes fictícios) deste
processo de investigação foram marcadas por quatro «fases», distinguidas
sobretudo (e à posteriori) pela segmentação de critérios e tempos de recolha:
• uma «fase» exploratória, que decorreu de Março de 2006 a Janeiro de
2007, marcada por várias entrevistas a três actores – António (AF1), Maria
(RA2) e Helena (HS3), escolhidos por critérios de tipicidade;
• uma «fase» subsequente, que decorreu de Fevereiro de 2007 a Junho de
2009, foi marcada pelo mesmo conjunto de critérios de tipicidade,
beneficiando e aprofundando a experiência adquirida na «fase»
exploratória, e permitiu recolher entrevistas de mais seis trabalhadoras
sociais – Sofia (ZC4), Fernanda (FCR5), Inês (IV6), Filomena (FA7), Ana
259
(TA8) e Isaura (IC9). Destes actores, resultaram apenas cinco narrativas
disponíveis, já que Isaura não consentiu a utilização do material recolhido.
As duas primeiras fases tiveram como critérios de tipicidade na selecção dos
assistentes sociais a entrevistar: i) a longevidade do percurso profissional (de
vinte ou mais anos); ii) a variedade de contextos/públicos da actividade
profissional; iii) a relação de proximidade e conhecimento prévio de parte do
percurso profissional que facilitasse o «contrato de confiança» com a
investigadora.
• uma «fase» marcada pelo interesse em «ouvir» assistentes sociais que
tinham em comum o curso de formação inicial e que decorreu de Janeiro a
Julho de 2009. Nesta «fase» entrevistei seis assistentes sociais – Jaime
(JF10), Irene (IS11), Filipa (AR12), Paulina (PS13), Cristina (TS14), Diana
(AF15). Na selecção do curso de formação, optei pelo curso de 1985/90,
porque foi o primeiro curso de cinco anos de formação que produziu
«doutores», ou seja, licenciados reconhecidos, que tem peso em termos
simbólicos. Todavia, foram encontradas algumas dificuldades: i) a obtenção
da listagem de alunos do curso de formação seleccionado (processo muito
demorado por dificuldades de acesso ao arquivo do ISSSL que entretanto
foi «comprado» pela Universidade Lusíada); ii) a obtenção dos contactos
para marcação de entrevista (que acabaram por ser obtidos numa
estratégia de rede, por «uns que conheciam e mantinham contacto com
outros»); iii) o domínio das técnicas de entrevista, de dificuldades de
«contra-transferência» e de análise de conteúdo e categorização. Após seis
entrevistas esta segmentação de profissionais já estava saturada e já tinha
uma razoável quantidade de material empírico, recolhido num total de
catorze entrevistas transcritas e aprovadas pelos entrevistados.
• uma «fase» marcada pelo interesse em recolher as representações de
assistentes sociais mais jovens e com outras inserções geográficas, quer
nacionais (Coimbra, Lagos e Leiria), quer internacionais (Itália e Coreia do
Sul), que decorreu de Janeiro a Setembro de 2010 e onde pude recolher
mais cinco narrativas através das respostas ao questionário enviado aos
assistentes sociais: Madalena (MM16), Mafalda (MV17), Sílvia (SG18),
Armando (AP19) e Américo (AD20).
260
As catorze entrevistas realizadas foram inspiradas na não directividade: poucas
perguntas, questões colocadas de forma o mais aberta possível, respeito pelas
pausas e silêncios, abstenção de implicar o entrevistador no conteúdo (nem
sempre conseguida e, algumas vezes, assumidamente contrariada), gravação
e transcrição integral das entrevistas, devolução da transcrição aos
entrevistados para validação e análise do material recolhido só após a
validação.
A restante recolha, feita a cinco assistentes sociais, foi realizada com recurso a
um questionário com perguntas abertas; nesta última situação metodológica, o
meio utilizado foi a internet e as respostas chegaram por escrito (4) e em
gravação áudio (1).
Uma das características que considero estruturante neste trabalho de recolha
empírica foi a aposta em privilegiar as pessoas e os contextos relacionais em
que decorreram as entrevistas e, que se verificou mesmo nas situações em
que foi utilizado o questionário, tentando em simultâneo, que elas fossem
momentos significativos para os entrevistados e que eles e elas «brilhassem»
como actores sociais que são. Embora sabendo que as entrevistas são
marcadas pela ocorrência de relações sociais que condicionam e
contextualizam a narrativa, constatei que os entrevistados falaram mais das
suas vivências e dos respectivos contextos político - institucionais (assumindo,
por vezes, posições muito críticas em relação ao regular funcionamento das
instituições e até aos seus próprios exercícios profissionais) e menos dos
significados que essas experiências tiveram para si, enquanto pessoas e
profissionais.
Todos os entrevistados referiram ter gostado de realizar estas entrevistas pelo
contributo que deram para um trabalho que os inclui e, por outro lado,
expressaram que estas conversas foram agradavelmente reflexivas. Todos se
prontificaram para voltar a colaborar, se voltasse a ser preciso.Pelo meu lado,
foram momentos muito marcantes: pelas próprias conversas, por aquilo que
cada um/a falou de si, dos percursos e representações profissionais, mas
também por tudo aquilo que me permitiram reflectir sobre as aprendizagens
pontuadas nas trajectórias profissionais e as significações de «estar» na
profissão.
261
4.4. A ANÁLISE DOS DADOS
No registo da investigação qualitativa, o plano de análise não pode ser
previamente traçado e os dados surgem à medida que a análise se processa,
sobressaindo a tentativa de formalizar microestruturas generativas das
narrativas e construir categorias susceptíveis de evidenciar as «lógicas» dos
vários interlocutores e das situações comunicacionais.
A técnica utilizada para proceder à leitura dos dados foi a da análise de
conteúdo entendida nas dimensões descritiva e interpretativa, na tentativa de ir
sempre confrontando com o quadro teórico e de produzir novo conhecimento.
As direcções da pesquisa foram emergindo no decurso da recolha empírica e
da análise e interpretação do «corpus», de modo indutivo e tentando não deixar
que a pré-construção teórica da análise criasse uma «fôrma».
«Por onde começar?» era a pergunta recorrente, sendo que evidencio o papel
do estudo de muitos autores, desde o «Método» (Morin, 1980), passando pela
análise estrutural da narrativa de Dubar e Demazière (1999) até aos ‘manuais’
de análise de conteúdo (Bardin, 1977), embora só tenha encontrado resposta
«começando», por tentativa e erro, e realizando simultaneamente uma reflexão
sistemática sobre a minha práctica como investigadora.
O trabalho de análise de conteúdo evocou velhos fantasmas de «menoridade
científica» do serviço social por relação ao referente positivista e fez apelo a
técnicas com que não estava familiarizada.
262
CAPÍTULO 5 - A (S) VOZ (ES) DOS ACTORES DA
PROFISSÃO
Neste capítulo, pretendo dar protagonismo à voz dos dezanove sujeitos da
investigação, na valorização da sua qualidade de atores sociais,
simultaneamente como «especialistas de si» e parte de um coletivo profissional
que co constroem. Aliás, como dita a inspiração do método de investigação-
formação em Histórias de Vida é importante situar a constante preocupação de
que os autores das narrativas alcancem uma produção de conhecimentos que
tenha sentido para eles e que eles próprios se inscrevam numa exploração
transdisciplinar que os institua como sujeitos (Josso, 2002).
Foi com esta intencionalidade e com o quadro teórico e metodológico já
explicitado que parti para a primeira tentativa de compreensão de como se vive
e se faz a representação profissional a partir de uma análise das narrativas dos
próprios assistentes sociais com base em critérios cronológicos.
Fui interpretando e tentando desvendar os fios condutores das suas trajetórias
profissionais e dos seus percursos de aprendizagem a partir das conceções e
representações expressas nos espaços de «praxis», de ideologia e de ciência
que constituem as narrativas da profissão, como uma primeira «viagem»
descritiva pelo «corpus» e pela argumentação dos atores profissionais.
Este capítulo é constituído por uma primeira abordagem exploratória e
descritiva do material empírico e estrutura-se em dois pontos separados por um
«corte» artificial, já que foi adotado como eixo central da análise as questões
relativas à formação (inicial e contínua) em articulação com o campo do
trabalho e da sua incidência na construção de identidade (s): no primeiro
abordam-se as trajetórias profissionais e as representações da
profissionalidade expressas nas narrativas biográficas e no segundo, os
percursos de aprendizagem da profissão. Acresce uma síntese explicativa
sobre a importância de prosseguir com uma análise temática, face à
insuficiência dos critérios cronológicos para construir tipologias.
263
5.1. Trajetórias profissionais e biográficas
O conceito de «trajetória» é frequentemente utilizado como sinónimo de
‘carreira’ profissional e embora tenha o potencial de dar conta das alterações
que ocorrem ao longo do percurso profissional, onde a pluridimensionalidade
e a complexidade aparecem em relação (Almeida, Alves e Marques, 2000),
ainda tem uma conotação com um trajeto pré-definido que se coaduna pouco
com os «carreiros» de que as narrativas dão conta. No entanto, foi assim
utilizado o conceito de trajetória ao longo deste texto interpretativo, no sentido
em que esta opção procura dar visibilidade ao distanciamento que existe
entre as narrativas dos sujeitos e os discursos que insistem em fazer acreditar
na previsibilidade dos percursos que começam na escola e continuam no
mundo do trabalho.
Entendendo trajetória como uma “linha descrita por qualquer ponto de um
corpo em movimento” (Dicionário de Língua Portuguesa, Porto Editora, 7ª Ed),
assume-se que este conceito é útil para colocar em perspetiva os
acontecimentos, os sentidos e os significados da trama narrativa (Ricouer,
1985) dos sujeitos que colaboraram nesta investigação. De uma forma não
linear, as trajetórias individuais são assim marcadas por temporalidades
biográficas que se inscrevem no “tempo histórico” (Bertaux, 1997): o tempo
revelador e transformador dos percursos previsíveis em trajetórias erráticas,
uma temporalidade social que é um marcador importante na diacronia das
biografias experienciadas (Costa e Silva, 2007).
Procura-se, assim, identificar os sentidos expressos nas narrativas biográficas
dos sujeitos que integraram este estudo, interpretando o impacto dos
fenómenos históricos e macroestruturais a nível individual e o leque de
possibilidades educativas. Como salienta Bertaux:
“…trabalhar na reconstrução das estruturas diacrónicas de percursos biográficos e na sua inscrição no tempo histórico, é tomar progressivamente consciência do impacto dos fenómenos históricos coletivos e dos processos de mudança social nos percursos biográficos” (1997:78).
264
Na apresentação das trajetórias profissionais tenta-se explicitar a coerência
individual de cada narrativa com os elementos considerados fundamentais e
que permitiram agregar os sujeitos nos diferentes perfis. Contudo admite-se,
como Bertaux que “existe também um caminho feito de tateamento, que leva
da ignorância e dos pressupostos a um certo grau de saber e de lucidez”
(1997:86). Esse «tateamento» também está relacionado com a ideia expressa
por Dubar e Demaziére (1997) de que as narrativas não nos dão acesso a
factos mas sim a palavras, Assim, a palavra e a linguagem adquiram um
estatuto singular como processo pelo qual o ‘real’ se constitui em nós como
‘meio’ na unidade e na pluralidade da sua atividade significante e como matriz
de conceções dos sujeitos, dos outros e do mundo.
Nesta tentativa de uma descrição compreensiva das tramas narrativas são
identificadas trajetórias profissionais e de aprendizagem marcadas por muitos
acontecimentos sócio históricos nas seis décadas (de 1950 a 2000) em que
decorreram e por uma razoável mobilidade profissional em diferentes
geografias e contextos organizacionais, onde a mudança aparece narrada, na
maioria das vezes, como sendo acionada por iniciativa dos próprias
assistentes sociais, mobilizada por uma realização profissional que identificam
mais com o «tipo» de trabalho desenvolvido do que com eventuais
oportunidades de «carreira».
A profissão de assistente social, pese embora a sua tradição relativamente
recente, conseguiu consolidar um processo de profissionalização assente na
formação e na «oferta» de serviços que impõem níveis de organização, de
conhecimento e de sensibilidade social apurados (Negreiros, 1998).
As profissões socialmente menos valorizadas ou, que se pretendem em
ascensão após um processo de valorização por via académica, procuram
atingir um patamar de paridade com as profissões «tradicionais». Estes
processos acontecem atualmente num quadro tensional tanto na variedade de
formas de luta pela revalorização profissional e pela manutenção do «status
quo», quanto nas conceções disponíveis que vão de posicionamentos que
evidenciam as profundas mudanças e o abalo dos alicerces identificáveis das
profissões, numa «crise» sem precedentes que conduz a um «pós
profissionalismo» até posicionamentos que sustentam um renascimento do
265
profissionalismo, com novas características. O que parece certo é que a atual
transformação das profissões e, desta em particular, está interligada com as
transformações da sociedade.
@s seniores: Ana, Helena, Filomena, Fernanda e Maria
A descrição das trajetórias profissionais e da mobilidade de emprego destas
assistentes sociais pretende incorporar as questões relativas à identificação e
análise do trabalho e da profissão, dos contextos sociopolíticos e históricos
mas também à análise dos mercados de trabalho e das lógicas subjacentes
ao seu funcionamento (Dubar, 1997 a).
Neste perfil estão «agrupadas» cinco mulheres - Maria (E RA2), Helena (E
HS3), Fernanda (E FCR5), Filomena (E FA7) e Ana (E TA8) – que têm
percursos profissionais de mais de trinta anos e cujos tempos de trajetória
profissional tentei representar no quadro abaixo (sinalizado a azul mais forte
as décadas em que foram profissionais ativas). Ana e Helena nasceram no
mesmo ano (1938) e fazem a formação no mesmo local e data, Fernanda e
Maria também partilham o ano de nascimento (1949), embora a formação
inicial seja partilhada entre Fernanda e Filomena (que tem mais cinco anos).
Maria tem um percurso formativo iniciado pelo Curso de Auxiliar Social (o
equivalente ao ensino secundário profissional de hoje) e só mais tarde faz o
complemento da sua formação superior em Serviço Social.
Tabela nº 1 - Calendarização dos tempos das trajetórias profissionais das entrevistadas
1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010
Ana Nasceu 1938
Curso 1956/60
Ref2004 42 TP
Entrev. 2009
Helena Nasceu 1938
Curso 1956/60
Ref2006 44 TP
Entrev. 2006
Filomena
Nasceu
1944
Curso
1969/74
Ref2009
35TP
Entrev.
2009
Fernanda
Nasceu
1949
Curso
1969/74
Entrev.
Ref/08
34TP
Maria
Nasceu
1949
Curso
Aux Soc
1962/64
Curso
1979/81
Ref
2005
37TP
Entrev.
2006
266
Notas: TP – anos de trajetória Profissional; Ref – Reforma; Ent – Entrevista
Nas décadas abrangidas pelas suas narrativas, as mudanças introduzidas
pelo capitalismo nos modos de gestão económica e social tiveram
subjacentes racionalidades instrumentais com vista à otimização de
resultados, que se objetiva também na lógica do mercado, da concorrência e
do mandato das profissões. Contudo, estas assistentes sociais beneficiaram
ainda de um mercado de trabalho relativamente «protegido», da escassez de
candidatos formados para exercer a profissão e de um «boom» de procura
após a revolução que se consolidou na edificação do nosso «quase Estado
Providência».
Ana, uma mulher sem «papas na língua» como se define, atribui a esta
característica a facilidade de travar conhecimento com os muitos
interlocutores que teve ao longo da vida, desde os diferentes públicos e
atores dos contextos em que interveio até aos «doutores» estrangeiros que
mobilizou para trabalhar em cooperação com a formação inicial e contínua
dos assistentes sociais portugueses. Refere que gostou imenso da profissão.
Encontra-se atualmente na situação de reforma e afastada de qualquer
envolvimento profissional; com a saúde e a memória a darem sinais de
fragilidade, diz sobre «estar reformada»:
“Há muita coisa que me chateia: detesto fazer comida, detesto muita coisa da vida doméstica…mas faço os possíveis. Tem de se reinventar tudo”.
Após ter colaborado num projeto de trabalho com Timor, o último que a
apaixonou, diz que, após quarenta e dois anos a trabalhar, está cansada da
profissão e nas perspetivas do seu futuro não coloca nada que tenha a ver
com a profissão. Mas ao fazer a apreciação do que foi mais importante na
sua trajetória profissional, Ana destaca as aprendizagens que cada
experiência lhe possibilitou e diz que: “Eu acho que foi tudo [importante],
cada experiência trouxe um conjunto de aprendizagens muito importante”.
Na dimensão dos contextos organizacionais e «áreas» de intervenção em
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que se situou, a narrativa de Ana torna claro que naquelas épocas (décadas
de 60 e 70) era fácil ter trabalho e fazer mobilidades por várias «áreas» de
intervenção e contextos organizacionais, na procura de maiores desafios
profissionais, quer no continente (fez trabalho comunitário a partir de várias
Instituições de Solidariedade Social em Lisboa) e ilhas (exerceu em projetos
comunitários a partir da segurança social nos Açores), quer no estrangeiro
(exerceu em Paris com as comunidades emigrantes e esteve no Brasil, um
período longo em formação).
“O primeiro sítio onde estive a trabalhar foi o Centro Paroquial de Stª Eugénia no bairro da Encarnação, fui montar os serviços do Centro, não estava nada organizado, nada coordenado, mas foi sobretudo com jovens e com crianças que eu trabalhei. Foi interessante, mas estive lá pouco tempo, uns dois anos. Depois estive no Centro Social da Bempostinha, onde também fiz trabalho com jovens, com pais e professores das escolas locais, mas senti-me um bocado «arrumada» de mais e saí. Depois passei para Alfama (onde estive também dois anos), para o Centro Social Paroquial de S. Estevão e aqui fiz muita coisa: lá tinha imensa gente velha e imensa gente jovem e foi muito engraçado o trabalho que se fez. Havia um padre completamente ‘louco’ e dávamo-nos muito bem. O Centro desenvolvia imensas atividades: teatro, música, desporto, biblioteca, etc., era lá numa casa velha, num sótão... Também tinha uma escola paroquial (…) com mais de 120 crianças que nós apoiávamos em diversos aspetos da vida escolar e familiar, quer durante o período escolar, quer nas férias e também fazíamos colónias de férias...Depois sai de Alfama porque estava muito cansada e fui para Paris (68-69) e fui trabalhar para o consolado de Portugal. (…) Foi uma experiência diferente, interessante. Trabalhámos com a população portuguesa emigrada, se bem que também fizemos trabalho com as entidades francesas. Fizemos muito trabalho de colaboração uns com os outros. (…) De 70 a 72 fui técnica de formação de professores e educadores de crianças deficientes visuais e estive no sindicato de Serviço Social também muito ligada à formação. Nessa época fui vice-presidente da direção do Sindicato e responsável pelo programa de regionalização e pelo serviço internacional, ainda fui a Genebra com a Manuela Silva, à Direção geral de Assuntos Sociais das Nações Unidas - isto era assim um subterfúgio porque nessa altura o governo não queria que a gente saísse lá para fora e era esta a forma que tínhamos de ir a formações no exterior. Depois ainda trabalhei no Ministério da Educação como técnica de educação em cursos de especialização para professores de deficientes visuais, mas foi por muito pouco tempo, foram 6 meses. (…) Houve coisas de que eu gostei e coisas de que não gostei muito. Depois em 74-75 foi quando casei e fui para Ponta Delgada porque o meu marido é açoriano e estava lá, também gostei muito porque a gente fez imensa coisa, trabalho interserviços, com a junta distrital autónoma de Ponta Delgada, com as enfermeiras, com o magistério primário, com a casa dos pescadores, pôs-se aquilo tudo a funcionar. (…) Foi na altura da grande confusão do PREC mas foi muito giro.”
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Na primeira década e meia da sua trajetória, estas diferentes experiências
profissionais tiveram durações relativamente curtas (cerca de dois anos
cada) e, na narrativa de Ana, aparecem pontuadas sempre pelo «desafio» e
pela «paixão», da mesma forma que as saídas correspondem a períodos de
estagnação, aliados a uma «inquietação» pessoal por novas experiências e
desafios. Também é a essa «inquietação» e a essa «procura» que Ana
atribui a intensa dedicação feita neste período à sua formação contínua (em
Lisboa e no Brasil) e ao seu contributo para a organização coletiva da
profissão e do seu ensino.
A sua experiência de trabalho mais longa (11 anos) foi no Concelho de
Cascais, onde também residia. Durante os anos que se seguiram à
revolução de Abril de 74, a partir do serviço local de Segurança Social e da
Autarquia (na época não existiam assistentes sociais nas autarquias) ajudou
a mediar as reivindicações da população com a criação de respostas
institucionais, passando pela articulação dos assistentes sociais em redes
territoriais.
“Apesar de pertencer aos serviços da Segurança Social, trabalhei muito com a câmara municipal de Cascais porque lá não havia assistente social e então, o presidente da câmara, que era um tipo interessantíssimo, nomeou-me assistente social ‘do sítio’, como se eu pudesse fazer tudo... mas eu lá consegui. No começo (em 75-77) foi difícil porque a freguesia onde eu fui parar não tinha nada e, como eu já era uma senhora ‘veneranda’ (só porque já tinha feito todos estes percursos) as colegas que já lá estavam não me ligavam nenhuma (…). E fui, e começamos a fazer intervenção na freguesia de Alcabideche (que tinha muitas características rurais e não tinha nada organizado do ponto de vista das respostas sociais), fizemos um trabalho com a Junta Distrital de Lisboa – porque, entretanto, nós, o serviço de ação direta do IFAS em Cascais também tínhamos um trabalho inter serviços (eu sofri muito, porque as senhoras assistentes sociais ‘venerandas’ não gostavam que eu existisse e eu trabalhava de uma forma que elas não gostavam). Era uma altura revolucionária em que estava tudo a ‘mexer’, todos os movimentos de cidadãos e todas as forças vivas da sociedade, foi interessante o que nós conseguimos fazer. Fizemos imensos equipamentos – eu nunca imaginei que se pudesse fazer tanto - creches, jardins-de-infância, centros de dia, lares! Era a Junta Distrital, os dois Centros de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, a Delegação de Saúde, a Junta de Freguesia, o IARN, as Escolas Primárias, a Santa Casa da Misericórdia, fazíamos imenso trabalho com as enfermeiras e com as educadoras e criaram-se comissões de pais e de moradores. Foi muito giro, porque gerou-se uma certa dinâmica para que as pessoas também pudessem participar nestes processos de melhoria de vida e de apoio aos seus problemas”.
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Ana refere na sua narrativa que esta dinâmica que começou numa freguesia,
acabou por se generalizar ao concelho e que, mais tarde, também envolveu
as comissões de moradores, os professores e a saúde escolar; e o próprio
serviço da Segurança Social também se modificou.
“Na Segurança Social, as coisas também ficaram diferentes, as mais velhas saíram e as outras assistentes sociais puderam também ir trabalhar para as freguesias e fazer coisas diferentes. Foi feito um levantamento exaustivo de todos os equipamentos coletivos, sociais, religiosos, civis, culturais, recreativos, com a respetiva caracterização e identificação das pessoas responsáveis. Isto foi importante porque as próprias técnicas de serviço social não tinham a noção destas coisas. E isto fez-se a pulso, não é?! (…) Foi feito um trabalho de base muito interessante com as escolas e as equipas de saúde escolar, fez-se a vacinação de todas as crianças (de 75 a 77), trabalhámos muito na prevenção. Em 78 fui nomeada como responsável do serviço de ação direta do IFAS de Cascais e passei a ter funções um bocado diferentes – planeamento, administração e avaliação mas como eu já conhecia aquilo tudo foi muito fácil. E, por outro lado, a equipa técnica que lá estava tinha começado a achar piada àquela forma de trabalhar e também ajudava a segurar um bocado a intervenção, de maneira, que foi bom. Eu nunca tinha visto isto nesta perspetiva, mas é verdade (…)”.
Sobre o significado deste período de trabalho, Ana refere: “Foi trabalhar muito, com todos os atores sociais, com as juntas de freguesia, com os senhores padres, com a câmara municipal, com o presidente e os vereadores...Primeiro as juntas de freguesia começaram logo a pedir assistentes sociais para apoiar e continuar o trabalho... (...) Nos projetos de Luta contra a Pobreza, nos bairros da Torre e na Galiza, também houve um grande envolvimento de todas as instituições e das populações”.
Nos últimos anos da sua trajetória profissional, Ana intercalou a atividade
profissional (que se foi tornando menos absorvente) com a atividade
associativa e de representação da profissão: destaca a colaboração no Plano
Estratégico de Lisboa (1992), o trabalho com os Timorenses (de 1996 a
2004) no grupo de apoio técnico à Comissão Interministerial de Acolhimento
e Inserção Social da Comunidade Timorense e a representação dos
assistentes sociais portugueses no Comité de Liaison da FIAS (Federação
Internacional de Serviço Social) e no Comité executivo da região da Europa
da FIAS onde teve oportunidade de conhecer profissionais de vários países
do mundo (Bélgica, Hungria, Nova Zelândia, Polónia, Hong-Kong, Sri-Lanka,
EUA e Irlanda).
Na dimensão das Políticas é expresso na sua narrativa o compromisso com
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o Estado Social, promotor de direitos, de igualdade de oportunidades e de
justiça social, bem como com a participação dos cidadãos na criação de
«respostas» que lhes diziam respeito; a sua narrativa incide «no que fez»,
não no sentido executante do termo, mas enquanto agente mobilizador de
dinâmicas coletivas, experiências, vontades e criação de respostas sociais
para e, com os atores locais e de dinâmicas formativas e associativas para a
profissão.
Já numa fase madura da sua vida profissional a divergência com uma chefia
levou-a para um serviço central em Lisboa, onde lhe foi assegurado um
cargo de chefe sem conteúdo funcional, medida expressa na sua narrativa
como uma represália:
“Chateou-nos [o diretor] a vida enquanto lá esteve de uma forma impossível, por exemplo, mandava-me ir para o serviço dele às 9h da manhã e eu estava lá até às 4h da tarde à espera e só me atendia quando lhe apetecia. Foi o tal que me mandou para Oeiras (1989), onde estive só 4 meses e depois mandou-me para Lisboa (1990). (…) depois da época difícil do Dr. P, mandaram-me para Lisboa para chefe de divisão do serviço da Almirante Reis, onde fiquei sem fazer nada, depois lá fiz ‘umas coisinhas’ para melhorar os lares que estavam numa situação de desgraça. A Associação de Profissionais de Serviço Social foi, nessa altura, um escape de realização profissional para mim (…) gostei imenso de trabalhar com aquelas pessoas e fizemos imenso trabalho pela classe profissional.”
Precisamente na dimensão do Associativismo Profissional, a sua narrativa
identifica a ligação e participação nas estruturas coletivas da profissão,
nomeadamente no Sindicato e na Associação de Profissionais onde
desempenhou cargos dirigentes e papéis ativos e comprometidos com um
projeto profissional coletivo.
Falando da conciliação da atividade profissional com a sua vida familiar e
privada, dá testemunho de dificuldades em conciliar estas esferas, sobretudo
os cuidados aos seus dois filhos e refere a importância de uma pessoa no
apoio familiar.
“Foi uma época e um trabalho muito giros. Aliás, nessa altura eu tinha os meus filhos pequenos e passava a vida a correr: ia para o serviço, ia buscar os ‘putos’, punha-os no judo, na natação, muitas vezes ia no carro com os papéis para trabalhar enquanto esperava pelas aulas deles e, às vezes, ainda voltava ao serviço. Era um desgaste imenso! O que me valia era que tinha uma funcionária cá em casa que era um espanto, a minha Jó, a «avó» dos meus filhos, adorava os miúdos”.
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Resumindo a sua trajetória profissional Ana diz que:
“Entre o exercício profissional, a docência, os cargos que desempenhei em prol da profissão e os trabalhos que realizei, fiz imensa coisa, é verdade”.
Sobre a possibilidade de testemunhar e deixar registo escrito da sua
experiência profissional e dos contributos para a profissão Ana refere:
“Não me passou pela cabeça deixar esse testemunho. Quer dizer, escrevia umas comunicações quando ia a congressos ou a reuniões internacionais, mas depois…depois, não fiz mais histórias”.
Helena é uma mulher voluntariosa, entusiasta e apaixonada: pelo curso de
formação inicial “entusiasmei-me muito e fui muito boa aluna”, pelas
pessoas, por começar de novo, por inventar tudo e sobretudo por uma
profissão que entende “como uma forma de expressão de si”. Refere que,
não tendo a sorte de se saber expressar através de uma área artística, foi
através da profissão que foi «dizendo quem era».
“Apesar de tudo, nestes últimos anos, foi a situação [a formação] onde eu me senti mais útil. Não só mais útil, mas contente comigo própria, com a sensação de que vale a pena. E que me diverte imenso, o que eu acho que é uma coisa que também é essencial. Preciso de me divertir, preciso de trabalhar, divertindo-me. Aquela coisa que o trabalho é uma canga, não gosto. (…) Mas para mim o trabalho teve sempre este sentido. No princípio, de missão, não digo que não: fui para o Serviço Social, claramente porque as outras pessoas me interessavam e queria ser útil às outras pessoas. Depois ao longo da vida profissional, naturalmente que este sentido de missão mantém-se mas de uma forma mais consciente, mais profissionalizada, mais organizada, menos utópica, às vezes. Portanto, eu não sei se consigo resistir a este ‘canto de sereia’”.
Na altura da entrevista está recém reformada, após quarenta e seis anos de
trabalho e refere que “…foi um privilégio nestes 20 últimos anos de carreira
fazer exatamente o que queria fazer” (E HS3).
Sobre os projetos de futuro diz que “ainda não está segura” do que quer fazer,
vê-se a fazer coisas até ao fim, mas ainda não sabe o quê. Situa-se entre
diferentes tentações: de “apetece-o-terapia”, de se “orientar para qualquer
coisa completamente diferente, como por exemplo, fazer joias” ou de continuar
com a formação e o apelo para as pessoas, que é expresso “quase como uma
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condenação”. O que sabe é que não quer parar de trabalhar “seja o que for
que isso quer dizer”.
Na dimensão dos contextos organizacionais e das «áreas» de intervenção e, à
semelhança de Ana com quem partilha uma mesma geração e a condição
sociofamiliar de origem, Helena diz que “durante este percurso (…) nunca
procurei trabalho, aconteceu-me sempre; nós não procurávamos trabalho,
acontecia”.
A sua trajetória profissional está marcada por dois períodos distintos, de cerca
de 20 anos cada: o primeiro, ligeiramente maior, com experiências laborais em
empresas (fábricas, empresa de caminho-de-ferro), por vários locais do país e
por África (na época, os países africanos colonizados eram divulgados pelo
regime como «províncias» de um «Portugal ultramarino»), para onde vai viver
e trabalhar em períodos distintos (primeiro para Angola e depois para
Moçambique), pelo regresso a Portugal após a independência de Moçambique
e depois pela passagem por vários serviços públicos onde aprofundou a sua
paixão pela formação; no segundo período exerceu exclusivamente como
formadora em situação de profissional liberal (saiu voluntariamente da função
pública com quarenta e quatro anos).
“Eu entrecortei a permanência nesta organização com muitas licenças sem vencimento, alterações do horário de trabalho, estive a meio tempo, para puder precisamente fazer formação. Foi aqui que eu comecei intensamente a fazer formação, tive imensas solicitações, quer da função pública onde eu tinha estado, quer de empresas. No fim deste tempo entendi que podia voar com as minhas próprias asas e resolvi sair do Instituto e atirar-me exclusivamente à formação, como profissional liberal. Entretanto comecei também a dar aulas no Instituto Superior de Serviço Social (…)”
A sua relação profissional com a formação, também na qualidade de docente
na formação inicial de assistentes sociais, foi recorrente na sua trajetória:
“Havia uma escola de Serviço Social em Lourenço Marques, onde eu dei aulas também. Dei aulas no Porto, quando fui trabalhar para o Porto, depois dei aulas em Lourenço Marques e só recentemente é que dei aulas em Lisboa nos últimos 14 anos”.
Na narrativa da sua trajetória profissional cada experiência é contextualizada
na vida familiar, nas opções que tomou e nas representações da profissão que
foi construindo em cada tempo e circunstância. Com maior detalhe, podemos
verificar que após o curso, recusou algumas propostas com cujas condições
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não concordou e acabou por aceitar um primeiro trabalho numa empresa no
Porto, que em simultâneo lhe permitiu autonomizar-se da família.
“Aproveitei a oportunidade e fui para o Porto sozinha. (…) Foi a minha primeira experiência na fábrica, era uma fábrica de cervejas. (…) Estava-se em plena época das Relações Humanas e as empresas que estavam financeiramente bem entendiam que era preciso apoiar os operários – apoiar de uma maneira muito paternalista. (…) Entretanto, eu já tinha lido umas coisas, estava razoavelmente informada e comecei a tentar passar o Serviço Social para dentro da própria empresa (…) o que era necessário era debruçar-me sobre o que se passava lá dentro. E dentro passavam-se imensas coisas: a nível da liderança muito autoritária, a nível da adaptação ao trabalho, a nível da prevenção de acidentes…”.
Esta experiência dura cerca de quatro anos e é recordada como muito
positiva. Neste período casa e tem a primeira filha; mais tarde mudou para
Lisboa por razões familiares e foi trabalhar numa fábrica de tabacos.
“Aí havia muito trabalho feminino, havia imensos problemas (…). A passagem pela ‘Intar’ acordou-me para aquilo que era a condição dramática da mulher em Portugal. Elas trabalhavam ali 8, 9, 10 horas e depois iam para casa e tratavam da casa, do marido e dos filhos e dormiam 2 ou 3 horas por noite – era um fardo muito, muito pesado”.
Durante esta fase do ciclo profissional que durou cerca de cinco anos tem
mais dois filhos (um deles com deficiência) e volta a estudar para fazer a
licenciatura em Ciências Políticas – esta é uma época que recorda como muito
«complicada».
“Com três filhos... foi na altura do nascimento do terceiro, lembro-me que preparei as frequências no Hospital D. Estefânia, no quarto onde eu estava, cheia de tubos, com o meu filho acabado de nascer e tive as melhores notas da frequência - uma pessoa faz coisas na vida que não imagina. Entretanto, quando a criança estava mais ou menos encaminhada, ou seja, não morria (as hipóteses, eram 90% de morrer) no dia seguinte a terem-me levado para casa, o meu marido recebe uma intimação para se apresentar no quartel, para entrar para tropa, para ir para a guerra.”
Na sua narrativa, África aparece na altura em que o marido é mobilizado para
a guerra colonial e, apesar das suas permanências, quer em Angola quer em
Moçambique, estarem associadas a circunstâncias da vida familiar, Helena
atribui-lhes um significado muito positivo, descrevendo as experiências que lá
viveu como as mais marcantes da sua trajetória profissional:
“…pela diferença, pela situação complexa que se vivia na altura mas, fundamentalmente, porque foi em África que aprendi a fazer omeletas sem ovos. Não havia nada, não havia recursos, não havia informação,
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não havia nada. Nós tínhamos de inventar tudo – foi um apelo decisivo à criatividade. (…) a pessoa ter contato consigo própria, não há mais nada, não há livros, não há bibliotecas, não há pessoas com mais experiência…”
Da ida e da primeira permanência em Angola conta, do ponto de vista
profissional que foi um ano em que desenvolveu um “trabalho espetacular,
espantoso, duro, difícil, um calor tórrido, condições infra - humanas...”, numa
narrativa com pormenores, muito adjetivada e com muito discurso direto.
“Tive uma experiência profissional espantosa em S. Salvador do Congo. S. Salvador era a norte dos Dembos, que era uma zona de café, onde as populações viviam razoavelmente bem porque o café dava muito dinheiro na altura. Viviam bem mas eram perfeitamente martirizados pela nossa tropa durante o dia e pelos então ‘terroristas’ durante a noite (…) Então a nossa tropa decidiu por uma solução radical, foi por aquelas aldeias com camiões, pôs toda a gente à balda em cima dos camiões (homens, velhos, mulheres, crianças) e levou toda aquela gente, sem saberem porquê nem a que propósito, para a zona onde eu estava. E o governador que sabia que eu era assistente social, pediu-me para eu fazer um trabalho junto dessas populações, porque as pessoas estavam todas dispersas, sem famílias (…) Durante um ano fiz um trabalho que foi ajudar a reunião das famílias nos 5 aldeamentos e conseguiram reunir-se, a maior parte delas.(…) As instruções que eu tinha eram as seguintes: - não entre em nenhuma casa sozinha, fale com eles cá fora. É gente muito perigosa. E o meu transporte era um jipe militar com três soldados de metralhadora. E eu comecei a pensar: - não entro nos aldeamentos com este aparato. De maneira que dizia aos soldados quando faltavam uns 500 metros: - Vocês vão dar uma voltinha, que eu já volto. Nunca me aconteceu nada. Nem sequer uma ameaça, nada! ”
Apesar da situação política e militar da época (das quais Helena tem perfeita
noção), adota estratégias que contornam as situações que o regime e o
contexto de guerra colocavam e consegue criar laços de respeito e confiança
com a população local:
“Eles tinham os seus chefes tradicionais, que mantiveram. Aliás, (…), na
senzala de S. Salvador, a população local tinha uma rainha, que era uma mulher com um ascendente enorme sobre toda aquela população do Congo. E então a rainha recebia nas quartas-feiras à tarde, não me esqueço. Tinha a sua casinha, que não era de colmo (já era de tijolos), nesse dia punha chinelos e um lenço na cabeça. No Natal mandou-me um cartão, um cartão impresso, a desejar as boas-festas (eu ia visitar a rainha, frequentemente, para conversar com ela)... um cartão impresso que dizia assim “D. Isabel Quengo Martins da Gama, Sua Majestade e Rainha viúva de D. António III”. Quando havia avião (havia avião uma vez por semana, era avião da tropa evidentemente), ela ia à pista e calçava luvas. Só cumprimentava de tenente para cima, soldado não tinha direito a aperto de mão. Um espanto!
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Uma mulher poderosa, enorme, e era ela que dirimia todas aquelas questões dos gados e das terras e não sei quê. E aquilo corria bem.”
Após esta comissão de serviço do marido regressam a Portugal em finais de
60, mas a situação política e a escassez de trabalho contribuem para que
aceitem oportunidades de trabalho para os dois membros do casal em
Moçambique.
“Eu fui trabalhar para os Caminhos-de-ferro de Moçambique, que era então uma empresa do Estado e que abrangia toda a ‘província’…eram cerca de 40 mil trabalhadores (...) E aí criei uma equipa de 12 assistentes sociais (...) foi a primeira vez que eu tive que liderar uma equipa (…) …em Lourenço Marques as coisas estavam bastante calmas, fazia-se trabalho normal de empresa (embora ali fosse muito variado porque tínhamos desde estivadores, a maquinistas de comboios e senhores pilotos de aviação) …”.
A sua narrativa sobre este período, oscila entre a descrição da sua vida
profissional muito intensa e absorvente e a descrição de uma vida social
agradável e ‘perfeitamente pacífica’ que tinha em Lourenço Marques:
“Uma cidade linda, um clima muito razoável... Uma vida... era festas e danças...vivia-se muito bem. Havia um convívio entre a população portuguesa e os outros europeus, muito agradável. Havia evidentemente uma autêntica segregação racial. Na zona de residência dos brancos, os pretos eram os criados, não havia outros. Mas o convívio era muito agradável, não havia conflitualidade... “.
Profissionalmente Helena descreve com intensidade vários episódios que
implicavam fazer uma intervenção direta com os funcionários dos caminhos-
de-ferro nos cenários de guerra:
“… mas onde havia problemas sérios era no norte, onde havia guerra. E então eu ia com muita frequência ao norte, precisamente para estar com aqueles que estavam a viver situações mais difíceis. E fazia aquelas linhas... a zona de Téte, onde se estava a construir a barragem de Cabora Baça era a mais atacada, a Ilha de Téte, porque os materiais passavam por ali, portanto, era muito atacada. E ia da Beira até Matize. E eu fazia aquela linha muitas vezes. Normalmente ia sozinha... e ia de ‘zorra’ blindada, que é uma caixa blindada com uma metralhadora ao pé (era uma zona de guerra mesmo) mas, de facto, nunca me atacaram. Eu dormia nas estações por ali a fora mas, aconteceu-me com muita frequência, no regresso ir ao enterro das pessoas com quem tinha estado a falar. Eles deixavam-me passar, e depois atacavam e muitos dos maquinistas morreram lá. As locomotivas eram alimentadas por lenha e portanto, as minas estavam no meio da linha e a primeira coisa que explodia era de facto a locomotiva e eles ficavam perfeitamente calcinados. Muitas vezes estando eu sossegada na minha cama em Lourenço Marques, telefonavam-me durante a noite: - Estamos à tua espera, é preciso ires, houve um ataque.
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Eu ia, ia para apoiar as famílias, ajudar ao reconhecimento dos cadáveres - o que era muito difícil porque eles ficavam reduzidos a meio metro e... pronto. Só que as viagens eram muito longas e então eu tive que arranjar um estratagema para puder trabalhar e ir acompanhando as pessoas que estavam em Lourenço Marques. Atrelava uma carruagem-cama ao comboio (as linhas em Moçambique são todas paralelas, não há uma linha que atravesse a província de alto a baixo) portanto atrelava uma carruagem-cama a um comboio qualquer e a carruagem ficava estacionada no local onde eu pretendia, ficava lá, trabalhava, estava com as pessoas e, no próximo comboio, amarrava outra vez a minha carruagem… “
Com as alterações políticas no 25 de Abril, enviou os filhos para Portugal mas
manteve-se em Moçambique com o marido. Ainda vivem lá na altura do
movimento que ficou conhecido pelo «canto dos cisnes» (“eram uns brancos
que queriam fazer uma coisa parecida com a África do Sul, ia dando uma
enormíssima guerra”) mas depois entende que a insegurança é muita e
regressa a Portugal com uma licença sem vencimento. No entanto, em Abril
de 75 regressa sozinha a Moçambique, arrependida de ter deixado para trás
toda uma equipa e de “virar as costas num momento em que provavelmente
se podem fazer montes de coisas que temos na gaveta”; mas esteve apenas
dois meses porque chegou à conclusão “que aquilo já não tinha nada a ver”
consigo:
“Tinha havido uma alteração completa: o contínuo era diretor da empresa, as reuniões eram feitas de braços no ar com cânticos pelo meio, enfim, uma experiência interessante, mas onde, de facto, não havia lugar a trabalhar-se com alguma coerência”.
Regressada definitivamente a Portugal, recorda os tempos difíceis dos
«retornados» mas, como tinha vínculo laboral com o Estado fica no «quadro
geral de adidos» e após uma passagem de má memória pelo Instituto de
Apoio ao Retorno de Nacionais /IARN, que Helena descreve como “a
experiência mais dolorosa e infrutífera” da sua vida, transita para a Direcção-
Geral da Administração Pública, onde estavam a ensaiar os primeiros passos
da formação profissional e de onde refere: “aí sim, aprendi alguma coisa sobre
formação – os conteúdos, os aspetos pedagógicos…”.
Helena já tinha começado a dar formação em Moçambique e era algo que a
apaixonava, na perspetiva de que a formação seria em relação ao Serviço
Social “uma continuidade, uma especificidade e a sensação de uma maior
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eficácia”.
“…aquilo que hoje chamamos «empowerment» (na altura não sabíamos dizer isso) talvez fosse mais eficaz através da formação. Porque havia um suporte diferente e, sobretudo havia o grupo, que funcionava de uma forma interativa para que as pessoas pudessem aperceber-se de quem eram, o que é que queriam da vida e fundamentalmente pudessem encontrar uma postura mais satisfatória na sua vida profissional e pessoal. (…) Ou seja, quando opto pela formação comportamental eu estou claramente na mesma linha que me fez optar pelo Serviço Social: provocar que as pessoas sejam donas de si próprias, provocar que as pessoas tenham direito ao seu projeto de vida, provocar que as pessoas sintam as contrariedades como provisórias e não definitivas”.
Na dimensão da relação com as Políticas e os Públicos destacam-se
sobretudo os compromissos que foi construindo com vários ‘públicos’, numa
visão humanista e de valores morais. Apesar da análise da situação política
em cada tempo e em cada espaço, o que transparece na narrativa de Helena
é a mobilização para facilitar o processo de mudança das pessoas.
Reconhecendo a importância da dimensão institucional no trabalho dos
assistentes sociais, Helena acrescenta logo de seguida que naquela altura
[período de vida em África] apesar das restrições políticas, existia uma grande
abertura institucional:
“Nunca trabalhei tanto, nem com tanto entusiasmo, como em África! Estava
tudo por fazer. “
Quando se refere à sua atividade enquanto formadora, diz que a sente como
uma intervenção do Serviço Social. Em toda a sua narrativa atribui grande
importância à aprendizagem contínua, mas sobretudo à capacidade de inovar,
de inventar e de perceber «para quê» se trabalha.
Sobre o projeto coletivo da profissão, aponta a importância da qualidade da
formação e de uma atuação profissional que o faça diferente, reforçando que
isso exige um esforço muito grande, sobretudo a nível das escolas e das
Associações de Profissionais. Para Helena, a orientação dos assistentes
sociais exclusivamente para quem não pode pagar os seus serviços tem
prejudicado a profissão, bem como a apropriação que o Estado fez dos
profissionais, tornando-os funcionários e empobrecendo o seu conteúdo
funcional e refere que sempre teve a noção de que a profissão de Serviço
Social estava, por uma ou outra razão, muito fragilizada.
“No início a sensação que eu tinha, e tive essa experiência nas empresas onde nós tínhamos que ‘bulhar’ pelo nosso lugar, pelo nosso estatuto
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profissional, era preciso explicar sempre, passar a vida a explicar o que fazíamos e a discutir umas com as outras sobre o que é que fazíamos (eu digo umas porque na altura não havia homens Assistentes Sociais). Por exemplo, no Porto, logo que iniciei o trabalho, havia muitas Assistentes Sociais em empresas e nós juntávamo-nos todas as semanas para refletir, para ponderar, para escrever coisas, para partilhar dúvidas. Eu penso que há duas características que se mantém (eu vejo da mesma maneira que via há quase 50 anos): um empenho muito sério dos profissionais em trabalharem bem, em fazerem as coisas como devem ser feitas mas, por outro lado, uma terrível dificuldade na sua própria afirmação”.
Falando da conciliação da sua vida profissional com a esfera familiar Helena
lembra que é uma profissão muito desgastante do ponto de vista emocional e
que não é fácil, mas que é possível.
“Foi muito complicado, enquanto os filhos eram pequenos, sobretudo com o meu filho mais novo que precisava de muita atenção e... não foi fácil. Eu lembro-me por exemplo, quando fiz a segunda licenciatura, o meu marido estava em África e eu estava sozinha com eles, eu trabalhava, chegava a casa tratava das crianças, jantava, meti-os na cama e estudava durante a noite. Ou seja, não sei quantos meses durei assim, mas durei. Arranjava umas almofadas para pôr na cama, tinha uma mesa ao lado, ia estudando e dormindo. (risos) Foi difícil, foi duro. (…) a conciliação é uma ‘guerra’, eu diria que foi uma ‘guerra’ toda a vida”.
Mas a avaliar pelos resultados, como refere que gosta de fazer, o balanço é positivo, e diz que se saiu bem.
“Portanto, eu penso que não é fácil, não é fácil lidar com uma vida intensa e muito desgastante do ponto de vista emocional sobretudo, como é a nossa, com uma vida de família, que se pretende tranquila e equilibrada (…) Eu pensei que nós tínhamos que encontrar, momento a momento, os equilíbrios possíveis, e às vezes, os desequilíbrios... aceites”.
Filomena, é uma assistente social que afirma dizer o que pensa mas que
não gosta de falar de si, tem um discurso convicto mas discreto e um lema
de vida que é o de «praticar uma cidadania amigável».
À semelhança das colegas anteriores, e apesar de iniciar a sua trajetória
profissional uma década e meia depois de Ana e Helena, refere que não era
difícil encontrar trabalho e teve oportunidade de escolher a proposta que
mais a mobilizou (lembra que não quis trabalho na sua terra de origem no
Alentejo e que fez voluntariado num gabinete ministerial). Recordando que
279
arranjou emprego no ano da revolução, explicita que:
“…era giro porque era a época de pôr tudo em causa. E estavam pessoas como a Joana – a Joana era uma figura fantástica, uma senhora já de idade (já faleceu há muitos anos, mas tinha uma juventude de espírito fantástica) e gente nova que questionava muito as coisas. A par com todos os outros acontecimentos porque eu sempre fui de achar que todos os aspetos do social têm que ver com uma série de outras coisas”.
Tem uma trajetória profissional feita numa única organização, dentro do
Ministério da Segurança Social, mas com experiências de trabalho muito
diversificadas: fez trabalho no direto em equipas de saúde mental infantil,
deu contributos para a elaboração de legislação e de medidas de política,
colaborou na Associação de Profissionais e dá testemunho das suas
reflexões e aprendizagens, conjugando-as com modéstia relativamente ao
conhecimento em geral e, em particular, ao conhecimento académico.
“ Qualquer coisa que eu tenha que estudar, que analisar, a primeira proposta que faço a mim mesma é verificar o que é que mexe à volta daquilo, vamos lá ver como é…mas para mim foi sempre …um bocado intuitivo. É só para dizer que isto não tem base científica, eu nunca vou referir o nome de nenhum autor que eu li (até porque me esqueço), de nenhum modelo que eu utilizei…”.
Na altura da entrevista, encontrava-se no Instituto de Solidariedade e
Segurança Social (ISSS) e aguardava a reforma já solicitada.
Na dimensão dos contextos organizacionais e «áreas» de intervenção e,
apesar da sua trajetória profissional ter sido feita num único Ministério,
exerceu em projetos e contextos diferentes, mas identificou uma preferência
pela «área» da Infância.
Sobre esta mobilidade profissional interna a um Ministério, Filomena
identifica que algumas mudanças foram por sua iniciativa e gosto (no serviço
de colocações familiares, no serviço de adoções, no serviço de planeamento)
e outras por iniciativa das hierarquias e assumidas como «castigo» por
dissidências em relação aos poderes instituídos (no serviço de relações
públicas ou na ‘secção de contas correntes’). Sobre estas últimas diz
claramente que “Fui de castigo por ter dito o que queria dizer”.
Uma das atuais vertentes do seu trabalho num serviço que concentra os
dados para a estatística da Segurança Social é de mediar a comunicação
entre os especialistas das «aplicações informáticas» e os trabalhadores
sociais (maioritariamente assistentes sociais) dos serviços locais da
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segurança social.
Em jeito de balanço sobre a sua trajetória profissional, refere:
“Eu estive na Direcção-Geral para aí até aos anos 80 e no início dos anos 80 passei para aquilo que começou a ser o Centro Distrital e dentro do Centro Distrital já fiz muitas coisas e estou aqui há 37 anos. (…) Ao longo destes anos experimentaram-se tantos modelos (chamem-se lá e enquadrem-se lá mas teorias que quiserem), mas tentaram de todas as formas organizar os serviços: concentra, desconcentra, volta a concentrar mais, dá maior autonomia, volta a concentrar tudo… e tudo isto se passa sem haver avaliação nenhuma dos impatos de cada mudança”.
A sua narrativa, em que afirma não aludir a autores, está cheia de
referências a colegas/atores e autores que, na sua perspetiva, foram
exemplares e/ou extraordinários na sistematização e qualificação dos
serviços e mesmo na influência de medidas legislativas e de política:
“Acabei [a formação] em 73 e comecei a trabalhar no dia um de Abril de 74, eu acho que nunca apanhei grande coisa do sistema político anterior. Quer dizer, apanhei aquilo que naturalmente se apanha, porque não se muda um sistema de um dia para o outro, nem se mudam as mentalidades de um dia para o outro. Mas como entrei para o Serviço de Proteção à Infância e Juventude, que se situava na Direcção-Geral da Ação Social (que era da Assistência e passou para a Ação Social da época), tinha o...Antonino do Amaral, como diretor, e tinha pessoas como a Teresa Penha, a Rosário Onofre, a Margarida Moita, a Otília Castro, a Madalena Almeida, sei lá, uma série de gente com muita qualidade. (…) Eu fui aprendendo sempre coisas ao longo da vida com as pessoas com quem me cruzei.”
Voltando à sua modéstia que pode ser interpretada como “uma certa maneira
de tratar o outro”, Filomena refere que aprendeu também pela qualidade das
relações que desenvolveu com profissionais mais experientes e
conhecedores:
“…não tenho grandes saberes, estou farta de dizer isso. A única mais-valia que eu acho que tenho, é que conheço muito bem a estrutura «da casa» [do centro distrital] (…) depois eu estive em coisas tão diferentes (…) e eu, que tinha acabado de chegar (não ia bem de soquetes, mas quase) sentia-me assim tratada de igual para igual por aquela gente que sabia muito [referindo-se a pessoas muito credenciadas e experientes com quem trabalhou]. Foi todo este tipo de vivências que eu fui interiorizando numa maneira de estar e de fazer, de respeitar o outro e de dar espaço mas, que me veio deste convívio, destes contactos”.
Filomena durante a sua trajetória, tem estado muito próxima dos centros de
poder, onde a dimensão das políticas è central. Na sua narrativa é também
evidente a oportunidade e a capacidade de influenciar algumas medidas de
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política social.
“Nessa época também recebemos os retornados, e entre os retornados apareceram-nos lá vários assistentes sociais, apareceu uma colega que estava no Tribunal Tutelar de Menores, com a qual estabelecemos uma excelente ligação. E a partir dela chegámos ao atual presidente da Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens, a um outro juiz de Direito que lá estava e começamos a trabalhar aos fins de tarde, depois do expediente, no gabinete deles para fazer a legislação para as colocações familiares, o primeiro projeto-lei para as colocações familiares e o primeiro projeto-lei de intervenção dos serviços da segurança social na área da adoção. Lembro-me, quando foi a revisão do Código Civil em que esteve a Leonor Beleza e mais um outro senhor de Direito que trabalhou no código civil de então, e já não sei bem porquê eles ouviram-nos a nós... E aqui entra também uma pessoa que ao longo dos anos foi uma figura apagada, mas que no âmbito da adoção teve uma importância significativa, que era a Maria Graciete Palma da Silva que ainda está hoje ligada à adoção internacional e... lá não sei porque vias, nós começámos a sistematizar o que seriam as ações relativas aos serviços da Segurança Social, no âmbito das colocações familiares de crianças e da adoção. E a partir daí é que se retirou a competência da intervenção com crianças à GNR.”
No que respeita à relação com os públicos, tem sido muito diversificada ao
longo da sua trajetória porque os seus interlocutores têm sido
maioritariamente outros profissionais dentro dos serviços da administração.
Para Filomena não parece seguro que o seu exercício em muitas das etapas
da sua trajetória profissional fosse de Serviço Social:
“No fim disto tudo, quando me perguntares qualquer coisa sobre Serviço Social, não sei bem o que é que te posso dizer sobre isso, percebes? Mas, logo se vê.”
No entanto, entende-se e diz-se assistente social, apesar de ter outra
licenciatura em sociologia e de defender uma posição crítica em relação a
perspetivas de intervenção mais tradicionais ou assistencialistas. Entende o
Serviço Social como “uma voz entre pares”, como “a vida que aí está, é um
olhar sobre a mesma, é sobretudo o exigir oportunidades para todos”.
A sua relação com o Associativismo profissional é ‘naturalizada’ como um
dever cívico inerente ao ser profissional e mobiliza-se fundamentalmente pela
formação continuada dos assistentes sociais e pela visibilidade positiva do que
de bom se faz e se pensa na profissão.
“Entrei para a Associação por considerar que se a Associação pretendia defender os assistentes sociais, tinha que apostar fundamentalmente na formação. E tinha que ser por aí que a gente tinha que ir. E, por outro lado, tínhamos que mostrar, tentar saber mostrar as coisas que as pessoas faziam, que tinham qualidade e deviam ser mostradas. Eram
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estes dois objetivos que me mobilizavam, não sei se era muito consciente... “
Neste âmbito, a sua narrativa revela preocupação pela situação dos
profissionais mais novos e pela falta de atuação da Associação em sua
defesa:
“Eu acho que estamos a atravessar um momento muito difícil (já vem
desde há alguns anos mas nesta altura está demasiado crítico) para que uma Associação de Profissionais não olhe para a forma como, do ponto de vista profissional, são feitos os contratos, como é que as pessoas são avaliadas... não pode ficar de fora, acho eu. Tem de olhar para ali e tem de verificar o que é que ali se passa”.
Esta posição crítica sobre o papel pouco ativo da associação de profissionais evidencia a falta de promoção de uma visibilidade positiva da profissão e da capacidade de influenciar a opinião pública:
“…à imensa gente a fazer trabalhos excelentes, e que não é reconhecida. E não vejo nenhuma forma de avaliação que permita alterar isso. Era aqui, que eu acho, mais uma vez, que a Associação dos Profissionais de Serviço Social e as pessoas que estão neste momento na associação e que têm conhecimentos no plano teórico e no plano prático, deviam influenciar a opinião pública e atuar.”
E acrescenta: “Porque há gente muito boa, mas muito nova, que se perde porque a vida delas, um dia, fica muito parecida com a dos utentes que têm de atender. E a cabeça delas baralha-se um bocado. Algumas ficam muito deprimidas. Se não encontrarem alguém que tenha alguma capacidade de ser firme e de ajudar no caminho, o percurso profissional perde-se. “
Refere também algum desencanto, a título pessoal, por as Associações
Profissionais que contactou para ceder o seu espólio de livros e documentos
de trabalho, não lhe terem sequer dado resposta à proposta de doação.
“Porque na época havia coisas fantásticas: o C. foi quem começou a
fazer levantamentos sistemáticos da orgânica dos serviços e tínhamos os levantamentos da orgânica destes nossos serviços desde... sei lá, eu comecei a fazer desde os anos 80, a partir de uma coisa que se chamava «O centro Regional em números» e antes disso já ele fazia. Íamos à lei, púnhamos as funções, púnhamos os fluxogramas, fazíamos aquelas coisas todas - Há tempos joguei todos esses trabalhos fora. Por exemplo, os levantamentos, a forma como fazíamos os fluxogramas na época com aquelas listas de papel quadriculado enormes e com uma letrinha impecável... ainda tenho aí muitas coisas e dou aquilo de boa vontade para quem quiser utilizar.”
Sobre a conciliação da sua trajetória profissional com a sua vida familiar e
privada, Filomena expressa que houve uma época longa da sua vida (durante
uns 13 ou 14 anos) em que só fez parte das coisas do serviço que eram
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estritamente necessárias, porque ia quase todos os dias para Sines. Tinha a
vida mais preenchida pelas questões familiares e não tinha disponibilidade de
tempo; e, para o fim, nem disponibilidade física, nem mental, para fazer outras
coisas.
Como fio condutor da sua trajetória, Filomena diz que acha que o que tem
tentado ao longo da vida “foi reproduzir” o que recebeu (correndo o risco de
ser vaidosa):
”… eu tive gente que me apoiou, que foi excelente para comigo em termos de relação e que tentou ter sempre uma atitude pedagógica mesmo quando as coisas não corriam bem. E eu acho que fiz disso o meu lema, sem nunca o verbalizar (…). Eu acho que isto foi o melhor que me pode ter acontecido nesta aprendizagem pessoal, assim ao longo destes anos, foi tentar praticar uma cidadania amigável, sem fazer muita destruição e tentando salvaguardar-me. Não sei se se pode dizer isto assim. E pronto!”
Fernanda é uma mulher afirmativa, com um olhar vivo e rebelde, que diz que
o seu percurso profissional foi acompanhado quase sempre por duas
referências marcantes: «a mudança» e o «abrir caminhos».
De origem açoriana, cresceu no Brasil, tirou o curso em Lisboa e fez a sua
trajetória profissional no campo da saúde e de «cima para baixo», ou seja e,
nas suas palavras “Comecei no topo e acabei na base, fiz um percurso ao
contrário. Mas aprendi muito”.
Na altura da entrevista está em situação de reforma recente. Menciona que
“pagou para sair”, referindo-se a um acerto de descontos com a Segurança
Social que lhe permitiu a reforma antecipada, com a respetiva penalização.
Sobre os planos para o futuro diz que ainda está em «estado de graça»,
sabe que não quer fazer planos, mas ainda não sabe o que vai fazer – «o
que acontecer, acontecerá», referindo que «…estou a admirar-me, estou a
achar coisas bonitas que não achava».
Diferente de Filomena, com quem partilhou o mesmo curso, o início da sua
trajetória profissional não foi com o exercício de Serviço Social.
Acaba de se formar em 1974 e refere que já então não era fácil arranjar
trabalho, tinha planos para ir para fora de Lisboa, mas os seus pais tentaram
284
evitá-lo e através de conhecimentos de um amigo da família que era militar,
fez um curso de formação em processamento de vencimentos (foi no início
dos cartões perfurados que antecederam os computadores atuais) com a
intenção de concorrer a um trabalho no Estado para “preparadoras” de
vencimentos.
Com a Revolução de 1974 abandona esse projeto que não assumia como
seu e ‘regressa’ ao sentimento de ‘ser’ assistente social:
“Havia umas instalações militares na Rua D. Estefânia e nesse dia íamos ter um teste. Saí de casa toda ‘lampeira’ (sabia lá o que estava a acontecer!), encontrei as portas fechadas, não havia exame e voltei para casa, sem perceber o que se estava a passar. Na televisão fiquei a saber que estava a dar-se o 25 de Abril! Aí fiquei toda contente: agora é que a gente vai poder trabalhar! Claro que comecei a participar das reuniões do sindicato de serviço social, havia grande rebuliço e entusiasmo na classe profissional”.
Entretanto, decide procurar trabalho mais próximo da profissão e “vai bater à
porta do Ministério dos Assuntos Sociais”, oferecendo-se para trabalhar em
voluntariado e ficou a colaborar num estudo sobre a caracterização dos
pedidos que chegavam àquele organismo.
“Toda a gente achava nessa altura que os seus direitos seriam finalmente
garantidos e que teriam tudo a que sempre aspiraram e as pessoas faziam pedidos diretamente ao governo. Quem fazia o trabalho de triagem dos pedidos era uma colega Assistente Social que nós conhecíamos e que estava lá com duas estagiárias, tinham imenso trabalho, pois chegavam milhares de cartas e pedidos de audiência em “catadupa”. Como eu morava ali nas proximidades, disse: - Olhe, não tenho nada para fazer, não tenho emprego, então venho ajudar gratuitamente. Voluntariei-me, e como ela tinha sido minha professora da cadeira de Serviço Social de Grupo, aceitou a colaboração. O Ministro do então 1º Governo Provisório foi o Dr. Mário Murteira, sendo o chefe de gabinete o Dr. Acácio Catarino e eu ganhei o meu primeiro ordenado devido a ele; porque não achava justo que estivesse a trabalhar sem ser remunerada.”
Sobre esses tempos e aqueles contextos, esclarece que:
“…nos gabinetes era assim: o pessoal é da confiança do membro do governo por isso quando ele muda, o pessoal também é mudado. Era uma situação em que eles pagavam o vencimento (ainda não era a época dos recibos verdes) mas era um tipo de prestação de serviço que não dava qualquer estabilidade”.
Na dimensão dos contextos organizacionais acabou por vivenciar uma
grande variedade de serviços na administração central, maioritariamente na
«área» da saúde».
A sua trajetória profissional começa assim, com funções mais ou menos
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administrativas e de apoio ‘técnico’ à gestão, passando por vários gabinetes
ministeriais de vários governos. Transita de Ministério dos Assuntos Sociais
para a Secretaria de Estado da Saúde e continua a fazer o seu trajeto por
gabinetes e serviços centrais e, só mais tarde, entrou na ‘carreira’ de Serviço
Social.
Esteve na ‘carreira técnica’ no Serviço Nacional de Ambulâncias (organismo
precursor do INEM) dependente do Ministério da Defesa Nacional e depois
voltou para o Ministério da Saúde, para os serviços sociais dos funcionários
desse ministério. Sobre a proximidade com atores políticos centrais refere as
pressões para aderir a partidos políticos e o preço que pagou por não o ter
feito:
“Naquele tempo havia a formação dos partidos que se constituíram a formalizaram naquela altura. Eu não tinha aspirações a uma carreira política, nem fui pressionada nesse tempo para aderir … mas mais tarde (em 1983) fui pressionada, por várias vezes, quando estive nos Serviços Sociais da Saúde. (…) A gente paga um preço pelas coisas, quer por aderir, quer por não aderir. E como eu mantive a minha independência, tive de pagar o preço.”
Refere que o seu ‘partido’ é o trabalho e que teve oportunidade durante a
trajetória profissional de iniciar “uma série de coisas”. Por outro lado, na
dimensão das políticas, e descrevendo-se Fernanda sobretudo como uma
«organizadora» vocacionada para o «apoio psicossocial», deixa bem vincada
a sua posição crítica com alguns atores políticos e com a administração
pública central, reproduzindo em discurso direto parte de uma conversa com
um ex-chefe que lhe fez cair o «pano dos olhos»:
“-Fernanda, você não se mexa tanto, porque na função pública você não pode trabalhar assim. Se não fizer nada, tem melhor resultado; se você fizer, vai dar-se mal. Eh pá, aquilo caiu-me tão mal. Só mais tarde é que vim a descobrir que era um conselho verdadeiro. Lamentavelmente é mau, mas a função pública é assim”.
Nos anos 80 situa episódios marcantes, em que se sentiu discriminada na
progressão de ‘carreira’ e nas funções que lhe foram atribuídas ou retiradas -
e imputa estas dificuldades a “perseguições” de natureza partidária.
A mobilidade dentro da administração pública nem sempre foi fácil, embora
Fernanda argumente com assertividade:
“Estavam a precisar de uma técnica e eu respondi, e contei-lhe a história
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da minha vida e ele simpatizou comigo. E então acabei por ir para lá. Depois passei 10 anos nos Serviços Sociais, a trabalhar na ação social dos funcionários do Ministério da Saúde, onde também se deram várias mudanças de instalações (...), de poderes e de formas de trabalhar. Organizei, com outra assistente social que lá estava, as colónias de férias e fizemos tudo sozinhas. Fomos para Bragança numa camioneta velha, tivemos de arranjar transportes, monitores, as instalações eram emprestadas, os autocarros eram muito velhinhos. Fomos para Bragança, porque nos tinham emprestado durante as férias instalações de uma instituição de apoio a deficientes, aproveitamos o espaço e levamos para lá as crianças. Foram 10 anos neste serviço e a mudança foi pelas razões já mencionadas. Passei um ano difícil a aguardar autorização para o pedido de destacamento para o Hospital”.
Fernanda menciona que neste serviço esteve um ano «de castigo», sem nada para fazer.
“Se ela [a chefe] modificou a lei dos serviços para me tirar a nomeação de chefia, tinha que me dar orientações de trabalho. Fui chefe de Divisão, sem ninguém para chefiar, era chefe de mim própria. E começou a estar um clima muito mau, não é?! E tive que sair. Estive quase a ficar “xexé”, antes da minha ida para o serviço social do hospital. A gente pensa que vai aguentando, mas... sozinha, foi muito difícil”.
O último período de trabalho passa-o num Hospital Central de Lisboa, a
constituir e a coordenar uma equipa de assistentes sociais num percurso onde
também identifica algumas dificuldades:
“Fui para o Hospital com a função de coordenar as colegas dos dois hospitais: Capuchos e Desterro. Só que a sede do Serviço Social ficaria junto do conselho de administração que era nos Capuchos. A colega do Desterro estava toda contente, mas as dos Capuchos ficaram todas zangadas. Até porque a administração não as avisou e uma até fez um comentário infeliz quando um administrador me foi lá apresentar (…) E depois elas começaram a reagir mal, e eu quase ‘pirei’, tive uma depressão! De manhã chorava e dizia: “- Não quero ir trabalhar! Eu não vou trabalhar!” Estive no limiar. Mas dei a volta e consegui. Porque eu estava mesmo mal... Mas depois elas foram todas embora, e eu fiquei apenas com duas colegas do Desterro. As outras que se aposentaram, foram dando lugar a pessoal novo.”
Sobre as dificuldades inesperadas que encontrou na relação com as colegas
mais novas, que coordenava, refere:
“Aquelas meninas que entraram em 1988 ou 89 (o segundo grupo do plano curricular dos 5 anos) estavam todas acabadinhas de formar, no primeiro emprego. Podiam vir com força e novidade, com outras noções de trabalho. Apanhei ali gente muito diferente. Teoricamente, tinha 3 muito boas, com bons percursos académicos, mas que na parte informática bloquearam-me completamente. Podíamos ter tido o primeiro Serviço Social Hospitalar informatizado de Lisboa. Consegui convencer o meu marido a fazer uma base de dados à
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medida. Foi antes de tempo e ainda era uma época distante para essa aceitação! Não dominavam nada. Eu sei trabalhar melhor no computador do que elas. Fiquei espantada e muito triste porque elas não conseguiram aderir a uma coisa que hoje é corrente e obrigatória. Tinha conseguido um programa informático à medida (o meu marido é programador de informática) mas depois, coincidiu também com a ida dele para Paris em comissão de serviço, e quando ele regressou não havia dados registados. Ele disse-me: - Vocês não estão na altura de puder perceber que isto é um benefício”.
Ainda sobre este período de trabalho, refere que entrou em choque com as
colegas mais novas, de quem esperava mais inovação:
“E dizia para elas [as colegas]: - “Olhem, cá está! Está aqui debaixo do
vosso nariz”. E isso é a teoria a funcionar nos espaços práticos. E uma das coisas que eu acho que está mal é a Escola estar agora muito voltada para a Política Social. Essa geração com formação de 5 anos, saiu muito voltada para a Política Social. Eles quiseram virar isto para as Políticas Sociais. Foram inspirar-se no modelo brasileiro e não dá, aqui neste país não dá! Não é o nosso caminho, porque toda a gente é agente do social e faz o «social».”
Assume, no entanto, que fizeram bastante trabalho (chegaram a ser vinte
pessoas no Serviço) e que deram destaque ao Serviço Social no meio da
saúde mas que com as mudanças de administração e a contenção
financeira, o serviço foi «descaindo».
“A gente até fez um trabalho para o Departamento de Recursos Humanos da Saúde, sobre as funções do Serviço Social da Saúde. Eu mandei para o diretor do Instituto para dar a base científica, o respaldo académico da nossa prática, mas nunca obtivemos resposta. (...) E a partir de alguns incidentes desagradáveis com o diretor do Instituto e o conselho de administração do Hospital comecei a desligar-me de tudo. É muito mau ser assistente social neste país. Porque eu tive muitas ilusões… “.
Contudo e, apesar da proximidade aos atores com cargos políticos centrais,
que percebeu estarem «todos ligados entre si», manteve uma certa
«independência» o que lhe valeu alguns revezes na trajetória profissional.
Em paralelo, a situação de indefinição académica do curso de Serviço Social
é descrita como tendo sido muito gravosa para a sua trajetória profissional.
“Andei também a lutar nesse processo desde o seu início. Não tínhamos definição de grau académico e por isso ingressei numa carreira designada de técnico auxiliar. Quando foi aprovado o Decreto que criou o serviço e o respetivo quadro de pessoal, não fui incluída”.
Na relação com os Públicos da Profissão, Fernanda refere: “Nós aqui [no hospital] fazíamos falta, porque as pessoas andam todas doentes, mas nem todas têm patologias graves. E mesmo as pessoas que têm patologias graves, precisam de outros apoios que não existem.
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Eu fico louca, como é que é possível isto acontecer! Inclusivamente temos colegas nossas que têm problemas de patologias graves e que ganhavam em juntar essa rede, a psicoterapia, a medicação e a terapia ocupacional, para esta gente puder fazer coisas e ser tratada como pessoa, não é?”
Esta dimensão de intervenção com as pessoas, protagonistas das suas vidas
e de direitos sociais, é muito vincada na sua narrativa, em detrimento da
intervenção nas estruturas.
Na dimensão do associativismo profissional, sente muita falta de união entre
os assistentes sociais, da «consciência de base» e acha que a profissão
precisa urgentemente de ser regulada. Na sua narrativa imputa a desunião
entre os profissionais “…àquela fissura que foi feita na altura da passagem à
licenciatura” em que o instituto Superior de Serviço Social segundo ela,
obrigou os profissionais a fazer uma formação complementar para obter a
licenciatura, quando “não tinha nada para lhes oferecer”.
Na fase atual de reforma expressa a vontade de participar mais na Associação
de Profissionais e contribuir para a regulação da profissão, mas menciona um
certo mal-estar que a impede de se envolver mais.
“A minha aposentação saiu a 1 de Junho, Dia da Criança, no mesmo dia em que houve a discussão no Parlamento da Lei - quadro das Ordens. Fui para lá toda entusiasmada, estavam colegas, a colega que é deputada, foi-nos receber (ela é espetacular!), deu-nos oportunidade de assistir e ver e ouvir aquela discussão. E depois venho para a Associação, penso na Associação e acho que aquela Associação não tem condições para a gente ir por aí. Não sei, deu-me um desgosto!”
À pergunta sobre o que é que falta na Associação para mobilizar mais os
profissionais, Fernanda é pouco clara e responde assim:
“O que é que falta ali? A direção precisava de dar mais atenção, e deve haver ali muita coisa estranha… sei lá! Tenho de refletir melhor nesse tema, hoje só tenho dúvidas sem respostas. Há muita gente que me liga, antigas alunas, e eu indico sempre para a Associação, criem grupos de trabalho... mas depois não acontece nada. “
Em relação à conciliação entre a vida profissional e a vida privada e familiar,
Fernanda diz que foi boa porque teve suporte familiar, nomeadamente o apoio
da sua mãe quando a filha era criança. Argumenta que sempre colocou um
bocado o serviço à frente, porque gostava do que fazia e entendeu que tinha
de se empenhar, mas sem descurar a esfera familiar.
Entende que a conciliação entre trabalho e família é possível:
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“…quando a gente quer, a gente consegue. A história da falta de tempo é para quando não existe vontade. Penso que quando gostamos do que fazemos, não existem dificuldades. Mas tem de ser mesmo sentido! Mas depois fiquei muito desiludida por causa deste percurso todo…”
E acrescenta: “Saí frustrada em alguns aspetos e orgulhosa, noutros, a gente não está só num patamar, são altos e baixos. Mas saí frustrada com a prática profissional, porque uma coisa em que eu acreditava era que o país tinha necessidade (como pão para a boca) de regular a profissão. …”.
Maria, é uma mulher com ar sereno, afável e de bem com a vida que diz que
trata “muito as coisas ao colo “, que é o que funciona primeiro, mas faz
questão de não se identificar com o estereótipo da assistente social como
“uma senhora de boa vontade e saia comprida”.
Na altura da entrevista já se encontra reformada de um serviço central da
Segurança Social há mais de um ano, após uma trajetória profissional de
trinta e sete anos, maioritariamente realizada num serviço local da
Segurança Social de um concelho suburbano de Lisboa.
Sobre os projetos de futuro diz que teve várias propostas para ir fazer
voluntariado mas que «não se sente sarada o suficiente», que «não se sente
preparada» e, na verdade, não lhe apetece. Não descarta a possibilidade de
vir a fazer voluntariado, mas diz que o que agora lhe apetece é «fazer coisas
bonitas» que nunca pode fazer antes (pintar, fazer um curso de dança,
passear e conviver com amigos). Entende que, após uma vida de trabalho
com muito desgaste emocional tem «direito a um pouco de supérfluo» mas,
ao mesmo tempo, isso faz com que se sinta «egoísta».
Sobre a sua relação com a profissão diz:
“…a gente não consegue sacudir ‘isto’ de repente, de um dia para o outro, não consegue. E onde quer que vá, vou com os mesmos olhos ainda por cima eu sempre fui um bocadinho rebelde, sempre fui insatisfeita com determinadas coisas, sempre procurei pôr o meu cunho pessoal no que fiz (não sei se consegui), de qualquer modo, nunca fui muito “manga-de-alpaca”... (…) Mas não foi nada fácil. Mesmo em relação às chefias e em relação às colegas. Eu tenho a certeza que se fosse mais maleável, mais manipulável, eu tinha ascendido a cargos maiores. Eu cheguei a rejeitar cargos, mas também nunca me interessaram. Para mim, as ofertas de cargos, tinham sempre que ver com condescender em determinados aspetos... percebes? Eu sempre prezei muito a minha liberdade de poder dizer e fazer aquilo
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que entendia. (…) Mas tomar esta posição durante uma vida toda, custa caro”.
Esta argumentação sobre uma certa autonomia na sua trajetória profissional
em relação às hierarquias e aos poderes instituídos é algo que marca a
narrativa de Maria e que, de certa forma, está presente em todas as
narrativas d @s seniores.
Na dimensão dos contextos organizacionais e «área» de intervenção, e
apesar de ter feito parte da sua trajetória profissional como Auxiliar Social
nas estruturas da Segurança Social, trabalhou quase sempre numa vertente
comunitária e de trabalho direto com as pessoas. Quando lhe é pedido para
destacar dessa trajetória, as experiências que foram mais marcantes do
ponto de vista das suas aprendizagens, Maria realça três experiências que
abarcam quase todo o seu percurso profissional:
• a primeira, foi o primeiro trabalho num Projeto da Promoção Social
Comunitária na Madeira (1966) e, apesar de ser de curta duração “foi de
longe o mais gratificante” e foi vivido com uma intensidade tal que lhe ficou
para a vida. Maria argumenta com a excelência das equipas que foram
constituídas e formadas expressamente para aquele trabalho, com o trabalho
em si que lhe agradava e com cuja orientação se identificava (não era
trabalho assistencial como era a maioria do trabalho que se fazia na altura) e
com os afetos que manteve toda a vida com algumas pessoas de lá, para
além das condições oferecidas que eram vantajosas.
“Era um tipo de trabalho com as populações, em bairros ‘especiais’, e quereria sempre os alunos que fossem dos melhores dos cursos porque, à partida, ela [Manuela Silva, a coordenadora] iria ser exigente em relação à qualidade do serviço prestado. Entretanto, eu entusiasmei-me com a ida para a Madeira, para um dos projetos-piloto. (…) porque na altura eu tinha lá a minha irmã a viver e em vez de ficar cá sozinha em Lisboa, ia para a Madeira. Na altura, éramos consideradas pessoal deslocado, tínhamos direito a um Lar e ao vencimento; e na altura, pagavam mais na Promoção Social do que na Assistência (nós recebíamos mais 200 escudos). Mas é engraçado como estes pormenores marcaram uma certa elite em relação às equipas da Promoção.”
Sobre o contexto organizacional da época, Maria diz que naquele tempo
havia o Ministério da Saúde e Assistência, a assistência para um lado e a
providência para outro e os serviços de assistência eram os serviços de
base. A Promoção Social Comunitária na narrativa de Maria é descrita assim:
291
“... quase que me dava vontade de lhe chamar um filho ilegítimo, porque depois acabaram com ela. No tempo do Baltazar R.S., um belo dia a Dr.ª Manuela Silva chegou ao gabinete, tinha lá um despacho a acabar com o serviço, foi uma coisa medonha! (…) E foi assim, o serviço acabou de uma forma... como se fosse um ato terrorista. Porque uma das coisas que nos estava a dar um prazer imenso, era ser um serviço completamente diferente, até as relações entre nós eram diferentes, ainda hoje se nota nos vários serviços por onde nós fomos distribuídas, ainda hoje o pessoal que é do tempo da Promoção tem uma relação diferente uns com os outros e ainda nas reuniões agora se fala: - Nós, no tempo da Promoção... Até porque havia hábitos de trabalho, completamente diferentes; por exemplo, os registos do trabalho, o cuidado com os instrumentos de registo, a valorização das relações interpessoais e de grupo e a visão de trabalho inter serviços, a cooperação...”
a segunda experiência, decorreu ao longo de mais de duas décadas
(1970/1996) na Amadora e constitui uma parte muito significativa da vida
de Maria. Foi um período que Maria identifica como de grandes mudanças:
“Em vinte e quatro anos assisti a tudo quanto foi mudança: mudança de chefe, mudança de estrutura, mudança do Ministério, mudou o nome do serviço, todos os anos mudava qualquer coisa. Então com aquelas mudanças sucessivas de governos cada ministro que vinha inventava uma maneira diferente e punha lá outro diretor novo.”
Na sua narrativa sobre este período Maria destaca alguns episódios e
argumentos em que as esferas de vida pessoal, familiar e profissional se
misturam: o reingresso no serviço onde tinha estagiado após uma breve
passagem por um trabalho indiferenciado, a licença sem vencimento por
volta de 1973/74 para acompanhar o marido em comissão de serviço na
Guiné e o regresso com a filha a Portugal, após a Revolução; a «luta» das
reivindicações e movimentações pós-revolução, onde refere ter apanhado a
‘guerra’ das auxiliares sociais a quererem o mesmo estatuto das assistentes
sociais, argumentando que faziam o mesmo trabalho e as auxiliares sociais
que não tinham curso nenhum a quererem a mesma coisa.
Aliás, refere que quando reingressa no serviço foi para fazer o trabalho de
que mais gostava e que tinha feito na Promoção Social Comunitária, que era
trabalhar com as comissões de moradores e as comissões de trabalhadores.
“Lembra-te que a Amadora tem toda aquela cintura industrial das fábricas, era a ‘Somincor’, era a ‘Sorefame’, era uma... que depois fechou, que eu ainda fui lá fazer inquéritos para lhes ser atribuído o subsídio de desemprego, agora já não me lembro do nome. Eu apanhei esse tipo de trabalho todo e ofereci-me logo para fazer também era verdade que ninguém o queria fazer, por isso não tinha concorrentes. E na Cova da Moura foi a mesma coisa, apanhei as comissões de moradores. Nas
292
autarquias, existiam os cadernos reivindicativos a pedirem as creches e os jardim-de-infância e os ATL, que não havia nada dessas respostas sociais. Foi uma sementeira (…). Apanhei toda essa fase de trabalho que foi interessantíssima, em que eu recuperei muito da experiência de trabalho que tinha feito e da metodologia que tinha aprendido na Promoção Social e apanhei ao mesmo tempo, internamente, a modificação de estatuto das auxiliares sociais e das assistentes sociais”.
Maria refere que o trabalho social na altura era desenvolvido em grande
proximidade com as autarquias, que não tinham técnicos nos seus quadros de
pessoal e que apoiaram a criação de estabelecimentos de apoio à infância,
para além do trabalho de atendimento normal das populações.
“… passou-se por aquelas fases de divisão por sectores de atividade (infância e juventude, família e comunidade, terceira idade), depois para outro tipo de organização, que era por áreas de intervenção (infância e juventude, apoio às IPSS, às IPAS que na altura chamavam-se IPAS, instituições privadas de assistência, depois passaram a IPSS)…Depois, para além disso existiam todos esses grupos a que eu dava apoio, principalmente as comissões de moradores, naquelas zonas onde eu trabalhei - na Damaia, na Cova da Moura, na Buraca. E aí a realidade era muito semelhante àquela que eu conheci no ilhéu de Câmara de Lobos, parecendo que não, havia muitas coisas em comum: a segregação, o grupo afastado da cidade, as necessidades económicas, o desenraizamento, havia muitas coisas em comum...”
Outro dos atuantes que Maria identifica, este pela negativa, foi uma chefia
que acabou com todo o trabalho comunitário, que desvalorizava
constantemente o trabalho de intervenção social e os seus atores e que
«fechou» o serviço na sua relação com o território, com a comunidade e com
as outras instituições.
“Este senhor era formado em Direito e levava o dia todo a ler legislação. Nós na altura, trabalhávamos muito com os Procuradores de menores e família, que eram o Dr. Epifânio, o Laborinho Lúcio, o Armando Leandro, eles iam lá trabalhar connosco à Amadora sobre as leis da adoção, das colocações familiares, as primeiras orientações que saíram, nós trabalhámo-las com eles diretamente. E então, nós tínhamos muitos pedidos do Tribunal de Menores e do Tribunal de Família, para fazer informações sobre as situações das famílias. (…) Não havia semana nenhuma que eu não tivesse uma ‘rima’ de informações para o Tribunal, até porque tinha um prazo apertado de resposta e era logo, logo que chegava um pedido, eu imediatamente fazia, até porque eu conhecia as famílias. Então aquele bairro da Reboleira, aqueles prédios, com aqueles apartamentos mobilados do J. Pimenta, aquilo era um ambiente de cortar à faca. A maior parte dos apartamentos era habitada por raparigas prostitutas, que deixavam as crianças sozinhas todo o dia, ou então fechavam-nas porque trabalhavam de noite e tinham que dormir de dia... Então, aquelas crianças estavam em perigo, maltratadas e abandonadas na rua e eram queixas a todo o momento. Nós, infelizmente, tínhamos muita experiência naquela
293
intervenção de proteção às crianças. Bem, a 1ª vez que eu fui ‘a despacho’ com uma ‘rima’ de informações técnicas para o tribunal o senhor começa-me a corrigir o português. Corrigir o português?! Eu até nem escrevo mal! Por acaso até não escrevo mal, nunca escrevi mal. Se fossem correções de conteúdo eu aceitaria, que às vezes há terminologia na área do Direito que a gente não domina (mas aquela terminologia até dominava, porque eu estava muito treinada a fazer aquilo)... Depois também tinha a mania que doutor era ele, nós éramos umas ‘cabeças de vento’, que levávamos os dias em reuniões e não fazíamos nada. Era assim que ele tratava connosco, para ele os importantes eram os senhores doutores médicos do SVIPES (foi o ano em que foi criado o SVIPES - são os Serviços de Verificação de Incapacidades Permanentes).”
Após esta chefia ter sido destituída, o serviço voltou à «normalidade» e Maria
volta a escolher o trabalho de intervenção direta com as populações (aliás,
era um tipo de trabalho que não precisava de disputar com nenhuma colega
porque ninguém o queria fazer) e fala com detalhe e entusiasmo dos
Projetos de Luta Contra a Pobreza, de Projetos de parceria para apoio à
infância com suporte financeiro da Comunidade Europeia e do trabalho direto
com pessoas com toxicodependência e/ou SIDA.
a terceira, foi no Instituto para o Desenvolvimento Social (IDS) para onde
foi requisitada já quase no final da sua trajetória profissional (2002/03).
Era a pessoa sénior numa equipa muito jovem e o conhecimento que tinha
dos serviços era um contributo muito reconhecido; na altura foi trabalhar no
âmbito da Comissão Nacional das Crianças e Jovens em risco e começaram
a criar as comissões de proteção concelhias por todo o país.
“…estive lá um ano e ao fim de um ano não prolonguei a requisição porque o trabalho era muito desgastante. A gente tinha dias de sair de casa às seis da manhã e regressar à uma, e no dia seguinte, outra vez. Eu não tinha já idade para quilo - Aquelas noitadas... Quilómetros e Quilómetros... Houve um dia em que fomos para uma reunião no Porto e tivemos um acidente a meio do caminho em que íamos morrendo todos. Rebentou um pneu da carrinha, ficámos viradas ao contrário no meio da autoestrada.”
Apesar da saída antecipada, a experiência é narrada como positiva num
contexto de grande apoio e aprendizagem técnica. Contudo, Maria
reconhece que o IDS foi criado «um bocado a mais» para colocar em
funcionamento, o que o governo entendeu não conseguir fazer através da
estrutura dos Ministérios.
“Eu tinha a nítida sensação e era assim que acontecia, que o IDS era a
294
‘menina dos olhos’ do Ferro Rodrigues. Projetos que ele queria ver bem conseguidos e, sem falhas e que servissem um bocadinho também de bandeira política, ele entregava ao IDS. E não há dúvida que havia uma vontade muito grande de fazer bem e havia um acompanhamento muito próximo dos técnicos, muito apoio, nós tínhamos com muita regularidade encontros com técnicos especialistas de ‘tudo o que era sítio’, de especialistas que eram convidados para vir falar, fazer reuniões e cursos - aquele pessoal estava sempre em formação permanente. De facto, havia uma vontade muito grande de que aquilo resultasse bem. E resultou bem. Os projetos que passaram pelo IDS tiveram bons resultados. (…)
Estas três experiências que acompanham o início, o maior período de
trabalho no mesmo local e quase o fim da trajetória profissional de Maria,
deixam de fora apenas alguns períodos em que Maria aceitou coordenar
alguns projetos e medidas de política social já numa fase madura da sua
trajetória profissional. Contudo, a sua forma «independente» de trabalhar,
aliada ao gosto pela “rua, pelo direto, por gente” contribuíram para que estas
experiências não fossem sentidas como significativas. Em jeito de balanço
diz:
“A quantidade de coisas que eu fiz ao longo destes anos, a quantidade de gente que eu conheci, a quantidade de serviços por onde eu passei, a quantidade de mudanças dos serviços a que assisti - que se calhar não mudaram tanto como isso, estão agora a inventar coisas que a gente deixou cair nos anos 60 e pensam que descobriram a pólvora. É Verdade! Se calhar, não inventam tanto como pensam, mas pronto nós temos um bocadinho essa mania, de partir sempre do zero. A gente nunca aproveita a experiência dos outros, o trabalho que está para trás não tem valor nenhum, não há que confiar nos outros. E ao nível de dirigentes é igual: o tempo e o dinheiro que se perde por partir sempre do primeiro degrau, sempre a partir do zero, quando há tanta coisa que se podia aproveitar.”
Sobre o significado do percurso profissional, Maria diz que ainda não se
conseguiu distanciar o suficiente para apreciar a reforma, que ainda se “vê
dentro” da profissão e que acha que isto de ser Assistente Social “é como ser
padre, fica para a vida toda”.
Na dimensão das políticas Maria faz uma trajetória dentro do ‘sistema’ e a
trabalhar com as medidas de política definida ao longo das várias décadas,
mas conserva uma certa capacidade de autonomia profissional e de análise
reflexiva e crítica. No entanto, a sua narrativa privilegia claramente a relação
com os Públicos, dizendo que a grande conclusão que tirou ao fim de muitos
anos foi que “a maior parte das pessoas não esperam que a gente lhes dê
nada de especial, esperam que a gente as trate de igual para igual” - a não
295
ser, como também refere, “os viciados da assistência” e “algumas
assistentes sociais que também acham que vão salvar o mundo com um
subsídio”; por oposição, exemplifica com outras formas de trabalhar:
“Lembro-me que eu tinha na Amadora, uma série de casos de droga (porque havia muitos casos de droga ali). E era impossível combinar com eles para irem lá ao serviço em dias de atendimento, a determinadas horas – nem pensar! Então, eu já não tinha só os da minha zona, porque depois uns diziam aos outros e eu tinha gente que já nem era da Amadora. Só que, na altura, o coordenador de equipa (que era um tipo inteligente) percebia que não era por não ser da minha zona ou por não ser, que eu ia deixar de acompanhar aquelas situações. Porque na altura, o que se pretendia era que o problema alastrasse o menos possível e se havia alguém que até conquistava a confiança deles, e conseguia conversar com eles e encaminha-los dali para o tratamento especializado das Taipas, melhor. Eu ia todas as semanas reunir com a minha colega das Taipas e todas as semanas trazia um molho de casos e íamos fazendo o acompanhamento, paralelamente, uma e outra. E aonde é que eu os encontrava, onde é que a gente conversava muito? Era lá num café, que havia ali ao pé dos serviços, que se chamava o Danúbio Azul, eu ia lá tomar um ‘cafézinho’ e eles começavam a chegar. Era capaz de estar ali duas horas, na conversa uns com os outros e depois cada um voltava para a sua vida; eu voltava para o serviço ou não, conforme a hora. E um belo dia, o dono do café chama o meu coordenador e diz-lhe: - Ai, veja lá, aquela sua colega que até tem tão bom aspeto, também anda na droga. Passa as tardes às vezes aqui, no meio daqueles drogados, que até faz impressão. Eu até já disse à minha mulher, eu não sei se diga ao chefe, se não diga, mas veja lá que ela nem vai trabalhar. Ela fica aqui no meio deles, todos com um ar desgraçado, eu vejo, porque depois andam aí a drogar-se pelos cantos. E depois o J. disse-lhe: - Olhe, ela está no meio deles mas está a trabalhar”.
Para Maria é claro que tinha de recorrer a estas estratégias para os envolver,
argumentando que não dava para os imaginar numa sala de espera, que eles
não tinham sequer paciência para respeitar uma hora do atendimento e que se
entendia que tinham que ser tratados de outra maneira.
Na narrativa de Maria não aparece a dimensão do Associativismo Profissional,
com exceção de um breve questionamento sobre os movimentos sindicais do
Serviço Social e o poder reivindicativo que a classe profissional não tem, na
sequência de uma argumentação que mencionava a presença/ausência da
profissão nos ‘média’ (sobretudo na televisão) e o entendimento de que é
“uma profissão de pobres” e como tal, tem uma baixa valorização social.
Sobre a conciliação da vida familiar e profissional, Maria diz que, quando
trabalhou na Madeira era solteira e podia trabalhar até «às quinhentas» da
noite que isso não constituía problema. Refere que só sentiu dificuldades
296
quando a filha nasceu e que foi o facto de estar a morar tão perto do trabalho
que a levou a permanecer no mesmo local tantos anos seguidos, porque a
família ia todos os dias almoçar a casa e esta proximidade permitia-lhe
acompanhar a vida familiar. Apesar de relatar épocas especialmente difíceis (a
seguir ao 25 de Abril em que o marido passava noites inteiras nas reuniões do
Movimento das Forças Armadas e em que se cruzavam muitas vezes à porta
de casa; ou outra altura em que o marido estava a trabalhar fora de Lisboa e
ela estava a fazer o complemento para a licenciatura em horário pós-laboral)
refere que nunca sentiu que a sua vida profissional os afetasse.
À distância, acha que correu bem e que foi sempre um elemento muito
presente, mas a propósito fala na condição das mulheres portuguesas da sua
geração que “têm de programar cada coisa com todas as outras”, ao contrário
dos homens que “podem sempre fazer tudo e dizem que sim a tudo”.
297
OS DO TEMPO DA ‘LUTA’: INÊS E ANTÓNIO
Neste perfil estão agrupados dois assistentes sociais, Inês (IV6) e António
(AF1), com trajetórias e posicionamentos muito diferentes mas que, nas suas
narrativas, dão testemunho dos tempos de revolução no país (e nas ex-
colónias africanas) vivenciados na juventude e de um processo de ‘luta’ pelo
reconhecimento do grau académico: “Estive num momento um bocado
interessante do Instituto, para o bem e para o mal”, diz António.
Ambos nasceram nos últimos anos da década de 50 e, em termos de faixa
etária distinguem-se d@s seniores; por outro lado, o testemunho das suas
trajetórias profissionais pontua diferentes aspetos dos acontecimentos políticos
e sociais vividos, mas também das alterações da formação em serviço social,
dos perfis profissionais e das mutações do mercado de trabalho. Os tempos
das suas trajetórias profissionais estão marcados (a rosa) no quadro abaixo.
Tabela nº 2 - Tempos e trajetórias profissionais dos entrevistados
1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010
Inês Nasceu
1956
Ingresso
1974/75
(Angola)
Curso
1978/82
(Coimbra)
Ent
2008
26TP
António Nasceu
1959
Curso
1980/84
Ent
2006
22 TP
Notas: TP – Anos de trajetória Profissional; Ref – Reforma; Ent - Entrevista
Os períodos e locais da sua formação inicial também são diferentes: Inês
começou por frequentar o Instituto Pio XII em Angola, interrompeu os estudos
e, passados alguns anos, realizou a sua formação em Coimbra e António,
298
após o secundário andou a fazer ‘outras coisas’, como ele diz, e só voltou a
estudar, para realizar o curso, alguns anos mais tarde também.
Têm em comum, estes tempos de interregno entre o fim do ensino secundário
e a opção pela formação em Serviço Social, a que atribuem um significado de
grande maturação pessoal e riqueza de aprendizagens, sobretudo não
formais e informais.
Em relação às suas trajetórias profissionais, a historicidade e a relatividade de
expressões como «qualificações», «competências» e «saberes» enfatizam
sobretudo o seu carácter relacional e introduzem outras dimensões como
«incerteza», «flexibilidade» e «reversibilidade» nas trajetórias sociais e nos
contextos profissionais. Neste âmbito, o interesse pelas (re) composições dos
processos de reestruturação dos modelos profissionais de socialização e de
identificação foi algo que atravessou o processo de interação com estes
atores.
Fica evidente em ambas as trajetórias que no início da década de oitenta
(1982 e 1984) quando terminaram a sua formação inicial, ainda existia
facilidade de encontrar trabalho no campo profissional, embora com vínculos
mais precarizados (os primeiros recibos verdes ou vagas temporárias na
administração pública sobretudo a nível local) e as suas duas trajetórias são
marcadas por mobilidades de contextos de intervenção, onde imperam
motivações de realização, autonomia profissional e de uma aprendizagem
contínua para renovar e/ ou inovar as possibilidades de exercício profissional.
Na narrativa de Inês é utilizada a metáfora do «ponto-pé-de-flor» (referindo-se
a um tipo de técnica de bordar) que é, segundo explica “um passo em frente e
dois à retaguarda” para descrever a importância da reflexividade na prática
profissional:
“…se nós não nos conseguirmos distanciar do que fazemos, quer no tempo, quer no espaço, se nós não conseguirmos procurar novas energias através das leituras e daquilo que estudamos, nós não vamos criar nada de novo, nós vamos andar em círculos. Por outro lado é, de facto, a flexibilidade, a capacidade de deixar as coisas acontecer à medida que elas vão acontecendo, que permite inovar”.
Na narrativa de António sobressai «um certo pensamento divergente», que
ele nomeia como uma «sensação de ter andado a antecipar as coisas» e
299
alguma «dissidência», que ilustra também com recurso a metáforas: das
quais destaco duas, a da ‘Lagoa de Óbidos’ e a dos ‘músicos de Jazz’:
“…é saindo que se pode renovar aquilo que está estagnado, ou seja, mal comparado, é como a Lagoa de Óbidos: é preciso que a água do mar lá entre para aquilo refrescar, para que aquele ecossistema (que tem de estar condicionado porque a característica dele é mesmo assim) possa refrescar (…) e faça uma limpeza; ou seja, a gente tem que ir dentro e fora do campo profissional” . “ …às vezes, sinto-me como os tocadores de ouvido, como aqueles músicos que nunca foram à escola e que não sabem ler uma pauta. Os tipos tocam música tão bem como os outros, mas são uma espécie de músicos analfabetos…sempre com um trecho de base, um bocado como o Jazz; o trecho é o mesmo e, se calhar, tu vais reinventando cada uma das coisas, de improviso. (…) É preciso ir buscar trechos de competências da profissão para trabalhar noutras áreas que permitam readaptar-me ao trabalho, uma espécie de rapsódia…”.
Estes dois atores partilham alguns aspetos das suas trajetórias,
nomeadamente uma proximidade ao campo da Sociologia, mas evidenciam
também diferentes formas de «representar» e de «estar» na profissão,
ilustrando algumas das forças tensionais presentes no campo profissional,
nomeadamente a posição de Inês que argumenta uma profissionalidade
reforçada pela qualificação académica e pela reflexividade profissional e a
posição de António, que parece mais próxima de um «pós-profissionalismo».
Inês, é uma mulher com uma narrativa estruturada e eloquente, que fala de
uma grande paixão pelo Serviço Social. Ao longo de uma trajetória profissional
com mais de vinte anos identifica que o seu «fio da meada» profissional é a
prática comunitária e “a polivalência de criar sinergias e de misturar tudo”, com
a “consciência de que a Educação é estruturante para a vida” e cruzando com
outro eixo estruturante que é a formação académica “o fascínio pelas teorias e
pelos livros”. Diz de si que vive sempre na fronteira e na dualidade, mas com
uma grande consciência de ser ator e atuante.
Inês, que nasceu, cresceu e estudou em Angola (onde viveu até aos 18 anos)
iniciou um percurso formativo em Serviço Social interrompido pelo processo
de descolonização, intercalado com outras experiências de vida e de trabalho
e concluído em Coimbra, no Instituto Superior de Serviço Social daquela
cidade.
300
Na altura da entrevista, exerce como docente do ensino universitário no 1º
ciclo da formação de assistentes sociais e encontra-se a terminar
doutoramento.
A dualidade nomeada por Inês marca a sua trajetória profissional, entre uma
ação profissional comunitária e uma ação profissional como docente, ambas
comprometidas com um aprofundamento contínuo do conhecimento.
Exerce em contextos organizacionais diversificados, embora as suas
experiências mais longas e gratificantes (respetivamente de onze e cinco
anos) sejam em estruturas do poder local, nomeadamente numa Junta de
Freguesia e numa Câmara Municipal. Descreve a localidade onde exerceu
mais tempo como “a minha casa, a minha escola e o meu chão”. Desenvolveu
aí um trabalho comunitário com “três pilares” de alguma maneira constantes
em diversas experiências da sua trajetória profissional: no primeiro pilar,
identifica a ligação ao Teatro como animador do movimento cultural, no
segundo pilar coloca a Paróquia e toda a estrutura de intervenção cristã,
através da solidariedade, da justiça e da igualdade e no terceiro coloca a
Junta de Freguesia que continua a trabalhar com a ligação entre os vetores da
comunidade, da solidariedade e da liberdade.
Nesta experiência, também mobiliza um grupo de trabalho e reflexão com
outras assistentes sociais, reconhecendo que “temos que estar sempre a
reformular tudo”. Considera este período a sua grande «sementeira»:
“…foi fazer associações de moradores, foi fazer associações de pais, foi fazer associações juvenis, foi fazer associações de património e foi o grande fascínio de ver que cada um tem um potencial imenso e passar às pessoas o testemunho de que elas são capazes…”. Valoriza a dimensão de «ouvir» as pessoas e de trabalhar com elas na perspetiva de que o trabalho é feito com as pessoas, “a partir das pessoas onde elas estão e como as pessoas são, não como nós gostaríamos que fossem”.
Após uma divergência com um autarca, muda para uma Câmara da área
metropolitana de Lisboa e faz um trabalho semelhante:
“…vou para os bairros, crio os projetos de intervenção comunitária e começo a trabalhar com ‘rodas’ de pessoas. Não são grandes assembleias, são ‘rodinhas’, ‘rodinhas’, ‘rodinhas’. Quando somos vinte, temos quatro rodas de forma que as pessoas possam falar entre si. E começamos a sistematizar trabalho com objetivos muito claros. É preciso passar às pessoas que «venho aprender com vocês, não trago nada, não ensino nada»; e o grande fascínio é o potencial que está dentro de cada um”.
301
Nesta experiência de trabalho cria um gabinete de apoio à imigração,
trabalha com as Igrejas e com as Associações de Imigrantes e inicia a
constituição da Rede Social.
Esta narrativa de mobilização e ativação dos recursos e agentes locais para
processos de mudança parece mais do domínio da estratégia e da
metodologia, do que do domínio das Políticas (assegurando um claro «para
quê»), muito embora Inês tenha um posicionamento esclarecido e reflexivo
sobre as Politicas em vigor, colocando a relação com o Estado e as
organizações “dentro da complexidade e do sistema aberto em interação
com outros sistemas, alguns ‘Mega sistemas’ e com os quais eu tenho que
interagir, sobrevivendo na minha pequenez”.
Entende que o Serviço Social “esteve sempre na fronteira do sistema, lá
onde a rutura acontece e é preciso agir “ e argumenta que se a profissão só
reproduzisse o sistema não tinha sobrevivido. A sua atual volta à Faculdade,
como docente e como aluna foi “em busca de aprofundar outras coisas”
diferentes do campo de exercício profissional.
Diz que tem uma leitura otimista mas «louca» do Serviço Social (presente e
futuro) e aprofunda (com algumas dificuldades de aceitação pela academia)
o estudo da participação, “entendida como um conhecimento construído pelo
utente e pelo profissional, na relação-ação”. Este compromisso com os
Públicos com quem se relaciona profissionalmente, contribui para considerar
que existe um «saber construído» conjuntamente, que “a academia não
considera válido porque não é literário, sistematizado, positivista, objetivo,
neutro e lógico”, que está no sujeito epistémico que constrói conhecimento
na ação e esse conhecimento inclui a relação entre os sujeitos, ligada ao
meio e aos outros – e é, segundo Inês, o «fio fininho» que atravessa o
serviço social
Voltando à sua trajetória profissional, esta inicia-se logo após o curso, na
Secretaria Regional de Habitação e Ambiente, pertencente ao Governo
Regional da Madeira (a Madeira era a terra dos avós para onde a família
regressa na volta de África). Trabalha num gabinete de reabilitação no
realojamento social em Câmara de Lobos e diz desta vivência que “foi
fabulosa porque foi voltar à comunidade, voltar ao terreno”. O seu gabinete
302
de trabalho serve de espaço a várias respostas e dinâmicas comunitárias
(escola de adultos, Atelier de Tempos Livres/ATL, animação comunitária…),
e Inês refere:
“…consegue-se trabalhar com adultos, com jovens, com crianças, com o formal, com o informal, consegues juntar as estruturas e as dinâmicas locais (…) e na primeira exposição que nós fazemos dentro da biblioteca de Câmara de Lobos com os desenhos dos meninos, não tínhamos esticadores, todos os desenhos foram presos às estantes com fita-cola a fazer de fio para colar os desenhos, filas, filas, filas…o fascino dos miúdos por verem os seus trabalhos expostos, foi fabuloso. Foram os pais, foram os tios, foram as primas, foram as avós, foi toda a gente”.
Passado um tempo decide voltar ao continente para se inscrever em
Sociologia e trabalhar na Segurança Social em Torres Vedras para um
«projeto-piloto», numa altura (1985) em que o sistema de Segurança Social
foi reestruturado e unificado.
Considera a experiência marcante em termos profissionais porque entra
numa estrutura “burocrática, fechada, fiscalizadora, fiscalizante, castrante”,
confronta-se com a divergência entre um «espírito legislativo» com que se
identifica e “um ‘aparelho’ que pretende apenas racionalizar o exercício da
assistência por parte do Estado e normalizar os procedimentos dos
assistentes sociais”, mas percebe “que é possível trabalhar em apoio
psicossocial numa secretaria, que é possível trabalhar consciências e é
possível, de facto, transformar as pessoas”.
Situando as dificuldades que encontrou para realizar o trabalho da forma
como lhe fazia sentido (a começar pela dificuldade em se deslocar no
território que lhe estava afeto, passando pela ‘não autorização’ por parte da
hierarquia «aqui não se trabalha assim» e a acabar no seu despedimento),
foi desenvolvendo estratégias de trabalho para conhecer a população
através dos agentes locais (em especial, os párocos e os presidentes de
junta) e articular os processos de intervenção. Relata a intervenção que fez
com as famílias retornadas das ex-colónias (individualmente, em grupo e em
rede) que estavam dependentes de subsídio, no sentido de as autonomizar e
regista que “…as pessoas tinham ideias fabulosas sobre o que elas próprias
podiam fazer e fazia o projeto com a própria pessoa”.
Neste período, Inês identifica a utilização de um sistema de transporte
cooperativo onde, como estudante-trabalhadora, faz um movimento diário
303
entre Torres Vedras e Lisboa, como uma experiência muito rica: para além
da utilidade prática deste transporte partilhado é dada relevância ao tempo
de convívio durante os trajetos, em que cada um contava coisas da sua
faculdade e às festas que faziam em casa do motorista para celebrar as
formaturas de cada um/a que se formava.
Depois de sair de Torres Vedras vai trabalhar com idosos para Samora
Correia num Centro de Dia e adora a experiência, reconhecendo que parte
da sua ‘escola’ foi com estes idosos:
“Fazia escola no centro de dia, ensinava-lhes as letras e os números mas também aprendia com eles …como é que tinha sido a sua escola? Como é que as coisas eram antes? Como é que podiam ser depois? O que é que podíamos fazer a seguir?”
Ouvia as suas histórias e escrevia os seus relatos de vida:
“…de pessoas que trabalhavam nos arrozais das seis da manhã às sete da tarde, que trabalhavam na apanha da azeitona e que ficavam quatro a cinco meses longe da família, que iam ao sobreiro, que iam para a cortiça, que iam para o castanheiro, que iam para a ceifa. As pessoas eram arrematadas na praça pública ao sábado de manhã. E quem não se apresentasse, a polícia ia buscá-lo a casa e ia preso. As mulheres eram separadas para um pavilhão e dormiam no chão; e comiam meia fatia de broa e uma azeitona. Isto é em Portugal, nos anos 70, não é século XIX.”
Durante este período começa a fazer grupos de trabalho com as várias
diretoras técnicas de outras estruturas de apoio a idosos e considera que o
trabalho de equipa é outra dimensão estruturante do exercício profissional,
porque permite “perceber como é que várias assistentes sociais juntam criam
um saber que nenhuma antes tinha e que vai potenciar o trabalho de cada
uma”. Defende que o trabalho em equipa, feito com regularidade, permite
escrever o que se vai fazer e o que se vai ler e projetar como é que aquilo que
estão a conhecer e a estudar, se vai mobilizar nas respetivas práticas – esta
preocupação com a formação permanente, com as leituras, com o
questionamento das práticas, com a necessidade de trabalhar em equipa, com
a necessidade de ter gente de fora (estagiários) que ajude a ver ‘de fora’ é
algo que Inês refere levar do ISCTE. Entende que tem de se trabalhar como
um sistema aberto, que o conhecimento é de todos e que “há questões que
podes resolver porque estás ‘dentro’ e que vão ‘mexendo’ a partir de ‘fora’ e
que vão interagindo e que se vão resolvendo por esta ligação ‘entre o fora e o
304
dentro’.” De seguida, vai então para Carnide onde intervém durante onze anos
(primeiro no Centro Paroquial e depois na Junta de Freguesia) e onde refere
ter feito a “sementeira”.
Não existe menção na sua narrativa à dimensão do associativismo
profissional, embora face ao seu ativismo profissional e político e, quando
questionada sobre o ‘movimento de cidadania profissional’ refira com otimismo
que “esta apatia é apenas aparente (…) esta é uma daquelas fases que
parecem mortas e que a seguir vem uma geração que vai dar a volta”.
Sobre a conciliação da sua vida profissional com a vida familiar, Inês não
atribui importância até porque refere que existem hoje “grandes possibilidades
de estar em vários lugares ao mesmo tempo” e argumenta que os assistentes
sociais
“…não foram necessariamente nem missionários, nem eremitas, nem pessoas de vocação. Foram pessoas convictas dos seus ideais e da sua ação transformadora perante a sociedade, convictas da autodeterminação do sujeito e do seu espaço em relação aos utentes”.
António, é um homem que se descreve como «abelhudo», «safa-
enrascadelas» e assume ter perfil de animador - na perspetiva de “uma
animação/educação informal ou não formal”. Privilegia no serviço social a
parte da “animação/dinamização do tecido social e de iniciativas locais” e diz
que a outra parte, “a burocrática”, não lhe interessa; reconhece, contudo, que
a vertente da animação não está aproveitada pela profissão e que, por
vezes, “também não é muito gratificante porque é só utilizada para os
pequenos projetos”.
Na altura da entrevista estava a trabalhar num serviço de formação contínua
de uma autarquia.
Sobre os seus projetos para o futuro refere que se está a reconverter
profissionalmente para trabalhar como ‘técnico de reconhecimento de
competências’ ou ‘técnico de qualidade’ (na área do desenvolvimento
organizacional) e que liga essa «reconversão» com o serviço social através
da «participação», do «projeto» e da «comunidade de trabalho». Considera
que o que o atrai é a possibilidade de “ir buscar trechos de competências da
305
profissão para trabalhar noutra área” que lhe permitam readaptar-se ao
trabalho.
Na dimensão dos contextos organizacionais, António tem uma posição crítica
defendendo que o serviço social, na sua perspetiva, é “uma profissão típica
do século XIX que não se soube renovar…que tinha um culto das instituições
de forma absoluta e como as instituições eram muito ‘pesadas’, ficámos
colados até no nome” e argumenta que para se reinventar, a profissão não
tem recursos que cheguem; defende que a profissão tem de os ir buscar fora
do campo profissional e tem de ir buscar os dissidentes para receber algo de
novo. Refere também na sua narrativa as questões da relação da profissão
com o poder, argumentando que os assistentes sociais não se têm sabido
defender:
"Nós temos sido manipulados e temo-nos deixado manipular em termos políticos e não se tem batido o pé. Depois também tem a ver com uma cultura de consensualidade a todo o custo; não se criam ruturas..."
A sua trajetória profissional está marcada por uma mobilidade «nómada»,
por ter andado «a saltar de sítio para sítio» numa ideia de trabalho por
projeto:
“…princípio, meio e fim, acabou e segue para outro. Concebê-lo, desenhá-lo, montá-lo, negociá-lo, trabalhá-lo, redesenhá-lo, pôr a funcionar, redefinir outra vez, depois devolve-lo ao serviço, avaliando as partes que interessam e que não interessam”.
António refere que, no início da sua trajetória profissional, teve logo uma
oferta de trabalho por intermédio de um professor, ligando essa oportunidade
com o facto de ser “representante dos alunos no conselho executivo do
ISSSL". As suas duas primeiras experiências de trabalho são de curta
duração (cerca de um ano cada), pagas a «recibos verdes» e a fazer a
coordenação de formação profissional: a primeira, foi no Centro Cultural de
S. (um modelo inspirado nas “Maison de la Culture et de Jeunesse”
francesas) - neste período vive (no parque de campismo) em S. com a sua
esposa, que é professora e também ficou lá colocada; a segunda, foi na
Quinta da Lapa, em Manique do Intendente.
A narrativa de António sobre estas duas experiências, sobretudo sobre a
segunda, é muito crítica e detalha, com bastante pormenor, os atuantes
políticos dos contextos em intervinha, as dinâmicas e as tensões vividas
306
numa época onde a intervenção social estava muito partidarizada e onde
eram próximas as ligações entre os vários atores do poder político central e
os atores locais “numa ‘guerra’ ideológica, em que em termos partidários
estava tudo muito ‘assanhado’”.
Recorda a ocupação em 1975 da Quinta da Torre Bela (foi o primeiro
exemplo às portas de Lisboa da reforma agrária e foi feita com pessoas da
zona onde estava a intervir) e reconhece que o projeto em que trabalhava
era a «contrarrevolução», um projeto de muita formatação ideológica, um
meio para “dar qualquer coisa em troca e pacificar as pessoas”. Inscreve
esta estratégia na sequência das movimentações anticomunistas de Rio
Maior que eram contra o que na época ‘quente’ do PREC se dizia ser, a
ameaça da ‘ditadura de esquerda’. Situa que uma das prioridades políticas
de então era «limpar» as estatísticas do desemprego, utilizando um
subterfúgio que o financiamento comunitário permitia, que era colocar as
pessoas em formação e retirá-las dos números do desemprego.
Na fase final do projeto, começa a procurar trabalho e volta à Câmara onde
tinha feito o último estágio académico, para trabalhar na Ação Social Escolar.
Esta é uma área de competência autárquica dentro da intervenção municipal
na Educação que ainda estava muito marcada pela construção de escolas
(aliás, a chefia da Divisão de Educação era um Eng.º Civil o que também diz
desta perspetiva). António, aborrece-se com um trabalho muito administrativo
e de gestão processual (“o chefe queria era que eu comprasse fogões e
panelas para os refeitórios escolares”) e, à sua revelia, faz um estudo de
caracterização das escolas e da problemática do insucesso escolar e
trabalha com as associações de pais que na altura reivindicavam a criação
de ATL para os tempos pós-escolares dos seus filhos. Esta estratégia vale-
lhe uma «guerra» com o chefe e acaba por mudar de serviço dentro da
mesma Câmara.
Ele e outra colega saem da Educação e são os primeiros técnicos a integrar
uma nova divisão orgânica com uma designação genérica de ‘Assuntos
Sociais’ e que era chefiada por uma assistente social (o que à época, era
pouco comum).
António inicia então um vasto trabalho de diagnóstico e de intervenção que vai
307
contribuir também para o crescimento acelerado deste serviço
“…por cada associação ou instituição criada, a chefe abria uma ‘pasta’, muitas ‘pastas’ implicavam muitos processos e muitos armários e a chefe queria ganhar campo de intervenção nos «terrenos de ninguém ou de fronteira entre serviços», os terrenos em que ninguém pegava”.
Na sua narrativa António expressa o entendimento de que esta trajetória, não
sendo isenta de dificuldades, foi de grande aprendizagem: “a gente cresce
com as coisas [em que participa], em todos os sentidos”.
Entretanto, fica responsável pela área dos ‘adolescentes’ e com uma pequena
equipa começa a intervir num espaço que a autarquia arrenda numa das
freguesias suburbanas mais populosas e onde a situação dos jovens é mais
difícil, não só pelo insucesso escolar como também pelo aumento do consumo
e tráfico de drogas.
No contexto deste território e deste espaço de intervenção tem uma das
experiências mais marcantes da sua vida (onde ganhou cabelos brancos)
através de um projeto com jovens em situação de risco e delinquência. O
projeto, que elaborou e coordenou no âmbito do Programa ‘Horizon’, com
financiamento do Quadro Comunitário de Apoio de então, durou um ano e
pouco de trabalho muito intenso, mas com a montagem, organização e
avaliação chegou aos dois anos.
Sobre este projeto que foi pioneiro num tipo de trabalho «em rede e sem
papel», António refere que tinham um objeto «estranho e diferente» e pontua
que a primeira dificuldade foi de constituir uma equipa com técnicos
habilitados e com experiência nesta intervenção «nova».
Começaram a fazer um diagnóstico das situações dos jovens e perceberam
que tinham dois ‘tipos’ diferentes: uns, que frequentavam o espaço da câmara
e ainda estavam inseridos nas escolas e nas famílias e outros, que já tinham
abandono escolar e ligações a grupos muito «pesados». Conforme foram
«puxando o fio da meada» perceberam que era uma «meada terrível» e que
os jovens com situações mais «pesadas» precisavam de um apoio mais
estruturado e prolongado do que o projeto podia dar. António, identifica as
dificuldades em gerir as «fronteiras», já que a equipa do projeto era uma
espécie de «antecâmara» entre as instituições (as escolas e outras) e as
dinâmicas dos ‘gangues’ de rua, que exerciam uma força atrativa nos jovens
308
através de lideranças fortes que os cooptavam para processos e percursos de
delinquência.
À distância, considera que o saldo do projeto foi trágico porque «acertaram no
alvo» mas só após o tempo de projeto é que conseguiram perceber «as
malhas» do território e «as ligações dos miúdos» e ganhar a sua confiança; e,
nessa altura não tiveram «recursos, dinâmica técnica e cobertura política»
para prosseguir o trabalho.
Refletindo sobre esta experiência, António destaca vários aspetos que
podem ser extrapolados para a sua trajetória profissional:
- a burocracia autárquica que não deixou vingar a intervenção;
- a confusão entre trabalho de projeto (com principio, meio e fim, exploratório
e experimental) e trabalho de serviço; confusão que ele relaciona também
com o financiamento e a ‘tecnologia de projeto’ imposta pela Comunidade
Europeia (para obter financiamento, chamava-se projeto a toda a intervenção
social);
- a forma como a realização destes projetos permitiu aos serviços e às
organizações manter a rigidez e «circunscrever a mudança», no sentido em
que ele ilustra com a expressão: «vão lá para fora brincar às inovações»;
- a dificuldade em produzir registos e evidências escritas (a que o Programa
e o financiamento externo obrigavam) porque a equipa era muito reduzida e
estava toda envolvida na intervenção direta (“ou fazia a intervenção, ou
tratava dos papéis, não dava para tudo”;
- o «branqueamento» dos relatórios de execução do projeto, em que foi
compelido a mudar o conteúdo para «bater certo com o que era exigido».
Estes relatórios não revelavam a intervenção efetivamente feita e as
aprendizagens realizadas por todos os envolvidos, durante aquele tempo de
vivências muito intensas;
- o sentimento de que não dava suporte suficiente aos dois educadores
sociais que estavam na intervenção direta com os jovens e que passaram
por situações dramáticas e de verdadeiro perigo para a sua integridade
física;
- o risco de que a intervenção com estes jovens passe a ser feita por via da
polícia e por via da ‘limpeza’, no sentido em que as instituições podem
309
assumir que
“…se não os podemos exterminar, limpemos a sociedade como se tiram as ervas ou como se tira o lixo, varremos para de baixo do tapete, ou metemos os jovens a apodrecer num canto ou a levar uns tiros e uns ‘chutos’ de um cartel de droga qualquer para que não chateiem”.
Após o projeto e, após uma segunda candidatura não aprovada, apesar de
terem garantido as parcerias locais e internacionais necessárias e de
considerarem que tinham reunido a experiência, o conhecimento e os
recursos locais necessários, António considera que a equipa técnica tinha
aprendido mas que não foi possível passar essa aprendizagem para o
serviço/organização, concluindo que as instituições (nomeadamente a
autarquia onde trabalhava) não estavam aptas para este tipo de trabalho de
intervenção. Refere que muitos jovens “perceberam e testemunharam que o
melhor período das suas vidas foi aquele” mas, na continuação do apoio
após o projeto confrontaram-se (os jovens e os técnicos da equipa) com a
falta de resposta das instituições (ilustra com o caso caricato dos testes
vocacionais do Centro de Emprego onde alguns jovens «tinham vocação»
para distribuidores de pizas).
Ainda sem tempo para fazer o luto deste processo (“tinha uma necessidade
enorme de falar intensamente sobre aquilo, com pormenores, não percebia o
que nos estava a acontecer…”), foi cooptado para trabalhar na Comissão de
Proteção de Menores e Jovens. Estas equipas tinham sido criadas há cerca
de um ano, eram constituídas por representantes de vários serviços locais e
ele menciona que foi chamado porque “faziam as atas muito direitinhas,
abriam e fechavam processos mas não resolviam nada”. Neste contexto, faz
estudos para compilar e interpretar os dados, mobiliza núcleos de trabalho por
zonas geográficas para debater a proteção das crianças e faz intervenção
direta, reconhecendo que era “com este contacto direto e próximo que surgiam
as ideias”, embora também refira que viveu «coisas tenebrosas»:
“…chegámos a visitar situações muito complicadas, de entrarmos em casas de ‘chuto’, de traficantes, com crianças lá dentro…”.
Em relação a «áreas» de intervenção António, conforme já foi referido coloca-
se de fora de uma divisão setorial e identifica-se transversalmente com a
animação, entendida como educação não formal e informal. Entretanto do
ponto de vista da sua trajetória, muda para outra câmara, mais uma vez
310
utilizando o apoio dos seus contactos no meio profissional.
Conseguida a mobilidade vai para um serviço ligado à Educação (Ação Social
Escolar) onde, mais uma vez, encontra um trabalho pouco estimulante, “os
primeiros tempos foram um bocado difíceis. Andei eu a comprar o que se
chamava pomposamente ‘palamenta’' [conjunto de pratos, talheres e outros
utensílios que apetrecham os refeitórios escolares] mas, também como é sua
característica, investe e procura dar sentido ao que faz, com uma intervenção
no âmbito da rede de cidades educadoras e com outros trabalhos que o
gratificam. Fica neste serviço sete anos e muda porque entende que:
“...devemos mudar quando estamos a ser bem-sucedidos…um ‘tipo’ ao fim de certo tempo acha que já sabe tudo, tem as rotinas todas adquiridas. E depois, nós sabemos que os procedimentos não são saber…mas dão-nos a sensação de poder, pensa-se que já se sabe tudo.”
Ele considera que já estava ‘convencido’, já todos lhe perguntavam como se
faziam as coisas, já tinha ‘a mania’ que sabia tudo e já controlava tudo,
mesmo o que não era o seu trabalho. Coincidindo com a entrada de uma nova
chefia (a quem não reconhece competência) pede para sair para outro serviço
da Câmara – um gabinete técnico de reabilitação urbana no centro histórico da
cidade.
Em simultâneo, estava a fazer mestrado em sociologia (no ISCTE) e tinha a
expectativa de que neste novo serviço conseguisse estar menos exposto às
questões «do poder» e aos desmandos da hierarquia. Contudo, o novo chefe
reduzia as suas funções ao mínimo e António pede outra vez para mudar de
serviço, desta vez para o Departamento de Formação da autarquia.
Aquando da entrevista está em fase de integração no serviço, a acompanhar
um grupo de pessoas em RVCC com o suporte de uma colega, dizendo-se
«fascinado» e «em aprendizagem». Reconhece que estar em aprendizagem é
um processo de adaptação exigente: “Não me dão espaço e eu, por vezes,
também faço como fazia antes e já não é bem assim”, dando testemunho da
dificuldade de «errar» em certas coisas que parecem básicas e tanto mais
difícil quanto "já se tem uma certa idade e estatuto". Por outro lado, considera
que os conhecimentos e a experiência que possui também lhe dão uma certa
vantagem de compreensão e de análise (que evita expor para não ser tido por
arrogante).
311
Encontra paralelismos entre o trabalho que desenvolve no âmbito do RVCC e
o de interventor social, nomeadamente “...com uma relação de ajuda em que a
pessoa pode descobrir algo diferente, no sentido de ajudar a perceber e
valorizar as competências que adquiriram ao longo da vida” e principalmente a
ficar com um «saber-ser» que ajude a ver o mundo com outros olhos. Na
dimensão das políticas e dos públicos, este assistente social refere que a
profissão se vinculou às instituições e a modelos institucionais que eram do
passado e não se transpôs, nem evoluiu. E argumenta contra a corrente que
defende a profissão como «uma arte» dizendo:
"Arte onde? Arte o quê? Um 'gajo' que mergulha num contexto, 'agarra' e dinamiza e dá a volta ao contexto por um conjunto de trabalhos... isto é a arte de estar vivo e dar a volta aos problemas para encontrar soluções. É esta a arte de intervir, mas as partes boas que existem na intervenção nunca acontecem dentro da instituição".
Assume que tem um pensamento divergente e que isso lhe dá uma certa
liberdade e que é bom "não ter baias muito altas" mas questiona que se calhar
também é liberdade a mais e que, por vezes, gostaria de ter modelos próprios
e que a profissão andasse menos atrás "das modas", porque desta forma
"andamos sempre a estruturar o que os outros andam a desestruturar".
“...no Serviço Social, não temos o hábito de concretizar as coisas, fica-se muito no «paleio»; é-se prático naquele sentido em que se faz um conjunto de tarefas e pomos toda a gente a mexer, mas o problema é que, por vezes, não sabemos «para quê» ou «para onde» ”.
O Associativismo Profissional não é abordado na sua narrativa, embora se
expresse muitas vezes, em termos coletivos e dê grande relevo às suas
aprendizagens como dirigente associativo estudantil.
Sobre a conciliação da profissão com a esfera de vida privada, António fala na
generalidade e dá destaque à feminização da profissão e, em simultâneo, à
baixa representatividade das mulheres nos cargos de chefia e nos órgãos de
poder onde reconhece que ainda não existe paridade.
312
Os primeiros «doutores»
Neste perfil estão «agrupados» seis assistentes sociais: Jaime (E JF19), Irene
(E IS11), Filipa (E AR12), Paulina (E PS13), Cristina (E TS14) e Diana (E
AF15) que têm em comum a década de nascimento (segunda metade da
década de sessenta) e a formação inicial no Instituto Superior de Serviço
Social de Lisboa, nos anos de 1985 a 1990 - o curso foi o primeiro a ter um
plano de estudos de cinco anos e a conferir o grau de licenciatura.
Este perfil distingue-se do anterior pela faixa etária (nasceram cerca de uma
década depois de Inês e António), pela formação inicial e sobretudo pelo
reconhecimento do grau académico. Os tempos das suas trajetórias
profissionais estão marcados (a roxo) no quadro abaixo.
Tabela nº 3 - Tempos e trajetórias profissionais dos entrevistados
1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 Jaime Nasceu
em 1968 1985/90 Ent.2009
19TP
Irene Nasceu em 1965
1985/90 Ent.2009 19TP
Filipa Nasceu em 1969
1985/90 Ent.2009 19TP
Paulina Nasceu em 1966
1985/90 Ent.2009 19TP
Cristina Nasceu em 1965
1985/90 Ent.2009 19TP
Diana Nasceu em 1967
1985/90 Ent.2009 19TP
Nota: TP- anos de trajetória profissional
Em relação às suas trajetórias profissionais e, também por referência aos
atores dos outros perfis identificados, os primeiros «doutores» têm trajetórias
com menor mobilidade organizacional: quatro deles (Irene, Paulina, Cristina e
Diana) mantêm-se no mesmo serviço/organização ao longo de quase vinte
anos; Filipa, apesar de ter tido outras experiências na fase inicial do seu
313
percurso, esteve catorze anos na Justiça (Instituto de Reinserção Social e
Equipa de Círculo) e Jaime que, nos primeiros anos da sua trajetória
aprofundou a sua formação teórica e experiencial com um ano de estágios
profissionais em três países estrangeiros, começou a trabalhar e a lecionar e
depois acabou por optar pela docência na formação inicial de assistentes
sociais, na qual se mantém, também com uma trajetória de quase duas
décadas ligado ao mesmo organismo.
Todos os entrevistados têm, na altura das entrevistas, uma relação
estabilizada com os respetivos empregos. Em parte, esta situação de menor
fluidez organizacional na trajetória profissional estará relacionada com as
oportunidades criadas pelo financiamento externo da Comunidade Europeia e
por uma época (décadas de oitenta e noventa do século passado) de
alargamento do mercado de trabalho para os trabalhadores sociais, quer no
âmbito das políticas sociais, quer no âmbito do crescimento da resposta das
instituições do setor privado solidário cofinanciado pelo Estado.
Este perfil de entrevistados, representando a geração que obteve o
reconhecimento académico da sua formação inicial e que revela globalmente
essa maior estabilização das trajetórias profissionais denota a importância
dos contextos de trabalho para a formação das identidades no trabalho e para
a produção e recomposição de saberes. No caso destes assistentes sociais
que têm exercido a profissão em contextos organizacionais relativamente
estáveis, interessa compreender até que ponto a sua afirmação social está
associada à capacidade de mobilizar as diferentes fontes de poder, tanto mais
quanto a sua função se encontra em posição de dependência hierárquica.
Filipa e Paulina não abordam a questão da relação com o poder,
argumentando com uma afirmação da profissão essencialmente associada ao
reconhecimento académico e profissional. Irene e Cristina, tecem alguns
argumentos condicionantes da afirmação social da profissão, enquanto Diana
e Jaime, a partir de dois contextos concretos de ação profissional configuram
diferentes fontes de poder profissional, confirmando a sua natureza complexa
e paradoxal.
Irene, por exemplo, começa por identificar-se como profissional «do terreno»
(tão capazes como outros, mas com receio de se aventurarem) que conduz a
sua intervenção sem ser para obter “reconhecimento”, mas que nota a
314
necessidade de controlo das instituições e a presença de alguma ‘confusão’
entre a ‘imagem da pessoa’ e a ‘imagem do serviço’:
“Acho que não temos tanto esse poder… como somos profissionais muito do campo, da prática, não somos muito convidados a produzir reflexões escritas. Quando lançam determinado projeto, acho que não estão muito preocupados em saber se é exequível na prática, ou não. Nós, os assistentes sociais do terreno, não somos convidados a planear projetos para depois serem aplicados na prática, a não ser que seja uma figura ou outra de mais relevo, e por exceção. Se calhar faz-nos falta a tal identificação com a profissão, sentirmo-nos mais valorizados de fora. Eu conduzo a minha intervenção mas não é para obter reconhecimento, faço o melhor que sei mas, nesta Junta de Freguesia, sinto que sou reconhecida sobretudo pelas outras instituições e que sou muito acarinhada por elas, mas tem a ver com a nossa postura pessoal. (...) Era importante sermos chamados a explicar como é que é a nossa função, o que é que nós fazemos, como é que produzimos e como é que depois se transporta esse conhecimento para o exterior. É a imagem da pessoa ou é a imagem do serviço que se vai representar? Na maioria dos casos somos chamados a representar a imagem do serviço. Somos nós que não nos conseguimos impor? Eu acho que não passa por aí. Acho é que ainda há muito aquele estereótipo do assistente social como trabalhador por conta de outrem, com um bocadinho de receio de nos aventurarmos. Somos tão capazes como os outros. Mas, por vezes, temos alguma dificuldade de colocar no papel... porque (…), os serviços onde nós atuamos querem ter o controlo sobre o que fazemos e toda a gente tem receio do que possamos dizer, receio se o serviço é colocado em causa ou se dizemos uma coisa que não cai tão bem… Perante quem é que as assistentes sociais têm de se colocar de acordo? É perante o serviço que lhes paga o vencimento, não é? Eu acho que os outros profissionais que trabalham mais a nível liberal conseguem fazer valer melhor a sua opinião, através de artigos de opinião ou científicos, ou de outras formas. Nós, é mais a nível ‘caseiro’, não é? (…) E esse «salto» era necessário, mas temos todos que nos esforçar para isso” Irene (E IS11).
Cristina dá uma visão fatalista da afirmação dos assistentes sociais, relatando
as experiências negativas de colegas que foram «a terreiro» lutar por uma
causa e/ou para obter reconhecimento:
“Eu presenciei testemunhos de colegas que ‘vêm a terreiro’ deitar por terra um conjunto de regras que não servem a nada nem a ninguém, e que se manifestaram publicamente em contexto académico contra isto ou contra aquilo, e dificilmente conseguem adesão. Não sei se é também uma questão de género...porque essencialmente somos mulheres, onde os nossos interlocutores homens negligenciam essa luta, achando que é uma luta inglória... e tenho vistos ‘decapitações’ em público que não se passam com os homens. Vejo homens a pronunciarem-se com muito menos garra, com muito menos sustentabilidade e que não têm o mesmo desfecho. (...) Vejo mulheres que se associam a causas dentro do serviço social e que conseguem fazer valer o território do serviço social mas estão associadas a causas. Estou a lembrar-me, por essa Europa fora, um conjunto de mulheres que se destacam dentro do serviço social e que são vozes reconhecidas mas que
315
defendem causas como o feminismo, a interrupção voluntária da gravidez...e têm toda uma máquina que as apoia nesses discursos, são personalidades que encabeçam lutas mas que estão ligadas a movimentos sociais. Estou-me a lembrar do Congresso Internacional de Serviço Social, por exemplo, da Lena Dominelli que é toda pelo feminismo e tem todo este movimento por detrás ou da presidente italiana das escolas de serviço social...e realmente em Portugal não temos essa tradição. Temos uma ou outra pessoa, que acabou por ter uma voz publicamente mais reconhecida...mas tudo o resto acaba por ficar dentro do discurso organizacional. E voltamos ao contexto histórico de Portugal e realmente têm pouca gente que venha a público defender causas. Mas, como te disse, as lutas que eu presenciei, de forma mais recatada dentro das organizações e, mesmo assim, são discursos que não passam. E são pessoas lutadoras e com obra feita, com livros publicados e que falam da legitimidade do serviço social... não sei porque é que acontece, não sei...” (E TS14)
Diana, pelo contrário, destaca o protagonismo dos assistentes sociais dentro
da organização onde trabalha, quer ao nível dos circuitos processuais, quer
ao nível do poder de influenciar tomadas de decisão e de conquistar
autonomia técnica:
“Eu acho que dentro da organização os outros técnicos nos acham uns «chatos» e não nos podem ver porque nós estamos sempre a tentar desbloquear alguma coisa, a apressar a tomada de decisão, a pedir que se facilite um processo porque a situação social é difícil e «fazem de conta que não estão» quando tentamos contactar …mas, por outro lado, eu também acho que isso um sinal positivo, porque nós mexemos nos processos e nos circuitos institucionais e eles percebem que nós estamos a mexer para melhorar o resultado final para as pessoas; e pressionamos para que façam a sua parte na cadeia do, ou ainda mais, em tempo e para que o seu trabalho vá numa determinada direção que tenha a ver com a resposta final que se pretende dar aos munícipes. Eu acho que nós, pelo menos no sítio onde estou, conseguimos que a estrutura hierárquica e os outros técnicos nos reconheçam credibilidade e reconhecem o nosso trabalho, percebem que estamos aqui a fazer algo que implica o bem-estar das pessoas e mudanças. E em termos dos decisores políticos eu acho que também há esse reconhecimento, temos tido alguma sorte com os políticos com quem temos trabalhado. E já foram de vários partidos, o que também é bom. E houve sempre oportunidade de manter alguma autonomia técnica e um respeito pelas nossas propostas e pelos nossos pareceres técnicos. Eu acho que os decisores nos respeitam e consideram aquilo que nós dizemos (E AF15).
Jaime, numa abordagem mais macro da profissão situa a necessidade de os
profissionais se situarem no debate sobre os serviços sociais e de assumirem
um discurso com maior autonomia em relação ao poder:
“Eu penso que aí há um modelo de Estado e de Sociedade que se orienta muito para políticas neoliberais e, portanto, dentro dessa lógica e dessa perspetiva, é evidente que há logo o princípio do emagrecimento dos
316
serviços sociais na esfera pública. Mas depois também temos as outras partes, com diretivas do Conselho de Ministros da União Europeia de 2001, que nos dizem que o enfoque maior a nível da Europa é uma aposta nos serviços sociais, como promotores de desenvolvimento social e humano e de coesão social. Então? Coexistem perspetivas e orientações diferentes e nós seriamos a classe profissional mais à-vontade, entre os grupos profissionais que trabalham no campo social, que estaríamos mais seguros, no sentido de discutir a reorganização dos serviços sociais estatais, dos serviços sociais públicos - numa articulação direta com os privados, com as comunidades locais, com os cidadãos, porque isso é importante para que haja aqui vetores de coresponsabilização social e de participação interativa. Agora, não podemos é fazer apenas o discurso do poder...parece que estamos a defender o Estado. Ou, por oposição, voltamos ao velho registo de que eu lhe falava há pouco, que é «os assistentes sociais como aqueles que podem provocar perturbação». Então, para não provocarem perturbação, nós colocamos os assistentes sociais numa lógica de controlo, para não haver grandes atritos, nem grandes problemas” (Jaime – E JF19).
Os assistentes sociais deste perfil fazem narrativas mais inteletualizadas, com
menor exposição pessoal e mais ‘racionalização’ e ‘generalização’ do que os
atores dos perfis anteriores; por outro lado, os seus argumentos dão maior
enfoque ao reforço e à autonomização da profissão pelo conhecimento próprio
(das teorias e das metodologias em cruzamento com o conhecimento que
advém do ‘terreno’).
Jaime, salienta a aprendizagem que a profissão lhe permitiu para se
estruturar como pessoa, como profissional e como cidadão.
Apesar de ter oito anos de atividade profissional como assistente social antes
de optar por dedicar-se à atividade académica a tempo integral, é clara na
sua narrativa a identificação profissional ao papel de docente - que ensina,
pesquisa e supersiona em grande ligação com os contextos de ‘terreno’.
Aliás, é com o desempenho profissional como docente que ilustra a sua
narrativa da trajetória profissional e é nessa qualidade que se encontra na
altura da entrevista
Na dimensão dos contextos organizacionais e áreas de intervenção, Jaime
aborda pouco a sua experiência de intervenção na área da proteção à
infância mas destaca que durante o primeiro ano pós formação vivenciou três
317
experiências que marcam o seu quadro de referência e a sua trajetória
profissional:
Na Holanda, trabalhou com doentes mentais em contexto comunitário e
interveio na sua integração social e na ligação às famílias; aprendeu as
questões da assertividade e da diretividade “que não temos de «andar à
volta» do problema, dá-se o primeiro «choque» e a partir daí trabalhamos
a relação de confiança com a pessoa”. Diz do estágio profissional que foi
um «choque tremendo» mas “foi espantoso, aquilo que aprendi”;
Em Paris, teve uma experiência em contexto de acolhimento hospitalar de
pessoas com problemas de saúde mental e conviveu com uma perspetiva
diferente, de maior envolvimento terapêutico das famílias. Experienciou
sobretudo o «acompanhamento social» em serviço social, sistemático e
estruturado, com uma perspetiva de integração, que tem uma base
terapêutica forte e que trabalha sobre um diagnóstico para atingir
resultados de inclusão;
na Escócia, esteve ligado à universidade e aprofundou a perspetiva do
trabalho em rede, em parceria. Argumenta que foi muito interessante
perceber as ligações e o trabalho de acompanhamento, de investigação e
de supervisão que a Universidade já fazia a unidades terapêuticas de
intervenção (com o sujeito e as famílias) a empresas sociais e a um centro
social.
Refere que ter podido viver estas experiências enriqueceu a sua
aprendizagem e permitiu-lhe estabelecer contactos e articulações com vários
interlocutores no exterior do país, dando-lhe um contributo marcante de
identificação com um determinado papel de professor. No entanto, refere que
a motivação inicial foi:
“…para aprender o que podemos fazer, como podemos inovar, como é que podemos integrar novos contributos teóricos nas práticas para agir em prol dos direitos das pessoas e melhorar o seu bem-estar e qualidade de vida”.
Quando regressa a Portugal inicia o mestrado, mas refere que não pensava
em fazer carreira na docência e na investigação. A docência aparece como
uma colaboração mínima na atividade académica integrada com a atividade
profissional.
318
Na sua narrativa é transversal a particularidade que se atribui de fazer
ligações, em voluntariado, à atividade profissional no terreno:
“…participo em programas, participo em projetos, faço supervisão com equipas, acompanho e falo com equipas, faço algumas sessões de formação, tento analisar relatórios, tento analisar ‘o que’ e ‘como’ fazem”.
Jaime fala menos da sua trajetória profissional (não refere o que foi mais
importante e significativo) e mais do seu pensamento reflexivo sobre as
questões da profissão.
A partir da perspetiva como docente entende que a teoria se aplica na prática
e refere que lhe dá segurança a possibilidade de demonstrar as questões
teóricas com exemplos ‘do terreno’, considerando que aprende também na
construção circular deste processo dinâmico de aprendizagem entre os
documentos e fontes teóricas e as fontes que recolhe nas suas ligações aos
contextos de prática profissional. Lamenta, contudo, que não exista retorno
“do que se aplica na prática” para a universidade continuar a aprofundar o
«como fazer» e o quadro metodológico.
Na dimensão das Políticas e dos Públicos, Jaime tem uma posição crítica
com a «colagem» que alguns profissionais (sobretudo os que ocupam
posições de chefia ou cargos de decisão) fazem aos ditames do Estado por
não realizarem uma boa coordenação nem defenderem a universalidade do
Estado de Bem-Estar e por colocarem «água benta» em tudo. Argumenta
ainda que coexistem orientações e perspetivas diferentes na União Europeia,
destacando as que apontam para uma aposta nos serviços sociais, como
promotores do desenvolvimento social e humano e da coesão social. E que
os assistentes sociais, entre reproduzir o discurso do poder e colocarem-se
no ‘contrapoder’, não debatem, não aprofundam, nem influenciam a
reorganização dos serviços e a participação alargada dos cidadãos num
debate que lhes diz respeito.
Jaime defende que o Serviço Social é «uma profissão e uma área do saber»,
que precisa de fazer o seu autorreconhecimento enquanto tal - e aqui
identifica o equívoco sério com a designação de ‘técnico superior de serviço
social’ e a necessidade de uma campanha forte que provocasse a mudança
dessa terminologia e que assuma as «garantias» que tem para o futuro.
319
Neste aspeto, Jaime argumenta que, pela primeira vez, o desafio de novas
legitimidades e novos debates «vem de fora»:
“…vem dos governos, vem dos desafios internacionais, dos processos de globalização social, vem do mundo, do dia-a-dia das pessoas” e que o corpo profissional “precisa de estar aberto a aceitar receber esse desafio: o que é que nós podemos fazer perante esta questão do mundo? … Como é que as sociedades podem ficar mais justas? Como é que as pessoas podem ter uma melhor qualidade de vida?”
E acrescenta que o serviço social da atualidade
“…produz competências, aprendizagens, altera modos de vida – esses é que são os novos enfoques da aprendizagem dos assistentes sociais e da sua preparação para o mundo. Temos de agarrar aí, para que isso valoriza a profissão e lhe dê um lugar no debate público e no debate político”.
Na dimensão do associativismo profissional, Jaime tece críticas à
Associação de Profissionais, nomeadamente: por não ter um papel mais
ativo no debate sobre a pesquisa em serviço social e sobre os seus
contributos para a prática profissional e por não promover o
empreendedorismo social junto dos recém licenciados - entende que o futuro
da profissão passa por um maior empreendedorismo e pela auto valorização
do profissional “por aquilo que sabe fazer, aquilo que é o seu conhecimento,
a sua aprendizagem e depois confrontá-lo com a realidade social e ver como
é que pode inovar e o que é que precisa aprender para o fazer bem”. Neste
âmbito, Jaime argumenta ainda que o individualismo dos profissionais e as
suas «queixas e intrigas» não têm permitido uma aliança, uma proteção e
uma união em torno das questões que lhes dizem respeito.
Sobre a conciliação entre vida profissional e privada, mais uma vez Jaime
não fala de si e, generalizando, afirma que prevalece a feminização da
profissão porque o «reconhecimento da identidade profissional continua nos
antípodas».
A questão da identidade é abordada na narrativa de Jaime como a
construção de um «sujeito coletivo» com várias ligações: i) à premissa de
que a formação de Serviço Social esteja integrada na universidade, com
muitas outras licenciaturas e com a possibilidade de uma coletivização muito
forte do saber e do conhecimento com profissionais de outras áreas; ii) ao
reforço da investigação feminista; iii) à dualidade que muitos profissionais
320
manifestam na sua auto afirmação como assistentes sociais entre a
identificação aos princípios e fundamentos da formação (que identifica como
sendo “os direitos humanos, a dignidade humana, a igualdade de
oportunidades e a justiça social”) e a identidade pelas competências (de
ação, de intervenção, de investigação, de autonomia, de participação e de
integração da abordagem individual e coletiva); iv) à anterior identidade
assistencialista, de ajuda, de valorização da autoestima da pessoa e de
recuperação do sujeito como cidadão - que defende como tendo tido
“impactos fundamentais para que as pessoas aguentassem a pressão social
que tinham sobre si”.
Sobre a relação entre a academia e o «terreno», Jaime refere que «está em
fase de construção», mas argumenta que “a relação de confiança entre a
academia e o ‘terreno’, entre as instituições e os trabalhadores, os
assistentes sociais, tinha que ter um investimento forte para ser melhorada”,
embora entenda que o campo profissional continua a olhar menos para a
dimensão do conhecimento, do saber, e mais para a forma como pode
reforçar o seu âmbito de intervenção nas organizações onde trabalha. Refere
que, mesmo os profissionais com alguma produção escrita, coletivizam
pouco para outras publicações e outros instrumentos de difusão do saber,
lamentando a pouca iniciativa em termos de publicação “não é por acaso que
temos 16 ou 17 teses de doutoramento e apenas 3 ou 4 estão publicadas”.
Jaime lamenta também que os profissionais procuram conhecimentos de
outras áreas científicas para sustentar as suas práticas, sobretudo porque
entendem que o conhecimento em serviço social não lhes dá segurança nem
confiança, o que, na sua perspetiva aumenta os dilemas identitários.
Argumenta que um dos equívocos do campo profissional é a perspetiva de
que a produção científica é essencialmente um suporte da academia ou do
sistema de formação e, concebe este equívoco como um problema com duas
faces: do lado de quem produz, que não faz devolução à prática, “parece que
existe um medo inconsciente de não ser validado pelo profissional que está
no terreno” e do lado de quem está no ‘terreno’ que não procura, nem
reconhece, não discute essa produção escrita no âmbito da classe
profissional.
321
Outro dos equívocos que identifica é a velha história sobre “se o serviço
social é ciência ou não é ciência, se é uma disciplina, se tem princípios e
conceitos científicos”; na sua perspetiva essa discussão terminou com o
processo de Bolonha. O sentimento de ameaça expresso pelos profissionais
em relação a outros campos científicos, na sua perspetiva, vem da memória
de outros tempos em que éramos subsidiários dos cientistas sociais
“…ou seja, nós fazemos mas depois não retiramos o produto, damos o
produto ao outro e isso parece que nos compensa, na «boa-vontade do bem-fazer», mas nós já não estamos mais nessa «boa vontade» e no «bem-fazer»” e para inverter esse sentimento de ameaça é preciso “uma maior coletivização do que sabemos, do que estudamos, do que aprendemos, uns com os outros, em sistema de troca e em solidariedade profissional, que é coisa que eu acho que não temos”.
Jaime termina a sua narrativa, fazendo um paralelo com o «marco
sociológico» e identificando a necessidade de que na formação inicial os
alunos e futuros profissionais aprendam o que é o «marco de serviço social».
Cristina, tem feito a sua trajetória profissional ao longo de duas décadas na
mesma instituição onde estagiou (uma Câmara Municipal) e, embora
passando por vários serviços (sobretudo Projetos comunitários e Habitação)
faz uma avaliação que pondera os «ganhos» desta estabilidade em
simultâneo com o «cansaço, a saturação, o desgaste» e a vontade não
concretizada de uma «rutura»:
“Estar muito tempo na mesma organização é estar sempre à espera de que «amanhã vou fazer a rutura».
Contudo, do lado dos «ganhos» pontua a estabilidade e a procura de um
«equilíbrio»: “pago o preço de um certo equilíbrio financeiro, dum certo
equilíbrio de família…”. Reconhece que essa estabilidade também lhe
permite acumular a atividade profissional com a docência e isso compensa-
a pelas ruturas que não faz, constituindo um ponto de equilíbrio.
Cristina, descreve uma dualidade em relação a esta permanência na
mesma autarquia, reconhecendo que possui um conhecimento
322
aprofundado do território, das organizações e dos seus agentes locais, mas
que esse conhecimento também lhe dificulta novas perspetivas:
“…a nossa perspetiva fica muito resistente em determinadas
abordagens porque talvez tenhamos construído uma determinada leitura da realidade ao longo do tempo…e escapam-nos dados que podem ser novos e estamos a medir pela mesma «bitola»…”.
Atualmente, encontra-se a trabalhar num serviço camarário de «Saúde» e a
dar aulas na licenciatura de Serviço Social numa faculdade privada. Mudou
recentemente de serviço na autarquia onde trabalha, dizendo da motivação
para essa mudança que “era altura de mudar para outra abordagem, de ser
crítica e romper a minha própria saturação” e com esta mudança obteve a
confirmação de que estava à tempo de mais a fazer a mesma coisa.
Cristina não aprofunda os contextos e os exercícios da sua trajetória
profissional ficando a sua narrativa mais marcada pelos significados
atribuídos ao seu desempenho profissional como professora. Sobre a forma
como coloca a docência na sua trajetória profissional tem argumentos
duais: diz que os dois desempenhos têm complementaridades e que não
estão em contradição mas por outro lado, diz que também têm
constrangimentos e que causam atritos. No primeiro caso refere:
“…é [a docência] o meu contraponto de reflexão sobre a prática que faço e sem o qual eu me sentiria perfeitamente castrada porque essa prática não tem muitos momentos de reflexão, não proporciona paragens para reflexão (por condições várias, porque temos uma solicitação constante de intervenção) e as nossas possibilidades de refletirmos em conjunto são muito pontuais e também elas pressionadas relativamente a tempos e metas, o que acaba por não me satisfazer. Esta área da docência obriga-me a uma busca mais profunda do conhecimento em Serviço Social. (…) Gosto de perceber para onde vou e o que é que estou a construir, e isso consegue-se na área da docência”.
No segundo caso, argumenta:
“…não se pode sair de um livro teórico …e no outro dia, estar a fazer isso na prática…cruzam-se muitos pensamentos, muitos campos, há a dimensão política…a nossa profissão é privilegiada na visão que tem desses múltiplos domínios que se cruzam na vida profissional: são campos de comunicação, de poder, são jogos e estratégias, são compromissos assumidos e que, de repente, não os podemos transformar noutra coisa, são tempos diferentes… até nós quando chegamos à prática somos outras pessoas…mais técnicos, mais burocratas…”.
Esta dicotomia aparece na narrativa de Cristina em paralelo, quase «como
se» fossem duas pessoas (a que é assistente social ‘prática’ e a que ensina
323
‘teoria’). Contudo, quando fala das fontes de aprendizagem ao longo da sua
trajetória, Cristina mistura os dois campos profissionais referindo-se
nomeadamente ao «conhecimento escrito», ao «estado da arte» e às
«pessoas» com quem trabalha; mas é «aos alunos» que dedica mais
entusiasmo na sua argumentação, dizendo que:
“…os alunos entram e fazem as perguntas mais disparatadas…e isso obriga-me a explicar e a mobilizar a experiência de vida deles e tudo isso é enriquecedor. (…) Ao ser questionada e ao explicar, eu torno isso numa aprendizagem. Aqui que ninguém nos ouve, aprendo muito mais com eles do que aquilo que lhes ensino.”
Este desafio e este gosto por ensinar, aprendendo, é um argumento
presente na sua narrativa mas que apesar disso, coincide com uma visão
mais crua da faculdade como organização que “…tem muitos movimentos
internos difíceis, um corpo docente estraçalhado, …e isso tem um efeito de
«pescadinha de rabo na boca» e os poucos professores que lá ficaram têm
é que dar aulas”.
No domínio das Políticas e dos Públicos, Cristina assume na sua narrativa
alguma conformidade à norma, «enfiando o barrete» em relação à
focalização da intervenção social nas «disfunções» dos indivíduos em
detrimento da mobilização de mudanças organizacionais e societárias.
Sobre as questões do papel do Serviço Social na mudança organizacional
diz que:
“…até no seio da universidade somos tomados como pouco promotores de mudança, aceitamos muito mais as regras que são colocadas e temos pouca capacidade de as confrontar…”.
Acrescentando que as situações de confronto à norma que presenciou,
protagonizadas por outros colegas, resultaram muito mal: ou “são
completamente decapitadas, profissionalmente e dentro da academia” ou
não conseguem adesão. E chegado a este ponto do seu argumento,
introduz a questão de género “porque essencialmente somos mulheres”,
referindo que os “homens negligenciam essa luta, achando que é inglória” e
que em situações de contestação idêntica, o desfecho é mais favorável aos
homens. Lembra ainda que, na Europa, as mulheres que conseguem fazer
reconhecer o território do serviço social estão associadas a causas ou a
movimentos sociais e têm o apoio das respetivas estruturas mas que, em
Portugal, não temos essa tradição e que as vozes dos assistentes sociais
324
acabam por ficar dentro do discurso organizacional.
Na questão da construção identitária, Cristina oscila entre posições muito
afirmativas e outras posições mais interrogadas que na sua narrativa fazem
recurso a expressões como «se calhar» ou «talvez». Afirmativa quando se
refere a uma identidade «muito fácil de ver» do ponto de vista micro:
“…sei como trabalhamos individualmente, como trabalhamos em grupo
e como é que trabalhamos na comunidade; sei como é que trabalhamos em equipa e o papel que tenho que desempenhar, porque tenho uma metodologia de suporte que produz resultados; e os resultados estão à vista e têm expressão no mercado de trabalho. As equipas quando reclamam um assistente social sabem o que procuram”.
Mas interrogada quando esta identidade passa para outro nível:
“…se calhar, essa identidade perde-se quando passa para um nível
mais amplo…como é que este profissional se afirma perante outros profissionais diferentes. Nesta transposição do conhecimento específico para o coletivo das ciências, saímos deveras prejudicados porque não sabemos defender tão bem a nossa legitimidade, porque sofremos a falta de pessoas de referência no nosso percurso, no contexto histórico que tivemos, não tivemos ao longo da nossa formação os inputs necessários para explicitar e expor a nossa identidade. Talvez a nossa formação não nos tenha preparado para fazer isso…o que é estranho, porque imensos profissionais estão a trabalhar em causas sociais e em muitas questões sociais «quentes» e depois não têm voz...”
Mas a questão «de ter ou não ter voz» e de afirmação face a outros
profissionais e à sociedade em geral, aparece na narrativa de Cristina
ligada à constatação “de uma diferença substancial” entre o que homens e
mulheres procuram na formação inicial e na profissão:
“Vejo as mulheres muito mais preocupadas em gerir problemas de metodologia e de intervenção técnica…como se estivessem mais compelidas à execução… e os homens procuram uma abstração na formação que os ajude a identificar face às outras profissões e a treinarem um discurso de afirmação (…) os homens vão diretamente para lugares mais cimeiros e de decisão”.
Tomando o exemplo dos seus alunos, Cristina refere que «eles» e «elas»
têm com frequência confrontos de perspetivas nas aulas, em que «elas»
reclamam muito mais informação sobre ‘o direto’, sobre a prática
profissional, querem perceber ‘como se faz’ e não entendem porque é que
«eles» se estão a querer situar em questões de identidade, quando há
outras questões de aprendizagens mais básicas, tendendo a achar que
«eles» evitam confrontar-se com o exercício profissional. Na sua perspetiva
refere as dificuldades que enfrenta em facilitar este debate e em fazer com
325
que «eles» se ocupem mais com matérias de exercício profissional e
«elas» realizam mais a abstração, colocando a profissão a explicitar-se.
Nesta narrativa marcada pelas questões de género, Cristina parece
identificar-se mais com «elas», embora conclua afirmando que, “o que é
certo é que o Serviço Social, nem por uma via nem por outra, tem acabado
por se afirmar como seria nosso desejo”.
Na entrevista, esta assistente social não aborda as questões do
associativismo profissional, embora expresse preocupação pela construção
coletiva da profissão que na sua narrativa aparece muito ligada à
construção de conhecimento próprio como fonte legitimadora. Recorda uma
frase de um professor no contexto do seu mestrado (1991/92) que lhes
dizia: “se vocês fizerem uma tese duplicam a produção nacional, tão
escassa ela é”. Cristina justifica algum «retardamento» da produção de
conhecimento próprio do Serviço Social com o ‘contexto histórico’ da
profissionalização em Portugal, mas também menciona «as muitas
conquistas» alcançadas, dizendo que “não nos podemos esconder atrás de
uma adolescência tardia…temos de chegar à maturidade”. Nesta
sequência, a maturidade profissional e científica pretendida pela
entrevistada (a classe profissional «está no caminho» segundo ela) tem
dois argumentos: i) a necessidade de deixar de lado a rebeldia “de quem
está só a absorver e ainda tem pouco para dar» e ii) a necessidade de
modificar a linguagem própria do Serviço Social, que precisa de ser mais
humanista e ligada aos atuais paradigmas científicos, deixando de ser tão
«técnica e fechada».
Sobre a profissão e a construção de conhecimento, Cristina refere que
pertence a uma geração que tentou “fechar a intervenção do Serviço Social
em matrizes fundamentais, dar-lhe um corpo de coerência e uma referência
matricial na forma de a estruturar” mas que hoje, entende que o Serviço
Social “é um conhecimento livre”, o que lhe dá argumentos para dizer que
“é preciso deixar uma profissão ser o que ela pretende ser”:
“Se tenho argumentos a favor de colocar um espartilho e definir meia dúzia de bases estruturais, também consigo ver a liberdade de uma disciplina dentro da área das ciências sociais, que se quer ligada à intervenção social, que tem que ser flexível às diferentes gerações, às mudanças de significados, aos desafios da pós-modernidade, que tem de estar suficientemente ampla para acompanhar as pessoas para onde
326
elas tiverem que ir. Tenho a certeza de que assim o Serviço Social vai garantir o acompanhamento da humanidade para onde ela for, sejam quais forem as questões com que essa humanidade tiver que se confrontar… a primeira coisa que tem de encontrar é a sua própria legitimidade”.
Este «acompanhamento das pessoas para onde elas tiverem que ir» pode
ser entendido como uma espécie de ‘naturalização’ da atividade
profissional que se legitima socialmente por «estar lá». Cristina reforça este
entendimento referindo que não há nada na pós-modernidade que
“…iniba o serviço social de intervir, de estar lá. (…) É uma profissão que sempre se preocupou com o encontro do homem com ele mesmo”.
Esta conceção de legitimidade profissional parece baseada na ‘procura’,
fazendo uso da argumentação de que “enquanto houver questão social e
necessidade de intervir socialmente, o serviço social estará vivo”. Aliás,
Cristina, vai mais longe na sua argumentação quando, a propósito do
movimento de aproximação de outras formações/profissões ao campo
tradicionalmente ocupado pelo serviço social, refere “…que se o fizerem,
vão converter isso em Serviço Social.”
A ambivalência da sua narrativa, plena de «prós e contras», também se
aplica à legitimidade do Serviço Social:
“Se houver falta de legitimidade é porque a legitimidade foi assumida pelas outras ciências. Eu acho que o Serviço Social nunca se extinguirá mas poderá ter outra configuração no domínio das ciências sociais. E terá tanto a sua afirmação e legitimidade quanto a necessária (…) mas penso que está ao nosso alcance e que nos assiste essa responsabilidade de irmos ao encontro de alimentar essa legitimidade”.
Cristina argumenta que “nunca os assistentes sociais, na sua generalidade,
tiveram tanto acesso à informação como hoje têm” mas que, face à
informação disponível, ainda não fizeram tanto quanto seria desejável:
“…as pessoas podiam fazer o esforço de ir à procura de mais e a academia também podia fazer o esforço de publicar mais”.
Sobre a produção e difusão do conhecimento de Serviço Social, Cristina
tece dois argumentos complementares e as respetivas justificações:
i) i) a responsabilidade acrescida da academia na produção e difusão do
conhecimento e a justificação da sua escassez com dificuldades internas e
externas às faculdades:
327
“… eu também atribuo responsabilidade a este momento histórico que
estamos a viver…faço parte de um centro de investigação que não tem verbas para se iniciar mas também, como não produz, não recebe verbas. É muito difícil começar a produzir…quem vê isto por dentro…”.
ii) ii) a responsabilidade que assiste sobre “os alunos formados em 90” para
responder ao desafio da cientificidade do Serviço Social e devolver à
disciplina este conhecimento.
“Dar esse contributo era dizer: - o Serviço Social enquanto área
disciplinar rege-se por uma matriz específica que é esta e não pode ser tão fechada que depois morra com a evolução da humanidade (…) e também não pode ser tão aberta, que acabe por se diluir com todas as outras áreas das ciências sociais. Encontrar este ponto de equilíbrio seria um movimento interior [à profissão].”
Cristina coloca a necessidade de “instituir” um movimento intrínseco à
própria disciplina, no sentido de incorporar as várias abordagens (da mais
sistémica, à mais funcionalista ou à mais crítica), dar nota dos esforços das
investigações de doutoramentos e constituir “um fluxo de massa critica” que
atualize as «bases» e os «fundamentos» da profissão.
Irene, é uma assistente social que assume na sua narrativa que é uma
profissional de ‘terreno’. Trabalha atualmente numa Junta de Freguesia e
tem uma «carreira» profissional de dezoito anos na mesma organização.
Fala frequentemente em «nós» referindo-se ao coletivo de profissionais, à
instituição onde trabalha e aos outros agentes e atores do território e
argumenta com frequência que “é no terreno que aprendemos”.
Estagiou noutros contextos organizacionais e saiu do curso com a ideia de
que gostava de trabalhar com menores; teve uma primeira experiência de
trabalho como Técnica de Reinserção Social numa Instituição Particular, mas
a experiência durou apenas três meses porque não lhe garantiam o
vencimento.
Quando pondera o significado da sua trajetória profissional refere que teve
«altos e baixos» mas que teve também algum «sossego» e que para
permanecer onde está, ponderou sobretudo a conciliação com a sua vida
familiar. Embora a meio da sua trajetória tivesse concorrido para o Instituto
de Reinserção Social, na altura de mudar as questões familiares
328
sobrepuseram-se: “Se, eu vou para Lisboa, a que horas é que chego a
casa? Quando é que eu vou buscar os meus filhos?”.
Reconhece que “é bom a pessoa mudar”, mas justifica ter permanecido no
mesmo local com argumentos do género: “problemas há em todo o lado” ou
“o facto de estar sozinha é melhor do que estar no meio de muita gente a
competir pelo mesmo” – estes argumentos têm em conta que o meio
profissional é muito competitivo. A este propósito, Irene introduz a questão
de feminização da profissão afirmando:
“…é um problema continuar a ser uma profissão maioritariamente de mulheres…os homens fazem de outra maneira, nós não.”
Sobre o contexto organizacional onde intervém refere que tem vindo a sentir
uma dificuldade crescente com os decisores políticos no sentido de que eles
entendam as propostas técnicas que faz e, sobretudo que entendam, que o
que está em causa é o bem-estar das pessoas e não a visibilidade pública
do que se faz.
Esta tensão com os decisores políticos (que são simultaneamente suas
chefias hierárquicas) é narrada como um problema e uma das dificuldades
recorrentes: Irene diz que não pode estar confinada ao que esperam de si
mas que, é com eles que tem de trabalhar e que, por isso, apesar de ser
complicado de gerir, tem de ter um «jogo de cintura» que lhe permita
perceber quando é que vai falar com o autarca “porque ele está bem-
disposto” e talvez tenha mais oportunidade de decidir favoravelmente em
relação às propostas técnicas ou à concretização de projetos. Uma das
frustrações profissionais que expressa é a fragilidade da sua autonomia e o
«pouco» que a autarquia faz no campo social, face ao que poderia fazer.
“E contra isso, eu não posso fazer mais nada. O que posso fazer é
insistir com propostas (às quais muitas vezes nem tenho resposta) …outras, enfim, porque falei num momento bom e porque dão alguma visibilidade mediática, se calhar até passam. Eu penso que isto também acontece em outras instituições, mas em instituições mais pequenas é mais visível. E podia-se fazer aqui tanta coisa, tanta coisa.”
Apesar das “lutas internas” e de se sentir muitas vezes em “contracorrente»,
sente que tem reconhecimento na organização e argumenta que a
intervenção com outros técnicos e instituições do concelho dão uma
visibilidade positiva ao seu trabalho; destaca também a proximidade da
população como um fator positivo e o fato de os assistentes sociais terem
329
“capacidade de resistência”.
Neste domínio das Políticas e dos Públicos, identifica como problema a
pouca articulação entre os diferentes técnicos e serviços que intervém no
mesmo território e com as mesmas pessoas, exemplificando com a
impotência que sente nomeadamente face aos colegas da câmara e da
segurança social, que tendem a situar-se “na cúpula” e a achar que quem
está mais próximo da população está “na base”.
“A «Rede Social», infelizmente como está, é muito burocratizada e
pouco eficaz. Obtinham-se melhores resultados quando tínhamos uma rede informal e fazíamos um telefonema ou uma reunião rápida e resolvíamos os assuntos; anteriormente funcionava muito melhor, apesar de nós ainda irmos conseguindo essa articulação, com uma colega ou com outra.”
Irene diz que tem uma profissão “muito bonita”, não só por gostar dela mas
por ter uma atividade que lhe permite “ir ao encontro do ser humano” e ser
“agente de mudança”. Sobre este último aspeto, refere “a luta diária e
constante” que tem para ser agente de mudança (de mentalidades e de
atitudes), acrescentando que se os profissionais não tiverem um grupo por
trás de si para os suportar, acabam por ficar só na relação interpessoal, no
nível micro. E Irene identifica que essa é só uma vertente do trabalho de «ser
assistente social».
Questionando a apropriação organizacional da imagem do assistente social,
argumenta que os assistentes sociais são tão capazes como outros
profissionais mas que têm dificuldade em se impor, em se “colocar no seu
papel” e que isso acontece porque trabalham por conta de outrem e estão
sob controlo de outros:
“…e toda a gente tem receio do que possamos dizer, receio se o serviço é colocado em causa ou se dizemos uma coisa que não cai tão bem…”.
Entende que os assistentes sociais fazem valer os seus conhecimentos e as
suas posições sobretudo a nível da organização/serviço que lhes paga o
vencimento. Mas esta perspetiva de profissional ‘por conta de outrem’ não
impede que defenda uma identidade própria dos assistentes sociais:
“…nós temos uma identidade própria porque o assistente social vai ao terreno e vai ao âmago das situações, o nosso trabalho tem multifacetas, não é sempre o de «apagar fogos» ”.
Neste ponto destaca a evolução positiva na imagem da profissão,
330
entendendo que já foi ultrapassada “aquela fase em que o assistente social
era olhado assim de lado, como quando eu comecei a trabalhar”.
“Temos feito um percurso com muito ‘low profile’, mas temos feito um caminho, cada um de nós tentando ser bem técnico, abarcando uma série de áreas de trabalho e é essa riqueza que eu acho que este curso dá, porque nos prepara para intervir na ação social, na intervenção com o ser humano, com o outro, mas também nos torna aptos a trabalhar com as dinâmicas sociais. (…) é uma das profissões que dá uma grande ‘bagagem’ de experiências e de aprendizagem (…) e, se está num patamar diferente, é devido a nós, os profissionais; porque os profissionais gostam do que fazem, identificam-se com o ‘espírito’ do Serviço Social (não é assistencialismo, não é nada disso), nós vamos à luta…seja onde for”.
Desafiada por trabalhar diretamente com as pessoas e clarificando que as
suas chefias são pessoas “que não fazem a menor ideia do que é o trabalho
social”, sentiu-se compelida a acatar algumas diretrizes institucionais mas
pediu autorização e “foi à procura, foi bater portas”, foi apresentar-se às
instituições que estão no território e começou a fazer um percurso pelo
território mais largo.
Os seus argumentos sobre a falta de reconhecimento público da profissão e
a escassez de produção escrita dos assistentes sobre o trabalho que
realizam, são nomeadamente:
- “como vamos a tudo e a todo o lado…falta-nos tempo”: - “faz-nos falta sentirmos que existem assistentes sociais a quem nos possamos referir”; - “existem pessoas e instituições que têm muito mais peso junto do poder (não é tradição, é peso, é ‘lobby’) e isso é outra coisa onde nós não encaixamos”; - “ainda não temos uma Ordem.. e é importante para fortalecer a classe [profissional]”; - “há uma grande rivalidade entre os assistentes sociais” - “não temos esse poder…não somos convidados”.
Estes argumentos, entre outros, não invalidam que Irene refira que seria
importante explicar “como é que é a nossa função, o que é que nós fazemos,
como é que nós produzimos e depois como é que se transporta esse
conhecimento para o exterior”.
Irene não aborda a dimensão do Associativismo Profissional. Apesar do
entendimento coletivo da profissão que trespassa a sua narrativa e do seu
trabalho em conjunto com pessoas com outras formações, refere não sentir
no seu quotidiano a competição entre trabalhadores sociais e argumenta
com alguns aspetos de formação pessoal que, na sua perspetiva, facilitam
331
esta interação:
- uma certa “postura e formação de base” prévia às formações iniciais;
- “o perfil e os interesses das pessoas”, como fatores decisivos;
- “a forma como funcionam ao nível das relações humanas”.
Irene atribui muita importância ao que resume como “componente pessoal”
de quem intervém no social e refere a conciliação de uma determinada
“perspetiva de estar na vida” com o exercício profissional:
“Às vezes, as pessoas são tão infelizes na sua profissão que não têm
nada a ver com aquilo que fazem…Tu gostas, ou não gostas, ou também aprendes a gostar…e depois é tentar ser o mais honesta possível e tentar fazer o trabalho o melhor possível para a comunidade e também dar alguma visibilidade ao trabalho técnico, porque o assistente social abrange todas as situações, vai a todo o lado…um centro de convívio não é sé para velhos e «coitadinhos» e realmente eu aqui não lido só com idosos. Nós temos intervenção desde a Intervenção Precoce, com a Comissão de Proteção de Menores, com o Apoio à Infância e a Componente de Apoio à Família nas Escolas, temos a Rede Social…estamos presentes em tudo o que seja projeto e somos sempre chamadas porque é importante a nossa participação.”
Entende que é muito importante estar consciente dos valores e dos
conhecimentos mas que o fundamental, o que faz a diferença, é a
«postura» perante as pessoas e as situações.
Sobre a relação entre os profissionais de ‘terreno’ e da academia, Irene
refere que “já houve mais essa noção de ‘cada um no seu lugar’ do que
existe agora” e que se foi perdendo a ideia de que o académico está
distante da realidade; acha que já não existe “aquela superioridade do
sociólogo” mas que esta aproximação resulta sobretudo de um percurso
feito pelos profissionais.
Em relação à área de conhecimento específico de Serviço Social, Irene
refere que cada um interpreta o que aprendeu na faculdade de forma
diferente e difere também na forma como coloca esse conhecimento no
trabalho, dizendo de si que também vai buscar “outras coisas” [referindo-se
aos conhecimentos de outros campos disciplinares] e o facto de estar no
‘terreno’ dá-lhe a dimensão de estar sempre atenta ao que está a ser
produzido, assumindo que qualquer profissão pressupõe uma
aprendizagem contínua.
Menciona o “orgulho” na profissão e a “obrigação” de levar, muitas vezes,
332
uma posição até às últimas consequências:
“- Não, eu sou assistente social, eu tenho que defender este assunto e ir até às últimas consequências, onde eu ponho a minha intervenção, onde eu ‘dou a cara’, tenho de ir até ao final.”
Termina a sua entrevista salientando a “aprendizagem a nível pessoal” que
cada pessoa fazer ao longo da vida e da ‘carreira’.
Filipa, durante a entrevista diz de si que é uma pessoa feliz
profissionalmente porque exerce a profissão que escolheu, com momentos
menos felizes como é óbvio porque não existem situações perfeitas mas
“com a sorte de ter estado nos locais e nos projetos que queria”.
Na altura da entrevista encontra-se numa câmara municipal a coordenar um
serviço de prevenção das toxicodependências. Nunca antes tinha trabalhado
em autarquias (esta transição é recente) nem coordenado ninguém, mas
entendeu que era um “desafio” e uma “oportunidade para estar do outro lado”
e sente-se a aprender. A propósito, refere a conversa que teve com as
colegas da equipa:
“ – Eu nunca coordenei ninguém, portanto não sei e vou aprender, vou aprender com vocês também. Se alguma vez acharem que eu não estou a ter um procedimento correto, digam-me.”
A entrevistada refere que as suas competências de comunicação lhe têm
facilitado a vida e que, como não cria grandes barreiras, os outros em
princípio também lhe respondem da mesma forma – o que sido facilitador na
relação ‘intra’ instituição e ‘entre’ instituições.
Filipa tem uma trajetória profissional com alguma diversidade de contextos
organizacionais, embora maioritariamente feita na «Justiça». Na sua
narrativa impera o tom positivo com que pontua as várias experiências
profissionais, as aprendizagens que realizou e as pessoas “fantásticas” com
quem se cruzou e que foi integrando na sua rede relacional.
Apesar de também mencionar experiências de trabalho emocionalmente
muito ‘pesadas’, contrabalança com “a sorte” de ter trabalhado com pessoas
333
muito capazes, que lhe ensinaram imenso e de quem se tornou amiga, o que
para si foi muito importante. Argumenta que o desgaste emocional da
profissão é muito grande (principalmente na área da Justiça onde esteve
catorze anos) e que tem um ‘peso’ enorme trabalhar com pessoas com
muitos problemas e sofrimentos, onde todas as histórias de vida que ouviu
eram “de fazer chorar as pedras da calçada” e para as quais não tinha
soluções.
Filipa entende que “são as pessoas que nos rodeiam que fazem a diferença”,
dado que é com elas que partilha emoções e conversa sobre o que sente e
vive. Sobre o papel como técnica refere que “mesmo que tentemos manter
alguma distância, envolvemo-nos, porque somos pessoas e
emocionalmente, estamos sempre envolvidas nas histórias”.
Filipa diz que teve facilidade em arranjar trabalho e que, apesar de ter sido
mãe no último ano do curso, arranjou trabalho logo que terminou a formação,
através de contactos de família. Do seu primeiro trabalho (quatro anos num
projeto de intervenção comunitária a intervir num bairro degradado, no
âmbito do Programa de Luta contra a Pobreza) diz que foi uma experiência
muito enriquecedora, que lhe permitiu construir um projeto do princípio ao
fim, com toda a complexidade da intervenção comunitária.
Foi a primeira a chegar, de vários recém-licenciados que constituíram a
equipa, com formações diferentes, muito jovens e a aprender em conjunto,
onde tudo era muito partilhado; refere que também aprendeu muito com as
assistentes sociais mais experientes do Centro Regional de Segurança
Social e com a população do bairro, em especial com os seus líderes,
referindo que “ainda hoje reconheço com alegria gente do bairro que
encontro por acaso”. Acabado o projeto esteve nove meses desempregada
mas a receber subsídio de desemprego, o que lhe permitiu cuidar com maior
disponibilidade dos dois filhos pequenos e fazer voluntariado na Associação
para o Planeamento da Família (APF) e numa linha de atendimento
telefónico de apoio a vítimas de maus tratos domésticos. Estas experiências
de trabalho voluntário (em instituições que escolheu e no horário que podia e
queria) foram também recordadas como muito gratificantes.
Entretanto, tinha concorrido para a Justiça, «área» na qual tinha estagiado, e
334
foi selecionada para o Instituto de Reinserção Social, no Estabelecimento
Prisional de Caxias. Desta experiência de sete anos diz “que se levantava
todos os dias com um sorriso de orelha a orelha” e que, apesar das
péssimas instalações (trabalhavam numa cela) e do «peso» de uma
instituição deste tipo, destaca com saudade a equipa constituída por homens
e mulheres (o que era pouco frequente) com várias formações, jovens, todos
«técnicos de reinserção social» e que faziam o mesmo trabalho, embora com
«sensibilidades» diferentes.
“…tive situações muito complicadas, que me garantiram alguns constrangimentos e desilusões; porque não é fácil trabalhar num estabelecimento prisional, ainda para mais sendo uma pessoa muito nova…”
Quando se sentiu muito desgastada com o peso da instituição e com a rotina
do trabalho, solicitou a saída por vontade própria e refere que, teve sorte
porque o seu desejo foi concretizado com a mudança para uma «equipa de
círculo», onde permaneceu mais sete anos. Nesta equipa tinha um trabalho
mais diversificado do que na prisão e fazia o acompanhamento de medidas
“não privativas de liberdade: regimes de prova, trabalho a favor da
comunidade, liberdades condicionais”. Pontua repetidamente a excelência da
equipa de trabalho e a presença de estagiários como fatores de
desenvolvimento profissional.
Saiu da Justiça por causa do sistema de avaliação de desempenho, quando
discordou com a definição de objetivos apenas quantificáveis.
No domínio das Políticas e dos Públicos, Filipa privilegia o compromisso com
os públicos, apesar de ser bastante adaptativa em relação aos serviços onde
tem exercido; e quando entende que precisa de mudar de contexto de
trabalho, muda. Sobre a relação com as instituições, Filipa argumenta com a
experiência do «poder» da «Justiça» e diz:
“…o peso da Justiça face a outras instituições é muito forte e aí a comunicação faz-se com facilidade, porque a instituição que se está a representar é muito forte, tem muito poder e o caráter de urgência com que eu contatava outras instituições…era como se as pessoas e as instituições se vissem obrigadas a satisfazer os nossos pedidos”.
No trabalho que desenvolveu na equipa de círculo refere que trabalhou com
pessoas de todas as idades, mais ou menos diferenciadas e, em alguns casos
foram experiências de trabalho muito gratificantes porque as pessoas
335
conseguiram inserir-se na sociedade e, embora não tenham sido a maioria,
considera que “basta haver um caso de sucesso para valer a pena”.
Argumenta que a sua riqueza profissional vem toda do contacto que teve ao
longo dos anos com as histórias de vida de pessoas que conheceu e dos
envolvimentos e das relações que criou com essas pessoas; Filipa considera
que mesmo sendo relações profissionais, são sempre relações que lhe
permitiram aprender imenso:
“Até porque eu acho que todas as pessoas com quem me cruzei tinham
alguma coisa para me dizer e para me ensinar, apesar de eu também ter tentado ensinar-lhes alguma coisa do que sabia e da minha experiência de vida”.
Considera que tem aprendido com todas as pessoas, das mais diferentes de
si, às mais parecidas; também com as pessoas de outras formações considera
que não tem rivalidade e que sente como uma «mais-valia» o facto de terem
outras experiências e outras maneiras de intervir que ela desconheça – “o
trabalho de cada um tem uma natureza própria e complementam-se sem
necessidade de se chocarem”. Filipa admite a possibilidade de ter sido uma
“sortuda” por não se ter cruzado com as competições entre os trabalhadores
sociais pelo mesmo campo profissional, referindo que,
“… o que vejo é trabalharmos em parceria com os «ólogos» todos, e acho que não se confundem saberes; acho que o conjunto desses saberes pode fazer a diferença”.
Quanto aos saberes específicos do Serviço Social, Filipa diz que a sua
formação foi muito adequada àquilo que foi fazendo, ou seja, “aquilo que me
ensinaram tem tudo a ver com a realidade com que eu me deparei na prática
profissional”, embora reconheça que foi aprofundando conhecimentos e que a
experiência também lhe foi ensinando formas mais eficazes de intervir e de
atingir o sucesso na intervenção. Reformula para tentar explicitar melhor:
“…são coisas…por vezes, parecem muito do senso comum (mas que não
são senso comum)… e depois quase que nos parece que estamos a intervir sem grande ciência, que é lógico, que é natural, que só poderia ser assim…felizmente que a nossa formação tinha uma parte muito prática, que faz todo o sentido. Porque nestas questões sociais estamos a intervir com pessoas. Não são objetos, são pessoas que estão em constante interação e em constante mudança, com uma comunicação que se faz dos dois lados…com todos os filtros que nós temos e com todas as ferramentas que temos dos saberes que fomos aprendendo. Há sempre uma relação e nas relações que estabelecemos quer com técnicos, com outros profissionais, da mesma formação ou de formações
336
diferentes, quer com os utentes com quem nós trabalhamos é tudo muito dinâmico…”
Refere que tem imensas saudades do seu tempo de curso porque foi uma
fase da vida que adorou e que, se voltasse atrás, faria tudo igual. Argumenta
que percebeu logo que nunca iria ficar rica com esta profissão mas que se
calhar ia ficar mais “rica como pessoa” e isso, para ela, pesou mais do que o
dinheiro.
Filipa diz gostar muito da profissão, adjetivando-a de «muito digna»; diz que é
assistente social com muito orgulho e nunca se sentiu diminuída ou
inferiorizada. Apesar de ter encontrado, ao longo do seu percurso profissional,
pessoas que não aceitavam bem os assistentes sociais, nunca sentiu
problemas com zonas de fronteiras na intervenção e nunca sentiu
necessidade de explicar o que faz uma assistente social. Argumenta que para
além de se «sentir como peixe na água» em todas as funções que
desempenhou, conseguiu articular bem o seu trabalho com o dos outros
técnicos e teve sempre muito claro quais eram os seus limites; e menciona
que tem alguma humildade para dizer: «eu não sei fazer, ensinem-me que eu
não sei», da mesma forma que refere que aceita bem a crítica construtiva e
convive sem problemas com uma «conflitualidade saudável». Sobre uma
hipotética especificidade do assistente social refere uma «sensibilidade
própria», ou seja, “…uma forma como as causas sociais me afetam e me
tocam”, referindo-se ao seu «olhar» mais vocacionado para a parte social da
vida e para a «questão social».
Esta «sensibilidade» e «grande envolvimento» têm segundo Filipa, aspetos
positivos e negativos, porque aprendeu muito com o exercício profissional mas
também sofreu com a exposição aos problemas dos outros - “transporto a
minha profissão comigo”. Não reconhece necessariamente em todas as outras
colegas as características que identifica em si e que entende serem a base do
seu «ser profissional», admitindo que outros colegas possam ter encontrado
outras características identificadoras, porque cada pessoa é diferente.
Defende que “é preciso encontrar uma forma saudável de exercer a profissão”
e refere que a experiência também lhe facultou a aprendizagem de
mecanismos de defesa para não se deprimir.
Sobre o futuro da profissão, Filipa, embora reconheça que a taxa de
337
desemprego entre os assistentes já é elevada (embora menor do que noutras
áreas das Ciências Sociais como a Psicologia, por exemplo), tem a “fantasia”
de que “estamos no bom caminho para nos darem a devida importância e
sentirem que somos precisos na sociedade”, embora o pressuposto que
coloca para a melhoria da legitimidade profissional seja:
“…quando for dada maior importância às questões sociais e quando os nossos governantes tiverem consciência que não é só o poder económico que é importante. Quando se investir na Educação… Às vezes, é preciso haver crise para haver mudança, para se investir e se tomarem grandes decisões”.
Argumenta que, na sua perspetiva, os problemas e as questões em que o
assistente social pode intervir não estão necessariamente associados a
problemas económicos e à pobreza,
“…os problemas sociais são transversais à sociedade… e toda a gente
precisa de apoio num ou noutro momento da vida e nós podíamos ter um papel importantíssimo com pessoas de estrato económico mais elevado.”
Filipa tem a expectativa de que, nas representações do Serviço Social e,
mesmo na cabeça dos próprios assistentes sociais, tenha havido essa
evolução… Quanto a si e, apesar de não abordar a dimensão do
Associativismo Profissional, entende que houve um salto qualitativo na classe
profissional… “as cabeças” alteraram-se e têm mudado e também ela sente
que evoluiu, que também chegou à conclusão de «outras coisas».
Em relação à conciliação entre a esfera profissional e privada, menciona os
filhos na sua narrativa, referindo-se ao ano em que esteve desempregada e
que lhe permitiu cuidar deles em crianças de uma forma mais próxima e, no
final da entrevista, refere que o seu filho mais velho está na faculdade e
detesta o curso, achando Filipa que “ele tem de mudar, porque nós temos de
ser felizes naquilo que fazemos”.
A sua narrativa é marcada por esta dimensão de autorealização que atribui ao
desempenho profissional.
338
Paulina, teve apenas duas curtas experiências na sua trajetória profissional
antes de ir para o Instituto Português de Oncologia, onde exerce a profissão
de assistente social há dezoito anos.
O seu percurso profissional começou, como o de muitas outras colegas da
sua geração, por um projeto comunitário do Programa de Luta Contra a
Pobreza, mas Paulina conta que, no seu caso, foi uma inserção profissional
dramática porque se sentiu muito circunscrita num território com muita
tensão social, numa problemática nova para a qual não se sentia preparada
e num movimento pendular entre Lisboa e Setúbal que lhe era muito penoso.
Só ficou seis meses, enquanto não arranjou outro trabalho em Lisboa mas,
apesar de tudo, conta que aprendeu:
“…a olhar aquela realidade de outro modo, as opções de vida, a perceber como é que as pessoas estão ali, como é o alojamento e como é que as pessoas ultrapassavam a situação de pobreza…”.
Situa a segunda experiência (também durante seis meses) na Liga dos
Deficientes Motores, mas não lhe atribui aprendizagens, nem faz outras
referências. Diz que a sua vida está sempre ligada a rituais e que ‘as coisas’
com “referências bonitas” marcam-na mais. Conta que foi assim quando
estava a estagiar no Estabelecimento Prisional das Mónicas, não só porque
gostou da orientadora de estágio e da colega com quem fazia grupo de
trabalho, como também gostou da forma como se relacionavam com as
mulheres detidas (havia uma identificação no feminino) e gostava do
percurso diário que fazia a pé e lhe permitia ver “o lado bonito da cidade”.
Também recua a outro estágio (no Estabelecimento Prisional de Lisboa) para
falar de outra aprendizagem que ainda a acompanha:
“…ainda hoje dizia à minha coordenadora, cada vez gosto mais de lidar com a diversidade, fascina-me muito mais e conseguimos aprender muito”.
Sobre a sua longa permanência no serviço social do hospital, refere que, às
vezes, se sente cansada com a exposição constante ao sofrimento e ao
desgaste emocional:
339
“…porque a Oncologia desgasta-nos muito a nível emocional… e eu não sou apologista do assistente social neutro. Portanto envolvo-me e, há casos em que faço mais projeções ou me envolvo mais sob o ponto de vista afetivo, ou há situações em que pelo sofrimento que geram, nós não conseguimos distância…mas ponho-me a refletir e acho que…consigo sentir que faço alguma diferença. Acho que o assistente social tem de sentir que faz alguma diferença para os outros, porque se não estamos a fazer a diferença, também não estamos a promover a mudança…quando as pessoas conseguem enfrentar melhor a doença, eu já me sinto bem com isso. Acho que é um tipo de intervenção em que podemos dar um pouco daquilo que andámos a aprender e podemos aprender também a reformular para a próxima intervenção; porque nos manuais não está a dimensão do sofrimento.”
Mas contrapõe a este «cansaço» o gosto pelo trabalho multidisciplinar, pela
partilha de informação com os outros técnicos, pela aprendizagem conjunta
que o contexto hospitalar também permite:
“…gosto de ouvir o que os outros técnicos pensam sobre a mesma situação, com outros olhares…e isso em termos hospitalares faz parte da rotina e é uma rotina de que eu gosto porque aprendo, porque me abre os campos de visão, porque me ajuda a ter uma visão mais global da pessoa… nós aprendemos muito uns com os outros, até para nos reequacionarmos em termos de atitude.”
Paulina refere que, por vezes, nem sabe como “encaixar” a dimensão do
experienciado naquilo que aprende; mas identifica “a tal” dialética entre a
teoria e a prática, referindo que esse «encaixe» exige algum “distanciamento”
(porque as coisas são tão intensas do ponto de vista da relação que não se
conseguem logo assimilar) “sentido de oportunidade” e “sensatez”. Para a
entrevistada, estes atributos só chegam com a idade [e experiência de vida] e
se existir disponibilidade para fazer autoanálise. Esta dimensão de
reflexividade está muito presente na sua narrativa: “tem de se refletir para
saber se continuamos a trabalhar bem”, com uma componente de “atualização
teórica” mas sobretudo com um “saber ouvir” e um “não ter receio de admitir
que não se sabe”:
“…compreendo que não é fácil fazê-lo, porque no início também não o fazia…provavelmente também tem a ver com a segurança. Quando estamos muito inseguros, queremos provar que conseguimos fazer «o melhor» e, isso passa por querer aplicar os conhecimentos teóricos às realidades com que trabalhamos. Depois percebe-se que muito do trabalho passa pela nossa dimensão pessoal e por tentar fazer leituras subjetivas do outro… Há uma dimensão muito subjetiva e humana quando estamos com uma pessoa à nossa frente que está em sofrimento. Muitas vezes é a tal situação: uma coisa é o pedido expresso e outra coisa é o que está por detrás daquele pedido, mas isso é preciso ter algum treino para saber ouvir e alguma disponibilidade para entender.”
340
Paulina interroga-se sobre a possibilidade de os assistentes sociais
construírem um saber específico ao longo da sua trajetória profissional e
refere que anda a refletir sobre isso mas entende que algo não está bem
quando os doentes lhe devolvem que falam consigo «o mesmo» que falam
com a Psicóloga ou com a Enfermeira. Contudo, Paulina argumenta que os
assistentes sociais são treinados para fazer uma “escuta” diferente dos
problemas sociais, a forma como fazem os diagnósticos dos problemas tem
qualquer coisa que é muito própria da profissão, uma postura mais generalista
mas também não sabe explicar muito bem como é.
“Mas mesmo falando comigo da mesma coisa que falaram a pessoas
diferentes, a questão está em saber o que é que eu, na minha área, vou retirar porque considero importante para o acompanhamento e o que é que a outra pessoa com formação noutra área vai retirar para o seu acompanhamento. Mas acho que a especificidade passa por esse tipo de relação e pela capacidade de nós retirarmos das entrevistas aquilo que considerarmos importante e depois dialogar com o doente e a família, que é o mais importante, para construir soluções com eles: ouvindo e devolvendo, para ir aferindo o que é realmente importante para a vida da pessoa”.
Defende como sua «área» de eleição a abordagem psicossocial, embora
reconheça que os assistentes sociais ainda têm uma representação muito
estereotipada, um grande peso histórico ligado ao assistencialismo e sinta que
as pessoas ainda acham que os assistentes sociais estão sobretudo para
ajudar a “fazer qualquer coisa” e essa “qualquer coisa” é na perspetiva de
resolver uma situação problemática e, não, na dimensão de “ouvir, de orientar,
de encaminhar”. Identifica vários aspetos a ter em conta ao longo da trajetória
profissional que têm a ver com o processo de desenvolvimento enquanto
pessoa:
“…o que eu noto, ao fim destes anos de trabalho, é que agora, mais do que nunca, preciso de voltar a ver tudo. Quanto mais tempo vai passando, mais necessidade eu sinto de ler, o que já li ou outras coisas.”
Para já, está satisfeita por ter aprendido a dizer «não», sem que as pessoas
fiquem zangadas ou aborrecidas.
Na dimensão das Políticas e dos Públicos tem expectativa de que, através da
intervenção qualificada dos profissionais, num acompanhamento social que dê
contributos válidos em situações difíceis, possa ser criada uma imagem
341
diferente junto dos utentes e uma consciência coletiva junto dos utentes e dos
profissionais – mas para que isso aconteça, os assistentes sociais têm de ter
melhores condições de trabalho, pois atualmente são-lhes atribuídos grande
número de casos e, os novos profissionais, trabalham em sítios onde não têm
espaço nem tempo para pensar o seu trabalho, quanto mais para construir a
sua identidade ou a dimensão da relação que faz parte do Serviço Social:
“ Eu própria tive esse exemplo, porque há dois anos a esta parte tivemos um ‘boom’ de atendimento de doentes ambulatórios e eu cheguei a um ponto que disse: «eu não estou a pensar». Mas tiveram que me ‘dar o toque’ para eu perceber, porque nós sozinhos, não conseguimos perceber. (…) Quando tu estás com capacidade de análise e consegues manter algum distanciamento e alguma tranquilidade é uma coisa, quando estás assoberbada e sob pressão, tu não consegues. E cá está, depois passa a imagem que os assistentes sociais da segurança social não dão resposta, não marcam atendimentos, não ouvem…”
Estes alertas para a gestão organizacional e para a autonomia que cada
profissional constrói, não diminuem as inquietações que a entrevistada
expressa sobre o futuro da profissão, pois percebe que outras áreas de
formação estão a fazer uma intervenção muito semelhante ao Serviço Social
(no caso, a Psicologia Social e a Política Social) e tende a achar que “tudo vai
depender da forma como o serviço social conseguir negociar a sua posição
nas instituições”.
Sobre a reduzida produção escrita dos assistentes sociais, Paulina diz que é
porque ainda estão muito inseguros sobre o seu próprio saber e dá dois
argumentos: a grande dificuldade de exposição que os assistentes sociais têm
(porque consideram que as outras ciências sociais são mais importantes) e o
desfasamento entre o trabalho diário dos assistentes sociais e a academia -
na sua perspetiva a academia e o ‘terreno’ funcionam em linhas paralelas e
estão de “costas voltadas”. De si, situando-se nos profissionais do «terreno»,
destaca a falta de tempo para outros investimentos para além do exercício
profissional, embora também reconheça que algumas pessoas ficam com o
que aprenderam na licenciatura e depois pouco evoluem - “se calhar, porque
se rotinizaram e não tiveram oportunidade de se pensar”. Acrescenta que:
“…estamos embrenhados nas respostas do dia-a-dia e temos que dar as respostas. O que é que acontece? Ficamos muito neste trabalho urgente e temos pouco tempo para a reflexão e quando o fazemos tem de ser por conta própria e isso está errado.”
342
Da academia, lamenta que ainda não tenha sido possível arranjar espaços de
partilha, onde os estudos possam acontecer com a colaboração de ambos os
«tipos» de profissionais e que estimule espaços de aproximação ao ‘terreno’.
Paulina lembra que em cada fase da vida pessoal as coisas fazem um sentido
diferente e diz que “…há aqui qualquer coisa [na profissão] que tem de ser
repensada de outro modo (…) para se construir uma imagem demora muito
tempo, mas para se destruir uma imagem bastam minutos”.
Na dimensão do Associativismo Profissional, Paulina entende que não existe
uma “consciência da profissão” e que criá-la passa pelos próprios profissionais
mas remete para a Associação (ou para a Ordem que se pretende criar) a
tarefa de encontrar soluções para a profissão. A inexistência de regulação na
profissão também contribui, na sua perspetiva, para as dificuldades de
reflexão sobre as práticas e de produção de conhecimento específico,
remetendo para a existência da Ordem a possibilidade de uma “entidade
agregadora que pense sobre essas questões e diga qual é o futuro”. Paulina,
identifica o problema (no feminino) da seguinte forma:
“As assistentes sociais têm, por vezes, uma missão de «formigas
obreiras» que trabalham, trabalham, trabalham, quase como se quisessem salvar o mundo. Também é uma profissão de que se espera que exista um determinado perfil profissional e nós esforçamo-nos por corresponder às expectativas”.
Entende que os assistentes sociais têm que ter um perfil diferente e a
profissão tem de avançar de outras maneiras:
“…se não se refletir, se não se escrever, também os outros não sabem muito bem o que somos, o que fazemos e qual é a nossa importância. Vivemos numa sociedade em que o invisível não existe. Mas nós com esse trabalho do profissional que está presente e acompanha as pessoas a fazer a gestão da sua vida, dos seus problemas e recursos, podemos criar uma consciência nos nossos utentes; e isso faz parte da importância da profissão”.
Diana, tem um percurso de continuidade na autarquia onde fez estágio
académico e onde permanece há duas décadas, como assistente social. Tal
como na trajetória profissional de Cristina (embora em autarquias diferentes)
questiona-se por que é que ainda continua no mesmo serviço:
343
“…às vezes, penso que devia experimentar outra coisa, mas não consigo ainda. Entretanto, vem uma coisa nova e eu continuo.”
Os argumentos de Diana para a sua continuidade na mesma organização
são os processos de mudança em que está implicada (que demoram muito
tempo a ter resultados) e a existência de sucessivos «desafios novos».
O único trabalho que desenvolveu fora desta autarquia, foi simultaneamente
o primeiro trabalho, a tempo parcial, numa estrutura de apoio a idosos e
realizado em paralelo com o último ano de formação; recorda esse trabalho
como gratificante, apesar de achar confusas algumas coisas que ouvia nas
aulas - achava que “não eram bem assim”. Menciona também sentimentos
de «estranheza» com algumas colegas e professores por não partilharem as
suas inquietações e dúvidas e alguma «dualidade» e «ambivalência» entre
estes dois «mundos» que foi difícil articular.
Na sua trajetória profissional destaca a importância de profissionais que a
ajudaram muito no seu processo de aprendizagem da profissão e que tomou
como referência, que elegeu como modelos. Aliás, refere que as suas
maiores influências não vieram da escola, mas sim do contexto de trabalho e
de um grupo de pessoas que teve a sorte de encontrar no início do seu
percurso profissional e que foram modelos com que pôde identificar-se:
“…aprendi mais no dia-a-dia, no ‘terreno’, aprendi sobretudo com as pessoas com quem tenho trabalhado. É fundamental o sítio para onde se vai trabalhar: o sítio, o espaço, os colegas, a chefia, o serviço que nos recebe…pode ajudar-nos a crescer ou então ajudar-nos a estagnar; ou então (e eu já vi algumas colegas assim) a fecharmo-nos, a protegermo-nos a ficarmos ‘duras’ e pouco flexíveis... porque nos sentimos sozinhas e isoladas”.
Está a trabalhar no «núcleo de infância» do Departamento de Assuntos
Sociais de uma Câmara Municipal e diz que o objetivo da sua equipa é intervir
com as instituições sem fins lucrativos que trabalham nesta área. No domínio
das Políticas, sente que contribui para o desenho da política social local e
coloca no plural todo o investimento e sucessos alcançados, referindo que só
conseguem esses resultados porque estão lá em continuidade. Argumenta
ainda com um sentimento de ter contribuído para o aumento e qualificação
das respostas na área da infância e que esses serviços estão hoje melhores e
mais capacitados porque a sua equipa intervém com eles e que, no fundo,
estas instituições têm grande repercussão no bem-estar das crianças e das
344
famílias, e também dos funcionários e dirigentes institucionais.
“E isto faz-me ficar feliz porque eu faço parte desse processo, estou cá
(podiam ser outras pessoas, mas fomos nós) e participei dessas mudanças e dessa qualificação; fomos nós que os ajudámos a crescer e a desenvolver os seus projetos.”
Sobressaem na sua narrativa as organizações, quer aquelas com que
intervém, quer aquela em que trabalha. Sobre a intervenção dentro da
organização onde trabalha, Diana refere que a hierarquia e os outros
técnicos reconhecem crebilidade e percebem que o trabalho social implica
com o bem-estar das pessoas e com mudanças sociais. Nesta sequência,
Diana considera que também já têm esse reconhecimento por parte dos
decisores políticos “sejam de que partido forem e já foram de vários partidos”
e que isso permite uma autonomia técnica e um respeito pelas propostas e
pelos pareceres técnicos, que são sentidos como consideração por aquilo
que os assistentes sociais dizem e fazem.
No que respeita aos «públicos» da profissão, entende que as pessoas,
quando procuram individualmente apoio junto de uma câmara municipal,
acham que os funcionários são todos iguais e não distinguem um assistente
social de outro qualquer funcionário, mas que as pessoas das instituições
com que os assistentes sociais trabalham com maior proximidade e
regularidade, já reconhecem as diferentes formações e que os outros
técnicos camarários e os dirigentes locais também sabem distinguir as
diferentes formações e profissões. Diz do seu trabalho:
“O meu trabalho, nesta altura, é sobretudo de planeamento social: identificar necessidades e depois tentar, em termos da autarquia, mobilizar recursos para resolver essas necessidades; ou então, tentar com as instituições e com os grupos com quem estou a trabalhar encontrar outras respostas e o ideal seria que fossem inovadoras e sustentáveis. (..) Nós aqui no serviço apostamos no desenvolvimento e na promoção do trabalho com as instituições locais como interventores de primeira linha e nós somos secundários…eles apoiam os utentes, os cidadãos, e nós apoiamos as instituições”.
Sobre o que considera mais significativo na sua trajetória profissional, para
além dos desafios constantemente renovados que menciona ao longo da sua
narrativa e do sentimento de estar a influenciar ativamente a qualificação das
respostas sociais do concelho.
“Temos que fazer sempre aprendizagens novas, adequando o que já
sabemos com as questões que os contextos reais nos colocam. Nada é
345
definitivo, temos que colocar sempre as coisas em causa e, vamos partindo para conhecer por aproximações, com a pessoa, com o grupo, com a instituição que temos à nossa frente, fazendo e conhecendo de acordo com o interlocutor e a interação, não há receitas…”
Os contextos organizacionais na narrativa de Diana são determinantes:
“Acho muito importante o contexto em que estamos a trabalhar, para mim é quase 70% do que define o que estamos a fazer: se nos permite crescer, se nos permite ter alguma autonomia para fazer coisas novas…isso é fundamental.”
Explica a propósito que “aqui trabalhávamos muito em equipa, em relação,
não era um trabalho nada individual”.
Sobre a sua especificidade como assistente social, refere que é muito difícil
de explicitar: sabe que não é «especialista», que é preciso ser «boa ouvinte”
e estabelecer uma relação de confiança, não fazer juízos de valor e que
“está para ajudar a pessoa na medida em que ela quiser e em que ela
participar” e entende que é, sobretudo «mediadora», «facilitadora» entre as
comunidades e a organização onde trabalha:
“…se me perguntarem o que fazemos, diria que somos uns mediadores, somos facilitadores, estamos aqui para ajudar as pessoas (individual e coletivamente) a ultrapassar uma dada situação problema. As pessoas não dominam tudo e nós também não, mas vamos à procura de informação e dos recursos e ajudamos a pessoa a encontrar recursos dentro dela própria, na comunidade, na família e nos serviços”.
No entanto, Diana também fala de um dia-a-dia muito diverso e abrangente,
cheio de procedimentos, rotinas processuais e emergências:
“…agora falando do meu dia-a-dia de trabalho, às vezes chego ao final de um dia e penso «o que é que eu fiz? Parece que não fiz nada». Tenho de pensar um pouco no que fiz, porque a diversidade é tanta, fazemos tanta coisa, trabalhamos com tantas pessoas (crianças, adultos, idosos, rede social, toxicodependentes, sem-abrigo, uma reclamação de um equipamento de infância lucrativo…), e as situações são de uma diversidade tão grande que é difícil dizer exatamente o que fazemos.”
Sobre o significado que dá à produção escrita do Serviço Social refere dois
aspetos antagónicos e complementares: por um lado, entende que os
assistentes sociais refletem pouco por escrito e, por outro, menciona que
escrevem muito, mas que grande parte dessa «produção» (estudos,
diagnósticos, planeamentos, avaliações) fica dentro dos serviços e não é dada
a conhecer, sobretudo para fora do meio organizacional e territorial onde
trabalham - também porque não têm a preocupação de mostrar o que fazem
346
ou fizeram.
Diana defende que diminuiu a distância entre ao académicos e os
profissionais do «terreno», que se estão a aproximar não só através dos
estágios académicos (por onde se faz uma espécie de «ponte» entre os
contextos de intervenção e a academia) mas também porque os profissionais
do ‘terreno’ recorrem a colaborações com investigadores do meio académico e
estes, procuram cada vez mais, a colaboração dos técnicos de ‘terreno’ para
os pôr em contacto com a rede de agentes locais, para dar testemunho das
formas de intervir e para fornecer dados ou facilitar o acesso a dados.
Diana considera que quando começou a trabalhar tinha uma profissão mas
hoje, já não sabe «quem é quem» e acha que já não tem uma profissão.
Reparte as responsabilidades desta situação pelas políticas de educação (que
permitiram a abertura indiscriminada e sem controle de qualidade de muitas
escolas e cursos) e pelo corpo profissional (por não ter conseguido negociar a
opção por assistentes sociais na ocupação de vagas de trabalho), entendendo
que a profissão e os profissionais perderam «alguma coisa» com as
mudanças na formação inicial e lamentando que todos os licenciados tenham
ficado na categoria genérica de «trabalhadores sociais» ou de «técnicos
superiores».
Na forma como antevê o futuro da profissão sublinha aspetos que dificultam
perspetivas de desenvolvimento:
- maior dificuldade em encontrar trabalho, quer porque existem mais escolas
a formar assistentes sociais, quer porque existem outros profissionais a
competir pelos mesmos lugares, quer ainda porque existe menos emprego
disponível;
- ‘desqualificação’ da formação inicial que deixou de ser uma referência de
qualidade (como era no tempo em que se formou);
- os critérios de seleção no recrutamento de técnicos para a administração
pública, que já não passam pelo curso ou pela faculdade, mas que cada vez
mais, privilegiam as características da pessoa e a atitude evidenciadas na
entrevista.
Quanto ao seu futuro profissional, diz que não quer fazer projetos a longo
prazo e procura viver um dia de cada vez mas que “queria ser melhor
técnica”:
“…uma coisa que eu queria era apetrechar-me para responder melhor às necessidades com que vou lidando e acho que posso melhorar muito; (…) estou muito investida nas redes sociais [referindo-se às Redes Sociais
347
que foram objeto de transferência de competência legislada da Segurança Social para estruturas de base comunitária, formadas por agentes dos territórios] e estou a achar um desafio voltar a trabalhar com os agentes das comunidades. Posso dizer que o meu desafio profissional nos próximos anos vai ser o de tentar ser uma impulsionadora e dinamizadora das redes sociais em que participo”.
Diana não menciona na sua narrativa a dimensão do Associativismo
Profissional, nem a conciliação entre a esfera profissional e pessoal.
Também não dá grande importância à feminização da profissão, referindo
que teve experiência de trabalho com colegas homens de que gostou muito,
apesar de achar que são menos atentos às questões processuais.
“Se calhar, a história da profissão também ajuda a explicar porque é que ela é menos atrativa para os homens. E acho que se, um dia, conseguirmos equilibrar melhor as proporções de género na profissão, isso também será um sinal de que algumas coisas mudaram.”
348
Os mais «novos»
Neste perfil estão «agrupadas» seis pessoas, sendo que cinco são licenciadas
em Serviço Social e uma é licenciada em Política Social. As primeiras são:
Sílvia (Q SG18), Armando (Q AP19), Mafalda (Q MV17), Américo (Q AD20) e
Madalena (Q MM16) que têm a sua formação inicial realizada após 1990, em
vários anos e por diferentes entidades formadoras, encontram-se a exercer em
diferentes geografias (dentro e fora do país) e têm trajetórias profissionais
necessariamente mais curtas, onde os períodos trabalho alternam com
desemprego e onde está presente a diversidade de perspetivas sobre a
profissão. A segunda é Sofia (E ZC4), que associei a este perfil pela data da
sua formação inicial (1989/94) - a sua inclusão também pretende pontuar a
existência destes profissionais no mesmo campo de trabalho e com
equiparação legislada para o acesso às funções exercidas pelos assistentes
sociais, apesar das consideráveis diferenças em termos de formação inicial e
da tensão existente no campo profissional e nas estruturas representativas da
profissão sobre a equiparação profissional.
Os tempos das suas trajetórias profissionais estão marcados (a verde) no
quadro abaixo e, considerando 2010, variavam entre os dezasseis anos de
experiência profissional de Sofia aos quatro anos de trajetória de Madalena.
Tabela nº 4 - Tempos e trajetórias profissionais dos mais «novos»
1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010
Sofia Nasceu em 1970
1989/94 Ent.2008 16TP
Sílvia Nasceu em 1973
1990/95 Quest. 2010 15TP
Armando Nasceu em 1974
1994/99 Quest. 2010 6 TP
Mafalda Nasceu em 1979
1996/01 Quest. 2010 9TP
Américo Nasceu em 1976
1998/04 Quest. 2010 6TP
Madalena Nasceu em 1983
2002/06 Quest. 2010 4TP
Nota: TP- anos de trajetória profissional
349
Estes assistentes sociais nasceram maioritariamente ao longo da década de
setenta (exceto Madalena que já nasceu nos anos oitenta) e completaram a
sua formação inicial nos anos noventa e na primeira década de 2000. As suas
formações na viragem de milénio foram marcadas por tempos de grande
diversidade; que também está presente nas tentativas de ingresso no mercado
de trabalho e nas experiências de vida, com implicações nos processos das
construções identitárias e nas trajetórias profissionais destes assistentes
sociais. Ao mesmo tempo que se ampliam e diversificam as possibilidades de
formação com o aumento do número de licenciados em Serviço Social, retrai-
se o mercado de trabalho e aumenta a concorrência com profissionais de
outras formações. A «crise» acontece no momento em que aumenta a
competitividade profissional, com o surgimento de «novas» profissões,
reconversão de outras e questionamento do monopólio de conhecimento e de
exercício profissional (Dubar, 1997).
Com a diversidade de trajetórias profissionais e de argumentos sobre as
respetivas aprendizagens, quer nos processos pelas quais elas aconteceram,
quer nos atuantes que nelas interagiram, «os mais novos» pontuam com
diferentes enfoques as questões que lhes foram colocadas.
Sobre a construção identitária e de saber se se sentem assistentes sociais
temos dois «blocos» de posições: um, vai no sentido de argumentar um sim e
de dizer como entendem essa(s) identidade(s) e é defendido por Madalena
(com reservas), por Sílvia (sem dúvidas) e por Américo (de fato); e outro
defendido por Mafalda, Armando e Sofia, argumentando os dois primeiros que,
nesta altura, não se sentem assistentes sociais e a terceira, que não existe
identidade profissional.
Sobre o papel do conhecimento na construção identitária, as respostas são
mais convergentes, embora com argumentação diversa e sobretudo com
algumas distinções entre o uso e a produção de conhecimento e a distinção de
vários tipos de conhecimento.
Sobre a relação entre profissionais de terreno e da academia, dão nota da
evolução nesse relacionamento, mas também de que ainda é preciso uma
maior aproximação e complementaridade.
Sobre as questões projetivas de futuro, profissional e pessoal, impera
novamente a incerteza e a diversidade.
350
Madalena, a mais nova destes atores «mais novos» refere na sua resposta
ao questionário aberto que, por vezes, é acusada de dar demasiada
importância ao “estético-expressivo» da intervenção social e argumenta que,
sendo o Serviço Social uma profissão de relação, não lhe é possível deixar
de contemplar a subjetividade, nem separar a ‘técnica’ da ‘pessoa’ que é.
Considera que tudo aquilo que vai absorvendo à sua volta, através do que lê,
ouve e sente, tem reflexos no que «é» enquanto profissional, entendendo
que parte da sua formação passa por «estar alerta», não só pelo que lê nos
livros mas também por tudo o que se passa todos os dias à sua volta.
A trajetória profissional desta assistente social, apesar de ser ainda curta, é
marcada segundo ela própria refere, por uma grande dimensão participativa
no território de intervenção. Trabalha numa Junta de Freguesia (onde
também fez estágio académico) e refere que o facto de trabalhar numa
organização pública que não tem as suas funções claramente estabelecidas
na área social, lhe tem proporcionado oportunidades de intervir nas mais
variadas áreas, até mesmo nas áreas que tradicionalmente não são de
serviço social – argumenta sobre isso que “tudo é intervenção social, quando
o fazemos ‘com’ e ‘para’ as pessoas e quando isso interfere na vida delas”.
Na sua narrativa exemplifica o trabalho, referindo que faz atividades tão
diferentes quanto o acompanhamento social a famílias, iniciativas de
sensibilização para os direitos das crianças, formação parental ou visitas
guiadas pelos próprios moradores do bairro onde trabalha para promover o
património cultural. Detalha que o atendimento social e o acompanhamento
que faz a famílias são das maiores fontes de realização profissional e
constituem uma “verdadeira escola”, embora também mencione que é a este
tipo de intervenção que as pessoas associam os assistentes sociais e que,
de facto, tem mais tradição no exercício profissional.
Sobre a tradição assistencialista do Serviço Social, Madalena refere:
“Também é verdade que temos um grande peso de uma imagem
assistencialista e burocrática, em que o assistente social é visto como alguém a quem se vai «buscar» algum benefício económico e a quem se entrega a documentação toda e, a quem se deve contar a vida na perspetiva mais negra possível de forma a obter o maior apoio. Claro que alguns técnicos também alimentam esta imagem mas há a necessidade
351
de falar sobre isto com as pessoas, de desmistificar, de clarificar que podemos fazer outras coisas e de maneira diferente. Penso que hoje, os serviços ainda incutem esta perspetiva assistencialista porque a pretexto de «ser melhor» para as pessoas, fidelizam clientela. ”
Apesar desta perspetiva crítica, Madalena refere que não tem nada contra
atribuir benefícios ou distribuir recursos às pessoas mas entende que
existem várias formas de os atribuir e que esse trabalho deve ser feito de
forma a dignificar a pessoa e romper com o estigma que muitas vezes, as
pessoas têm de si próprias – este compromisso com os públicos da profissão
é muito evidente na sua narrativa.
Refere a propósito do desempenho profissional naquele contexto
organizacional que, por ser assistente social, herdou um conjunto de
«berbicachos» que as pessoas acham que são sua função (como por
exemplo, preencher formulários de habitação social ou dos programas da
Segurança Social) e que tem tido dificuldade em se desassociar do
preenchimento de «papéis». Menciona outra parte do seu trabalho, com
grupos e com a comunidade, sobretudo através da Rede Social de
Freguesia, onde a intervenção social tem ganho contornos menos
tradicionais e que tem sido um espaço fundamental para alterar
mentalidades e causar impactos positivos a longo prazo, quer esta
intervenção seja junto da comunidade ou seja com técnicos e/ou dirigentes.
E argumenta que a mudança só acontece quando os assistentes sociais se
envolvem com as pessoas com quem trabalham e que a alteração de
perspetivas de uns e outros e o alargar das possibilidades de intervenção
também são formas de mudar e melhorar a imagem que existe do Serviço
Social.
Madalena faz menção ao orgulho na profissão e na classe profissional a que
pertence, acredita que tem uma identidade enquanto assistente social, que
os assistentes sociais têm um papel social da maior importância e que há
gente muito boa a trabalhar mas que, também há muita «incompetência
instalada» e que faz questão de se distanciar de algumas imagens mais
tradicionais. Exemplifica, dizendo que trabalha numa equipa multidisciplinar,
onde cada um sabe o seu espaço e o dos outros e que, ao longo do tempo
foi construindo, pouco a pouco, o seu desempenho profissional, foi ganhando
352
espaço profissional e hoje a população sabe perfeitamente quem é e qual é o
seu papel.
“Na verdade, acho que é na diferença que se cria o verdadeiro espaço de cada um e acho que a minha construção identitária foi mais facilmente construída por os meus colegas terem formações distintas das minhas.”
Sobre a produção escrita dos assistentes sociais, Madalena reconhece a
importância do registo e da produção e divulgação de conhecimento, até
junto das próprias chefias, mas argumenta com «a falta de hábito», com a
dificuldade dos profissionais em escrever sobre o que se fazem e em
publicar, com a «ânsia» do terreno, com as constantes solicitações e com os
ritmos de trabalho muito intensos do ponto de vista relacional e emocional.
Menciona ‘boas práticas’ que não são divulgadas porque não são escritas e
que ela própria, tem dificuldade em registar porque entende que já passa
demasiado tempo de volta dos «papéis» e menos tempo do que devia, na
intervenção direta.
Madalena refere não ter grande conhecimento sobre a relação entre os
profissionais do «terreno» e os da academia, mas diz-se convicta de que o
ideal seria que fossem os técnicos de terreno a trabalhar o conhecimento
que mobilizam e constroem no dia-a-dia, até pela possibilidade de ampliar a
reflexão e melhorar as práticas. Identifica o “respeito mútuo” e uma “maior
relação entre uns e outros” como os ingredientes para fortalecer a
construção coletiva da profissão.
Situando-se num conceito de profissão que não é estático, acredita que a
partir da identidade profissional que já existe pode construir-se “uma
alteração da visão da profissão” e que isso teria impacto na qualidade de
intervenção dos assistentes sociais. Por outro lado, incomoda-se com a
existência de uma visão muito tradicional da intervenção social que
reconhece em colegas muito novos, inferindo que provavelmente estão na
profissão porque «calhou»; e isto incomoda-a pelo reflexo negativo que tem
na identidade profissional.
Madalena diz-se um bocado «descrente» na profissão argumentando que:
i) A profissionalidade e o associativismo profissional estão em crise.
“…o facto de alguns professores na faculdade «militarizarem» a questão da defesa da classe, sempre por oposição, não é uma boa estratégia, porque funciona ao contrário”;
353
ii) A classe profissional está fragmentada
“…a não uniformização dos cursos e a rivalidade existente entre cursos de serviço social das diferentes faculdades, acaba por fragmentar a classe profissional”;
iii) A formação inicial tem menos «peso» no desempenho profissional do
que as características pessoais.
“…tenho vindo a perceber que o que faz um bom profissional, mais do que a formação inicial, são as suas características pessoais; o investimento que ele faz e a visão que constrói, é que fazem a diferença”;
Madalena refere ter muito gosto e respeito pela profissão e entende que o
facto de o Serviço Social “não ser ciência é uma mais-valia para a profissão”
porque permite ‘colher’ informação em diferentes ciências e construir uma
visão mais lata; entende também que, mesmo sendo uma profissão altamente
desgastante, que expõe e fragiliza os profissionais, existem formas de prevenir
os riscos, como por exemplo, variando as experiências ao longo da trajetória
profissional e continuando a refletir através da formação contínua e da
supervisão – o que pretende fazer.
“Acho que mesmo a «intervisão» que tento fazer informalmente com outros colegas tem-me protegido de algum desgaste e o facto de ter reuniões de equipa com regularidade dá-me segurança; e o trabalho em parceria tem obrigado a procurar outros conhecimentos e a integrar outras perspetivas da intervenção”.
Américo, sente-se assistente social e argumenta que
“…interiorizou os valores principais do Serviço Social e o que deve ser uma prática profissional cuidada e em constante atualização”.
Um dos valores nomeado por Américo é a “necessidade de primar pela
qualidade do trabalho… porque um mau desempenho profissional «fecha
muitas portas» ” ao próprio e aos profissionais que se lhe seguirem. Esta
dimensão do exercício profissional prescrito, nomeada pelo «dever ser»
parece não ter sido abalada no confronto com o ‘trabalho real’ desenvolvido no
seu contexto organizacional.
Trabalha num Centro de Saúde de uma cidade Algarvia e na sua trajetória
profissional só tem experiência de mais um contexto também na área da
354
saúde.
É muito sintético na sua resposta sobre a trajetória profissional, pontuando
apenas que era este o contexto organizacional de exercício profissional
preferido (onde também fez estágio académico) e, por isso, apesar da sua
vinculação ao Estado não ter sido fácil nem rápida aguentou a situação de
precariedade com o objetivo de conseguir a posição profissional estável que
tem hoje. O período de cerca de cinco anos em que esteve numa situação
laboral incerta e precária apesar de ser narrado como difícil, permitiu-lhe uma
continuidade de trabalho e um aumento de experiência profissional com
bastantes aprendizagens e amadurecimento pessoal e profissional.
Defende que tem uma profissão: “Sinto-me, de facto, um assistente social…”,
mas tem dificuldade em identificar uma classe profissional e diz-se apreensivo
em relação ao futuro da sua profissão - que se encontra numa situação de
«crise» que já não é nova mas que também é alimentada na atualidade pelo
contexto económico global.
Américo reconhece no Serviço Social a existência de um “corpo teórico-
científico próprio” que é devido à reflexão dos próprios assistentes sociais (que
ultrapassaram as práticas baseadas apenas no «saber-fazer») e ao contributo
das outras ciências sociais e nomeia a importância,
“…da história [profissional] de mais de meio século e o seu nascimento a partir de práticas que foram sendo aperfeiçoadas com a experiência e os conhecimentos de muitos que trabalharam no campo social antes de nós”.
Américo menciona alguns argumentos em defesa da profissionalidade e
outros que contribuem para a «crise» profissional:
Em relação aos primeiros nomeia sobretudo a situação internacional da
profissão: a sua representatividade nas organizações supranacionais e
o enquadramento “bastante favorável aos profissionais” em diversos
países;
em relação aos segundos, situa a situação em Portugal identificando: a
situação de desrugalação da profissão e de desorganização do
mercado de formação.
A proliferação de formações em Serviço Social e áreas sucedâneas aumenta
a competição pelos postos de trabalho, que estão em retração; a frágil
organização de classe; a falta de representatividade da estrutura associativa e
355
a relação de subserviência com o poder político faz com que “sejamos um
grupo profissional ignorado nos projetos-lei relacionados com as Políticas
Sociais”. Contudo, na sua narrativa Américo não desenvolve o domínio das
Políticas, nem faz menção aos Públicos da profissão, nas suas dimensões de
«utilizadores» de serviços e/ou de «agentes» sociais do território ou em
qualquer outra dimensão, mas refere a existência de temas que o preocupam
e o interessam, entre eles, a organização da formação em Serviço Social, o
marketing junto dos «média» para que os assistentes sociais sejam ouvidos
acerca dos problemas sociais e das políticas sociais e a constituição da
Ordem Profissional.
Américo, na defesa da dignificação da imagem do Serviço Social argumenta
que esta passa em primeiro lugar pelo trabalho de cada profissional e não
apenas (ou sobretudo) por uma entidade reguladora ou por um regulamento.
Na sua resposta expressa que «a defesa» da classe profissional começa na
intervenção de cada profissional e lastima que muitos colegas não tenham
«consciência de classe» e demonstrem indiferença face aos problemas da
profissão - o que para si e, de certa forma, é o espelho de alguma apatia na
abordagem aos problemas do corpo profissional e de algum desprezo pelas
referências teóricas e metodológicas da profissão.
Américo refere-se empenhado na construção da “consciência da classe
profissional”, quer pessoalmente, quer no envolvimento que procura fazer com
os colegas com quem trabalha diariamente; mas a responsabilização
individual dos assistentes sociais que advoga, parece estar em consonância
com a tendência pós-moderna e liberal de atomismo e de atribuição de
responsabilidades às pessoas pela sua própria situação. Sobre o significado
que atribui à relação dos profissionais com o conhecimento e à produção
escrita dos próprios assistentes sociais, Américo faz a defesa de uma
argumentação funcionalista que distingue as profissões das práticas amadoras
admitindo que
“…o conhecimento é fundamental na construção identitária para combater o amadorismo e para enquadrar cada profissional”.
Refere também que é esse corpo de conhecimentos que explica a origem da
profissão e a existência dos seus valores. Seguidamente, menciona que
quando a relação do profissional com os conhecimentos disponíveis não é boa
356
(e muitas vezes, essa relação difícil começa na faculdade), isso justifica
muitos dos problemas de ‘não identificação profissional’ e de falta de
qualidade nas práticas profissionais. Contudo, Américo distinguindo o
conhecimento científico de outros conhecimentos mais experienciais e táticos,
reconhece que é sobretudo «um utilizador» do conhecimento científico. Esse
conhecimento, do qual assume que não é produtor opõe-se a um outro
conhecimento, no qual diz participar e que produz saberes sobre as realidades
e os contextos onde intervém, mas que fica situado na organização onde
trabalha.
Sobre a relação entre profissionais da academia e do «terreno» diz que é uma
falsa questão, debatida há décadas em ambos os contextos. Considera
fundamental que continuem a existir nos corpos docentes professores-
profissionais de «terreno» e assume que a diversidade de quadros de
referência e de planos de atuação é fundamental para o desenvolvimento da
profissão.
Mafalda está emigrada com o marido e os filhos na Coreia do Sul e, na
altura da resposta ao questionário encontrava-se a aprofundar os seus
conhecimentos em áreas onde entendeu que podia dar respostas mais
profundas, definitivas e provocadoras de mudança e encontrou no
«coaching» a perspetiva e as ferramentas para uma intervenção mais
eficiente.
Na altura em que respondeu ao questionário diz que “está a tentar
estabelecer-se como «coach» num mercado competitivo e em rápido
crescimento” e, como profissional liberal, já tem clientes de muitas
nacionalidades diferentes, com quem trabalha nos seus processos de
mudança por períodos curtos (de três meses), procurando que as próprias
pessoas definam os seus objetivos concretos de alteração dos
comportamentos que desejam.
“ …a população com quem trabalho na área do «coaching» é diferente da população que conheci no atendimento social da cidade de Lisboa (e não só pelas diferenças de geografia e de culturas) mas as metodologias que aprendi a utilizar para facilitar a mudança nas pessoas, poderiam ser
357
muito úteis no contexto da intervenção social…pois baseiam-se no princípio de que cada um pode ser responsável pelo seu trajeto e bem-estar”.
Mafalda diz que “…já fui assistente social, é algo que me formou e cuja
experiência agradeço” mas que, no momento, não se identifica com a
profissão e considera que não a exerce.
“A minha identidade nunca foi construída em alicerces fortes e confesso (sem querer ser arrogante) que ser assistente social não me preenchia totalmente, por que queria ir mais longe na minha intervenção com as pessoas e que o meu papel como assistente social não me permitia explorar e trabalhar… nos sistemas de trabalho em que estive, não eram objeto de intervenção.”
Os contextos organizacionais e, em especial as pessoas que os dirigiam, não
mobilizaram o compromisso de Mafalda, que assume também alguma crítica
em relação à implementação das Políticas. Refere que o conhecimento
prático, do terreno e das populações, foi o que mais contribuiu para a sua
construção identitária, em paralelo com os conhecimentos ‘adquiridos’ em
algumas (poucas) oportunidades de formação contínua.
Menciona que não procurou regularmente informação relacionada com o
serviço social e que raramente produziu documentação que refletisse o seu
trabalho, talvez porque não tivesse sentido essa necessidade.
Sobre a sua trajetória profissional, Mafalda enumera algumas experiências
em contextos organizacionais diferentes: o seu primeiro trabalho foi na Santa
Casa da Misericórdia de S. Entende que foi a sua melhor experiência
profissional, pelas responsabilidades que teve na criação, desenvolvimento e
avaliação de projetos financiados com fundos comunitários e sobretudo pelas
pessoas que a marcaram ainda mais do que o trabalho que desenvolveu,
nomeadamente uma Assistente Social com quem aprendeu muito e que lhe
deu imensa força.
Contudo, por divergências com uma pessoa da Direção, achou que a sua
posição técnica não era conciliável com uma perspetiva de caridade e, após
muito desgaste, pediu a demissão:
“…o trabalho diário com uma voluntária, que era membro da direção e minha superior hierárquica, que defendia uma vertente exclusivamente caritativa no trabalho social, deixou marcas de muita frustração profissional”.
358
Ficou desempregada (seis meses), procurou trabalho e fez formação em
“Formação Pedagógica de Formadores” e em “Mediação”. Através de
contactos da assistente social que a ajudou no primeiro trabalho (que
considera sua mentora) conseguiu um trabalho a tempo parcial numa
associação de imigrantes, mas confrontou-se novamente com a
impossibilidade de conciliar a sua perspetiva de trabalho técnico com o modo
de «pensar» e de «fazer» da direção.
De seguida entrou para a Santa Casa da Misericórdia de L. onde esteve três
anos a fazer atendimento social à população (2004/2006). Neste trabalho
refere que aprendeu bastante sobre as respostas do sistema organizacional
e da Segurança Social e adquiriu novos conhecimentos sobre recursos e
redes de resposta, construiu uma rede de contactos profissionais preciosos
para promover respostas às solicitações dos utentes e destaca também a
aprendizagem com as colegas mais experientes. Paralelamente, menciona a
sua insatisfação com este trabalho, quer porque os pedidos dos utentes não
lhe pareciam corresponder às suas necessidades, quer porque o trabalho
social lhe parecia “superficial, insuficiente e temporário”.
Meteu uma licença sem vencimento para acompanhar o marido que ia em
trabalho para fora do país e não lamentou deixar o seu exercício profissional.
Apesar de se sentir distanciada da profissão, defende que “existe profissão” e
acredita que é uma profissão “com futuro garantido e condenado a perpetuar-
se” mas que a qualidade e eficácia da intervenção dos profissionais
dependerão da construção de políticas sociais adequadas, da capacidade de
execução e de adaptação às realidades sociais dessas mesmas políticas e da
qualidade do ensino da profissão, para que não se caia numa mera execução
técnica.
Para si, ser assistente social, significou, muitas vezes, trabalhar e viver ligada
a uma instituição com mais limitações do que possibilidades. Como acredita
que é uma interventora social e que pode dar mais de si do que aquilo que é
permitido aos assistentes sociais nos locais onde trabalham, nunca se
identificou totalmente com a profissão e foi por essa razão que procurou
evoluir com a prestação de outros serviços na área do apoio social.
Sobre a relação entre os profissionais da Academia e do «Terreno», Mafalda
359
diz que tanto uns como outros parecem ter dificuldades na implementação de
medidas eficazes para intervir em realidades sociais complexas e que mudam
constantemente e teme que fiquem «paralisados» nos seus respetivos
contextos e que não promovam um diálogo ‘inter’ e ‘entre’ si. Pessoalmente,
diz que nunca procurou ajuda junto dos profissionais da academia, embora por
vezes, fizesse algum tratamento de organização de dados dentro da sua
organização.
Mafalda acredita que os assistentes sociais de «terreno» são muito
necessários nas sociedades e que, na sua maioria, são profissionais que
querem provocar mudanças nas pessoas com quem trabalham mas que, por
uma série de ordem de razões, não conseguem.
“Conheço muitos colegas com graus de frustração e «burn out» muito elevados que ficam doentes e não têm utilidade; e acredito que a sua intervenção seria mais eficaz, e gratificante, com a adoção de outras metodologias e com a utilização de outros conhecimentos mais alargados. Uma das conclusões a que cheguei é a de que estes profissionais conseguiriam superar muitas das dificuldades que enfrentam se existisse uma regular discussão de casos, uma formação periódica no posto de trabalho, um bom ambiente de trabalho e superiores hierárquicos que os motivassem e incentivassem”.
Sobre a hipótese de continuidade da sua trajetória profissional prosseguir como assistente social refere:
“Quando voltar a viver em Portugal penso rever a minha posição e ver «onde» e «como» posso contribuir melhor, se como assistente social ou não, mas provavelmente não”.
Armando, encontra-se a trabalhar em Itália, como Educador Social, num
Centro de Acolhimento para menores. É o único ator desta recolha empírica
que se descreve como «Técnico Superior de Serviço Social» e que
argumenta que “dá muito valor a esta designação de «técnico» enquanto
esfera de ação técnica e não como assistente social” – designação que
conota com «assistencialismo».
Quando terminou a formação em Serviço Social e antes de ter tomado a
decisão de sair do seu país, refere que esteve numa fase de «desemprego
ativo», tentando arranjar um estágio profissional mas que foram tentativas
vãs e ineficazes - tanto quanto o sistema político que criou a medida e não a
360
conseguiu operacionalizar, acrescenta. Ainda tentou outras hipóteses, que
não correspondiam à categoria académica e profissional que possuía, mas
que lhe permitiam uma ocupação e um rendimento, mas foram experiências
sem grande significado. Recorda que a memória desse tempo ainda é
«chocante» para si porque considerou ofensivas algumas entrevistas que
colegas assistentes sociais lhe fizeram e porque entendeu que essa
experiência espelhava um país que funciona por «reinos de poder» e pela
perversão das medidas de política, que entende não servirem para os fins
com que foram criadas.
O seu ponto de viragem foi feito com uma experiência profissional que teve
em Budapeste (Hungria) no âmbito do Programa «Leonardo da Vinci»,
através de uma associação juvenil a que esteve ligado. Nos três meses em
que esteve na Hungria, organizou e desenvolveu atividades de animação
sociocultural com alunos de proveniência étnica cigana, numa escola de
ensino especial e refere que a experiência foi muito significativa e
determinante, quer em termos pessoais, quer profissionais.
Menciona na sua narrativa que o trabalho que desenvolve atualmente com
crianças e jovens em Itália é bastante semelhante ao que dinamizou nesta
experiência. Diz que, embora não perca as noções e as metodologias que
aprendeu como “Técnico de Serviço Social”, a dimensão cultural é agora um
elemento de distinção do seu trabalho que não deixa de ser intervenção
social, mas que lhe coloca alguns dilemas relacionados com a sua
construção identitária.
“Neste tempo, sinto-me um trabalhador social e não um assistente social. Em parte, acho que esta minha identificação tem a ver com o que faço e com o contexto onde estou, o facto de estar fora do meu país é determinante e muito do esforço inicial é realizado para a aprendizagem da língua e cultura italianas. (…) Esta distinção também coloca alguns dilemas profissionais…o meu contributo no Centro é distinto dos outros profissionais, seja na esfera da organização e dinamização das diferentes atividades, seja através do contacto direto que estabeleço com os utentes”.
Fazendo uma análise dos cinco anos de experiência profissional, Armando
revela que o curso lhe permitiu um conjunto de conhecimentos e
experiências muito válidos, o conhecimento de abordagens diferentes e uma
crítica e autocrítica constante sobre o exercício profissional e sobre as
361
fronteiras com os vários conceitos de trabalho social - o que lhe permite fazer
uma reflexão contínua.
Armando, refere que a utilização e produção de conhecimento é
preponderante em qualquer estrutura onde se exerça uma profissão social e
que os profissionais:
- geram informação e trabalham informação;
- conseguem promover a complementaridade num trabalho em rede;
- articulam sinergicamente, os referenciais teóricos com os contextos da
prática;
- são simultaneamente produtores de conhecimento.
“…estes recursos teóricos também devem ser alvo de reflexão crítica e devem ser o alvo principal de discussão entre os profissionais que, na sua qualidade de produtores de conhecimento, são o espelho de muitas realidades com que convivem e que ajudam a construir. Entendo o conhecimento de forma plural, como formas de leituras que podem conferir luz ao debate e à compreensão de um problema social e permitir aos profissionais patamares de intervenção mais criativos e resolutivos”.
Encara a produção de conhecimento, simultaneamente como um instrumento
de trabalho e uma dimensão que «vem e vai» para o terreno, numa
perspetiva de que “ação gera conhecimento e conhecimento, gera ação”.
Armando entende que os resultados práticos da relação entre os
profissionais do «terreno» e da academia são visíveis na maior
acessibilidade e disponibilidade da informação e na sua constante
remodelação, embora ache necessário não «banalizar» essa relação nem
promover «ilhas de conhecimento» acessíveis a poucos; pelo contrário,
argumenta que a informação deverá estar em constante remodelação e
acessível ao maior número de pessoas.
Armando refere que “existe a profissão de Assistente Social” mas diz que a
sua condição é nos dias de hoje «a nódoa» de um sistema político que
procura colmatar falhas organizacionais, de criação e distribuição de riqueza;
que se baseia no assistencialismo que gera dependências nos indivíduos e
nas instituições e que está sobretudo vinculado ao controlo social dos mais
pobres e vulneráveis. Assumindo uma perspetiva crítica, entende que os
assistentes sociais ainda servem de «cara» a um corpo institucional com
362
muitas falhas políticas, com recursos apenas paliativos e que, muitas vezes,
servem de «tampão» a verdadeiros problemas sociais.
“No dia-a-dia, o trabalho de grande parte dos assistentes sociais, resume-se à gestão de medidas de apoio económico, com um grande peso processual e com pouca atuação na promoção da mudança”.
Armando refere o sentimento de que “um futuro diferente [para a profissão]
ainda vem longe” e que “hoje estamos muito dependentes dos números da
pobreza e de novas variantes das velhas formas de assistência”. No seu
caso, como diz que pensa no continente europeu, entende que o plano
económico e as mobilidades geográficas estão a criar novos espaços de
confronto e novos problemas sociais, que ainda não sabemos interpretar.
Na pergunta aberta sobre aspetos que o preocupem e/ou interessam do
ponto de vista profissional, Armando refere que está preocupado com os
“novos problemas emergentes ao nível social”:
“…Questiono-me se não estamos a iniciar uma nova era de tantos e tamanhos problemas sociais? E se o excesso de informação proveniente dos novos canais de informação também não tem um papel? Preocupa-me que as camadas mais juvenis da população não tenham acesso ao trabalho nem a formas de participação ativa nas decisões políticas, nem muitas vezes mostrem interesse por analisar as realidades onde estão inseridas”.
Refere que “vivemos um tempo onde não se resolvem problemas, mas onde
se assistem a estes problemas”. E acrescenta que está preocupado
”…por os fatores económicos prevalecerem sobre os fatores humanos, e com as pressões especulativas sobre o trabalho e o emprego – em especial com as deslocações industriais e as novas políticas de «terror» que espalham o medo nos contextos sociais”.
Termina a sua resposta dizendo-se preocupado “com o facto de tentar fazer
uma mediação, enquanto operário do social sem instrumentos concretos de
resolução das problemáticas” com que trabalha.
363
Sílvia, diz-se assistente social “com todas as letras” e com a profissão
designada “dessa forma e não de outra”. Diz de si:
“Eu tenho 37 anos, dou aulas já vai fazer 15 anos e gostaria mesmo de um dia conseguir que esta profissão não me carregasse, não me pesasse, não me sobrecarregasse tanto e me permitisse outra disponibilidade para a minha família, para os meus amigos, para outras coisas que eu gosto de fazer. E não me tem dado essa disponibilidade nos últimos anos e, de facto, às vezes, penso como seria bom mudar de profissão. Mas acho que isto é só um desejo… acho que vou continuar a ser assistente social, sendo professora de futuros assistentes sociais.”
Começa a sua narrativa sobre a trajetória profissional referindo que quando
terminou o curso (1995) havia pouco emprego na área social; ainda concorreu
para trabalhar no Rendimento Mínimo Garantido (RMG) mas desistiu deste
concurso porque se arrastou no tempo e entendeu que não era o que queria.
Enquanto esteve na situação de desempregada, procurou rentabilizar outros
gostos e competências: abriu uma pequena sapataria (tem uma paixão por
sapatos e design) e colaborou com a «International House» a dar apoio a uma
professora de inglês que dava aulas numa escola privada. Entretanto, é
contactada pelo Instituto Superior Miguel Torga (ISMT) para supervisionar
estágios académicos na área da saúde e tem um convite para ingressar numa
instituição privada de saúde mental - uma comunidade terapêutica destinada a
portadores de psicoses. Acumulou as funções profissionais e de ensino
durante três anos e meio e refere que acabou por sair da instituição por
cansaço mas sobretudo porque o modelo de orientação não coincidia com o
seu, o que lhe dificultou a integração de algumas estratégias da instituição.
Mantendo a atividade profissional como docente, continuou a apostar na sua
formação pós-graduada, nomeadamente com a realização de Mestrado em
“Famílias e Sistemas Sociais” no ISMT (fez a tese sobre as redes sociais de
doentes psiquiátricos, o que constituiu uma nova paixão), com o curso de
Terapeuta Familiar e com o Doutoramento em Saúde Mental, que lhe permitiu
cruzar as áreas da saúde, da família e das redes sociais.
Continuou com a supervisão de estágios e alargou a sua atividade académica:
começou a dar aulas ligadas às políticas de saúde na licenciatura de Serviço
Social e, mais tarde, acumulou com a área sistémica, tanto na licenciatura em
Serviço Social, como no Mestrado de Psicologia Clínica em “Famílias e
364
Sistemas Sociais” - realiza a coordenação deste Mestrado e de outro criado
recentemente sobre “Gerontologia Social”.
Sobre a construção identitária, refere que a escola (enquanto ideia) marca
muito a construção identitária mas, no seu caso, tem marcado ainda mais o
facto de ensinar futuros assistentes sociais e participar na sua própria
construção identitária.
“O contacto muito próximo com colegas de profissão, particularmente através da supervisão de estágios, foi reafirmando em mim esta identidade. Depois a minha inscrição na profissão traz-me esta inquietude de fazer algo pela profissão, enquanto coletivo: a utilização de espaços na internet para dar um pequeno impulso foi um meio para favorecer a construção desta identidade de forma coletiva e «coletivizável» e achei que só o poderia fazer, só poderia «dar a cara» a um projeto como o blog «Insistente Social» se tivesse essa identidade firmada. Por outro lado, esta dinâmica ainda reforçou mais a minha identidade profissional. Apesar da minha ligação a outras áreas profissionais e do conhecimento, nunca esta esteve em causa nem estará, aconteça o que acontecer”.
Na sua narrativa menciona que apesar da sua “relação umbilical” com o
Serviço Social, se um dia mudar de profissão, será para responder a um
sonho de fazer algo completamente diferente. Equaciona mudar “para uma
profissão manual” e acha que seria uma atividade que favorecia a sua
criatividade e que não gostaria de “adiar até à reforma”; mas mesmo assim
admite manter-se ligada ao campo de Serviço Social, através da investigação.
Para Sílvia, o papel do conhecimento na construção identitária é fulcral:
“…uma disciplina não existe nem campo científico sem massa crítica e sem publicações da área. Acho que muitos dos nossos problemas passam por aí, há um vazio de publicações e isso faz-nos estudar outros autores que não os nossos próprios e outras realidades, e isso não ajuda a consolidar uma identidade própria da profissão.”
Argumenta que hoje já entende porque é que os assistentes sociais escrevem
tanto sobre si próprios e não sobre os seus sujeitos de ação, sobre políticas e
problemas sociais – adiantando que provavelmente tem a ver com a busca de
uma consolidação da tal «identidade diluída» que se associa à
heterogeneidade de pensamento e de disciplinas do campo das ciências
sociais e humanas onde os profissionais vão «beber».
“Hoje valorizo quem o faz, valorizo quem tem a coragem de investigar a sério e de publicar. É preciso coragem para publicar.”
Sílvia lastima que a Fundação para a Ciência e tecnologia (FCT) não
reconheça o Serviço Social como uma área autónoma e diz que “só a sua
365
massa crítica poderá mudar o estado de coisas”. Sobre a relação entre os
profissionais do terreno e da academia, diz ter uma ótima experiência mas
reconhece que ainda há muita «separação de águas» numa lógica dicotómica
entre a teoria e a prática. Pelo contrário, a si faz-lhe mais sentido uma relação
dialética entre os dois âmbitos em que o motor da investigação pode vir de um
lado ou de outro e, embora não goste da designação de «profissional do
terreno», entende que uns e outros ainda não conseguiram capitalizar esta
relação, no sentido de fazer parcerias e projetos.
Mesmo assumindo que se a articulação não parte dos profissionais, tem de
partir da academia, elenca um conjunto de argumentos do lado da academia
que dificultam essa articulação:
- «um conjunto de inércias»; - «os seus recursos humanos têm sido sobrecarregados e estilhaçados»; - «o corpo docente das várias escolas já não se conhece, o que também não facilita os projetos interuniversitários que poderiam estabelecer, com outro poder, um diálogo com grandes organizações da nossa sociedade».
Sobre a questão que perguntava se achava que tinha uma profissão, a
resposta é veemente e algo irritada:
“…a resposta é sim, sem dúvida (…), é uma profissão porque é reconhecida socialmente, tem uma enorme importância social, apesar de com frequência não ser reconhecida publicamente; mas é reconhecida como profissão e isso é ponto assente, ponto final para mim”.
Gostaria que esta questão deixasse de fazer sentido, não só pela história da
profissão mas sobretudo porque ela é reconhecida pelas entidades e pelas
pessoas e diz que se preocupa com esta necessidade de auto
questionamento. Sobre o futuro da profissão Sílvia entende que a profissão
está legitimada mas o seu futuro “passa muito pela capacidade de
organização e do tal reconhecimento social que tanto se procura”.
“Apesar de ter dificuldades de afirmação no novo panorama do campo do trabalho social: ser assistente social hoje em dia, com as novas profissões que surgiram no campo do trabalho social não é a mesma coisa do que ser assistente social nos anos 60, ou 70, já para não falar nos contornos sociopolíticos e nos contextos e desafios que hoje se colocam à profissão.”
Sílvia tece uma longa teia de argumentos para apontar pistas de futuro para a
profissão, abordando que os compromissos da profissão são mutáveis nos
vários contextos sócio históricos, mas que deviam ser compromissos que
366
unissem a profissão em torno do seu futuro. Refere que não sabe se a
«questão da mudança social» é o futuro da profissão, argumentando que “se
esse for o objetivo, certamente que outro objetivo de mudança virá de
seguida”. Detalhando a sua argumentação, refere:
- “Eu entendo que o futuro desta profissão tem de passar por uma organização profissional que lhe dê um corpo diferente, que lhe dê um sentido (…) que consolide o sentido da própria profissão e que não só dê união, mas também represente a tal identidade, uma nova organização – estou a falar da Ordem…”; - “Como deve ser o futuro da profissão, se calhar, nenhum de nós consegue ter uma perspetiva muito concreta e muito consolidada acerca dessas configurações; - “…o seu próprio projeto ético e o projeto político das sociedades, traz-lhe contornos distintos.” - “O futuro da profissão está muito dependente do futuro do Estado [não auguro de forma muito otimista o futuro da conceção do Estado Social] e não só do Estado, é da forma [incerta] como concebemos a sociedade …”; - “O futuro da organização profissional, eu vejo como determinante para nos colocar noutro patamar de exigência, de exigência em relação à formação da área, de exigência em relação ao exercício da profissão, de exigência em relação à formação contínua de profissionais, de exigência em relação à forma como nós regulamos todos esses processos, de exigência em relação à forma como nos podemos posicionar perante a sociedade que queremos ter…”; - “Essa legitimação só nos é trazida com um poder organizativo diferente e obviamente também esse poder depende de nós e nós ainda não percebemos isso.” - “…por vezes, eu sinto isso, que nós somos muito invisíveis.” - “Temos que ter mais certezas em relação a quem somos, muito mais certezas em relação à profissão para não nos deixarmos diluir neste campo. Nós temos que marcar o campo, não de forma intransigente e também não devemos ser demasiado corporativos”.
Sílvia defende que existe um espaço de diálogo a explorar e um caminho a
fazer com os intervenientes das várias profissões sociais acautelando o
respeito pela sua complementaridade e percebendo que, articulando, se pode
construir mais do que destruir. Em relação ao seu próprio futuro, Sílvia admite
que tem pensado muito sobre o projeto profissional e que ele passa “pela luta
por uma capacidade de organização coletiva” e pela sua ligação à academia
na qualidade de professora e sobretudo de investigadora. Refere, por um lado
que:
“…não descansarei enquanto não tivermos uma Ordem, ou outra organização qualquer que seja capaz, que tenha poder, que tenha capacidade de organização e uma estrutura suficientemente forte para, por exemplo, apoiar os profissionais; e apoiar, formando-os, apoiar advogando os seus interesses”;
367
“…interessa-me que esta profissão possa «ter palco» e explorar este palco, de uma forma séria, palmilhando, de uma forma cautelosa, de uma forma rigorosa, de uma forma atrevida e criativa, para que acedam aas luzes neste palco e nos traga muita luz, com muito colorido, com uma paleta de cores, de interesses e de visões que nos permita crescer. E quando digo «crescer em palco» é ter público e não esquecer este público, não só as pessoas comuns, como as pessoas que necessitam particularmente de nós ao longo das suas vidas - e eu acho que todos necessitam de nós”.
Por outro lado diz:
“Não equaciono protagonismos (…) Eu costumo até brincar e dizer que gostaria até de ser um pouco invisível, passar despercebida, trabalhar no meu cantinho, muito na penumbra. (…) lido muito mal com as situações que se colocam quando alguém assume poder”.
A defesa de uma organização coletiva com «poder» e de uma profissão «com
palco» aparece em tensão com uma pretendida «invisibilidade» pessoal e um
«lidar mal com o poder» - este paradoxo parece atravessar esta narrativa (e a
de muitos outros assistentes sociais).
Sílvia defende que vê a profissão voltada para todos os cidadãos porque
entende que ela defende os direitos humanos e o bem-estar social, que
defende acima de tudo o ser humano e um projeto de vida coletivo, embora
respeitando a individualidade. Reconhece que é uma profissão
«extremamente desgastante» que implica «constantes provas» e que essas
«provas» exigem muito da saúde mental dos assistentes sociais, mas
argumenta que lhe continua a dar “imenso prazer fazer parte” e que se
“emociona muito”.
Sílvia refere que, do ponto de vista profissional e como cidadã “uma cidadã
que tem uma responsabilidade acrescida por ser assistente social”, muita
coisa a preocupa:
A pouca visibilidade, a falta de interlocução que os assistentes sociais
têm tido nos últimos anos nas políticas sociais, o lugar de «pouco
poder» que a profissão tem dentro das instituições, a falta de
divulgação «das conquistas» que os profissionais vão fazendo e a falta
de capacidade de defesa dos cidadãos a nível político;
A falta de uma estrutura de organização profissional, a desregulação do
campo profissional e do campo da formação em Serviço Social;
368
As situações de pobreza e exclusão de várias ordens e de vários níveis;
A distorção a nível do senso comum sobre os problemas sociais e a
falta de implicação e compromisso dos cidadãos nas questões que os
afetam;
O protagonismo de outras áreas que competem no campo profissional;
O desemprego na área;
A falta de perspetiva crítica de alguns profissionais sobre os problemas
sociais e que “não vão para além daquilo que lhes é pedido, do papel
que lhes é dado”.
Os seus interesses expressam-se, sem antagonismos e em tentativas de
cruzamento: na “defesa dos interesses profissionais” e “na defesa dos
interesses dos cidadãos”, na “arte, na fotografia, no cinema, na arquitetura”,
interessam-lhe “os povos” e não lhe interessa “ficar fechada naquilo que são
os papéis públicos”. Interessa-lhe que:
“… o serviço social português se afirme, que possa estar presente em conferências internacionais, que possa investigar ao mais alto nível, que possa ser reconhecido enquanto corpo de investigação, interessa-me a qualidade da produção científica, a qualidade da formação dos futuros assistentes sociais, interessa-me tanta coisa…interessam-me os meus temas, os temas em que trabalho”.
Sofia, diz da sua trajetória profissional que foi uma aposta consciente de
investimento na profissão, no sentido de usufruir do maior número possível de
experiências, de se testar, de ver no «terreno» o que mais «encaixa» com a
sua «pele», de conhecer várias realidades sociais e de ter uma visão da
política social mais abrangente e integrada. Argumenta que esta decisão de
investir na prática profissional foi tomada em detrimento de investir na
formação pós-graduada e que, reflete a sua riqueza profissional e pessoal.
Contudo, avalia que não geriu convenientemente a sua carreira (na altura da
entrevista estava desempregada) mas que fez um trajeto honesto consigo
própria:
“…sou o que sou, graças a este compromisso que estabeleci comigo e com o brio que devo à prática da minha profissão, brio este que achava que estava relacionado também com o máximo de experiências
369
profissionais, evitando a «formatação»”.
O início do seu percurso profissional foi marcado por duas experiências que a
marcaram pela negativa: i) um estágio profissional no Instituto de Apoio à
Criança (IAC) de seis meses, a trabalhar com crianças de rua, onde estava
rodeada por Assistentes Sociais que não lhe reconheciam competências para
intervir; ii) a elaboração de um projeto de escolas itinerantes que enviou para o
gabinete de cooperação portuguesa, com a motivação de ir para S. Tomé -
país onde nasceu mas que desconhecia. Não conseguiu obter as condições
logísticas para a cooperação e viu o seu projeto ser proposto à UNICEF pelo
Instituto de Apoio à Criança (IAC) de S. Tomé – este episódio marca a sua
primeira grande deceção em termos profissionais.
Argumenta que precisa de se sentir útil e que, já na altura em que começou a
sua trajetória o problema do desemprego era bem evidente na área social.
Entretanto, concorreu a um concurso público e foi para os Açores implementar
o Rendimento Mínimo Garantido (RMG). Refere que foi uma belíssima
experiência em termos profissionais, embora fosse pobre em termos pessoais.
Deste trabalho, salienta o conhecimento que lhe possibilitou da função pública
e da intervenção social propriamente dita: em termos da sua aprendizagem
destaca o que aprendeu com uma colega assistente social que foi uma
referência: “muito do que eu sou profissionalmente devo-lhe a ela” e a
aprendizagem da fundamentação legal dos pareceres técnicos “não se atribui
RMG porque se gosta da cara do utente”.
Na sequência do agravamento do estado de saúde do seu pai, voltou ao
continente e demitiu-se. Após um interregno de desemprego voluntário para
cuidar do seu pai, Sofia foi chamada pelo Centro de Emprego e foi
selecionada para a coordenação técnica de uma Associação de Apoio a
Seropositivos. Refere que aceitou com medo mas que “foi uma bela escola,
porque não só percebi que tenho capacidades de liderança, como ergui
aquele projeto vestindo a camisola, literalmente”.
Refere que foi consigo e com o projeto de Centro de Dia, que a instituição se
tornou IPSS e fez o acordo de cooperação com a segurança social - o que foi
marcante, pois assegurou uma continuidade de financiamento. Fala muito e
com paixão desta experiência onde a diversidade de funções lhe agradou,
370
onde perdeu muitos dos preconceitos que tinha com os toxicodependentes e
onde diz ter aprendido muito. Entretanto as relações com a direção começam
a degradar-se e saiu, argumentando que a forma como a instituição era gerida
começou a colidir com os seus valores.
De seguida foi convidada para ir trabalhar numa Cooperativa de Educação e
Reabilitação de Cidadãos com Incapacidade (CERCI) local, onde só esteve
quatro meses no serviço de apoio domiciliário. Não gostou do conceito de
serviço porque considerou que era tecnicamente pouco exigente,
assistencialista e muito limitativo.
Ficou em primeiro ligar num concurso para o Instituto de Reinserção Social
(IRS) e foi colocada numa equipa de um Centro Educativo4 (CEPAO), em
Caxias. Com um contrato de trabalho temporário, trocou o lugar certo pelo
incerto mas decidiu arriscar e refere que foi uma experiência espantosa.
“Normalmente, quando saio dos empregos fico nostálgica, sinto a falta
dos utentes, da rotina, do trabalho em si mas não fico triste, nem choro. Trata-se de um luto, do qual faço a gestão com algum pragmatismo mas no caso do CEPAO não… foi o único sítio donde eu saí a chorar, custou-me imenso deixar aqueles miúdos…”
Refere que não acredita nos Centros Educativos e que não se reabilita nem
se reinsere ninguém por lá (é crítica em relação sistema que acha
completamente oco) mas a relação criada com os jovens foi muito boa,
mesmo num contexto organizacional marcado por más condições de trabalho
e por relações muito tensas com a restante equipa técnica.
“Estava sempre cheia de medo, tinha ataques de pânico em privado (aquela história das grades, aquelas sirenes quando das fugas dos miúdos) era tão assustador. (…) aquele som metálico, a fechar as portas nas tuas costas… eu sentia que estava presa também…”
Descobriu com esta experiência de trabalho que tem jeito para trabalhar com
adolescentes, que consegue “entrar na pele deles”, que consegue relacionar-
se com eles - “com os miúdos senti que o que dava recebia a dobrar”, mas
também acabou por perceber que existem coisas “que lhe pesam” e que tem
o direito de não gostar de tudo. O contrato era por dois anos, mas apanhou
uma altura de contenção da despesa pública (com a ministra Ferreira Leite)
4 Estes «Centros Educativos» são estabelecimentos prisionais pertencentes ao Ministério da Justiça e destinados a jovens que cumprem pena judicial por crimes ou delitos cometidos.
371
em que cessaram os contratados a termo certo e acabou por ficar apenas
um ano. Sabendo disso com alguma antecedência foi procurando trabalho:
“…costumava dizer que tinha dois empregos, que era o que praticava na altura e a procura de outro”.
Ficou só dois meses sem trabalho e entrou por concurso para uma Câmara,
mas essa foi uma experiência onde se sentiu muito maltratada e onde
percebeu que não há solidariedade nem lealdade entre pares - “quase que
diria que são um conjunto de pessoas complexadas que tentam aniquilar-se
umas às outras”.
“…sobretudo se não quiseres criar vínculos afetivos com elas, muitas vezes sentia que era penalizada por não ser amiga de alguns colegas; basicamente, não era pretendida a minha amizade, mas sim vassalagem com o rótulo de amizade. Aliás, uma vez uma superior hierárquica acusou-me de não me ter integrado por não ter feito amizades e disse-lhe que o meu contrato não contemplava essa obrigação mas que garantidamente, era uma colega colaborante e isso teria de ser suficiente. (…) Pagavam-me para trabalhar em equipa e isso fazia, mas quem escolhe os meus amigos, sou eu”.
Deste período diz que foi a única experiência profissional onde percebeu o
que é ser excluído num ambiente insuportável, triste e perverso, onde sentiu
que se não tivesse uma rede de afetos sólida, as pessoas afastar-se-iam de
si, porque estava «triste», «desinteressante», «encolhida» e não é assim a
sua forma de estar na vida. Segundo Sofia, os trabalhadores sociais são
pouco solidários uns com os outros:
“As pessoas entram em competição porque se sentem «pouco» e
precisam de garantir «um lugar ao sol» … com isto não estou a sugerir que não há competições ferozes entre profissionais de outras áreas, mas neste grupo profissional penso que o que está na base é uma insegurança sobre a própria disciplina; é essa insegurança que despoleta a desconfiança sobre a capacidade do outro colega…e raramente conseguem entrar num processo de «eu vou aprender contigo e tu vais aprender comigo», não conseguem…neste grupo profissional a competição é quase automática.”
Após novo período de desemprego, teve uma experiência de trabalho durante
um ano, num Gabinete de Arquitetura a fazer um estudo sobre parte do núcleo
antigo da cidade e refere ter sido das suas melhores experiências
profissionais, não pelo trabalho em si, mas pela aprendizagem de trabalho de
equipa, pela diversidade de conhecimentos e pela aliança efetiva entre os
membros da equipa. Diz desta experiência que “foi uma lufada de ar fresco”
372
trabalhar com pessoas com outras formações e prioridades, com objetividade
e rigor e isso contribui para a perceção de que o facto de não ter outras
colegas «do social» funcionou muito bem.
Depois da passagem pelo Gabinete de Arquitetura, Sofia esteve a fazer
consultadoria na área social numa empresa privada. Refere que este meio
empresarial é «um mundo cão» e que foi muito mal tratada pelas fragilidades
de conhecimentos na nova área de recursos humanos, da qual assume que
não percebia nada - esta experiência serve sobretudo para ter a certeza de
que o que gosta de fazer é intervenção social. Um dos traços marcantes da
sua trajetória foi a tentativa recorrente para ingressar na função pública,
iniciada com a experiência nos Açores e terminada com a experiência na
Câmara Municipal (que avalia como muito negativa)
Paralelamente, mantem-se ligada ao campo social através de colaborações
voluntárias nomeadamente numa associação de apoio ao luto e, mais tarde,
numa associação que ela própria fundou. Na primeira, refere ter aprendido
imenso mas, entra em choque com a direção que descreve como composta
por pessoas «completamente mergulhadas na dor” e que misturavam as
causas pessoais com a problemática de intervenção; na segunda, tem
grandes expectativas de assumir um projeto que é seu e que se fracassar,
pode assumir como «o seu fracasso» sem a possibilidade de justificações
exteriores.Sofia sente-se assistente social e diz que não abdica da profissão:
“…por detrás dito tudo está o meu amor pela profissão e eu acho que sou boa naquilo que faço. Acredito que é possível ser assistente social, sendo respeitada e respeitando os outros, pares e utentes; acho que é possível praticar esta profissão com dignidade e acho que «sou boa» não só porque estou sempre a questionar-me e a achar que tenho coisas a aprender como, de facto, eu gosto das pessoas. (…) E amo suficientemente as pessoas para ser dura se achar terapêutico, fazê-lo, mas tenho a noção (até porque me autorregulo) que nunca fiz nada por puro exercício de poder, situação que é muito vulgar na nossa prática profissional, feita de forma descarada ou mascarada de bondade”.
Contudo diz que “não sente identidade na profissão” e argumenta com a sua
experiência dizendo que quem trabalha nesta área, se não tiver princípios e
uma formação pessoal muito consistente, torna-se facilmente “amargurada,
má pessoa mesmo e que, por vezes, roça a loucura” porque as pessoas que
exercem a profissão habituam-se a ser maltratadas, argumentando que os
técnicos estão habituados a uma de duas coisas:
373
“ …a serem endeusados pelos utentes e/ou a serem maltratados pelos pares e chefias; ou então ambas as coisas se conjugam. Com isto resulta pouco tempo para as pessoas refletirem as suas práticas e se unirem para criar uma identidade de profissão”.
Também identifica fatores externos (como a inexistência de supervisão e de
espaços de reflexão) que poderiam inverter o medo que os profissionais têm
de ser julgados e ajudar a desmontar o mito do «herói/heroína profissional».
Sofia argumenta que existe nos profissionais do social um elogio do «bom
senso» e que isso contribui para que não se criam critérios de avaliação e
para que não seja possível responsabilizar os interventores sociais pelas suas
práticas. Sobre a relação entre os profissionais do «terreno» e da academia
diz preferir movimentos de «vaivém» entre o terreno e a academia, a vários
pretextos - e menciona que o inverso também é desejável. A propósito,
menciona uma breve passagem pela universidade, na qualidade de docente,
que lhe traz boas recordações mas destaca que o seu gosto por dar formação
não tem nada a ver com «dar aulas».
Ao fazer um balanço, Sofia diz que a sensação que tem, é a de uma «grande
alegria», numa trajetória profissional de «amores e desamores»
essencialmente porque estava no campo e isso implicava estar a aprender
novas maneiras de estar na profissão, de testar os seus limites e de conhecer
novas realidades, em paralelo com a gestão dos seus medos. Entende que o
que está na base deste tipo de trabalho é “um forte sentido de solidariedade
que é extensivo a tudo e a todos”.
Um dos aspetos que identifica como estando colado à profissão de Assistente
Social (e às profissões sociais de uma maneira geral) é a necessidade de «ser
bonzinho», revelando que existe um discurso do género “temos de ajudar
quem precisa de nós e, de momento não há dinheiro, mas vamos fazer um
esforço…”; refere que para isso não tem paciência e que os assistentes
sociais já têm que «provar» tanta coisa que não podem estar com «jogos».
Apesar da sua atitude crítica com alguns traços da profissionalidade, Sofia
refere que também se foi cruzando com bons profissionais, com os quais se
identificou, mas que curiosamente também esses estavam nas margens das
instituições.
Diz que o seu futuro passará sempre pelo exercício da profissão mas que o
374
mercado de trabalho tem poucas ofertas e que criou uma prioridade que é a
de preservar a sua sanidade mental. Sobre as suas perspetivas de futuro,
afirma que neste momento está a tentar criar algo que ofereça outro tipo de
serviços e diz … «vamos ver».
Quando generaliza sobre o futuro profissional argumenta que a manter-se “a
perspetiva de «caridadezinha» e do assistencialismo não há futuro” mas que o
desafio que se impõe é o de “encontrar o equilíbrio entre a competência
técnica e a humanidade”. Acredita que a união faz a força e entende que uma
forma de evitar os equívocos que minam as relações laborais é estar
disponível para não ter medo «da verdade dos outros».
Em relação à produção escrita deste campo profissional, Sofia reconhece que
apesar da grande produção de estudos e relatórios, ele «tipo» de registo fica
fechado nas organizações e não dá visibilidade profissional.
Escreve artigos de opinião para a imprensa encarando-os como outra via para
se expressar como cidadã mas argumenta que existe um longo caminho a
percorrer para ultrapassar o sentimento de «pequenez» de alguns
profissionais e treinar “o sentido de humildade de se exporem à crítica de
outros e de aprenderem com isso”.
375
5. 2. Percursos de aprendizagem da profissão
Este recorte artificial foi novamente realizado com critérios cronológicos e por
tentativas de exploração do «corpus» constituído pelas narrativas recolhidas.
Ao procurar aceder aos percursos de aprendizagem da profissão, privilegiámos
aqui a formação desde os «espaços / tempos» da sua realização.
Os sistemas de formação ao produzirem conhecimentos científicos, teóricos e
abstratos, saberes descontextualizados, simbólicos e espaços disciplinares,
hetero organizados e uni funcionais constituem um espaço de racionalização
que desempenha um papel simbólico importante na produção de modernas
categorias educativas e contribuem para a especialização funcional dos
espaços educativos tendencialmente organizados segundo lógicas distintas
das que estruturam a vida privada (Barroso, 1993). Assim, procurou interrogar-
se a determinação reguladora da formação, que Santos denomina de
“intensidade colonizadora do conhecimento moderno” e que consagra uma
racionalidade cognitivo instrumental que relativiza e exclui pressupostos ou
valores morais, éticos e políticos, como a solidariedade, a participação, a
estética e a emoção da construção desse conhecimento. Neste estudo procura-
se dar visibilidade à produção de um conhecimento situado, dialógico e local,
suscetível de apropriação por parte dos cidadãos, das comunidades locais, do
que pode ser uma ciência social envolvida com diferentes formas de
conhecimento e de experiências e atenta às implicações éticas e políticas da
sua prática (Santos, 2000).
São sugestivos os discursos narrados pelos diferentes atores e autores nas
entrevistas de investigação que realizámos, começando uma parte deles pelas
razões mobilizadoras para a formação inicial. Embora, não fosse uma questão
colocada inicialmente, alguns autores referiram-se a ela como ponto de partida
da sua narrativa, o que sugeriu a sua inclusão.
A formação inicial para um trabalho e um emprego é uma lógica que marcou as
propostas educativas do século passado, assente no modelo da ‘eficiência
social’ (Kliebard, 1999) e que, de modo perverso, continua a querer persistir no
modelo neoliberal através da articulação entre competências adquiridas no
campo da formação e competitividade no mercado de trabalho. No entanto, a
376
democratização da educação, a acelerada transformação dos processos
produtivos e a própria conceção do trabalho que se foi alterando, levam a que a
formação deixe de ser anterior ao trabalho para ser concomitante com este
(Dubar e Tripier, 1998). Estes autores sublinham a mudança de sentido dos
trajetos de mobilidade profissional e o claro incentivo ao desenvolvimento de
estratégias individualizadas para assegurar e melhorar a própria
empregabilidade.
A “Aprendizagem ao Longo da Vida” incentivada na União Europeia desde
1996 e os discursos que deslocam a noção e o sentido da «qualificação» para
a(s) «competência(s)» são disto exemplo, deslocando ao mesmo tempo o
investimento na formação das instituições para os indivíduos, que se tornam
responsáveis pela sua empregabilidade e pela manutenção do “estado de
competência e de competividade no mercado” (Dubar, 2000:112). A lógica da
competência coloca em questão
“…uma conceção muitas vezes apelidada de burocrática da qualificação, previamente adquirida e sancionada por um diploma, permitindo o direito a um contrato, a «nível de classificação» (e de salário) correspondente ao nível de diploma e assegurando em seguida a progressão salarial, mais ou menos automática, com a antiguidade” (Dubar, 2006:110).
Das relações entre o campo da formação, o campo do trabalho, a (des)
responsabilização do Estado e a crescente responsabilização do setor privado
advém possibilidades de um processo de reflexão importante a fazer pelos
assistentes sociais. As expetativas construídas no campo da formação inicial e
contínua dos autores (nos diferentes perfis abordados) e o sentido atribuído ao
trabalho que, como refere Dubar (2006) é uma componente das identidades
profissionais que diz respeito à relação com a situação de trabalho (que é ao
mesmo tempo situação e relações de trabalho, envolvimento de si na atividade
e reconhecimento dos pares) confrontam-se com a incerteza das regras, no
plano económico, político e social e ficam evidentes em «trajetórias erráticas»
construídas entre a possibilidade de acesso no mercado de emprego e no
campo do trabalho. Esta situação de instabilidade e incerteza, é atualmente um
dos elementos intervenientes na construção e crise das identidades
profissionais (Dubar, 2006). Por outro lado, no entendimento de Barbier, as
dinâmicas de afirmação identitária individual e coletiva correspondem a
377
“…indivíduos diretamente envolvidos, muitas vezes em posição privilegiada, numa ação ou num projeto (…). As imagens e os afetos (positivos ou negativos) que experimentam confundem em grande parte as transformações da ação, as transformações do grupo ou da organização que está envolvida, e as suas próprias transformações identitárias. Eles dão à formação um significado dominante de aumento de eficácia e de apropriação da situação…” (1996a:22-23).
Identificámos este significado nas narrativas dos atores do estudo face à
dualidade experienciada nos contextos de trabalho e à integração incerta que
carateriza as novas formas de integração profissional, que configura uma
relação entre trabalho e formação que se traduz numa relação de «encontros
prováveis entre trajetórias possíveis» (Paugman, 2003).
@s seniores: Ana, Helena, Filomena, Fernanda e Maria
Em relação aos seus percursos de aprendizagem estas cinco assistentes
sociais, com idades compreendidas entre os sessenta e dois e os setenta e
três anos de idade e, no que respeita às suas formações iniciais, quatro delas
partilham dois períodos de formação no Instituto Superior de Serviço Social
de Lisboa - Ana e Helena partilharam a formação nos anos de 1956/1960 e
Fernanda e Filomena partilharam a formação nos anos de 1969/74.
Em relação ao curso de formação de 1956/1960, Ana e Helena, identificam
que a escolha do curso seria essencialmente vocacional: estas duas
assistentes sociais partilham o interesse e a motivação por uma formação que
lhes permitia intervir com os «outros», com as «pessoas».
“Porque achei que era importante...eu sempre tive um certo interesse por perceber o que se passa com os outros…” diz Ana (E TA8) “Desde miúda que eu tinha a noção que as pessoas eram a única ‘coisa’ que me interessava” diz Helena (E HS3).
Sendo jovens de famílias, social e economicamente bem posicionadas e,
numa época em lhes era permitido um vasto leque de opções formativas, a
escolha por Serviço Social era entendida como de baixa expectativa
académica, embora a função fosse socialmente reconhecida. Nas suas
narrativas fica patente a desvalorização familiar por esta opção formativa:
“Houve uma altura que eu pensei em ir para Medicina, depois pensei que eram muitos anos e muito estudo e que não me apetecia e fui para Serviço
378
Social. Muita gente me dizia: - Não sejas parva, tu vais para Serviço Social e depois não aprendes nada”, diz Ana (E TA8).
“Acabei o Liceu com 17 anos, queria ir para Medicina e aí o meu pai, que era um homem sensato, disse que eu era demasiado cábula para ir para Medicina (risos). Então, a alternativa foi ir para Economia, para o ISE/Instituto Superior de Economia e fui. E foi durante esse primeiro ano que eu comecei a detestar aquilo, exceto as aulas do Professor Francisco Moura, que eram uma maravilha! Foi durante esse primeiro ano no ISE que eu conheci, através de colegas mais velhas, o Instituto de Serviço Social. - Mas é isto que eu quero, não é mais nada “(E HS3).
Ana e Helena, atribuem significados bastante diferentes em relação à mesma
formação inicial:
“Em relação a isso não tenho dúvidas que naquela altura a formação era
uma «xaxada» (…) realmente, aprendi pouco mas o que aprendi foi uma base que depois foi evoluindo (…) Na altura em que eu fiz o curso achei aquilo muito fraquinho, não havia livros, não havia nada. (…) Quando eu lá andei o Instituto ainda era ligado ao patriarcado, só depois da revolução é que ficou independente” Ana (E TA8)
“- Estou, estou muito satisfeita. E, de facto, o curso apaixonou-me. Fui
muito boa aluna. (…) Eu demorei 5 anos a fazer a curso, apesar do curso ser de 4 anos, porque quase no fim do 3º ano tive que interromper, fui-me a baixo...O curso era muito violento, como ainda hoje é. Havia os estágios... nós tínhamos particularmente um estágio que para mim foi muito doloroso, no 2º ano, nas tutorias de menores, que era com as crianças - problema... e, de fato, aquilo deu cabo de mim. Particularmente uma miúda (não me esqueço) com 8 anos, com uns olhos azuis lindos, muito redondos, que tinha envenenado o pai e a mãe, conscientemente.”, refere Helena (E HS3).
Ana complementou a sua formação pós-graduada no Brasil no final da década
de 60 e princípio da década de 70 do século passado, iniciando contactos com
autores de referência na América Latina, que depois introduziu em Portugal,
por via do ISSSL (na qualidade de docente) e da APSS (na qualidade de
dirigente). Não terminou a tese de mestrado, porque coincidiu com a época da
revolução de 1974 e privilegiou o tempo para a intervenção social numa época
de grande mobilização e participação popular desvalorizando o grau
académico. Contudo, em relação ao seu período de formação no Brasil refere
que “foi bom ter descoberto estas coisas todas, deu-me uma visão do mundo,
das pessoas e da profissão que considero muito rica”.
A propósito Honoré (1990) argumenta que é na quotidianidade, misto de
revelação e de recolhimento, de angústia e de esperança, que o sentimento da
situação que descobre o ser-homem, enquanto ser lançado no mundo, se
379
acompanha do sentimento de formação na sua «formatividade», enquanto ser
no mundo.
Helena, que fez uma segunda formação em Política Social passado alguns
anos de exercício profissional, refere o seu compromisso com a aprendizagem
contínua dizendo quando já estava reformada:
“A nível teórico, conceptual e científico, há aquisições hoje que eu não imaginava há vinte anos quando comecei [na formação], que isto pudesse acontecer. Particularmente o trabalho descoberto sobre o funcionamento do nosso cérebro…”.
Em relação à formação em serviço social, refere que “tem uma componente de
valores que é decisiva”, ilustrando com uma conversa que teve com os seus
“queridos alunos”:
“ - Vocês não podem perder a vontade de continuar a aprender, têm que se atualizar, porque há sempre coisas novas (algumas não interessam nada, mas tudo bem), mas nunca esqueçam que o suporte de uma profissão como a nossa, são os valores. E isto não tem a ver nem com política, nem com religião, nem coisa nenhuma, tem a ver com valores morais, sem isso não há Serviço Social”.
Helena, durante todo o percurso profissional acumulou o exercício de Serviço
Social com uma atividade intensa na formação (como formanda e formadora).
A narrativa de Helena é ilustrativa da reversibilidade do processo formativo e
do ativismo colocado na formação inicial e continua dos assistentes sociais e
de outros públicos. No seu percurso profissional maioritariamente ligado ao
meio empresarial, as suas colaborações com a formação inicial foram uma
constante, até ter optado por se dedicar em exclusivo à formação, embora
tenha sempre assumido um estatuto de «colaboradora externa» de forma a
manter a sua independência.
Na linha destas autoras, Charlot (2002) salienta que aprender não é
equivalente a adquirir um saber, entendido como conteúdo intelectual ou
«saber objeto» que é apenas uma das figuras do aprender. Neste sentido e
segundo este autor, a aprendizagem e a formação são uma aproximação do
sujeito ao mundo, aos outros e a si próprio, são uma aproximação ao saber que
não é apenas epistémico. Esta aproximação é também identitária e social,
numa conceção de formação e aprendizagem que se sustenta no sentido e no
significado subjacentes à condição humana e que se afasta das correntes
380
comportamentalistas da aprendizagem que frequentemente estão centradas
numa perspetiva instrumental da formação (Canário, 1999).
Em relação ao curso de formação de 1969/1974, quase uma década depois,
Fernanda e Filomena, ambas vindas de fora de Lisboa (respetivamente dos
Açores e do Alentejo) convergem na satisfação pela formação à qual dedicam
muitos argumentos nas suas narrativas. As diferenças pontuadas por ambas
têm sobretudo a ver com as diferentes experiências de vida (nomeadamente as
dificuldades que Fernanda encontrou no domínio escrito da língua portuguesa,
já que tinha crescido e feito o seu percurso escolar no Brasil):
“Não, não foi fácil [o tempo do curso], foi mesmo muito difícil. Mas lá consegui, porque eu sou muito teimosa e aplicada e aquilo que eu me propunha fazer levava até ao fim” (E FCR5).
Filomena recorda-se que:
“…eram umas aulas em que eu estava encantada. Eu ia para lá de manhã, saia de lá à noite, eu vivia naquela Escola num perfeito encantamento. Aquilo era tão diferente do que eu estava habituada, aquilo tinha uma interação tão grande entre os professores e os alunos de um estilo que eu não estava nada habituada e integrei-me muito bem; passava a vida lá” (E FA7).
Sobre a motivação para a escolha desta formação, são diferentes as narrativas
de Filomena e de Fernanda. A primeira refere que, apesar do pai entender que
“iria ser muito boa em Direito e de querer que fosse para Coimbra”:
“Bem, o que é que me levou à formação em Serviço Social? Tinha acabado o meu 5º ano e tinha que me decidir. Nessa altura [finais da década de 60], eu tinha uns amigos, em que uma delas era assistente social, que era a Isabel Costa, que trabalhou em Setúbal durante muitos anos e que foi a primeira pessoa a quem eu ouvi falar do curso de Serviço Social. Eu era uma excelente aluna na área de Ciências e gostava muito de matemática mas tinha umas birras de vez em quando com o meu professor, apesar de ser um homem de quem eu gostava muito... e então decidi que para Ciências eu não ia. Para onde é que eu ia? Para o curso de Serviço Social“ (E FA7).
Fernanda refere que para a compreensão da sua história, precisa de fazer um
enquadramento e relatar um pouco o seu passado, para se perceber o que
influenciou ou determinou a sua escolha profissional. E menciona:
“É assim: aos 3 anos de idade [em 1952], vivi o primeiro marco de uma mudança radical, na vida de uma criança: trocar de país, a família foi toda para o Rio de Janeiro e, segundo as lembranças da história familiar, iríamos apenas por um ano - que acabaram por ser à volta de 12 anos. A minha família foi toda: Pai, Mãe e Avó materna de 79 anos, um irmão mais velho de 6 anos de idade e um irmão mais novo de 1 ano de idade. O motivo desta “aventura” deveu-se ao facto de o meu avô ter deixado uns
381
bens imóveis no Brasil, entregues a um procurador que não prestava boas contas... Então o meu pai aceitou o desafio de tratar pessoalmente desses assuntos, com a ilusão de que ao pedir uma licença sem vencimento por um ano no seu emprego (foi gerente do Grémio da Lavoura e fundador da primeira fábrica de lacticínios da ilha Terceira), seria suficiente para solucionar as questões em causa e regressarmos, mas não foi assim que aconteceu” (E FCR5).
Fernanda fala com pormenor desta etapa, do início da escolaridade no Brasil e
das voltas inesperadas da vida, recordando que na família havia um lema
lembrado todos os anos: «meninos este ano ninguém pode ficar com cadeiras
para fazer em 2º época de exames, porque vamos voltar para Portugal»,
lembrando que o aviso funcionou como motivo de maior aplicação escolar das
crianças e também como o despertar da curiosidade para conhecer o País
onde tinham nascido, evitando que ganhassem raízes no Brasil. Reconhece
que a sua escolha no secundário pela área de letras foi feita sem grande
convicção.
Ambas referem os contextos dos estágios académicos como fortes
experiências de aprendizagens, embora ligadas a diferentes «áreas» de
intervenção:
“Eu tive numa situação privilegiada no estágio porque eu queria ir para empresa, mas não queria uma empresa qualquer, queria ir para a TAP. E não fui para a TAP, fui para a «Stander Eléctrica» mas o estágio era remunerado - sempre achei que isso era um direito dos estagiários (nas outras profissões, por exemplo os próprios médicos, naquela altura tinham remuneração e colocação garantida). Nas empresas havia muitos postos de trabalho para o Serviço Social, porque era obrigatório, apesar de ser uma época do corporativismo instalado, não é? As empresas com mais de um determinado número de trabalhadores deviam ter Serviço Social.(…) Eu fiz o estágio na «Stander Eléctrica», em Serviço Social de empresa, e foi muito bom, apanhei a mudança das instalações da fábrica para Cascais que ocorreu durante o estágio e eu acompanhei essa transição dos trabalhadores. Sabe quem é que era o diretor de pessoal da «Stander Eléctrica»? O N.C., um “malandro!” Eu não fiquei lá por causa dele, o senhor Doutor achou que o trabalho que eu fiz estava viciado. Ele achava que as trabalhadoras que estavam na linha de montagem e recebiam prémios de produtividade de cinco escudos à hora, que aquilo era de mais e que elas não sabiam onde gastar o dinheiro! Agarrei essa temática e fiz o respetivo estudo, foi o tema do meu trabalho final, demonstrando o contrário do que ele defendia, mas ele não gostou e disse que eu tinha viciado os dados! Aqui deparei-me com a primeira situação de descriminação profissional porque, apesar da minha orientadora me ter garantido a integração na empresa, também o próprio Presidente do Conselho de Administração manifestou o apreço pelo meu trabalho e vontade em que continuasse, mas não fiquei” (E FCR5)
382
“Tive dois estágios de que me lembro bem, um na Misericórdia de Lisboa, que foi feito no Bairro 1º de Maio, no Casalinho da Ajuda, com uma mulher que hoje ainda trabalha por lá como voluntária e foi uma pessoa com quem eu tive algumas fricções, mas com quem acabei por me dar muito bem. Até hoje, cada vez que nos vimos, consideramo-nos bastante. Depois no 4º ano estagiei no Centro de Observação e Orientação Médico - pedagógica, que era o chamado COMP5 (Serviço criado em 1972 por Joaquim Bairrão Ruivo e tutelado pelo Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, sendo uma referência da intervenção multidisciplinar na Intervenção Precoce, com crianças deficientes). Foi assim uma experiência muito interessante para mim. Ao início, perfeitamente devastadora. Lembro-me muito bem das crianças, estou a vê-las... pelo menos aquelas com quem trabalhei. O assistente social tinha um papel de acolher a família e a criança e fazer a primeira conversa com eles, para perceber como é que a família sentia o problema. Nós já tínhamos alguma informação, porque aquelas crianças vinham de fora de Lisboa para serem observadas e face ao diagnóstico, serem ou não, internadas num estabelecimento de ensino especial. Tínhamos uma orientação que era feita com muita qualidade técnica, tínhamos de fazer um registo minucioso. A minha chefe de estágio acabou por ser uma conjugação entre a Isabel do Vale e a Zulmira Antunes e a Isabel do Vale que também está [a lecionar] na Universidade Católica, são duas pessoas com características muito diferentes, ambas têm as suas qualidades, mas foram duas pessoas muito interessantes no meu processo de aprendizagem. E também uma Pedopsiquiatra que estava lá a funcionar na altura, com quem aprendi muito” (E FA7).
Os processos de aprendizagem e de formação, inscrevem-se na temporalidade
biográfica das suas trajetórias e decorrem da aproximação das autoras ao
mundo, aos outros e a si próprias através das unidades de sentido que vão
produzindo e dos atuantes que identificam como significativos (Charlot, 2002).
Maria teve um percurso formativo e profissional diferente das colegas
anteriores, já que começou pela formação de Auxiliar Social - um curso
criado pelo Decreto-Lei nº 38 884, de 28 de Agosto de 1952, por iniciativa e
sob tutela da então Direcção-Geral da Assistência e ministrado pelas Escolas
de Auxiliares Sociais de Coimbra e Lisboa, bem como pelas Escolas de São
Pedro de Alcântara (a que frequentou) e de São Vicente de Paula. Mais tarde
(1979/81), foi frequentar uma formação complementar entretanto criada no
ISSSL para formar pessoas que já exerciam em atividades profissionais
próximas ao Serviço Social:
“Era aquele curso à noite que eles fizeram para nos permitir a reclassificação… Foi aprovado um curso, aquilo tinha um nome… acho que era Plano de Estudos Unificados. Era dirigido para professores primários, auxiliares sociais com curso ou pessoas com formação académica equivalente. Havia lá duas ou três pessoas da área dos
5 Ver Gomes de Almeida, Rosalina (1980) “Uma história da Educação Terapêutica”, Cadernos do COMP.
383
serviços prisionais que também foram considerados equiparados. Mas não tinham acesso os que não tinham curso nenhum” Maria (E RA2).
São mulheres que, com todas as suas diferenças, partilharam origens
familiares e sociais de classe média e média-alta (com exceção da Maria que
tem uma condição social de origem menos abastada e estudou sempre com
recurso a bolsa), numa época em que as jovens de famílias socialmente bem
posicionadas tinham acesso privilegiado a uma formação de nível superior.
Mesmo assim, pode inferir-se nas suas narrativas a condição de «rebeldes
meninas de família», onde frequentemente a opção por Serviço Social não
seria uma escolha de agrado familiar, mas sim uma decisão tomada a
‘contragosto’ e depois da negligência de outros cursos académica e
socialmente mais reconhecidos como Medicina, Direito ou Economia.
Maria e Fernanda, ao contrário das outras assistentes sociais deste perfil,
identificam uma escolha da formação pela possibilidade e/ou oportunidade,
face a outras escolhas que se apresentavam impossíveis ou indesejáveis:
“…na minha terra naquele tempo, nos anos 60, as meninas ou iam para senhoras professoras primárias, senhoras enfermeiras ou para os Correios. (risos) (…) Eu sempre sonhei fazer um curso ligado à área da Pintura ou da Arquitetura, ou do Desenho, qualquer coisa dentro dessas áreas que era o que eu gostava. Só que não podia. Era como o sonho de ser bailarina… Era impossível. Naquele tempo e naquela ‘terrinha’... (…) vim passar férias cá a Lisboa, porque a minha irmã tinha casado e vivia cá. (…) E uma cunhada dela era auxiliar social e tinha feito o curso em S. Pedro de Alcântara. E disse-me: - Porque é que tu não vais fazer o curso de auxiliar social? Vou contigo lá ao Colégio, apresento-te às irmãs e não sei quê...E eu assim: - Que curso é que é esse? - Olha, é Serviço Social, é como a Assistente Social, só que é Auxiliar. - É isso mesmo que eu quero! Entre isso, que eu não sabia muito bem o que era, mas que era ligado ao social e que não era senhora professora primária, eu não tive dúvidas: - É mesmo isso que eu vou fazer! “ Maria (E RA2.) “…a minha escolha profissional de ir para Serviço Social foi baseada no curriculum da Escola porque achei que tinham disciplinas do meu interesse. (…) No meu ensino, lá no Brasil, todos os anos nós fazíamos exames, mas era um ensino mais solto, mais técnico, do que o que vim cá encontrar, com «cadeirões»... Fiquei assustadíssima, não é? Então a minha esperteza “saloia” foi optar por uma área que tivesse disciplinas novas, que não encadeassem com conteúdos dos anos anteriores, e aí optei pelas letras, pela alínea e) que dava para Direito. Depois conheci o currículo de Serviço Social e gostei das cadeiras, a Psicologia, a Sociologia, acho que era interessante aquele conjunto... e o Serviço Social também. Aquele desdobrável que davam no início do ano convenceu-me…” Fernanda (E FCR5).
384
Maria, fez a sua primeira formação como auxiliar social sensivelmente na
mesma época (1962-64) num curso «profissional» que foi assim descrito:
“Eram dois anos de curso e eu apanhei o último ano daquele curriculum de curso de auxiliares sociais. Depois foi remodelado, retiraram-lhe uma série de cadeiras, inclusive ‘corte e costura’ e culinária que nós tínhamos, economia doméstica... havia assim uma série de cadeiras que depois me foram muito úteis na Promoção Social Comunitária. (…) O curso era oficial. E era realmente um curso muito mais completo. (…) Em relação ao curso de auxiliares sociais era exigido para admissão o 5º ano e o curso dava equivalência ao 7º ano. A formação que tínhamos no curso era muito prática e tinha muito a ver com o trabalho que depois íamos fazer, muitas colegas foram trabalhar para a Obra das Mães. (…) Porque tínhamos mais conotação com aqueles aspetos da formação das raparigas, do acompanhamento das mães solteiras... do que propriamente com o Serviço Social, embora tivéssemos cadeiras de Serviço Social. Tínhamos umas professoras ótimas” (E RA2).
A propósito dos estágios em formação, Maria refere que, na altura (inicio da
década de 60), havia muito poucos assistentes sociais a trabalhar. Havia uma
assistente social responsável por cada serviço e depois a maior parte das
pessoas eram auxiliares sociais sem curso nenhum, as antigas «visitadoras»:
“…por exemplo, a pessoa que me orientou o estágio foi a A. F., em Algés, que era ótima, mas que era dessas pessoas sem formação especializada. Uma mulher, como técnica, impecável – tomaram muitas assistentes sociais com curso ter a categoria dela, aprendi imenso com ela. E depois na Amadora trabalhei com a A., que era impecável também. Tudo pessoas sem curso nenhum, com conhecimentos só da prática e foi com elas que os serviços cresceram, disso não tenho dúvida nenhuma!” (E RA2)
Sobre a expetativa quanto ao futuro da profissão, Maria interroga-se,
interrogando em simultâneo a imagem assistencialista que ainda persiste e a
relação com os saberes:
“…será que o Serviço Social, tal como ele é, se justifica neste momento? Será que as fábricas de fazer máquinas de datilografia não tiveram de se reconverter para a nova época dos computadores? Ninguém hoje constrói máquinas de datilografar. Eu não sei muito bem qual é o Curriculum do curso neste momento. Também posso estar a incorrer num erro muito grande! (…) Dizes-me que o Instituto já nem está no mesmo sítio... e ainda bem! Talvez se tenha alterado um bocadinho. Porque, quer queiramos quer não, a representação, a imagem da Assistente Social não mudou muito ao longo dos anos, continua a ser a senhora do carrapito e do fato saia-casaco cinzento, não é? Por muito que a gente queira mudar a imagem, por muito que a gente diga que os assistentes sociais já não são como eram antigamente... (e se calhar, não são; na essência, não serão - mas ainda trazem muito essa ‘bagagem’ e ainda se põem muito na posição de assistência)... e depois têm uma coisa complicada que é terem a mania que sabem tudo.
385
A gente não sabe de tudo, dá uma ‘pincelada’ e talvez por isso é que sabemos tão pouco de nada. Eu realmente, como trabalhei com muita gente de áreas de formação diferentes, fui agarrando muita ‘coisa’, mas isso não me dá o direito de ter a mania que sei se tudo e, às vezes, também tenho. Eu, quando trabalhava com os menores em risco e com o tribunal de menores, já manejava as leis de traz para a frente e de frente para trás, mas isso não me dava o direito de dizer que sei de leis. Sabia-me mexer, sabia o necessário e suficiente para fundamentar o trabalho que me competia fazer. Mas nós continuamos a ser assim um bocadinho... pela rama. É engraçado, porque quando nos dizem para colocar por escrito, aí a gente se calhar tem muito palavreado, mas muito pouco consistente” (E RA2).
Procurando definir o que caracteriza os assistentes sociais, Maria refere que é
o contato com os «problemas do terreno», ou seja, os problemas que se
colocam no dia-a-dia hoje, nos bairros, nas famílias, nas pessoas e que apelam
a que os assistentes sociais se misturem com as pessoas.
“Eu acho que se há coisa que define o nosso campo é a mistura, é o estar por dentro. Se a gente não conseguir estar por dentro, estar próximo, não ‘agarra’ nada. Porque é quando a gente está por dentro das situações, e se senta ao lado, e é igual, que nos passam as coisas, como que por osmose. Agora, se o senhor doutor ou a senhora doutora vai lá engravatado ou encasacada, como é que é? Não lhe ligam nada, nem percebe nada. Acho que uma das nossas características é ser um bocado “mata-borrão”. O Serviço Social, é assim uma virose que a gente apanha e que nunca mais cura, depois vão aparecendo os sintomas, umas vezes dá tosse, outras vezes dá dor de garganta, mas está cá – é uma virulência acumulada. A gente mesmo que não esteja a trabalhar, mesmo que esteja de férias tem isto colado à pele, para onde quer que vá, não consegue ver por outros olhos” (E RA2).
Fernanda refere que entrou para o Instituto de Lisboa a seguir ao Padre
Honorato6 ter falecido, em 1969. Aquela formação, diz Fernanda:
“…dá-nos a sensação de sermos super-herói, de faz-tudo, não é? Como se tivéssemos uma varinha mágica, de fada! Depois nós não temos a maturidade para saber situar as coisas. E quando nos confrontamos com a prática, no terreno, percebemos que as coisas são diferentes” (E FCR5).
Menciona as aprendizagens nos estágios, “uma grande dificuldade por causa
do Português” e talvez o mais surpreendente seja o relato de que nunca
entendeu o que era o Serviço Social durante o curso.
“Só depois é que vim a perceber, só depois é que consegui entender. Agarrei-me a ler a literatura de Serviço Social, desde a brasileira às produções americanas e depois optei pela linha psicossocial, que eu acho que era aquela que me agradava mais (E FCR5).
6 Atuante icónico desta instituição formadora.
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Sobre a aprendizagem ao longo da vida é Filomena quem menciona mais
episódios na sua narrativa, dando relevância aos atores e aos contextos com
quem se cruza e ao conhecimento construído ao longo da trajetória:
“…fui aprendendo sempre coisas ao longo da vida com as pessoas com quem me cruzei, fiz muitas formações (devo ser, até há uns anos atrás, devia ser das pessoas que mais e mais variadas formações tinha feito, dentro daquela ótica de cruzar formações de várias áreas)…” (E FA7). “Eu verifico que, por exemplo, as pessoas que fizeram o curso de Sociologia mas estiveram primeiro em Serviço Social (como eu fiz), ficaram apetrechadas com uma forma de ler a realidade social e são capazes (hoje em dia isso já é mais vulgar, mas aqui há uns anos atrás não era) de sistematizar, com maior qualidade a informação que obtinham dos contextos de trabalho. Os assistentes sociais contavam umas histórias de vida engraçadíssimas mas que nunca mais acabavam, aquilo era muita descrição e pouca análise. As de sociologia não, começaram a ser capazes de quantificar, a ser capazes de fazer uma análise no plano sociológico, porque é que as coisas eventualmente aconteceram assim, o que é que influenciou, o que é que não influenciou...” (E FA7). “Eu acho que o conhecimento que se constrói com os outros, na vida, é um conhecimento estruturante porque no ‘fim das contas’, o que vai valer a cada um de nós é aquilo que foi aprendendo e guardando ao longo da vida. E, de facto, deve ser muito difícil dizer o que está na página quatrocentos e vinte e três do «calhamaço» que eu li, não sei quando. Agora o conjunto das leituras daqueles «calhamaços», mais os pensamentos que os «calhamaços» me suscitaram e as associações que eu fiz em várias áreas da minha vida, mais a vida social... talvez dê um conhecimento específico” (E FA7). “Outra coisa que eu acho importante é interagir com pessoas diferentes, que pensem e vivam de maneiras diferentes da nossa: eu sempre funcionei entre grupos muito diferentes e acho que isso é importante” (E FA7). “No meu caso [o conhecimento construído ao longo da vida], ajudou-me a ser, melhor ou pior, aquilo que sou. Só que a forma como o fomos adquirindo e a forma como o fomos utilizando, faz parecer como coisa ‘natural’, tão ‘natural’ que quase se torna pouco credível quando falamos com algumas pessoas. Eu tenho a experiência e os saberes que me permitem dizer que qualquer coisa ‘é assim de determinada maneira’ e digo-o naturalmente em conversa, e o outro, muitas vezes não reconhece este conhecimento porque aquilo não vem com um enquadramento teórico ou com um formato mais ou menos académico. Mas eu não tenho dúvida que é conhecimento. Da mesma maneira como a minha geração aprendeu um conjunto de saberes com os mais velhos e eram saberes que iam passando de geração em geração; depois fomos questionando ‘se aquilo era mesmo assim’ ou se não era, para depois verificar que ‘aquilo era mesmo assim’. Para outras ‘coisas’ apenas descobrimos explicações diferentes das que nos transmitiram, mas percebemos que no essencial andavam lá próximo” (E FA7).
387
“É preciso, e mais uma vez, a formação e, se não derem formação em Serviço Social... não faz mal. Vale a pena ler diferentes fontes e autores diversos, também ficção vale a pena ler, diferentes formas de olhar o mundo – digo eu, que já sou velha” (E FA7)
Este perfil de assistentes sociais «séniores» pode «encaixar» na abordagem
funcionalista das profissões que assenta em três pressupostos básicos: i) a
existência de um reconhecimento social da competência fundada sobre uma
formação longa; ii) a existência de instituições profissionais como resposta a
necessidades sociais; iii) a existência de um estatuto profissional resultante de
um saber científico e prático e do ideal de serviço, corporizados por
comunidades formadas em torno do mesmo corpo de saber, dos mesmos
valores e ética de serviço (Rodrigues, 1997:13).
Os do tempo da ‘luta’: Inês e António
Em relação aos percursos de aprendizagem estes dois atores identificam uma
pluralidade de fontes de aprendizagem que vão muito para além dos contextos
académicos de formação inicial e que assumem ter sido estruturantes no seu
processo de formação. Ao longo das suas trajetórias salientam como Charlot (2002)
que o saber implica uma aproximação epistémica, identitária e social e que revela a
sua relação com os outros e com o mundo. Os saberes valorizados e mobilizados no
trabalho pelos atores articulam-se com o modo como interpretam e experienciam
este último, as suas condições de realização e de interseção com os outros, num
reconhecimento que é particularmente relevante para as suas dinâmicas identitárias.
Inês identifica as seguintes influências, nomeadamente na sua socialização primária
e na formação inicial:
A esfera familiar, através dos exemplos parentais: do pai, professor e diretor
da Ação Social de Angola do Instituto de Ação Social de Angola/IASA que
recorda como “um revolucionário (a favor de uma revolução socialista, de uma
grande mudança para uma sociedade justa, que coadunava os seus valores
políticos com os seus valores cristãos) ” e da mãe “vicentina, católica e
apostólica (…) que teve de tomar conta de nove consciências e de nove seres
388
faladores”; e das vivências de uma casa que “era a mistura de tudo (…) a
minha vivência de infância é muito comunitária: é de quem fica a dormir, de
quem fica a comer, de quem vem para ficar, de quem veste a minha roupa, de
quem troca…”;
As vivências com grupos de interventores religiosos: os “missionários
espanhóis” e as “irmãs portuguesas” com quem tem experiências de apoio às
populações locais e o “movimento Shalom, a Juventude Cristã Angolana, que
era um movimento juvenil onde há uma grande influência da Teologia da
Libertação da América Latina” e no qual se forma como dirigente juvenil;
As memórias de uma relação com o conhecimento “que circula por toda a
cidade (…) que só é útil quando apropriado pelos sujeitos”, mas também de
contextos que a marcam e “que reproduzem a desigualdade social”..
Inês recorda a influência na opção por Serviço Social da primeira assistente
social que conheceu: tinha 13, 14 anos, quando foi para o Instituto de Apoio
Social de Angola a primeira assistente social, com quem começa a visitar
famílias no interior e acompanhá-la para outros variados trabalhos.
“Em termos de opções, na minha família, nós tínhamos muito claro que cada um de nós escolhia aquilo que queria ser. A minha irmã mais velha, por exemplo, foi a primeira mulher Regente Agrícola em Portugal, porque queria ser Regente Agrícola mas não havia esta profissão para mulheres. O meu pai consulta toda a legislação e percebe que não havia nada que proibisse uma mulher de ser Regente Agrícola, mas também nunca tinha havido nenhuma mulher a querer ir trabalhar para o campo, a querer trabalhar com animais, com árvores, com frutos, com isto tudo... E então, faz uma grande exposição, na altura ao Secretário de Estado e a minha irmã arranja duas colegas, que são as primeiras mulheres que vão para uma escola de 1000 alunos masculinos, e ficam a viver em casa de um professor – que era a Escola Agrícola que ficava no Tchivinguiro, a 40 Km da cidade. Por isso, também tenho na família a experiência de que uma mulher pode ter o percurso profissional que desejar, sabendo que nós somos os senhores dos nossos sonhos e dos nossos desejos” (E IV6).
Estas influências na sua formação pessoal e na socialização primária culminam
com a vivência da revolução, durante o primeiro ano de Serviço Social:
“Faço o Instituto Superior de Serviço Social em Luanda (…) em 1974, que é a grande fase da Revolução, a chegada dos Movimentos de Libertação à cidade; é a ligação dos Comités Operários às escolas e, por isso, eu vivi o delírio do que é uma Revolução, em Luanda. E isto foi em todo o ano de 74/75. Os antigos guerrilheiros do MPLA, alguns deles Zairenses outros Angolanos, ainda com pouco domínio da língua portuguesa, mas com aquela consciência revolucionária dos Centros de Instrução Revolucionária na mata, são os nossos colegas e tens, no Instituto de Serviço Social Pio XII, em Luanda em 74, uma mistura de um curso que era de elite (porque era pago e era uma Escola privada) com os guerrilheiros vindos da mata...” (E IV6).
389
Esta experiência que foi vivida, na qualidade de cidadã angolana com muita
participação política acaba por se confrontar com “a grande divisão em Angola
(e dentro do MPLA) que vai dar fações mais tarde, dentro do partido e depois
com consequências muito mais graves quando começa a haver limpezas
ideológicas pós-revolução e pós-independência”. Inês, não pensava sair do
país que sentia como seu (Angola) mas acaba por se ver confrontada com a
circunstância de ter que o abandonar e, ela e a família regressam à Madeira,
de onde os avós eram originários.
Vão ser necessários oito anos (1975-83) para que Inês se sinta portuguesa e
que assuma que vai ficar em Portugal, porque também pertence e faz parte
deste país. Nestes anos, Inês vive e faz trabalho voluntário na Madeira e
emigra durante um ano para a Suíça com o intuito de “ser operária”:
“…esta experiência do que é ser operária, do que é não ter nome, do que é ser analfabeta, do que é ser considerada…com um grande racismo dos suíços …foi uma experiência riquíssima porque eu vinha de um ano de Serviço Social a ler livros sobre estas vivências, não é? E então a minha grande ansiedade era falar com as portuguesas, conhecer quem eram as operárias portuguesas. Eram jovens que vinham do norte de Portugal, da agricultura, poucas jovens tinham a 4ª classe... e vinham para a Suíça, trabalhavam 12 horas, ofereciam-se voluntariamente para trabalhar sábados e domingos, porque tinham um objetivo a alcançar: juntar X dinheiro para fazer uma casa, para casarem, para se estabelecerem em Portugal. E então, para os Suíços, nós éramos completamente loucas, porque não tínhamos o estatuto do imigrante que só trabalha; nós recusávamos trabalhar sábados e domingos; o nosso passaporte estava fechado na fábrica, exigimos o passaporte, porque depois como tínhamos dinheiro, circulávamos pela Suíça toda, íamos para a Alemanha, íamos para França e para onde pudéssemos. É uma experiência, para mim, muito enriquecedora em termos do que é estar do outro lado da barreira” (E IV6). Após esta experiência volta ao Funchal e porque tem frequência universitária, dá aulas a jovens e adultos no Ensino Unificado: “…a Madeira em 76/77 tem um atraso de desenvolvimento muito, muito mais recuado do que era o desenvolvimento em Angola, nomeadamente em relação à cidade em que eu vivia (Sá da Bandeira) que, por ser uma cidade universitária tinha um desenvolvimento muito grande, mesmo em termos intelectuais, de intercâmbios, de vida cultural, era uma cidade que pulsava e vivia. Eu chego à Madeira e era uma aldeia, fechada, parada…era uma sociedade do século XIX…onde nos campos havia a ‘colónia’ e o regime da posse dos trabalhadores agrícolas por parte do senhor das terras” (E IV6).
Em 1978 vai estudar serviço social para Coimbra e em Coimbra reconstrói a
sua identidade numa escola que a marca e num contexto onde se sente “num
movimento estudantil muito forte” e “novamente integrada na cidade
390
académica”. Dos professores refere que tinham estado emigrados em França e
que regressaram após o 25 de Abril, que tinham “a grande perspetiva do
serviço social mais radical, do serviço social intervencionista, do serviço social
com compromisso ético, político, de transformação da sociedade”. Também
valoriza na sua formação inicial o grande entrosamento entre professores e
alunos, entre os alunos dos vários anos, o contacto próximo com o ‘terreno’, as
experiências de estágio que considera experiências de aprendizagens muito
ricas, as ‘novidades’ da formação que na época eram a ‘Dinâmica de Grupos’ e
a ‘Sociologia das Organizações’ e a perspetiva da investigação em serviço
social que se pretendia “mais académica e mais ‘suportada’ científica e
teoricamente”.
Em relação a António, revela que foi para o curso de serviço social com 21
anos (depois de fazer a tropa, de ter andado no teatro e de ter feito vários
trabalhos indiferenciados), sendo que a escolha do curso de formação inicial é
referida na sua narrativa como “um bocado acidental”, tomada a decisão entre
as pressões familiares, a informação do curso prestada por uma amiga e as
semelhanças que encontrou com o curso de Sociologia (onde não entrou por
falta de nota).
António refere que esteve num momento interessante do Instituto (de Lisboa) e
conta, com algum detalhe, a sua participação no coletivo da Associação de
Estudantes, quer no processo de luta externa pelo reconhecimento da
licenciatura (onde faz o paralelo com o movimento negocial do Instituto
Superior de Psicologia Aplicada/ISPA que se encontrava em processo
idêntico), quer na dinamização cultural feita dentro da escola. Refere também a
ligação próxima a alguns docentes, a identificação de fações conflituantes
dentro do Instituto (‘os radicais’, ‘a padralhada’ …), a importância dos estágios
ligados a uma abordagem educativa em contextos comunitários e o
aprofundamento do seu interesse e identificação com a animação – que ele
entende como “uma animação/educação informal ou não formal, a
animação/dinamização do tecido social e de iniciativas locais” e considera que
é boa parte do Serviço Social. Em relação aos estágios António diz que se
adaptou bem.
“No 2º ano estive na Associação de Deficientes das Forças Armadas e no 3º ano estive na Câmara de Oeiras e ainda conheci o Noronha Feio, o pai
391
do António Feio, que trabalhava na Faculdade de Motricidade Humana, que era nessa altura o ISEF, e que era Vereador na Câmara na parte do Desporto, Educação e Cultura. Entretanto, andava a implantar (e vê lá tu como são os ciclos de vida), núcleos de alfabetização com a extensão educativa da zona que mudou para a DGEIA, em 1984, salvo erro. Tínhamos feito um estudo com a E. sobre o Insucesso Escolar e era engraçado que, de uma forma muito simples, vimos uma coisa inversamente proporcional ao que se descobriu mais tarde: as crianças que habitavam mais próximas «da linha», tinham melhores resultados que as que estavam no interior. Era uma questão que também era urbanística, com uma série de ligações socioeconómicas. Na altura em Oeiras já estavam a fazer o Plano Diretor Municipal (...) com uma série de gente, com o Arq. Nuno Portas que monitorizou o processo durante algum tempo, havia uma série de dados frescos, etc., andámos lá pelo terreno, ‘naquela onda’ das sociedades recreativas, na sociedade recreativa de Leião (...). E depois no 4º ano estive primeiro na Câmara de Lisboa (ironicamente também, porque agora voltei à mesma câmara) num serviço que antecedeu o que agora é a Proteção Civil (…) e depois na Câmara de Sintra (…) mas, no entretanto, como eu não tinha apoio financeiro para o estágio, e tinha necessidade de ganhar ‘uns trocos’ para os transportes e para a alimentação, fomos parar ao recém-criado Gabinete da Juventude da Câmara (…) Entretanto... foi visto como interessante, até por via da nossa professora, fazer uma dinamização que tivesse a ver com a Educação e com a Animação Cultural. Fomos parar à Serra das Minas a uma instituição que se chamava «Associação de Famílias da Serra das Minas». Essa Associação de famílias «pertencia» à Teresa Costa Macedo, que era quem enquadrava todas as Associações de Família na época. Mais tarde ela inspirou-se, ela e os tipos da Aliança Democrática e criaram a Secretaria de Estado da Família. Desde essa altura, a Associação da Serra das Minas era um núcleo de pessoas muito ligadas à Igreja, com uma senhora na direção que tinha sido retornada, que já tinha andado a dinamizar os africanos lá por Angola; mas era uma coisa muito familiar. Ela é que dominava a população toda da Serra das Minas, muitos dos associados eram retornados e trabalhavam naquela fábrica que foi encerrada... . O nosso trabalho implicava também a Junta, lá colaborámos, a fazer umas animações de rua, outras menos de rua, na constituição e organização de grupos, etc. - E foi isso o mais interessante do projeto. Também fizemos um estudo da comunidade, da evolução da comunidade, e começámos a constatar já um conjunto de questões que mais tarde viemos a apanhar no Cacem: a mobilidade pendular, o crescimento explosivo (...), o crescimento dos dormitórios…” (E AF1).
Esta identificação com um perfil de animador marca a sua construção
identitária como assistente social e reconhece no Serviço Social “um certo
pioneirismo, das autarquias e nas autarquias… muito através da animação”.
Contudo, António com um acentuado espírito crítico, refere:
“Nós trabalhámos muito as questões do espaço público (a questão dos tempos livres dos miúdos também foi abordada) das ofertas educativas e culturais daquela zona, e um pouco a análise da comunidade: como funcionava e o que é que era uma comunidade suburbana, com aquelas camadas todas, os recém-chegados, o pessoal que trabalhava na...
392
Sorefame. Muitos operários da Sorefame viviam lá, porque as casas eram mais baratas. Aquilo era recôndito, não tinha transporte nem serviços, nem nada na altura; as pessoas tinham que ir da estação a pé para casa, por uns caneiros, e atravessar uma ponte sobre a ribeira da Serra das Minas. E a população era maioritariamente constituída por pessoal operário e retornados que tinham vindo para cá nessa altura. Depois, com aquela mentalidade interventora do socialismo “da tanga”, de bairro social, ainda acabou por ficar pior... Posteriormente foram lá implantar um bairro social quando aquilo era um sítio normal. É esta mentalidade do bairro social que me passa! Ainda me passa!” (E AF1)
Estas duas diferentes experiências e perspetivas da formação inicial acentuam,
no caso de Inês uma identificação com a escola, com “aquele movimento
estudantil que caracterizava (…) Coimbra de 78: grande diversidade ideológica,
uma grande diversidade partidária, uma associação (AAC) fortíssima que, na
altura, unificava toda a cidade” e com as colegas de curso que reconhece “com
uma determinada postura” e, no caso de António, uma identificação com o
«terreno» e com as aprendizagens realizadas, mais ou menos em autogestão
e, mobilizadas pelas dificuldades que encontrava. Embora António partilhe
algum do entusiasmo pelo movimento estudantil e se identifique com a luta
pela integração no ensino superior e pela atribuição de grau académico,
descreve a sua inscrição no curso de formação inicial «como quem não quer a
coisa», i.e., sem grande compromisso e dá relevo à sua característica de
«abelhudo», evidenciando uma dimensão de autoformação.
Os contextos de trabalho aparecem assim, como lugares de aprendizagem,
experimentação e de prova de capacidades destes atores que se confrontam
com o funcionamento dos atores mobilizados e com as representações dos
outros; ou seja, o contexto de trabalho configura-se no que Dodier (1995)
designa de «arena de habilidades» nas quais os atores procuram a sua
realização. O contexto de trabalho configura-se na oportunidade de transfigurar
os saberes dos especialistas em produções, mais ou menos originais e
contingentes que procuram reconstituir a complexidade nas lógicas de ação.
São estes saberes que, como refere Lévi-Strauss (1962) resultam de um
trabalho de «bricolage», trabalho esse que exige dos atores uma centralidade
que se expressa na capacidade de estabelecer relações e impulsionar
dinâmicas entre saberes dispersos (Didier, 1995). Neste sentido, os saberes
produzidos e mobilizados resultam, em boa parte, da capacidade de
393
intervenção em situações inéditas. E também o grupo enquanto coletivo de
trabalho, conforme salientam Courtois et al (1996), constitui-se em estrutura de
formação, dando acesso a novos saberes e a competências individuais e
coletivas transversais. Os dispositivos de formação dinamizados no interior do
coletivo de trabalho configuram uma forte componente de flexibilidade e de
criatividade na medida em que dão acesso a competências e a saberes úteis
pra responder aos problemas identificados no tempo e no espaço de trabalho.
Na relação com a formação pós-graduada os dois atores deste perfil têm a
Sociologia e, em particular o ISCTE, como referência. Dizem respetivamente
Inês e António:
“Inscrevo-me no ISCTE, em Sociologia e venho fazer Sociologia para o continente e volto ao meu fascínio pelas teorias e pelos livros. Fabuloso! Outra coisa que eu considero estruturante é, de facto, a formação académica, é crucial. Eu penso que foi aí que percebi que havia muitas lacunas na minha formação e na minha grande escola de Coimbra, que me deu ferramentas para tudo o que é o trabalho de campo, que me deu ferramentas para me estruturar como pessoa, também me deu algumas teorias mas que não me abriu horizontes dentro dos grandes paradigmas, dentro das grandes teorias sociológicas e dentro do que podem ser os instrumentos metodológicos, para trabalhar a roda teoria empiria, ou seja, a intervenção como articulação entre a observação/investigação e ação. Isso é o ISCTE que me dá, através de dois professores que eu considerei fascinantes (…).E por isso estes marcos para mim são uma escola. Estes são os meus professores de primeiro e segundo ano de ISCTE, que me marcam com ferramentas para estudar, com perspetivas de me movimentar dentro do conhecimento e com uma preocupação pedagógica muito grande, de abrir consciências, de expandir consciências e de... nos dar a consciência da nossa pequenez. A nossa pequenez dentro de tudo o que é o universo académico e de tudo o que é o conhecimento. Então, voltando-me a situar naquilo que tu me pedes, que é uma linha de como é que se estrutura a própria prática profissional, a partir daqui eu não faço a licenciatura até ao fim pois salto para o mestrado...” (E IV6) “Fui fazer Mestrado para o ISCTE (…) A orientadora foi impecável: era Assistente Social na Lisnave em 1975 e depois tirou Sociologia.(…) Não me foi fácil escolher o campo de pesquisa e os gestores começaram a ser um bocado as ‘vedetas da companhia’ e tanto arrasaram com os outros campos, que me foi difícil escolher. Apesar de saber que a questão das organizações era o que me interessava. Depois para a dissertação, foi organizar-me como se fosse para um desafio, um bocado como quem faz uma maratona, mas sozinho, não é?! Às tantas já estava a gerir...a capacidade de sofrimento... não é o fôlego, é a resistência para chegar ao fim, para me arrastar até lá... mas pronto, houve aspetos que também me deram gozo” (E AF1)
Sobre o significado do Mestrado, António refere-o como um percurso de
reflexão, de organização e de reconhecimento do que sabia:
394
“Por um lado, foi um bocado voltar a aprender e perceber que uma pessoa aprendeu muito mais durante os percursos profissionais do que aquilo que pensava. Por outro lado, também é o aprender a sistematizar e outra vez a fazer leituras, a debater, etc., etc. E no meio daquele pessoal todo fiquei estupefato por constatar que sempre sabia mais do que pensava. Eu nunca pensei... que fazia a parte da tese e da dissertação. Achava que não tinha ‘estaleca’, até em termos pessoais... quantas vezes eu pensei em desistir. (…) Ajudou-me a organizar o que tinha pensado até ao momento, mal ou bem, não sei se é sobre aquela ‘capa’ ou sobre outra, tenho que utilizar todos os recursos que possuo para concretizar algo” (E AF1)
Embora também reconheça que esta formação lhe aumentou os dilemas profissionais:
“Depois do Mestrado, agora é que eu percebo... porque fui para uma área muito prática, com um trabalho muito estruturado e o meu impacto agora tem sido em termos de trabalho o seguinte: um dilema entre os conhecimentos teóricos que vinham ‘fresquinhos’ do Mestrado (e que eu estava a pensar aplicar nas organizações) e depois o Serviço Social e a Animação, que são relativamente desestruturados e não podem deixar de ser desestruturados, nem deixar o informal porque se calhar perdem a sua essência, mas por outro lado, têm de ter uma estrutura” (E AF1).
As representações do futuro socioprofissional e as perceções do projeto
individual estão ancoradas nas trajetórias pessoais e profissionais dos atores
nos quais são particularmente importantes os mundos vividos do trabalho que
se articulam com o modo como perspetivam a formação, estruturando formas
identitárias mais ou menos coerentes e típicas. De acordo com Dubar (1977 b:
50-51) cada forma identitária associa de modo ideal-típico o mundo vivido no
trabalho com determinada disposição para a formação, cruzando o espaço
prioritário de investimento e de reconhecimento com a temporalidade
biográfica. Nas narrativas destes atores podem identificar-se três modos típicos
de investimento na formação, cujas características se articulam com os
mundos vividos do trabalho e com a trajetória pessoal e profissional: i)
Investimento pessoal; ii) investimento na atividade profissional; iii) e o
investimento na trajetória profissional (Dubar e Tripier, 1998).
Tanto Inês como António possuem «trajetórias nómadas», sendo a formação
percecionada como um investimento pessoal e potenciadora de projetos para o
«ofício». Ao entenderem-se como atores de si (Sainsaulieu, 1997), apresentam
bastante autonomia na identificação e seleção da formação (que tende a
privilegiar os saberes formais e académicos) e na construção do futuro, onde o
projeto socio profissional se sobrepõe ao contexto sociotécnico do trabalho
atual. Outros assistentes sociais assumem maioritariamente a formação como
395
um investimento na atividade profissional e ao investirem sobretudo no
presente, elegem como saberes e conteúdos de formação mais significativos
os que relevam das experiências de trabalho, valorizando a partilha, a reflexão
conjunta e o acesso à formalização de saberes socialmente invisíveis e à
afirmação da sua pertinência contra o desperdício da experiência (Santos,
2003). Seguindo a tipologia utilizada, os atores que assumem a formação como
um investimento na trajetória profissional (Paulina, Irene, Filipa, Diana,
Américo, …) mantém elevados níveis de afinidade com as organizações de
trabalho e com a construção de trajetórias profissionais ascendentes. O
investimento na formação destes atores mais estratégicos é o que lhes permite
assegurar a «carreira» que se encontra fortemente ancorada no seu modo de
ser e de estar na organização (Sainsalieu, 1997).
No âmbito da Sociologia das Profissões, e a partir dos contributos da Escola de
Chicago, a abordagem proposta pelo interacionismo simbólico incide sobre as
interações e os conflitos, “bem como nos meios e recursos mobilizados neste
processo, chamando assim a atenção para o papel jogado pelas reivindicações
e os discursos sobre o saber, na transformação de uma ocupação em profissão
“ (Rodrigues, 1997:17-18). A perspetiva interacionista de análise das profissões
assenta em quatro princípios básicos: i) Que os grupos profissionais são
processos de interação que conduzem os membros de uma atividade a auto-
organizarem-se para defender da concorrência a sua autonomia e o seu
território; ii) Que a vida profissional é um processo biográfico de construção de
identidades ao longo do ciclo de vida; iii) Que existe uma relação de
interdependência entre os processos biográficos e os mecanismos de
interação; iv) Que os grupos profissionais procuram o reconhecimento pelos
seus parceiros desenvolvendo retóricas profissionais e procurando proteções
legais (Dubar e Tripier, 1998:96).
Os primeiros «doutores»
Dado que a cronologia e o local da formação inicial são constantes, procurei
junto destes atores auscultar os argumentos e os atuantes a que associavam
a escolha da formação em Serviço Social, bem como os significados que lhe
atribuíam. Foi curioso verificar que Jaime, Cristina, Irene e Paulina
escolheram Direito como primeira opção, sendo que Jaime e Irene ainda
396
frequentaram cursos de Direito e desistiram; e Cristina e Paulina acabaram
por optar por Serviço Social na fase de candidaturas. Apenas para Filipa e
Diana o Serviço Social foi uma primeira opção.
Em relação aos atuantes identificados nas diferentes narrativas como
facilitadores desta opção, temos na maior parte destes atores a presença
próxima de uma assistente social que os influencia através dos seus
testemunhos ou, a narrativa de experiências de vida que, em idades
precoces, influenciaram a decisão pela formação inicial. Em relação aos
argumentos evocados para a escolha do curso:
Jaime, refere a importância de «valores», «princípios» e «dimensões»
que não encontrou em Direito, embora até hoje tenha preferência por
“uma articulação de saberes entre o social e o jurídico” que, segundo
ele, é uma das áreas que não tem sido explorada, ou seja, “como é
que o próprio Direito pode promover uma ação social dentro dos
princípios dos valores humanos, da dignidade humana, da igualdade
de oportunidades e da própria dignificação do homem, enquanto
homem …e como é que o Serviço Social pode ajudar a fazer o
equilíbrio nessas relações de poder”;
Irene refere que, quando desistiu de Direito «não sabia o que queria»,
fez testes vocacionais, fez algumas candidaturas a cursos diferentes
(magistério primário, entre outros), teve um apoio incondicional dos
seus pais nesta procura e, em particular, destaca a influência da mãe
que lhe falou da possibilidade de ir para Serviço Social e ela, que
nunca tinha pensado nisso antes, diz-se satisfeita porque “foi a nível
pessoal e familiar que encontrou essa opção”;
Cristina refere que, a propósito de um incidente na sua vida pessoal e
familiar, contactou com uma assistente social que se tornou amiga da
família e que influenciou a sua tomada de decisão;
Paulina toma conhecimento da formação em serviço social através de
uma amiga, mas o que a fez optar foi a diversidade de disciplinas da
área social e a motivação por um ensino generalista, porque diz que
gosta de perceber como se analisa uma situação em várias perspetivas
e refere não gostar “das coisas muito focalizadas”;
397
Filipa, escolheu o curso como primeira opção, pelo testemunho de
uma assistente social próxima, que frequentava a sua esfera privada
(cresceu fascinada pelas suas histórias) e pela sua própria
sensibilidade para as questões sociais;
Diana também escolheu o curso como primeira opção mas por
influência de uma colega do secundário (o seu suicidou foi o incidente
que marcou toda uma turma). Diana refere a necessidade que ela e os
colegas sentiram de perceber «porquê» e «como» é que aquela morte
aconteceu e, ao procurar, encontraram aspetos da vida da jovem
colega que desconheciam, nomeadamente a sua entrega a causas
sociais e a sua prática voluntária junto de instituições locais. Este
incidente e esta descoberta foram para Diana e para os seus colegas
tão marcantes que, eles próprios começaram a fazer voluntariado
social. Refere: “devo-lhe a ela ter aberto os olhos para uma série de
aspetos sociais e foi aí que tomei a opção de me formar numa área
social”.
Embora os campos da formação e do trabalho coexistam e se interpenetrem,
acabam por estabelecer cumplicidades distintas em função das suas
experiências e das expetativas de futuro. É neste contexto que são
compreensíveis as relações que os autores estabelecem entre os campos da
formação e do trabalho e são estas cumplicidades que promovem as
disposições para a formação e o investimento que nela fizeram, fazem e/ou
estão dispostos a fazer, no sentido de diferenciarem, afirmarem ou
confirmarem a sua identidade profissional (Barbier, 1996).
Para todos estes atores o gosto expresso pela formação inicial foi constante
nas suas narrativas, embora os argumentos que pontuam sejam diferentes:
“Adorei o percurso da formação, as pessoas e os estágios” (Irene/ E IS11);
“Gostei muito do curso, tive uma experiência muito gratificante na minha vida e os estágios correram muito bem” (Filipa/ E AR12),
Para estas assistentes sociais, também a parte teórica foi importante, pelos
excelentes professores (que ainda hoje recorda) e pelo grupo de trabalho com
quem reconhece ter feito uma aprendizagem em conjunto muito enriquecedora;
398
Diana e Paulina, que vieram de fora de Lisboa, de meios familiares e sociais
muito protegidos, respetivamente de uma aldeia do interior e de uma pequena
cidade do centro do país, tiveram algumas dificuldades de integração e referem
‘crises’ pessoais e o isolamento sentido no período inicial. Contudo, passados
estes momentos, atribuem significado ao espaço físico da escola sentido como
«a casa» com que se começaram a identificar e ao ‘sentir’ do Instituto,
pontuando a forma como se sentiam entre colegas, como vivenciavam o
espaço da escola, a relação com os professores e o processo pedagógico, a
forma “como estávamos a aprender coisas novas”;
Diana refere que, apesar de reconhecer algumas lacunas na formação inicial,
nomeadamente no que diz respeito à metodologia, a formação lhe «abriu os
olhos» para muita coisa:
“Fiquei um pouco assustada, porque era tudo novidade…acabei por ficar porque comecei a gostar e era um desafio, uma curiosidade…para mim, tudo era novidade; assustava-me, mas era um assustar que depois me fazia ir mais além” (E AF15).
Cristina refere que, para a sua geração, esses anos de formação ficaram
marcados pela luta de transição para a licenciatura, guardando na memória a
coesão do grupo nessas lutas, as lideranças dos professores, as explicações
sobre o que estava em causa, a consciência da causa e da luta por uma causa.
Recorda ainda a riqueza dos estágios do ponto de vista das vivências
institucionais e das práticas profissionais;
Jaime fez parte da associação de estudantes e esteve ligado à Associação
Académica de Lisboa, à Rádio Cidade e à Comissão Nacional para a Obtenção
da Licenciatura. Este forte envolvimento no movimento associativo (e nos
órgãos de gestão do Instituto na qualidade de representante dos alunos) foi
expresso como um apelo à participação, num desafio descrito como ‘comum’
em torno daquilo que alunos, professores e profissionais pretendiam – a
qualificação da formação e o reconhecimento de grau académico. Menciona a
entrada de novos professores que vêm da Faculdade de Medicina e que
promovem tempos de uma interação maior, introduzem perspetivas muito mais
académicas do que os docentes que já estavam no Instituto e disseminam
literatura de serviço social de origem anglo-saxónica “que não punha «água
benta» em tudo” em contraponto aos autores francófonos e da América Latina
que já faziam parte do referencial teórico da formação. Jaime, refere o papel
399
ativo dos alunos na crescente exigência que colocavam aos professores e que
contribuiu para a qualificação do ensino e para a obtenção do grau académico
numa escola que adjetiva como «viva», «dinâmica», «participativa» e, em que:
“a relação de proximidade, debate, reflexão, discussão entre os profissionais, os professores e a comunidade local lhe proporcionaram uma vivência extraordinária em termos de competências profissionais e de maturidade pessoal” (Jaime/E JF19).
Outro enfoque destacado por este entrevistado é a dimensão prática obtida
através de estágios para intervir em realidades sociais que lhe diziam respeito
enquanto cidadão e profissional e para trabalhar dimensões da relação, de
comunicação e de ligação pessoal com o outro. Reconhece que a dimensão
mais importante na formação em serviço social é dada pelos estágios, não
porque a teoria não seja importante mas porque, segundo ele, “são os estágios
que nos estruturam como profissionais, nos permitem uma aprendizagem em
situação e a aprendizagem de saberes práticos” (E JF19).
A experiência de participação ativa no meio académico de Lisboa, proporciona-
lhe “uma descoberta e uma surpresa” ao tomar consciência do peso ideológico
que existia sobre o serviço social, pois eram vistos pelos estudantes de outras
formações como “aqueles que poderiam provocar a rebelião, ou seja, levar os
sujeitos das camadas mais desprotegidas a ter uma influência nefasta sobre o
país organizado e sobre os modelos de organização do país” (Jaime/E JF19).
Do ponto de vista das suas aprendizagens ao longo da vida Jaime, destaca
alguns aspetos que na sua trajetória profissional têm sido marcantes:
a formação curricular de qualificação, inicial e pós-graduada, do
ponto de vista de fornecer um método, uma disciplina, um rigor,
uma coerência científica e uma linguagem comum dentro da área
em que estamos a trabalhar e a intervir;
o trabalho de equipa, sobretudo na sua dimensão reflexiva e de
sistematização da prática;
a investigação, ou seja, o tentar organizar trabalhos de pesquisa
“o pensar e investigar um objeto que é de intervenção pura e dar-
lhe a outra dimensão de ser um objeto de investigação”. Neste
aspeto, Jaime refere que é um exercício «duro» mas «muito
interessante em termos de descoberta»;
400
a ‘multi’ e interdisciplinaridade, que Jaime refere como uma das
práticas que lhe tem dado muita satisfação e também muitos
contributos em termos de aprendizagem.
“Eu costumo dizer que quando acabo qualquer trabalho de investigação, fico mais inseguro…do ponto de vista do saber, do conhecimento, por que fico com a sensação de que sabia muito pouco, quando anteriormente estava convencido que sabia tanto”(Jaime/ E JF19)
a ‘comunicação em público’ que, na sua perspetiva é um
exercício imprescindível de exposição e explicitação, que treina
competências, que valoriza e ajuda a centrar o profissional no que
é importante e que evita a «banalização do estatuto profissional»;
a transdisciplinaridade, que Jaime pontua como “o confronto com
realidades, línguas e formas de pensar diferentes…o confronto
com o «estrangeiro»” a que atribui o fortalecimento e
enriquecimento profissional, do ponto de vista da sua segurança,
autoestima e confiança - “mesmo que, muitas vezes, aquilo que
ouvimos não é mais do que aquilo que fazemos”, isso dá reforço
e segurança ao profissional;
a criatividade e a inovação, que reconhece ser dificultada pelos
contextos organizacionais portugueses e pelos próprios
profissionais que estão com funções de coordenação ou chefia (e
que, por vezes, têm um discurso banalizante do género “isso é lá
na faculdade, isso é só para terem o título por que a prática é
outra”. Compara com o discurso de jovens profissionais a exercer
noutros países e que lhe dizem:
“…a responsabilidade e a autonomia são nossas. Aquilo que a minha chefe quer é que eu lhe mostre coisas novas, que eu lhe mostre como é que eu faço o meu trabalho e que lhe explique como é que consegui resolver um caso que era difícil, …que é para esse conhecimento fazer parte da equipa”(Jaime/E JF19).
Irene, sobre o seu processo de aprendizagem profissional, refere
inequivocamente que “isto só se aprende na prática”. Argumenta que os livros
são muito importantes, mas não dão a bagagem para tudo e que é mesmo
através do trabalho efetivo que encontra resposta às suas dificuldades. Neste
processo de aprendizagem identifica colegas a quem foi «beber a sabedoria» e
401
diz-se «muito abençoada» por ter estas colegas, identificando os seus
primeiros anos de trabalho como a altura em que mais se sentiu a aprender
porque foi nessa altura que se fez imensa coisa pela localidade:
“Aprendi muito e conheci imensas pessoas que me ensinaram muito, foi aí nessa altura que me formei, sabes?… Éramos menos assistentes sociais, mas havia uma grande união e constituíamos uma rede, havia menos burocracia…e menos política partidária – aprendi muito”(Irene/ E IS11)
Menciona a importância da formação inicial e que, ou as pessoas se identificam
com o curso ou então desistem, ou as pessoas se moldam à profissão ou vão
para uma área mais ‘fresca’ com a qual se identificam, porque há aquelas
áreas de trabalho mais tradicionais e compartimentadas do que a sua. Neste
âmbito, reconhece que o curso lhe proporcionou uma preparação, uma
dimensão humana e um amadurecimento através dos estágios que, se calhar
se perdeu com o fecho do ISSSL, com o processo de Bolonha e com a
proliferação de cursos e entidades formadoras; até porque entende que as
pessoas da nova geração já não vão tanto para este curso por opção, vão
“porque tem de ser” e como alternativa a outro curso no qual não conseguiram
entrar. Argumenta que é fundamental “a postura e a formação de base” que
cada um leva para o curso e que depois “se projeta e se desenvolve, durante o
curso”.
Comparando a sua formação com a da geração mais nova, refere que “sabem
pouco ao que vão” e têm menos contacto com os contextos reais e atribui a
estas diferenças a diminuição da aprendizagem prática e da maturidade de
atitudes que os estágios permitiam. Irene insiste que o curso pode estar
integrado numa qualquer universidade mas tem de fomentar “um certo saber
estar muito próprio e um saber mobilizar os conhecimentos, saber misturar”,
justificando que é no âmbito multidisciplinar que se aprende com os outros mas
que é no contacto direto com as populações e com os contextos de intervenção
que se aprende a lidar com os problemas e com os outros profissionais, não é
academicamente. O conhecimento válido, para Irene, é o que resulta do
conhecimento do local e de conseguir passar informações e mobilizar recursos.
Filipa refere que aprendeu no curso a abertura a outros saberes e que sempre
foi buscar informação a várias fontes, fossem ou não de Serviço Social e nunca
se preocupou em perceber se as dúvidas que tinha eram respondidas pelo
serviço social, ou não: “sempre que tive dúvidas ou quando me faltavam
402
ferramentas para intervir da melhor forma, fui buscar esses saberes onde foi
preciso” (Filipa/ E AR12). Acrescenta:
“Uma das grandes vantagens do social é estar tudo ligado, como na vida, e
é a grande sorte que nós temos, porque a cabeça abre-se para as várias ciências disciplinares e isso dá-nos uma visão abrangente” (E AR12)
Estes atores / autores poderiam fazer parte de uma perspetiva que tende a
considerar as profissões como “grupos específicos de trabalhadores,
pertencentes às classes médias, que partilham, em graus diferenciados,
crenças comuns e que se envolvem de diversas formas, em ações coletivas
que visam estabelecer o monopólio sobre o mercado para assim melhorar o
seu estatuto social” (Dubar e Tripier, 1999:113). Assim, a perspetiva designada
por estes autores de «novas teorias das profissões» e que MacDonough (1999)
designa de «teorias neo-weberianas» realiza uma reflexão critica sobre os
contributos da teoria funcionalista, propondo a reinvenção do debate em torno
do profissionalismo, agora alargado a uma nova dimensão que é a do poder: o
poder profissional, económico, social e político dos diferentes grupos
profissionais.
Neste perfil de profissionais com trajetórias académicas e profissionais
estabilizadas como nenhum outro, as questões do poder colocam-se com
bastante acuidade. Partindo da centralidade do poder para a análise das
profissões, o contributo de Larson decorre da importância que atribui ao projeto
profissional que, enquanto projeto coletivo, se caracteriza por ganhar ‘status’
através do trabalho, o que se traduz num “processo histórico através do qual
certos grupos profissionais procuram estabelecer um monopólio sobre um
segmento específico do mercado de trabalho, fazendo reconhecer a sua
«expertise» pelo público com a ajuda do Estado” (Dubar e Tripier, 1999:130) - o
que está dependente da existência de um mercado estável.
Como já referi e, partindo da constatação histórica de que não existe
estabilidade na definição das fronteiras entre as diversas áreas profissionais,
Abbott (1988) centra a sua reflexão em torno da análise dos mecanismos de
concorrência pelo monopólio jurisdicional de uma dada competência, partindo
do caracter contingencial dessas competências que são objeto de disputa entre
grupos profissionais.
403
Nas narrativas dos profissionais deste perfil são identificados trechos de
argumentação sobre a competição pelo ‘monopólio jurisdicional’ desde as
posições mais corporativistas, às posições que advogam uma cooperação,
mais ou menos idealizada. Abbott (1988) propõe uma visão sistémica assente
na análise de três dimensões para compreender as razões pelas quais um
dado grupo consegue triunfar na competição entre profissões:
i) a natureza do trabalho (em constante mudança, quer por imperativos
naturais ou tecnológicos, quer por imperativos subjetivos, impostos
culturalmente);
ii) as fontes de mudança no interior do grupo profissional (pressupondo
que os grupos profissionais são atravessados por diferenciações e
estratificações de natureza diversa);
iii) as fontes de mudança no exterior do grupo profissional (de entre
elas, Abbott destaca a evolução tecnológica, o crescimento da
burocracia, o novo papel dos ‘media’ e, em particular, as mudanças
na estrutura do conhecimento profissional, nomeadamente o
conhecimento produzido no meio académico).
Esta visão sistémica aplicada ao Serviço Social, consubstancia que as
mudanças no exterior e no interior do grupo profissional, implicam mutações na
natureza do trabalho para as quais este perfil dos primeiros «doutores» parece
simultaneamente melhor preparado e mais resistente.
Os «mais novos»
Mantendo o interesse por recolher, em cada perfil e em cada resposta, os
significados a que os autores associam a escolha da sua formação inicial
selecionei os seguintes argumentos no material narrativo recolhido:
Para Sofia foi uma escolha precoce (no decurso do ensino secundário)
motivada pela vontade e pelo gosto de “estar atenta aos outros” e
reforçada a partir de experiências de voluntariado social nas férias
escolares. A opção por Política Social na faculdade pública foi apenas
“por causa do dinheiro que não tinha, não queria pesar no orçamento
404
familiar e a escolher outra formação seria Serviço Social. Não foi, porque
o Instituto era particular…”;
Para Sílvia, o Serviço Social foi uma “descoberta acidental”, com a
perceção de que o que influencia as suas escolhas não é
exclusivamente racional.
A sua primeira opção foi por Sociologia (não sabe explicar bem porquê) e a
segunda por Psicologia, mas não conseguiu ficar colocada em Coimbra. Entrou
em Sociologia em Évora e podia ter entrado em Psicologia no Porto, mas não
quis sair da sua cidade, nem afastar-se de uma relação amorosa e foi essa
conjugação de fatores que a afastou das primeiras opções. Entretanto,
procurou alternativas e alguém lhe falou no Serviço Social, uma prima afastada
estava no curso e sugeriram-lhe que “tinha a ver” com o que queria. Descreve
que, apesar de ter sido uma escolha acidental, preencheu o que pretendia e
ultrapassou em larga medida o interesse que os outros planos de estudos
curriculares lhe tinham despertado.
Não havia Serviço Social na Universidade pública e ficou no Instituto Superior
de Serviço Social de Coimbra por escolha. Diz que nunca a motivaram razões
de «boa samaritana», de «ajudar» ou de «fazer o bem», nem tão pouco
motivações religiosas; a sua ideia era tentar «mudar algo» - o que reconhece
ser necessariamente, uma ideia vaga. A sua narrativa, em termos de ciclo de
vida, começa na adolescência (dizendo que foi uma adolescente responsável
mas suficientemente «fora dos trilhos» para se aventurar por «estéticas
alternativas às tidas por dominantes» e pontua: i) a importância do percurso
escolar no ensino secundário, com o gosto por Filosofia e História e com a
excelência dos respetivos professores; ii) o acesso a culturas alternativas e às
tribos urbanas de Coimbra dos anos 80 e 90, em que as vivências nos cafés
jogaram um papel importante na sua formação cultural e pessoal,
nomeadamente o café «República» que era «habitado» por pessoas muito
diferentes entre si e lhe possibilitou a convivência com a diferença, uma
abertura de horizontes e a quebra de barreiras internas; iii) o interesse pela
literatura, pela música, pelo cinema e outras artes e, pela política (esclarecendo
que não foi no domínio partidário); iv) ter amigos que são pessoas criativas
“com escolhas de vida menos óbvias” e que pensam “outside the box” o que
considera estruturante para si. Desta narrativa ressalta ainda a sua motivação
405
por “uma sociedade justa” e a construção de um “sentido de justiça social e de
um olhar o outro em plena igualdade”.
Armando e Américo não mencionam as motivações da escolha para o
curso no ISSSL, mas Américo refere que foi a sua primeira escolha após
ter tomado a decisão de que se iria formar em Serviço Social (ainda
apanhou o plano curricular de cinco anos pré-Bolonha).
Mafalda, proveniente de um contexto familiar privilegiado e muito
protegido, entrou no curso da Universidade Católica com dezassete
anos e tinha uma motivação, que reconhece como muito infantil, de
«ajudar os mais pobres»;
Madalena, a mais nova, diz-se apaixonada pelo Serviço Social.
Residente numa cidade pequena do Oeste e com um percurso escolar
pouco entusiástico, considera que teve o seu «ponto de viragem» no
ensino secundário realizado numa escola profissional, no curso de
Animação sociocultural.
Considera que esse curso a despertou para a aprendizagem escolar (por ser
um ensino de experimentação, com um sistema modular e muito baseado em
trabalhos práticos) e atribui responsabilidades ao fantástico corpo de docentes
e ao facto da escola ser fora da sua zona de residência, o que contribuiu para
treinar a sua autonomia, responsabilidade e amadurecimento. Refere que foi
nessa altura que aumentou o seu interesse pelos «outros», o que acabou por
influenciar a escolha de prolongar os estudos e de seguir a profissão de
assistente social.
Na sua narrativa identifica como marcantes duas professoras dessa formação
profissional que eram assistentes sociais e que lhe deram uma visão fascinante
da profissão; foi também no contexto desta formação secundária que teve o
primeiro contacto com os contextos de intervenção e as realidades
profissionais. Madalena considera que esses momentos lhe mudaram a
perspetiva de vida e que começou aí a construir um ideal da profissão do tipo
«já sei o que quero ser quando for grande», reconhecendo que ainda hoje tem
marcas dessa época quer na visão que construiu sobre certas problemáticas e
formas de intervir, quer na manutenção de preconceitos com intervenções
sociais com as quais não se identifica.
406
Apesar da diversidade de motivações expressas neste e nos outros perfis, não
deixa de ser possível identificar algum grau de compromisso empático com «os
outros» e com a «mudança» entendida de muitas formas e feitios.
Sobre o que cada um/a destaca como mais importante na sua formação inicial,
sob o ponto de vista das suas aprendizagens, temos situações, atuantes,
argumentos e significações novamente diversas:
Madalena, que se formou no ISSSL, já com um plano curricular de
transição face ao Tratado de Bolonha, fala da sua inquietação sobre se
teria ou não «vocação» e que, mesmo antes da entrada e durante a
faculdade o seu espírito não ficou tranquilo.
“Isto para dizer que a formação inicial foi importante, não só pelo conteúdo
teórico que deram/dão suporte à minha prática e aprendizagem contínua, mas também pelo equilíbrio conseguido entre as aprendizagens individual e coletiva e onde, o papel de reflexão do grupo e da gestão relacional com colegas e professores, foram fundamentais” (Q MM16).
Durante o curso, o que mais lhe agradou foram: a informalidade dos
contextos de ensino/aprendizagem, a possibilidade de ser confrontada
com diferentes teorias, metodologias e práticas e de poder experimentar
momentos de reflexão/questionamento e alguns professores que lhe
alimentaram o fascínio pela profissão. Na sua narrativa exemplifica
várias «lições» que aprendeu durante a formação, não tanto por aquilo
que lhe ensinaram, mas sobretudo por aquilo que a fizeram pensar.
Américo considera que, no global, a qualidade da formação foi positiva
e destaca como marcante a oportunidade de conviver com professores,
que também exerciam na prática, quer fossem assistentes sociais ou de
outras profissões. Refere que, foi através dessas referências que
relativizou a carga teórica (que, em certas alturas do curso, dificultou a
perceção do que seria a profissão de Assistente Social) e se tornou
possível «fazer a ponte» com as realidades e os contextos de exercício
profissional. Também menciona os profissionais experientes que
encontrou nos locais de estágio e o seu papel importante no seu
processo de formação - este conjunto de referências permitiram-lhe
sentir-se “relativamente seguro” (da metodologia de intervenção, dos
aspetos teóricos e dos valores do Serviço Social) quando ingressou no
mercado de trabalho.
407
Mafalda que fez a sua formação, muito nova (dos 17 aos 21 anos) na
Universidade Católica e que, na sua narrativa, menciona o facto de ser
proveniente de um contexto de vida muito protegido (dentro de um meio
familiar e social de origem privilegiada) salienta que, apesar da
aprendizagem teórica não a ter marcado muito, existiram dois aspetos
significativos na sua formação inicial onde, de facto, entende que
aprendeu: o contacto com algumas pessoas (professores e orientador
de estágio) cujos testemunhos mudaram a sua perspetiva inicial e as
atividades de voluntariado que realizou em Portugal e em África, e que
lhe permitiram experiências de vida e de formação ricas e variadas, mas
que também consolidaram o pouco entusiasmo pelos estudos
académicos.
Armando, fez a sua formação no ISSSL e é o único entrevistado que se
designa como Técnico Superior de Serviço Social, referindo que dá
grande valor a esta designação “enquanto esfera de ação profissional
técnica e não como Assistente Social”.
Argumenta que a licenciatura lhe permitiu: i) um conjunto de conhecimentos e
experiências muito válidos; ii) acesso a abordagens diferentes; iii) uma crítica e
autocritica constantes sobre o exercício profissional e sobre as fronteiras com
os vários conceitos de trabalho socia e também permitiu um estado de reflexão
contínua; iv) construir uma opinião, um sentido, para os diferentes conceitos
abordados nos espaços de formação; v) permitiu um crescimento pessoal e a
aquisição de instrumentos técnicos e metodológicos para enfrentar as questões
sociais; vi) saber questionar o ‘social’ em diversas perspetivas e noções
teórico-práticas.
Armando sublinha ainda a importância de alguns desses professores, a quem
reconhece mérito e por quem tem afeto, que lhe passaram “uma certa imagem
do professor/formador como aquele que faz a mediação entre os
conhecimentos retidos nos livros (ou em diferentes documentos) …e a nossa
disponibilidade para aprender” e que conseguiram despertar nele “verdadeiros
sentimentos de aprendizagem, comunicação e reflexão sobre o trabalho social,
seja na vertente de trajetória profissional, seja no aspeto de conhecimentos
para ‘saber, querer e ser’ um agente de mudança”.
408
Sílvia, que fez a sua formação em Coimbra, no ISSSC e entrou no ano
da aprovação da licenciatura (1990) refere na sua narrativa os seguintes
aspetos significativos e marcantes:
i) o terceiro ano do curso (refere que os primeiros foram muito introdutórios e
acessíveis), que considera ter sido estruturante relativamente à formação em
Serviço Social, por que teve professores com uma enorme paixão pelas suas
áreas de ensino e realizou trabalhos de grupo que a obrigaram a um grande
aprofundamento sobre determinadas problemáticas; ii) o estágio no Hospital
Psiquiátrico ‘Sobral Cid’, que criou nela “o bichinho da saúde mental”. Descreve
este estágio como um período marcante, que lhe permitiu uma experiência
muito rica, à qual ainda hoje se reporta; onde aprendeu “o real sentido do
trabalho de equipa”, onde fundeou as suas pertenças epistemológicas e
metodológicas à “intervenção sistémica e à intervenção em rede” e onde
trabalhou na perspetiva da desinstitucionalização das pessoas com patologias
crónicas graves; iii) o 5º ano do curso (dedicado à investigação), onde
desenvolveu um trabalho em equipa sobre aspetos psicossociais associados à
velhice e à institucionalização e em que refere ter aprendido imenso a nível
metodológico, sobretudo pela utilização das metodologias quantitativas; iv) a
sua atividade como membro da Associação de Estudantes e a sua participação
em representação dos alunos na Direção e no Conselho Pedagógico do
Instituto (atividade que iniciou no final do primeiro ano e em que se envolve,
nomeadamente, na contestação contra a passagem para a Fundação Bissaya
Barreto, é descrita como “muito marcante enquanto experiência de participação
democrática”.
Sofia, que fez a sua formação em Lisboa, no ISCSP (Política Social) diz
que o curso foi uma deceção e que percebeu que era apenas e só “um
canudo”.
Na sua narrativa refere o que gosto pelos dois primeiros anos (por que
identificou-se com o conceito de Universidade e ganhou uma visão mais
alargada do Mundo e dos saberes) e a deceção no terceiro ano do curso,
quando a opção era pela Política Social (porque as cadeiras eram
completamente obsoletas e, salvo raras exceções, as disciplinas eram
desinteressantes e lecionadas de forma igualmente desinteressante). Destaca
como marcantes, apenas dois professores, argumentando que, para além de
409
terem o dom da comunicação, entregavam-se à causa de ser
professor/formador e eram pessoas que se preocupavam com os alunos e com
o seu futuro profissional. Em relação ao estágio que realizou num Colégio e
num Lar da Casa Pia de Lisboa, Sofia refere que:
“…foi uma coisa um pouco estranha e desorientada. Foi muito bom em termos relacionais e afetivos (com as educandas internas no Lar) mas, em termos profissionais, ou pré-profissionais, acho que não me deu absolutamente nada…lembro-me de ter pensado que tudo aquilo era muito estranho: a falta de organização, a falta de parâmetros de avaliação e de objetivos a atingir”.
Em relação à orientadora, que era Assistente Social, Sofia diz ter criado uma
boa relação em termos pessoais, mas que em termos profissionais sentia da
parte dela “uma certa relutância” em a orientar por ela ser de Política Social
“quase uma cerimónia versus… um mal-estar quase, mas nunca foi falado
entre nós”.
Estas diferentes pontuações de «ingredientes» formadores acentuam a
importância que é atribuída neste estudo não apenas ao que as pessoas
«fazem», mas sobretudo ao que elas «dizem fazer» e ao que dizem que as
levou a «fazer o que fizeram». Se é verdade que muita da desconfiança face
ao subjetivismo nos nossos conceitos explicativos tem a ver com a alegada
discrepância entre o que as pessoas «dizem» e o que elas realmente «fazem»,
esta narrativa diz respeito ao que as pessoas «dizem» ser os seus mundos e o
que neles fizeram. Esta preocupação com a «ação», em especial com a «ação
situada» em contextos culturais e na interação mútua dos participantes procura
que o Serviço Social deixe de ser neutro quanto ao seu significado e assuma a
necessidade de ser explicado, em vez de fornecer explicações.
Jerome S. Bruner (1977) foi um psicólogo que se consagrou ao estudo do
desenvolvimento cognitivo e da inteligência na sua relação com a memória, o
pensamento e a linguagem e que concebeu o papel ativo do organismo no
controlo do ambiente, bem como o caracter seletivo e estratégico da
aprendizagem.
“Cada geração dá, na sua época, uma forma diferente às aspirações que moldam a educação. Aquilo que parece identificar a nossa geração é o renovar da preocupação pela qualidade e pelos objetivos intelectuais da educação sem, no entanto, abandonar o ideal de que a educação deve servir de meio para preparar cidadãos equilibrados para a democracia” (Bruner, 1977:27).
410
Na sua obra sobre “O processo da Educação” detalha quatro temas: i) O papel
da estrutura na aprendizagem e de como se pode tornar central para o ensino
uma compreensão dos princípios e das ideias fundamentais. O requisito
mínimo é o de fornecer um conhecimento da estrutura fundamental das
disciplinas a ensinar, de modo a que o conhecimento possa ser utilizado e
aplicado a problemas e acontecimentos que cada um encontra fora da sala de
aula; ii) A disposição para a aprendizagem advoga o «currículo em espiral» que
retorna a si próprio nos níveis mais avançados; iii) A natureza da intuição,
encarada como técnica intelectual de chegar a formulações experimentais mas
plausíveis, sem passar pelas fases analíticas que validariam essas formulações
ou invalidariam as conclusões; iv) O desejo de aprender e a maneira de o
estimular, onde são destacados o clima em que a aprendizagem acontece e o
papel principal dos professores.
Esta passagem por este autor e, em particular por esta obra, ajudou a
consolidar o entendimento de que o fluxo de conhecimento em Serviço Social
que cada um/a partilha não permite perder de vista a natureza cultural da
aquisição desse conhecimento e a sua perspetiva distributiva. Fazendo um
novo paralelo com a psicologia social, mobilizo Kenneth Gergen (1973) na
qualidade de um dos primeiros psicólogos sociais a ver como esta ‘disciplina’
se poderia transformar mediante a adoção de uma conceção interpretativista,
construtivista e “distributiva” dos fenómenos psicológicos a alguns dos seus
primeiros trabalhos visaram especificamente a construção de «si mesmo».
Neles começou por mostrar como é que a autoestima e o autoconceito das
pessoas se transformavam em reação aos tipos de pessoas com que
conviviam e mudavam ainda mais em resposta às observações positivas ou
negativas que as outras pessoas lhes faziam. Mesmo se lhes pedissem apenas
para representar um determinado papel público num grupo, a sua autoimagem
mudava de forma a ajustar-se a esse papel. De fato, na presença de pessoas
mais velhas ou que pareciam mais poderosas, as pessoas referiam-se ao “si
mesmo” de forma bastante mais atenuada e diferente do modo de se verem a
si próprias quando na presença de gente mais nova ou menos estimada.
Ademais Gergen sublinhou que estes «resultados» não podiam ser
generalizados par além das ocasiões históricas em que foram obtidos.
411
Mas acrescentou que há duas generalidades que importa ter em conta: a
primeira é a reflexividade humana, i.e., a nossa capacidade de voltar ao
passado e de alterar o passado à luz do presente e a segunda é a capacidade
intelectual de «visionar alternativas», i.e., de conceber outras maneiras de ser,
de agir e de lutar. O que parece providencial para ser recolocado pelos
assistentes sociais no debate crescente sobre “si mesmos”.
Esta breve panorâmica7 sobre a diversidade de representações das formações
iniciais e dos significados que os atores/autores da profissão lhes atribuem
marca, de diferentes formas os seus percursos de aprendizagem e de
construção identitária. Contudo, as opiniões emitidas podem ser entendidas
como uma forma acrítica de adesão à visão técnica instrumental da educação,
à ideologia meritocrática, ao discurso sobre a gestão individual de
competências e ao mito da modernização e do sucesso individual. Cruzando
com a reflexão sobre a “Socialização Escolar e Profissional dos Jovens:
Projetos, Estratégias e Representações”, Natália Alves diz:
“As políticas educativas levadas a cabo na última década em Portugal não ficaram imunes à difusão das orientações de matriz neoliberal que têm estado na origem de algumas reformas dos sistemas educativos que, ancorados numa racionalidade instrumental, elegem a «modernização», a «qualidade», a «eficácia» e a «autonomia» como os elementos estruturantes de um retórica discursiva que procura ocultar as suas dimensões ideológicas através da exaltação do princípio do pragmatismo e de uma inevitável convergência educativa a nível europeu” (2006:8).
Esta autora refere ainda que a tensão entre os discursos da modernização e da
igualdade de oportunidades agudiza-se com a «reinvenção» do conceito de
meritocracia que faz depender a resolução dos problemas sociais da
responsabilização individual e da posse de competências adequadas como
entre outras, a «autonomia», a «flexibilidade» e a «adaptação». E acrescenta
que,
“…as políticas educativas das décadas de 80 e 90 em Portugal procuraram responder à crise da escola de massas através da produção de discursos educativos que na defesa de um «bem comum» recorrem, alternadamente, aos princípios de serviço público e do mercado”.
7 Recorda-se que a recolha destas narrativas fez recurso a instrumentos diferentes, sendo que aos
licenciados em Serviço Social foi proposto um questionário com perguntas abertas, que quatro deles responderam por escrito e que uma respondeu com gravação em áudio. A licenciada em Política Social foi entrevistada com uma entrevista semidiretiva de inspiração biográfica, conforme os atores dos perfis anteriores.
412
Segundo a mesma referência, as tensões permanentes entre estas duas
matrizes discursivas, a «retórica da igualdade» de oportunidades e dos valores
humanistas e o «discurso europeu» da racionalidade, têm contribuído para a
elevada ambiguidade das reformas do sistema educativo português. Na
primeira metade do século passado, a «escola das certezas» corresponde à
escola que pode funcionar como uma instituição que «fabricava» cidadãos
conformes com um modelo cívico preestabelecido; assumidamente elitista, não
estava comprometida com a produção de injustiças sociais e favorecia
percursos de mobilidade social ascendente, em função do mérito.
No final dos anos 60, em Portugal, assiste-se de forma tardia e contraditória à
transição para a «escola de massas» com a expansão dos sistemas escolares
e a democratização do acesso, associadas a uma perspetiva otimista que
assinala a passagem para a «escola das promessas: uma promessa de
desenvolvimento, uma promessa de mobilidade social e uma promessa de
mais igualdade”. A partir de meados dos anos 70, a chamada «crise da
escola»8 corresponde a um défice de legitimidade e de sentido que é
indissociável das mutações sofridas pela instituição escolar ao longo do século
XX, passando progressivamente a uma procura «desencantada» que marca a
entrada da escola num período de incertezas, no início dos anos 80. Durante
os anos 90, a raridade dos empregos articula-se com a inflação dos diplomas
tornando-os «simultaneamente menos rentáveis e mais necessários do que
nunca» - de que os percursos de aprendizagem da profissão deste perfil de
assistentes sociais «mais novos» é uma boa ilustração.
Rui Canário em publicação que organizou sobre “Educação Popular e
Movimentos Sociais” menciona que também no campo da educação pode
afirmar-se que “mais do que uma crise do capitalismo, vivemos uma crise da
capacidade de criticar o capitalismo” (2007:31) e sugere algumas questões em
aberto que representam domínios de investigação e pesquisa: i) “Os problemas
da educação numa perspetiva nacional” constrangem a procura de soluções
autónomas e emancipatórias em movimentos sociais internacionalistas; ii) “A
8Cf. Canário (2005:61) sobre a distinção entre o conceito de crise e o de mutação, argumentando que o
conceito de crise remete para problemas de natureza conjuntural e que o conceito de mutação remete
para mudanças e problemas de caráter estrutural.
413
naturalização do Estado”, encarado como entidade neutra, situada acima das
classes sociais e defensora do bem comum embate com as transformações
que, num quadro de integração económica supranacional, conduzem a uma
transferência de poderes do Estado-Nação e suas instituições formais, para um
nível de Estado difuso, sem fronteiras políticas, nem geográficas, cujo poder
reside na esfera económica; iii) “O trabalho da crítica ter como base conceitos
mal esclarecidos ou equívocos”, como são o caso dos conceitos de «mercado»
e «vaga neoliberal». A crítica centrada nestes conceitos, segundo o autor, só
pode ser imprecisa e dissimular um desejo nostálgico de regresso ao
idealizado “Estado-providência”.
5.3. Sobre a importância de prosseguir com uma
análise temática
A análise estrutural da narrativa baseia-se no pressuposto defendido pelos
linguistas de que a linguagem é entendida como discurso e feita de uma
hierarquia de níveis – o das funções, o das ações e o da narração. A
configuração específica que esta hierarquia assume exprime a lógica da
narrativa mas, a análise das significações coloca-nos no plano
fenomenológico da compreensão do sentido (Alves, 2007). Segundo a
mesma fonte, as «unidades de significação» construídas a partir das
estruturas relacionais que são o que Demazière e Dubar (1997) designam
de «categorias», i.e., as palavras que os entrevistados utilizam para narrar
as suas histórias e os significados que lhes atribuem.
Para ter acesso ao conhecimento do universo de crenças e do mundo
socioprofissional dos entrevistados, utilizei as valorizações que atribuíram
às categorias-chave e as relações que entre elas estabeleceram nas suas
narrativas. Recordo que a etapa anterior foi marcada pela submersão
profunda e sucessiva no «corpus» constituído pelas narrativas, onde
procurei realizar o agrupamento por agregados, numa construção ainda
grosseira e provisória, que resultou na identificação de quatro perfis
414
profissionais marcados por uma estratificação cronológica – os «seniores»,
os do «tempo da luta», os «primeiros doutores» e os «mais novos».
O modelo tipológico, como refere Schnapper (2000:157), tem por objetivo a
classificação das estruturas narrativas e o «método dos agregados» permite
o agrupamento por agregados que constitui uma classificação e não uma
tipologia. Esta primeira abordagem exploratória e descritiva, privilegia a
coerência individual dos atores / autores e tenta explorar as suas
identidades narrativas. Na rescrição das narrativas originais procura-se
selecionar os elementos fundamentais de cada perfil e alcançar um
equilíbrio das caracterizações.
A utilização de critérios cronológicos permitiu estabelecer «chaves de
leitura» que resultaram na possibilidade de agrupar os atores da profissão
em perfis profissionais, utilizados simultaneamente para identificar
diferentes percursos profissionais e biográficos e diversos percursos de
aprendizagem da profissão. Contudo, os critérios cronológicos que
unificaram estes «perfis» não são suficientes para realizar o esboço de uma
tipologia de formas identitárias, pelo que se avançará para uma análise
temática.
415
Capítulo 6 - Formas identitárias: esboço de uma
tipologia
Estudar as formas identitárias requer compreender o estatuto da palavra
enquanto veículo de sentido e analisar as “produções narrativas como
expressão das transações que constituem o cerne dos processos identitários”
(Dubar e Demazière, 1997:305). Como Dubar defende, as identidades são o
produto de uma dupla transação entre uma identidade biográfica e uma
identidade relacional, atribuída no quadro mutável dos sistemas de ação em
que as pessoas se inscrevem.
Nesta «dupla transação» entendem-se os processos de construção identitária
como necessariamente dinâmicos, sendo as formas identitárias também
mutáveis e sujeitas a negociações e reconfigurações entre a identidade para si
e a identidade para o outro – procurando, num processo inacabado, dar sentido
ao mundo através da linguagem enquanto instrumento de mediação (Ricoeur,
1986:85).
As trajetórias profissionais e biográficas e os percursos de aprendizagem dos
Assistentes Sociais foram abordados no capítulo anterior e permitiram uma
primeira estratificação que resultou na identificação de quatro perfis
profissionais. Não obstante ter sido privilegiada uma dimensão de análise
atenta às vozes dos atores da profissão, ao processo de socialização
profissional e às relações sociais, concluiu-se sobre a insuficiência da análise
cronológica para chegar à categorização de formas identitárias.
Autores como Dubar e Demazière (1997) pretendem que o trabalho de
construção de tipologias é o de ordenar os materiais recolhidos, classifica-los
segundo critérios pertinentes e encontrar variáveis escondidas que explicam as
variações das diferentes dimensões analisadas.
Nesta abordagem, mobiliza-se um conceito de identidade (Berger e Luckman,
1971) não constante, produto de sucessivas socializações e variável, conforme
os contextos sociais e os significados atribuídos. Considera-se que a
construção da identidade é realizada segundo as trajetórias que ocorrem
através de sucessivas negociações com os outros, podendo estes atribuir
identidades não coincidentes com o que o próprio sujeito constrói e personifica
(Dubar, 1997a). Desta forma, a construção identitária refere-se a um conjunto
416
de aspetos da imagem que a pessoa tem de si própria, a qual tem forte
influência dos contextos sociais onde interagiu e, onde as representações
sociais são construídas socialmente a partir de fenómenos de interação e
comunicação (Berger e Luckman, 1971).
Neste capítulo, realiza-se um esboço de uma tipologia das formas identitárias,
contemplando no plano fenomenológico (Ricoeur, 1986:87) a análise das
significações e a compreensão de sentido das formas identitárias que @s
assistentes foram construindo ao longo das suas trajetórias de vida e de
profissão. Esta abordagem será cruzada com a identificação de percursos de
aprendizagem que tentam identificar alguns dos aspetos que estruturam as
narrativas dos assistentes sociais colaborantes neste estudo.
O capítulo apresenta-se estruturado em quatro pontos, que correspondem a
outros tantos esboços de formas identitárias – a utilização de «esboços»
prende-se com a noção de que foram identificadas sobretudo dinâmicas,
tendências e tensões, sem ideias «acabadas» ou qualquer intenção de
futurologia. Assim, os quatro esboços de formas identitárias são
respetivamente:
i) Os «Ecossistemas Protegidos» numa pedagogia do «modelo»
marcada por uma socialização profissional forte, uma visão da
Profissão como declaração de «dever ser» que privilegia uma
identidade profissional com um compromisso coletivo, num discurso
pontuado por «nós» e comprometida com a autonomia profissional e
os públicos.
É uma forma identitária próxima à que Dubar designou de
«identidade estável ameaçada» (1997a) e onde também falamos, do
ponto de vista dos percursos de aprendizagem profissional, da
relação dos/as profissionais com o sujeito coletivo.
ii) Os «Trilhos Seguros» têm uma componente importante de
socialização organizacional, uma visão da profissão como emprego,
como «função» e como «carreira», onde a posição profissional no
seio da organização e a classificação profissional assumem
protagonismo.
É uma forma identitária em que existe sobreposição entre a pessoa e
@ profissional, com alguma colagem a papéis organizacionais e a
417
‘zonas de conforto’ mais estereotipadas, com identificação de alguns
constrangimentos face às inovações exigidas pelos contextos
societais, organizacionais e/ou académicos – na terminologia de
Dubar (1997a) seria uma «identidade bloqueada».
Nesta forma identitária, damos destaque à relação com ‘o que se
sabe’ no processo de aprendizagem da profissão.
iii) «Abrir Caminhos» para uma profissão que se vai construindo e
interrogando (Quem somos e para onde vamos?) com uma forte
componente de referência à especialização profissional, aos projetos,
numa visão da profissão em desenvolvimento. Simultaneamente,
nesta forma identitária temos uma diluição de «fronteiras» das
«coutadas» do conhecimento disciplinar, uma porosidade que
permite a surpresa do «novo», do fenómeno total, do provisório e do
reversível, mas também da «competência» profissional em percursos
de qualificação reflexiva ao longo da vida – na terminologia de Dubar
(1997a) seria uma «identidade responsável pela sua promoção».
Nesta forma identitária, elegemos a relação de ‘quem se é’ com a
aprendizagem da profissão;
iv) «Inventar Carreiros» apresenta-se como uma possibilidade para
algumas pessoas licenciadas em Serviço Social que, num campo
profissional cada vez mais fluído e concorrencial, se mobilizam por
inventar novos conteúdos e formas para o exercício da profissão. Os
«carreiros» são construídos passo a passo, provisórios, provocando
pouca alteração na ‘paisagem’.
Do ponto de vista da aprendizagem profissional destaca-se a relação com a
incerteza e a heterogeneidade.
Estas pessoas podem ou não exercer a profissão, podem ou não sentir-se
assistentes sociais (sendo estes exercícios e estes significados mutáveis ao
longo do tempo e do espaço), relacionam-se de formas menos tradicionais com
a profissão e a sociedade e os seus «fios condutores» do exercício de
atividade e de compromisso ético e social, estão em redes de contato e são
feitos de compromissos que estão para além da profissão. Na tipologia de
Dubar (1997 a) esta forma identitária encontra correspondência na «identidade
autónoma e incerta».
418
Desafios da construção tipológica
A construção de uma tipologia baseia-se no conceito de ideal-tipo weberiano9 e
a passagem da classificação das estruturas narrativas para a elaboração de
ideais-tipo exige, por um lado, um exercício de abstração que permite o
transporte para outras populações e, por outro, a atenção ao “verdadeiro
significado” só possível a partir dos processos globais e estruturais em que as
narrativas se inscrevem (Schnapper, 2000).
Na perspetiva weberiana trata-se de uma construção teórica realizada a partir
dos casos particulares analisados para que se possam estabelecer relações e
para orientar o trabalho de interpretar as «realidades» e a ação, sendo esta
construção um dos procedimentos mais generalizados quer nas ciências
sociais quer nas ciências experimentais.
O «ideal-tipo» é definido como uma esquematização do objeto de pesquisa que
se obtém através da enfatização de uma ou de várias facetas determinantes da
realidade analisada e da ordenação de fenómenos em função de cada uma das
dimensões analíticas selecionadas. Um «ideal-tipo» é assim, uma proposta de
conceptualização simplificando e clarificando a realidade, propondo uma
“ordem inteligível” de compreensão da diversidade social.
A dificuldade de construir tipologias empíricas que traduzam a diversidade de
formas identitárias dos assistentes sociais implicou numa primeira fase, a
exploração de tipologias já construídas por diferentes investigadores, dos quais
se destaca Serge Paugam (1996) com uma tipologia das situações de pobreza,
Natália Alves (2007) com uma tipologia dos percursos de inserção profissional
e das formas identitárias dos jovens licenciados da Universidade de Lisboa e
António José Almeida (2012) com uma tipologia identitária dos profissionais de
Recursos Humanos, entre muitos outros.
Este interesse de investigadores de várias profissões e áreas do conhecimento
provavelmente não é indiferente ao decréscimo de importância das profissões,
9 O uso de tipologias ou ideais-tipo foi desenvolvido por Weber (1992) que os definia como ideais num sentido puramente lógico, distinto da noção de «dever ser» ou de «modelo». O ideal-tipo é um processo de construção
«lógica» sobre a realidade e não é um ideal no sentido de utopia ou da apreciação com base em juízos de valor.
419
por relação às mudanças ocorridas no sistema ocupacional das sociedades e
ao surgimento da noção de pós-profissionalismo, marcada pela perda da
exclusividade profissional, pela crescente segmentação do conhecimento
através da especialização, pela transformação dos mecanismos de controlo e
autonomia profissional, pela globalização da prestação de serviços
profissionais e pelo crescimento do uso das tecnologias no acesso às fontes de
informação. Nesta linha, a alteração da natureza do trabalho combinada com a
diminuição do emprego estatal e a globalização da atividade económica
constituem as condições para a emergência do pós-profissionalismo.
O Serviço Social partilha com as profissões mais tradicionais alguma «perda»
de legitimidade, procurando resistir a este processo com a argumentação que
só os profissionais com determinado nível de conhecimentos podem assegurar
desempenhos de qualidade e a proteção dos direitos dos cidadãos.
Num estudo recente que a Associação de Profissionais de Serviço Social
(2009) publicou sobre a profissão e os profissionais são identificados alguns
traços salientes da formação em Serviço Social em Portugal, nomeadamente:
“i) A formação superior em Serviço Social é uma realidade consolidada, reconhecida há quase meio século (1961); ii) o processo de ‘academização’ do Serviço Social em Portugal apresenta um caráter recente, depois de um processo tardio e complexo, como se evidencia na história da atribuição do nível universitário (1989) e na ausência de oferta de formação pública até 2000; iii) a oferta formativa atual é predominantemente universitária, com uma duração de sete semestres e ministrada em estabelecimentos de carater público; iv) as propostas formativas configuram um mosaico com tipificações diversas, quer quanto aos perfis das áreas de formação matriciais e da sua relação com o Serviço Social enquanto área científica predominante, quer quanto aos modelos de formação específica designadamente formação experiencial, quer ainda quanto à capacitação para a investigação e produção de conhecimento; v) a diversidade de propostas formativas não parece resultar tanto na afirmação de projetos concorrenciais de formação, em termos de conceção e perfis profissionais, mas de contingências associadas à constituição do mercado de ensino superior e à crise de financiamento do ensino superior público; vi) esta diversidade tão significativa, na ausência de tradição e de ‘Known how’ das novas escolas de formação de Assistentes Sociais em Portugal, configura o campo do ensino em Serviço Social, ao nível do 1º ciclo, como um domínio atravessado por fragilidades e riscos na qualidade da formação assegurada, exigindo uma atenção redobrada e a exigência de uma regulação básica da formação…“ (Ferreira e Hespanha:2009:23, 24).
No que respeita aos percursos formativos dos Assistentes Sociais foi
identificado nesta investigação, em particular nas narrativas d@s Assistentes
420
Sociais, a importância da formação inicial, mas também o caráter contínuo da
formação, a múltipla proveniência das fontes de aprendizagem, a importância
dos contextos e da «atitude pessoal», da interação com os atores e da
reflexividade nessa aprendizagem.
Também as passagens da condição de estudante a trabalhador e de
trabalhador a profissional, foram entendidas como processos com muitas
variáveis, nem lineares nem sequenciais. Destaco ainda algumas dimensões
que se evidenciaram nas narrativas sobre os percursos de aprendizagem d@s
Assistentes Sociais: a aprendizagem contínua nos contextos organizacionais
de trabalho; a aprendizagem no processo de formação pós-
graduada/investigação/ensino; a aprendizagem com ‘colegas-referência’ e a
aprendizagem experiencial e reflexiva de toda a trajetória de vida.
Na tentativa de caracterizar as práticas de formação e de aprendizagem nas
narrativas que foram objeto de estudo e, a partir de alguns aspetos que são
comuns e outros que se diferenciam, foi possível identificar quatro tipologias
marcadas: i) pela relação de ‘quem se é’ com a aprendizagem da profissão; ii)
pela relação da aprendizagem da profissão com ‘o que já se sabe’; iii) pela
relação com o sujeito coletivo da profissão; iv) pela relação com a
heterogeneidade e a incerteza.
Estas dimensões são abertas a vários cruzamentos e combinações e a tensões
no campo profissional entre o centro e a periferia, entre a adoção de uma
matriz generalista ou de especialidade, entre compromissos com abordagens
de enfoques variáveis e muitas outras variantes onde, a opção de prosseguir a
formação contínua dentro ou fora do Serviço Social, entre posicionamentos de
maior ou menor sedução pelos poderes instituídos e pelo desempenho de
cargos hierárquicos, são parte das escolhas que os profissionais podem fazer.
421
6.1. “Ecossistemas protegidos”10
Esta metáfora permite a analogia com alguns contextos profissionais de
Serviço Social (cada vez mais raros), onde os respetivos profissionais ainda
podem exercer com uma forte pedagogia de modelo. Os 'ecossistemas' a que
nos referimos a propósito desta profissão são mais relacionais do que
geográficos e os seus 'habitantes' têm socializações profissionais fortes e uma
visão da profissão assente sobretudo no que 'deve ser', nos seus conteúdos
prescritos, mais próximos da identidade «de ofício».
A identidade profissional é tendencialmente forte e no discurso aparece franca
referência a «nós», numa idealização mais ou menos hegemónica de um
sujeito coletivo que se diferencia de outros e assume a sua legitimidade
'porque existe'. A autonomia situa-se entre o polo organizacional, dependendo
do lugar que o profissional ocupa na hierarquia, e o polo cliente, dependendo
do compromisso que estabelece com os públicos da sua intervenção. Os
profissionais que 'habitam' estes 'ecossistemas' tendem a privilegiar as
vertentes técnicas e científicas do seu desempenho.
Curiosamente neste ideal-tipo, as narrativas dos assistentes sociais
colaborantes aparecem com referências a setores (à Saúde, por exemplo), a
permanências institucionais longas (como nos casos dos «primeiros doutores»)
e/ou ao exercício da docência, quer em exclusividade, quer de forma
acumulada com o exercício profissional. É uma forma identitária com um
desenho que configura uma «identidade estável ameaçada» (Dubar, 1997a)
próxima à que o autor (2006) designa de «cultural» e que contem uma atenção
especial aos princípios, valores e normas que regem a profissionalidade.
10
No sentido comum desta designação, nomeadamente aquele que lhe é atribuído pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, Suíça, 2008),verifica-se que nomeia “espaços geográficos claramente definidos, reconhecidos, geridos através de meios legais ou outros meios eficazes, para atingir a conservação a longo prazo da natureza, em especial de ecossistemas associados a valores culturais”.
422
- A relação dos profissionais com o ‘sujeito coletivo’
As formas como @s profissionais se relacionam com a profissão,enquanto
sujeito coletivo (do ponto de vista organizativo, estatutário e/ou deontológico)
diz bastante sobre os seus percursos de aprendizagem, mas também sobre a
intervenção cívica que estão, ou não estão, disponíveis para levar a cabo. Em
última análise, esta tipologia identifica percursos profissionais e de
aprendizagem, mais ou menos permeáveis às atuais tendências gestionárias e
que, podem atribuir significados mais incluídos/excluídos do campo profissional
e outros que, apesar de estarem no exercício profissional atribuem (com
argumentos variados) pesos diferentes à individualidade de «gestor de si» e/ou
à pertença participada num coletivo profissional.
Jaime e Helena, nas suas diferentes posições, pontuam o que outros
entrevistados também referem como um grande individualismo (Jaime) ou uma
excessiva competição e rivalidade (Helena) entre os assistentes sociais.
“…é preciso que todos nós ganhemos um maior espírito de coletivizarmos o que sabemos, o que estudamos, o que aprendemos, o que investigamos, uns com os outros, em sistema de troca e em sistema de solidariedade profissional, que é coisa que eu acho que não temos. Somos extremamente individualistas, por mais que a gente queira combater o individualismo…” Jaime / E JF10 “…nós quando nos sentimos ameaçados, somos coesos, de outra forma, há uma competição desenfreada: «- Eu sou melhor do que tu». E isso... penso que é um bocado impeditivo de se encontrar os denominadores comuns que possam ser propulsores para uma cada vez maior qualificação da profissão. Penso que houve uma grande ajuda, que foi a carreira docente ter acordado as pessoas para uma maior investigação, para a necessidade de produzir materiais, isso é, sem dúvida nenhuma, um suporte diferenciável. Penso que isso ajudou muito. Não só as escolas, os profissionais em geral, relacionam-se de outra forma com o conhecimento” E Helena/ HS 3.
Para a investigadora não é conclusivo (nem poderia ser, quer por razões
metodológicas, quer conceptuais) que estas características imputadas ao corpo
profissional sejam traços distintivos da profissionalidade e/ou que estejam tão
ou mais presentes nestes profissionais do que em profissionais de outras áreas
de formação e de profissão.
Questiona-se até que ponto a forte presença destes argumentos nas narrativas
profissionais não se relaciona com uma idealização do/a profissional? E qual a
423
relação desta hipotética idealização com um perfil profissional prescrito na
formação inicial como o que «deve ser» ou uma «obrigação» de «ser
profissional» de determinada forma?
Alimenta-se a possibilidade de que um alter-ego profissional (que a título de
exemplo, pode reunir um «dever ser» colaborativo, ético, empático e altruísta),
na comparação com a diversidade do «que se é», possa acentuar algumas
características conferindo-lhes peso relativo que eventualmente não têm.
Contudo, o que a análise das narrativas dos assistentes sociais que são co
autores deste estudo nos pode dizer é que os argumentos referentes às
supostas características individuais dos assistentes sociais ainda estão muito
presentes, confirmando que esta profissão não está imune às tendências, às
mutações e dinâmicas das formas societárias e da diversidade de conceções
sobre o trabalho, o emprego e a formação.
Relação dos profissionais com o «Sujeito Coletivo»
a) Modos de entender o estatuto socioprofissional
São muito variáveis ao modos de entender o estatuto socio profissional,
embora os colaboradores deste estudo mencionem nas suas narrativas que a
regulação da atividade profissional é essencial, muitas vezes referindo o atual
processo de criação da Ordem dos Assistentes Sociais e/ou argumentando
sobre as vivências, as dificuldades e os desencantos com o associativismo do
corpo profissional.
“…enquanto não houver regulação da profissão, não há profissão. Há boas vontades, atividades profissionais, distorcidas por vezes, porque nós não temos um corpo profissional coeso... e enquanto acusam outros de corporativismo, nós não conseguimos o mínimo dele para nos juntar. Fazia-nos falta algum corporativismo. Mas não vejo profissão neste país, ainda” E Fernanda /FCR5
Estatuto socio profissional
Organização Coletiva
Abertura e Fechamento
Social
424
Num contexto societário de transformações na divisão social e técnica do
trabalho, a retração e a erosão do trabalho contratado e regulamentado, bem
como dos respetivos direitos laborais atinge também o trabalho social nos
diferentes espaços institucionais em que se realiza.
As recentes produções de Marilda Iamamoto (1992, 2007) analisam as
consequências teóricas e políticas mais profundas relacionadas com o
reconhecimento do assistente social como trabalhador assalariado de
instituições públicas e privadas, resultante do processo de profissionalização e
institucionalização da profissão.
Autores críticos brasileiros, dos quais se destacam Iamamoto e Paulo Netto,
referem-se a uma ordem societária que cria espaços sócio ocupacionais na
divisão sócio técnica do trabalho, que constituem condições através das quais
a profissão fica legitimada para a execução de um amplo leque de atribuições
profissionais, nomeadamente no âmbito das diferentes políticas sociais
setoriais.
“O caminho da profissionalização do Serviço Social é, na verdade, o processo pelo qual os seus agentes - ainda que desenvolvendo uma autorrepresentação e um discurso centrados na autonomia dos seus valores e da sua vontade - se inserem em atividades interventivas cuja dinâmica, organização, recursos e objetivos são determinados para além do seu controle. [...], o que [esse] deslocamento altera visceralmente, concretizando a rutura, é, objetivamente, a condição do agente e o significado social de sua ação; o agente passa a inscrever-se numa relação de assalariamento e a significação social de seu fazer passa a ter um sentido novo na malha da reprodução das relações sociais. Em síntese: é com esse giro que o Serviço Social se constitui como profissão, inserindo-se no mercado de trabalho, com todas as consequências daí derivadas (principalmente com o seu agente tornando-se vendedor da sua força de trabalho) (Netto, 2005, p. 71-72).
As profundas implicações deste processo incidem na autonomia relativa do
assistente social que não possui o poder de definir prioridades, nem modos de
desenvolver o «trabalho socialmente necessário», coletivo e cooperado com os
outros trabalhadores sociais. Nesses termos, a análise das políticas sociais e
dos espaços ocupacionais nos quais se inserem os assistentes sociais não
pode ser apreendida de modo linear e determinista, ainda mais considerando
as formas de relação do capital com as suas crises de acumulação, que
aprofundam e agravam as expressões da questão social, mas também
425
desencadeiam respostas da sociedade e dos trabalhadores no seu movimento
de resistência e defesa de direitos conquistados historicamente.
Assim, nestas perspetivas, analisar o significado social da profissão significa
inscrever o trabalho do assistente social no âmbito do trabalho social coletivo
nas sociedades, destacando, em simultâneo, a sua utilidade social e
«diferencialidade» face a outras profissões e a sua «unidade» - "Em outros
termos, estabelece-se a tensão entre projeto ético-político e alienação do
trabalho, indissociável do estatuto assalariado" (Iamamoto, 1992).
Para Paulina esta alienação do trabalho ligada ao estatuto assalariado está
refém de uma perspetiva funcionalista, com uma representação profissional
ainda muito marcada pelo ‘assistencialismo’ e pela ‘resolução de problemas’.
“…por muito que nos custe a aceitar ainda temos o peso histórico da ligação ao assistencialismo. Eu ainda o sinto muito. Ainda tenho a ideia... de que as pessoas acham que os assistentes sociais são, sobretudo, para ajudar a fazer «qualquer coisa» e essa «qualquer coisa» não é na dimensão de ouvirmos, de orientar, de encaminhar. Não! É na perspectiva de resolver uma situação problemática. É uma visão bocado funcionalista - eu acho que essa representação mantém-se” Paulina/E PS13.
Mas o trabalho dos assistentes sociais pode ser entendido como expressão de
um movimento que articula conhecimentos e luta por espaços no mercado de
trabalho; competências e atribuições que têm reconhecimento legal nos
estatutos normativos e reguladores (diretrizes curriculares da formação, código
deontológico, regulamentação profissional), e pessoas que exercem a profissão
com subordinação às normas institucionais - mas que também se podem
mobilizar em movimentos onde se questionem e repensem a si mesmas e à
intervenção. É neste processo tenso que as profissões constroem os seus
«sujeitos coletivos» e o projeto ético-político profissional, entrando em
permanente tensão e contradição com o estatuto de trabalhador assalariado.
O próprio estatuto sócio – profissional é um jogo complexo de conflitos e
tensões que envolve diferentes protagonistas, interesses, projetos e estratégias
e onde são requisitadas a presença e a intervenção de profissionais, que
disputam espaços de reconhecimento e poder no interior do aparelho
institucional.
“O futuro da organização profissional, eu vejo como determinante para nos colocar noutro patamar de exigência, de exigência em relação à formação na área, de exigência em relação ao exercício da profissão, de exigência em relação à formação continuada dos profissionais, de exigência em
426
relação à forma como nós regulamos todos estes processos, de exigência em relação à forma como nos podemos posicionar perante a sociedade que queremos ter, perante os compromissos que queremos assumir; ou seja, como interlocutores na discussão, por exemplo, de políticas sociais, de medidas que queremos ver implementadas, de lutas que queremos travar e, obviamente, interlocução perante outras instâncias com quem podemos discutir e podemos dialogar de forma legitima. E essa legitimação só nos é trazida com um poder organizativo diferente e obviamente, também este poder depende de nós e nós ainda não percebemos isso” Sílvia/Q SG18.
b) Modos de entender o relacionamento com a organização coletiva
da profissão
As narrativas dos assistentes sociais envolvidos neste trabalho têm bastante
consenso sobre a pouca «consciência coletiva» e sobre a «fragmentação da
classe profissional» mas revelam tensões e posições diversas, mais ou menos
comprometidas com a organização coletiva.
A Associação Profissional (APSS) tem poucos associados por relação aos
diplomados que exercem e mesmo dentro daqueles que se inscreveram algum
dia na Associação, serão ainda menos aqueles que efetivamente têm uma
participação continuada e ativa. Apesar desta escassez de participação efetiva,
está muito presente no discurso profissional a valorização e a necessidade de
autoregulação da profissão
“… uma coisa em que eu acreditava era que o país tinha necessidade (como pão para a boca) de regular a profissão. Esta profissão não pode funcionar sem uma regulação e isto devia ser entendido como um direito de cidadania. Pôr a lei a funcionar, será difícil também. Mas enquanto não há lei é uma terra de ninguém” E Fernanda / FCR5.
Esta expressão de ‘terra sem lei’ designa o território das dificuldades sentidas
na regulação profissional, tanto ao nível da formação inicial como do exercício
profissional.
“... penso que é um bocado impeditivo [referindo-se à competição desenfreada] de se encontrar os denominadores comuns que possam ser propulsores para uma cada vez maior qualificação da profissão. Penso que houve uma grande ajuda, que foi a carreira docente ter acordado as pessoas para uma maior investigação, para a necessidade de produzir materiais, isso é, sem dúvida nenhuma, um suporte diferenciável. (…) Penso que era muito bom que surgisse a Ordem, eu diria que neste momento é quase indispensável que surja a Ordem. Nós vamos debater-
427
nos com profissionais com o mesmo título e com uma qualificação diferente; na medida em que os politécnicos estão a formar Assistentes Sociais, há uma diversidade de entidades formadoras mesmo ao nível da licenciatura e, portanto, só uma Ordem é que pode realmente diferenciar os vários tipos de formação e certificar os profissionais, inclusivamente através de um carta que lhes permita exercer a profissão de uma forma correta. Enfim, de outra forma, é complicado. Depois há ainda uma outra questão, que me preocupa muito neste momento, é que há uma cruzada na comunicação social, particularmente na televisão, contra os Assistentes Sociais” Helena/E HS3.
No estudo de Ferreira e Hespanha (Coimbra, 2009), realizado por iniciativa da
Associação de Profissionais, pode verificar-se que 98,8% dos respondentes
manifestaram concordância face à criação de uma instância de autoregulação
profissional (Ordem), com vantagens identificadas ao nível
- da «defesa dos interesses da profissão e dos associados» (48,2%),
- da «melhoria da visibilidade e credibilidade da profissão» (22,4%),
- de «fazer respeitar o código deontológico e exercer jurisdição disciplinar»
(15,5%),
- de «promover a valorização profissional e cientifica dos associados» (8,1%)
e ainda de outros aspetos com valorações menos significativas.
Assim, a organização coletiva que, salvo alguns momentos bem identificados
na história da profissão em Portugal, tem tido bastante dificuldade em mobilizar
«a classe», parece ganhar novo fôlego de adesão e de mobilização com a ideia
da Ordem Profissional. Mas mais do que tecer considerações sobre esta
estratégia e este processo, importará percorrer a argumentação presente no
material narrativo sobre a relação com a organização coletiva da profissão,
sublinhando os seguintes argumentos:
- ‘Profissão muito fragilizada e com uma terrível dificuldade de afirmação’
“Nestes 46 anos de carreira, eu sempre tive a noção de que a profissão de Serviço Social estava, por uma ou outra razão, sempre muito fragilizada. No início a sensação que eu tinha, e tive essa experiência nas empresas onde nós tínhamos que ‘bulhar’ pelo nosso lugar, pelo nosso estatuto profissional, era preciso explicar sempre, passar a vida a explicar o que fazíamos e a discutir umas com as outras sobre o que é que fazíamos (…) Eu penso que há duas características que se mantém (eu vejo da mesma maneira que via há quase 50 anos): um empenho muito sério dos profissionais em trabalharem bem, em fazerem as coisas como devem ser feitas mas, por outro lado, uma terrível dificuldade na sua própria afirmação” E Helena / HS 3
- Posições, de crítica interna à atuação paliativa e aos desempenhos conotados
com «velhas formas de assistência»
428
“No dia-a-dia, o trabalho de grande parte dos Assistentes Sociais, resume-se à gestão de medidas de apoio económico, com um grande peso processual e burocrático na gestão de problemas isolados de indivíduos isolados e pouco atuam na promoção da mudança. Os Assistentes Sociais ainda servem enquanto ‘cara’ a um corpo institucional com falhas políticas, como recursos paliativos que, muitas vezes, servem de ‘tampão’ a verdadeiros e reais problemas sociais. Sinto que um futuro diferente ainda vem longe e que hoje estamos muito dependentes dos números da pobreza e de novas variantes das velhas formas de assistência” Armando/ Q AP19.
- Uma diversidade de entidades formadoras e de formações “…era muito bom que surgisse a Ordem, eu diria que neste momento é quase indispensável que surja a Ordem. Nós vamos debater-nos com profissionais com o mesmo título e com uma qualificação diferente; na medida em que os politécnicos estão a formar Assistentes Sociais, há uma diversidade de entidades formadoras mesmo ao nível da licenciatura e, portanto, só uma Ordem é que pode realmente diferenciar os vários tipos de formação e certificar os profissionais, inclusivamente através de um carta que lhes permita exercer a profissão de uma forma correta” E Helena / HS 3.
- Ideias divergentes sobre a participação coletiva
“Entrei para a Associação por considerar que se a Associação pretendia defender os assistentes sociais, tinha que apostar fundamentalmente na formação. E tinha que ser por aí que a gente tinha que ir. E, por outro lado, tínhamos que mostrar, tentar saber mostrar as coisas que as pessoas faziam, que tinham qualidade e deviam ser mostradas” E Filomena/ FA 7. “Eu costumo dizer aos meus alunos também: - Tenhamos um comportamento de vírus. Bastam duas pessoas para infetar, então que seja um vírus benéfico: um vírus de liberdade, de autonomia dos sujeitos, de solidariedade... ele também circula (Porque é que só a SIDA é que infecta e a gente não consegue infetar?), um por um, um por um, um por um... na natureza, o que é pequenino sobrevive, a formiga tem mais possibilidades de sobrevivência do que o elefante. O que é pequenino sobrevive, não se preocupem com o grande: Pequeno, pouco, possível” Inês / E IV6.
- Condições laborais para o exercício profissional
“Eu também compreendo que não consigam dar resposta. Se nós queremos que o assistente social tenha um determinado tipo de «performance», que oiça, que escute, que tenha alguma tranquilidade, que saiba gerir os conflitos... tem de ter condições para trabalhar. Eu própria tive esse exemplo, porque há dois anos a esta parte tivemos um ‘boom’ de atendimento de doentes ambulatórios e eu cheguei a um ponto que disse: - Eu não estou a pensar. Tiveram que me dar um toque, para eu perceber que não estava a pensar, porque às vezes, nós sozinhos não conseguimos perceber” Paulina/E PS13.
- Pontuações de significado variável sobre o projeto profissional
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“O meu projeto profissional passa muito pela luta por uma capacidade de organização que nos permita tudo aquilo que eu disse atrás, ou seja, não descansarei enquanto não tivermos uma Ordem, ou outra organização qualquer que seja capaz, que tenha poder, que tenha capacidade de organização e uma estrutura suficientemente forte para, por exemplo, apoiar continuadamente os profissionais; e apoiar, formando-os, apoiar supervisionando-os, apoiar advogando os seus interesses; nunca me quero ver desligada deste projeto “Sílvia/ Q SG18. “Penso que era muito bom que surgisse a Ordem, eu diria que neste momento é quase indispensável que surja a Ordem. Nós vamos debater-nos com profissionais com o mesmo título e com uma qualificação diferente; na medida em que os politécnicos estão a formar Assistentes Sociais, há uma diversidade de entidades formadoras mesmo ao nível da licenciatura e, portanto, só uma Ordem é que pode realmente diferenciar os vários tipos de formação e certificar os profissionais, inclusivamente através de um carta que lhes permita exercer a profissão de uma forma correta. Enfim, de outra forma, é complicado.” Helena/E HS3.
Estas duas últimas citações ilustram duas posições dos profissionais, que vão
de um maior envolvimento pessoal no projeto coletivo a um ‘desejar’ mais
distante e menos presente no processo de luta por aquilo que se quer
conquistar, revelando algum desfasamento entre a idealização de uma
estrutura coletiva e a disponibilidade de participação, o que é consonante com
a pouca centralidade da ação da associação profissional representativa do
grupo na afirmação da identidade profissional.
Quer a organização coletiva (nomeadamente a Associação de Profissionais de
Serviço Social) quer os profissionais, coincidem com a escassa participação no
processo coletivo mas divergem nos argumentos evocados – a Associação
tende a imputar responsabilidades ao individualismo e ao deficit de cidadania
profissional dos assistentes sociais e estes, a privilegiar a perceção da
distância entre a estrutura associativa e as condições de trabalho e os
problemas reais com que se defrontam. Uns e outros, pontuam a atual
diversidade de formações académicas e a importância dos contextos de
exercício enquanto espaços de reconhecimento profissional como argumentos
que dificultam a participação coletiva. Os profissionais tendem a falar mais da
‘não participação’ dos outros, do que da sua. Alguns, como Filomena, apontam
algumas responsabilidades à Associação e à ausência de «figuras de
referência» nos serviços para onde vão trabalhar os jovens assistentes sociais
como dificuldades acrescidas para consolidar o projeto profissional e a
organização coletiva.
430
“Mas continuo a achar que a Associação de Serviço Social, pelo menos que eu saiba, não está a fazer uma das coisas mais importantes que é defender os profissionais. E tenho muita pena que, com as pessoas que nestes últimos anos têm estado à frente, não tenham aproveitado para arranjar… (nas posições em que estão conhecem a realidade, não são pessoas que estejam de fora, sabem das dificuldades da gente jovem), podiam posicionar-se para defender melhor essas pessoas. Eu acho que estamos a atravessar um momento muito difícil (já vem desde há alguns anos mas nesta altura está demasiado crítico) para que uma Associação de Profissionais não olhe para a forma como, do ponto de vista profissional, são feitos os contratos, como é que as pessoas são avaliadas... não pode ficar de fora, acho eu. Tem de olhar para ali e tem de verificar o que é que ali se passa. Porque há gente muito boa, mas muito nova, que se perde porque a vida delas, um dia, fica muito parecida com a dos utentes que têm de atender. E a cabeça delas baralha-se um bocado. Algumas ficam muito deprimidas. Se não encontrarem alguém que tenha alguma capacidade de ser firme e de ajudar no caminho, o percurso profissional perde-se. Já vi situações dentro do distrito de Lisboa em que disse a algumas chefias (se calhar não me ouviram, porque também entendo que não é fácil nos tempos que correm ouvir isso): as pessoas, estando na ação direta, ou em determinados serviços demasiado tempo, precisavam de ter um apoio Psicopedagógico em permanência, chamem-lhe o que chamarem. Porque senão aquilo é caótico e é caótico a vários níveis, toca a vida pessoal e familiar de cada um e o desempenho profissional. Isso é, ainda hoje, ou hoje mais do que há algum tempo atrás, muito importante. E depois quando eu comecei a trabalhar existiam umas figuras, que eram as figuras de referência a nível dos serviços. Atualmente, com a forma como as chefias vão sendo designadas, temos figuras de «não referência» nos serviços” Filomena/E FA5.
António, encarna uma voz dissidente de alguém que diz que os outros não o
reconhecem como assistente social, referindo que a profissão precisa de ir
buscar recursos «fora» de si para se renovar.
“Para reinventar a profissão não temos recursos que cheguem, tem que se ir buscar fora do campo profissional. Acredito que de hoje para amanhã hão-de ir buscar os dissidentes, bater á porta dos dissidentes, para receber alguma coisa de novo. (…) Há alguns anos atrás, tinha muita raiva... e algum despeito em relação à profissão, até com algumas questões mal resolvidas lá com o Instituto... e com alguns profissionais. Mas em alguns casos vai-me batendo cá a ideia de que é saindo, que se pode renovar aquilo que está estagnado, ou seja, mal comparado, é como a Lagoa de Óbidos, é preciso que a água do mar lá entre para aquilo refrescar, para que aquele ecossistema (que tem que estar condicionado, porque a característica dele é mesmo assim) possa refrescar com a entrada daquela água toda do mar e faça uma limpeza; ou seja, a gente tem que ir dentro e fora do campo profissional” António/E AF1.
Sílvia, que fala com muito entusiasmo da sua participação associativa, nomeia
a necessidade de «dar palco» à profissão, embora também seja percetível na
431
sua narrativa o paradoxo com a (in) visibilidade dos profissionais. Esta
assistente social ilustra um conjunto de preocupações e de interesses, onde
inclui a organização coletiva da profissão.
“Preocupa-me a pouca visibilidade, preocupa-me a falta de interlocução que temos tido nos últimos anos nas políticas sociais, preocupa-me o protagonismo de outras áreas que competem no nosso campo, preocupa-me a falta de capacidade de defesa dos cidadãos que nós temos tido a nível político, já não digo obviamente no quotidiano – no quotidiano, acho que nós temos imensa capacidade de defesa dos cidadãos, não damos é visibilidade dessa nossa capacidade de agir. Preocupa-me a falta de uma estrutura de organização profissional, preocupa-me a falta de supervisão profissional, preocupa-me o lugar de pouco poder que temos dentro das instituições e, por vezes, as perdas que vamos tendo, mas também me preocupa a falta de divulgação das conquistas que em termos organizacionais, em termos institucionais, em termos profissionais, vamos fazendo. Preocupa-me … a desregulação do campo profissional, preocupa-me a desregulação do campo da formação em Serviço Social, preocupa-me tanta coisa… preocupa-me neste momento o desemprego na área, preocupa-me imenso a situação de pobreza, as situações de exclusão de várias ordens e de vários níveis, preocupa-me imenso a incompreensão, a distorção que existe a nível do senso comum, dos cidadãos em geral, sobre os problemas sociais. Preocupa-me imenso a falta de perspectiva crítica de alguns profissionais sobre os problemas sociais, sobre as questões da pobreza e exclusão; preocupa-me imenso a falta de implicação e compromisso dos cidadãos nas questões que os afetam e preocupa-me isto refletido a nível dos profissionais de Serviço Social. Preocupa-me que os assistentes sociais não sejam críticos, ou pelo menos quando eu percebo que não são críticos (e não generalizo). Preocupo-me que não vão para além daquilo que lhes é pedido, do papel que lhes é dado, preocupa-me muito coisa… estava aqui a dizer uma lista enorme de coisas que me preocupam, mas as minhas preocupações são essencialmente como cidadã, uma cidadã que tem uma responsabilidade acrescida por ser assistente social que deve preocupar-se com algumas questões mais e de uma forma mais assumida” Sílvia/Q SG18.
“Interessa-me a defesa dos interesses profissionais, interessa-me a defesa dos interesses dos cidadãos, interessa-me … a arte, interessa-me a fotografia, interessa-me o cinema, interessa-me a arquitetura, interessam-me os povos… não me interessa ficar fechada (nunca fiquei fechada) naquilo que são os nossos papéis públicos, tento cruzar muito estes interesses. De facto, interessa-me muito, neste momento, que o serviço social português se afirme, que possa estar presente em conferências internacionais, que possa instigar ao mais alto nível, possa ser reconhecido (por exemplo pela FCT) enquanto corpo de investigação, interessa-me a qualidade da produção científica, interessa-me a qualidade da formação dos futuros assistentes sociais e dos assistentes sociais, interessa-me tanta coisa… interessam-me os meus temas, os temas em que eu trabalho. Neste momento também me interessa ir de férias. E queria acabar dizendo que, de facto, interessa-me que esta profissão possa ‘ter palco’ e explorar
432
este palco, de uma forma séria, palmilhando, de uma forma cautelosa, de uma forma rigorosa, de uma forma também atrevida e criativa, para que acendam as luzes neste palco e nos traga muita luz, com muito colorido, com uma paleta de cores, de interesses e de visões que nos permita crescer. E quando eu digo ‘crescer em palco’ é ter público e não esquecer este público, não só as pessoas comuns, como as pessoas que necessitam particularmente de nós ao longo das suas vidas, e eu acho que todos necessitam de nós. Eu nunca vi esta profissão como exclusivamente voltada para aqueles que mais dela sentem necessidade, num período ou outro, ou ao longo de toda a sua vida, mas de todos os cidadãos. Porque se nós defendemos os direitos humanos e o bem-estar social, defendemos acima de tudo o ser humano e um projeto de vida coletivo, respeitando a sua individualidade e os direitos humanos” Sílvia/Q SG18.
Esta citação diz bastante da «mistura» e do «cruzamento» de preocupações e
interesses que habitam os profissionais e também deste «dever acrescido», de
uma responsabilidade que muitos assistentes sociais consideram ter a mais do
que os outros cidadãos por terem a profissão que têm. Por outro lado, a
condição de assalariados e a escassez de autonomia profissional contribuem
para as dificuldades de participação coletiva e eventualmente, a feminização,
será uma das variáveis a ter em conta, na medida em que o papel social da
mulher ainda é pautado por menores participações cívicas e pela acumulação
pouco paritária do exercício profissional com o exercício doméstico e educativo.
Por outro lado ainda, a «terceirização»11 surge como um fenómeno crescente
na relação incerta dos assistentes sociais com as possibilidades de trabalho.
Nas narrativas dos assistentes sociais as condições deste tipo de exercício
aparecem através da descrição da passagem por ‘projetos’ (sendo que a
designação de ‘projeto’ se banalizou para passar a nomear a maior parte do
trabalho social com vínculos laborais descontínuos e precários), uns que são
mencionados como experiências de aprendizagem e outros que não, mas de
onde se induz a «terceirização» com o aumento de fragilidade do vínculo
laboral.
Este mecanismo torna muito mais invisível o trabalho real, na medida em que
descaracteriza o vínculo empregado/empregador e oculta a relação de trabalho
com a máscara de relações de trabalho mais ‘flexíveis’ e ‘independentes’, o
que na prática resulta num aumento da precarização do trabalho. As mudanças
11 Entendida como uma das formas de flexibilização do trabalho mediante a transferência da atividade para ‘terceiros’ que não se responsabilizam pela relação de emprego.
433
nas relações de trabalho e o aumento do desemprego têm efeitos profundos no
trabalho social nomeadamente porque: a) desconfiguram o significado e a
amplitude do trabalho técnico realizado pelos assistentes sociais e demais
trabalhadores sociais; b) deslocam as formas de representação e a gestão
governamental para uma intermediação de empresas e organizações
contratadas que tendem a estabelecer uma relação ‘branca’, ou seja, ainda
mais neutra e gestionária, com as populações; c) subordinam as ações
desenvolvidas a prazos contratuais e aos recursos financeiros definidos,
implicando descontinuidades, rompimento de vínculos e descrédito da
população nas ações públicas; d) realizam uma cisão entre prestação de
serviço e o direito, pois o que preside o trabalho não é a lógica pública,
obscurecendo-se a responsabilidade do Estado perante os seus cidadãos e
comprimindo ainda mais as possibilidades de inscrever as ações públicas no
campo do direito. Nesta linha é importante evidenciar a dimensão qualitativa da
terceirização, que cria uma divisão entre os trabalhadores (os de "primeira" e
"segunda" categorias), além da fragmentação entre os trabalhadores com
diferentes formas de contrato e níveis salariais, muitas vezes na mesma
equipa, o que agrava dificuldades e constrangimentos para o trabalho social e
para a luta coletiva.
Outra questão que também é mencionada nas narrativas é a crescente
informatização do trabalho. No caso do setor público, a exemplo do setor
privado, as mudanças tecnológicas contribuem para incutir uma «cultura de
gestão» e para esvaziar os conteúdos mais criativos de trabalho,
desencadeando o desgaste criado pela atividade mecânica, repetitiva e que
não instiga à reflexão.
“Assim como acho que também há pessoas que ficam com aquilo que aprenderam na licenciatura e depois pouco evoluem. Se calhar, porque se rotinizaram (o que é muito fácil, porque a pessoa tem de dar respostas, tem de tentar resolver os casos e, sem querer já está embrenhada naquele mundo das respostas-tipo) e não tiveram oportunidade de se pensarem...”Paulina/E PS13.
C) Modos de entender a abertura ou o fechamento social da
profissão.
As entidades formadoras, através da atribuição da maior ou menor exigência
do grau académico, podem assumir um papel de relevo no grau de abertura ou
434
fechamento da profissão. Recorda-se que a abordagem funcionalista das
profissões (Sousa Almeida, 2011) assenta na existência de um estatuto
profissional resultante do saber e do ideal de serviço, corporizados por
comunidades formadas em torno do mesmo corpo de saber, dos mesmos
valores e ética de serviço, na existência de um reconhecimento da
competência e na existência de instituições profissionais como resposta a
necessidades sociais e ainda está muito presente no discurso dos
profissionais.
Por outro lado, a inserção mais recente da formação inicial em Serviço Social
em Universidades que lecionam muitas outras formações (quando o panorama
anterior do ensino de Serviço Social era o de entidades que lecionavam apenas
Serviço Social) contribuiu para uma maior interação entre os alunos e as áreas
do conhecimento e, eventualmente, contribuiu também para esbater uma certa
socialização escolar que era um forte marco identitário e que podem contribuir
para a construção de construções identitárias mais próximas da perspetiva
interacionista.
Filomena é uma das profissionais que defende uma maior abertura quando
menciona que “temos de ser uma voz entre pares”, identificando-se mais com o
grupo mais vasto dos trabalhadores sociais, a que têm acesso uma pluralidade
de formações no âmbito das ciências sociais.
“…é difícil a gente... se impor como uma voz única, temos que ser uma voz entre pares. (…) estamos lá para ouvir aquelas pessoas, dar voz aos seus problemas e construir respostas. Mas temos que ter mais imaginação porque as instituições, neste momento, têm muito pouca imaginação; …” E Filomena/ FA 7.
Uma outra dimensão de abertura social da profissão tem sido a socialização
profissional em equipas de trabalho (multi, pluri ou Transdisciplinares), onde os
assistentes sociais precisam de negociar e afirmar o seu espaço profissional
face a outras formações e que, a ver pelos testemunhos dos entrevistados, são
mencionados como espaços privilegiados de exercício, de aprendizagem e de
construção identitária.
“Eu acho que os assistentes sociais têm características muito próprias, muito específicas do nosso trabalho, cruzamo-nos com outros saberes e outros profissionais, mas o trabalho pode perfeitamente ser encaixado um no outro. Para mim, o que vejo é trabalharmos em parceria com os «ólogos» todos e acho que não se confundem os saberes; e acho que o conjunto desses saberes pode fazer a diferença” Filipa/E AR12.
435
Se bem que, em Portugal, o crescimento do número de Assistentes Sociais não
seja fácil de aferir dada a sub-identificação nas fontes oficiais, segundo Martins
(1995:60) até 1992 diplomaram-se 4 540 Assistentes Sociais e na década
seguinte, de 1993 a 2003 formaram-se 4 770, o que revela um aumento pouco
expressivo (Martins e Tomé, 2008:7). Nos dois anos seguintes, entre 2004 e
2006 e, segundo a mesma fonte, surgiram mais 2 501, o que totaliza 11 181
assistentes sociais diplomadas em Portugal. Considerando o período de 1992 a
2006, a taxa de evolução dos diplomados mais do que duplicou.
Este apontamento sobre o crescimento do número de licenciados em Serviço
Social inscreve-se no aumento de disponibilidade da oferta formativa do ensino
superior na década de 90 do século passado mas não nos diz muito sobre a
relação com o crescimento de outros grupos profissionais que concorrem para
o mesmo campo. De qualquer maneira, este aumento do número de
diplomados revela (e eventualmente, contribui para) uma maior proletarização
da profissão e eventualmente de uma maior abertura social.
Um dos períodos de fechamento social da profissão no passado recente foi
identificado nas entrevistas, respetivamente por Maria quando fala do
reconhecimento da licenciatura (1989) e da contestação das auxiliares sociais,
com e sem curso ou, por Fernanda, quando se refere à obrigatoriedade de
realizar o complemento formativo para obter a equivalência do grau académico.
“Apanhei toda essa fase de trabalho que foi interessantíssima, em que eu recuperei muito da experiência de trabalho que tinha feito e da metodologia que tinha aprendido na Promoção Social e apanhei ao mesmo tempo, internamente, a modificação de estatuto das auxiliares sociais e das assistentes sociais” Maria / E RA2 “Era aquele curso à noite que eles fizeram para nos permitir a reclassificação de serviço. Foi aprovado um curso, aquilo tinha um nome… acho que era ‘Plano de Estudos Unificados’, que era uma formação dirigida para professores primários, auxiliares sociais com curso ou pessoas com formação académica equivalente (havia lá duas ou três pessoas da área dos serviços prisionais que também foram considerados equiparados), mas não tinham acesso a esta formação as pessoas que não tinham curso nenhum” Maria/E RA2. “Houve aquela fase de união na luta pela licenciatura, e a minha interpretação é que quando as escolas e os profissionais estavam todos unidos foi espetacular! Estavam todos mobilizados e aquele movimento não podia ter-se desmembrado. Deu-se uma fissura, quando a escola
436
obrigou todos os profissionais com planos de estudos antigos, a voltar para lá, para obter o grau de licenciado. Quando não tinha mais nada para nos dar, não é? Porque se tivesse, as pessoas não são burras e iriam, não desmobilizavam. Portanto, como aquilo era uma necessidade dos profissionais, porque nós estávamos muito maltratados nos serviços da função pública, aquilo foi muito mau. Conseguiu-se ultrapassar, porque a Escola recuou, mas maldizendo os profissionais. E então deu-se um divórcio muito grande. Nunca mais houve uma junção” Fernanda/E FCR5. .
Outro dos aspetos que é identificado como fonte de mal-estar e que pode
contribuir para um fechamento profissional, eventualmente mais defensivo, é
resultante da forma como os ‘média’ abordam os profissionais.
“Depois há ainda uma outra questão, que me preocupa muito neste momento, é que há uma cruzada na comunicação social, particularmente na televisão, contra os Assistentes Sociais” E Helena / HS 3.
Esta ‘cruzada’ a que Helena se refere terá que ver com múltiplos fatores, dos
quais destacamos: i) o maior acesso dos cidadãos aos órgãos de comunicação
social; ii) o maior interesse destes pelas questões ligadas com a pobreza e com
as condições de vida das populações; iii) o desmantelamento de respostas
sociais do estado-providência; iv) a ineficácia e impunidade atribuída aos
serviços públicos e, em particular, aos «serviços sociais» com os quais
frequentemente os assistentes são confundidos; v) a não organização dos
órgãos coletivos da profissão e dos seus profissionais para fazerem ouvir as
suas perspetivas; vi) o poder da comunicação social na resolução de situações
e problemas que eram prioritariamente do âmbito das políticas sociais.
Estas questões relacionam-se inevitavelmente com a noção de poder que os
profissionais constroem, individual e coletivamente, e com os significados que
lhe atribuem sendo que, na voz de António, «temo-nos deixado manipular»
pelo poder instituído.
“O Serviço Social chegou-se ao debate das questões do poder (porque era muito revolucionário falar do poder!) e é revolucionário falar do poder. O poder tem todo a mesma lógica, seja qual for. Não queria ser maquiavélico, mas é inevitável, confrontarmo-nos com as questões do poder e, na minha posição eu tenho é que estar defendido do poder. (…) Nós temos sido manipulados e, temo-nos deixado manipular, em termos políticos, e não se tem batido o pé...Depois também tem a ver com uma cultura... da consensualidade... a todo o custo. Não se criam ruturas... ” António / E AF1.
Coloca-se também a questão dos valores inerentes à profissão, que os
profissionais assumem como exclusivos, ou não, do Serviço Social e que
437
podem, conforme forem interiorizados e assumidos pelos profissionais, ser
fonte de maior abertura ou fechamento profissional.
“O nosso trabalho tem uma componente de valores que é decisiva. No outro dia eu dizia aos meus queridos alunos, que são os últimos: - Vocês não podem perder a vontade de continuar a aprender, têm que se atualizar, porque há sempre coisas novas (algumas não interessam nada, mas tudo bem) mas nunca esqueçam que o suporte de uma profissão como a nossa, são os valores. E isto não tem a ver nem com política, nem com religião, nem coisa nenhuma, tem a ver com valores morais, sem isso não há Serviço Social” E Helena / HS 3.
A abordagem de Catherine McDonald (2003) anteriormente mobilizada, fala-
nos de uma dupla marginalidade deste grupo profissional, por relação ao
reconhecimento do Estado e ao caracter periférico atribuído à ‘assistência
social’, no sistema de redistribuição e proteção social e, de como essa
«marginalidade» e a presença de valores profissionais genéricos (como o bem-
estar e a justiça social) podem contribuir para a união do grupo em torno de um
projeto profissional coletivo.
Esta investigadora australiana, não deixa no entanto, de sublinhar as
ambiguidades e contradições que inevitavelmente emergem da diversidade de
práticas profissionais.
Apesar do estatuto de maior maturidade da profissão (por relação à disciplina),
a ‘consciência da rutura paradigmática’ em curso parece abrir caminho a novas
participações e a maior fluidez entre as estratégias de abertura e fechamento,
baseadas na autonomia dos atores e na partilha do poder no interior das
organizações, como forma de reabilitar a sua legitimidade social e de
reivindicar o aumento do Bem-Estar Social e da Justiça Social.
A existência de dissociações ainda instaladas entre ‘teoria/prática’,
‘profissionais da academia/«terreno»’, ‘produção/reprodução de conhecimento’
e as ‘relação de controlo/apoio ao desenvolvimento com os públicos da
profissão’ contribuem para a clivagem entre «o que se aprendeu na teoria» e
«o que se faz na prática» e induz posicionamentos defensivos e o
«fechamento» da profissão.
“Ser assistente social passa também (não é por salvar o mundo), mas passa por ter duas perspetivas: estar ali ao lado, estar presente, essa é a direção mais importante na nossa profissão e acompanhar e saber estar disponível para dar um contributo em situações difíceis - eu acho que esse papel é nosso. Claro que também não posso escamotear que a profissão tem de avançar de outras maneiras, se não se refletir, se não escrevermos, também os outros não sabem muito bem o que somos, o que fazemos e qual é a nossa importância. Vivemos
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numa sociedade em que o que é «invisível» não existe. Mas nós com esse trabalho do profissional que está presente e acompanha as pessoas a fazer essa gestão da sua vida e dos seus problemas e recursos, podemos criar uma consciência nos nossos utentes. E isso também faz parte da importância da
profissão” Paulina/E PS13.
Na perspetiva que aqui se apresenta, contrariar o «fechamento» da profissão
pode fazer-se na medida em que os profissionais forem capazes de mudar (e
de explicitar) a sua relação com as pessoas, com as comunidades e com os
contextos, em processos de aprendizagem com dimensões individuais e
coletivas.
“Mas, cada vez mais me tenho apercebido, até à conversa com pessoas que terminaram o doutoramento, e todas elas pugnam pela liberdade de pensamento e por não fechar o Serviço Social, não o confinar a uma área de saber espartilhada. E, portanto, se tenho argumentos a favor de colocar um espartilho e definir com meia dúzia de bases estruturais, também consigo ver a liberdade de uma disciplina dentro da área das ciências sociais, que se quer ligada à intervenção social, que tem que ser flexível às diferentes gerações, às mudanças de significados, aos desafios da pós-modernidade, que tem de estar suficientemente ampla para acompanhar as pessoas para onde elas tiverem que ir. Tenho a certeza que assim o Serviço Social vai garantir o acompanhamento da humanidade para onde ela for, sejam quais forem as questões com que essa humanidade tiver que se confrontar” Cristina/E TS14.
O processo de «abertura» aos contextos envolve necessariamente todos os
atores, pelo que a inclusão do assistente social em sistemas de pessoas que
aprendem, a partir da experiência e das suas competências próprias pode
ampliar processos de mudança. Estes processos (que precisam de integrar a
história e a cultura profissional) podem provocar simultaneamente novas
aprendizagens de «como intervir», a produção de novos conhecimentos a partir
de muitos «fazeres» refletidos, a intencionalidade e os significados de «um
fazer específico» e o reconhecimento e legitimidade dos profissionais e da
profissão.
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6.2. “ Trilhos seguros”12
Estes 'trilhos' têm uma componente importante de socialização organizacional,
uma visão da profissão que se confunde com a função e o emprego, onde a
posição hierárquica e a classificação profissional assumem protagonismo.
É uma forma identitária em que existe sobreposição entre o profissional e os
papeis que desempenha, com menor ou maior autonomia em relação aos
poderes instituídos.
Na terminologia de Dubar, salienta-se o desenho de uma «Identidade
bloqueada” e/ou de uma «forma estatutária».
Nas narrativas dos profissionais ‘séniores’ e em alguns dos ‘primeiros doutores’
percebe-se a existência de “Trilhos seguros” por mais que a ideia de uma
«carreira» tendencialmente ascendente não tenha norteado as suas opções e
os seus exercícios profissionais.
“…nós temos de ser felizes naquilo que fazemos - isso é fundamental, independentemente do que fizermos. Eu percebi logo muito cedo que nunca ia ficar rica com esta profissão, mas se calhar ia ficar muito mais rica como pessoa e isso para mim pesou mais do que o dinheiro. (…) Obviamente que gosto de dinheiro e gosto de viver bem e ter coisas boas (como toda a gente) mas não é isso que me move. Quando fiz esta opção de vida, percebi logo que não ia ganhar rios de dinheiro e, portanto, tinha que ser feliz. E, neste momento, sinto que tenho a compensação de outras coisas e só por isso vale a pena” Filipa/E AR12.
Seria como se sua proveniência social privilegiada lhes conferisse uma
estabilidade que, em conjunto com a facilidade em encontrar trabalho, lhes
permitia exercícios profissionais nos quais se expressavam e ‘eram felizes’ e,
por outro lado, lhes facilitasse condições para não se sentirem ‘presas’ a
trajetórias profissionais previsíveis e monótonas. Estas condições ‘de partida’
facilitam a autonomia profissional e a mobilidade organizacional, em narrativas
profissionais que são norteados pelo gosto e pelo desafio de uma profissão,
com a qual expressam grande compromisso.
Essa mesma expetativa de segurança e estabilidade na profissão e no trabalho
como «coisa certa» encontra-se nos dois assistentes sociais do «tempo da
12
É comum atribuir a designação de 'trilho' a um dispositivo que permita formar um caminho fixo para o suporte de ganchos ou rodas como, por exemplo, para instalar um caminho-de-ferro. A metáfora serve para falar de «carreiras» profissionais, com a ideia de uma trajetória previsível, fixa e ascendente.
440
luta»: apesar das suas trajetórias profissionais nómadas e da inquietação por
novos desafios. Mas são, de fato, os assistentes sociais do perfil identificado
como os «primeiros doutores» que constroem narrativas mais próximas da
identidade estatutária, dando relevo a trajetórias profissionais entendidas como
«carreiras», muito embora a presença dos valores profissionais nas suas
narrativas iniba vontades de poder e de ascensão hierárquica nas
organizações de trabalho.
- A relação de aprendizagem da profissão com ‘o que se sabe’
A construção desta tipologia, para além da formação inicial, tem fortes
contributos dos modos de entender a socialização organizacional e profissional,
bem como os modos e as formas de entender o conhecimento – a sua
apropriação, reprodução e produção. Em percursos de aprendizagem mais
convencionais destaca-se a menção à «matriz fundamental do Serviço Social»,
constituindo-se esta como uma forma de ordenamento da tensão entre o
Assistente Social generalista e o Assistente Social especialista.
“Uma das grandes vantagens do «social» é estar tudo ligado, como na vida e é a grande sorte que nós temos, porque a nossa cabeça abre-se para as várias ciências disciplinares e isso dá-nos uma visão muito abrangente” Filipa/E AR12. “Agora o que eu também acho é que e, independentemente das proximidades, o Serviço Social é treinado para fazer uma escuta diferente dos problemas sociais, nós temos um treino diferente das Psicologias. A forma como nós fazemos os «screnings» dos problemas tem qualquer coisa que é muito própria desta profissão e que eu também não sei explicar o que é. Mas digamos que nós, de repente, olhamos todo o contexto da pessoa e os outros técnicos são muito mais dirigidos a «isto ou àquilo». A nossa postura generalista pode vir a ser a nossa mais-valia, a abordagem generalista pode-nos dar o carácter distintivo... Agora, como é que a profissão vai agarrar isso para se distinguir é que eu não sei” Paulina/E PS13
Nestes percursos de aprendizagem a formação inicial tem vindo
tradicionalmente a apontar para o traço generalista, apesar de tendências
atuais (profissionais, organizacionais e de mercado de formação) para formar
«especialistas». Contudo, os argumentos relativos às supostas especialidades
são fundamentalmente da ordem dos contextos de atividade (Saúde,
441
Educação, Justiça…) ou do maior domínio sobre a informação relativa a
problemas sociais (Mau Trato e Vitimização de Crianças, Mulheres…;
Envelhecimento; Dependências e Doenças crónicas; …) e/ou a campos ou
ferramentas de conhecimento em muitos casos, importados de outras áreas
científicas (Informática, Gestão...).
Na construção desta tipologia serão ainda de mencionar argumentos favoráveis
e desfavoráveis à matriz generalista do Serviço Social, objeto de bastante
atenção na componente formativa dos estágios académicos. Os primeiros
evidenciam que lhe permite um posicionamento identitário mais identificado
com os «fenómenos totais» e mais apto para analisar, compreender e intervir
nas relações entre os componentes dos fenómenos ou das situações com que
trabalham; os segundos, evidenciam que o reconhecimento e legitimidade
profissional passam por uma crescente especialização, que possa seguir a
tendência de outras profissões sociais e credencie @s assistentes sociais junto
aos seus pares, públicos e potenciais empregadores.
Outra perspetiva defende que a especialização acarreta uma estratificação
profissional que contribui para reformular e subdividir as identidades
profissionais com outros profissionais de níveis de qualificação mais baixos.
Não obstante as várias tentativas de o fazer, primeiro com as Visitadoras e
Auxiliares Sociais (de que a entrevistada Maria dá testemunho) e
posteriormente, com outros profissionais com qualificação profissional de nível
secundário (sobretudo Educadores Sociais e Animadores Sócio- culturais), esta
estratégia confrontou-se com as próprias aspirações de mobilidade profissional
ascendente destes profissionais e com a ampliação da oferta formativa de nível
superior. De fato ficou instituída, sobretudo com o Processo de Bolonha, uma
tendência de uniformização do ensino superior, tendo todas estas diferentes
formações conseguido a possibilidade de alcançar a Licenciatura e a formação
pós-graduada – o que, no caso, eram ainda conquistas muito recentes para os
assistentes sociais (1989 e 1995 respetivamente).
Estas dinâmicas num campo profissional onde o Serviço Social manifestava
forças e fraquezas, poderes instalados e dificuldades de afirmação, têm sido
agravadas pelo crescimento exponencial da própria formação em Serviço
Social – atualmente com cerca de vinte cursos que formam assistentes sociais
442
e também com formações bietápicas no Ensino Politécnico que atribuem graus
diferenciados em termos profissionais.
Com os campos de formação e de trabalho em grande transformação, a
jurisdição profissional do Assistente Social fica dependente de múltiplos fatores
que ainda parecem fornecer argumentos para a necessidade de clarificar «a
matriz do Serviço Social». Ao nível da formação inicial (1º ciclo), o crescimento
acentuado e não sustentado da oferta formativa apresenta riscos, segundo
Francisco Branco (2008), quanto à qualidade da formação assegurada por
inúmeras instituições sem tradição, «Know-how” e condições estruturais para o
cumprimento desta missão.
“… tive uma grande mentora, que foi a Professora Maria Augusta Negreiros e abate sobre mim o peso que é o de ter tido a formação que ela nos deu e ela ter sido uma das pessoas que se preocupava muito com esta questão. Daquilo que ela me passou há uma necessidade de instituir um movimento interior, intrínseco à própria disciplina, no sentido de defender as matrizes do serviço social, suficientemente amplas para incorporar as várias abordagens, às várias áreas (da mais sistémica, à mais funcionalista ou à mais crítica)...Se queres que te diga tenho esta pedra no sapato por ainda não ter aprofundado nem posto em prática as ideias que tenho na cabeça, seria talvez o meu desafio em dar o meu contributo na afirmação da profissão. Dar esse contributo era dizer: - Muito bem, o serviço social enquanto área disciplinar rege-se por uma matriz específica que é esta e não pode ser tão fechada que depois morra com a evolução da humanidade (…), e também não pode ser tão aberta, que acabe por se diluir com todas as outras áreas das ciências sociais. Encontrar este ponto de equilíbrio seria um movimento interior” Cristina/E TS 14.
A Matriz de conhecimento em Serviço Social que se tenta representar na figura
que se segue está enquadrada pelo eixo que vai do polo Generalista ao polo
Especialista (no modo de entender a profissão) e pelo eixo que liga o polo
Individual e o polo Estrutural (no modo de privilegiar a atuação).
O cruzamento destes dois eixos, circunscreve quatro formas complementares
de entender o conhecimento: i) Os saberes de experiência de intervenção; ii)
Os saberes de organização e procedimentos; iii) Os saberes temáticos
especializados; iv) Os saberes de explicitação e investigação.
Estes diferentes saberes cruzam-se nas narrativas dos profissionais e cada
profissional faz deles uma estrutura combinada própria, com maior distância ou
maior proximidade em relação aos processos de aprofundamento, explicitação
e reconhecimento feitos pela academia, mas também com maior ou menor
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reconhecimento e valorização (para si e para os outros) dos saberes que
possui.
Matriz de conhecimento em Serviço Social
a) Em relação aos saberes de experiência
Eles saberes tendem a ser bastante generalistas, embora relacionados com
o(s) campo(s) de intervenção da organização/serviço onde o assistente social
exerce, como refere Jaime
“Até porque toda a minha formação académica, profissional, científica e também de exercício profissional foi sempre muito no domínio da relação entre a intervenção social e a intervenção judicial, uma articulação de saberes entre o social e o jurídico” Jaime/ E JF10.
António questiona o significado de «ser prático», identificando-se como
«tocador de ouvido» e referindo a falta de modelos teóricos de intervenção.
“Nós no Serviço Social, por vezes, não temos o hábito de concretizar coisas, fica-se muito no ‘paleio’. É-se «prático» naquele sentido em que se faz um conjunto de tarefas e pomos toda a gente a mexer, o problema é que, por vezes, não sabemos é para quê ou para onde. (…) O Serviço Social não me deu grandes modelos. Se calhar, se tivesse tido modelos, aonde é que poderíamos ter ido! Às vezes sinto-me como os tocadores de ouvido, como aqueles tipos que nunca foram para a escola e que não sabem ler uma pauta. Os tipos tocam música tão bem como os outros. Mas são uma espécie de músicos analfabetos” António/ E AF1.
Para o sentimento de um certo «analfabetismo teórico» contribuirá certamente
a noção de que as teorias e metodologias disponíveis (e acessíveis através da
formação inicial) são insuficientes para «ler» os contextos, as situações e os
problemas com que os assistentes sociais se confrontam.
saberes de experiência de
intervenção
saberes de organização e
procedimentos
saberes temáticos
especializados
saberes de explicitação e investigação
444
“…as assistentes sociais ainda são muito inseguras sobre o próprio saber. Primeiro, acho que há uma grande dificuldade de exposição. Os assistentes sociais têm imensa dificuldade em se expor, não sei porquê, mas nesta profissão assiste-se muito a isso. Depois, exatamente porque consideramos que as outras ciências sociais são mais importantes do que a nossa porque, de facto, elas têm um reconhecimento muito maior e nós somos o quê? Uma disciplina? Não sei… mas não temos a mesma projeção porque escrevemos muito pouco, comparando com os outros. Depois há um desfasamento entre o trabalho diário (digamos assim), a intervenção diária dos assistentes sociais e a academia. Os académicos estão lá para escrever e para refletir. Mas, muitas vezes, os assuntos da profissão deviam começar por aqui, por quem está no terreno todos os dias. Mas há um desfasamento, é como se fossemos linhas paralelas. E isso é mau porque assim não crescemos, é por isso que a gente não evolui” Paulina/E PS13
Contudo, a experiência profissional da investigadora também permite colocar a
hipótese de uma questão problemática (e não será a da insuficiência dos
«mapas» conceptuais e metodológicos) na necessidade de aumentar o
reconhecimento (auto, inter e hétero) do estatuto dos saberes experienciais
pelos profissionais, o que pode significar aumento da sua capacitação para
explicitar esses saberes e constituir novos referenciais, em diálogo com outras
fontes de conhecimento disponíveis mas também não negligenciando a
possibilidade de serem produtores de conhecimento.
“O que é que cada assistente social tem na sua cabeça, como é que construiu a forma de olhar a profissão, o que é para cada um/a é a «resolução dos problemas» ou o «acompanhamento das pessoas»? (...) Quanto mais trabalho se tem mais fácil é cair nesse erro [de não enquadrar teoricamente a intervenção] e eu própria já tenho dado conta de mim a escrever nos processos e nas minhas fichas e dizer: - Espera lá, mas isto enquadra-se aonde? É que nós temos mesmo de fazer esse treino. Eu acho que isso pode acontecer e pode acontecer se nós, não relermos as coisas outra vez, se não analisarmos. O que eu noto, ao fim destes anos de trabalho, é que agora, mais do que nunca, preciso de voltar a ver tudo. Quanto mais tempo vai passando, mais necessidade eu sinto de ler, o que já li ou outras coisas. O que hoje pensam sobre o assunto, porque se há livros novos, têm de pensar de forma diferente, do que pensavam naquele tempo em que me formei. Eu sinto essa necessidade” Paulina/E PS13.
Entre a vertente mais tradicional e individual do Serviço Social, eventualmente
aquela pela qual a profissão é mais (re) conhecida e distinguida na sua
especificidade, existe espaço para outras vertentes mais estruturais que
Malcolm Payne (1997) conjuga nas três visões já referidas: individualista-
reformista, socialista-coletivista e reflexiva-terapêutica, contemplando a
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possibilidade de integração da compreensão sociológica e psicológica,
articulada com o compromisso com a Justiça Social e os Direitos Humanos.
“…tive/tenho a oportunidade de fazer uma intervenção com um carácter mais individualizado (atendimento social e acompanhamento a famílias) e que é, sem dúvida, uma das maiores fontes de realização profissional e uma verdadeira ‘escola’, no sentido em que me obriga a uma grande exposição relacional e a bastante destreza e rapidez de raciocínio, pois as pessoas que nos procuram encontram-se na sua maioria em situação de fragilidade ou sofrimento e procuram uma resposta; e mesmo quando não temos essa resposta (o que acontece com frequência) acho que o facto de mostrarmos o maior respeito pela pessoa e pela sua situação e a ouvirmos e a ajudarmos a pensar sobre ela, só por si, já ajuda. Acho que é neste tipo de intervenção que o Assistente Social tem tradição e também é a esta intervenção que as pessoas nos associam. (…) Penso que hoje, os serviços ainda incutem muito esta perspetiva da intervenção assistencialista, porque a pretexto de ‘ser melhor’ para as pessoas, fidelizam a sua ‘clientela’. Não tenho nada contra atribuir benefícios ou distribuir recursos às pessoas, seja eles de que género forem, acho que há várias formas de os atribuir e que esse trabalho deve ser feito de forma a dignificar a pessoa e romper com o estigma que, muitas vezes, as pessoas têm de si próprias” Madalena/MM16.
Em outras narrativas encontra-se menção à dificuldade de reconhecimento do
saber experiencial e ao papel da formação pós-graduada, como referem
Paulina e António:
“Para além do que nós aprendemos teoricamente há sempre uma dimensão do que é experienciado, que às vezes, nem sabemos como é que encaixamos naquilo que aprendemos. A tal dialética entre a teoria e a prática... porque às vezes as coisas são tão intensas do ponto de vista da relação (nós aqui com as pessoas que estão em situação de crise, de desespero, tudo isso...), são tão intensas que nós não conseguimos logo assimilar ou formatar. Mas depois temos que ter algum distanciamento para nos sentarmos a refletir...e eu já tenho dado comigo a fazê-lo. Mas acho que só a maturidade pessoal é que faz com que nós tenhamos capacidade para nos distanciarmos e percebermos que temos que refletir” “ [voltar à faculdade para fazer o Mestrado] … foi um bocado voltar a aprender e perceber que uma pessoa aprendeu muito mais durante os percursos profissionais do que aquilo que pensava. Por outro lado, também é o aprender a sistematizar e outra vez a fazer leituras, a debater, etc., etc. E no meio daquele pessoal todo fiquei estupefacto por constatar que sempre sabia mais do que pensava…”
António/ E AF1
Este «voltar a aprender» aliado ao reconhecimento «do que se sabe» pela
experiencia refletida reposiciona os saberes práticos – na conceção de Barbier
(1996), entendidos como um meio de reaprender de outra forma e de assimilar
os conhecimentos anteriores através da sua mobilização na ação. O saber
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«composto» (articulando saberes de ação, saberes pedagógicos e normativos
e saber epistemológico), altamente contingente e com finalidades operacionais,
assemelha-se pouco ao saber científico.
Filomena a este propósito, menciona a sua forma de analisar, que parece típica
da cultura profissional dos assistentes sociais, embora não clarifique em que
medida ela é resultado ou resultante do seu percurso formativo:
“Eu andei em várias formações ao mesmo tempo e fiz outros cursos de outras coisas completamente diferentes porque eu achava que isso era interessante para ter uma visão do mundo e das diferenças de olhar o mundo, da maneira de estar e de pensar de cada um. Qualquer coisa que eu tenha que estudar ou analisar, a primeira proposta que eu faço a mim mesma é verificar, à volta daquilo, o que é que mexe, o que é que se move, vamos lá ver como é que é ” E Filomena / FA 7.
Para Jaime, o desafio que se coloca ao profissional é “… valorizar aquilo que
sabe fazer, aquilo que é seu de conhecimento, de aprendizagem, e depois
confrontá-lo com a sua realidade social e ver como é que pode inovar, e o que
é que necessita de aprender para o fazer bem …” Jaime/ E JF10.
Enquanto para Fernanda o «confronto com a prática» é o mote de uma
argumentação que acentua a divergência entre a formação inicial e os desafios
que se colocam ao exercício profissional:
“Aquela formação - na minha época e, pelos vistos, a de agora também, dá-nos a
sensação de sermos super-herói, de faz-tudo, não é? Como se tivéssemos uma varinha mágica, de fada! Depois nós não temos a maturidade para saber situar as coisas. E quando nos confrontamos com a prática, no terreno, percebemos que as coisas são diferentes” Fernanda / E FCR 5.
São muito diversas as conceções e os significados atribuídos ao ‘que se sabe’
mas o ideário de «super-herói» ou de «faz-tudo», ou ainda como refere Sousa
Almeida (2011), as “práticas discursivas encantatórias destinadas a garantir a
regulação social” têm um peso simbólico muito considerável.
Será como se alguns profissionais ainda oscilassem entre uma menorização do
seu conhecimento próprio (sobretudo face ao saber reconhecido pela
academia) e uma sobrevalorização da sua eficácia prática (sobretudo face aos
públicos e aos agentes que se movem no campo social); sendo que essa
‘eficácia prática’ também tem uma versão de saber, prático e contingente, mas
dificilmente explicitado e objetivado para partilha externa. Maria alerta para o
perigo de «achar que se sabe tudo».
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“Por muito que a gente queira mudar a imagem, por muito que a gente diga que os assistentes sociais já não são como eram antigamente... (e se calhar, não são; na essência, não serão - mas ainda trazem muito essa ‘bagagem’ e ainda se põem muito na posição de assistência)... e depois têm uma coisa complicada que é terem a mania que sabem tudo. A gente não sabe de tudo, dá uma ‘pincelada’ e talvez por isso é que sabemos tão pouco de nada. Eu realmente, como trabalhei com muita gente de áreas de formação diferentes, fui agarrando muita ‘coisa’, mas isso não me dá o direito de ter a mania que sei se tudo e, às vezes, também tenho” Maria / E RA5
Os saberes experienciais constituem boa parte do acervo específico de
conhecimento da profissão e estão presentes nas narrativas recolhidas;
contudo, os profissionais entrevistados ainda atribuem pouco valor à sua
explicitação e tendem a subvalorizá-lo por relação ao saber académico e o
próprio saber académico também tende a ter dificuldades no seu
reconhecimento como se constata na narrativa de Inês.
“E vou buscar ao Serviço Social este saber construído, que a Academia não considerava válido porque não era literário, académico, sistematizado, positivista, objetivista, neutro e lógico. E digo: - Não, esse não nos serve, o que nos serve está no paradigma emergente, está no paradigma interpretativista, está no construtivismo, está no sujeito epistémico, que constrói conhecimento na ação. Esse conhecimento que inclui a relação entre os sujeitos, o sujeito concreto, ligado ao meio e aos outros, é o que está na Mary Richmond e é o que atravessa o Social como um fio muito fininho. Porque ele pode ter mil ramos, ele é a seiva da árvore, pode ter mil braços desde a raiz, mil galhos, mil folhas, mas a seiva que circula é o fio condutor, é este conhecimento co construído pela vivência prática, pelo conhecimento académico e disciplinar e pela experiência, transformando-se numa estratégia da ação – e isto é uma especificidade” Inês/ E IV6.
Inês é uma das assistentes sociais que mais evidencia na sua narrativa o
conhecimento específico de Serviço Social e a necessidade deste ser
reconhecido (e de se dar a reconhecer) pelo saber académico:
“… o que eu acredito é que o Serviço Social tem um conhecimento estratégico, que tem toda a razão de existir na atualidade e que vai ser reconhecido como conhecimento académico. Não o situo no paradigma positivista, situo-o totalmente no paradigma emergente e, a fragilidade que ele tem, têm todas as ciências da atualidade: a fragilidade de operacionalizar um novo conhecimento que não pode ser só lógico e racional, que não pode ser neutro, que tem de ser comprometido. É complexo. E, por isso tem uma série de entradas, uma série de leituras e uma série de vertentes “ Inês/ E IV6.
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O otimismo expresso por esta assistente social em relação ao futuro da
profissão está ancorado na sua experiência profissional e de vida, mas também
na perspetiva conceptual que foi construindo.
“E vejo [o Serviço Social], na perspetiva sistémica, como um sistema aberto, como um sistema que interage com o ambiente e com os outros, mas como um sistema que é capaz de se auto-organizar. É capaz de, nas situações de maior desordem e de maior crise, criar um sistema novo e reformular-se como sistema vivo. Porque é assim que o Serviço Social tem sobrevivido. Ele tem sobrevivido dos seus próprios produtos, ele tem sobrevivido da sua própria aprendizagem, ele tem sobrevivido dentro do sistema dominante, nas suas margens, a partir da recriação do sistema, dentro e fora do sistema. (…) E aquilo que o Serviço Social já faz dentro da organização que é, de facto, viver em situações de desequilíbrio, viver em situações de articulação, de informação, comunicação e troca de energia, com os elementos internos e externos, pode fazer fora das organizações. Sempre foi isso que o Serviço Social fez! O Serviço Social sempre esteve na fronteira do sistema, lá onde a rutura acontece e é preciso agir… Se o Serviço Social só reproduzisse o sistema não tinha sobrevivido. Já tinha sido substituído, não tinha sobrevivido! “Inês/ E IV6.
A relação da aprendizagem da profissão com ‘o que se sabe’ aparece muito
mediada pelas aprendizagens tornadas conscientes a partir da experiência
refletida, constituindo esse acervo uma das maiores riquezas do saber próprio
da profissão, que carece de ser mais explicitado e tornado disponível para os
profissionais do campo e demais interessados. Para que tal possa mobilizar os
profissionais de forma crescente, importará refletir no potencial de incremento
de autoeficácia, de conhecimento e de autonomia que a explicitação destes
saberes experienciais pode trazer a cada um/a.
b) Em relação aos saberes de organização e procedimento
Estes saberes também tendem a ser generalistas dentro da «especialidade» e
da organização/serviço em que o profissional intervém. São saberes que se
encontram em maior interdependência com o poder, com o modelo
organizacional, com os dispositivos processuais e com a posição que o
assistente social ocupa na hierarquia; muitas vezes, são também estes os
saberes pelos quais os assistentes sociais são mais facilmente reconhecidos.
São saberes especialmente valorizados nas narrativas dos profissionais com
menor mobilidade organizacional, como é o caso dos «primeiros doutores»,
mas também identificados noutros perfis profissionais como as «seniores» -
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embora com exceções como são, por exemplo, os casos das narrativas de
Filomena ou Maria, que apresentam argumentos mais próximos dos saberes
de explicitação e investigação.
“Ao longo destes anos experimentaram-se tantos modelos, chamem-se lá os nomes que se chamarem e enquadrem-se lá nas teorias que quiserem, mas tentaram de todas as formas organizar os serviços... concentra, desconcentra, concentra, desconcentra mais, dá maior autonomia, volta a concentrar e tudo isto aqui se passa sem haver avaliação nenhuma dos impactos de cada mudança” E Filomena / FA7. “Em vinte e quatro anos assisti a tudo quanto foi mudança: mudança de chefe, mudança de estrutura, mudança do Ministério, mudou o nome do serviço, todos os anos mudava qualquer coisa. Então com aquelas mudanças sucessivas de governos, cada ministro que vinha inventava uma maneira diferente e punha lá outro diretor novo. Tivemos lá um diretor que, quando chegou pôs tudo de ‘pantanas’ porque achava que nós só trabalhávamos fora de horas e não podia ser. Acabou com tudo o que era trabalho comunitário…” Maria/ E RA2
Ambas, nas suas perspetivas complementares construídas em trajetórias
dentro dos serviços da Segurança Social, argumentam que a sucessão de
modelos organizativos e organizacionais impostos de ‘cima para baixo’, sem
avaliação de impacto e sem atenção os agentes internos, à experiência, aos
públicos e às mutações sociais revelam a variedade de importância e peso
relativo atribuídos às políticas sociais, mas também a posição de bastante
subalternidade destes profissionais.
“ Somos uma profissão de pobres”, diz Maria (E RA2), querendo significar que
na afirmação social dos grupos profissionais, parte da valoração é dada pela
importância atribuída aos públicos da profissão e que, o entendimento de que
trabalhamos exclusivamente ou prioritariamente com «os pobres», empobrece
a construção identitária e também as zonas de autonomia e construção do
sujeito coletivo.
A excessiva focagem da profissão na pobreza e, em especial, nas condições
materiais de vida e no controlo social, constituem argumentos do
‘empobrecimento’ e do ‘funcionalismo’ dos profissionais.
Jaime e António, de diferentes formas, evocam argumentos de relação com os
poderes instituídos para pontuar alguns constrangimentos profissionais. Para
Jaime, a questão da autonomia profissional face aos poderes instituídos
aparece como fundamental para que o assistente social deixe de ser um
agente de controlo.
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“Coexistem perspetivas e orientações diferentes e nós seriamos a classe profissional mais à-vontade, entre os grupos profissionais que trabalham no campo social, que estaríamos mais seguros, no sentido de discutir a reorganização do serviços socais estatais, dos serviços sociais públicos - numa articulação direta com os privados, com as comunidades locais, com os cidadãos, porque isso é importante para que haja aqui vetores de co-responsabilização social e de participação interativa. Agora, não podemos é fazer apenas o discurso do poder... parece que estamos a defender o Estado. Ou, por oposição, voltamos ao velho registo de que eu lhe falava há pouco, que é «os assistentes sociais como aqueles que podem provocar perturbação». Então, para não provocarem perturbação, nós colocamos os assistentes sociais numa lógica de controlo, para não haver grandes atritos, nem grandes problemas” Jaime/ E JF10.
António argumenta com clareza que “os procedimentos não são saber...mas
dão-nos a sensação de poder, pensa-se que já se sabe tudo.” A sensação de
poder decorrente do domínio das rotinas organizacionais é confundida por
vezes, com ‘saber’ mas, para António, não são ‘saber’ e as partes boas da
profissão, aquelas com que se identifica, nunca são as que ocorrem dentro da
instituição.
Este desconforto com as organizações, com as suas políticas, as suas práticas
e os seus procedimentos colocam, por vezes, os assistentes sociais em papéis
paradoxais de trabalhadores assalariados em que muita da sua intervenção
ocorre «fora» e «para além» da legitimidade, das regras e dos canais definidos
pelas organizações – como se os assistentes sociais fossem «empresários de
si» no sentido em que atuam nos espaços de não-formalidade ou de
informalidade entre serviços, poderes e recursos - são estes os espaços de
«formigas do sistema» a que alguns colaboradores deste estudo se referem.
No domínio dos saberes contingentes aos contextos organizacionais e muito
interdependentes dos poderes instituídos, também é pontuada a
competitividade entre profissionais e o mito do herói/heroína:
“…mas a minha experiência diz-me que quem trabalha nestas áreas, se não tiver princípios e uma formação pessoal muito consistente, torna-se facilmente uma pessoa amargurada, má pessoa mesmo e que, por vezes, roça a loucura, sabes? Paralelamente, existem fatores externos que também contribuem para esta situação: por exemplo, não é obrigatória a supervisão técnica dos profissionais, não lhes é dada oportunidade para poderem conversar e compreender as suas dificuldades, para falar e pensar sobre a sua ação sem o medo (sempre presente) de ser julgado...há muito a ideia que temos de ser heróis e heroínas na prática da nossa profissão” Sofia/ E ZC4.
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As diferentes perspetivas que os profissionais adotam no seu posicionamento
na organização onde/para quem trabalham e o patamar de autonomia
profissional que estão dispostos a negociar e a aceitar, interferem na relação
que estabelecem com a imagem de si, dos outros, com a aprendizagem dos
saberes procedimentais da organização e também com a(s) forma(s) como
lhes atribuem significado.
“… há profissão! Agora as pessoas não percebem porquê e às vezes vão buscar a ideia mais antiquada possível da profissão, e é ‘lixado’ porque tu próprio vais ao mais tradicional porque tens que estabelecer o diálogo com os outros, até para lhes desmontar á posteriori, como ‘as coisas’ são diferentes. Portanto, há alguma culpa partilhada que está aqui no meio - as coisas são o que parecem, também, deixemo-nos de disfarces! No Curso e no Instituto não conseguiram perceber isso: na profissão, nós somos também aquilo que parecemos. (…) a imagem corresponde também a alguma coisa interior da atuação profissional, deixemo-nos de ‘coisas’. Eu acho que neste momento é uma profissão pré-moderna, tipicamente pré-moderna. E não conseguiu evoluir porquê? Porque vinculou-se a instituições e modelos institucionais que eram do passado, ou seja, não se transpôs, nem fez o esforço de evoluir…Como não tem um corpo de saberes, único e próprio, tem que ir ‘beber’ aos outros; ou tinha técnicas muito fortes e muito importantes, como a Engenharia tem relativamente à Física e à Química, etc., mas não é o caso do Serviço Social” António/ E AF1.
Em trajetórias de grande estabilidade organizacional, encontram-se narrativas
que elegem a «segurança» e a «estabilidade» em detrimento de contextos
organizacionais com mais desafio, argumentando com vontades adiadas de
mudança, mas também com as vantagens atribuídas ao aumento do
conhecimento do contexto organizacional, do território, dos seus agentes no
âmbito de intervenção em que atuam; em narrativas de maior mobilidade, são
pontuadas mais frequentemente perspetivas críticas dos processos e dos
poderes institucionais.
Neste campo, foram identificadas nas narrativas (referindo-se a outros colegas
e não a si próprios) estratégias de assistentes sociais que são «vítimas e
cúmplices» das lógicas institucionais, quando assumem a vitimização do
sistema em que atuam mas também a reprodução desse mesmo sistema junto
das populações com quem trabalham, numa espécie de espiral mórbida de
vitimização e ascendência /controlo sobre o outro.
O mal-estar, o absentismo, a alienação ou mesmo o «burn-out» mencionados
por alguns entrevistados aparecem como argumentos de efeito dos contextos
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sobre os profissionais, mas seguramente ampliam também as consequências
sobre as intervenções levadas a cabo, sobre os públicos e sobre a própria
visibilidade pública da profissão.
“Conheço muitos colegas com graus de frustração e ‘burn out’ muito elevados que ficam doentes e não têm utilidade e acredito que a sua intervenção seria mais eficaz (e gratificante) com a adoção de outras metodologias e a utilização de outros conhecimentos ainda mais alargados. Uma das conclusões a que cheguei é que estes profissionais conseguiriam superar muitas das dificuldades que enfrentam se existisse uma regular discussão de casos, uma formação periódica no posto de trabalho, um bom ambiente de trabalho e superiores hierárquicos que motivassem e incentivassem” Mafalda/ Q MV17.
A inexistência, ou insuficiência, de condições que facilitem aos interventores
sociais e, em particular aos Assistentes Sociais, o exercício profissional
refletido tem dificultado a capacidade negocial destes técnicos e o aumento de
uma «competência coletiva» (Courtois et al, 1996), entendida como identidade
coletiva produzida na ação coletiva.
Armando, a propósito da imagem e dos valores da profissão, menciona uma
deontologia comprometida com a qualidade da prática profissional.
“Sinto-me, de facto, um assistente social, pois penso ter interiorizado os valores principais do Serviço Social e o que deve ser uma prática profissional cuidada e em constante atualização. Considero que um dos valores que devemos ter presente é o da necessidade de primar pela qualidade do trabalho do Serviço Social a partir da nossa prática profissional, porque um ‘mau’ desempenho individual fecha muitas portas. Devemos ter consciência que a dignificação da imagem do Serviço Social passa em primeiro lugar pelo trabalho de cada profissional, e não apenas (ou sobretudo) a partir de uma qualquer entidade reguladora ou de um regulamento. Assim, entendo que não devemos ficar à espera de uma “ordem milagrosa” para modificar as práticas profissionais que estão erradas, ou desajustadas e que, nós sabemos que não dignificam a profissão. A defesa do Serviço Social começa na intervenção de cada profissional” Armando/ Q AP19.
Outros Assistentes Sociais como Maria e Filomena, identificam nos colegas
mais novos um aumento da vertente mais tecnológica, em detrimento da
vertente mais humanista e relacional mas também o agravamento das
condições de trabalho em que exercem e às quais se sujeitam.
“Lidei com algumas colegas acabadas de formar, algumas muito boas, que me pareceram pessoas realmente abertas, mas lidei com outras que me fizeram muita impressão, porque as vi muito agarradas a um computador, muito tecnocratas: sabiam muito bem fazer quadros bonitos no computador, sabiam muito bem usar os programas informáticos todos e fazer relatórios lindíssimos, só não sabiam era o que queriam dizer as
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coisas que tinham que meter nos quadros. Achei (não posso generalizar) … mas foram muito os casos em que me desiludiram no aspeto relacional, achei-as muito teóricas, muito... informatizadas, pronto” Maria / E RA 2 . “... os mais novos que saltitam de trabalho em trabalho, ou de função em função, são obrigados às vezes, a fazer coisas muito estranhas, algumas das quais até desonestas, alguns vão para empresas que ainda por cima os incitam a fazer coisas de má fé... (…) vão parar por falta de oportunidade de trabalho no campo profissional... e são submetidas a regimes de trabalho muito difíceis” Filomena/ FA 7.
Madalena é uma das colaboradoras deste estudo que, apesar dos saberes de
organização e procedimento, pontua positivamente o espaço profissional que
foi conquistando.
“Quando cheguei não havia Assistente Social e o atendimento social era feito por uma colega que não é Assistente Social (em boa verdade, devo-lhe a minha integração e uma postura de abertura que me deixou construir a minha identidade profissional) e foi, a pouco e pouco, que fui construindo o meu desempenho profissional - e hoje a população sabe perfeitamente quem sou e qual o meu papel. Embora, por ser assistente social, tenha herdado um conjunto de «berbicachos» que as pessoas acham que são nossa tarefa e que têm a ver com burocracias (por exemplo, o preenchimento de formulários de habitação social, ou os ‘papéis’ dos programas da Segurança Social) e ainda não consegui quebrar esta associação que as pessoas fazem entre o preenchimento de papéis e as funções do assistente social” Madalena/ Q MM16.
A associação dos assistentes sociais com os «papéis e procedimentos» é algo
que parece fazer parte da imagem da profissão e de um certo perfil profissional
atribuído e/ou esperado ainda pelas organizações e que, para alguns
assistentes sociais, será uma zona de conforto e de poder. Contudo, é de
salientar a narrativa ontológica (Paul Ricour, 1995) de alguns entrevistados,
com a produção de sentido dos atores em processos de construção identitária
simultaneamente, múltiplos, contínuos e, por vezes, contraditórios.
Estes processos que oscilam entre o polo da estabilidade e da alteridade
permitem, na terminologia de Ricour (1990) «colocar em intriga uma
personagem». E é de uma «personagem» que muitas vezes se trata nestes
entendimentos dos saberes de organização e procedimento, na medida em que
os assistentes sociais que os tendem a privilegiar adotam «papéis» mais ou
menos rígidos e norteadores do seu comportamento, das interações e dos
processos de aprendizagem; por outro lado, na narrativa de outros
profissionais, como na de António, é identificável a dificuldade de desempenhar
o «personagem» esperado mas também o aumento do reportório de
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«personagens» que podem fazer com que o ator se sirva deles e não o
contrário.
“…estou em aprendizagem e, às vezes, isso é difícil. Não me dão muito espaço e eu, por vezes, também faço como fazia antes, e já não é bem assim. Mas depois também já vou ‘ganhando a mão’, e aqui há tempos estava assim num dia em que não me correram muito bem as coisas: - Este erro! Errar com esta idade, já com um estatuto e errar certas coisas que parecem ser básicas... é difícil, é necessária uma adaptação difícil. Mas às vezes, nestes momentos mais difíceis, penso num dito chinês que li algures e que diz assim: «O cavalo velho fará o caminho», ou seja, quando há uma situação de dificuldade, ‘o cavalo velho’ é o que faz o caminho e aponta a direção” António/ AF1.
Talvez o mencionado processo de ‘estar em aprendizagem’ permita aos
profissionais ‘ganhar a mão’, na medida em que lhes for possível a
desinstalação do conforto adquirido nos saberes de organização e
procedimento e se permitam errar. A coragem necessária a este processo é um
dos ingredientes a ter em conta, para além das circunstâncias da relação de
assalariado, com ou sem trabalho.
c) Em relação aos saberes temáticos especializados
Podem ter uma maior aproximação à especialidade por via do aprofundamento
da formação formal e académica e/ou por via do aprofundamento de uma
«área» de intervenção (Saúde, Habitação, …) ou ainda por via de uma maior
pertença ou conforto com determinada perspetiva do exercício profissional
(Formação, Animação, Gestão/Informática, …).
No caso da formação académica pós-graduada, existe uma valorização
explícita da via formal.
“Eu penso que a formação curricular, inicial e pós-graduada, de qualificação, toda ela é importante, do ponto de vista de nos dar um método, uma disciplina, um rigor, e uma coerência científica dentro da área em que estamos a trabalhar e a intervir; e dá-nos uma terminologia, uma linguagem comum para trabalharmos dentro daquela temática e daquele problema. Acho que aí sou defensor dessa formação estruturada, pensada, fundamentada e que seja de qualificação, que qualifica para ir mais longe – dá elementos para que o profissional, se quiser, possa avançar muito mais para além daquilo que está a fazer. Acho que esta é uma dimensão importante” Jaime/ E JF10.
No entanto, a formação pós-graduada é simultaneamente referida como uma
oportunidade de tomada de consciência e uma fonte de aumento dos dilemas
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que se colocam aos profissionais, quer por via da dificuldade em mobilizar o
aprofundamento teórico e metodológico para as respetivas práticas, quer por
via da dificuldade de aproximação ao sujeito coletivo da profissão e à respetiva
construção identitária.
“Depois do Mestrado, agora é que eu percebo... porque fui para uma área muito prática, com um trabalho muito estruturado e o meu impacto agora tem sido, em termos de trabalho o seguinte: um dilema entre os conhecimentos teóricos que vinham ‘fresquinhos’ do Mestrado (e que eu estava a pensar aplicar nas organizações) e depois o Serviço Social e a Animação, que são relativamente desestruturados e não podem deixar de ser desestruturados, nem deixar o informal porque se calhar perdem a sua essência, mas por outro lado, têm de ter uma estrutura” António/E AF1. “Acho que também continuamos numa lógica de ensino, muito na vertente de «na universidade ensina-se a fazer e na prática aplica-se» e depois não há mais o retorno daquilo que se aplica, para a universidade continuar a aprofundar o «como fazer», aprofundar pelo menos o quadro metodológico que é uma das questões que eu acho fundamental. O que é que eu identifico? Que os profissionais estão sempre à procura de conhecimentos de sustentação, de informação para aquilo que estão a fazer noutras áreas científicas e não na sua área nuclear, na sua área específica – isto tem que nos dizer alguma coisa. A interpretação que eu faço é a de que os profissionais consideram que o conhecimento de Serviço Social não lhes dá segurança, não lhes dá confiança; pensam que só indo buscar fora é que podem obter o contributo que procuram. Mas depois, a seguir, quando acabam essa formação deparam-se com um dilema ainda maior, que é assim: - Mas agora, o que é que eu sou? Querem que eu seja assistente social mas eu já não estou a fazer trabalho de assistente social, já estou a fazer trabalho de Psicologia ou de Sociologia ou de Jurista, ou de outra coisa qualquer, há aqui qualquer coisa que não está bem comigo. Isto que me está a solicitar está a conflituar comigo nos princípios do Serviço Social” Jaime/ E JF10.
O aumento da formação pós-graduada também fornece argumentos para os
dilemas profissionais e para a dificuldade de valorização, individual e coletiva,
dos assistentes sociais; tanto mais quanto a formação for hibrida e construída
em outras ‘courelas’ disciplinares (no discurso de Jaime). Contudo, perspetivas
como a de Filomena defendem, não obstante o recurso à formação formal
contínua como via de ‘especialização’ e/ou de credenciação de conhecimentos,
que o processo de construção de conhecimento exige a integração complexa
de saberes de várias origens.
“Eu acho que o conhecimento que se constrói com os outros, na vida, é um conhecimento estruturante porque no ‘fim das contas’, o que vai valer a cada um de nós é aquilo que foi aprendendo e guardando ao longo da
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vida. E, de facto, deve ser muito difícil dizer o que está na página quatrocentos e vinte e três do «calhamaço» que eu li, não sei quando. Agora o conjunto das leituras daqueles «calhamaços», mais os pensamentos que os «calhamaços» me suscitaram e as associações que eu fiz em várias áreas da minha vida, mais a vida social... talvez dê um conhecimento específico. Outra coisa que eu acho importante é interagir com pessoas diferentes, que pensem e vivam de maneiras diferentes da nossa: eu sempre funcionei entre grupos muito diferentes e acho que isso é importante” E Filomena/ FA 7.
No caso da via de especialização ou aprofundamento de determinada «área»
de intervenção (Saúde, Habitação, Justiça …) foi identificado um leque variado
de significados, dos quais salientamos alguns:
“…eu acho que na Saúde, especialmente nos Hospitais, os Assistentes Sociais deviam fazer um internato de Serviço Social, como os médicos fazem o internato médico” E Fernanda /FCR5 “E aqui (no IPO], como é uma situação de continuidade, é uma doença crónica, as pessoas vêm várias vezes, nós acabamos por ver essa pessoa várias vezes no tempo, mesmo que não haja uma situação direta, há uma continuidade, vemos se o doente piorou, se melhorou, se a família está bem, se não está e só essa pequena abordagem, às vezes, ajuda-os no percurso deles. E nós sentimo-nos bem por podermos ajudar com os nossos conhecimentos nesse sentido. E eu também gosto do trabalho multidisciplinar, gosto da partilha de informação com os outros técnicos, gosto de ouvir o que os outros técnicos pensam sobre a mesma situação, com outros olhares...e isso em termos hospitalares faz parte da rotina e é uma rotina que eu gosto porque aprendo, porque me abre um bocadinho os meus ângulos de visão, porque me ajuda a ter uma visão mais global da pessoa. (…) …nós aprendemos muito com os outros, até para nos reequacionamos em termos de atitude e isso eu acho importante” Paulina/E PS13.
“Estávamos a funcionar numa antiga cela, mas era uma equipa fantástica, porque era uma equipa mista, com homens e mulheres (uma coisa rara na nossa profissão) portanto era uma equipa muito equilibrada, uma equipa jovem, apesar de eu na altura ser a mais jovem. (…) Eu ainda hoje me recordo daquela experiência com muita saudade porque efetivamente o trabalho nas prisões estava no meu coração. (…) Apesar de ser também uma experiência de trabalho muito pesado. Durante esses anos tive situações muito complicadas, o que garante alguns constrangimentos e desilusões, porque não é fácil trabalhar num estabelecimento prisional ainda para mais sendo uma pessoa muito nova. Eu todos os dias sentia o peso da instituição, desde a revista na entrada até ao caminho até ao local de trabalho dentro da prisão a ouvir coisas que nunca tinha ouvido na vida, algumas complicações entre técnicas e guardas prisionais, e até as rivalidades que existiam na altura entre o IRS e a Direção geral dos serviços prisionais, mas mesmo assim eu recordo este período de trabalho com saudade” Filipa/E AR12.
“Eu estou a trabalhar no núcleo de Infância [de uma autarquia], o nosso objetivo é intervir com as instituições sem fins lucrativos que trabalham nesta área e a equipa é composta por duas assistentes sociais, uma
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educadora social e uma educadora de infância. Eu acho que nós, enquanto assistentes sociais, temos uma sensibilidade diferente porque nós não nos focamos só na criança, ou na educadora, ou na família...quando eu vou a uma instituição estou sensível a muitos aspetos e à interação entre eles, desde as crianças, os adultos que trabalham com elas, as instalações, o ambiente, as famílias, abrange-se um pouco de tudo e, em termos de diagnóstico é mais complexo no sentido de perceber o que se passa e qual o apoio ou intervenção prioritários. Os outros profissionais dirigem-se mais para a sua área de especialidade, não têm esta abrangência” Diana/ E AF15.
Recorda-se C. Josso (2002) a propósito da possibilidade de mobilização de
uma pluralidade de registos. A «especialização», quando se trata de trabalho
social, é algo que faz apelo à natureza interativa e composta dos saberes, das
competências e do conhecimento que vão sendo construídos ao longo da vida,
num movimento que ultrapassa uma «falsa racionalidade» como diria Edgar
Morin (2000).
Para além do local/área de intervenção/problemática com que intervém que
exige variáveis graus de especialização de conhecimentos e de desempenhos,
a profissão parece ter uma «fluidez» que contribui para a sua sobrevivência e
também para a possibilidade de se redefinir constantemente a si própria ou de
se reinventar.
O para alguns é fragilidade para outros é potencialidade, no sentido em que
uma identidade profissional «flutuante» (Riffault, 2007) permite a «mistura» tão
característica do Serviço Social e as abordagens complexas das situações-
problema, mesmo em situações ou em contextos de exercícios profissionais
que requerem bastante ‘especialização’.
“… isto só se aprende com a prática. Os livros são muito importantes, mas não te dão a bagagem para tudo. E é mesmo através do trabalho efetivo que tu vais encontrar as tuas dificuldades. (…) Procurei, informei-me, (…) preparei-me. Preparei-me, neste sentido, porque eu não fazia a menor ideia do que é que fazia uma Junta de Freguesia. (…) Quem trabalha diretamente com pessoas que não fazem a menor ideia do que é o trabalho social enfrenta uma situação muito complicada. Ou tu vais pelo que te dizem, ou então, acatas algumas coisas mas pedes autorização e vais à procura, vais bater às portas. Foi assim que eu fiz” Irene/ E IS11.
No caso de uma maior pertença ou conforto com determinada perspetiva da
profissão (Formação, Animação…), os significados aparecem situados entre o
polo da continuidade/especificidade e o da alternativa à via profissional que se
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considera mais tradicional e corrente e com a qual não è produzida
identificação.
“[A opção pela formação] É uma continuidade, uma especificidade e a sensação de uma maior eficácia.(…) E comecei a pensar que aquilo que é o suporte do Serviço Social, aquilo que hoje chamamos o empowerment (na altura não sabíamos dizer isso), talvez fosse mais eficaz através da formação. (…) Ou seja, quando eu opto pela formação comportamental eu estou claramente na mesma linha que me fez optar pelo Serviço Social, ou seja, provocar que as pessoas sejam donas de si próprias, provocar que as pessoas tenham direito ao seu projeto de vida, provocar que as pessoas sintam as contrariedades como provisórias e não definitivas” E Helena/ HS 3. “…o que salva mesmo o Serviço Social nas autarquias é a parte de animação. Se não fosse a animação... (…) É uma animação /educação informal ou não formal. Era a animação /dinamização do tecido social e de iniciativas locais para outras coisas - era um bocado ingénua, um bocadinho espontânea, mas considero que era uma boa parte do Serviço Social; porque a outra parte, a burocrática, acho que não interessa... mas ainda continua” António / E AF1. “Atualmente estou a tentar estabelecer-me como ‘coach’ num mercado competitivo e em rápido crescimento; tenho clientes de todas as nacionalidades com quem trabalho no seu processo de mudança por períodos de três meses, acordando a alteração de comportamentos desejada, no sentido de alcançar objetivos muito concretos e definidos pelas próprias pessoas” Mafalda/Q MV17.
Estas opções de «especialidade» por outros saberes e fazeres profissionais
correspondem a vias de pertença, de oportunidade e/ou de realização
profissional com enfoque num campo social mais largo que volta a englobar o
educativo e o cultural; estas opções também podem implicar diferentes
significados conforme se entenda possível continuar a «ser» ou deixar de
«ser», assistente social.
A nossa experiência no campo profissional também nos permite saber que
existem percursos de dissidência, de desistência e/ou de abandono da
profissão, mas essas foram situações que não privilegiámos na amostra de
conveniência.
Contudo, em algumas narrativas foram relatadas interrupções temporárias na
profissão em que as pessoas dizem ter feito «outras coisas» sobretudo pela
necessidade de garantir um rendimento; também, em outros casos,
argumentaram com uma certa vontade em cortar com «o canto da sereia» do
campo social, tentando ‘a sorte’ em ocupações criativas, artísticas ou
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associativas que não tenham nada a ver com o social. O que parece ser
evidente nas diferentes narrativas é a necessidade de atribuir sentido ao que
faz e ao que se pretende aprender, quer seja em continuidade ou em
divergência com «o que se sabe».
“…a profissão sobrevive enquanto profissão, eu penso que sim; e cada vez em mais diferentes campos de ação. E não tenho medo nenhum de me misturar com os outros todos [profissionais de outras formações] porque eu preciso deles, nem tenho medo da perca de empregabilidade no Estado, porque temos um potencial... cada vez mais, vamos trabalhar junto da sociedade civil e junto de grupos de cidadãos organizados, cada vez mais vamos fazer organização, na solidariedade e fora da lógica dominante, cada vez mais! E aquilo que o Serviço Social já faz dentro da organização que é, de facto, viver em situações de desequilíbrio, viver em situações de articulação, de informação, comunicação e troca de energia, com os elementos internos e externos, pode fazer fora das organizações. Sempre foi isso que o Serviço Social fez! O Serviço Social sempre esteve na fronteira do sistema, lá onde a rutura acontece e é preciso agir… Se o Serviço Social só reproduzisse o sistema não tinha sobrevivido. Já tinha sido substituído, não tinha sobrevivido! “ Inês / E IV6
d) Em relação aos saberes de explicitação e de investigação
As narrativas evidenciam um leque de argumentos diversos para estes saberes
que vão desde a inventariação dos motivos pelos quais os assistentes sociais
explicitam pouco o que fazem e o que pensam sobre o que fazem, até
argumentos mais normativos sobre o «dever» de investigar e produzir
conhecimento próprio respetivamente, nos argumentos de Irene, de Jaime e de
Helena.
Nos primeiros, Irene destaca a dificuldade e o receio em colocar no papel o que
se experiencia, a situação de subjugação hierárquica, o controlo dos serviços
sobre o que se escreve e fala fora das organizações, a falta de convites e o
sentimento de que os assistentes sociais não precisam de mais
reconhecimento do que o que obtém nas esferas de proximidade do seu
desempenho.
“Por vezes, temos alguma dificuldade de colocar no papel... porque nós conseguimos de uma forma prática colocar as questões, mas quem está nestas áreas, além das IPSS, que são muito controladoras, os serviços onde nós atuamos querem ter o controlo sobre o que fazemos e toda a gente tem receio do que possamos dizer, receio se o serviço é colocado em causa ou se dizemos uma coisa que não cai tão bem, então espera
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lá… Perante quem é que as pessoas têm de se colocar de acordo? É perante o serviço que lhe paga o vencimento. (…) Como somos profissionais muito do campo, da prática, não somos muito convidados a produzir reflexões escritas. (…) Nós, os assistentes sociais do terreno, não somos convidados a planear projetos para depois serem aplicados na prática. A não ser que seja uma figura ou outra, de mais relevo, por exceção. Se calhar faz-nos falta a tal identificação com a profissão, sentirmo-nos mais valorizados de fora. (…) É a imagem da pessoa ou é a imagem do serviço que se vai representar? Neste caso é a imagem do serviço. Somos nós que não nos conseguimos impor? Eu acho que não passa por aí. Acho é que ainda há muito aquele estereótipo do assistente social como trabalhador por conta de outrem, com um bocadinho de receio de nos aventurarmos. Somos tão capazes como os outros. (…) “Eu conduzo a minha intervenção mas não é para obter reconhecimento. Faço o melhor que eu sei mas, nesta Junta de Freguesia, sinto que sou reconhecida sobretudo pelas outras instituições e que sou muito acarinhada por elas. (...) Era importante sermos chamados a explicar como é que é a nossa função, o que é que nós fazemos, como é que produzimos e como é que depois se transporta esse conhecimento para o exterior” Irene/ E IS11.
Por outro lado, existem também argumentos (entre muitos outros, mais
compreensivos, interpretativos e/ou normativos) que salientam aspetos:
- de poder
“Porque depois, se calhar, vem um sociólogo que fez um trabalho de
investigação... se calhar são pessoas e instituições que têm muito mais peso junto do poder. Não é tradição, é peso, lobby - e isso é outra coisa onde nós não encaixamos” Irene/E IS11;
- de modelos e de ‘modas’
“Nós como andamos muito atrás das modas, é o seguinte, andamos ainda a estruturar o que os outros andam a desestruturar” António/E AF1.
- de ‘peso’ da formação inicial
“Era uma formação que levantava várias quezílias políticas (…). Quando me envolvi nessas discussões políticas dei-me conta do peso ideológico que havia sobre o Serviço Social, porque éramos vistos como aqueles que poderiam provocar a rebelião, ou seja, poderiam levar os ‘utentes’, ou os sujeitos das camadas mais desprotegidas a ter uma influência nefasta sobre o país organizado e sobre os modelos de organização do país. (…) Recordo também que, de facto, uma das coisas importantes, era a escola viva, ou seja, a escola com dinâmica, a escola participativa, em que a relação de proximidade, debate, reflexão, discussão entre os profissionais, entre os professores, com a comunidade local, tudo isso era uma vivência extraordinária e que trouxe uma grande riqueza para os domínios da maturidade e das competências profissionais que nós vamos adquirindo e desenvolvendo. Outra questão é o enfoque da dimensão prática, da formação com casos práticos, com questões concretas, com realidades sociais do dia-a-dia... o nós conseguirmos sair da porta do Instituto e olhar à volta e ver uma
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realidade social que nos diz respeito enquanto cidadãos, mas principalmente enquanto profissionais, enquanto assistentes sociais” Jaime / E JF10
- de reconhecimento científico da produção escrita dos assistentes sociais e de
validação e ‘utilização’ pelos profissionais
“Eu penso que a produção escrita está no meio académico porque há um problema de reconhecimento científico dessa produção que não foi tratado ainda, ainda não foi discutido, não foi exposto, no âmbito da classe profissional; ou seja, eu nunca tive nenhum documento que me informasse, por exemplo, que a Associação dos Profissionais de Serviço Social organizava um debate sobre «pesquisa em serviço social, contributos para a prática profissional». Esse é um dos primeiros problemas do reconhecimento: se não é a própria classe profissional a impor esse reconhecimento, não são as outras que nos vão levar a esse reconhecimento. (…) Depois, porque parece que olhamos para a produção científica como mero suporte da academia ou do sistema de formação – isso é um erro, é um equívoco pura e simplesmente! Se nós fizermos uma análise aprofundada da produção científica, mesmo dentro dos produtos formativos da academia, eles estão todos virados para a prática profissional, ou seja, eles analisam em 99% dos casos, as práticas profissionais. E depois não há devolução à prática profissional; ou seja, parece que se encerra dentro de uma concha, parece que existe aqui um medo inconsciente, de não ser validado pelo profissional que está no terreno” Jaime/ E JF10.
- de divulgação e reconhecimento do bom trabalho que se faz
“Há imensa gente a fazer trabalhos excelentes, e que não é reconhecida. E não vejo nenhuma forma de avaliação que permita alterar isso. Era aqui, que eu acho, mais uma vez, que a Associação dos Profissionais de Serviço Social e as pessoas que estão neste momento na associação e que têm conhecimentos no plano teórico e no plano prático, deviam influenciar a opinião pública e atuar E Filomena / FA 7.
- de esforço coletivo
“Eu acho que os outros profissionais que trabalham mais a nível liberal conseguem fazer valer melhor a sua opinião, através de artigos de opinião ou científicos ou de outras formas. Nós, é mais a nível ‘caseiro’, não é? Mas a nível externo, com repercussão nacional, não conseguimos produzir reflexões por escrito tão bem. Só meia dúzia de profissionais é que se destacam, e são as mesmas há não sei quantos anos a esta parte - acho que são as mesmas desde que eu entrei para Serviço Social. E esse «salto» era necessário, mas temos todos que nos esforçar para isso” Irene/E IS11.
Estes argumentos associam-se à existência de uma comunidade científica de
Serviço Social recente e pouco numerosa (composta também por profissionais
que lecionam em parte do seu tempo e/ou que desenvolvem percursos
pessoais de investigação) mas que tem desenvolvido um enorme esforço de
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explicitação e investigação, embora ainda seja possível melhorar muito a
relação entre a academia e o campo profissional.
“Acho que esta relação de confiança entre a academia e a prática, entre as instituições e os trabalhadores, os técnicos, os assistentes sociais tinha que ser melhorada, tinha que ter um investimento forte. E isso ganharia com uma dimensão de espírito de grupo e de reconhecimento da classe profissional. Sem isso estou convencido que nós não conseguimos ter estas dinâmicas integradas e a funcionar” Jaime/ E JF10.
Um elemento também presente em algumas narrativas que contribui para inibir
estes saberes de explicitação e investigação foi a falta de expetativa positiva
sobre o futuro coletivo da profissão.
“…[a profissão]está a perder mercado de trabalho, em todas as frentes. A concorrência é muita e, por outro lado, as pessoas, do ponto de vista do corpo profissional, estão entre a extinção ou a renovação, das duas, uma. Agora também te digo uma coisa: as «coisas» que morrem é porque têm que morrer, ponto final. Não me deixa pena nenhuma. O que ficar de historial é uma memória, boa ou má, como a memória do funileiro, como de outras profissões extintas. A função em si, o trabalho em si, será feito de uma forma ou de outra, por outros” António/ E AF1.
A presença em algumas entrevistas de analogias com profissões artesanais
desaparecidas (funileiro) ou tecnologias obsoletas (máquina de escrever)
ilustra a argumentação (sentida com ambivalência) de que a profissão poderia
desaparecer por perda de legitimidade do seu objeto e/ou de pertinência da
sua ‘tecnologia’. Também foram expostos argumentos de continuidade por
razões não desejadas,
“…ainda há pessoas que estão nessa atitude, do «dar» e do «resolver» o problema da pessoa dando um “subsídio”, ainda existe muita prática assistencial. Mesmo quando se lançou o RMG (e eu, de um modo geral, concordei com o rendimento mínimo)... havia ali vertentes de intervenção que se não fossem mesmo acompanhadas, de perto e a sério, descambavam para a assistência. Porque muitos técnicos também não estão para se esforçar mais: pois se com a atribuição de um subsídio não têm mais com que se ‘ralar’, nem pensar em mais nada, porque é que teriam de telefonar para aqui e para acolá, a pedir colaboração à saúde, a pedir colaboração à escola, a perguntar à professora se o menino tem aproveitamento escolar ou não. Acham que ninguém lhes paga para fazer isto e que não têm porquê arranjar mais trabalho” Maria/E RA2 “Penso porém, que a sua definição [da profissão] seja nos dias de hoje a “nódoa” de um sistema político que procura colmatar falhas organizativas, de criação e distribuição da riqueza e que se baseia em atividades de assistencialismo que geram dependências nos indivíduos e nas instituições e que está sobretudo vinculado ao controlo social dos mais pobres e vulneráveis. No dia-a-dia, o trabalho de grande parte dos Assistentes Sociais, resume-se à gestão de medidas de apoio económico, com um
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grande peso processual e burocrático na gestão de problemas isolados de indivíduos isolados e pouco atuam na promoção da mudança. Os Assistentes Sociais ainda servem enquanto ‘cara’ a um corpo institucional com falhas políticas, como recursos paliativos que, muitas vezes, servem de ‘tampão’ a verdadeiros e reais problemas sociais. Sinto que um futuro diferente ainda vem longe e que hoje estamos muito dependentes dos números da pobreza e de novas variantes das velhas formas de assistência” Armando/ Q AP19.
Por outro lado, também esteve presente o discurso da valorização e do orgulho
profissional que, segundo Jaime, carece de debate público.
“Ora, para nós ganharmos esse reforço, esse gostar da classe, para nos sentirmos identificados porque nos dá reconhecimento, nos dá valorização, é preciso termos tudo isso, é preciso termos esse debate público, é preciso darmo-nos a conhecer, é preciso que a gente fale sobre nós próprios e fale das nossas práticas, das nossas intervenções. Porque isso é que vai mudar e levar, mesmo os mais reticentes a dizer assim: - Não, eu sou assistente social! Nem que seja porque isto agora está numa fase boa e toda a gente fala de nós com validade, com valorização” Jaime/ E JF 10.
Mais uma vez, na diversidade de argumentos e perspetivas encontra-se terreno
fértil e potencial para que a relação da profissão com o seu ‘capital de
conhecimento’ seja fortalecida. Defende-se a ideia de que na medida em que
os assistentes sociais puderem ganhar segurança sobre ‘o que sabem’ (e essa
segurança é obtida em boa parte por exposição e reconhecimento externo)
podem ficar mais disponíveis para procurar ‘saber o que não sabem’, colocar-
se em contextos de partilha e reflexão, comprometerem-se com percursos
aprendentes, com processos de experimentação social e de resistência, que
podem conferir algum otimismo ao futuro.
“A área de trabalho do «social» é tão abrangente, tão abrangente, que tem uma identidade própria, nós sabemos que a tem. Ela tem é que ser reconhecida a nível superior. Eu acho que a nossa profissão, neste momento, já está num patamar diferente; e isso é muito devido a nós, profissionais. Porque os profissionais gostam daquilo que fazem, porque se identificaram com o espírito do Serviço Social (não é o assistencialismo, não é nada disso) nós vamos à luta, seja nas barracas, seja onde for. Eu acho que, essencialmente, nós temos uma grande capacidade de resistência” Irene/E IS11
Esta posição não esquece o dilema profissional com as instituições, sobretudo
na relação de assalariado, em postos de trabalho (quando os têm) que lhes
exigem apenas a resolução de problemas, que os avaliam por quantificações
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fabris e que não reconhecem, nem validam, os saberes de explicitação e
investigação.
Os saberes de especialidade e, ainda mais, os saberes de procedimento e
organização são contextualizados, isto é, o seu valor está profundamente
dependente do respetivo contexto de exercício, dificultando a apropriação pelo
profissional, o reconhecimento pelos outros e a transposição para outros
contextos.Também nestes cenários, os assistentes sociais não detêm a
exclusividade destes constrangimentos e muitas outras formações e profissões
se questionam sobre os futuros possíveis para não continuarem reféns de um
modelo desenvolvimentista que se esgotou. Um dos principais desafios nestes
tempos de viragem do «capitalismo triunfante» poderá ser o de transformar os
processos individuais e coletivos de resolução de problemas em processos de
aprendizagem.
“Reforço novamente que já ultrapassámos aquela fase em que o assistente social era olhado assim de lado, como quando eu comecei a trabalhar. Temos feito um percurso com muito low profile, acho eu. Mas temos feito um caminho, cada um de nós, tentando ser um bom técnico, abarcando uma série de áreas de trabalho e é essa a riqueza que eu acho que este curso dá, porque nos prepara para intervir na ação social, na intervenção com o ser humano, com o outro, mas também nos torna aptas a trabalhar com as dinâmicas sociais. Claro que há coisas que não referimos aos outros, porque temos esse compromisso ético, mas podemos ouvir e aconselhar, com os pés muito assentes no chão. Mas realmente é uma das profissões que dá uma grande ‘bagagem’ de experiências e de aprendizagem... Irene/ E IS 11
465
6.3. “Abrir Caminhos”13
Na significação que quisemos atribuir neste trabalho de investigação «abrir
caminhos» foi a expressão que alguns assistentes sociais utilizaram para referir
que a sua trajetória profissional foi marcada pela intervenção em campos novos
e/ou de formas inovadoras. Fala-se da evolução de uma profissão que se vai
construindo na ação e na reflexão, com uma forte componente de referência à
especialização profissional (mesmo sem perder a vocação generalista) e aos
projetos e que «abriu caminhos» por entre modelos e modas.
Simultaneamente, nesta forma identitária, temos uma diluição de 'fronteiras'
das 'coutadas' do conhecimento disciplinar, uma porosidade que permite a
surpresa do fenómeno total, do novo, do provisório, do reversível; mas também
da «competência» profissional construída em percursos de qualificação
reflexiva ao longo da vida.
Na terminologia de Dubar teríamos um desenho de identidade que fica
«responsável pela sua promoção», com uma forma identitária “reflexiva” e
alguma inquietação na «unidade do eu» - que procura compromissos entre o
projeto, o significado subjetivo e o reconhecimento dos pares e/ou de «outros
significativos».
“…o trabalho, mesmo o mais «comum», tornou-se um desafio para o reconhecimento de si, um «espaço de palavra» a investir (ou não), um «campo de problemas» a gerir e para tentar resolver (ou não), um «universo de obrigações implícitas» e já não de «contrariedades explicitas de obediência». Quem diz desafio, diz ao mesmo tempo incerteza e grande implicação. O trabalho, mesmo assalariado, tornar-se-á, para cada vez mais assalariados, uma ocasião de criatividade pessoal e coletiva, reconhecida e valorizada ou, pelo contrário, uma necessidade de sobrevivência pelo cumprimento de tarefas cada vez mais insignificantes? Nada está ainda decidido. O recurso à criatividade dos assalariados, para resolver problemas e rentabilizar investimentos, faz-se acompanhar de racionalizações que dividem e fragmentam as atividades e são exercidas ao mesmo tempo pelos coletivos. A concorrência e a competição penetram nas empresas, dividem os assalariados ainda mais quando se fazem acompanhar pela redução de empregos e de racionalização dos «recursos humanos». Eis o que permite compreender o desencadeamento (…) do «modelo da competência», ao longo dos anos 1980 e 1990” Dubar (2006:97)
13‘Caminho’ é a designação usual para o percurso que une um ponto a outro e que pode ser pré-definido,
improvisado ou a explorar; entre outros, tem também um significado de descoberta pessoal.
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Todos os profissionais entrevistados evidenciaram narrativas reflexivas, a que
provavelmente não será estranho o fato de estarmos a trabalhar com uma
amostra de conveniência. Contudo, o experimentalismo de «abrir caminhos»
(quer em relação ao «quê», quer em relação ao «como») está mais presente
nas narrativas de Fernanda (FCR5), de Helena (HS3), de António (AF1), de
Sofia (ZC4), de Armando (AP19) e de Madalena (MM16). Nas respetivas
argumentações, todos eles dão ênfase a este gosto por desbravar, por ‘ir à
frente sem mapa’, por co construir uma trajetória profissional que não podem
deixar de identificar com as suas vidas e que tem uma marca pessoal – na
expressão de Irene designada como «dar a cara».
“Porque nós estarmos numa determinada profissão tem de ser sempre um fator de orgulho e isso permite-nos ir até às últimas consequências: - Não, eu sou assistente social, eu tenho que defender este assunto e ir até às últimas consequências, onde eu ponho a minha intervenção, onde eu ‘dou a cara’, tenho de ir até ao final” Irene/E IS11.
Nos processos de «abrir de caminhos» profissionais, parece importar o
conceito de «assinatura» de Bruno Latour (1998), onde a identidade é
entendida como um fio que liga as camadas que envolvem a pessoa; e onde a
pessoa pode ter múltiplas assinaturas.
Por outro lado, a «vulgata da competência» como refere Dubar (2006:98),
identifica «os três pilares» como «saber, saber-fazer, saber-estar»
mencionando que depressa foram substituídos por outras «qualidades» a exigir
e/ou a desenvolver: «iniciativa, responsabilidade e trabalho de equipa».
A formação contínua aparece aqui como o lugar de uma verdadeira «batalha
identitária» que desvaloriza as identidades coletivas de profissão e valoriza a
conversão a uma identidade de empresa comprometida com os objetivos
estratégicos e a mobilização para os realizar.
No material narrativo, o conceito de «competência» é pouco situado e, por
vezes, é confundido com «ter conhecimentos para», como se o processo
adaptativo aos novos léxicos fosse feito em tradução «à letra».
“…identifico-a [a identidade de uma área profissional ]em termos dos princípios e dos fundamentos que tem que ter na sua formação. (…) Depois temos a questão da identidade pelas competências e eu aí tenho que ver: «o assistente social tem competências para fazer o quê?». Tem competências para diagnosticar, mas tem competências para estudar o problema com o sujeito, com a comunidade e com a relação da família,
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tem competências para analisar esse problema e elaborar um plano de intervenção sobre ele. E agora mais recentemente tem uma competência de, para além de realizar esse plano de intervenção, o avaliar e de o investigar e de o voltar a planear e reorganizar. Essas são competências de ação, competências de intervenção e investigação também associadas. Depois tem uma competência que, para mim, é fundamental ser reconhecida em Serviço Social, que é integrar a abordagem individual e coletiva. Nós, a partir das duas abordagens, que estão unidas na intervenção do assistente social, que é a abordagem individual centrada na relação de ajuda com a pessoa, e a abordagem coletiva, centrada na família e na comunidade, como um todo, fazemos um processo integrado e em simultâneo o desenvolvimento de competências. Competências para quê? Para um fim último que é a cidadania plena das pessoas, em comunidade, em sociedade e a melhoria da sua qualidade de vida como sujeitos. E isto implica trabalhar competências de autonomia, de participação” Jaime/ E JF10.
Entende-se que a gíria profissional do Serviço Social tem sido continuamente
‘revista e atualizada’ integrando os léxicos da moda, sem que esse processo
tenha correspondido necessariamente a um aprofundamento do debate interno
sobre eles.
Um dos exemplos, é a ideia de «empregabilidade» nascida com a subida do
desemprego e o enfraquecimento do movimento sindical no final da década de
90, e cujo surgimento responsabiliza os assalariados pela aquisição e
manutenção das suas próprias competências, sendo a formação concebida
como um investimento pessoal a rentabilizar (Dubar, 1999) - esta ideia de que
cada um/a é responsável por se manter atrativo e ‘competente’ para o mercado
de trabalho também inunda o campo profissional dos trabalhadores sociais.
Aliás, os espaços de debate existentes entre trabalhadores sociais é
essencialmente autorizado/promovido pelas instituições, quer as académicas,
quer as estatais, quer as da sociedade civil e, está muito ligado às questões
instrumentais (de como se faz) e aos impactos produzidos (com que
resultados), o que reforça a instrumentalização do Serviço Social.
A questão do compromisso ético e deontológico nos percursos de
aprendizagem profissional é, por outro lado, um eixo central desta tipologia,
demarcando formas e modos d@ assistente social se posicionar, em especial,
na relação que estabelece com os modos de entender o estatuto socio
profissional, no relacionamento com a organização coletiva da profissão e com
a abertura ou fechamento social da profissão.
468
A relação de ‘quem se é’ com a aprendizagem da profissão
A forma como cada pessoa entrevistada relacionou a representação de si com
a aprendizagem da profissão é diversa mas procura-se destacar as formas de
‘se representar’ articuladas com os percursos de aprendizagem identificados.
O processo de aprendizagem da profissão
Do ponto de vista das formações de base a diversidade verificada prende-se
mais com a diferença de anos de formação e respetivos planos curriculares, de
entidades formadoras (não obstante o predomínio do ex- Instituto Superior de
Serviço Social de Lisboa) e muito menos de linguagens, que apresentam uma
relativa harmonização.
“A gente já ouviu isto quando fez a licenciatura, porque isto já foi dito mas, no dia-
a-dia a pressão é tanta, nós dispersamo-nos por tantas coisas, que esquecemos coisas que são básicas. (...) Também em cada fase da nossa vida pessoal as coisas fazem um sentido diferente. Há várias coisas que temos de ter em linha de conta ao longo do nosso trajeto como profissionais e também tem a ver com o nosso desenvolvimento enquanto pessoa” Paulina/E PS13.
A relação triangulada que se estabelece entre polos diferentes - as
características individuais e o maior ou menor carisma, a experiência e a
formação – expressa a complexidade e diversidade destes percursos. A
combinação e a força de influência relativa destes polos diferem ao longo da
trajetória de vida, criando um movimento contínuo de interdependências que
não é alheio aos contextos onde se desenvolve.
“Acho muito importante o contexto em que estamos a trabalhar, para mim é quase 70% do que define o que estamos a fazer: se nos permite crescer, se nos permite ter alguma autonomia para pudermos crescer, para puder fazer coisas novas… Isso é fundamental. No fundo eu ainda estou aqui
Experiência
Caraterísticas e
história pessoal Formação
469
porque não é sempre o mesmo trabalho, posso fazer coisas diferentes” Diana/E AF15
Esta atenção a ‘quem se é’ não pretende destacar o individualismo pós-
moderno; antes pelo contrário os sujeitos são, no entender de Alain Touraine
(1992), o ator coletivo pelo qual os indivíduos atingem o significado holístico da
sua experiência.
a) @s tecelãs/ões de histórias
As narrativas com centralidade nos atores e na tecelagem das suas histórias
salientam percursos de aprendizagem mais humanistas, no sentido em que
os profissionais reconhecem o compromisso com as pessoas numa grande
proximidade ao ‘terreno – contexto’ como fonte privilegiada de aprendizagem e
procuram a oferta formativa preferencialmente dentro do campo científico de
Serviço Social e nas suas instituições formadoras (Inês, por exemplo); ou, no
polo oposto, saliento percursos formativos compostos por vários campos das
ciências sociais (Filomena, por exemplo).
“Porque eu vim de um País que diziam que era colonial e que escravizava as pessoas (é verdade que eu vim de um País colonial, é verdade que havia escravatura), mas aqui a escravatura era muito pior e vocês não tinham nomes para as coisas. Não davam nomes às coisas. Eu escrevi os relatos de vidas dos idosos ( …). Estas pessoas tinham histórias fabulosas... eu escrevia-lhes as canções, escrevia-lhes as coisas todas e dizia: - A vossa televisão eram as desgarradas, as canções ao desafio... Vocês denunciavam tudo. As palavras estão aqui, estão escritas nos versos. (…) …[o trabalho de equipa] permite perceber como é que várias assistentes sociais juntas criam um saber que nenhuma antes tinha e que vai potenciar o trabalho de cada uma. (…) há questões que podes resolver porque estás dentro e que vão mexendo a partir de fora e que vão interagindo e, que se vão resolvendo por esta ligação entre o fora e o dentro” Inês/ E IV6. “A riqueza que as histórias de vida têm e a capacidade que estas nos dão de produzir conhecimento é, para mim, algo fantástico” Madalena/Q MM19. “Os assistentes sociais contavam umas histórias de vida engraçadíssimas mas que nunca mais acabavam, aquilo era muita descrição e pouca análise” Filomena/E FA7.
Estes diferentes enfoques encontram-se representados sobretudo na ligação
entre as «características individuais» e a «experiência», embora cruzem com
470
influências de foco, mais individual ou mais estrutural, com maior compromisso
com a estabilidade ou com a mudança. São percursos dentro da mesma linha
de aprendizagem da formação inicial que privilegiam a perspectiva de aprender
com a experiência (com uma supremacia clara da empiria sobre a teoria), mas
também de «reciclar» os conhecimentos e de os «aplicar» nos contextos reais.
“Eu acho que a minha riqueza profissional vem toda do contacto que eu tive ao longo destes anos com as histórias de vida de pessoas que eu conheci e dos envolvimentos e das relações que criei com essas pessoas. Porque, no fundo, criamos sempre relações (relações profissionais, obviamente), mas não deixam de ser relações e eu considero que aprendi imenso. Até porque eu acho que todas as pessoas com quem me cruzei tinham alguma coisa para me dizer e para me ensinar, apesar de eu também ter tentado ensinar-lhes alguma coisa do que sabia e da minha experiência de vida” Filipa/E AR12.
Encontram-se argumentos nestas narrativas que vão no sentido de destacar a
«formação pessoal e social» de cada profissional, como uma componente
prévia à formação inicial que é identificada como o interesse e o gosto por
«trabalhar com pessoas» (como os exemplos de Helena ou de Ana, “Desde
miúda que eu tinha a noção que as pessoas eram a única ‘coisa’ que me
interessava” Helena ou “…eu sempre tive um certo interesse por perceber o
que se passa com os outros” Ana). Também a «vontade de mudar o mundo»
está presente, como no caso de Irene:
“Acho que esta profissão é uma profissão muito bonita, não só bonita pelo facto
de se gostar dela, mas por permitir ir ao encontro do ser humano. O ser agente de mudança … eu acho que essencialmente é isso, a luta diária e constante que tu tens para ser agente de mudança - mudança de mentalidades, mudança de atitudes” Irene/ E IS11.
Mas também se encontram argumentos, no outo extremo da ‘linha’, mais
genéricos e menos estereotipados, como os de Sílvia:
“Nunca me motivaram razões de “boa samaritana”, de “ajudar” ou “fazer o bem”, nem tão pouco motivações religiosas pois sou ateia (refiro-o porque ainda hoje encontro motivações veladas desta ordem), a minha ideia era tentar “mudar algo”, ideia vaga necessariamente” Sílvia/ Q SG18.
Curiosamente, ou não, nestes percursos de aprendizagem a formação é
tendencialmente entendida como complementar às características pessoais e à
‘educação de base’ e é descrita uma apropriação do percurso formativo com
grande empowerment, embora a ligação com a academia e o compromisso
com a profissão possam ser variáveis.
A profissão de assistente social, como em muitos domínios expressivos e/ou
471
artísticos, aparece nas narrativas de alguns entrevistados «colada» à vida,
como se não existisse separação entre a pessoa e o profissional – onde as
características da pessoa e da sua relação «apaixonada» com a profissão
fossem um eixo distintivo.
De qualquer forma, a pessoa que habita o técnico e, sobretudo, as formas e os
modos como essa dimensão se manifesta, condiciona e interfere no
desempenho profissional, contribuindo para o posicionamento no campo (no
entendimento de Chopart, 2003) e relaciona-se com diferentes modos de
entender a formação e o trabalho.
“Esta é a minha perspetiva de estar na vida, porque isto também passa muito pela forma como nós estamos na nossa vida, não é? Porque senão, não nos conseguimos encaixar nesta profissão. Às vezes, as pessoas são tão infelizes na sua profissão, porque não têm nada a ver com aquilo…Tu gostas, ou não gostas. Ou aprendes a gostar...” Irene/ E IS11.
Escolhemos trechos de posições diversas para revelar algumas variáveis
presentes nos posicionamentos descritos nas entrevistas: algumas
identificadas como pré-existentes em relação à formação, como a Paixão “Eu
sou grande otimista do futuro do Serviço Social, primeiro porque sou uma
grande apaixonada pelo Serviço Social e pelas assistentes sociais” (Inês/ E
IV6), o "Sentido social" que Maria menciona
“…eu sempre privilegiei muito a qualidade da relação com o outro (com o cliente ou com o utente, chamem-lhe o que quiserem) e acho que isso se perdeu. (…) Mas eu acho que esta atenção ao outro... não sei se é da profissão que eu tinha, ou se eu já levei isto para a profissão. Eu acho que o Serviço Social não se aprende todo na Faculdade, acho que não, arruma-se. Mas eu acho que o sentido social, de que tanto se fala lá, se leva cá dentro” Maria/ E RA2.
ou a "Sensibilidade para as questões sociais" como refere Filipa (E AR12); e
outras, que os entrevistados imputam à formação, em especial à formação
teórico-prática nos contextos de estágio, como a «Riqueza de saberes», uma
«Visão de mundo»
“Porque nós somos diferentes das outras áreas. Nós abarcamos uma série de áreas de trabalho que mais nenhum curso abrange e estamos muito mais bem preparados para ir para o terreno, exatamente pela componente de aprendizagem prática que os estágios permitem. Eu sinto essa riqueza de saberes” (Irene/E IS11) “…o que aprendi foi uma base que depois foi evoluindo. (…) foi um tempo em que eu fui pensando as coisas e tentando encontrar qual era o fio da
472
meada, quer dizer, inclusive como é que se trabalhava com as pessoas, com os mais pobres, com as crianças, com os velhotes, etc., porque eu passei por essas fases todas e isso era interessante.(…) Mas foi bom ter descoberto estas coisas todas, deu-me uma visão do mundo, das pessoas e da profissão que considero muito rica” Ana / E TA8.
ou a «Mistura» como refere Inês (E IV6) "...esta polivalência de criar sinergias e
de misturar tudo" ou ainda como diz Maria:
“…se há coisa que define o nosso campo é a mistura, é o estar por dentro. Se a gente não conseguir estar por dentro, estar próximo, não ‘agarra’ nada. Porque é quando a gente está por dentro das situações, e se senta ao lado, e é igual, que nos passam as coisas, como que por osmose” Maria / E RA2.
Por outro lado, alguns entrevistados constroem a sua narrativa com bastante
distância em relação ao polo das características pessoais, não evidenciando a
presença das variáveis anteriormente descritas. Por exemplo, Fernanda e
Diana falam de dúvidas, dúvidas sobre «o que é» o Serviço Social no caso de
Fernanda (E FCR5) “…nunca entendi o que era o Serviço Social. (risos)
Terminei o curso sem saber. Só depois é que vim a perceber, só depois é que
consegui entender” e dúvidas sobre quem são os assistentes sociais
“Quando comecei a trabalhar, eu achei que tinha uma profissão, mas nesta altura e, quando estou a trabalhar com colegas de diferentes formações já não sei «quem é quem» - por exemplo, na rede social, oiço uma colega falar e fico a pensar «é assistente social, ou não?» e não sei, sei que é uma técnica da área social mas já não sei identificar se é assistente social” Diana/E AF15.
Um outro posicionamento é marcado por Mafalda (Q MV17) que acredita que é
uma "interventora social" e que pode dar mais do que aquilo que é permitido
aos assistentes sociais nos locais onde trabalham. Mafalda nunca se identificou
totalmente com a profissão porque ser assistente social "...significou, muitas
vezes, trabalhar e viver ligada a uma instituição com mais limitações do que
possibilidades...".
A narrativa de Mafalda faz parte de uma subcategoria (com as de Helena,
António e Armando) que, talvez pela menção das suas próprias características
e inquietações, procuraram outras formações e formas de exercício profissional
- o «coaching», a formação, a animação e a educação social. Os significados
que atribuem a estas outras formas de exercer vão desde «uma continuidade»,
passando para uma «sensação de maior eficácia», à rutura com a dependência
institucional e a burocracia, até à oportunidade que se revelou uma via menos
473
tradicional de exercer no campo do social. Encontram-se significados deste tipo
também nas narrativas de alguns entrevistados, para quem a docência a tempo
parcial significa sobretudo a possibilidade de não estagnar e de continuar uma
aprendizagem que o exercício de trabalho assalariado como assistente social
não facilita (é o caso de Cristina, por exemplo).
Dois dos entrevistados mais novos, respetivamente Madalena (Q MM16) e
Armando (Q AD20) situam na contemporaneidade argumentos opostos que
podem ajudar a entender a amplitude das motivações e caraterísticas pessoais
nomeando a velha questão da «vocação» (bastante ‘mal querida’ no meio
profissional porque é identificada com «vocação confessional») e identificando-
se outro, como «operário do social», num compromisso de luta pela mudança
de fatores estruturais. Nas suas palavras:
"Antes da entrada na faculdade tive dúvidas sobre qual seria a formação certa para mim, até que finalmente entrei em Serviço Social, mas mesmo assim não fiquei tranquila e tive alguns momentos so meu percurso académico em que me inquietei sobre se teria, ou não, vocação; mas também acho que foram esses momentos de questionamento que acabaram por fortalecer o que considero ser uma paixão pelo Serviço Social" Madalena (Q MM16). "Estou preocupado por os fatores económicos prevalecerem sobre os fatores humanos e com as pressões especulativas sobre o trabalho e o emprego (em especial com as deslocações industriais e as novas políticas de terror que espalham o medo nos contextos sociais. Preocupa-me o facto de tentar fazer uma mediação, enquanto operário do social, sem instrumentos concretos de resolução das problemáticas com que trabalho" (Q AD20).
Estes diferentes significados expressos por assistentes sociais jovens,
reafirmam a diversidade de formas de entender a relação de «quem se é» com
«o que se faz» e/ou com «a formação que se tem», num tempo em que a falta
de trabalho atinge também os licenciados em Serviço Social e onde não existe
correspondência entre a formação inicial que se possui e a possibilidade de ter
um trabalho no respetivo campo profissional. Os entrevistados contribuem
assim, através de diferentes lógicas e da diversidade de significados, para
desmistificar o estereótipo profissional que atribui um papel principal à
«vocação» e a determinadas características pessoais, ainda identificadas com
o género feminino.
Curiosamente, recolocam também «fantasmas» da história da profissão como
«modo de fazer bem o Bem», do tempo em que se pretendia formar agentes de
474
controlo social, cujo exercício profissional era uma missão e uma arte, onde
predominavam as funções simbólico-ideológicas em detrimento das funções
técnicas. Como referem Branco e Fernandes (1985) em artigo intitulado «O
Serviço Social em Portugal: trajetória e encruzilhada" que faz a análise da
evolução da formação em Serviço Social, as qualidades requeridas ao
profissional até aos anos 60 passavam por ser (ficar?) "compreensiva,
prestável, equilibrada, ter tato, delicadeza, ternura, paciência, bondade, aprumo
exterior e dignidade física".
Temo que estas características ficcionadas ainda povoem alguns imaginários e
que possam servir fins de controlo social. Mas as narrativas dos assistentes
sociais que colaboraram neste trabalho espelham densidades humanas e
trajetórias de aprendizagem e de vida tão diversas e complexas, que
contribuem para o antídoto do perfil estereotipado destes profissionais.
Na relação entre as características pessoais e a experiência, os percursos
formativos mais humanistas são, neste sentido, os d@s séniores, com exceção
de Filomena (E FA7) que refere um percurso formativo por outros campos do
conhecimento:
“Eu andei em várias formações ao mesmo tempo e fiz outros cursos de outras coisas completamente diferentes porque eu achava que isso era interessante para ter uma visão do mundo e das diferenças de olhar o mundo, da maneira de estar e de pensar de cada um. E até hoje, considero isso muito benéfico” Filomena/E FA7.
Também o percurso formativo de Madalena (Q MM19), embora ainda curto,
pode ser colocado nesta classificação.
As posições de maior sobreposição entre ‘quem se é’ e ‘o que se faz’ são
identificadas, por exemplo, por expressões como ‘ter a profissão colada à pele’
ou ‘é como ser padre, fica para a vida toda’; encontrando-se também
descrições da profissão como ‘forma de dizer quem se é’. Numa argumentação
próxima da ‘profissão-oficio’ sobressai uma vertente expressiva que marca
também os percursos de aprendizagem; sendo estes percursos muito
modelados por profissionais de referência, verdadeiros ‘mentores’ e ‘mestres’
com quem os mais novos aprendiam os referentes identitários.
“… eu acho que o que tenho tentado ao longo da vida foi reproduzir o que recebi… eu tive gente que me apoiou, que foi excelente para comigo em
475
termos de relação e que tentou ter sempre uma atitude pedagógica mesmo quando as coisas não corriam bem” E Filomena / FA 7. “Tínhamos muitas reuniões, fomentávamos reuniões para partilhar as nossas dificuldades, havia um bocadinho aquela supervisão entre nós. Eu fui muito abençoada por ter estas duas colegas” Irene/ E IS11. “Eu acho que tive a sorte de encontrar pessoas (sobretudo profissionais) que me ajudaram muito e que elegi como um modelo. Nos primeiros anos do curso andava um pouco perdida porque não conseguia ter referências no Instituto, não me revia nos professores porque lhes faltava a parte prática, de intervenção direta. Depois felizmente conheci pessoas que me ajudaram, a quem eu reconheci qualidades e que tomei como referência - gostava de ser como elas quando fosse crescida (risos). Acho que isso faz a diferença “ Diana/ E AF15.
O peso da aprendizagem experiencial nesta categoria é acentuado e, como
refere Fernanda, faz falta melhorar a formação inicial, mas também faz falta
atender às especificidades dos múltiplos contextos de intervenção e fomentar
formações pós-graduadas contextualizadas, como no caso da Saúde:
“Foi no terreno [que se sentiu a aprender mais], no Hospital. Porque ali a gente tem imenso trabalho para fazer e as pessoas não conseguem ver que o trabalho social não é andar apenas a despachar pessoas das camas. E depois não têm força, nem teoria bastante que dê segurança ao profissional para se confrontar com aqueles dois grupos (médicos e enfermeiros) que estão ali no terreno ao lado. E então, vão mendigar. Elas (as colegas) aceitam mais uma chefia de fora da profissão, do que uma chefia de dentro. Porque eu andava sempre a protegê-las. Mas a minha proteção para elas, no internamento e no contacto com as corporações dominantes, não foi suficiente. A Escola não chega para dar a preparação necessária a esse ‘enfrentamento’. Por isso eu acho que na Saúde, especialmente nos Hospitais, os Assistentes Sociais deviam fazer um internato de Serviço Social, como os médicos fazem o internato médico. Só assim é que a gente chega lá” E FCR5.
Apesar da defesa verificada em algumas narrativas de que ‘é no terreno que se
aprende’ e de que ‘quem está no terreno é que conhece, é que sabe’, também
existe a argumentação de que a experiência carece de ser refletida e
provocada com outros conhecimentos - “A experiência não ensina tudo, ou
melhor, a experiência também deve ensinar-nos a atualizar os conhecimentos”
Maria/ E RA 2.
476
b) @s semeadoras/es do estado social
Nas narrativas que evidenciam a relação entre as características
pessoais e a formação identificam-se posições, por um lado mais
distanciadas de «quem se é», com mais argumentos «técnicos» e
neutrais e, por outro, mais prescritivas na forma de entender a
profissão, os seus agentes e as dinâmicas do campo – são
percursos de aprendizagem mais técnicos.
A linguagem profissional apresenta aspetos comuns, aproximando-
se da designação das «care professions» na terminologia anglo-
saxónica e ganhando distância de profissões que se conotam mais
com as clássicas fontes de poder e prestígio. A afirmação social dos
assistentes sociais entrevistados parece fazer-se de forma ambígua
e problemática em relação ao poder dentro e fora das organizações
onde trabalham.
“Ora, onde é que eu identifico a identidade de uma área profissional: identifico-a em termos dos princípios e dos fundamentos que tem que ter na sua formação. No caso do Serviço Social, para mim, eles são os direitos humanos, a dignidade humana, a igualdade de oportunidades e a justiça social – são princípios fundamentais que têm que estar presentes em qualquer base de intervenção do assistente social” Jaime / E JF10
A tensão entre um objeto de intervenção muito abrangente e a condição de
assalariado, contribui para que o profissional esteja em posições de fragilidade
negocial onde sobressai a vertente «executante» e instrumental da profissão.
Jaime argumenta que a discussão sobre se o serviço social é ciência ou não é
ciência, se o serviço social é uma disciplina ou é uma ciência social, se o
serviço social tem princípios e conceitos científicos ou não tem, deixou de fazer
sentido. Com Bolonha, os assistentes sociais têm "... uma formação
estruturada, que tem uma definição de saberes e competências e que tem um
número de créditos para atribuir um grau académico, portanto, a partir daí nós
não temos mais a outra discussão, porque o paradigma atual de formação
superior é outro” Jaime/ E JF 10.
Em posição oposta, outra entrevistada, também com funções docentes, realça
477
a formatação da formação pelo sistema e coloca dúvidas na formação atual
chamando a atenção para o perigo de que os profissionais fiquem meros
executores e reprodutores de procedimentos administrativos, conforme advoga
a corrente da «prática baseada em evidências» - Evidence-based practice.
“Porque o sistema de tal forma nos tem formatado, e eu coloco aí a dúvida na formação que nós fazemos de assistentes sociais (coloco aí muitas dúvidas): - Como é que nós estamos a formar pessoas para não serem meros executores de um sistema, para não serem meros reprodutores de procedimentos administrativos? Cada vez mais os procedimentos estão pré-formatados, estão normalizados e os assistentes sociais são cada vez mais assistentes sociais de gabinete, mas de gabinetes sem ‘utente’, de gabinete com computador e sem ‘utente’ e muito menos de terreno. (…) Porque nós não estamos a adequar a formação à realidade dos campos de intervenção na atualidade, nós não estamos a preparar os alunos para o terreno que eles vão enfrentar, não é? É de facto, como se estivéssemos a treinar pessoas na Casa Branca para irem para a guerra do Iraque, não pode ser, não é? Não pode ser!” Inês / E IV6
As tensões sobre os significados da formação inicial e o debate sobre o «para
quê» e o «como» se formam estes profissionais é uma questão que parece
permanecer em aberto e que coloca na agenda da profissão a necessidade de
procurar entendimento sobre a sua autoregulação.
Sobre a matriz da formação, torna-se pertinente continuar a interrogar a divisão
instituída entre social, educacional e cultural, de molde a não confinar o agir
profissional dos assistentes sociais à dimensão socioeconómica dos grupos
mais pobres e desfavorecidos, ocultando a complexidade das dimensões
possíveis para o exercício profissional, confinando-o a reproduzir o instituído e
a ser um ‘placebo’ instrumental do capitalismo. Contudo, as narrativas d@s
assistentes sociais dão nota das grandes mudanças ocorridas após a
revolução de 74 – anos descritos como um tempo de «sementeira», criando as
condições para desenvolver um estado social que agora agoniza, mas também
para realizar aprendizagens em contextos que marcaram alguns percursos
profissionais e que marcam algumas das histórias:
“Estive onze anos em C., foi a minha grande sementeira (…) o grande fascínio que é ver que cada um tem um potencial imenso e passar às pessoas este testemunho ‘que elas podem’, que ‘são capazes’ (…). É levar também para o campo de intervenção o que estudámos. (…) A perspetiva é a de que temos de continuar a estudar porque somos muito ignorantes sobre as realidades e os contextos com que trabalhamos…” Inês / E IV6.
478
“Foi trabalhar muito, com todos os atores sociais, com as juntas de freguesia, com os senhores padres, com a câmara municipal, com o presidente e os vereadores...Primeiro as juntas de freguesia começaram logo a pedir assistentes sociais para apoiar e continuar o trabalho... (...) Nos projetos de Luta contra a Pobreza, nos bairros da Torre e na Galiza, também houve um grande envolvimento de todas as instituições e das populações” Ana/ E TA8.
As questões de género e a distância/proximidade ao campo de intervenção
direta com as populações são argumentos que surgem claros através da
narrativa de Cristina.
“Eu considero que no exercício profissional, homens e mulheres, acabam por ter visões sobre o exercício da profissão. Sobretudo os homens (…) procuram uma abstração na formação que os ajude a situar e a identificarem-se face às outras profissões e a treinarem um discurso de afirmação. E vejo as mulheres muito mais preocupadas em gerir problemas de metodologia e de intervenção técnica. Com isto eu não queria apontar tudo para as questões do género porque, apesar de as sentir, posso estar a poluir esta questão com aspetos da minha própria educação. Confesso que também não aprofundei muito o que te estou a dizer, pelo que fica um discurso um pouco ‘pela rama’ baseado apenas na constatação de uma diferença substancial entre aquilo que homens e mulheres procuram no serviço social e, sobretudo na formação, falo-te sobretudo ao nível da formação inicial. Do que vejo de alunos e colegas, os homens vão diretamente para lugares mais cimeiros e de decisão, muito mais do que as mulheres e realmente não sei se isso é fruto de algo que nós acabamos por incrementar na formação, como se as mulheres tivessem mais compelidas à execução. (...) Em muitas aulas acaba por haver um confronto de perspetivas, elas não entendem porque é que eles estão a querer situar essas questões da identidade, quando há questões de aprendizagens mais básicas que eles têm que ter e consideram que essas são preocupações de quem não se quer confrontar com o exercício profissional, elas reclamam muito mais informação sobre o direto, sobre a prática profissional” Cristina/ E TS14.
Esta entrevistada é uma das que coloca a questão da relação da profissão com
o poder, identificando a clara feminização desta profissão como um dos
ingredientes da relação problemática neste domínio. As entrevistadas seniores
nomeiam características pessoais, como «uma certa rebeldia» ou «uma certa
liberdade» para designar o processo de conquista de autonomia profissional:
“…eu sempre fui um bocadinho rebelde, sempre fui insatisfeita com determinadas coisas, sempre procurei pôr o meu cunho pessoal no que fiz (não sei se consegui), de qualquer modo, nunca fui muito “manga-de-alpaca”... (…) Mas não foi nada fácil. Mesmo em relação às chefias e em relação às colegas. Eu tenho a certeza que se fosse mais maleável, mais manipulável, eu tinha ascendido a cargos maiores. Eu cheguei a rejeitar cargos, mas também nunca me interessou. Para mim, as ofertas de cargos, tinham sempre que ver com condescender em determinados
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aspetos... percebes? Eu sempre prezei muito a minha liberdade de poder dizer e fazer aquilo que entendia” Maria / E RA2
Este processo de luta pela autonomia profissional, quando levado às últimas
consequências, tinha/teve/tem repercussão em «castigos» ou represálias
impostos pelas hierarquias; ou seja, os profissionais ficam sujeitos a mudanças
de funções/serviços ou mesmo à tradicional «prateleira» (o estratagema
utilizado nas situações de emprego fixo para retirar trabalho, constituindo assim
uma forte represália psicológica e simbólica) - “Fui de castigo por ter dito o que
queria dizer” E Filomena / FA 7.
Sílvia, do grupo dos «mais novos» dá um outro exemplo da relação de
ambiguidade com o poder quando, por exemplo, critica a «invisibilidade» dos
assistentes sociais e faz uma argumentação poderosa sobre a necessidade de
auto-organização dos profissionais, evidenciando o protagonismo público e
político que a classe profissional precisa de ter mas, simultaneamente, diz de
si:
“Não equaciono protagonismos, aliás nunca o equacionei. Foi-me sendo dado algum protagonismo nesta questão mas não foi procurado, nunca fui obcecada com o poder. Eu costumo até brincar e dizer que gostaria até de ser um pouco invisível, passar despercebida, trabalhar no meu cantinho, muito na penumbra”.
Foi sendo curioso agregar as narrativas nesta categoria através do seu
processo de análise e verificar que eram sobretudo os assistentes sociais
docentes – Jaime, Cristina, Sílvia, em exclusividade ou em acumulação - mas
também outros como «os primeiros doutores» e André dos «mais novos» que
privilegiam a formação pós-graduada/investigação/ensino como principal fonte
de aprendizagem contínua do seu processo formativo e expressavam posições
mais técnicas, com mais certezas sobre a profissão e a sua aprendizagem.
“A teoria é importante, nós teremos sempre que ter uma base e um quadro teórico de suporte suficiente, para sabermos gerir e lidar com situações sociais na sua multidimensionalidade e multiculturalidade e diversidade, até para podermos debatê-las e discuti-las com as outras áreas profissionais e os outros saberes, mas essa nós podemos aperfeiçoá-la, aprofundá-la, mesmo depois da formação inicial – temos é que ter as pistas certas, as diretivas e os suportes de conhecimento para saber como vamos buscá-la e usá-la a seguir, aplicá-la. Aquilo que temos de fazer é estruturar-nos como profissionais, como pessoas, como sujeitos e essa estruturação não é fácil de fazer. Pode parecer simples, pode parecer fácil, mas não é nada fácil” Jaime/E JF10.
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A «estruturação» que Jaime identifica parece ser um ingrediente da formação e
da identidade dos assistentes sociais que ao possibilitar a integração da teoria
com a experiência, altera o modo positivista como se entende o conhecimento
e contribui para construir as formas identitárias.
c) @s hibridas/os14
Na significação que aqui se pretende dar, a «hibridez» é sobretudo referente à
existência de desempenhos profissionais e especializações formativas em
áreas diferentes da formação inicial em Serviço Social, sublinhadas pelos
sentidos de «mistura», «especialidade» e/ou «alternativa» encontrados nas
narrativas.
Os «híbridos» constituem simultaneamente uma complexificação da trajetória
formativa em resposta à dificuldade de inserção no mercado de trabalho e/ou
de interesses pessoais e profissionais e uma diversificação das possibilidades
de intervir no social, em processos que buscam mais autonomia, realização
profissional e/ou aumento de eficácia. Como os processos de construção
identitária não são dicotómicos, evidenciam-se ainda um conjunto de
significados que falam de estar simultaneamente «dentro e fora» do campo
profissional, o que se aproxima de um conceito de «inclusão/exclusão» como
faces complementares de posicionamentos profissionais, dinâmicos e
contingentes.
Nas narrativas essencialmente marcadas pela relação entre a formação e a
experiencialidade refletida encontram-se os percursos de aprendizagem
mais heterogéneos sobretudo nos entrevistados Filomena, António, Inês,
Sofia, Armando e Mafalda. Filomena que fez um longo percurso profissional no meio
de Assistentes Sociais e em contextos de intervenção clássica do Serviço Social, menciona
uma distância:
“…distanciei-me dos assistentes sociais... porque eu nunca li muitas coisas de Serviço Social. Eu acho que... é melhor a gente baralhar…” Filomena / E FA 7.
14 A utilização do adjetivo «hibrido» foi importada da ‘blended-learning ou b-learning’ que originalmente se refere a um sistema de formação à distância, misto ou combinado (blended), onde parte dos conteúdos são trabalhados à distância e outra parte, presencialmente.
481
A sua hibridez foi sobretudo resultante de uma trajetória formativa e profissional
movida pelo interesse e pela curiosidade de aprender, pelo gosto em exercer
com qualidade e em procurar a inovação e, por uma prezada autonomia
profissional (que, segundo ela, fez com que dissesse sempre o que queria dizer
e que pagasse ‘o preço’ por essa autonomia).
António, que considera ter uma voz «divergente» argumenta que a sua ideia de
trabalho - “…é o projeto: princípio, meio e fim, acabou, segue para outra”.
António / E AF1, o que tem implicações na forma como foi construindo o seu
percurso de aprendizagem de ‘reinvenções’ e de ‘improvisos’:
“Eu estou-me a reconverter profissionalmente. Tenho esta noção clara, para o mal e para o bem. [Reconverter é trabalhar] noutra profissão mesmo, como técnico de reconhecimento de competências ou técnico de qualidade. Nem é bem na área da qualidade, é na área de desenvolvimento organizacional, que é outra coisa, um bocado o ‘Kaisen’ à japonesa mas agora com outras componentes. [O que mais atrai] É ir buscar trechos de competências da profissão para trabalhar noutra área, que me permita readaptar-me ao trabalho, uma espécie de rapsódia, não é?! Ou seja, tens o mesmo tipo de melodia, aquelas melodias que são feitas de trechos de outras músicas, sabes? Havia uma fase nos anos 70, em que misturavam as musicas todas… sempre com um trecho de base, um bocado como o Jazz. O trecho é sempre o mesmo, e se calhar tu vais reinventando cada um das coisas, de improviso” António/ E AF1.
António dá a dimensão da necessidade de vigilância contra o ‘sentimento de
que se sabe tudo’, de controlo, mas revela que foi quando voltou à faculdade
para fazer Mestrado que descobriu que afinal, sempre sabia mais do que
imaginava. Por outro lado, apesar de continuar dentro do campo profissional,
António assume uma certa dissidência na forma como se perspectiva e como
entende a profissão e o seu futuro.
A integração da narrativa de Inês nos percursos de aprendizagem mais
híbridos resulta de dois fatores: a importância formativa que atribui (como
António) às variadas experiências de trabalho e de vida que teve entre o fim do
secundário e a entrada para o curso de Serviço Social, e a diversidade de
interesses científicos que foi tendo ao longo da sua trajetória profissional,
alimentados sobretudo pela Sociologia. Inês, a propósito de recordar a sua
grande «sementeira», referindo-se ao seu trabalho de apoio ao movimento
associativo no território onde trabalhava, enuncia a estratégia de aprendizagem
que designa por «ponto pé de flor» defendendo a reflexividade sobre a prática:
“...o grande fascínio que é ver que cada um tem um potencial imenso e passar às pessoas este testemunho, que elas podem, que são capazes,
482
mas temos de estudar, trabalhar, estudar, estudar, não é? É esta dimensão que eu digo... é levar também para o campo de intervenção o que estudamos. Eu digo que a estratégia é… comparando com o bordado da minha mãe que é o ponto «pé de flor», que é um passo em frente e dois à retaguarda, e de facto, o ponto «pé de flor» ensina-nos um ponto à frente e dois atrás... - tenho lá «naperons» da minha avó que têm cento e tal anos e as linhas ainda estão no lugar, não é? É porque resulta, e é de facto, a reflexividade sobre a prática (Inês/ E IV6).
Sofia, a única entrevistada que não tem formação em Serviço Social, mas sim
em Política Social, assume-se como Assistente Social e diz-se sempre no
limiar, coloca-se simultaneamente «fora» e «dentro» da profissão, em território
hibrido. Refere que uma das coisas que lhe desagrada e que ainda está muito
colada à profissão (às profissões que têm que ver com a intervenção social de
uma forma geral) é …“… o ser bonzinho. Existe sempre aquele discurso que
temos que ajudar quem mais precisa de nós, e de momento não há dinheiro,
etc, etc. mas vamos fazer um esforço. E pá, não há ‘pachorra’!” Sobre o seu
percurso formativo apostado em «evitar a formatação», refere:
“E foi um ato consciente: ao invés de investir num mestrado ou num doutoramento, investi na prática profissional e daí, ter tido tantas experiências profissionais, as quais refletem parte da minha riqueza profissional e pessoal. (…) Hoje, sei que não geri convenientemente a minha carreira (no sentido em que preteri a estabilidade laboral que conduz à estabilidade financeira) contudo, penso que fiz um trajeto honesto para comigo própria. Sou o que sou, graças a este compromisso que estabeleci comigo e com o brio que devo à prática da profissão, brio este que achava que estava relacionado também com o máximo de experiências profissionais evitando a formatação” (Sofia/E ZC4).
Com uma posição crítica, faz a narrativa de uma aprendizagem muito
experimental e empírica, defendendo um exercício profissional com dignidade:
(…) Mas a sensação que eu sempre tive, neste percurso de amores que se vão sucedendo em termos profissionais... amores e desamores, foi sempre em paralelo com os meus medos, por cada aventura profissional novos medos surgiam, mas depois também tinha uma grande alegria porque eu estava lá dentro a aprender uma nova maneira de estar na profissão, a testar os meus limites, a conhecer novas realidades...Acredito que é possível ser Assistente Social, sendo respeitada e respeitando os outros: pares e utentes. Acho que é possível praticar esta profissão com dignidade. Acho que sou boa … porque estou sempre a questionar-me …” (Sofia/E ZC4).
Do ponto de vista do processo de aprendizagem, Sofia menciona o «vaivém»
entre o terreno e a academia como situação desejável pela complementaridade
dos desafios.
483
“ Na minha experiência profissional, tenho uma breve passagem como docente numa pós-graduação na Universidade (…) e foi mais uma experiência enriquecedora e que me obrigou a melhorar competências ao nível da investigação social, da preparação das aulas e na forma de comunicar com os outros. Correu muito bem, a minha avaliação foi muito lisonjeira e, penso que do elenco de docentes, era a única que nunca tinha lecionado antes. E de facto, dar formação, nada tem a ver com dar aulas... Gostei do desafio. Mas só veio reforçar este meu lado sequioso por novas experiências, mas nunca pondo em causa o amor pela intervenção no terreno. Só que, enquanto profissional de terreno posso fazer movimentos de «vai-vem» entre o terreno e a academia, a vários pretextos e o inverso também me parece verdadeiro” (Sofia/E ZC4).
Armando e Mafalda, dois dos assistentes sociais «mais novos» que se
encontram no exterior do país têm narrativas muito diferentes e significados
também diversos em relação aos seus percursos de aprendizagem. A narrativa
de Armando foi colocada nos percursos de aprendizagem híbridos pelos
significados que este lhe atribui, no exercício e na atenção a aspetos que o
entrevistado não conota com o Serviço Social, como as vertentes mais culturais
ou educacionais – que, entretanto, foram desenvolvidas por outras
formações/profissões do campo do Trabalho Social. Armando é o único
entrevistado que utiliza a designação de «Técnico de Serviço Social», valoriza
o conhecimento teórico-prático como uma «âncora» onde lhe foi possível
‘amarrar’ outros conhecimentos e experiências e atribui importância a docentes
que encontrou e que lhe fizeram “despertar verdadeiros sentimentos de
aprendizagem, comunicação e de reflexão constante sobre o trabalho social,
seja na vertente de uma trajetória profissional, seja no seu aspeto de
conhecimentos para saber, querer e ser um agente de mudança social”. Diz da
sua formação:
“A minha formação foi moldada através do conhecimento teórico/prático proporcionado no Instituto de Serviço Social de Lisboa, na licenciatura como Técnico Superior de Serviço Social - dou grande valor a esta designação de ‘Técnico’ enquanto esfera de ação profissional técnica e, não como Assistente Social. Fazendo uma análise dos cinco anos de experiência já como profissional, acho que o curso, a licenciatura, me permitiu sem dúvida um conjunto de conhecimentos e experiências muito válidos, abordagens diferentes e uma crítica e autocrítica constante sobre o exercício profissional e sobre as fronteiras com os vários conceitos de trabalho social; permitiu também um estado de reflexão contínua. Permitiu-me construir uma opinião, um sentido, para os diferentes conceitos abordados nos espaços de formação, permitiu um crescimento na aquisição de instrumentos técnicos e metodológicos para enfrentar as questões sociais, e permitiu o saber questionar este ‘social’ em diversas perspetivas e noções teórica/práticas” Armando/ Q AP19.
484
Armando atribui a uma experiência laboral na área da animação/educação
social a sua atual referência profissional como Trabalhador Social. Foi uma
experiência na Hungria que teve resultados muito significativos, quer no plano
profissional, quer na dimensão pessoal. Aliás, o que em parte, explica o
contexto de trabalho de hoje, como educador social, num Centro de
Acolhimento para Menores em Itália, desenvolvendo o mesmo tipo de
atividades culturais e educacionais e que proporcionam também elas, uma
grande riqueza profissional e humana na sua constante reformulação e ação; e
não deixa de ser intervenção social, como ele próprio refere.
Mafalda, que faz um corte com a profissão quando sai de Portugal para
acompanhar o marido argumenta:
“… meti uma licença sem vencimento, sem grande pena de deixar aquele trabalho. No país onde agora estou, procurei trabalhar e aprofundar os meus conhecimentos em áreas onde pudesse dar respostas mais profundas, definitivas e provocadoras de mudança, a quem de facto se dispusesse a tal. Encontrei um curso de ‘Coaching’, que além de mudar a minha visão sobre a responsabilidade social, deu-me ferramentas muito mais eficientes na intervenção com os clientes. Atualmente estou a tentar estabelecer-me como ‘coach’ num mercado competitivo e em rápido crescimento; tenho clientes de todas as nacionalidades com quem trabalho no seu processo de mudança por períodos de três meses, acordando a alteração de comportamentos desejada, no sentido de alcançar objetivos muito concretos e definidos pelas próprias pessoas. (…) que a população com quem trabalho na área do ‘coaching’ é, obviamente, diferente da população que conheci no atendimento social da cidade de Lisboa (e não só pelas diferenças de geografia e de culturas), mas as metodologias que aprendi a utilizar para facilitar a mudança na pessoa poderiam ser muito úteis no contexto da intervenção social realizada por Assistentes Sociais, pois baseiam-se no principio de que cada um pode ser responsável pelo seu trajeto e bem-estar. (…) neste momento não me identifico com a profissão, uma vez que também não a exerço” Mafalda/ E MV17.
Esta deriva de Mafalda que, pode ser um hiato no exercício profissional como
assistente social, também pode significar uma reconversão da formação e da
atividade profissional futura num percurso hibrido de aprendizagem.
Estas narrativas divergem de outras em que os assistentes sociais (como
Diana, por exemplo) se assumem como «funcionários» e aumentam a distância
em relação às tecnoestruturas organizacionais onde a profissão foi
consolidando alguns nichos de poder.
Em todas estas narrativas, as relações com a estrutura associativa profissional
e com a promoção de um projeto profissional coletivo são ténues ou
485
inexistentes, sobressaindo sobretudo a contingência dos contextos concretos
de ação profissional em cruzamento com a fluidez de motivações,
oportunidades, interesses e significados que os entrevistados atribuem ao seu
papel como profissionais.
Nesta linha, o trabalho de Abbott (1988) ganhou notoriedade na sociologia das
profissões, recuperando alguns dos contributos teórico-metodológicos
expressos pelos funcionalistas, pelos interacionistas simbólicos e pelos
defensores das teses do poder profissional. Este autor formula um quadro
conceptual sobre as profissões e os processos de profissionalização nas
sociedades capitalistas avançadas, dirigindo a sua atenção para a análise da
natureza do trabalho.
Èste nível de observação parece fundamental para se perceber as práticas
profissionais, os modos como são mobilizados os conhecimentos produzidos
nos espaços académicos e as relações de conflito com outras profissões a
propósito do controlo das respetivas jurisdições – sabendo que ‘Jurisdição’
significa para este autor, a relação entre uma determinada profissão e o seu
trabalho.
6.4. “Inventar carreiros”15
Na significação que quisemos atribuir neste trabalho, os 'carreiros'
correspondem a formas identitárias improvisadas, que servem por determinado
tempo e uso e depois alteram-se, dando lugar a outras, igualmente
improvisadas, orgânicas e provisórias.
A metáfora serve para agregar uma forma identitária fluida que alguns
profissionais de Serviço Social assumem, mobilizando-se num campo
profissional muito concorrencial, por uma atividade marcada por oportunidades
(ou falta delas) e por talentos (mais do que por formações), em que estas
pessoas podem ou não exercer a profissão e podem ou não, sentir-se e
designar-se como assistentes sociais.
15
Os 'carreiros' são geralmente menos estruturados que os caminhos, mais estreitos, muitas vezes traçados por trajetórias individuais em geografias inóspitas e rapidamente 'apagados' pela Natureza quando pouco utilizados.
486
Apesar destes sentidos e destes significados serem contingenciais e mutáveis
ao longo do tempo e do espaço, estes profissionais tendem a relacionar-se de
forma menos tradicional com o campo, sendo que os seus 'fios condutores'
podem encontrar-se em compromissos éticos e/ou políticos, através de redes
de interação que estão para além do campo profissional.
Na tipologia de Dubar esta forma identitária encontra correspondência na
«identidade autónoma e incerta» com um questionamento das identidades
atribuídas e o desenho de projeto de vida que pretende incluir o
reconhecimento pelos «outros significativos» ou a «identidade narrativa».
Destacam-se nesta categoria as narrativas de Filomena, António, Armando e
Mafalda.
“No fim disto tudo, quando me perguntares qualquer coisa sobre Serviço Social, não sei bem o que é que te posso dizer sobre isso, percebes? Mas, logo se vê. (…) Sim, normalmente digo que sou assistente social. Quando estou assim num grupo em que todos «armam ao pingarelho» eu faço uma de duas coisas: ou digo que sou assistente social e é mesmo para provocar, ou digo que sou socióloga e fico à espera de ver a reação” Filomena/E FA 5. “…comigo as pessoas nem têm muito a noção de que eu sou assistente social” António/E AF1 “Neste tempo sinto-me como um trabalhador social e não como um Assistente Social. Em parte, acho que esta minha identificação tem a ver com o que faço e com o contexto onde estou (…)” Armando/Q AP. “Sinto que já fui Assistente Social ( é algo que me formou e cuja experiência agradeço) mas neste momento não me identifico com a profissão, uma vez que também não a exerço” Mafalda/Q MV.
Estas formas de autorepresentação mais marginais em relação à
profissionalidade de Serviço Social podem ilustrar a «invenção de carreiros» a
que se aludiu.
Nas narrativas dos próprios estas variantes não aparecem como dissidências
nem como ruturas definitivas, mas sim como ‘tentativas’, ‘procuras’, ora mais
ligadas a oportunidades e a contextos de exercício, ora mais norteadas por
quadros de referência largos que se identificam pouco com o que consideram
ser as ‘baias’ da profissão e do campo disciplinar restrito.
487
- A relação com a heterogeneidade e a incerteza
A profissão ganha em diversidade e em complexidade se incluir e prestar
atenção às formas de exercício plural dos assistentes sociais, em especial à
inclusão das trajetórias profissionais menos tradicionais. Embora não se
pretenda imputar a exclusividade da inovação profissional a estes ‘carreiros’,
também nos parece que podem merecer atenção na qualidade de tentativas de
posicionamentos profissionais que procuram novas legitimidades e encontram
novos significados para a profissionalidade.
A posição de Manuel Castells, na sua publicação sobre «O poder da
Identidade», remete-nos para o “carater subtil e descentralizado das redes de
mudança social que dificulta a perceção e a identificação de novos projetos de
identidade que têm surgido” (2007:509), argumentando que essa penetração
subtil das mudanças dos símbolos processadas através de redes multiformes e
fora das sedes de poder nos são de difícil entendimento, dada a perspetiva
histórica habituada ao ordenamento e a proclamações calculadas de mudança
social.
“…perante o fracasso dos movimentos e políticas proactivas (por exemplo, o movimento operário, os partidos políticos) na luta contra a exploração económica, a dominação cultural e a repressão política, não sobrou outra alternativa às populações senão render-se ou reagir com base na fonte mais imediata de autorreconhecimento e organização autónoma: o seu próprio território. Assim, surgiu o paradoxo de forças políticas com bases cada vez mais locais num mundo estruturado por processos cada vez mais globais. Houve a produção de significado e identidade: a minha vizinhança, a minha comunidade, a minha cidade, a minha escola, a minha árvore, o meu rio, a minha praia, a minha capela, a minha paz, o meu ambiente. Contudo, essa foi uma identidade de fechamento dentro do que é conhecido contra a imprevisibilidade de desconhecido e do incontrolável” (Castells, 2007:76)
Neste posicionamento, pode inscrever-se o que parece ser um crescente
interesse da jovem comunidade científica de Serviço Social pelo seu
«território» profissional e científico, já não na perspetiva de um fechamento
defensivo contra a incerteza e a imprevisibilidade, mas sobretudo como uma
procura de novas fontes de legitimação que possibilitam grande
heterogeneidade. Do quadro de pensamento deste autor destaca-se a seguinte
conceção,
488
“Na aurora da Era da Informação, uma crise de legitimidade tem esvaziado o sentido e a função das instituições da era industrial. Ultrapassado pelas redes globais da riqueza, do poder e informação, o Estado-Nação moderno tem perdido uma boa parte da sua soberania. Ao tentar intervir estrategicamente no cenário global, perde a capacidade de representar as suas bases políticas estabelecidas num território. Num mundo regido pelo multilateralismo, a divisão entre Estados e nações, entre a política de representação e a política de intervenção, desorganiza a unidade de medida política sobre a qual a democracia liberal foi construída e exercida nos dois últimos séculos. A privatização de empresas públicas e a queda do Estado-Providência, embora tenha aliviado a sociedade de parte do seu fardo burocrático, piora as condições de vida da maioria dos cidadãos, rompe o contrato social histórico entre capital, trabalho e Estado e usurpa grande parte da rede de segurança social, a trave-mestra da legitimidade do governo, no sentido do senso comum. (…) As ideologias que emanam das instituições e organizações industriais, do liberalismo democrático baseado no Estado-Nação ao socialismo fundado no trabalho, encontram-se destituídas de significado real dentro do novo contexto social. Perdem atrativos e, na tentativa de sobreviver, submetem-se a incessantes adaptações, ficando sempre um passo atrás da nova sociedade, como bandeiras desbotadas de guerras já esquecidas” (Castells, 2007:499, 500).
Assim e, retomando as suas tipologias identitárias, nomeadamente as
«identidades legitimadoras e compartilhadas», as «identidades de resistência»
e as «identidades de projeto», atrevemo-nos a estabelecer um paralelo entre
as formas identitárias que nomeámos de «inventar carreiros» e as «identidades
de projeto» deste autor.
Nesta perspetiva, o dissolver das identidades legitimadoras e compartilhadas
está relacionado com processos de transformação das instituições e
organizações da sociedade civil construídas em torno do Estado e do contrato
social entre capital e trabalho e da incapacidade de manter o vínculo com as
vidas e os valores das pessoas em boa parte das sociedades. E se o
mainstream pós-moderno aponta para o aparecimento de um mundo
maioritariamente constituído por mercados, por um individualismo mais ou
menos radical, por redes e organizações estratégicas e aparece regido pela
aparente racionalidade de uma teoria económica, por outro lado, observa-se o
aparecimento de poderosas «identidades de resistência» difundidas na
sociedade em rede e ligadas a valores, a territórios e a movimentos sociais,
como por exemplo, os movimentos feminista e ambientalista.
A dicotomia expressa nesta categorização é extensível também a binómios
como «globalização/comunidade», «incluído/excluído»,
489
«adaptação/transformação», «sociedade civil/comunidades» entre outros que
estabelecem «lados» de posicionamento nas redes e nos fluxos.
“As elites globais dominantes que habitam o espaço dos fluxos tendem a ser formadas por indivíduos sem identidades específicas (“cidadãos do mundo”); ao passo que as pessoas que resistem à privação dos seus direitos económicos, culturais e políticos tendem a sentir-se atraídas pela identidade comunitária” (Castells, 2007: 502).
A sociedade em rede está fundamentada, neste autor, na disjunção sistémica
entre o local e o global e na separação em diferentes estruturas de
tempo/espaço e de poder e experiência. As «identidades de projeto»,
constituindo novos sujeitos históricos, podem surgir do desenvolvimento das
«identidades de resistência», «sob determinadas circunstâncias e através de
processos específicos a cada contexto institucional e cultural», contrariando
lógicas dominantes e organizando-se em torno de campos fundamentais de
uma nova estrutura social: espaço, tempo e tecnologia.
A produção de entendimento sobre as questões da heterogeneidade e da
incerteza (no quadro concetual que se procurou explicitar neste trabalho ou em
qualquer outro) aparece como fundamental para que a construção identitária do
Serviço Social deixe de ser de «resistência» e passe a ser «de projeto» numa
posição clara – e plural - de ator coletivo.
Se entendermos esta «procura» como um verdadeiro potencial dos assistentes
sociais se constituírem em movimento social, precisamos de: i) prestar muita
atenção, conhecer e integrar as práticas discursivas que o autodefinem («são o
que dizem ser»; ii) aceitar que não existe uma direção predeterminada no
fenómeno de evolução social e que os movimentos sociais podem ser, em
simultâneo, conservadores e revolucionários, ou nem uma coisa nem outra; iii)
utilizar referenciais organizadores como, por exemplo, o de Alain Touraine
(1966) que define movimento social de acordo com três princípios: a identidade
do movimento, o adversário principal e a sua visão sobre o tipo de ordem ou
organização social que procura no horizonte histórico da ação coletiva que
promove.
“ É todo um modelo circular que depois nos põe em movimento, nos coloca em dinâmica” Jaime/ E JF10. “Acredito que a verdadeira mudança só acontece se nos envolvermos com as pessoas com quem trabalhamos e que esta alteração de perspetivas e
490
o alargar do leque de intervenção também são formas de melhorar a imagem que existe do Serviço Social” Madalena/Q MM19.
As tendências em conflito da identidade e da globalização têm moldado o
mundo e a vida, introduzindo a sociedade em rede caraterizada pela
globalização das atividades económicas estrategicamente decisivas; pela sua
forma de organização em rede; pela flexibilidade e instabilidade do emprego e
pela individualização da mão-de-obra; por uma cultura de virtualidade nela
construída a partir de um sistema de media omnipresente; pela transformação
das bases materiais de vida - o tempo e o espaço – mediante a criação de um
espaço de fluxos e de um «tempo atemporal» como expressões das atividades
dominantes e das elites que as controlam (Castells, 2007).
Nestes termos, as identidades de resistência do Serviço Social enquanto
«profissão ofício/disciplina» coexistem na sociedade em rede com projetos
individualistas, uns ligados às identidades constituintes e legitimadoras da
sociedade civil e outros mais ligados à construção identitária «de projeto».
a) Processos de resistência e experimentação social
As histórias que os profissionais contaram nas narrativas sobre as suas
trajetórias profissionais estão repletas de episódios que testemunham os
contextos, os atores e as organizações onde intervém. Do ponto de vista das
construções identitárias, as narrativas ainda expressam uma grande
ambivalência entre, por um lado, as «identidades legitimadoras» com um
referente estrutural ao Estado-Nação e ao Estado-Providência como principal
fonte de legitimidade, associadas às sociedades civis e às instituições do
Estado de onde se originaram e, por outro, as «identidades de resistência»,
cuja força advêm do seu carater comunitário e da sua responsabilidade coletiva
em detrimento dos projetos individuais. Prosseguindo ainda na argumentação
de Castells,
“…a (re) construção do significado por parte de identidades defensivas rompe com as instituições da sociedade, acenando com a promessa de reconstrução a partir das bases, ao mesmo tempo que se fecha num paraíso comunal. É possível que, dessas comunas, novos sujeitos – isto é, agentes coletivos de transformação social – possam surgir, construindo novos significados em torno da identidade de projeto” (2007:84).
491
Em termos coletivos não se (re) conhecem no campo profissional de Serviço
Social os referidos «paraísos comunais» mas admite-se a possibilidade de que
existam novos «agentes coletivos agentes de transformação social» e que as
respetivas «identidades narrativas» desses sujeitos não fiquem apenas nas
dimensões individuais e possam constituir recurso para a profissão, como
fontes de significado e construção identitária.
“A perspetiva é a de que temos de estudar porque somos muito ignorantes sobre as realidades e os contextos com que trabalhamos e temos que procurar outras pessoas quando não sabemos, chamar peritos, chamar especialistas, chamar outros; temos que ter a capacidade de ouvir outros e de criar momentos próprios para reflexão, porque senão não aprendemos. Se nós não nos conseguimos distanciar do que fazemos, quer no tempo, quer no espaço, se nós não conseguirmos procurar novas energias, através das leituras e daquilo que estudamos, nós não vamos criar nada de novo, nós vamos andar em círculos. Por outro lado é de facto, a flexibilidade, a capacidade de deixar as coisas acontecer à medida que elas vão acontecendo, que permite inovar.” Inês/E IV6.
A aceitação da perda de controlo (ou ‘pseudo controlo’ sobre as vidas das
pessoas e das comunidades com quem trabalham) e da difusão do poder
acontece num movimento tensional, entre a sua maior ou menor concentração
institucional nas organizações ou nos mecanismos simbólicos de controlo, e a
circulação nas redes globais de riqueza, poder, informação e imagens, que se
transmutam num «sistema de geometria variável e geografia
desmaterializada».
“A nova forma de poder reside nos códigos da informação e nas imagens da representação em torno das quais as sociedades organizam as suas instituições e as pessoas constroem as suas vidas e decidem o seu comportamento” (Castells, 2007:506).
Esse poder, simultaneamente identificável e difuso é, segundo este autor,
função de uma batalha interminável pelos códigos culturais da sociedade, já
que a turbulência dos fluxos de informação mantem os códigos em constante
movimento.
A possibilidade de emergência de novos sujeitos coletivos a partir dos
movimentos sociais, prendem-se com a hipótese de serem mobilizadores de
símbolos que ajudem a transformar os códigos culturais e subvertam a
«sociedade em rede» em função de valores alternativos.
Castells (2007) identifica duas classes principais nestes agentes, a primeira
que designa de «profeta», é definida como personalidade simbólica que dá um
492
rosto ao início de caminhos, afirmando valores e manipulando símbolos; a
segunda, que designa de «rede», é uma forma de organização e de
intervenção descentralizada e integrada, característica dos novos movimentos
sociais.
“Tem-se então a amostragem de uma grande diversidade de práticas com articulação contra hegemónica, experimentalismos e reconhecimentos da diversidade cultural e do carater distributivo não só da democracia como da criatividade e das subjetividades individuais e coletivas” (Cunha, 2012:10)
No decurso da análise das narrativas dos assistentes sociais, foram
identificadas estas «classes», oscilando a argumentação entre ser um profeta
«que não quer ser profeta» (como no caso de António) e identificar o potencial
transformador das redes «não sabendo muito bem como se posicionar nelas»
(como nos casos de Armando e Mafalda). Por outro lado, a «experimentação»
que è parte integrante das narrativas e práticas profissionais (em expressões
como por exemplo, «cada caso é um caso», «intervir por tentativa e erro»,
«não existem receitas para a intervenção social») abre um campo de
possibilidades para que a profissão mantenha e incremente formas de se
repensar, a partir da crítica interna mas também dos referenciais externos, que
a podem ajudar a situar-se em relação a eles.
“Eu penso que a formação curricular, inicial e pós-graduada, de qualificação, toda ela é importante, do ponto de vista de nos dar um método, uma disciplina, um rigor, e uma coerência científica dentro da área em que estamos a trabalhar e a intervir; e dá-nos uma terminologia de linguagem comum para trabalharmos dentro daquela temática e daquele problema. Acho que aí sou defensor dessa formação estruturada, pensada, fundamentada e que seja de qualificação, que qualifica para ir mais longe – dá elementos para que, o profissional, se quiser, possa avançar muito mais para além daquilo que está a fazer. Acho que esta é uma dimensão importante. A outra dimensão importante é que nós consigamos desenvolver equipas que tenham uma perspetiva reflexiva, ou seja, que se faça reflexão sobre aquilo que faz na prática. E para isso temos de fazer o exercício de escrever sobre a nossa prática. (…) A outra dimensão foi a investigação, ou seja, o tentar organizar trabalhos de pesquisa; o pensar e investigar um objeto que é de intervenção pura e dar-lhe a outra dimensão de ser um objeto de investigação” Jaime/ E JF10.
Desta perspetiva decorre a necessidade de ultrapassar o que Rui Canário
chama uma «intervenção ortopédica», ou seja, uma intervenção que tenta
sobretudo corrigir aquilo que é tido como disfunção social (hoje, concebida
493
maioritariamente como decorrente da responsabilidade individual das pessoas)
e que não se coloca a si própria em causa.
As narrativas co construídas neste processo de investigação dão conta da
rebeldia e da coragem das/dos assistentes sociais que não se limitam a ‘fazer
bem’ o que as organizações que os contratam lhes pedem para fazer, mas
também se comprometem com uma certa «contaminação» positiva em ordem à
capacitação dos seus públicos e a dinâmicas de mudança instituintes,
revelando também uma atividade de “democratização discursiva” que dá conta
do seu valor heurístico e epistemológico.
b) A construção de um novo vocabulário e de novos «palcos» para a
profissionalidade
A adjetivo «novo» institui um desejo de inovação que não advém de estar
constantemente a querer «inventar a roda» mas de procurar, a partir de uma
memória comum, redescobrir, inventar e experimentar formas mais amigáveis
(ou mais incisivas) de combater as vulnerabilidades sociais e de participar nos
movimentos que procuram instituir novas ordens societárias mais
harmonizadas com o «bem viver», nas vertentes de relação consigo próprio,
com os outros e com o ambiente natural que sustem a raça humana.
Na compilação de artigos feita por Teresa Cunha (2011), por exemplo, este
novo vocabulário ganha forma, aproximando as palavras ‘justiça’, ‘dignidade’,
‘democracia’ e ‘bem-viver’ e demonstrando, em simultâneo, que a economia de
mercado não é única, nem exclusiva. Esta obra está repleta de ‘saberes
solidários’, que nos mostram
“…outros mundos de saberes que vêm à luz pela coragem de pesquisadoras/es que aprendem e descrevem práticas vivas, quer através da sua interpretação teórica, quer através do universo imagético que constroem, quer pelas falas que reproduzem nos seus textos. (…) No conjunto de textos se percebe o sentido da compaixão. Fazer o que sabemos fazer. Para aliviar o estado de coisas do sofrimento produzido pela desigualdade social. E ao mesmo tempo, contribuir para transformar/formar rebeldes emancipadas/os e esclarecidas/os” (Cunha, 2011:8).
494
São exemplos como este que nos inspiram a pensar as práticas vividas e a
refletir referenciais teóricos ‘sobre experiências em movimento’ e a colocar em
ação a ‘prática de pensar a prática’, como diria Paulo Freire.
Na construção identitária de uma profissão que se pretende legitimada (nos
seus valores, na pluralidade e na credenciação pelas competências e pelo
conhecimento) a presença clara e assumida de uma memória coletiva constitui
«o chão» a partir do qual as trajetórias, as conceções e as práticas podem
derivar e desenvolver-se.
“O serviço social da atualidade, volto a repetir, é um serviço social que produz competências, produz aprendizagens, altera os modos de vida – esses é que são os novos enfoques da aprendizagem dos assistentes sociais e da sua preparação para o mundo. Temos de agarrar aí, para que isso valorize a nossa profissão e dê à nossa profissão um lugar no debate público e no debate político” Jaime/ E JF 10.
Admitindo que boa parte do corpo profissional pretenda que a profissão tenha
lugar no debate público e politico, tenha «palco», não só assume relevância a
inscrição numa memória coletiva mais longínqua, que instituiu e legitimou a
profissionalidade, como assume enorme importância a disseminação do
conhecimento pelos profissionais «do como se pensa, como se vive e como se
faz» contemporâneo.
“Sei que é uma profissão altamente desgastante e que nos expõe muito e que isso
acaba por nos fragilizar, por isso pretendo ao logo da minha vida profissional ir variando as minhas experiências de forma a prevenir esse desgaste, assim como continuar a interrogar-me através de formação e da supervisão” Madalena/Q MM16.
“Preocupa-me que as camadas mais juvenis da população não tenham acesso a trabalho nem a formas de participação ativa nas decisões políticas, nem (muitas vezes) mostrem interesse por analisar as realidades onde estão inseridas. Vivemos um tempo onde não se resolvem problemas, mas onde se assistem a estes problemas. Estou preocupado por os fatores económicos prevalecerem sobre os fatores humanos, e com as pressões especulativas sobre o trabalho e o emprego (em especial com as deslocações industriais e as novas políticas de ‘terror’ que espalham o medo nos contextos sociais. Preocupa-me o facto de tentar fazer uma mediação, enquanto operário do social, sem instrumentos concretos de resolução das problemáticas com que trabalho” Armando/Q AP 19 .
“Há espaço para todos os intervenientes desde que haja respeito e que haja perceção de que estas profissões podem ser muito complementares, sem serem invasivas em relação aos seus campos, sem serem mesquinhas nessas lutas, percebendo que se pode construir mais do que destruir. Mas isto ainda é um caminho que se tem de fazer e há muito
495
diálogo que se tem de fazer com outras profissões em relação a estas questões - e eu penso que isso urge” Sílvia/Q SG 18. “Sou o que sou, graças a este compromisso que estabeleci comigo e com o brio
que devo à prática da minha profissão, brio este que achava que estava relacionado também com o máximo de experiências profissionais evitando a “formatação”.(…) Mas a sensação que eu sempre tive, neste percurso de amores que se vão sucedendo em termos profissionais... (amores e desamores) foi sempre em paralelo com os meus medos, por cada aventura profissional novos medos surgiam, mas depois também tinha uma grande alegria porque eu estava lá dentro a aprender uma nova maneira de estar na profissão, a testar os meus limites, a conhecer novas realidades...” Sofia/E ZC4.
Provavelmente e, tendo em conta a disponibilidade e acessibilidade das
tecnologias de informação, os assistentes sociais (como os outros
trabalhadores sociais) nunca como hoje, participaram em tantas «redes».
Contudo, sabendo que informação não é confundível com conhecimento e com
saber, a participação em múltiplas redes informacionais e relacionais não
impede que exista um deficit de conhecimento sobre as experiências, as
reflexões e as trajetórias profissionais no campo profissional.
Nesta matéria coloco a possibilidade de que seja nas zonas mais periféricas do
campo profissional que esteja a centralidade - no trabalho desenvolvido fora
dos grandes centros urbanos ou nas zonas urbanas e suburbanas degradadas,
no trabalho desenvolvido em bairros de população imigrante, com minorias
étnicas ou outras populações estigmatizadas; sobretudo, em contextos que
permitem inventar práticas – o que parece central na produção de novos
caminhos e de uma sociedade em que todas as dimensões sejam, por
definição, educativas.
“Acho que tem que ver com a forma como cada um interpreta o que aprendeu e com a forma como coloca esse conhecimento no seu trabalho. Porque depois tu vais buscar outras coisas, ou que estás a aprender no momento (porque qualquer profissão pressupõe uma aprendizagem contínua que tem de ser atualizada)... e, o facto de estar a trabalhar no terreno dá-nos essa dimensão de estarmos sempre atentos ao que foi produzido, para ponderares o que podes, ou não podes, intervir e atuar” Irene/ E IS 11 .
Se o Serviço Social quiser constituir-se como uma forma efetiva de
democratização das relações sociais, económicas e políticas, das
subjetividades, das dinâmicas e dos termos em que as pessoas dos locais se
enunciam e se entendem, poderá consegui-lo democratizando as próprias
conceções e associações e cativando para isso as energias e as capacidades
disponíveis nos profissionais. Para que tal seja possível não pode esquecer-se
496
da matriz de onde partiu, nem melhor nem pior que a de outras profissões e
disciplinas, mas que contem um potencial emancipatório para os próprios
assistentes sociais e, como outro lado da mesma moeda, para as próprias
populações e comunidades com que trabalham; o que provavelmente implica
também utilizar outras palavras e uma linguagem diferente.
“E eu estou a usar um tipo de linguagem que também é uma linguagem que nos pode dar pontos a ganhar, ao deixarmos de usar uma linguagem muito técnica e fechada e utilizarmos uma linguagem mais humanista e que nos ligue aos atuais paradigmas científicos da humanidades, talvez façamos evoluções. Fechando este raciocino, diria que a resposta a esta questão é a maturidade, deixando de lado aquela rebeldia de quem está só a absorver e ainda não tem nada para dar” Cristina/E TS14.
As experiências de intervenção em prol da emancipação social exigem
relações horizontais e uma partilha de poder e reciprocidade que não se
coadunam com as posições de muitos serviços ou projetos (sejam eles
educativos, culturais ou sociais) em que os profissionais se comportam como
detentores do saber, como «ensinantes» de como se faz ou do que é certo ou
errado.
Sabendo da necessidade (e da dificuldade) de manter os profissionais
autovigilantes sobre o seu próprio conhecimento, dado que este é sempre
limitado pelas experiências e visões de mundo que se possuem, torna-se
decisivo manter uma certa plasticidade e abertura à transformação e à
mudança – até para evitar atitudes e posições moralistas e arrogantes, mesmo
que usando as ‘melhores intenções’.
497
Síntese conclusiva
Na difícil finalização deste processo e deste percurso de estudo, diálogo e
reflexão tenho mais perguntas do que respostas.
Procurei aumentar a compreensão sobre a profissionalização e a
profissionalidade dos assistentes sociais, numa trajetória comprometida com a
aprendizagem contínua, com a minha própria formação e com a procura de
significados que deem sentido ao trabalho: um ‘trabalho-saber’, um ‘trabalho-
política’, um ‘trabalho-significado’, um ‘trabalho-aprendizagem’, um ‘trabalho-
expressão de si’, um ‘trabalho/não trabalho’, um ‘trabalho-(des)emprego’, um
‘trabalho-adaptação/rutura/mudança’, um ‘trabalho-capitalismo’, um ‘trabalho-
placebo’, um ‘trabalho-fim do trabalho’, um ‘trabalho-colado à pele’, um
‘trabalho-de pobres’, um ‘trabalho-assalariado/controlado’, um ‘trabalho-vida’.
Do aprofundamento dos múltiplos sentidos do trabalho fica a convicção da sua
importância para o processo de construção identitária e da importância de
compreender o social através das narrativas múltiplas dos próprios atores
sociais.
Foi no quadro do questionamento e da explicitação da profissão de assistente
social a partir de dentro que se foi fazendo o cruzamento com os eixos da
aprendizagem ao longo da vida e da construção identitária, co construindo
assim a própria narrativa desta tese. Uma narrativa que, lutando contra os seus
próprios defeitos, procurou não dizer «como é» ou «como deve ser», mas
antes contar uma história complexa, com muitas entradas, que abrisse
perspetivas e possibilidades de debate e ampliasse entendimentos. Uma
narrativa que no contínuo processo de escolhas, também abandonou muitas
outras possibilidades.
Quando penso na trajetória desta investigação, uma das principais conclusões
deste trabalho reside na importância da dimensão estético-expressiva do
trabalho do Assistente Social que, não sendo independente das macro
políticas, das condições materiais e contextuais em que se desenvolve, do
projeto profissional coletivo, da necessidade de demonstrar e reinventar a sua
credibilidade e legitimidade, nem da feminização da profissão (entre outras
variáveis), atribui um papel relevante a ‘quem se é’ na relação profissional com
498
todos os outros, quer sejam públicos, pares, chefias ou população com quem
interage.
As relações com as pessoas e com o saber convergiram no quadro da relação
pedagógica porque esta, para além da intencionalidade do ato educativo exige
condições institucionais (um tempo e um espaço) e um saber que se aprende e
se ensina.
Neste ‘quem se é’ individual e coletivo, os processos de construção identitária e
os percursos de aprendizagem assumiram uma grande importância, pelo que
entendi dissidir dos cânones académicos tradicionais e utilizar a metáfora da
formiga no título deste estudo parafraseando alguns dos sujeitos envolvidos.
“... as assistentes sociais têm, por vezes, uma missão de «formigas obreiras» que trabalham, trabalham, trabalham, quase como se quisessem salvar o mundo” Paulina/E PS13. “…na natureza, o que é pequenino sobrevive, a formiga tem mais possibilidades de sobrevivência do que o elefante. O que é pequenino sobrevive, não se preocupem com o grande: Pequeno, pouco, possível” Inês / E IV6.
Sobre esta metáfora e, apesar da grande variedade de formigas16, privilegiei a
conceção do «senso comum» que as descreve como adaptativas, resistentes,
rotineiras, vivendo e atuando em grupo, com grande parte da sua atividade
subterrânea ou pouco visível e realizando tarefas muito maiores do que seria
admissível para o seu tamanho - vivem e trabalham em sociedades complexas,
com um sistema de comunicação apurado e uma ‘engenharia’ de construção
verdadeiramente admiráveis.
Das formigas para os sujeitos de conhecimento, a sua centralidade foi outro
dos eixos que coloquei em confronto com os estereótipos, quer do papel de
investigador, quer do papel de assistente social. Nomeadamente, este último
parece tero pouco conteúdo que deixa espaço de possibilidade para que os
profissionais possam mostrar e demonstrar muito mais.
Por outro lado, procurei evitar a racionalização e a intelectualização de
«leituras» das realidades sociais e profissionais que criam uma separação
16
No ideário da cultura ocidental este pequeno inseto está ligado às histórias infantis, representando
fundamentalmente a primazia do trabalho e do esforço cooperativo; na investigação científica são abundantes os estudos sobre a sua evolução e organização e vastas as potencialidades de utilização do seu conhecimento para áreas tão distintas quanto a Medicina ou a Informática.
499
artificial entre «nós» e «eles» e entre «contextos», «atores» e «argumentos»,
mantendo as clivagens entre o mundo das funções herdado do Taylorismo e do
Fordismo e o mundo complexo da vida, onde tudo está ligado e acontece ao
mesmo tempo. Ao invés, a construção de um processo cultural, com toda a
diversidade e criatividade que lhe está inerente, com tensões, dinâmicas fluidas
e não acabadas como a vida, possibilita a inclusão de paradoxos e metáforas,
do grotesco e do ingénuo e de crenças românticas ou revolucionárias. Este
processo, que foi simultaneamente social, ambiental e cultural, inscreve estes
componentes como interactuantes e necessariamente interligados – o que
recoloca a questão política e ideológica.
Partindo de uma problematização e da (des) contrução profissional do Serviço
Social, esta investigação procurou encontrar nas ‘raízes, as ‘opções’ que
podiam ser mobilizadas nos processos de construção identitária. A equação
‘raízes/opções’ na terminologia de Sousa Santos (1998) nomeia a relação entre
o que é profundo, único, permanente e de grande escala com o que é variável,
efémero, substituível e de tempo instantâneo, para lembrar que estamos em
turbulência de escalas e em sociedades com o tempo acelerado.
Os entendimentos que foram mobilizados, associados à convicção da
transformação da natureza e da difusão do saber, apoiam a produção de
compreensões sobre as novas legitimidades que o Serviço Social procura,
assentes na «transformação de perspetivas» e na «conquista de um tempo
pessoal» como tempo integrado em que o sujeito consegue produzir sentido e
ultrapassar dicotomias. O conceito de ‘campo profissional’ foi útil, na medida
em que permitiu levar em conta e explicitar um conjunto interdependente de
atores, estruturas e mecanismos de interação que assumem configurações
próprias em cada contexto social e temporal, geradoras de oportunidades
objetivas e esperanças subjetivas de afirmação de construções identitárias
(Sousa Almeida, 2011).
O modelo de análise que foi sendo construído ‘à medida’, constituiu
simultaneamente uma forma de vigilância epistemológica da «prática-
investigadora» que tentou aprofundar o conhecimento sobre o campo
profissional que também ocupa, incidiu sobre a importância de refletir sobre ‘o
lugar do não saber face ao saber dos outros’ e permitiu construir um olhar
500
crítico sobre “o que é a formação e qual o lugar que nela ocupam as
experiências”, como refere Josso (2002).
No cruzamento entre formação, experiência, identidade e subjetividade, o ‘lugar
do saber’ ocupou um posicionamento transversal na procura de compreensão
sobre como se formam os assistentes sociais e como constroem as suas
formas identitárias ao longo da vida. A questão central de partida viu a sua
compreensão aprofundada ao longo deste trabalho e deste processo
aprendente, onde voltar às cinco questões orientadoras iniciais significa
consciencializar os contributos de conhecimento que se procurou alcançar.
Este conhecimento, necessariamente parcelar e provisório, carece da
salvaguarda de que a compreensão ampliada pelo processo de investigação e
pela análise das narrativas embora não permita generalizações, constituiu um
observatório de mudança social e dos múltiplos saberes que lhe estão
associados.
Que ligações estabelecem os assistentes sociais entre os
saberes teóricos e os saberes da prática?
Os assistentes sociais que colaboraram neste estudo falaram sobretudo da
mobilização dos saberes teóricos para a sua praxis, reforçando esta via em
detrimento da via inversa, isto é, da construção de saberes a partir das suas
experiências refletidas.
Estes últimos saberes, nem sempre são reconhecidos como tal e validados
pelos próprios com o estatuto de ‘saber’ em paridade com o saber científico,
sendo necessário muitas vezes o retorno de outros, sobretudo no contexto da
academia, para que os consciencializem. Se, por um lado, os seus argumentos
são veementes sobre a produção de saberes próprios a partir da
experiencialidade e da proximidade aos contextos, aos atores e às dinâmicas
em que interagem, por outro, estes saberes enformam de um ‘estatuto de
menoridade’ autoatribuída e são frequentemente ‘naturalizados’ como se
fossem do domínio de ‘toda a gente’, ou seja «senso comum».
Precisamente uma das ideias caras a Sousa Santos sobre o conhecimento
menciona a reabilitação da importância do «senso comum» para o
conhecimento científico.
501
“…na ciência moderna a rutura epistemológica simboliza o salto qualitativo do conhecimento do senso comum para o conhecimento científico; na ciência pós-moderna o salto mais importante é o que é dado do conhecimento científico para o conhecimento do senso comum…” (1990:57).
Neste trabalho de investigação mobilizaram-se ideias de muitos autores, de
Serviço Social e de muitas outras áreas do conhecimento, teóricos e práticos,
procurando ter sempre presente a reflexividade feita nos percursos
profissionais e de vida e nas narrativas dos profissionais que aceitaram
colaborar. Por analogia com as pessoas com quem trabalham, estes
«profissionais das terras baixas» nem sempre têm presente a validade e a
importância dos seus saberes e dos conhecimentos que foram construindo (por
relação aos saberes académicos). Contudo, a convicção sobre o interesse
desses saberes no processo de capacitação individual e coletiva dos
assistentes sociais fez com que a relação estabelecida com o saber tenha sido
um dos eixos estruturantes desta tese. Como diz Charlot, enquanto relação
com o saber, a Educação também consiste na sua apropriação e interiorização
(palavras, ideias, teorias, mas também técnicas do corpo, práticas quotidianas,
gestos técnicos, formas de interações, dispositivos relacionais) pelo sujeito –
concebido como “um ser humano, portador de desejos (e levado pelo desejo) e
envolvido em relações sociais” (Charlot, 2001:19).
Foi testemunhado um processo semelhante com a produção escrita dos
profissionais que reconhecem não a privilegiar nos seus ‘fazeres’, ou fazendo,
não a divulgar evocando sobretudo constrangimentos de pouca autonomia, de
pertença organizacional e de submissão hierárquica. Por outro lado, as
narrativas do lado dos profissionais vinculados à academia apontam os
progressos da produção teórica, em quantidade e qualidade mas não deixam
de mencionar a escassez de publicação no campo e de divulgação pelos
profissionais mais práticos. Uns e outros reconhecem aproximações, apesar de
pontuarem os constrangimentos organizacionais que do lado da academia,
quer do lado das restantes organizações empregadoras, reconhecem que
foram feitos esforços de proximidade e paridade, mas insistem na manutenção
de «duas vias paralelas» - a via dos profissionais-académicos e a via dos
profissionais-do terreno - que têm dificuldade em se cruzar.
502
No que respeita aos saberes co construídos na práxis, os argumentos oscilam
entre o reconhecimento do potencial que este conhecimento tem para
engrossar o acervo de conhecimento próprio do campo profissional e a
dificuldade em o tornar instituinte para os quadros teóricos disponíveis na
profissão como referências novas que se submetem à crítica e à validação
epistemológica.
Destaca-se por último a menção ao «vaivém» entre o «terreno» e a academia
como um dos tipos de estratégia que gratifica os profissionais e lhes permite
«tempos» e «espaços» para a pretendida reflexividade, para a produção e
integração de conhecimentos.
Que perspectivas sobre a interação entre a formação inicial,
a formação contínua formal e as aprendizagens experienciais
e organizacionais?
As narrativas dos profissionais estão repletas de argumentos que confirmam a
importância da formação inicial, nomeadamente a componente teórico-prática,
a existência de professores-profissionais de referência e a aproximação aos
contextos de exercício.
A componente teórico-metodológica é aquela que é objetivada como mais
carecida de aprofundamento na formação contínua pós-graduada. No entanto,
a corrida à formação contínua certificada que o Tratado de Bolonha incentivou,
se bem que revele aspetos positivos no que respeita à prossecução da
reflexão, do aprofundamento e do desenvolvimento de estudos empíricos,
poderá ter também efeitos perversos ao nível da instrumentalidade do saber e
do afunilamento metodológico, com uma forte conceção ‘bancária’.
Numa leitura estereotipada, os assistentes sociais ainda são conotados com o
modelo de controlo, o que faz deles instrumentos privilegiados do capitalismo e
da manutenção de ordens societárias em decadência; ainda expressam
sentimentos de fragilidade epistemológica, aliados à condição subalterna e ao
enfraquecimento das zonas de autonomia profissional – o que contribui para
que as aprendizagens experienciais e organizacionais sejam pouco refletidas,
integradas, explicitadas e reintroduzidas nas organizações e na academia com
‘valor acrescentado’.
503
Contudo assiste-se a um aumento de profissionais licenciados no campo e, do
ponto de vista da formação académica, assiste-se também a um aumento da
cientifização dos profissionais, através da formação pós-graduada. Se o
primeiro aumento aponta para um alargamento da base social de recrutamento
e das motivações iniciais para este tipo de formação, interligados com a
ampliação e diversificação da oferta formativa inicial e pós-graduada; o
segundo interroga-nos sobre a(s) direção(ões) que esse aumento do corpo
profissional (e eventualmente de massa crítica) irá tomar, bem como sobre
quais os efeitos que esta maior ligação à formação pós-graduada terá, não só
na legitimidade e na credibilidade profissional, mas também no estatuto e no
prestígio social dos profissionais, considerados individual e coletivamente.
Como é que se constrói uma reflexividade critica no
profissional e na profissão?
Da análise das narrativas decorre que a reflexividade crítica dos profissionais
se constrói ‘a duras penas’ e a ‘contragosto’ das instituições empregadoras e
dos poderes presentes no campo profissional.
‘A duras penas’ porque parece muito dependente dos tempos e espaços
pessoais para se viabilizar, já que os profissionais referem não ter esse tempo
e esse espaço no seu tempo de trabalho e na sua condição de assalariados
(repleta de atividades processuais «contraprodutivas», como diria Illinch) cuja
missão expressa será maioritariamente a de resolver problemas.
Numa profissão muito feminizada, em que as mulheres ainda são sujeitas a
discriminações no mercado de trabalho e nos seus papéis familiares e sociais e
estão habituadas a ser desvalorizadas, quer do ponto de vista material, quer do
ponto de vista simbólico as ‘duras penas’ adquirem sentido pleno, apontando
para processos de luta e de grandes sacrifícios, se as profissionais entenderem
prosseguir um caminho formativo e de reflexividade que amplie a visão crítica e
a sua capacitação para se constituírem em poderes instituintes.
Historicamente, o estereótipo feminino ligado ao ‘cuidar’, à organização
doméstica e educativa e ao controlo ‘maternal’ foram fatores de valorização do
‘fazer’ e em simultâneo, de desvalorização do ‘dizer’ e do ‘pensar’ na relação e
na influência com um trabalho que se assemelhava mais à ‘vida’ do que a uma
relação assalariada e inscrita nas relações de trabalho e de poder. Este espaço
504
no «avesso» das profissões constitui um legado que precisa de ser tornado
consciente para que não comprometa os posicionamentos atuais dos
assistentes sociais que procuram agir e refletir no campo profissional.
A ‘contragosto’ porque as organizações em que os assistentes sociais
trabalham, de uma maneira geral, ainda não fomentam a reflexividade, não a
valorizam como competência coletiva e, em alguns casos, não a toleram.
Estas duas expressões são parte da argumentação sobre as condições
adversas à construção de uma reflexividade crítica mas, apesar de ser possível
enumerar muitas mais, optou-se por evidenciar outros argumentos que também
ressaltaram deste estudo e que dão conta de condições de possibilidade.
Dentre elas, destacam-se as de ordem individual (onde as motivações pessoais
e o suporte familiar e de rede também estão presentes), as de ordem
organizacional (onde a heterogeneidade do grupo de trabalho e a
complexidade e diversidade do exercício profissional são tidos em conta), até
às de ordem ambiental (onde ganham relevo ingredientes macro como a
inscrição no grupo social de origem ou de pertença, a perceção do
risco/segurança no emprego, as condições de rendimento e de vida, as
referências culturais e educacionais, entre outras).
Atendendo às produções de Giddens e Beck sobre a ‘Modernidade Reflexiva’,
a reflexividade representa a reinvenção da pluralidade, estimula a
autoconfrontação e o questionamento da tradição e do ‘natural’, como se fosse
reinventada uma sensibilidade estética e hermenêutica.
As narrativas dos/das assistentes mencionam ‘condições de possibilidade’ da
reflexividade profissional mas são menos eloquentes sobre os processos de
criação da reflexividade crítica na profissão; sobretudo se aceitarmos a ideia de
que a reflexividade do sujeito coletivo não será igual à simples soma das
trajetórias reflexivas dos profissionais, nem se avalia numa operação
aritmética.
Na medida em que a profissão quiser desenvolver-se em sentido inverso ao
rótulo da instrumentalidade e de efeito placebo do capitalismo, precisa de
continuar a questionar o seu papel de «contrapoder» no quadro das relações
de poder e de trabalho da sociedade onde atua e criar ruturas, internas e
externas – as primeiras, através da reinvenção de um projeto profissional
emancipatório capaz de mobilizar o corpo profissional e as segundas, através
505
da demonstração da sua jurisprudência e crebilidade para os públicos e pares
com quem interage.
Como se forma a profissionalidade e a identidade
profissional destes profissionais?
Os processos de construção da profissionalidade dos assistentes sociais, têm
como ingredientes de base a socialização profissional desde a formação inicial
até aos vários contextos e atuantes onde e com quem interagem. Assumindo
posicionamentos de clarificação, coerência e consistência (referidos em Payne,
2006), a profissão aprofunda a sua relação com o conhecimento e começa a
ter algum interesse pelos saberes ocultos e não nomeados que os profissionais
constroem nas suas práticas.
A construção identitária, eixo que atravessou toda a experiência de
investigação, aparece assim como resultado de uma identificação contingente,
marcada pela dinâmica entre diferenciação e generalização. A identificação ‘de’
e ‘pelo’ outro, mas também a importância de «manter a face» como refere
Goffman (1982) ou de produzir uma «identidade narrativa» são aspetos que os
assistentes sociais envolvidos mencionaram, na sua dupla qualidade de
sujeitos e de atores sociais coletivos. Assim num primeiro momento, foi
possível identificar nas narrativas quatro perfis profissionais, essencialmente
cronológicos, que representam outras tantas formas de construir percursos de
aprendizagem da profissão destes atores: ‘@s séniores’, ‘os do tempo da luta’,
‘os primeiros doutoras’ e ‘os mais novos’.
A crítica interna também faz referência à característica de «apaziguador
político» como refere Autès (2004), que acompanha por vezes práticas de
cunho educativo para alcançar «a ordem societária idealizada», o que parece
ter promovido a adaptabilidade dos profissionais e a sua atuação reprodutiva
junto das populações. Contudo, «as ideias fraturantes» presentes nas
narrativas, no quadro de pensamento da profissão e nas versões mais críticas
e inovadoras do Serviço Social colocam em causa, num segundo momento, os
marcos cronológicos que estiveram na base da diferenciação de «perfis» e,
fazendo uso de outros argumentos, permitiram uma análise temática e
dialógica que tentou ultrapassar as velhas dicotomias entre o foco no individuo
ou na estrutura e o compromisso com a estabilidade ou com a mudança.
506
Por último, no ensaio de análise temática e construção tipológica foram
descritas quatro formas identitárias - ‘os ecossistemas protegidos’, ‘os trilhos
seguros’, ‘abrir caminhos’ e ‘inventar carreiros’.
Estas formas correspondem a outras tantas formas dos profissionais «se
representarem e se dizerem» no cruzamento e nas tensões entre as
identidades biográficas para outrem (forma cultural) e/ou para si (forma
narrativa) e as formas relacionais para outrem (forma estatutária) e/ou para si
(forma reflexiva).
Como se processa a ‘conquista do tempo pessoal’ e a
‘transformação de perspetivas’?
Neste ponto mobilizo três conceitos de origens diferentes para destacar
contributos essenciais para o processo de aprendizagem e de construção
identitária e que são respetivamente: i) a «mestiçagem» enquanto conceito e
valor que constitui e unifica a matriz do Serviço Social; ii) a «não-inscrição»
enquanto conceito e valor que dificulta que os profissionais se posicionem, que
ultrapassem uma neutralidade com história e que se envolvam, que participem
ativamente, nos movimentos e dinâmicas sociais. Neste entendimento a
«inscrição» dos assistentes sociais equivale a assumir a sua tomada de
posição, individual e coletiva; e iii) a «convivialidade» enquanto conceito que
gera condições de possibilidades para agir, pensar a ação e produzir
conhecimento.
A Mestiçagem
O Serviço Social mantem-se unificado, apesar de algumas tendências internas
para consolidar vias de especialização (como, por exemplo, no caso da Saúde,
das Autarquias ou da Justiça onde existem profissionais com posições de
destaque e historiais de reconhecimento profissional) e tem evoluído de forma
diferente de outras ciências, nomeadamente da Sociologia e da Psicologia, que
foram admitindo grande pluralidade interna e se tornaram simultaneamente
mais especializadas e diversas.
Esta unicidade, mais normativa do que genealógica, é balizada por duas
abordagens: uma, mais epistemológica que argumenta com a totalização, o
status quo e a necessidade de reforçar a cientificidade do Serviço Social e
outra, amparada pelas «condições de possibilidade» de um saber que não fica
507
refém das ideias reguladoras de ‘verdade’ e de ‘progresso’ e que pode evoluir
sem a colonização dos modelos científicos de outras ciências. Esta última
abordagem foi inspirada na perspetiva antropológica com que Bruno Latour
(1990) refletiu a ciência, focando como objeto as «práticas científicas»,
ultrapassando a dicotomia entre o natural e o humano, o objetivo e o subjetivo
e passando do princípio metodológico ao princípio ontológico (que privilegia os
híbridos, a rede e os ‘fetiches’17) numa perspetiva que integra ciência e cultura.
Um dos aspetos que gostaria de voltar a ressaltar em Latour são as «condições
de possibilidade» que permitem misturar temas e métodos diversos que a
modernidade separou, constituindo um território hibrido, mestiço, com novas
possibilidades de combinação e inclusão, onde o ‘micro’ e o ‘macro’ se
relativizam e onde a pesquisa empírica se completa na reflexão, com uma
‘ampliação de interesses’ em vez de ruturas epistemológicas. A ontologia
proposta por Latour (1993, 2002) ultrapassa o ‘princípio de simetria ampliado’18
e a impossibilidade de cisão entre natureza e sociedade e deixa de se produzir
a partir de extremos dicotómicos.
Procura-se nesta antropologia amoderna, que não se oponha o monismo dos
‘primitivos’ (sem separação entre sociedade e natureza) ao dualismo ‘civilizado’
assente na oposição entre verdade e erro que só os modernos podem atingir
(Latour, 1994:91). Para além de todos os relativismos culturais e
universalismos naturais, o mesmo autor sugere o «relativismo relativista»
enfatizando o pôr-se em relação entre as culturas, sem que se interponha entre
elas qualquer medida que não seja produto de uma mediação construída
(1994:111). Esta conceção valoriza o hibrido, entretanto já não entendido como
‘mistura indevida’.
Esta valorização da «mestiçagem» parece ser um traço identitário fundamental
do Serviço Social - da mesma forma como as famílias multiculturais, ou as
17 ‘Fetiches’ é uma tradução para a palavra ‘faitiches’, querendo significar algo que é ao mesmo tempo fato, real e fetiche, artefacto simbólico produzido por nós. Faz apelo a um modo de existência que incluiria os objetos científicos e os sujeitos (simultaneamente livres e socialmente produzidos) e que os assemelharia aos fetiches produzidos pelas culturas ancestrais.
18 Este princípio aponta para duas assimetrias (verdade/erro e natureza/sociedade) e para uma não diferença essencial entre saber científico e não científico e opõe-se à rutura, ou ao corte epistemológico, do discurso científico em relação ao senso comum.
508
pessoas com percursos de grande diversidade cultural e geográfica (que, por
exemplo, têm pais de nacionalidades diferentes, cresceram num dado país que
não era nenhum dos países das origens parentais e residem em adultas,
noutro país ou têm percursos por vários países), precisam de construir a sua
identidade, entre a diversidade e a hibridez, como uma «mistura» que torna
único/a aquele individuo, que é uma riqueza por si só e que pode ser um eixo
gerador e potenciador de aprendizagens significantes.
A «Não-inscrição»
Este é um conceito de José Gil (2004) que fala no seu ensaio filosófico de
«uma lacuna invisível», de «um branco», num Portugal que vive com medo de
existir. Segundo o autor, nada acontece em Portugal entre a pré-modernidade
e a pós-modernidade, entre a sociedade da norma e do controlo; com a «não-
inscrição» não rebentam conflitos, não se grita, tudo se torna impune com o
tempo, mesmo o imediato, o presente. Pelo contrário, ‘inscrever’ é agir, afirmar,
decidir; é correr perigo, conquistar autonomia e sentido das coisas; é produzir
real e desejo. A «inscrição» é o acontecimento que ganha o estatuto de
experiência decisiva, formadora mas, que implica por isso, confrontos,
sofrimentos, divergências, perdas e danos.
A utilização do conceito de «não-inscrição» pretende constituir uma imagem
para a neutralidade que tem marcado a profissão, tentando retirá-la da sua
naturalização e instituir a possibilidade de assumir ruturas. Defende-se aqui
que a «inscrição» dos assistentes sociais nos seus respetivos quadros de
referência e em posicionamentos ético-políticos é outro dos eixos da
construção identitária da profissionalidade, que pode contribuir para construir o
sujeito coletivo e produzir a «identidade narrativa».
A luta contra a «não-inscrição» é algo que marca inclusive este processo de
investigação, onde foi muito difícil assumir uma posição através de uma
narrativa própria que marcasse um ponto de vista sobre a profissão e os seus
processos de aprendizagem e construção identitária.
À questão tantas vezes interrogada pelo orientador sobre «qual é a sua tese?»,
seguiram-se longos períodos de «não-saber», de ponderar ‘isto e aquilo’, de
deambular por argumentos variados que pontuavam as circunstâncias da
situação, mas não ajudavam a concluir a resposta.
509
Escrever sobre a profissão e os profissionais fez-me emergir num ‘pote’ - de
ligações e de posições sobre o campo profissional, que incluía forças, tensões,
atores, dilemas, paradoxos, escolhas e muito mais que ficou por enunciar – de
onde saí com dificuldade e poucas certezas. Por outro lado, o gosto pela leitura
e pela escrita amadurecido ao longo dos anos (nomeadamente nas reflexões e
nos registos profissionais) foi questionado, na medida em que neste processo
«escrever» ganhou uma redobrada exigência, instalando a dificuldade e o
sentimento de «não saber». Como refere Lobo Antunes (2011: 154, 155), na
“Crónica para aqueles que vão escrever”:
“O mistério do ato de criar permanece intacto. Passeei na prosa de gente que procurava compreender também, e o mistério do acto de criar permanece intacto. (…) Os mecanismos são ocultos. A gente pode verificar os resultados mas nunca atinge as raízes. Nem o tronco. (…) Uma porção de versões para as primeiras páginas.(- Ainda não é o que eu quero, ainda não é o que eu quero) até a mão encarreirar. Faz-me lembrar a água que se derrama nas tábuas do chão, devagar, a escolher o caminho”.
Utilizo esta citação e a imagem da ‘água que se derrama nas tábuas do chão a
escolher o caminho’ para dizer da estranheza, da falta de controlo e das
dificuldades que experimentei na construção desta narrativa, nomeadamente
no processo de confronto com «ideias feitas» - as minhas, as de outros com
quem me foi ‘encontrando’ e debatendo, e as do «mainstreming».
Na tentativa de evitação de uma retórica discursiva sedimentada em
racionalidades instrumentais, meritocráticas e/ou humanistas, fui-me
confrontando com a incerteza do conhecimento, convencendo-me de que as
possibilidades de erro e de ilusão são múltiplas e permanentes, quer as
oriundas do exterior cultural e social, quer as provindas do interior.
Como diria Morin “O dever principal da educação é o de armar cada um para o
combate vital para a lucidez” (2000:33). Muita «Incerteza», pouca «Lucidez» e
uma relação com o «Erro» que é simultaneamente marcada pelo medo e pelo
direito – um direito ao erro, que foi aprendido e conquistado com o sentido do
experimental, da criatividade, das hipóteses, de quem não pode intervir ou
refletir apenas com o receituário de «by the book» e precisa de arriscar para co
construir soluções e perspetivas com os outros atores, em processos negociais
e produtores de sentido.
510
De facto, as Ciências Sociais tratam «do mundo da vida» em que todos se
julgam competentes e em que o próprio cientista é levado, muitas vezes, a
confundir os resultados da investigação com o seu próprio conhecimento
espontâneo da realidade. E estas dificuldades só serão superáveis com «uma
constante vigilância epistemológica” (Sousa Santos, 1989:35) que só se poderá
concretizar no esforço por avançar no conhecimento contra o já conhecido
(preconceitos, noções pseudocientíficas) e na comunicação livre que permite o
controlo cruzado das suas investigações. A vigilância epistemológica foi neste
processo, uma função imprescindível que permitiu aos assistentes sociais uma
reflexão critica sobre si mesmos, sobre os métodos que utilizam e sobre as
suas certezas e erros19 - neste entendimento comprometido com o avanço
científico, os obstáculos epistemológicos constituem, ao mesmo tempo, outras
tantas dificuldades no levar por diante uma rutura com eles mesmos.
A «Convivencialidade»
A «convivencialidade» é um conceito de Ivan Illich (1976), um autor de
«utopias» e de «contracorrente» que constitui uma referência na Educação e
fez furor nos anos 70. Este conceito reporta a uma ideia de sociedade em que
o homem controla a «ferramenta» e em que a ferramenta moderna está ao
serviço da pessoa integrada na coletividade e não ao serviço de especialistas;
a sociedade convivencial é uma sociedade que oferece ao homem a
possibilidade de exercer uma ação mais autónoma e mais criativa, com o
auxílio das ferramentas menos controláveis pelos outros. Diz o autor:
“A própria crise geral pode estabelecer, de forma duradoura, um contrato social que abandone o poder de prescrever o bem-estar ao despotismo tecnoburocrático e à ortodoxia ideológica, ou então ser a oportunidade de construir uma sociedade convivencial, em transformação contínua dentro de um quadro material, que seria definido por abolições racionais e políticas” (1976:136).
Sem pretender aprofundar a complexidade e a atualidade deste autor, rendi-me
à importação deste conceito para o Serviço Social – sobretudo pela
possibilidade de pensar «utopias» e pelo sentido que faz a dinâmica de uma
19
O problema do erro atravessa transversalmente o ensino e a educação, na sua própria essência e
sentido, mas também no que respeita aos educadores e professores, nos seus estatuto e formação; não na sua razão de ser (porque educar é sempre indispensável em termos pessoais e sociais), mas enquanto conceito, função, auto e hétero-imagem (cf. Damião,2001).
511
‘transformação continua’ em que o homem não seja dominado pelas
‘ferramentas’ que cria.
Nas sociedades ocidentais contemporâneas o significado do trabalho tem
sofrido profundas alterações e, para além do aumento exponencial de pessoas
excluídas da possibilidade de ter trabalho, das mutações na auto
representação pelo trabalho e/ou das alterações dos significados de inclusão
social pela posição profissional ocupada, as atividades de trabalho parecem
seguir tendências de fluidez de atividades remuneradas e de
desprofissionalização.
A mudança na organização social do trabalho, a escassez de postos de
trabalho convencionais e a instrumentalização da formação cumprem a função
de preparar com maior rapidez os jovens para o ingresso no mercado de
trabalho mas diminuem as possibilidades de aprendizagem dos conteúdos
teóricos e metodológicos, encarados como formas de leitura dos fenómenos e
dos contextos em que @s assistentes sociais intervém e, simultaneamente,
tornam-os profissionais mais maleáveis em relação aos poderes instituídos e à
função de ‘placebo social’ que frequentemente lhes é atribuída.
Natália Alves em estudo recente sobre os licenciados da Universidade de
Lisboa refere que
“…a tensão entre os discursos da modernização e da igualdade de oportunidades agudiza-se com a reinvenção do conceito de meritocracia que (…) faz depender a resolução dos problemas sociais da mobilização das vontades individuas e estas da posse de competências adequadas que a escola é chamada a transmitir. Esta tendência para a privatização dos problemas sociais e consequente responsabilização individual está associada à configuração de novas subjetividades individuais e sociais que se constroem por referência ao domínio das competências como a autonomia, a flexibilidade, a adaptação entre outras, que a escola deve proporcionar e que os jovens devem desenvolver sob pena de se inscreverem em processos de exclusão social” (2006:8,9).
A tendência meritocrática, a responsabilização individual e a privatização dos
problemas sociais são domínios do instituído que @s assistentes sociais
podem refletir, refletindo-se nas possibilidades de futuro. Afinal, a sua
existência diz muito da capacidade de reinventar a profissão e dos modos de a
tornar aprendente.
“Agora, para ultrapassar aquele sentimento de «pequenez» que eu muitas vezes
encontro nos profissionais, existe um longo caminho a percorrer, até no sentido da humildade de se exporem à crítica de outros e aprenderem com isso” Sofia/E ZC4.
512
Limitações do estudo e investigações futuras
“Este entrelaçar de sonhos, projetos, gentes, pescadores de bocadinhos de futuro e sonhos possíveis, já e agora, ficam sempre aquém. Aquém do sonho, mas além da realidade que seria sempre mais pobre sem a nossa intervenção” (Rodrigues in Cunha, 2012:141) ”.
Esta citação inspira-nos e sintetiza um entendimento sobre o processo
contínuo de aprendizagem, nos equlibrios e desiquilibrios entre a estabilidade e
o incómodo, na adoção de papeis reversíveis e nesta ideia de sermos
«pescadores de bocadinhos de futuro».
Neste estudo exploratório, apresentam-se sobretudo pistas para ampliar um
olhar compreensivo, mais sistémico e mais plural, sobre a profissão de
assistente social. O esforço de fundamentação e argumentação teórica, de
explicitação, de cumprir os preceitos do método não se esgotaram nesta
trajetória formativa, nem na tentativa de desocultar o objeto de estudo.
As próprias condições de realização e produção deste trabalho inscreveram
constrangimentos e limitações que dificultaram a recolha de dados, ficando por
fazer uma compreensão analítica relativamente a algumas das dimensões que
estruturam o campo profissional; entre elas, o associativismo profissional e as
respetivas estratégias de afirmação do projeto coletivo, o peso das culturas de
serviço na socialização profissional e a exploração das possibilidades
instituintes em perspetivas e desempenhos menos tradicionais.
O dinamismo e a mudança que caracterizam os fenómenos sociais e o próprio
processo de construção de conhecimento, aliados às insuficiências e
constrangimentos deste processo de investigação, reforçam a ideia de que as
pistas alcançadas são necessariamente provisórias e merecem uma reflexão
continuada, muitos outros pontos de entrada e a inclusão de dimensões que
foram preteridas neste processo.
Em investigações futuras, seria pertinente ter em conta a reorganização do
sistema de ensino, tentando explorar as alterações aos modelos de
funcionamento, as dinâmicas da procura e da oferta formativa e as definições
da formação, quer no seu ciclo inicial, quer no ciclo pós-graduado.
Por último, e numa procura de ampliar a procura de perspetivas também se
considera relevante explorar as representações externas a este grupo
513
profissional, nomeadamente dos decisores de políticas sociais, dos
empregadores, das hierarquias, dos pares de outras formações e dos públicos
com quem interagem.
514
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ANEXOS
1. TABELAS DE CARACTERIZAÇÃO DOS ENTREVISTADOS:
- CARACTERIZAÇÃO SOCIO-DEMOGRÁFICA
- TEMPOS E TRAJECTÓRIAS PROFISSIONAIS
2. GUIÕES DA ENTREVISTA
3. QUESTIONÁRIO
4. PROTOCOLOS DAS ENTREVISTAS E RESPOSTAS AO QUESTIONÁRIO