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09 (02) | 202 | Revista Thema RESUMO: Nas intersecções entre Cinema e História fica evidenciado como estas disciplinas podem dialogar e, por conseguinte, elucidar o pensamento e o comportamento humano. Este artigo visa a fazer uma análise do filme Terra em Transe de Glauber Rocha, partindo do contexto histórico em que a obra foi produzida e sua relação com a atualidade. A abordagem sobre estas relações temporais dizem respeito ao conteúdo do filme que trata da história recente do país. É também analisada a linguagem cinematográfica e suas nuances que podem ser avaliadas à luz da História. A pesquisa busca investigar a leitura de significados que a narrativa cinematográfica oferece. Palavras-chave: História. Cinema. Terra em Transe. ABSTRACT: In the intersections between Cinema and History as evidenced by how these disciplines can dialogue and, consequently, elucidate the thought and human behavior. This article analyses the film Terra em Transe by Glauber Rocha, departing from the history context where it was produced and, also, its relations to the present. The approach talks about Brazil contemporary history. It is, also, analyzed the cinematography language and its nuances which can be evaluated by History. This search examines the reading of significations to which the cinematography narrative offers. Keywords: History. Cinema. Terra em Transe. As Intersecções entre Cinema e História no filme Terra emTranse 1 Antônio Lima Neto 2 Artigo orientado pelo professor Charles Sidarta Machado Domingos, apresentado para conclusão do Curso de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade (Instituto Federal Sul-rio-grandense - Campus Charqueadas). 2 Especialista em Educação e Contemporaneidade (IFSUL – Campus Charqueadas)

As Intersecções Entre Cinema e História No Filme Terra Em Transe

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Este artigo, escrito por Antônio Lima Neto, faz uma análise do filme Terra em Transe de Glauber Rocha, partindo do contexto histórico em que a obra foi produzida e sua relação com a atualidade. A abordagem sobre estas relações temporais dizemrespeito ao conteúdo do filme que trata da história recente do país. É também analisada a linguagem cinematográfica e suas nuances que podem ser avaliadas à luz da História. A pesquisa busca investigar a leitura de significados que a narrativacinematográfica oferece.

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    RESUMO: Nas interseces entre Cinema e Histria fica evidenciado como estas disciplinas podem dialogar e, por conseguinte, elucidar o pensamento e o comportamento humano. Este artigo visa a fazer uma anlise do filme Terra em Transe de Glauber Rocha, partindo do contexto histrico em que a obra foi produzida e sua relao com a atualidade. A abordagem sobre estas relaes temporais dizem respeito ao contedo do filme que trata da histria recente do pas. tambm analisada a linguagem cinematogrfica e suas nuances que podem ser avaliadas luz da Histria. A pesquisa busca investigar a leitura de significados que a narrativa cinematogrfica oferece.

    Palavras-chave: Histria. Cinema. Terra em Transe.

    ABSTRACT: In the intersections between Cinema and History as evidenced by how these disciplines can dialogue and, consequently, elucidate the thought and human behavior. This article analyses the film Terra em Transe by Glauber Rocha, departing from the history context where it was produced and, also, its relations to the present. The approach talks about Brazil contemporary history. It is, also, analyzed the cinematography language and its nuances which can be evaluated by History. This search examines the reading of significations to which the cinematography narrative offers.

    Keywords: History. Cinema. Terra em Transe.

    As Interseces entre Cinema e Histria no filme

    Terra em Transe1Antnio Lima Neto2

    Artigo orientado pelo professor Charles Sidarta Machado Domingos, apresentado para concluso do Curso de Ps-graduao em Educao e Contemporaneidade (Instituto Federal Sul-rio-grandense - Campus Charqueadas).

    2Especialista em Educao e Contemporaneidade (IFSUL Campus Charqueadas)

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    INTRODUO

    Os anos 60 foram profcuos no que diz respeito s inovaes artsticas, cuja base est centrada em uma tomada de conscincia poltica. Dentre as obras mais marcantes deste perodo, encontra-se o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, que ousou mostrar a realidade nacional sob uma tica crtica e alegrica, redimensionada pelas inovaes do Cinema Novo. Dessa forma, o registro cinematogrfico, ao promover a compreenso histrica do pas, extrapola a dimenso artstica e se torna um documento histrico. Minha inteno, com este artigo, verificar as relaes que podem ser estabelecidas entre Cinema e Histria.

    O ponto de partida ser uma retomada do contexto histrico-cultural em que o filme se insere. Com este contexto busco algumas explicaes para a compreenso da obra, j que parto dos anos que antecederam sua produo e o perodo de sua estreia. Neste primeiro captulo, exponho alguns fatos que foram marcantes para a Histria do pas, no incio dos anos 60, e apresento as manifestaes artsticas significativas do perodo como o Cinema Novo, por exemplo.

    Ainda neste captulo, apresento as articulaes das foras armadas e da sociedade civil para desestabilizar o governo de Joo Goulart que resultou no golpe de estado de 1964. Neste mesmo contexto, fao uma exposio sobre o ambiente cultural que, naquele momento, expressava-se de forma combativa ao regime de fora que se instalara. E para finalizar, analiso os principais atos institucionais (AIs) e o cerceamento de liberdade com o decreto do AI-5 de 1968. Minha anlise se centraliza neste perodo em que se insere o filme Terra em Transe, fazendo apenas algumas referncias aos anos que sucederam o regime ditatorial.

    No segundo captulo, investigo as diversas possibilidades do dilogo entre Histria e Cinema. Para uma maior compreenso, feito um inventrio sobre como o cinema se inscreve no espao cultural quando ganha o status de obra de arte. Apresento, logo a seguir, uma anlise sobre a linguagem cinematogrfica e o quanto ela pode ser importante para o entendimento histrico. Feita esta anlise, abordo os caminhos que a Histria trilhou para reconhecer o Cinema como fonte documental e, como aps este reconhecimento, a narrativa flmica observada por ela.

    No ltimo captulo, analiso o filme Terra em Transe a partir de seu contexto histrico e ficcional e exploro o carter dialgico entre Cinema e Histria. O objetivo deste captulo trazer tona, a partir da fico, as relaes com a Histria do perodo e a atual. Alm disso, fao uma anlise dos personagens e exploro a linguagem utilizada por Glauber, inovadora para poca, e abordo, tambm, as relaes do espectador com a obra.

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    Captulo I

    ARMAS, ARTE E DENNCIA

    O golpe de estado de 1964, perpetrado pelos militares e apoiado por uma parcela expressiva da sociedade civil, ps fim aos ideais reformistas iniciados pelo governo de Joo Goulart. O resultado foi um dos episdios mais obscuros de nossa histria. As reformas de base idealizadas por Jango atemorizaram as camadas mais reacionrias da sociedade, que viam nessas mudanas uma radicalizao e um alinhamento com os pases socialistas como Cuba, Unio Sovitica e China. Dessa forma, as reformas propostas pelo governo ps Jnio Quadros as quais viabilizavam um novo paradigma para o pas foram refutadas como sendo nocivas para o progresso da nao. A sociedade brasileira ainda no estava preparada para mudanas to radicais,, o que a levou a apoiar o golpe.

    No entanto, o perodo que antecedeu o golpe encontrou o pas em uma fase extremamente otimista em relao ao processo poltico inaugurado por Joo Goulart. Intelectuais, artistas e uma parte da igreja apoiavam suas reformas de base e sua Poltica Externa Independente. Esse otimismo, que se iniciara no governo de Juscelino Kubitscheck, fez com que a sociedade brasileira ampliasse sua viso sobre o pas e vislumbrasse uma modernizao, podendo alinhar-se as naes mais desenvolvidas do mundo.

    Durante este perodo, a cultura encontrava-se em um momento de efervescncia. A bossa nova j era um sucesso internacional e o cinema brasileiro encontrava em Glauber Rocha o seu arauto. O Centro Popular de Cultura (CPC), o qual se ligava Unio Nacional dos Estudantes (UNE) e cuja meta era uma comunicao direta com os movimentos populares, agregava estudantes, intelectuais e artistas provindos, principalmente, da classe mdia. Essa frente revolucionria propunha atividades conscientizadoras entre as classes populares e tinha como objetivo implantar o socialismo do pas. Na viso de Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos A. Gonalves:

    interessante observar o contraste desse perodo bipartido, em que de um lado estavam estudantes, intelectuais e artistas que se propunham a se alinhar ao pensamento reformista e progressista de Jango e, de outro, uma parcela da sociedade que temia perder seus privilgios.

    A agitao cultural do pas refletia o clima de mudanas pelo qual passava a sociedade brasileira. O teatro, o cinema, a literatura e as artes plsticas buscavam um novo paradigma, assim uma preocupao de ordem social estava no mago de todas essas manifestaes artsticas. Essa fase da cultura

    Houve um tempo, diz-nos Roberto Schwarz, em que o pas estava irreconhecivelmente inteligente. Poltica externa independente, reformas estruturais, libertao nacional, combate ao imperialismo e ao latifndio: um novo vocabulrio inegavelmente avanado para uma sociedade marcada pelo autoritarismo e pelo fantasma da imaturidade de seu povo ganhava a cena ,expressando um momento de intensa movimentao na vida brasileira( HOLLANDA, GONALVES, 1982, p.8).

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    brasileira pode ser reconhecida como conscientizao da realidade nacional aliada ao desenvolvimento industrial que comeara na era Vargas. Havia por parte dos artistas a conscincia de um pas subdesenvolvido, porm com recursos para se tornar uma nao autossuficiente e mais igualitria, sem os contrastes gritantes que tanto causavam repulsa a esses intelectuais. Nota-se que o discurso socializante, o qual se tornara corrente entre a intelectualidade, atingia uma pequena parcela da populao, causando grandes polmicas entre essa intelectualidade que discutia sobre o destino do Brasil, devido alienao da grande massa.

    Esta disparidade entre os grupos da intelectualidade e a populao que desconhecia o processo de mudanas pelo qual passava o pas se deveu a fatores como as distncias entre zona rural e urbana e o alto ndice de analfabetismo. Em relao populao rural, que era maioria nessa poca, pode-se afirmar que essa alienao era de fato provocada pela falta de acesso informao. O veculo de maior alcance ainda era o rdio e assim mesmo com falhas tcnicas em suas emisses, dificultando o recebimento de informao, devido s grandes distancias do pas. A televiso, por sua vez, atingia, ainda, uma pequena parcela da populao urbana, veiculo este que ser de capital importncia durante a ditadura militar. Para os detentores de terras, as ideias de Joo Goulart no encontravam eco, j que tocavam em ponto muito delicado para as oligarquias agrrias, a redistribuio de terras. Devido a esse fator, muitos trabalhadores rurais, agregados ou posseiros no dispunham de uma autonomia para expressarem suas ideias com liberdade, seguindo a ideologia de quem detinha as terras. No entanto, esse amordaamento sofrido pelos trabalhadores rurais deu origem s ligas camponesas (1955-1964), movimento organizado por camponeses pernambucanos, ligados terra, a qual legitimava uma tomada de conscincia por parte destes trabalhadores na luta contra os grandes latifndios. Segundo Fernando Antnio Azevedo, as ligas, em sua ltima fase, ao estarem em vias de se transformar em um partido agrrio revolucionrio e de massa, anteciparam a autonomia poltica dos movimentos sociais e dos sindicatos em plena ditadura (AZEVEDO, 2006, p.28). J o analfabetismo urbano e rural, problema ainda no solucionado em pleno sculo XXI devido ao analfabetismo funcional, tambm contribuiu para a alienao de grande parte da populao, pois eram facilmente manipulveis pelos detentores do poder.

    Dessa forma, esse pas irreconhecivelmente inteligente de que nos fala Roberto Schwarz parece estar restrito apenas s elites intelectuais e polticas urbanas as quais dispunham de acesso informao e uma educao formal adequada.

    No entanto, consequentemente, toda essa mobilizao em face de mudanas mais radicais no que tange s reformas propostas por Joo Goulart foram desagradando aos setores mais comprometidos com o capital industrial, tanto o estrangeiro quanto o nacional, e tambm aos grandes latifundirios. Porm, no foram apenas esses setores a se sentirem ameaados por uma eminente transformao do pas em um modelo socialista. A classe mdia, atravs de campanhas feitas pelos opositores de Jango, comeou a temer pelos seus pequenos privilgios devido a sua grande averso ao comunismo leia-se aqui todo e qualquer regime de governo que se opusesse ao capitalismo. Essa mesma classe mdia, cujos filhos lutavam por mudanas em relao ao modelo capitalista, era a qual o governo de Jango Goulart vinha pouco a pouco tentando modificar.

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    Assim, neste ambiente de incertezas que comearam as manifestaes em favor dos grupos que se opunham ao governo de Joo Goulart, que, mesmo tendo seus poderes amainados pelo parlamentarismo, mas assegurado pelo movimento da Legalidade, tornara-se um perigo no s para as elites e os setores mdios da populao, mas tambm para os Estados Unidos, que viam esse avano reformista na Amrica Latina como uma ameaa para sua hegemonia. Feita as alianas, o golpe eclode no dia 31 de maro de 1964, deixando grande parte da populao completamente perplexa, principalmente aqueles ligados aos setores mais progressistas da sociedade. Castro afirma:

    O golpe pegou de surpresa todos aqueles que almejavam as mudanas, j em andamento, do governo deposto. , ento, que, a partir desse momento, o pas entra em um colapso do qual s sairia 20 anos depois.

    Com a vitria do golpe, adotado como nica soluo para o Exrcito e os setores que a ele apoiavam, medidas de extremo rigor foram tomadas, implantando um perodo autoritrio. Dentre as primeiras medidas que entraram em vigor nessa primeira fase, houve a cassao de mandatos e a supresso dos direitos polticos daqueles considerados opositores do governo recm-instaurado. Assim, o golpe que institura o poder aos militares, juntamente com os civis que os apoiavam, dava sinais de como agiriam os protagonistas desse novo captulo de nossa histria.

    Para os setores mais progressistas da sociedade, como a classe artstica, os estudantes e intelectuais das mais diversas reas, houve um amordaamento, j que o processo de uma esttica voltada para a conscientizao das grandes massas acabou sendo abortado. No entanto, como reao ao regime militar recentemente instaurado, os artistas encontram no protesto uma resposta esttica para o golpe. Assim, em dezembro de 1964, o musical Opinio estreava no Rio de Janeiro. Para Heloisa Buarque de Hollanda:

    Contudo, sobreveio o golpe do parlamentarismo, moderando o poder do presidente, que ficaria sujeito a interferncia do Congresso Nacional, no qual no contava com a maioria. Esse quadro perdurou at janeiro de 1963. Paralelo a isso, assistia-se disseminao de uma histeria anticomunista no seio da classe mdia. Foi mantida em andamento a ordem conspiratria e os setores mais tradicionais da sociedade brasileira (Igreja, Exrcito, proprietrios rurais,etc.) foram convocados a salvar o pas. Quando mudanas mnimas pareciam irreversveis, o golpe, h muito ensaiado foi perpetrado, com o aval dos guardies da liberdade mundial- os Estados Unidos da Amrica do Norte (CASTRO, 2005, p.63).

    (...) Opinio revelou-se um espetculo extremamente oportuno. Reunindo um pblico jovem, o show parecia interpretar o sentimento de toda uma gerao de intelectuais, artistas e estudantes naqueles dias em que a realidade do poder militar afigurava-se como um fantasma no imaginrio da revoluo brasileira. Para espant-lo, surgia um novo imperativo: falar, cantar, manifestar. Tratava-se de expressar, contra o autoritarismo que subia ao poder, a determinao denncia e ao enfrentamento (HOLLANDA, 1982, p.23).

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    Do perodo que se estende da deflagrao do golpe at o AI-5, havia a possibilidade de falar contra o regime, ainda que com certa parcimnia. Contudo, vrios trabalhos artsticos foram mutilados devido interveno da censura. durante essa poca que Glauber Rocha inicia a criao e produo de sua obra mais emblemtica, Terra em Transe, objeto deste estudo. Assim, todas as manifestaes artsticas que se desenvolveram nesse espao de tempo denunciavam, de uma forma ou de outra, os desmandos do regime. A arte passou a ter um papel preponderante de resistncia e denncia. A bossa nova, que atingira um patamar nunca antes alcanado pela msica brasileira, naquele momento tinha se tornado fonte de alienao para os mais radicais. Consequentemente, a poca tornara-se, tambm, mais radical.

    A Revoluo, como queriam os participantes do golpe, havia sido engendrada a partir da unio dos setores descontentes com os rumos do governo pr 64, como foi referido anteriormente, mas o que estava tambm em jogo era o temor de os Estados Unidos em perder mais um pas para o bloco socialista, como havia acontecido com Cuba. Assim, a partir de uma aliana entre os altos comandos das Foras Armadas e os Estados Unidos, respaldados pela lei de Segurana Nacional e imbudos de um esprito salvacionista, as organizaes militares passaram a ser protagonistas ao intervirem, atravs da fora, no processo poltico nacional. Contudo, para aqueles que acreditavam que esta interveno fosse passageira e que, logo aps reestabelecida a ordem, os militares voltariam caserna, idolatrados pelos que haviam apoiado o golpe, esse retorno no aconteceu. Como se sabe, foram necessrios mais de 20 anos para que isso acontecesse.

    A partir de 1964, legitimados no poder, os militares comearam a expor seus planos atravs de aes como perseguio poltica e interveno direta na economia, respaldados pelos AIs (17 ao todo) que serviram de instrumentos para toda espcie de desmandos ocorridos naquele perodo. O primeiro ato, o AI-1, por exemplo, limitava os poderes do parlamento, controlava o judicirio, previa a cassao de mandatos eleitorais, autorizava expurgos nas burocracias civil e militar e inquritos policias para quem se opusesse s normas recm-instauradas. Todo este aparato serviu para instituir a nova ordem que, de forma arbitrria, tolhia a liberdade de expresso e feria de forma acintosa os direitos do cidado. J o AI-2 extinguiu os partidos polticos, restando aos opositores do regime apenas uma via para as manifestaes de repdio ao governo: a formao do Movimento Democrtico Brasileiro (MDB), partido poltico que se tornaria porta voz de uma resistncia concedida. Para o governo foi criada a Aliana Renovadora Nacional (ARENA), partido que agregava todos aqueles que haviam apoiado o golpe. Assim, nossa poltica tornava-se bipartidria.

    Durante esse perodo, a resistncia mais visvel se dava atravs da arte, pois esta dispunha de subterfgios, como o uso de metforas, que muitas vezes escapavam ao julgo dos militares. A cultura brasileira viveu esse processo de forma efervescente, demonstrando uma capacidade de posicionamento poltico nunca antes atingida ao longo de sua histria. Segundo Carlos Nelson Coutinho a esquerda era forte na cultura e em mais nada. uma coisa muito estranha. Os sindicatos reprimidos, a imprensa completamente ausente. E onde a esquerda era forte? Na cultura (RIDENTI, 2007, p. 143) Dessa forma, criou-se uma esttica da resistncia cuja fora motora estava centrada na denuncia e conscientizao do perigo de um regime que suprimia aquilo que mais caro ao homem, sua liberdade.

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    O AI-3 estabeleceu eleies indiretas para governadores, prefeitos e presidente, seguido do AI-4, que iniciou o projeto de uma nova constituio, a qual revogava de forma definitiva a de 1946. Esse ato obteve a recusa do MDB em participar das eleies indiretas para presidente como uma manifestao explicita de repdio aos desmandos do governo. Para a intelectualidade e classe artstica, o momento tornara-se propcio para toda sorte de manifestaes contra o autoritarismo advindo da alta cpula militar. neste momento de contenda que surgem obras artsticas que mudariam o rumo da arte brasileira como o filme Terra em Transe de Glauber Rocha, O Rei da Vela com direo de Jos Celso Martinez Correa, o qual um resgate da obra teatral de carter iconoclasta de Oswald de Andrade, e o Tropicalismo, movimento de vanguarda que tem nas obras anteriores sua gnese.

    A toda essa contestao o governo reagiu de maneira ainda mais radical, instituindo o AI-5 em 13 de dezembro de 1968, o qual seria o tiro de misericrdia sobre qualquer manifestao antagnica ao regime.

    Aps o AI-5, o governo militar recrudesce e impe uma censura severa aos meios de comunicao. Toda e qualquer manifestao artstica era proibida de ser exibida sem a autorizao prvia da censura federal. Nesta mesma poca, na Frana, intelectuais e classe trabalhadora se uniam para reivindicar mudanas no sistema universitrio e regras nas relaes de trabalho. Dessa unio, surgiu uma fora que foi capaz de por em xeque, ou mesmo desestruturar, as bases de uma sociedade que se pretendia to slida. proibido proibir, alertava o slogan pichado nas paredes da Sorbonne. Aqui, nos trpicos, a efervescncia cultural e politica se fazia ouvir atravs da arte que, naquele momento, foi porta-voz da oposio ao regime, ainda que, muitas vezes, de forma velada. Os ecos dessas manifestaes tambm foram ouvidos aqui e juntaram-se a toda revolta da juventude brasileira.

    Nesse momento, os tropicalistas que levavam seu projeto de transformao esttica adiante, viram seu movimento ameaado pelas prises de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Os baianos que durante toda a jornada tropicalista tambm partiram para a anlise da realidade brasileira, mas integrada ao mundo, deixaram o pas e partiram para o exilio em Londres. Ao ser informado sobre os slogans nos muros da Sorbonne, Caetano comps uma cano tambm chamada proibido proibir para o Festival da Cano, a qual seria o estopim para o fim do movimento.

    Ao ser promulgado o AI-5, a arte j se encontrava totalmente transformada. Glauber Rocha lanara, em 1967, Terra em Transe, filme j consagrado internacionalmente o qual reconta a Histria do Brasil, a passada e a contempornea, de forma alegrica e denomina o Brasil como Eldorado. Nesse pas fictcio, no um espelho, mas uma lente de aumento expe a realidade brasileira. A nao representada hiperbolicamente, tanto sua grandeza quanto as suas mazelas. Assim, o filme de Glauber e a Tropiclia serviram para a reflexo dos rumos do pas nos campos da arte e da poltica.

    At a chegada da grande crise do petrleo, em 1973 , os anos que sucederam o AI-5 foram marcados por censura prvia, prises, cassaes, perseguio poltica e tortura. Quando os barris de petrleo alcanaram cotaes nunca antes vistas, foi difcil para os militares sustentarem o Milagre Brasileiro, que era um projeto desenvolvimentista que utilizava o capital estrangeiro para financiar obras faranicas como Transamaznica, por exemplo. Durante o

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    perodo da ditadura militar, at os primeiros sinais de crise e a sua derrocada final com as manifestaes pelas Diretas J, o pas vivenciou um perodo constrangedor no que tange aos direitos do cidado e do homem, pois todos seus direitos foram violados e usurpados de forma abrupta.

    Este primeiro captulo aponta para o contexto histrico em que o filme Terra em Transe de Glauber Rocha foi concebido. Por esse motivo, o enfoque histrico se centra no perodo que antecede o golpe at o AI-5. Essa relao, Cinema / Histria presente no filme, objeto deste trabalho, abordada no captulo II deste artigo.

    Captulo II

    CINEMA E HISTRIA O dilogo entre as disciplinas, no mundo contemporneo, possibilitou a

    ampliao de uma anlise mais ampla da sociedade. Esse carter dialgico que visa o aprofundamento das disciplinas em questo, parte da premissa de que elas tm muito a dizer umas as outras. Nas relaes efetuadas entre Cinema e Histria no diferente. A Histria que leva em considerao, tudo que produzido pelo homem no deixa em descoberto os filmes como fonte de pesquisa. A linguagem flmica ao se debruar sobre os anseios da humanidade passvel de investigao sob uma tica histrica. O Cinema que faz um recorte da realidade, ainda que de forma ficcional, possibilita uma infinidade de pontos de vista sobre essa mesma realidade. O resultado uma ampliao de conceitos sobre as disciplinas que investigam a stima arte. Ora, se linguagem cinematogrfica carregada de signos os quais so representaes do pensamento humano, nada mais do que partir de sua anlise para ver qual o lugar da Histria no Cinema e vice-versa.

    As diferentes abordagens que o cinema possibilita, quer sejam de ordem psicanaltica, psicolgica, filosfica, estrutural, semitica, lingustica e, claro histrica, s reforam a ideia de que o valor de um filme pode ser medido atravs do quanto ele explica ou reconhece a condio humana, o que a Histria o faz com o devido aprofundamento que a disciplina exige. Partindo desse pressuposto, exploro neste captulo, a importncia do dialogo entre estas duas reas distintas, mas que convergem para o entendimento do homem e suas relaes com o mundo.

    Com um pouco mais de um sculo de existncia, o cinema galgou um status na cultura que nos seus primrdios no existia. Quando da sua inveno, muitos intelectuais rechaaram a possibilidade do cinema alinhar-se a outras reas da cultura, como a literatura. Um exemplo disso a viso de George Duhamel: Uma mquina de embrutecimento e de dissoluo, um passatempo de iletrados, de criaturas miserveis iludidas por sua ocupao (LE GOFF, 1976, p. 201). Dessa forma, o cinema no angariava nenhum valor como fonte histrica. Essa viso errnea sobre o cinema foi mudando ao longo do sculo XX e, s vai ser transformada quando ganha status de arte.

    Ao atingir um patamar de reconhecimento como documento legtimo de produo de cultura, intelectuais viram no cinema uma fonte documental que

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    poderia ser objeto de estudo. Assim o cinema passa a ser tambm investigado pela Histria. Portanto,

    Esse novo instrumento de percepo da realidade, ainda que ficcional, depois de algumas dcadas, passou a ser explorado infinitamente por historiadores que veem no cinema fonte para estudos e aprofundamento de sua disciplina, atravs de uma anlise que parte do real para o entendimento das metforas exploradas pela linguagem cinematogrfica.

    A linguagem flmica, como a pictural ou ainda a linguagem natural, a fala, est imbuda de significaes, por essa razo, cabe ao historiador perceber a necessidade de uma investigao minuciosa e atenta para plurissignificao de um filme. Em sua obra A Linguagem Cinematogrfica, Marcel Martin, j alertava que o cinema possui uma linguagem prpria, segundo ele o cinema tornou-se pouco a pouco uma linguagem ,ou seja, um meio de conduzir um relato e de veicular ideias, e acrescenta que convertido em linguagem graas a uma escrita prpria, ela se encarna sob a forma de um estilo (MARTIN, 1990 p. 16). Neste sentido, o trabalho do pesquisador buscar atravs dessa linguagem referncias pertinentes ao estudo da Histria.

    O campo da semitica tem sido um estudo importante para o exame da linguagem cinematogrfica, pois traz a luz o que subjaz simbologia de um filme. Um elemento na construo de uma narrativa carregado de significaes. Um simples objeto pode ganhar uma dimenso, at ento nunca imaginada, em uma cena, por exemplo. Ele pode dizer mais em relao quilo que lhe confere seu referente. Essas relaes entre referente e suas plurissignificaes demonstram que ao contextualiza-los em determinadas sequncias o cineasta extrapola o real e cria um universo prprio cujo estilo torna-se linguagem. No entanto, quando a anlise flmica vista sob uma perspectiva semitica segundo Metz o filme estaria ,sempre aqum ou alm da linguagem e acrescenta

    claro que o que est permeando esta nova perspectiva documental uma total transformao da tica tradicional da histria. No mais uma histria do individual, das singularidades de uma poca, sintetizada na ideia de uma narrativa dos grandes fatos e dos grandes vultos. O que est em questo, a partir de ento, o desenvolvimento das especificidades de pocas histricas, compreendidas a partir de seu carter transindividual. De l para c, tanto a noo de documento quanto a de texto continuam a ampliar-se. Agora, todos os vestgios do passado so considerados matria para o historiador. Desta forma, novos textos, tais como a pintura, o cinema, a fotografia etc., foram includos no elenco de fontes dignas de fazer parte da histria e passveis de leitura por parte do historiador. Tal tendncia est promovendo uma aproximao da histria com outras disciplinas das cincias humanas, no sentido de desenvolver uma metodologia adequada aos novos tipos de textos (CARDOSO, MAUAD. 1997 pg. 401).

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    Essa realidade cinematogrfica que, at um dado momento, fora rejeitada pelos historiadores capaz de trazer a tona uma compreenso da histria que s possvel devido a uma transdisplinariedade que se desenvolveu ao longo do sculo XX e que adentra este sculo. No entanto, no cabe aqui uma discusso sobre o que real ou no.

    A abrangncia dos domnios da Histria atual revela que os caminhos para o entendimento no apenas do homem contemporneo, mas tambm o do passado deve passar pelo que ele produz e produziu e em tudo aquilo que est inscrito na cultura. Ora, se o cinema faz parte dessa cultura, nada mais pertinente do que a histria se debruar sobre este vasto campo a ser explorado. Assim, o que era ignorado no passado, hoje, tem uma relevncia extrema no que diz respeito compreenso da sociedade.

    Vrios aspectos so observveis em uma obra cinematogrfica, como j foi referido anteriormente. Contudo, um filme ao ser analisado sob uma perspectiva histrica deve levar em conta aspectos como poca e contexto em que foi produzido. Uma obra est aberta a leituras diversas e dependendo do enfoque dado, pode tornar-se uma fonte de equvocos. Por essa razo, uma anlise que no leva em considerao os aspectos temporais de um filme, quer seja o da obra em si ou, o momento em que foi produzida e, ainda, sua veiculao passados alguns anos. Neste contexto, relevante o artigo veiculado pela revista francesa, Le Nouvel Observateur, em que o historiador, Pierre Nora e o cineasta Bertrand Tavenier debatem sobre as afinidades entre cinema e histria, o lugar do ensino da Histria e o papel dos filmes na escola e ainda a questo das relaes de tempo de suma importncia para a histria e o cinema, relao esta essencial para o entendimento deste artigo. Pierre Nora ao se referir sobre esta particularidade tanto da histria quanto do cinema diz a da alma e o do espirito da poca que o cinema deve apoderar-se, pois as relaes histria so extremamente diversas(Le Nouvel Observateur, 2010, p. 93). Desta forma, a percepo destas peculiaridades cinematogrficas o

    seu aspecto pouco sistemtico que diferencia a linguagem cinematogrfica da lngua: as diversas unidades significativas mnimas no possuem aqui significado estvel e universal, e isso o que leva a classificar o cinema entre outros conjuntos significantes, tais como os que formam as artes ou os grandes meios de expresso culturais. Mas o que distingue o cinema de todos os outros meios de expresso culturais o poder excepcional que vem do fato de sua linguagem funcionar a partir da reproduo fotogrfica da realidade. Com ele, de fato, so os seres e as prprias coisas que aparecem e falam, dirigem-se aos sentidos e a imaginao: a primeira vista, parece que toda representao (significante) coincide de maneira exata e unvoca com a formao conceitual que veicula (significado) (MARTIN, 1990, p. 17-18).

    Diferentemente de seus anlogos reais, vemos sempre o que (os objetos) querem dizer, e quanto mais evidente esse saber ,tanto mais o objeto se dilui ,perde seu valor particular. [...] Ou, smbolo, ou enigma. Essa ambiguidade da relao entre o real objetivo e sua imagem flmica uma das caractersticas fundamentais da expresso cinematogrfica e determina em grande parte a relao do espectador com o filme, relao que vai da crena ingnua na realidade do real representado percepo intuitiva ou intelectual dos signos implcitos como elementos de uma linguagem (MARTIN, 1990, p.18).

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    que transforma um filme importante para a compreenso da Histria. De posse deste documento legtimo, o historiador capaz de perceber a abrangncia de um filme na reconstruo do real. Assim

    Muitas so as possibilidades de aproximao entre cinema e histria e, j que, o presente artigo tem como objetivo a anlise do filme Terra em Transe, nada mais justo do que rever a obra glauberiana a partir dessas relaes temporais.

    Captulo III

    UMA ANLISE EM TRANSE

    Uma cena grandiloquente, uma tomada area transformada em quadro abstrato, a msica incidental com tambores e vozes evocam um primitivismo. Na tela se l: Eldorado. Pas Interior. Atlntico. O filme j anuncia, uma metfora. Eldorado, a terra prometida, o paraso terrestre na viso do europeu. E ns brasileiros, o que percebemos de nosso pas? Essa indagao vai permear toda a narrativa cinematogrfica. Glauber Rocha faz um inventrio do momento poltico pelo qual passava o pas naqueles agitados anos 60 ps-golpe militar. As referncias no deixam dvidas. O filme, no entanto, extrapola o perodo e registra cenas que poderiam ter sido filmadas hoje. Devido a esse carter atemporal da obra, parto para uma abordagem que expresse as referncias da poca de sua produo e as que possam ser analisadas, hoje, passados mais de quarenta anos da estreia.

    A mtica Eldorado um reflexo hiperblico dos acontecimentos polticos ps -1964. As personagens que nela transitam encarnam tipos que podemos reconhecer nas instituies ou mesmo em pessoas. Na conturbada conjuntura de Eldorado, a igreja est representada pelo Bispo que participa do poder, mas que no possui voz, diferentemente de Jlio Fuentes, o grande detentor das indstrias e da mdia, figura quase caricata envolta em articulaes de poder e orgias, representante das elites. No embate entre os polticos, Dias se sobressai como o prottipo do poltico oportunista, estabelecendo-se no poder conforme suas convenincias. Este personagem representa, ainda hoje, o poltico corrupto sem qualquer convico poltica. Por outro lado, Vieira, encarna o poltico cheio de boas intenes, mas que abdica delas quando se encontra no poder e quando se v frente a um impasse poltico. Ele um demagogo, em sua campanha aproxima-se do povo, fazendo promessas para angariar votos. O tom jocoso das cenas da campanha eleitoral revela a superficialidade com que os candidatos encaram os eleitores. Sob este aspecto, nada mudou. Seu carisma o

    O trabalho do historiador nem sempre se apoia na totalidade das obras: pode usar sequencias ou imagens destacadas, compor sries e conjuntos. E deve integrar o filme ao mundo social, ao contexto em que surge o que implica a pertinncia do confronto da obra cinematogrfica com elementos no cinematogrficos: autor, produo, pblico, regime poltico com suas formas de censura... (CARDOSO,MAUAD, 1997, p. 412).

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    transforma em governador. Paulo Martins apoia Vieira em sua candidatura, mas abandona-o quando este assume o poder. O discurso de Paulo no se mantem coerente ante suas convices e vacila no episdio dos posseiros, proferindo o mesmo discurso das elites. Sua conscincia o trai, sente-se impotente ante aos desmandos do poder, mas no reage. Ele no aceita os conchavos feitos por Viera quando a situao politica se torna insustentvel. O governador tem um compromisso com os grandes fazendeiros, por essa razo, usa de fora para reprimir os trabalhadores que reivindicavam a posse das terras onde produziam. Paulo ao se deparar com estes desmandos polticos faz a seguinte pergunta: como responderia o governador eleito as promessa do candidato?.

    Uma cena do filme que resume qual a condio dos menos favorecidos quando dada a palavra a um homem do povo. No incio h uma legenda que diz: encontro de um lder com o povo. O homem humilde em um primeiro momento titubeia, mas, em seguida, se declara pobre, operrio e lder sindical, participante da luta de classes. Guardada as devidas diferenas, logo se estabelece uma relao com o ex-presidente Lula. Paulo ao ouvir as palavras do homem tapa a sua boca e diz: Est vendo o que o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado! J pensaram Jernimo no poder? (SENNA, ANO, p.313) Talvez fosse esta a posio das elites intelectuais da poca. Contrariamente, aos vaticnios de Paulo um homem do povo pode ser politizado e chegar ao poder. Tambm, o ato de tapar a boca de Jernimo faz referncia censura vivida naquele perodo.

    Outra personagem importante a companheira de Paulo. Sara personifica a transformao da mulher e o papel que ela foi assumindo ao longo do sculo XX. Protagonista de seu destino enfrentou todos os riscos para que pudesse usufruir seus direitos de cidad, abdicando de alguns ideais cristalizados no inconsciente feminino como casamento e filhos. Na luta por uma sociedade mais justa, ao lado de Paulo, manteve-se sempre coerente as suas convices. Em uma das cenas ela mesma que explica sua condio:

    A narrativa no linear apresenta um recurso indito para poca o que contribuiu para tornar o filme aparentemente catico como aquele determinado momento histrico. Ao sintetizar a narrativa, Sanches diz:

    (...) Eu queria me casar, ter filhos como qualquer outra mulher! Eu fui lanada no corao do meu tempo, eu levantei nas praas meu primeiro cartaz ,eles vieram ,fizeram fogo, amigos morreram e me prenderam e me deixaram muitos dias numa cela imunda com ratos mortos, e me deram choques eltricos, e seviciaram e me libertaram com marcas e mesmo assim eu levei meu segundo, terceiro e sempre cartazes e panfletos e nunca os levei por orgulho. Era uma coisa maior, em nome da lgica dos meus sentimentos! E se foram a casa, os filhos, o amor... As ambies normais de uma mulher normal... (SENNA, 1985, p. 300).

    Terra em Transe, no linear e alegrico, narra a trajetria do poeta jornalista e aspirante a poltico Paulo Martins ( Jardel Filho) . Por meio do recurso de descrever o delrio que antecede a morte (Paulo foi baleado e agoniza), a vida do poeta reprisada, sem compromissos rgidos com cronologia ou com a narrativa clssica cinematogrfica (SANCHES, 2000, p. 34-35).

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    O filme em sua estreia obteve sucesso de critica, sendo vencedor do prmio da crtica internacional no festival de Cannes, mas no encontrou ressonncia no grande pblico. A narrativa no-linear impossibilitou a compresso do filme o que para muitos tornara-se hermtico. Sob este aspecto, o espectador atual, um pouco mais familiarizado a esse tipo de recurso cinematogrfico, est mais apto para perceber todas as nuances da narrativa. Esses aspectos tcnicos contriburam para as inovaes na poca de sua estreia. Terra em Transe depurou e consolidou todas as inovaes criadas pelo Cinema Novo. Sanches fala sobre a percepo do espectador ante as inovaes do filme e ressalta que o eventual espectador de Terra em Transe deve se acostumar pulverizao do ponto de vista. bombardeado por uma artilharia de perspectivas conflitantes, s vezes incompatveis umas com as outras (SANCHES, 2000, p. 35).

    As relaes entre Histria e Cinema revelam uma fonte inesgotvel de informaes quando analisamos o filme Terra em Transe. Percebe-se no filme semelhanas com a Histria recente do pas. Uma dessas semelhanas a mdia ter fora para eleger um candidato, mesmo que este no possua nenhuma base eleitoral. Dias se elege devido a sua mquina de propaganda, caso semelhante ao que aconteceu com Fernando Collor de Melo. Outras relaes so mais bvias como a EXPLINT, uma fora do capital internacional que ajuda Dias em seu golpe, qualquer relao com os Estados Unidos no mera coincidncia. As semelhanas so muitas, a cena da luta pela posse das terras demonstra que o pas evoluiu pouco no que diz respeito reforma agrria, pois so usados, ainda, os mesmos aparatos repressivos quando se trata de qualquer manifestao deste gnero. Hollanda afirma:

    Essa proximidade entre o cinema de Glauber Rocha e a Histria do pas se d pelo fato de que o cineasta baiano um crtico ferrenho da realidade brasileira. Sua obra coerente neste aspecto, pois se analisarmos seus filmes, sempre est presente uma reviso do Brasil com todas as suas idiossincrasias. Muito da conscincia que se tem do Brasil hoje, deve-se a insistncia de Glauber em pensar o pas como detentor de recursos para se tornar uma grande nao. Contudo, para isso deveria assumir, primeiro, o seu subdesenvolvimento, no com olhos eurocentristas, mas julgar-se pela sua prpria realidade. Da advm todo o projeto de Glauber.

    A realidade percebida e refletida pelo cineasta no era glamorosa, muito antes pelo contrrio, se concretizava atravs do manifesto Uma esttica da fome de 1965. Em sntese essa cartilha, que se tornara pontual para todo o Cinema Novo, postulava que o cinema brasileiro deveria se organizar a partir da precariedade dos recursos disponveis, em uma oposio clara ao cinema de Hollywood. Durante este perodo Glauber afirmava que

    Pela inveno e pela atualidade das questes que levantava, Terra em Transe iria constituir-se como o ponto alto do Cinema Novo aps 64. As sugestes de um texto marcado pela informao moderna e pela vitalidade crtica repercutiriam profundamente no ambiente cultural, servindo de estmulo e ao mesmo tempo integrando o surto de revises e de criao que em 1968 ganharia forma de movimento com o Tropicalismo (HOLLANDA, GONALVES, 1982, p.49).

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    Ao explorar a realidade brasileira o cinema glauberiano conseguiu transpor para as telas as inquietaes de uma gerao preocupada com o destino do pas. Essa perspiccia no entendimento dos reais problemas do Brasil que torna o filme Terra em Transe um documento histrico de real valor. Muitos dos problemas apontados na narrativa permanecem sem soluo, como, por exemplo, a questo agraria, falta de escolas, uma sade precria e, principalmente, uma elite insensvel a toda a essa problemtica.

    Minha proposta foi trazer luz alguns traos marcantes da obra de Glauber Rocha ao analisar este que um dos seus filmes mais emblemticos e, tambm, entender como a Histria pode servir de base para o entendimento deste gnero de filme.

    CONCLUSO

    A reflexo sobre o Brasil proposta por Glauber Rocha no filme Terra em Transe com base na Esttica da Fome e nos preceitos do Cinema Novo contriburam e contribuem para a compreenso da realidade brasileira. Dessa forma, o uso deste documento como fonte histrica s tem a acrescentar ao dilogo entre Cinema e Histria. Assim, ao fazer o cotejamento entre o contexto ficcional, o perodo em que foi exibido o filme e o tempo presente, percebe-se o quanto a obra ainda tem a ser explorada, pois ela passvel de uma infinidade de leituras.

    Ao identificar o uso da alegoria como princpio esttico e poltico fica evidenciado que o diretor utilizou este recurso para poder falar, ainda que de forma metafrica, sobre o golpe, as instituies, a injustia social, a corrupo, o populismo e toda a sorte de aes que estavam em desacordo com a liberdade da nao. Consequentemente, esse recurso se tornou uma arma em defesa da liberdade, naqueles tempos de tanta violncia consentida. Dentre as muitas falas que ilustram o perodo como negro uma se destaca pelo tom proftico, lvaro: Eu no posso fazer nada diante dos dias de trevas que viro (...). (SENNA, ANO p.318) Um ano aps o lanamento do filme seria decretado o AI-5.

    Ao aproximar o filme da esttica do cinema atual, percebe-se que existe uma tendncia da linguagem contempornea a um afastamento da Esttica da Fome a qual era recorrente no cinema nacional. Este um dado importante, pois os cineastas, hoje, no reconhecem na precariedade do Cinema Novo o pas onde vivem. Os tempos so outros e modo de fazer cinema, tambm, no entanto, alguma das questes apontadas por Glauber Rocha em Terra em Transe se percebe que no mudaram. Talvez, esta seja uma possvel reflexo para as novas relaes entre Cinema e Histria.

    Nossa gerao tem conscincia: sabe o que deseja. Queremos fazer filmes anti-industriais; queremos fazer filmes de autor, quando o cineasta passa a ser um artista comprometido com os grandes problemas do seu tempo; queremos filmes de combate e filmes para construir no Brasil um patrimnio cultural (HOLLANDA, GONALVES, 1982, p.37).

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    AZEVEDO, Fernando Antnio. As ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

    CARDOSO, Ciro; MAUAD, Ana. Histria e Imagem: Os Exemplos da Fotografia e do Cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS Ronaldo (org.) Domnios da Histria. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

    CASTRO, Andr Piana de (org.) Cinema e Ditadura Militar. Porto Alegre: Da Casa Editora, 2005.

    HOLLANDA, Heloisa Buarque de; GOLALVES, Marcos A. Cultura e Participao nos Anos 60. 3ed. So Paulo: Brasiliense, 1984.

    LE GOFF, Jacques. Histria: Novos Objetos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A.,1976.

    LE NOUVEL OBSERVATEUR. Comment lHistoire fait-elle son cinma ?, Paris, p. 92-94, 23 dcembre au 5 janvier 2010.

    MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematogrfica. So Paulo: Brasiliense, 1990.

    RIDENTI, Marcelo. Cultura e poltica: os anos 1960-1970 e sua herana. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Luclia (org.). O Brasil Republicano. 2ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007.

    SANCHES, Pedro Alexandre. Tropicalismo: decadncia bonita do samba. So Paulo: Boitempo, 2000.

    SENNA, Orlando. Glauber Rocha Roteiros do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Alhambra / Embrafilme, 1985.

    Referncias bibliogrficas