16
Francesco Carnelutti AS MISÉRIAS DO l PROCESSO PENAL

As Miserias Do Processo Penal 1-29

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: As Miserias Do Processo Penal 1-29

Francesco Carnelutti

AS MISÉRIAS DO lPROCESSO PENAL

Page 2: As Miserias Do Processo Penal 1-29

VÍM Terrestre*Rafael Tárreiis Martins.INVESTIGACÍ00EPATERNIDADEOrlandoFidaeJ.B-TorresdcAlbuequcrque.MANUALDEDIREITOPROCESSUALTRARALHISTAMarcus Vinícius Americano da Costa.MANUALDEDIRE1TOINDIVIDUALDOTRABALHOMarcufVmiciusAmencanodaCosta• PETIÇÕES E PEÇAS PROCESSUAIS DO PROCURADOR DOMUNICÍPIOMarcusViníciusAinericanodaCosla.DAEXECUÇiOFISCALEDOCRIMEDESONECAÇÃOFISCALOrlandoFida-J B.TorresdeAlbuquerque.FUNDAMENTOS DE DIREITO E LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIAAntónio Cario» Bausta Martinez• MATEMÁTICA E RACIOCÍNIO LÓGICO MATEMÁTICO PARACONCURSOSLuísRobertoFrancoRodrígues-INSTITUIÇÕES DE DIREITO PUBLICO E PRIVADOEdson Jacinto da Silva•PETIÇÕESEXTRAJUDICIAISEDEIJEISESPECIA.SIrineuAnlonioPedrotti-Willan António Pedrotti• PETIÇÕES CÍVEIS FUNDAMENTADASIrineu António Pedrotti- Willan António Pedrotti•ANOVAREFORMAORTOGRÁFICÁDAUNGUAPORTUGUESA

José Maria Martins Schlítuer•DASLESÕESCORPORÁISMarcos Vinícius Rodrigues César Doria'RECURSOS DE ESTILO EM REDAÇÃO PROFISSIONALJo»éManaMardnlSchlittlcr• COMO ÍAZER MONOGRAFIASJosé Maria Martins Schlittler-INTERNET. NOME DE DOMÍNIO E MARCASRafael Tárrega Maruns«SINDICÂNCIA E PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAREdson Jacin to daSilva•MANUALDOASSESSORJURÍDICO DO MUNICÍPIOPelrónioBraz• DA PRESCRIÇÃO E DA DECADÊNCIA NO CÓDIGO OVTL DE2002.Vilson Rodrigues Alves•ADMINISTRAÇÃO DE BENS E IMO VEISGabriel José Pereira Junqueira•ESTATUTO DO IDOSO COMENTADONaidc Maria Pinheiro•RESPONSABILIDADE CTvTLEPENAL DO MÉDICONeri Tadeu Camará Souza•TRATADO PRÁTICO DOS REGISTROS PÚBLICOS-5VOLMoacir Pantaleào

llVcRolMPKESA LUZ "̂ NOV° ESTATUT° D*Jonas Lima

Marcelo Augusto Scudeler• DDJEITO, ODADANU E A CONSTITUIÇÃOMarcus Vinícius Americano da Costa• ADVOCACIA, JUSTIÇA, POLÍTICA E A CONSTITUIÇÀOMarcus Vinícius Americano da Costa• O VEREADOR - ATRIBUIÇÕES, DIREITOS E DEVERESPetronio Braz• PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINARPetronio Braz• DA SUCUMBÊNCIA NO PROCESSO OVIL

ito António Boccuzzi Neto

Ò^TR«S!ÍSo0 D° CORREI0 ELETRÔNICO NO AMBIENTEHruno Herrlein Correia Neto

As MISÉRIAS DO PROCESSO PENAL,

Page 3: As Miserias Do Processo Penal 1-29

As MISÉRIAS DO PROCESSO PENALsíAL

ServándaE D I T O R A

Campinas/SPr*\i l \l

Page 4: As Miserias Do Processo Penal 1-29

Ficha Catalográfica Elaborada peloSistema de Biblioteca» Unicamp - Dtretorla d* Tratamento da Informaçio

Bibliotecário; Helena Joana Fllpsen - CRB-8V5283

C215m Carneluttl, Francesco,As Misérias do Processo Penal / Francesco Carnelutti.

- Campinas, SP; Servanda Editora. 2010.21cm. 128 p.

Tradução livre: Sewanda Editora

1. Processo Penal - Brasil, 2. Direito Processual. 1. Titulo.

CDD 345.8105347.05

índice para catálogo sistemático

1. Processo Penal - Brasil2. Direito Processual

345.8105347.05

Projeto Gráfico e Editorial: Regina/ Vieira Jr.Capa: Ramon Rodolfo de Vitto MizunoRevisão: José Maria Martins Schlittler,Interpretação de textos e notas: Regina] Vieira Jr.Diagramaçáo: Josué Luiz Cavalcanti LiraCoordenação e Supervisão: Maria Angelina de Lima

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, sem per-missão expressa do Editor (Lei n5 9.610, de 19/2/1998)

Todos os direitos desta publicação reservados à

Servanda Editora e Distribuidora de Livros Ltda.Rua Capitão Francisco de Paula, 272 - CambuiCEP 13024-450 - Campinas/SPFone: (19) 3253-6973 - Fax: (19) 3254-0240e-mail; [email protected]: www.servandaeditora.com.br

ISBN: 978-85-7890-005-2

Juizes e oficiais constituirás em todas as tuas cidadesque o SENHOR teu Deus te der entre as tuas tribos,

para que julguem o povo com reto juízo.

Não torcerás o juízo, não farás acepção de pessoas,

nem tomarás suborno; porquanto o suborno cega os

olhos dos sábios, e subverte a causa dos justos.

A justiça, somente a justiça seguirás; para que vivas,

e possuas em herança a terra que te dá o SENHOR

teu Deus.

Bíblia Sagrada - Velho Testamento.

Deuteronômio, (ou 2- Lei), 16.18 a 20.

Page 5: As Miserias Do Processo Penal 1-29

SUMÁRIO

Introdução 9A Toga 19O Preso 27O Advogado 35O Juiz e as Partes 45A Parcialidade do Defensor 55As Provas 65O Juiz e o Acusado 73O Passado e o Futuro no Processo Penal 83A Sentença Penal 91O Cumprimento da Sentença 101A Libertação 111Conclusão - Além dos Domínios do Direito 121

Page 6: As Miserias Do Processo Penal 1-29

INTRODUÇÃO

A Voz de San Giorgio é a voz de comunicação do Cen-tro de Civilização e Cultura da Fundação Giorgio Cini, se-diada em Veneza, cidade maravilhosa, sobre a ilha fronteiraà Praça de São Marcos e ao Palácio Ducal, que as arquitetu-ras de Buora, Paládio e Longhena, hoje restauradas ao seuantigo esplendor, emolduram de outras tantas maravilhas.

O Centro propõe-se a colocar a cultura a serviço dacivilidade, ou, em palavras mais simples, a difundir conhe-cimentos para o benefício da humanidade.

Este deveria ser o destino do saber, mas nem sempreas coisas se encaminham como devem. O saber, a exemploda energia atómica, tanto pode servir para o bem, comopara o mal; pode tornar os homens piores, ou melhores;pode levá-los a erguer a cabeça, em atitude de soberba, oua se inclinarem em demonstração de humildade.

Este ano, oportunamente e a esse propósito, poderí-amos conduzir as pessoas comuns a uma reflexão sobre o

Page 7: As Miserias Do Processo Penal 1-29

10 prancesco Carnelutti

Processo Penal. Porém," prelos argumentos cientifiro tema apresenta, em um primeiro momento pòcer um tanto inadequado para exposições e debaa um grande publico interessado somente em £especialmente, quando ouve o rádio.

Mas, quando se fala em civilização, é justamente aí qi

está o xis da questão. Divertir-se, nesse caso, significa fugirdo cotidiano, afastar-se de uma monotonia tão amarga etão difícil que, às vezes, torna essa necessidade de fuga emalgo inevitável.

Ora, eu não vivo alienado da realidade a ponto de nãoreconhecer, alias, de não experimentar, também, essa ne-cessidade. Existe, porém, outro meio de fugir do cotidiano,um meio oposto ao da diversão, mas os opostos se atraeme se tocam, diz o velho provérbio. Trata-se do recolhimentopara a oração. Não existe maneira de fuga mais enlevada doque esta, afinal ela é a forma mais completa de isolamento.

A maioria das pessoas não se dá conta disso, talvezpor nunca tê-la experimentado; quem a experimenta sabediscernir, perfeitamente, a diferença entre o que nos pro-

porciona a oração e a diversão.

O Processo Penal, ao longo do tempo, sempre des-pertou o interesse das pessoas, mas atualmente o tem feito

de uma maneira bem mais evidente.

As Misérias do Processo Penal

As notícias que ocupam, hoje, boa parte dos jornais,são, principalmente, sobre os crimes e os seus processos.Quem os lê tem a impressão de que, atualmente, são prati-cados mais delitos do que boas ações, isso porque aquelessão como as papoulas: quando, em um campo, se tem uma,todos logo dela se apercebem; as boas ações, porém, sãocomo as violetas: escondem-se entre as ervas do campo.

Se os jornais noticiam frequentemente sobre crimes eprocessos, não resta dúvida de que é porque as pessoas seinteressam por eles. Aliás, são os processos penais maiscélebres que despertam nas pessoas um interesse bemmaior; por isso, eles tem-se tornado, de um modo geral,em uma espécie de diversão para elas. Tentam fugir docotidiano da própria vida, ocupando-se com a vida dosoutros, e esta nunca é tão interessante como a que setransforma em um drama. O problema é que as pessoasassistem ao processo como se assistissem a um filme, emuma sessão de cinema: agem como se o delito e o Proces-so Penal não tivessem qualquer relação com pessoas nemcom fatos, mas só com personagens, como nos filmes.O comportamento do público, diante do suposto dramapenal e de seus protagonistas, é o mesmo da multidão,de outrora, que assistia aos combates dos gladiadores nasarenas, ou da que ainda hoje assiste, nos estádios, a umacorrida de touros, em alguns países do mundo. Dessemodo, infelizmente, o Processo Penal não passa de umaescola de incivilidade para todos.

Page 8: As Miserias Do Processo Penal 1-29

12

Minhas palavras, até aqui, não têm outra conotaçsenão a de fazer com que o Processo Penal deixe dum motivo de diversão, para se tornar um motivo de ̂

xao. O velho argumento de que as reflexões, envolvendoprocesso, devem reunir somente homens de ciência e QU('as pessoas comuns, nesse sentido, em nada podem contri•mr, não me convence. É certo que os juristas o estudam

mas também é certo que deveriam estudá-lo mais porquêassim o seu frágil mecanismo, como o dos demais proces-sos, seria aperfeiçoado. O problema do Processo Penal,acredito, é um problema que pode ser resolvido como osda mecânica, com os juristas estudando-o, aperfeiçoandoas suas engrenagens, como fazem os engenheiros. Tantoos juristas, como as pessoas comuns, que se interessamcada dia mais pelo Processo Penal, precisam ser conscien-tizadas da necessidade do seu aperfeiçoamento para nãoo confundirem com um espetáculo qualquer ao qual vãoassistir em busca de emoções. Poucos aspectos da vidasocial têm tanta relevância para a civilidade de um povo,quanto este.

Não é a primeira vez que me deparo com a realidadede que a definição de civilidade é, simplesmente, a capaci-dade natural dos seres humanos de se amarem e de vive-rem em paz uns com os outros, portanto, em sociedade,raramente encontrada nos livros com palavras tão simples,porque, infelizmente, os seres humanos são e adoram serterrivelmente, complicados.

As Misérias do Processo Penal 13

Ora, o Processo Penal é o termómetro da civilidade.Não porque os delitos, hora mais, hora menos graves, pos-sam representar o grau de intensidade do drama do desa-mor e da inimizade social, mas pela influência e animosida-de que eles podem exercer sobre o relacionamento advindoentre as pessoas de quem os comete, ou, supostamente, ostenha cometido, e as dos que, atónitos, presenciaram ou seinteiraram da sua perpetração.

Vamos retomar o assunto sobre o qual falávamos ain-da há pouco, porque devemos refletir mais um pouco so-bre o que ocorria nos assentos da Arena de Massimo, lápelos idos de Roma, e o que ocorre ainda hoje nas praçasde touro da Espanha, do México e do Peru. Há alguns dias,detive-me, demoradamente, a esse respeito, quando assis-tia à exibição de um documentário mexicano no qual, sur-preendentemente, pelo semblante enfurecido das pessoas,podia-se notar claramente os ânimos totalmente exalta-dos do público contra um toureiro que não demonstravao esperado desprezo pelo perigo. Quem era ali o maisanimalesco, o público ou o touro? Tais comportamentosnão se podem explicar, a não ser separando as pessoas daplateia das que estão dando o espetáculo e, nesse caso, osgladiadores eram considerados mais como coisas do quecomo homens.

Pode haver uma forma mais expressiva de incivilidadedo que considerar uma pessoa como uma coisa? Lamenta-

Page 9: As Miserias Do Processo Penal 1-29

14 Francesco Carnelutti

velmente, é isso o que acontece nove, entre dez vezes n

Processo Penal. Na melhor das hipóteses, aqueles que as

pessoas vêem trancafiados nas jaulas dos tribunais, como

animais de um jardim zoológico, são considerados como

pessoas fictícias, não como seres humanos partícipes de

uma triste realidade. Se alguém os considera humanos, os

vê como seres de uma raça inferior, de um mundo estranho

ao seu. Resumindo, as pessoas se sentem superiores em

relação às outras, porque, certamente, não se lembram ou

não conhecem a parábola do fariseu e do publicano.1 Nem

sequer suspeitam de que a sua mentalidade é a mesma do

fariseu que dizia: "não sou como aquele".

l Bíblia Sagrada - Tradução de João Ferreira de Almeida, edição

2002, revista e atualizada - N.T. - Lucas 18. 9 a 14: Propôs

também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos,

por se considerarem justos, e desprezavam os outros: Dois ho-

mens subiram ao templo, com o propósito de orar; um, fariseu,

e o outro, publicano. O fariseu, posto em pé, orava de si para

si mesmo desta maneira: Ó Deus, graças te dou porque não sou

como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem

ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou

o dízimo de tudo quanto ganho. O publicano, estando em pé, de

longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia

no peito, dizendo; Ó Deus, sê propício a mim, pecador1. Digo-vos

que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque

todo o que se exalta será humilhado, mas o que se humilha será

exaltado.

As Misérias do Processo Penal 15

Para merecermos o título de cidadãos civilizados deve-mos sentir e agir exatamente ao contrário, pois somentequando dissermos, sinceramente, "sou como ele", tornar-nos-emos dignos de viver em civilização.

Para uma maior conscientização de que esse comporta-mento não condiz com a civilidade, procuraremos compreen-der, juntos, o que é o Processo Penal e, para isso, nada maisé preciso fazer senão recordar a minha velha caminhada.

Quando criança, como quase todo mundo, eu me sen-

tia muito atraído, para não dizer apaixonado, pelo espe-táculo do Processo Penal e, sobre isso e a esse propósito,

relatarei, mais adiante, um episódio que marcou profunda-

mente a minha existência.

Na universidade, porém, uma série de circunstâncias,

entendidas depois como desígnios providenciais, desviou-me do Direito Penal para o Direito Civil, ao qual me dedi-

quei quase que exclusivamente, naquela época.

Assim, tornei-me mais um civilista do que um crimi-

nalista por um longo período da minha vida. Nessa época,

Obs.: Doravante não apontaremos mais a edição da Bíblia Sa-

grada utilizada para a transcrição das suas citações, nas notas

de rodapé, por tratar-se sempre da edição de 21 '

atualizada, mencionada aqui, nesta

Page 10: As Miserias Do Processo Penal 1-29

16 Francesco Carnelutti

minhas atividades científicas voltaram-se também, demo-radamente, para o terreno do Direito Civil, porém, umaespécie de atração secreta pelo Direito e pelo ProcessoPenal permaneceu oculta em mim e irromperia, mais tar-de, como uma fonte de águas subterrâneas que já não sepodiam conter.

Seria urn despropósito contar aqui, detalhadamente,as experiências e oportunidades que a vida já me propor-cionou, mas, em certa ocasião, transferi-me novamente dacátedra do Processo Civil para a do Direito Penal, e depoisda do Direito Penal para a do Processo Penal. Essas idas evindas, de certa forma, me proporcionaram uma experiên-cia semelhante à de subir por uma montanha. Depois deum longo e difícil trajeto entre rochas, consegui, finalmen-te, chegar ao topo e, contemplando-a dali, repentinamen-te, todo o seu panorama se descortinou diante de mim,completamente iluminado pela luz do sol.

Ficaria alguém surpreso com essa analogia? Seria oDireito Penal um direito das alturas e não dos vales; umdireito das luzes, não das sombras? Na verdade, confir-mada a admirável revelação do apóstolo Paulo,2 nesta

2 Bíblia Sagrada - N. T. - l Coríntios 13. 12: Porque agora vemos

como em espelho, obscuramente; então, veremos face a face.

Agora, conheço em parte; então conhecerei como também sou

conhecido.

Misérias do Processo Penal 17

vida enxergamos tudo invertido, vemos as coisas comoem um espelho.

Realmente, o Direito Penal é um direito das sombras,mas se não as atravessarmos, como chegaremos à luz?Pelo menos, foi o que aconteceu comigo. Cada ser huma-no traça o seu próprio caminho e, particularmente, como afisionomia de cada um, todos nós temos um caminho dife-rente. Durante todo o tempo em que me relacionei com aspessoas chamadas de homens de bem, não dei um passosequer mais elevado, por me considerar uma delas. Conhe-cer os malfeitores foi o que me fez admitir, de fato, nuncater sido melhor do que eles, e eles jamais terem sido pioresdo que eu; hoje, a experiência me leva a dizer que estaera a lição que eu, propriamente, como todo ser humanoinclinado ao orgulho e à soberba, mais precisava aprender.

Preciso confessar que eu também assistia ao espetá-culo dos gladiadores, do alto da arena, observando-os decima para baixo como se eles nada significassem para mim.Se esses gladiadores, no centro da arena, fossem nossosirmãos, porventura não nos apressaríamos em correr atéeles para tentar livrá-los e salvá-los?

Pois bem, de que maneira os criminosos foram se tor-nando, de estranhos, em irmãos para mim, precisamente,eu não sei. O que sei, exatamente, é que isso de fato acon-teceu, e que, desde então, um panorama todo iluminado

Page 11: As Miserias Do Processo Penal 1-29

18 Francesco Carnelutti

pela luz do sol desvendou-se diante dos meus olhos, e issoé o que realmente importa.

Não devo me iludir, certamente, quanto à eficácia dasminhas palavras, mas de acordo com os ensinamentos doincomparável filósofo, que, ao menos, todos devem re-conhecer em Cristo, quando O querem conceber apenascomo um homem, devo saber que as palavras são comosementes.3 Apesar deste meu trigo ainda estar misturado amuito joio, é possível que, aqui ou ali, algumas das suas se-mentes germinem; então, sem pretensão, mas com muitadevoção, sigo semeando, não por pretender que a colheitame recompense a cem, sessenta, ou trinta por um, maspor saber que, se porventura uma só delas cair em terrafértil e, germinando, florescer, não terei semeado em vão.

Bíblia Sagrada - N.T. - Mateus 13. l a 8: Naquele mesmo dia,

saindo Jesus de casa, assentou-se à beira mar; e grandes multi-

dões se reuniam junto dele, de modo que entrou num barco e se

assentou; e toda a multidão estava em pé na praia. E de muitas

coisas lhes falou por parábolas e dizia; Eis que o semeador saiu

a semear. E, ao semear, uma parte caiu à beira do caminho, e,

vindo as aves, a comeram. Outra parte caiu em solo rochoso,

onde a terra era pouca, e logo nasceu, visto não ser profunda a

terra. Saindo, porém, o sol, a queimou; e, porque não tinha raiz,

secou-se. Outra caiu entre espinhos, e os espinhos cresceram e a

sufocaram. Outra, enfim, caiu em boa terra, e deu fruto: a cem,

a sessenta e a trinta por um. Também Lucas 8. 4 a 8.

ATOGA"

A primeira coisa que se nota e impressiona, quando en-tramos pela primeira vez em uma Corte em que se discuteum Processo Penal, é a solenidade das roupas, evidencian-do a autoridade de umas pessoas sobre as outras durante otranscurso dos trabalhos. Esta foi a primeira impressão queeu tive da Justiça e a que ficou para sempre entre as minhaslembranças do dia em que, ainda menino, fui levado até a

4 O Nouo Dicionário Aurélio - da Língua Portuguesa - V edição

revista e ampliada, dá a palavra beca como sinónimo de toga,

porém é comum mencionar-se a toga como símbolo da magis-

tratura, e a beca como da advocacia. Esse costume, porém, não

está fundamentado no melhor da tradição histórica. Na Roma

antiga, essas vestes talares, denominadas, posteriormente, de

togas ou becas, não eram usadas exclusivamente pelos magis-

trados; advogados, jurisconsultos e outros cidadãos também a

usavam.

Page 12: As Miserias Do Processo Penal 1-29

20 Francesco Carnelutti

Corte de Apelação, nas proximidades da Rua Cavour, emFlorença, para assistir a uma das suas sessões e, de uma dasjanelas do palácio que a abrigava, vi um magistrado, vestidode toga, saindo de uma das suas salas. Fiquei encantado!Aquela visão me impressionou sobremaneira.

Pois bem. Será que existe um motivo especial para ma-gistrados e advogados usarem a toga? Tal vestimenta nãome parece um aparato necessário ao tipo de função queeles exercem, como é o caso do avental branco dos médi-cos, por exemplo. É evidente que nem os juizes nem os ad-vogados teriam a necessidade de mudar ou de cobrir as suasvestes para, rotineiramente, exercerem as suas funções. Emais: em alguns países do mundo, a toga, ordinariamente,nem é utilizada; entre nós, por exemplo, na Itália, não seusa a toga nos tribunais de primeiro grau, ou, como quei-ra, em primeira instância. Por que é utilizada, então? Seriapara honra ou observância de alguma tradição? Afinal decontas, a que se deve o estabelecimento do seu uso, então?

Creio que as respostas a todas essas perguntas podemestar relacionadas com a função do seu uso, na explica-ção da própria palavra. A toga, como já dissemos, é umavestimenta que evidencia a autoridade de quem a usa, domesmo modo que a divisa dos militares, mas com uma di-ferença: os magistrados e os advogados somente a utilizamdurante os atos, particularmente, considerados solenes,muito embora na França e, principalmente, na Inglaterra,

As Misérias do Processo Penal 21

onde os costumes são observados mais rigidamente, o usoda toga é obrigatório até mesmo para os advogados aden-trarem as dependências do Judiciário.

Mas agora pergunto: se divisa, manifestamente, vemde dividir, por que o uniforme dos militares inclui essesdetalhes? Teriam eles relação com alguma ideia de divisão?A dúvida se esvai, rapidamente, se substituirmos o verbodividir por seus afins, destacar, ou distinguir. Numa socie-dade organizada, é necessário distinguir os militares, pri-meiro entre eles mesmos, por causa das patentes, depoisentre nós, os civis, não é assim? Aí está! As divisas dos uni-formes militares evidenciam graus de autoridade existenteentre eles, não divisão. Tenho muitas razões para afirmarque uma atenta observação ao sentido das palavras podeorientar rapidamente: por exemplo, se a autoridade é exer-cida, por excelência, nas Cortes de Justiça, o sentido doseu significado já nos orienta sobre a razão de se deveremdistinguir, também, ali, aqueles que a exercem sobre osdemais. Por esta mesma razão (de "divisa"), os sacerdotesusam vestes talares; porém, para o ofício dos atos maissagrados das suas funções, apresentam-se, especialmente,vestidos, para uma evidência maior da autoridade neles in-vestida para oficiarem aqueles atos.

Esses trajes que evidenciam a autoridade, como aque-les dos militares com as divisas, também são chamados deuniforme, cujo significado parece, agora, contradizer o sen-

Page 13: As Miserias Do Processo Penal 1-29

Francesco C22

tido da palavra divisa por não sugerir distinção mas -Fundamentalmente, esses dois significados se complemetam: a toga, tal como o uniforme militar, com divisasum só tempo distingue e une os que a usam. Assim aomesmo tempo em que distingue, entre magistrados e ad-vogados, os une, distinguindo-os dos leigos. Esse tipo deunião, como veremos, tem um altíssimo valor.

Examinemos primeiro a união entre juizes. A expres-são "O Juiz", como se sabe, nem sempre representa a ideiade um homem só. Nas causas mais graves, por exemplo,é comum eles se unirem em colégio para atuarem em con-junto, e o referencial a eles, nesses casos, é o "Juiz", justa-mente por estarem unidos como se fossem um só, como osom de um instrumento musical produzido pela harmoniade todas as notas reunidas em um acorde.

A toga dos magistrados, então, não representa apenasa autoridade de um Juiz de Direito, mas a autoridade uni-forme de todos eles juntos, ou seja, faz tão solene o vínculoque os une, que a solenidade da sua união nos faz lembrarum coro reunido. As sessões colegiadas da Corte de Cas-sação, que reúnem sempre, no mínimo, quinze juizes toga-dos, lembram frades emoldurados pelos bancos do coro,quando se preparam para os cânticos matinais. Quem co-nhece o procedimento da Justiça Colegiada, certamente,não terá por estranha essa menção de coro reunido para

expressar a solenidade da reunião dos seus juizes.

As Misérias do Processo Penal 23

Nesse sentido, portanto, o conceito de uniforme datoga nos servirá de orientação para entender melhor a ra-zão do seu uso entre os membros do Ministério Público eAdvogados, além dos Juizes. Procuraremos compreender,agora, a necessária atuação desses outros profissionais,ao lado dos juizes, nos processos. Todos sabem que ospromotores de justiça e os advogados não participam dosprocessos como julgadores, ao contrário, fazem parte de-les como alguém que também será julgado. Por ventura,ouvir do Juiz sobre se estavam certos ou errados comoacusadores ou defensores, ao final do processo, não é, decerta forma, "ser julgado"? Promotores e advogados são,portanto, nos processos, em relação ao juiz, o lado de foradas trincheiras: enfrentam-se no clamor da batalha. Pode-ríamos questionar, então: se a toga é, realmente, símbolode autoridade, não deveria ser usada por eles? E mais: seela é o símbolo da união entre todos os que a usam, porque só entre os juizes reina o acordo e a união e entre osacusadores e defensores sempre o desacordo e a divisão?A resposta é simples: enquanto o Ministério Público e osadvogados de defesa estão no processo para provocarem aguerra, o juiz está lá para promover a paz.

Justamente! No Processo Penal é necessário provocara guerra para se garantir a paz. Ora, esta fórmula parececontroversa, mas, a certo ponto deste trabalho, chegare-mos à verdade dessa afirmação. O uso da toga, por acusa-dores e defensores, significa a união a serviço da autoridade

Page 14: As Miserias Do Processo Penal 1-29

24

FMncescoCarnelutu

do Juiz. Aparentemente estão divididos, mas na v Hestão unidos em um esforço comum, 'contribuindo" Íqual com o seu trabalho, para que a justiça seja alcançada

Reunidos, esses homens vestidos com a toga dão aosprocessos, especialmente ao Processo Penal, um aspec-to bastante solene. Quando essa solenidade é ofuscadacomo quase sempre ocorre, infelizmente, por negligênciados próprios magistrados e advogados, que não observama disciplina como deveriam, acaba havendo um reflexonegativo diretamente sobre a civilidade. Nos tribunais, areverência deveria imperar sempre, como nas igrejas. Porconsiderar o acusado um predestinado à vingança dos deu-ses, os romanos antigos lhe atribuíam um caráter sagradoe, em função disso, sempre procuravam buscar a verdademais profunda, em relação a ele, com respeito. Mas umjuízo justo, infalível, verdadeiro, só o juízo de Deus. Assim,aquele que se depara com a obrigação imprescindível, ne-cessária, de julgar, deveria ter no mínimo, quando julga,a consciência de que está fazendo o que só Deus poderiafazer, verdadeiramente. Nem um ateu ignora as afinidadesentre as obrigações do Juiz e do Sacerdote; as dos Juizessão referidas como obrigações de um sacerdócio civil.

A toga sem dúvida, induz à reverência. Mas a função

judicial, nestes nossos dias, sob esse aspecto, infelizmente

cada vez mais se encontra ameaçada pelos perigosos opositores da indiferença e da popularidade. Da indiferença,

As Misérias do Processo Penal 25

por causa do descaso cada vez mais demonstrado para comos processos considerados corriqueiros, normais; da popu-laridade, em função do clamor popular, que a cada dia en-volve os processos mais célebres. Naqueles, as togas maisparecem um paramento inútil; nestes, lamentavelmente,assemelham-se a vestes teatrais. A publicidade do ProcessoPenal, que deveria dar à população uma noção geral sobreo modo da administração da justiça, para o controle da opi-nião popular e uma noção bem mais aprofundada sobre oseu valor cívico, desgraçadamente tem-se degenerado emuma motivação de desordem. Como se já não bastasse asuperlotação das dependências da Corte pelo público, deuma maneira incontrolável, a imprensa também assim pro-cede e, costumeiramente, tem acompanhado os processoscom tremenda insolência e tão imprudente indiscrição, queninguém ousa reagir contra ela, afastando, assim, qualquerpossibilidade de um ajuntamento reverente sob o controledaqueles que têm o tremendo dever de acusar, defender ejulgar. As togas dos magistrados e dos advogados confun-dem-se em meio à multidão. São cada vez mais raros osjuizes severos o suficiente, que possam tornar em realidadea repressão dessa desordem.

Há quase cinquenta anos, em Veneza, era julgado umprocesso por homicídio que atraía a curiosidade mórbidade quase toda a população, quando, em uma sessão do Tri-bunal do Júri, incrivelmente lotada, levantou-se, para sairdas grades e ser interrogada, a estupenda figura de Ma-

Page 15: As Miserias Do Processo Penal 1-29

26 Francesco Carnelutti

ria Nicolaevna Tarnovskij. No mesmo instante, centenasde senhoras que superlotavam os reservados puseram-sede pé e, em sobressaltos, voltavam toda sorte de lentes ebinóculos apontando-os em sua direção. Imediatamenteo insigne presidente do Tribunal, M. Juiz Angelo Fusina-to, bradou, indignado: "Amanhã, este espetáculo incívelnão se repetirá!". Mais do que as sábias medidas tomadase inflexivelmente mantidas durante todo o curso do lon-go processo, suas memoráveis palavras ainda me ecoamcomo naquele dia: "Este espetáculo incíve!". O presidenteque não tolerava um advogado falar, gesticular, ou se ves-tir de modo indigno com o seu ofício, era o mesmo queperdia a paz se de alguma maneira descobria que come-tera um engano ao decidir uma causa e não se retratassepublicamente. Eis o exemplo de um magistrado que com-preendia o valor do Processo Penal ante o desenvolvimen-to da civilidade de um povo. Os advogados de Veneza,para enaltecerem a sua pessoa como exemplo de firmeza,dignidade e abnegação, uniram-se em um esforço paraornamentarem o enorme átrio superior da Corte de Ape-lação daquela cidade com o seu busto. Se fosse possível,eu colocaria sob sua proteção, neste instante, trazendo àminha memória a sua imagem, aquilo que eu afirmo sera mais elevada experiência de civilidade para qualquer serhumano: o Processo Penal.

O PRESO

A solenidade e a pompa dos homens vestidos com atoga contrastavam, duramente, com a figura do homemque eu via por detrás das grades. Esta experiência eu nuncamais esqueci, desde o dia em que, ainda adolescente, resol-vi entrar no Tribunal de Turim para assistir a uma das suassessões penais. A toga dava aos homens que a usavamuma aparência sobre-humana; pareciam colocados mui-to acima de qualquer mortal; o réu, que eu podia ver porentre as grades, parecia um animal perigoso, enjaulado,exposto a uma situação humilhante, desumana. Bastavaolhar para ele: completamente só, diminuído e estranhoàquele ambiente; embora fosse de boa estatura e procuras-se não se inibir, não passava de um pobre, carente, enfim,de um necessitado ao extremo.

Todos nós temos as nossas predilecões, até mesmoquanto à maneira de sentirmos compaixão. Os homens

Page 16: As Miserias Do Processo Penal 1-29

Fran<*scoCarne,uttl

28

são diferentes uns dos outros até na maneiraexternar caridade. Este é um dos aspectos da ,dos seres humanos: uns concebem o pobre na fi * ^faminto, outros na de um desabrigado e outro?! !"""de um enfermo; para mim, de todos eles o encarcera^ *o mais pobre.

Preste muita atenção, eu disse o encarcerado, não odelinquente. Encarcerado como o colocou o Senhor, na-quele seu memorável sermão do vigésimo quinto capítulodo Evangelho de Mateus, que sempre me deixa fascinado.Até a pouco, não rne envergonha dizer, acreditei que o ter-mo encarcerado ali estivesse empregado como sinónimode delinquente, equívoco que me fez compreender, clara-mente, que, por mais que meditemos sobre as palavras deJesus, nunca o faremos satisfatoriamente.

O delinquente enquanto em liberdade, e não encarce-rado, é uma outra coisa; confesso que me repugnam e, emcertos casos, chegam até a me causar horror. Só uma vez,em toda a minha vida, presenciei a concretização do maiordos delitos. Os desafetos pareciam duas feras se enfren-tando, enquanto eu, totalmente horrorizado, permaneciaestático diante daquela cena grotesca. Mas bastou ver al-gemado o homem que acabara de desferir o golpe morVcontra o seu opositor, por policiais que providencialmente

acudiram ao local, para ver transformado em compaixãotodo o horror que naquele instante eu sentia em relação a

As Misérias do Processo Penal

ele. A grande verdade é que, depois de algemado, a fera sefoi e ele passou a se comportar novamente como um ser

humano.

As algemas são, também, símbolos do Direito. Pen-sando bem, talvez elas sejam o mais autêntico dos seussímbolos, mais expressivo até do que o da balança e oda espada. Basta sermos sujeitados pelo direito para queos nossos valores se evidenciem. As algemas servem, jus-tamente, para revelar valores intimamente ocultos do serhumano e, segundo um grande filósofo italiano, é esta afunção e a razão do direito: Quidquid latet apparebit, es-creve ele, e reforça, "Dies irae", ou seja, tudo o que estáoculto se revelará; virá à luz. O que vi, naquela manhã, soba aparência de uma fera irracional, lançando-se contra ooutro, alucinado, era, simplesmente, o ser humano. Tãologo sujeitado pelas algemas, em vez de uma fera aindamais agressiva, ressurgiu um homem como eu, com todasas suas maldades e bondades, com todas as suas trevas eluz, com sua espantosa miséria e incomparável riqueza. Dohorror a toda aquela assustadora miséria, logo me surgiua compaixão pelo ser humano que havia sido oculto pelaaparência da fera.

Teria eu me deixado envolver e enganar pela emoçãode escrever, quando me referi ao mal e ao bem, às trevase à luz, à miséria e à riqueza como atributos também dodelinquente? Já fui censurado inúmeras vezes por defender