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AS PERFORMANCES DO NARRADOR EM LYGIA BOJUNGA
Talita Silveira Coriolano
Rio de Janeiro
Março/2016
AS PERFORMANCES DO NARRADOR EM LYGIA BOJUNGA
Talita Silveira Coriolano
Tese de Doutorado submetida ao Programa
de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de
Doutora em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira.
Orientador: Prof. Doutor Godofredo de
Oliveira Neto
Rio de Janeiro
Março/2016
AS PERFORMANCES DO NARRADOR EM LYGIA BOJUNGA
Talita Silveira Coriolano
Orientador: Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de Doutora em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira)
Examinada por:
______________________________________________________________________
Presidente, Prof. Dr Godofredo de Oliveira Neto – PPG Letras Vernáculas – UFRJ
______________________________________________________________________
Profª. Drª. Anélia Montechiari Pietrani – PPG Letras Vernáculas – UFRJ
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcus Rogerio Tavares Sampaio Salgado – PPG Ciência da Literatura -
UFRJ
______________________________________________________________________
Profª. Drª. Giovanna Ferreira Dealtry – CEH - UERJ
______________________________________________________________________
Profª. Drª. Stefania Chiarelli. – CPGEL – UFF
Rio de Janeiro
Março de 2016
RESUMO
AS PERFORMANCES DO NARRADOR EM LYGIA BOJUNGA
Talita Silveira Coriolano
Orientador:
Godofredo de Oliveira Neto
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutora de Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira)
Lygia Bojunga, escritora gaúcha com 21 livros publicados, é conhecida e reconhecida
como autora de livros infanto-juvenis. Basta observar algumas das premiações a ela
concedidas, como o Hans Christian Andersen, mais tradicional prêmio internacional
para crianças e jovens, obtido em 1982 pelo conjunto da obra. Mas uma análise de seu
trajeto literário revela que seu processo criativo foi se modificando, a ponto de
atualmente ser questionável o direcionamento ao referido público. Identificamos a
chamada trilogia do livro (LIVRO: Um Encontro com Lygia Bojunga, Fazendo Ana Paz
e Paisagem) como o divisor de águas, a partir dessa trilogia observamos a presença de
uma primeira pessoa híbrida, indecisa, ambígua, oscilando entre o referencial e o
ficcional. Nosso corpus abarca justamente os seus livros em que a narração está em
primeira pessoa, são eles: a trilogia acima mencionada, Feito à Mão, O Rio e Eu e
Retratos de Carolina. Abordaremos alguns aspectos presentes em sua narrativa que a
tornam singular, como os jogos de equívoco, o desdobramento em camadas e a
simbologia das máscaras, bem como refletiremos acerca da relação da narrativa com o
leitor. Por fim estudaremos as performances desse narrador ambíguo, que desvela o seu
processo criativo ao mesmo tempo em que desnuda a ficção como ficção, oscilando
nessa tensão entre o referencial e o ficcional.
Palavras-chave: real, ficção, autoficção, performance.
Rio de Janeiro
Março/2016
ABSTRACT
THE PERFORMANCES OF THE FIRST PERSON IN LYGIA BOJUNGA
Talita Silveira Coriolano
Orientador:
Godofredo de Oliveira Neto
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutora de Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira)
Lygia Bojunga is a writer born in Rio Grande do Sul and she has 21 books published.
She is known and recognized as an author of chidren’s books as we can notice by taking
a look at some of the prizes she was awarded, like the Hans Christian Andersen.
However, reviewing her books reveals that she has changed her creative process and we
can’t assume by now that the public target is exclusively children and youngsters. We
identify the “Book Trilogy” (LIVRO: Um Encontro com Lygia Bojunga, Fazendo Ana
Paz and Paisagem), as called by the author, as the breaking point, from the trilogy on we
notice an ambiguous first person, which swings between real and fictional. We are
going to the study the six books that uses the first person, the “Book Trilogy”, Feito à
Mão, O Rio e Eu and Retratos de Carolina. We are going to discuss some of the singular
aspects we can find on the texts and the connection between the text with the readers. At
last, we are going to study the performances of this ambiguous first person, which
reveals it creative process by the same time it reveals itself as fiction, swing between
this tension of real and fictional.
Palavras-chave: real, fiction, first person, performance.
Rio de Janeiro
Março/2016
Aos meus filhos, Ana Beatriz Coriolano Pina e
Diego Coriolano Pina. Por e para eles. Sempre.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Godofredo de Oliveira Neto, por sempre acreditar em mim
e me incentivar incansavelmente. Somente com seu apoio esse trabalho foi concebido.
À minha amiga e parceira de trabalho Raquel Paiva, por me apoiar em um
momento difícil de minha vida pessoal, que coincidiu com um momento crítico da
produção da tese. Seu apoio e incentivo foram fundamentais.
Ao meu grande amigo Fabio Lordelo, sua amizade é preciosa, e me torna uma
pessoa mais feliz.
Aos meus pais, pelos valores transmitidos de coragem e perseverança.
Preciso ser um outro
Para ser eu mesmo
Mia Couto
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................11
1) O BOSQUE NARRATIVO DE LYGIA BOJUNGA.................................................22
1.1) Os jogos de equívoco...............................................................................................26
1.2) Desdobramentos.......................................................................................................42
1.3) Máscaras...................................................................................................................49
1.4) Perturbações.............................................................................................................57
2) EU TE LENDO...........................................................................................................65
3) PERFORMANCES EM CENA................................................................................108
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................139
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................144
ANEXOS.......................................................................................................................151
11
INTRODUÇÃO
O presente trabalho teve início há oito anos, ainda na graduação. A princípio,
quando ainda era um artigo para a Jornada de Iniciação de Científica, nem de longe
abordava as questões aqui discutidas. O trabalho analisava a tensão entre o real e o
imaginário comparando o livro A Casa da Madrinha, da autora estudada e Alice no País
das Maravilhas, de Lewis Carrol. Apesar de aparentemente tão distantes, ambos
apresentavam pontos de contato no limite dessa tensão entre o fictício e o chamado
“real”.
Mais tarde, já na dissertação de mestrado, o estudo cresceu e trilhou outros
caminhos. Comecei a cursar disciplinas que privilegiassem o tema do fantástico, da
tensão real/fictício/imaginário e numa delas me interessei por essa primeira pessoa que
se revela, que desvela o seu processo criativo, nos lança no limbo da incerteza e nos faz
questionar: Que primeira pessoa é essa?
O fantástico ficou guardado em uma gaveta e as performances dessa primeira
pessoa ambígua, indecidível (Sou real? Sou auto-ficcional?), conquistaram papel de
destaque no trabalho. A intenção a princípio seria analisar os seis livros de Lygia
Bojunga em primeira pessoa, Livro: um encontro com Lygia Bojunga (1988), Fazendo
Ana Paz (1991), Paisagem (1992), Feito à Mão (1996), O Rio e Eu (1999) e Retratos de
Carolina (2002). Entretanto, após um ano de leituras e pesquisas, discutindo com minha
orientadora da dissertação sobre o assunto, concordamos que seria melhor optar naquele
momento por um estudo de profundidade, ou seja, focar em somente um livro, Retratos
de Carolina. As palavras da minha orientadora ainda ecoam vívidas em minha
lembrança: “Deixa para fazer um estudo mais amplo no doutorado”. Agarrei-me a essas
palavras e o presente estudo é o resultado desse longo caminhar.
Lygia Bojunga, escritora gaúcha com 21 livros publicados, é conhecida e
reconhecida como autora de livros infanto-juvenis. Basta observar algumas das
premiações a ela concedidas, como: a inclusão de Os Colegas, em 1974, na Lista de
Honra pelo International Board on Books for Young People (IBBY); o Hans Christian
Andersen, mais tradicional prêmio internacional para crianças e jovens, obtido em 1982
pelo conjunto da obra; o prêmio “Os melhores para a juventude”, concedido ao livro A
Casa da Madrinha pelo Senado de Berlim em 1985; além das recomendações da
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Fundação Nacional do Livro Infantil (FNLIJ) para vários de seus livros, considerando-
os “O melhor para a criança” ou “Altamente recomendável para o Jovem”.
Mas uma análise de seu trajeto literário revela que seu processo criativo foi se
modificando, a ponto de atualmente ser questionável o direcionamento ao referido
público. Não temos por objetivo investigar essa mudança, nosso foco reside, como já
salientamos, nos livros em que o narrador está em primeira pessoa; contudo acreditamos
ser necessário lançar o nosso olhar por sobre esse percurso a fim de situarmos o nosso
estudo.
Em nossa dissertação de mestrado dividimos a obra da autora em dois
movimentos, um primeiro essencialmente dedicado a crianças e jovens e um segundo
em que esse dito direcionamento passa a ser questionado.
O primeiro movimento é composto pelos livros Os Colegas (1972), Angélica
(1975), A Bolsa Amarela (1976), A Casa da Madrinha (1978), Corda Bamba (1979), O
Sofá Estampado (1980), Tchau (1984), Meu amigo Pintor (1987) e Nós Três (1987). A
maioria deles pertence à década de 70, período em que a literatura destinada a crianças e
jovens toma novo fôlego. Na primeira metade do século XX, no Brasil, há a inovação
de Monteiro Lobato, cuja produção, segundo Laura Sandroni,
foi um salto qualitativo comparada aos autores que o
precederam, já que é quase toda permeada do ânimo de debates
sobre temas públicos e contemporâneos ou históricos que
problematiza de modo a ser compreendido por crianças e
expressa em linguagem original e criativa na qual sobressai a
busca do coloquial brasileiro, antecipatória do Modernismo.
(SANDRONI, 1987, p.47).
Segue-se a Lobato um período de parcial estagnação, com poucas produções
significativas, e na década de 70 há uma grande diversificação na produção destinada ao
público infanto-juvenil, que se dá, entre outras razões, devido ao aumento da demanda
ocorrida em virtude da lei 5 692/1971, que reformava a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Essa lei obriga a adoção de livros de autores brasileiros nas escolas
de primeiro grau, ocasionando o aumento do público leitor e, por conseguinte, o
aumento de autores voltados para esse público. É claro que há uma ligação entre
literatura e ensino, mas isso não impediu o surgimento de uma literatura criativa e
transformadora, como foi o caso da literatura produzida por grandes nomes como Ana
Maria Machado, Ruth Rocha e Lygia Bojunga. Em Os Colegas e Angélica a trama é
13
protagonizada por animais que, antropomorfizados, adquirem características humanas.
A narrativa, em terceira pessoa, versa sobre um grupo de amigos que se unem “num
projeto comum de trabalho que lhes dá satisfação pessoal e sentido à vida”.
(SANDRONI, 1987, p.75) Em Os Colegas há a introdução de uma ideia que perseguirá
a obra de Lygia Bojunga, a de objetos que funcionam como uma passagem para o
inconsciente. Neste, a metáfora é simbolizada por um bolso:
É o seguinte: um dia desses Cara-de-pau estava se queixando:
-Queria tanto um bolso! Acho tão difícil viver sem bolso! E daí
por diante deu pra resmungar:
-Cada dia que passa acho mais complicado viver sem bolso.
Quando Virinha encontrou numa lata de lixo um retalho de
pano xadrez vermelho e branco, logo pensou: “Vai dar um bom
bolso pro Cara-de-Pau”.
Deu mesmo.
Costuraram o bolso na barriga do coelho. Voz de Cristal morreu
de rir: achou que o amigo tinha ficado com pinta de canguru.
Mas Cara-de-pau nem ligou, e está sempre dizendo que a vida
com bolso é muito melhor.
(NUNES, 1972, p.20).
Em seu livro seguinte, A Bolsa Amarela, a trama é pela primeira vez
protagonizada por um ser humano, a menina Raquel, e há também a estreia da narração
em primeira pessoa. Segundo Laura Sandroni, “o mesmo livro dá início ao trabalho de
interiorização da narrativa que marcará, daí em diante, cada vez mais, a obra de Lygia
Bojunga Nunes” (NUNES, 1987, p.72). A bolsa é uma metáfora do inconsciente, onde
Raquel esconde suas vontades, e é também a chave para o imaginário, pois compreende
um espaço de fantasia. É lá que estão guardadas as suas vontades materializadas,
animais e objetos falantes.
Esse espaço de fantasia extrapola os limites da bolsa e expande-se para a casa
que dá nome ao título de seu quarto livro, A Casa da Madrinha:
Uma janela dando pro mar (eles viam o sol subindo), a outra
dando pro mato (a lua sumindo), a outra fechada, e a outra com
a cortina listada. A cadeira que abraçava. O armário que dava
roupa. O outro que dava comida. A portinha que descia pro
porão. (NUNES, 1989, p.83).
E não somente a casa abriga a fantasia, como também o espaço em que se
localiza, afinal é iluminada por uma lua cor de abóbora e fica em cima de um morro
coberto de flores. Dentro da casa, um armário que sempre fornece comida e outro que
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sempre fornece roupa; a cadeira que abraça; o relógio que batuca as horas como se
estivesse tocando um samba; a maleta desaparecida da professora de Alexandre; a gata-
da-capa, amiga do pavão que acompanha Alexandre em sua jornada está atrás da cortina
da casa; e no porão, as fantasias de seu Joca, um homem idoso com problemas auditivos
que roubou o pavão do zoológico onde trabalhava para oferecer como destaque da
escola de samba onde tocava, em troca de continuar tocando lá. Como vemos, a casa,
espaço de fantasia por excelência, aonde se chega através de um cavalo criado pela
imaginação, é o espaço de realização dos desejos, onde todos os sonhos do menino se
realizam e para onde convergem todos os elementos que permearam a trama.
Após A Casa da Madrinha temos Corda Bamba, primeiro livro em que os
personagens são todos seres humanos e em que não há o recurso do animismo. Nele, o
fantástico se dá pela viagem da personagem principal, Maria, para dentro de seu
inconsciente. A menina estica uma corda da janela de seu quarto até um apartamento
vazio em frente e lá encontra portas, atrás das quais estão guardadas as lembranças
esquecidas dentro dela mesma.
Em O Sofá Estampado os animais retornam à cena, mas com o mesmo recurso
analítico utilizado em Corda Bamba. Se antes a corda era a ponte que levava Maria para
dentro de si mesma, agora é o sofá do título que tem esta função. Ao cavá-lo, o tatu
Vitor penetra dentro de si próprio:
Parecia que assim, de mágoa dentro, a unha ficava mais dura,
muito melhor pra cavar, e ele foi cavando e cavando e cavou. E
depois que acabou o cimento e veio a terra, ele continuou do
mesmo jeito, se enfiando cada vez mais fundo no túnel que ele
ia fazendo, sem nem parar pra pensar onde é que o túnel ia dar.
Cavou até gastar toda a força e muita mágoa, nem sabia quanto
tempo. Cavou tão fundo que foi dar no tempo que ele era tatu-
criança.(NUNES, 1980, p.25).
Em O Sofá Estampado, o espaço da fantasia, assim como em Corda Bamba, é
o interior da personagem, mas se lá o interior era simbolizado por um corredor repleto
de portas, aqui é simbolizado por uma rua. Sendo assim, o interior do sofá,
metonimicamente, representa por sua vez o inconsciente de Vitor, pois é cavando o
tecido estampado e penetrando no interior do sofá que ele retorna à infância e ao seu
passado. O sofá, dessa forma, pode ser “lido” como uma “metáfora da psicanálise, ou
seja, como um espaço facilitador, que permite ao protagonista regredir ao tempo em que
era “tatu-criança”. (SECCO, 1982)
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Em Tchau, observa-se outra inovação, a começar pelo fato de ser um livro de
contos, primeiro e único da autora. São quatro textos: o que dá nome ao livro, “Tchau”,
“O bife e a pipoca”, “A troca e a tarefa” e “Lá no mar”. Desses quatro, nos dois últimos,
assim como em todos os livros anteriores, o fantástico se manifesta. Em “A troca e a
tarefa”, narrativa em primeira pessoa, a personagem principal transforma os sentimentos
que lhe desagradam em história, proporcionando-lhe satisfação pessoal e profissional:
“Achei tão bom poder transformar o que eu sentia em história que eu resolvi que era
assim que eu queria viver: transformando. Foi por isso que eu me virei em escritora”.
(NUNES, 1985, p.58). Esse poder é adquirido através de um sonho, em que a
personagem realiza a troca referida no título:
Vi duas janelas na parede. Me levantei pra ir olhar. Numa
estava escrito A TROCA; na outra A TAREFA. (...) Da
primeira janela uma voz diz: Escreve a história dessa dor e eu te
livro dela. É uma troca, eu te prometo. (NUNES, 1985, p.56).
Essa troca implica na realização de uma tarefa que consiste na feitura de 27
livros, após o qual a vida da escritora se extinguirá:
Depois de 26 livros um novo sonho vem explicitar para a
escritora apalavra lida na segunda janela: a tarefa. Escrita
na areia da praia, bem próxima da água ela lê a seguinte
frase: Cada um tem uma tarefa na vida. A tua é escrever
27 livros. Na hora em que você botar o ponto final no
vigésimo sétimo livro a tua tarefa vai estar acabada e a tua
vida vai terminar. (NUNES, 1985, p.58).
É claro que, ante a essa perspectiva fatal, a escritora tenta evitar concluir o
último livro, mas seus esforços são em vão e ela morre. Este conto é o embrião do que
será problematizado a partir da “Trilogia do Livro”: a relação do autor com a escrita.
Aqui já se delineia um desvelamento do fazer literário, embora envolto em uma
atmosfera poética e fantástica. O conto concentra-se nas motivações da personagem em
tornar-se escritora e por que vias isso se concretiza. Embora suas histórias sejam
produzidas a partir de uma prerrogativa fantástica, transformando seus sentimentos em
narrativas, não deixa de ser a revelação do processo criativo do autor.
Em “Lá no mar”, a intromissão do fantástico se dá pela antropomorfização de
um barco, o recurso mais utilizado pela autora nessa primeira etapa. A narração, apesar
de estar em primeira pessoa, é filtrada pela perspectiva do barco:
16
O Barco se revoltou: ele estava velho, cansado, e agora
pintavam ele de vermelho pra ele ficar com cara de novo e
vendiam ele não sei pra quem pra ele começar outra vez uma
vida de luta, pra baixo e pra cima, pro mar e pra areia,
arrastando rede, carregando peixe? Ah não! já bastava ele ter
que aguentar todo dia a saudade do companheiro, não ia dar pra
aguentar a luta toda de pescaria outra vez. O jeito então era se
travar, botar a força que ele ainda tinha pra não ser levado
embora. (NUNES, 1985, p.76).
O conto debruça-se sobre a amizade, a princípio entre o Barco e o Pescador, e
após a morte deste, entre o Barco e o Menino. O texto é extremamente lírico e poético, o
que pode ser exemplificado na descrição da morte do pescador: “E assim abraçados, o
filho, o pai e o avô, pareciam até que dançavam, de tanto que o Barco rodava, rodava
pra cá e pra lá”. (NUNES, 1985, p.73); ou na melodia presente em alguns trechos: “O
Menino desatou a laralalar de um jeito que o Barco bem que sentiu vontade de
cantarolar também. E os dois assim, um de olho no outro lá se foram pelo mar”.
(NUNES, 1985, p.79).
A inovação anotada anteriormente opera-se nos dois primeiros contos, “Tchau”
e “O Bife e a Pipoca”. Neles, pela primeira vez no trajeto literário de Lygia Bojunga,
não há qualquer intromissão do fantástico na narrativa. O tema do conto “Tchau” pode
ser resumido através da citação abaixo: “Querido pai / Não deu para eu cumprir a
promessa, a mãe foi mesmo embora”. (NUNES, 1985, p.21). O texto narra o drama que
vive uma menina com a separação dos pais e o abandono da família pela mãe, que parte
em busca de viver uma paixão. Segundo Mara Ferreira Jardim, as narrativas de Lygia
são introspectivas, “internalizam na personagem infantil as várias crises do mundo
social e do mundo interior. Suas obras focalizam realidades psicológicas, realizando, em
alguns casos, verdadeiros mergulhos na alma humana”. (JARDIM, 2003, p.213). Essa
visão corrobora a leitura de Laura Sandroni, quando, ao se referir a Corda Bamba,
pondera que “é a história da viagem de Maria para dentro de si mesma. É a investigação
e recomposição com seu interior” (SANDRONI, 1987, p.86). Ainda de acordo com
Sandroni,
Em Corda Bamba podemos falar com propriedade em processo
analítico, já que é evidente que a “corda bamba” significa o
caminho para o inconsciente. (...)A narrativa desdobra-se nas
diversas viagens que Maria empreende para dentro do
inconsciente, processo mnemônico que propicia o
autoconhecimento e a superação. (SANDRONI, 1987, 125).
17
Mas em “Tchau” esse processo analítico não se concretiza através de imagens,
como a corda que se estende da janela de Maria para dentro de si mesma, ou como o
túnel cavado no sofá estampado pelo tatu Vítor que o leva para sua infância. No conto
em questão esse processo analítico efetua-se sem a manifestação do fantástico. O texto,
narrado em terceira pessoa, é filtrado a partir do ponto de vista da protagonista, Rebeca,
e as suas inquietações e angústias são traduzidas através de símbolos pulverizados
durante a trama como o buquê de flores simbolizando a traição da mãe; o mar
simbolizando a iminente partida desta; o castelo de areia simbolizando o lar, que acaba
sendo destruído.
Em “O Bife e a Pipoca” a amizade é o eixo central da narrativa, assim como
em “Lá no mar”. Mas o lirismo e a poeticidade deste texto são substituídos pela
objetividade. O tema é a amizade entre duas crianças atravessada por diversas barreiras
sociais: Rodrigo é branco, rico e sua família possui excelente condição financeira; Tuca
é preto, pobre e mora na favela. Nesse texto, há a alternação entre a primeira e a terceira
pessoa. Quando a primeira pessoa se manifesta é por cartas escritas pela personagem
central a seu amigo. Como é epistolar, temos acesso à perspectiva da personagem sem
mediações, o que também relativiza a veracidade dos fatos, pois sabemos que passou
pelo filtro de quem narra. Alternando o foco entre Rodrigo e Tuca, a narração em
terceira pessoa é em discurso indireto livre, quando o leitor é inteirado dos
acontecimentos sem que estes passem pelo filtro do personagem. No momento em que a
terceira pessoa prevalece, a narrativa é distanciada e não há verticalização no interior
psicológico dos personagens, ao contrário do que ocorre nas cartas de Rodrigo, quando
expõe a seu amigo sua opinião sobre os fatos. E, mesmo assim, por serem cartas, são
endereçadas a alguém, e deduz-se que houve uma seleção dos episódios relatados, ou
seja, não temos total acesso à sua perspectiva dos fatos.
A exemplo de “Tchau”, não há qualquer intromissão do fantástico. “O Bife e a
Pipoca” configura-se como uma narrativa seca, sem floreios, sem o recurso do
animismo, da linguagem simbólica ou da antropomorfização. A preocupação com o
social, sempre presente nas narrativas anteriores, é aqui revitalizada a partir dessa
abordagem diferenciada, causando um impacto maior no leitor.
O livro seguinte, Meu Amigo Pintor, foi produzido sob encomenda, para fazer
parte de uma coleção, “Arte para criança”, em que autores seriam convidados para criar
textos a partir de telas de artistas brasileiros. A artista destinada a Lygia se chama
18
Tomie Ohtake, e o livro originalmente se chamou “7 Cartas e 2 sonhos”. Esta é terceira
e última narrativa deste primeiro movimento a utilizar a primeira pessoa.
O livro que fecha esse ciclo, Nós Três, narra a amizade entre três personagens:
Rafaela, Mariana e Davi. Mariana, escultora, é amiga da mãe de Rafaela e mora em uma
praia deserta. Rafaela passa as férias com ela e conhece na praia Davi, homem por quem
Mariana se apaixona. A história de amor vivida pelo casal é presenciada pela criança
desde o início até o seu fim trágico. Segundo Cinara Ferreira Pavani, “o trajeto
percorrido pelas personagens é representado na narrativa por imagens
plurissignificativas ligadas à natureza”. (PAVANI, pg.65, in: ZINANI; SANTOS,
2004). Assim, o vento que antecede a chegada de Davi aponta para sua personalidade
instável e inconstante, que o impede de se fixar por muito tempo em um só lugar; a flor
colhida por Rafaela remete ao despertar de sua sexualidade; e a pedra, material utilizado
por Mariana em suas esculturas, indica o seu desejo de imutabilidade. Enquanto Davi
anseia por liberdade, Mariana quer mantê-lo sempre por perto; como não consegue, o
mata.
Após percorrermos essa primeira etapa da trajetória literária de Lygia Bojunga,
é possível observar a mudança em seu processo narrativo. Em A Bolsa Amarela, ocorre
a primeira inovação: é protagonizada por um ser humano e a narrativa é em primeira
pessoa. Em Corda Bamba e em O Sofá Estampado, temos o mesmo recurso discursivo:
o desdobramento em camadas que levam os personagens a um exame de si mesmos. Em
Tchau, há duas narrativas que não se utilizam do fantástico e uma em que a primeira
pessoa é retomada três livros após A Bolsa Amarela. Em O Meu Amigo Pintor a
narração também é em primeira pessoa, composta por cartas, o que indica uma relação
total com a escrita. E Nós Três consiste no primeiro livro em que o direcionamento para
crianças começa a ser questionado. Mas em todas as narrativas, sejam elas em primeira
ou em terceira pessoa (como o são em sua maioria), sejam elas atravessadas ou não pelo
fantástico, aparentemente não há confusão de limites entre o que é e o que não é ficção.
O narrador em terceira pessoa, mesmo quando filtra a narração através do ponto de vista
de um dos personagens, é um narrador distanciado e nos textos em que a narração é em
primeira pessoa, essa primeira pessoa é identificada com a personagem.
Esse cenário começa se modificar a partir da “Trilogia do Livro”, Livro: um
encontro com Lygia Bojunga Nunes, Fazendo Ana Paz e Paisagem. Neles, há uma
primeira pessoa marcante, com fortes traços autobiográficos, os bastidores da escrita são
iluminados e os mecanismo de funcionamento do texto passam a ser matéria literária.
19
Após a trilogia, temos até o momento mais dez livros: Seis Vezes Lucas (1995), O
Abraço (1995), Feito à Mão (1996), A Cama (1999), O Rio e Eu (1999), Retratos de
Carolina (2002), Aula de Inglês (2006), Sapato de Salto (2006), Dos Vinte 1 (2007) e
Querida (2009). Desses, três são em primeira pessoa, (Feito à Mão, O Rio e Eu e
Retratos de Carolina) totalizando seis livros em primeira pessoa nessa segunda fase, e
todos apresentam aquela mesma primeira pessoa marcada por traços referenciais
mencionada acima. Com isso, essa primeira pessoa discute os modos de representação,
na medida em que não é possível situá-la em lugar seguro. É autobiografia? Ou é
ficção? Essa primeira pessoa dialoga com seus personagem, se materializa no texto,
dialoga com o leitor, fala de si.
Retratos de Carolina marca a fundação da Casa Lygia Bojunga, uma mistura
de editora com espaço cultural e inegavelmente um grito de liberdade, a materialização
do sonho de libertar-se das amarras e criar com liberdade. A Casa é essencialmente um
espaço destinado à experimentação, nas palavras da própria:
Depois eu inventei uma Casa, querendo agregar dentro dela três
gostos muito fortes que desde pequena eu tenho: o gosto da
escrita, o gosto do teatro e o gosto do fazer à mão: queria
realizar projetos ligados a livros e palcos, da maneira mais
artesanal possível. Essa Casa eu destinei à investigação, à
experimentação. (BOJUNGA, 2003, orelha do livro).
Após a fundação da sua editora, Lygia Bojunga dedicou-se a resgatar os seus
livros publicados pela Agir e conforme a compra dos direitos foi acontecendo, os livros
foram reeditados, todos no formato padrão que a autora adotou para os livros lançados
em sua editora: todos do mesmo tamanho, capa amarela, mesma tipologia da letra. Esse
formato é um recurso para dar um tom de coleção à sua obra, assim como uma tentativa
de atribuir unidade. Ao nos depararmos com um desses livros em uma livraria,
identificaremos imediatamente como um dos livros de Lygia, isso atribui singularidade
e familiaridade. É ainda uma estratégia para tentar afastar essa imagem de literatura
infanto-juvenil. Reforçamos que a autora não pretende negar essa vertente, apenas se
incomoda com o rótulo, que acaba por contaminar outros de seus livros que não são
direcionados a esse público, mas leitores adultos podem não se interessar ao ver seu
nome na capa e pensar que se trata de um livro para crianças.
Além dessas mudanças mais drásticas no formato do objeto livro, também
ocorreram mudanças no texto. Foram acrescentados em vários dos livros reeditados a
20
seção “Pra você que me lê”, que se configura como um espaço de diálogo com o leitor e
será analisado no segundo capítulo deste estudo. Além disso, houve ainda modificações
na capa de alguns deles, recursos gráficos foram acrescentados em outros e houve
também alteração em ilustrações originais. Todos esses aspectos serão abordados neste
mesmo capítulo.
Essas modificações fortalecem a liberdade de criação conquistada com a
fundação de sua própria editora. Pode parecer aos olhos de alguns que esta tenha sido
uma escolha comercial, mas o propósito é fundamentalmente a liberdade de criação,
tanto que os únicos livros lá editados são somente os seus. Os outros projetos
desenvolvidos pela Casa Lygia Bojunga são ligados à cultura e à arte, como bolsas de
estudo; incentivos a bibliotecas básicas na forma de doação de livros; encontros
literários; o paiol de histórias, um grupo de crianças de baixa renda que três vezes por
semana vai à Boa Liga para participar de diversas atividades, como contação de
histórias, dramatizações, visita a museus, centros culturais, etc.
É portanto nesse ambiente de libertação, experimentação e prioridade a
elementos ligados ao artesanal que o segundo movimento se estabelece e os livros
pertencentes a esta etapa refletem essas categorias. Apesar de Retratos de Carolina ser o
primeiro livro oficialmente editado pela Casa Lygia Bojunga, antes dele esse projeto já
estava se delineando, com o projeto “Trilogia do Livro’ e suas experimentações teatrais,
com Feito à Mão e seu projeto inédito de um livro artesanal, com o Rio e Eu e sua
primeira pessoa ambígua e andrógina.
No primeiro capítulo iniciamos nosso estudo recorrendo a Umberto Eco e seu
bosque como metáfora para o texto narrativo, iniciamos nosso estudo percorrendo o
bosque narrativo da obra de Lygia Bojunga, observando aspectos que consideramos
essenciais em sua obra que ocorrem recorrentemente em seus textos, atribuindo-lhes um
aspecto singular, característico em suas narrativas. Para tanto, não nos detemos apenas
nos seis livros que compõem o nosso corpus principal, como consideramos que essas
categorias são características do conjunto da obra, estendemos o nosso viés de análise
para outros de seus livros que apresentassem esses aspectos de forma contundente.
No segundo capítulo analisamos a relação que se estabelece entre os textos da
autora e o leitor, considerando três possibilidades: o papel do leitor como co-produtor
de sentidos; a autora desvelando o seu eu-leitora, acarretando uma identificação com os
leitores empíricos; o diálogo aberto com os leitores que ocorre nas seções “Pra você que
me lê”.
21
No terceiro capítulo investigamos essa primeira pessoa híbrida que se
manifesta nos seis livros do corpus, refletindo acerca do conceito de performance. Essa
primeira pessoa desvela o processo criativo, expõe os bastidores do texto, constrói o
texto “ao vivo” e ainda nos confunde com relação à sua “identidade”: será essa primeira
pessoa a autora? Os textos são recheados de referências que remetem à vida pessoal da
autora e algumas vezes assume essa voz como a voz da autora empírica, como em
Livro: um encontro e em algumas seções “Pra você que me lê”. Observaremos e
analisaremos como se estrutura no texto essa primeira pessoa ambivalente.
Com o objetivo de facilitar as referências, faremos uso de abreviações para os
livros da autora que compõem o nosso corpus principal:
1. Livro: um encontro com Lygia Bojunga, L;
2. Fazendo Ana Paz, FA;
3. Paisagem, P;
4. Feito à mão, FM;
5. O Rio e Eu, RE;
6. Retratos de Carolina, RC.
Utilizaremos no decorrer do estudo as iniciais indicadas seguidas do número da
página. A referência completa encontra-se na bibliografia.
Destacamos ainda que a partir da publicação de Paisagem, a autora passou a
assinar os seus livros apenas como Lygia Bojunga, por este motivo suas obras são
referenciadas neste trabalho de duas formas, com o sobrenome Nunes e com o
sobrenome Bojunga, de acordo com a edição utilizada para o trabalho.
22
1. O BOSQUE NARRATIVO DE LYGIA BOJUNGA
Mal abrimos o livro Fazendo Ana Paz e já nos deparamos com uma questão,
digamos, interessante, para não dizer problemática: “Quando eu escrevi e interpretei o
monólogo LIVRO, falando da minha vida de leitora e contando os 6 “casos de amor”
que eu tive com obras literárias, eu estava longe de imaginar que comprido que ia ser o
caminho que eu ia andar”. (FA, p.9). Mas então é a própria autora que nos fala? Sendo
assim, o que vem a seguir também será atribuído à figura empírica, que imaginamos
sentada a uma escrivaninha, com papel à frente, lápis na mão e borracha e apontador ao
lado? Entretanto, algumas linhas à frente, a seguinte passagem se apresenta:
Eu nunca tinha vivido a experiência de uma personagem me
pegar tão desprevenida; eu não tinha nem pensado que a gente
podia parir personagem assim. A Raquel entrou no meu estúdio
feito um furacão, explodiu no caderno onde eu ia escrever o
meu livro de viagens, dizendo que tinha dez anos, que tinha
uma família assim e assado, que tinha um amigo inventado
chamado André e ela se correspondia com ele, e que tinha essas
tais vontades fortíssimas que ela precisava esconder depressa,
depressa, DEPRESSA! (...) a Raquel não saiu de perto de mim:
exigente, obstinada, centralizadora. (FA, p.13).
Se, partindo do pressuposto que o texto é narrado pelo próprio autor,
pressuposto esse que poderia ser presumido a partir do primeiro capítulo do livro, cujo
primeiro parágrafo foi transcrito anteriormente, também poderíamos supor que todo o
livro é narrado pela autora empírica, sendo que está em primeira pessoa. Entretanto, a
ficcionalidade do exemplo anterior acarreta dúvidas quanto a essa assertiva. Caso nos
decidíssemos pela autoria empírica, seria então autobiográfico? Caso decidíssemos pelo
narrador-personagem seria exclusivamente ficcional, já que observamos a intromissão
tão descarada da autora? É possível decidir entre um e outro?
Esses questionamentos nos remetem à tentativa de Philip Lejeune em definir o
que seja autobiografia. Em seu ensaio “O Pacto Autobiográfico”, o autor apresenta um
quadro em que a classificação de um texto como autobiográfico ou ficcional é definida
da seguinte forma:
Uma vez estabelecidas essas definições, pode-se classificar
todos os casos possíveis usando-se dois critérios: relação entre o
23
nome do personagem e o nome do autor, natureza do pacto
firmado pelo autor. Para cada um desses critérios, três situações
são possíveis. O personagem: 1) tem um nome diferente do
nome do autor; 2) não tem nome; 3) tem o mesmo nome do
autor; o pacto é: 1) romanesco; 2) ausente; 3) autobiográfico.
Articulando esses dois critérios, obtém-se teoricamente nove
combinações: de fato, apenas sete são possíveis, sendo excluída,
por definição, a coexistência tanto da identidade de nome e do
pacto romanesco, quanto da diferença de nome e do pacto
autobiográfico. (LEJEUNE, 2008, p.28).
Esse “pacto”, segundo Lejeune, pode ser estabelecido de duas maneiras:
implicitamente, ou de modo patente. O uso implícito poderia ainda se materializar de
duas formas: através do uso de títulos que remeteria ao nome do autor, como História
de minha vida, por exemplo; ou assumindo um compromisso através da seção inicial,
comportando-se como se fosse o autor. O modo patente se refere ao nome do narrador-
personagem, coincidindo com o autor impresso na capa. (LEJEUNE, 2008). Já o pacto
ficcional seria atestado pelo oposto do autobiográfico, em que autor e personagem não
apresentam o mesmo nome e através de um “atestado de ficcionalidade”, que, de acordo
com Philip Lejeune seria um subtítulo na capa ou na folha de rosto, intitulando-se
romance.
Caso nos ativéssemos às considerações de Lejeune, nosso problema persistiria,
já que na seção inicial de Fazendo Ana Paz, a narradora aparentemente coloca-se como
a autora, contudo a ficcionalidade, apesar de não estar sinalizada na capa ou na folha
rosto permanece. Prossigamos então com Lejeune.
O quadro a que nos referimos acima consiste de um cruzamento entre o nome
do personagem e o “pacto” assumido com o leitor. Se o nome do personagem for
diferente do nome do autor e o pacto for romanesco, o texto seria um romance. Nesse
caso nem mesmo precisaria haver um atestado de ficcionalidade, somente o nome do
personagem e do autor serem diferentes já caracterizaria esse texto como romance.
Esse fato por si só exclui a possibilidade de autobiografia.
Pouco importa, então que haja ou não, além disso, atestado de
ficcionalidade (1a ou b). Que a história seja apresentada como
verdadeira (manuscrito autobiográfico que o autor ou o editor
tenha encontrado em um sótão etc.), ou que seja apresentada
como fictícia (mas que o leitor, relacionando-a com o autor,
acredite ser verdadeira), - de qualquer forma, não há identidade
ente o autor, o narrador e o herói. (LEJEUNE, 2008, p.29).
24
Se o nome do personagem for o nome do autor, sendo o pacto autobiográfico,
ou não, o texto seria autobiografia. Contudo, mesmo o nome do personagem sendo
diferente do nome do autor, caso o pacto seja autobiográfico o texto permanecerá como
autobiografia; Entretanto há duas casas cegas nesse quadro e uma casa indeterminada.
Em uma das casas cegas o nome do autor coincidiria com o nome do personagem, mas
haveria indicadores no texto de que este seria ficcional. Na outra casa cega temos o
oposto, os nomes do autor e do personagem não coincidiriam, entretanto, dessa vez os
indicadores do texto nos remeteriam a uma narrativa autobiográfica. Para Lejeune, isso
acarretava uma ambiguidade, o que tornava impossível definir esse tipo de texto. Já a
casa indeterminada, consistiria na ausência de um pacto de leitura, seja ele
autobiográfico ou ficcional e também não haveria coincidência entre os nomes. Essa
narrativa, portanto, não pode ser determinada, já que não seria nem um (ficcional) ou
outro (romanesco).
Sabemos que o autor corrigiu-se mais tarde, em artigo posterior, considerando
que as narrativas das casas cegas poderiam ser consideradas tanto autobiográficas
quanto romanescas:
Há duas casas “cegas” que correspondem a casos “excluídos
por definição”. Cego estava eu. Primeiro porque salta aos olhos
que o quadro está malfeito. Para cada eixo, propus uma
alternativa (romanesco/autobiográfico para o pacto;
diferente/semelhante para o nome). Pensei na possibilidade de
nem um nem outro, mas esqueci a possibilidade de um e outro
ao mesmo tempo! Aceitei a indeterminação mas recusei a
ambiguidade... (LEJEUNE, 2008, p.58).
Vamos além das falhas do quadro, acreditamos que independente de como foi
articulado, o quadro, por si só, somente por ser um quadro, já é falho, pois pressupõe
uma classificação que, a nosso ver, limita e enclausura os textos em categorias. Um
texto narrativo pode muito bem ser rico, cheio de nuances e surpresas, confundir e iludir
o leitor e nunca se decidir entre autobiografia ou romance, pode transitar entre um e
outro, indecidível e indecifrável.
Ainda nesse artigo, Philipe Lejeune cita o caso de um romancista, chamado
Serge Doubrovsky, que escreveu um romance com o propósito de preencher uma das
casas cegas de Lejeune, utilizando o próprio nome e ao mesmo tempo estabelecendo
com o leitor um pacto romanesco, se apresentando com “autoficção”.
25
Esse quadro teve a sorte de cair nas mãos e inspirar um
romancista (que também é professor universitário). Serge
Doubrovsky, que decidiu preencher uma das casas vazias,
combinando o pacto romanesco e o emprego do próprio nome.
Seu romance Fils (1977) se apresenta como uma “autoficção”
que, por sua vez, me inspirou. Não apenas por ser um livro
admirável, mas também porque me dei conta... de que o lera
mal. Acreditara em algo em que talvez não devesse ter
acreditado. Por essa razão, retomei o problema partindo do
exemplo maquiavélico de Doubrovsky e de um outro caso tão
complicado quanto o dele, embora mais ingênuo, o “romance”
de Jacques Lanzmann, Le têtard (1976). Desse modo, pude
observar um fenômeno mais amplo: nos últimos 10 anos, da
“mentira verdadeira” à “autoficção”, o romance autobiográfico
literário aproximou-se da autobiografia a ponto de tornar mais
indecisa do que nunca a fronteira entre esses dois campos. Essa
indecisão é estimulante para a reflexão teórica: em que
condições o nome próprio do autor pode ser percebido como
“fictício” ou ambíguo? (LEJEUNE, 2008, p.59).
Essa indecisão abordada por Lejeune foi o nosso estímulo para esse estudo, e é
sobre ela que pretendemos nos debruçar, não para tentar categorizar ou classificar, ou
mesmo para nos decidirmos sobre um (romance), outro (autobiografia) ou mais outro
(autoficção), mas sim para explorar as possibilidades desse campo nebuloso. Contudo,
mesmo discordando do seu critério de análise, admitimos a beleza de sua assertiva
acerca da possibilidade de um texto poder ser “um e outro”. Em nossa proposta, seja
qual for esse um e esse outro e ampliando essa dupla possibilidade em triplas ou
infinitas, que seja, mas são possibilidades. E as possibilidades de um texto dão tom de
sua riqueza.
Nesse momento recordamos de Umberto Eco que, evocando Jorge Luis
Borges, compara um texto narrativo a um bosque:
Usando uma metáfora criada por Jorge Luis Borges (outro
espírito muito presente nestas palestras e que também
pronunciou suas conferencias Norton há 25 anos), um bosque é
um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não
existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar
sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita
de determinada árvore e, a cada arvore que encontrar, optando
por esta ou aquela direção. (ECO, 1994, p.12).
Pois é nesse bosque que pretendemos nos enveredar neste capítulo, no bosque
narrativo de Lygia Bojunga.
26
1.1) Os jogos de equívoco
Leonor Arfuch, em O Espaço Autobiográfico salienta que os jogos de
equívoco, as armadilhas, as máscaras, os desdobramentos e as perturbações de
identidade são categorias que se configuram já como clássicas na literatura (ARFUCH,
2005). Para Bakhtin não há identidade possível ente autor e personagem, nem mesmo na
autobiografia, já que, ainda de acordo com ele, não há a possibilidade de reproduzir
fielmente um passado (BAKHTIN, 1997). Contudo, observamos em muitas narrativas
contemporâneas, incluindo as seis aqui exploradas, uma enunciação carregada de
referencialidade. A segunda parte de Retratos de Carolina se abre com uma seção
intitulada “Pra você que me lê”:
Na segunda versão do meu livro Feito à Mão, em forma de
introdução, eu converso com você, que me lê. Hoje, aqui, nos
Retratos de Carolina, eu venho conversar de novo (obviamente
gostei da prática), mas já disposta a mudar um pouco o feitio do
nosso papo. (RC, p.163).
Ora, os elementos aí presentes nos remetem claramente a uma enunciação
empírica: A voz cita livro publicado pela autora Lygia Bojunga seis anos antes de
Retratos de Carolina e situa essa fala no livro em questão: “Hoje, aqui”. Somando-se a
isso, a dita seção “Pra você que me lê” tornou-se recorrente em todas as publicações
posteriores a Feito à Mão. Caso esse texto figurasse apenas em Retratos, poderia ser
considerado como um recurso narrativo, mas como encontramos essa seção em outros
livros tendemos a associá-la com elementos externos à narrativa e, por conseguinte, com
a própria autora Lygia Bojunga.
Além das referências extra-textuais, há a iluminação dos mecanismos de
funcionamento do texto: menciona-se que esta seção, em livro anterior, abria a narração
e em Retratos de Carolina irrompe quase ao fim. Essa é uma estratégia que interfere no
funcionamento do texto, e a exposição da escolha de posicionamento de um
determinando trecho neste ou naquele ponto da narrativa objetiva compartilhar com o
leitor desse processo que usualmente fica nos bastidores. Por tudo isso, a identificação
dessa voz com a do autor empírico é natural, já que estão presentes não somente a
referência a elementos extra-textuais, como também o desvelamento do processo
criativo.
27
No entanto, após esse primeiro parágrafo, as linhas seguintes problematizam
essa questão:
Foi também no Feito à Mão que eu perdi de vista o meu gosto
de privacidade e trouxe as minhas moradas pro texto do livro.
Agora, aqui, nos Retratos, retomo também essa pratica: a de
trazer minhas moradas pro meu texto. Mas com um propósito
um pouco diferente: o de começar a integrar minhas
personagens com os meus espaços (pensando assim: se eu sou
uns e outras, por que dissociar uns das outras?) encarando o fato
de que agora a gente – meus personagens e eu – passamos,
“fisicamente” a morar juntos. (RC, p.163).
Do ponto de vista formal, até o momento em que a seção se abre, encontramo-
nos diante de uma narrativa convencional. A narração fluía em terceira pessoa, os fatos
narrados obedeciam a uma ordem cronológica, com poucas digressões. Não tínhamos
conhecimento de que havia uma segunda parte, então quando esta irrompe, seu nome
pulsando em uma folha avulsa, supomos que ainda estamos no campo da ficção, já que
a parte anterior a esta configura-se como ficcional. Todavia, ocorre uma quebra de
expectativa, dado que a narrativa não prossegue contando os fatos da vida da
personagem e se abre a seção “Pra você que me lê”.
Muito bem, já conhecemos esse tipo de texto, ele estava em Livro: Um
encontro, Fazendo Ana Paz e Paisagem. É uma espécie de diálogo entre autora e
leitores, certo? Outra quebra de expectativa. Não há continuidade da narrativa e nem a
aproximação com o leitor prometida pelo título da seção. Ou seja, há uma dupla quebra
de expectativa, que reflete a sua dupla função: lançar os leitores em terreno
desconhecido e, deste modo convidar o leitor a participar de um processo de
(des)construção do texto (MIRANDA, 1992).
Prosseguindo com as considerações acerca do citado parágrafo, a voz anuncia
sua vontade de integrar os personagens com seus espaços, complementando que não
haveria motivo para dissociar “uns das outras”, já que ela é “uns e outras”. Nesse
momento, as barreiras entre real/ficção, tornam-se no mínimo difusas. Por tudo que já
foi dito, as voz narrativa é perfeitamente identificável com a voz da autora empírica,
entretanto essa mesma voz lança uma provocação ao expressar que pretende permitir a
intromissão do universo ficcional em sua possível realidade. Klinger argumenta que, ao
seu entender, “o autor retorna não como garantia última de verdade empírica e sim
28
apenas como provocação, na forma de um jogo que brinca com a noção do sujeito real”
(KLINGER, 2007, p.44).
No já citado estudo de Bakhtin, o autor dedica um capítulo ao tema biografia e
autobiografia. Nesse capítulo, ele considera que ao escrever uma autobiografia, o autor
da biografia é o outro possível, que se coloca ao lado do eu-para-mim (grifo do autor).
(BAKHTIN, 1997). Esse outro não é produto do fazer literário do autor, ele faz uso do
autor, é como se o autor estivesse cindido em duas partes: uma que Bakhtin considera o
eu-para-mim, que seria aquele com seus juízos de valor, que interage com os outros, que
está inserido em um meio, que viveu aquelas experiências narradas; e outra parte, que
para o autor é o outro, aquele que de fato irá narrar essas experiências, que organizará
essas recordações, em resumo, será aquele que conduzirá a narrativa. Notemos o que
argumenta Bakhtin a respeito do herói (o personagem) e o narrador:
o herói e o narrador são intercambiáveis; qual dentre nós - serei
eu? será o outro?- começou a narrativa que conta o outro, esse
outro com quem vivo uma mesma vida, com quem compartilho
os mesmos valores, no seio de uma família, de uma nação, da
humanidade. Pouco importa: entrelaço-me com a narrativa num
tom e numa linha formal que nos são comuns. Se não me separo
da vida cujo herói são os outros, com um mundo que lhes serve
de ambiente, eu próprio – o narrador dessa vida - pareço estar
incorporado aos heróis dessa vida. Se estou narrando minha
vida cujos heróis são outros para mim, encaixo-me pouco a
pouco na estrutura formal da vida (não sou o herói da minha
vida, apenas tomo parte nela) e alcanço o estatuto de herói,
anexando-me à minha narrativa. (BAKHTIN, 2000, p.165).
Ainda que o objeto de análise da citação acima seja a autobiografia, é
interessante observar que o autor assinala que não há como distinguir o herói do
narrador, e por conseguinte, que no caso é o mesmo que autor e narrador, autor e
personagem. Em que momento deixo de ser autor para ser o narrador, até que ponto sou
eu, o próprio autor empírico a narrar quando a minha persona e a do narrador são
intercambiáveis? Para Bakhtin não há como realizar essa distinção, já que o autor está
incorporado aos personagens da sua efabulação.
A narradora, ao apontar que é uma e outra, está justamente aceitando essa
incorporação e penetrando no campo da indistinção referida por Bakhtin. Como se não
bastasse, a narrativa extrapola essa ambiguidade no momento em que a própria
personagem protagonista do livro, Carolina, invade a narrativa e confronta a narradora,
portadora daquela voz ancorada na referencialidade. Observemos o trecho a seguir:
29
Um dia desses, no Cata-vento, ouvi a porta se abrindo e
fechando lá embaixo. Pensei, qual deles está chegando? Mas
quando escutei a cadência dos passos subindo a escada eu logo
senti que era Carolina. Ela parou na porta e passeou um olhar
atento pela minha mesa de trabalho:
- Você estava escrevendo?
- Na cabeça; quer dizer: ‘tava pensando.
- Em mim?
Hesitei. Ela veio chegando pra perto:
-Será que dá pra gente conversar um pouco?
-Claro, ué.
Ela puxou uma cadeira pra junto da mesa e sentou:
-Desde que você botou aquele ponto final em mim eu estou
querendo esse papo contigo. Mas eu sei que, quando eu resolvi
reconstruir a minha vida com essa minha mão aqui – espalmou
a mão sobre a mesa – você logo se envolveu com o Díscipulo, e
eu não quis, de saída, perturbar o affair de vocês dois. – Meio
que riu. (RC, p.164, grifo da autora).
Na ocasião em que Carolina “invade” o espaço da sua criadora, sua história
encontra-se inacabada, ao menos em sua concepção. A partir daí assistimos, “work in
progress”, ao processo da escrita, que se manifesta em duas vias. O texto que estamos
lendo desvela os seus mecanismos de funcionamento ao expor os caminhos percorridos
durante o processo, as dúvidas, as hesitações que se instauram em meio a esse processo,
tudo isso simbolizado pelo embate entre “autor” e “personagem”. Por outro lado, a
narração de um confronto entre o autor e seu personagem, “introduz no relato uma
referência à própria escrita, ou seja, a pergunta pelo lugar da fala (O que é ser escritor?
Como é o processo da escrita? Quem diz eu?)” (KLINGER, 2007, p.51). Desse modo,
indaga-se sobre a subjetividade ao mesmo tempo em que se posiciona criticamente
perante seus próprios modos de representação.
Esse confronto tem lugar na subjetividade da criação imaginativa do autor e ao
abrirem-se as cortinas do texto narrativo para iluminar o que usualmente fica oculto, o
autor leva ao leitor um questionamento dos seus modos representação. Afinal, quem é o
autor? É aquele que se esconde por trás do nome que está na capa? É aquele que narra?
E se a voz da personagem Carolina emerge em primeiro plano isolada, sem a mediação
do narrador, questionando os modos de representação de sua criadora, de quem é afinal
essa voz?
Observamos embate semelhante no livro Fazendo Ana Paz. Contudo, antes de
entramos nesse mérito, consideramos necessária uma breve explanação a respeito desse
livro. Ele faz parte de uma trilogia chamada “A trilogia do livro”, referida pela própria
30
autora desse modo em diversas ocasiões. O primeiro é Livro: Um encontro com Lygia
Bojunga Nunes; o segundo, Fazendo Ana Paz e o terceiro, Paisagem. Livro nasceu de
uma encomenda feita à autora pela IBBY (International Board on Books for Young
People), que solicitou uma mensagem para o Dia Internacional do Livro Infantil. O
tema do texto é a relação com o livro, e a partir daí surge uma necessidade de
aprofundar a narração dessa ligação com o livro, estendendo-se para a leitura e a escrita,
resultando em um monólogo contando os seus “casos” de amor com a leitura, encenado
pela autora em forma de apresentação teatral pelo interior do país. Mais tarde, esse
monólogo é transformado na primeira parte de Livro: Um encontro e a segunda parte
consiste na narração dos seus “encontros” com a escrita, como começou a sua paixão
por ela, e o caminho percorrido até se tornar escritora.
Fazendo Ana Paz, segundo livro da trilogia, conta a história da personagem
que dá nome à narrativa de forma entrecortada, fragmentos que se intercalam entre a
narração da história em si e o processo de criação da história narrada. O livro é
antecedido por um texto intitulado CAMINHOS. Como precede a narrativa, adquire
característica de prefácio o que nos leva a pressupor, mais uma vez, que seja um
depoimento da autora empírica.
Depois das primeiras apresentações de LIVRO pelo Brasil eu
comecei a achar que, fazendo a outra metade da laranja, isto é,
me posicionando também como escritora, a representação do
meu envolvimento com livros ia ficar mais redonda, e com isso
eu quero dizer, mais integrada. Escrevi então o que eu chamei
de “encontros com a escrita”, contando alguns episódios ligados
à minha inclinação de escrever. Não levei essas narrativas pro
palco: achei que elas tinham saído com cara de só gostar de
morar em livro. Foram publicadas, junto com o monólogo-da-
leitora num volume chamado “LIVRO, um encontro com Lygia
Bojunga Nunes. A necessidade de falar mais dramaticamente do
ato de escrever me fez continuar nesse caminho e levantar uma
personagem chamada Ana Paz. O percurso que eu fiz com a
Ana Paz foi difícil, eu não enxergava bem o caminho, tropecei e
parei muitas vezes, mas me levou a um livro que eu chamei
“Fazendo Ana Paz”. (FA, p.9).
Como podemos observar, o livro citado acima surgiu da necessidade de
penetrar um pouco mais no caminho de falar sobre a escrita. Essa necessidade gera uma
narrativa em que o processo criativo vem à tona, o que deveria permanecer nos
bastidores torna-se matéria literária. Como o texto sinaliza, Fazendo Ana Paz narra o
31
trajeto percorrido na elaboração de uma narrativa, a história está dissolvida em
fragmentos, intercalados pelas elucubrações a respeito da feitura do texto:
Que relação que essa Velha tinha com a Ana Paz?
Quem sabe a Moça-que-se-apaixonou-pelo-Antônio era só uma
lembrança do passado que a Velha ia buscar? Uma amiga do
tempo da mocidade?
Daí pra frente eu fui andando cada vez mais devagar na minha
história; (...)
Então o encontro ia ser na casa.
Resolvi antes de mais nada levantar a casa. (...)
Agora, olhando pra trás, eu chego a pensar que eu estava tão
devagar na minha história de tanto que eu vinha querendo focar
lá deitada na rede, lembrando tijolo por tijolo a Casa onde a
Velha ia ter nascido.
Aí, um belo dia, o avião chegou no Rio Grande do Sul e a
Velha desembarcou.
Era lá pelas três da tarde azul.
Tinha um vento que passava e que era frio.
O táxi parou na porta da Casa e a Velha desceu. O motorista
pegou a bolsa de viagem que ela levava. (FA, p.25).
Nesse trecho notamos o desenrolar suave da narração, quase imperceptível.
Mas outras vezes essa passagem é bem marcada: “Então, experimentei fazer os dois
chegando juntos. / Voz do Pai: - –– Ana Paz! olha aqui o presente que eu te trouxe.”
(NUNES, 1993, p.33).
O livro todo se desenrola nessa tensão entre o fazer literário e a matéria
literária, ora a narradora/autora emerge expondo a sua dificuldade em dar
prosseguimento à história de Ana Paz, ora a narração propriamente dita se desenrola.
Barthes faz menção a uma ilusão referencial, que corresponde ao uso de certos
procedimentos de escrita, dentre eles, o efeito de realidade, que se dá através da
inclusão de detalhes referenciais, não relevantes para a trama que funcionam como
marcadores de realidade. Notemos que o autor em questão faz uso das palavras “efeito”
e “ilusão”, termos que nos situam em um campo semântico difuso e impreciso.
O texto CAMINHOS, portanto, ao nos trazer essa suposta fala da autora, com
todos os marcadores que nos levam a crer nessa fala empírica, imprime essa ilusão de
realidade referida por Barthes. Contudo, sendo essa realidade difusa e imprecisa, ele nos
lança, por conseguinte, em um terreno impreciso e difuso. Ou seja, esse texto, que a
princípio nos direciona para um caminho, o caminho da referencialidade, faz o oposto,
nos arremessando no terreno das incertezas e dos equívocos, já que se configura como
um efeito de ilusão.
32
E os equívocos não param por aí. À primeira vista, apesar de todo o jogo de
iluminação dos mecanismos da escrita versus narrativa ficcional, acreditamos ainda que
o livro se trata da história da personagem Ana Paz. Nos envolvemos pela história
daquela menina que presenciou a morte do pai após uma despedida dramática, envolta
por um mistério que perdura ao longo da trama:
ele me pegou num abraço e disse Ana Paz, me promete uma
coisa, que é pai, que é? Promete que tu nunca vais te esquecer
da Carranca, mas pai o que que tá acontecendo? Ele me sacudiu
e pediu de novo, promete que tu não vais te esquecer da
Carranca, Ana Paz! Eu prometi e não deu pra dizer mais nada.
(FA, p.14)
Esse trecho faz parte da primeira narração de Ana, ainda criança. A
narradora/autora relata como se deu o processo criativo de outra personagem da autora
Lygia Bojunga a Raquel, de A Bolsa Amarela, contando que foi um processo intenso de
criação, sem interrupções ou hesitações. Esse prelúdio da narrativa de Ana Paz aborda
uma questão interessante do processo criativo de um personagem: de acordo com essa
voz narrativa, é um processo permeado por pausas e bloqueios e quase nunca é
ininterrupto. Já a personagem Raquel foi construída sem esses lapsos, de um só fôlego.
Mais interessante ainda é como esse processo nos é apresentado. Espera-se que na
deflagração de um processo criativo o autor seja o agente desse processo, no entanto,
parece-nos que são os personagens a deflagrar esse processo e não o contrário:
a Raquel não saiu de perto de mim: exigente, obstinada,
centralizadora. Antes da Raquel, qualquer personagem que eu
fazia sempre me dava uma folga: férias, fim de semana,
feriadão. (...) Só que, Às vezes, a gente se despedia num fim de
semana e, quando na segunda-feira eu abria o caderno pra me
encontrar de novo com ele, cadê?! Tinha me escapado. E todo
dia eu olhando pra pagina branca, esperando ele sair dela. E
nada: Sua Excelência sumida. (...) Daí o meu susto com a
Raquel: ela nem tocou a campainha: escancarou a porta, se
aboletou no meu caderno e só foi embora quando eu botei um
ponto final no livro. (FA, p.12)
Observemos que a autora se coloca em uma posição de passividade nesse
processo de construção. A personagem Raquel postou-se ao seu lado, obstinada,
exigente, demandando a escrita de si. Os personagens anteriores a ela não foram tão
obstinados quanto a Raquel, mas eles também imprimiam o seu ritmo à narração,
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escondendo-se e revelando-se ao seu bel prazer. É possível traçar um paralelo desse
processo de criação com a inspiração, a demanda dos personagens seria uma metáfora
para a inspiração, contudo a escolha de posicionar o escritor como uma figura passiva,
refém das vontades dos personagens é significativo na obra de Lygia Bojunga, já
assinalamos essa intromissão antes em Retratos de Carolina, estamos percebendo essa
intervenção em Fazendo Ana Paz e isso se repetirá em outros livros do corpus que ainda
analisaremos mais à frente.
Após o fragmento em que se passa o diálogo da senhora com seu filho, sucede
a intervenção da narradora, comentando como aquele trecho foi elaborado. Ao contrário
dos trechos da Ana Paz menina e da moça, esse episódio foi sendo construído aos
poucos e levou alguns dias para ficar pronto. A narradora aponta que conforme o
diálogo se formava ela percebia que rumo a história ia tomando:
A cena da Velha foi saindo um pedacinho cada dia (e era tão
bom todo dia eu abrir o caderno e encontrar essa personagem lá
me esperando pra ser feita mais um pouco). Mas mesmo assim,
sem me escapar, eu não sabia o que que a Velha ia fazer lá no
Rio Grande do Sul. Foi só quando o Filho começou a botar
pressão em cima dela (que viagem é essa mamãe? O que que
você vai fazer lá no sul, mamãe?) que eu tive que me definir. A
Velha então respondeu que ia se encontrar com duas amigas.
(FA, p.25)
Parece-nos, a partir desse trecho, que o diálogo se desenrola a despeito da
vontade da própria narradora, como se ela fosse mera espectadora, e estivesse ali
transpondo uma cena que já está posta. Tanto que ela sinaliza não saber o que a Velha
fará no Rio Grande do Sul, apesar da discussão dos dois personagens ser justamente
essa viagem, que será no dia da comemoração de 80 anos preparada pela família. A
narradora se posta, mais uma vez, como agente passiva da narração, sendo que dessa
vez os personagens não fazem essa demanda diretamente, ela ocorre no decorrer do
fluxo do diálogo, como se a narrativa seguisse um curso próprio e a narradora fosse
somente a mediadora desse processo.
Após a escrita, a narradora comenta a cena, perguntando-se como as três
personagens se conhecem e por que elas se encontrarão. O que nos leva à aparente
passividade no processo da escrita: “Foi só quando o Filho começou a botar pressão em
cima dela (...) que eu tive que me definir. A Velha então respondeu que ia se encontrar
com duas amigas”. (FA, p.25). A definição é imposta pelos questionamentos do
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personagem e já presenciamos algo semelhante com a personagem Raquel que postou-
se ao lado da narradora obstinada, até que sua história finalizasse e também com a
personagem Carolina, que invade fisicamente o espaço da narradora e exige o fim de
sua história. Claro que aqui estamos observando esse processo em uma escala bem
menor, já que o Filho não exige uma resposta da narradora, mas de sua mãe, a Velha.
Aqui, a narradora é pressionada de forma indireta, através da sua personagem. Notemos
que a solução encontrada pela narradora não é compreendida de imediato nem por ela
mesma, já que só após finalizar a cena, ela tenta entender o que as três (a menina, a
Moça e a Velha tem em comum). Interessante sinalizar que antes da própria narradora,
nós, leitores, já desconfiamos o que elas possuem em comum, elas na verdade são a
mesma pessoa. Mas só chegamos a essa conclusão porque as três cenas são narradas em
um livro chamado Fazendo Ana Paz. O nosso tempo é o tempo da leitura, um tempo em
que o livro já foi publicado. O tempo da narração é um outro tempo, um tempo em que
o processo criativo estaria se desenrolando em meio a outros processos de outras
histórias e a entidade que está escrevendo essas histórias naquele momento não faz essa
conexão. Para os leitores essa ligação é óbvia porque já faz parte de um produto final.
Bem, mas esse processo também ocorre no plano da ficção. Portanto o que
presenciamos é a ficcionalização de um processo criativo. Os bastidores da escrita são
encenados para dar forma a um livro que trata do processo de escrita de um livro.
Logo, reparamos que a despeito da referencialidade deflagrada nas linhas
iniciais de Fazendo Ana Paz, seja no texto CAMINHOS, seja na citação de um dos
livros mais conhecidos da autora empírica, (A Bolsa Amarela), o texto é atravessado de
ficcionalidade e essa inversão de papéis no mecanismo de criação subverte a potencial
“realidade” do texto, produzindo o efeito de realidade referido por Barthes. Parece real,
há indícios de real, mas não é, trata-se de uma ilusão, somos iludidos pelos marcadores
que nos remetem à realidade e acabamos por ser ludibriados por essa falsa certeza que
esses marcadores imprimem.
Retomando o ponto do envolvimento que a história de Ana Paz provoca, após a
morte do pai e do mistério da Carranca ali deflagrado, somos capturados pela
curiosidade de descobrir o que acontece com aquela menina e por que ela não pode se
esquecer da Carranca. Mais adiante, acompanhamos uma moça se apaixonando por um
jovem e mais adiante ainda, presenciamos a discussão de uma senhora com o filho.
Desconfiamos já de antemão, que as três são a mesma, Ana Paz, e acompanhamos a
montagem desse quebra-cabeça com avidez, ansiando pela resposta de várias
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interrogações. Por que o pai estava sendo perseguido? O que é a Carranca? A moça é o
rapaz vivem um romance? Por que a velha quer viajar para o sul? Essas três degustações
são, como já assinalamos, entrecortadas pela narradora, relatando os obstáculos
enfrentados entre a produção de um trecho e outro da história.
No momento em que o encontro das três personagens é encenado e a narradora
finalmente percebe que as três são a mesma, algumas das lacunas da história vão sendo
esboçadas: a menina que viu o pai morrer cresce, muda-se para o Rio de Janeiro, se
apaixona e se esquece dos valores que o pai tentou passar para ela, provocando nela um
sentimento de culpa por ter se abandonado os ideais do pai, provocando esse embate
dela consigo mesma. A menina e a moça representando o passado e as crenças que lá
ficaram e a Velha representando o presente vazio de sentido. Esse retorno simboliza
uma volta às raízes e a reconstrução de seu passado, simbolizado pela reconstrução da
casa, tarefa em que a Velha se lança após chegar lá.
Após constatar que as três personagens são a mesma, a narradora, arrebatada
com essa descoberta encontra-se envolvida com cenas despontando aos turbilhões:
Desatei a imaginar uma cena atrás da outra:
O Pai usando a Carranca pra passar pra Ana Paz tudo que é
valor que ele achava importante.
A Ana Paz-moça se entregando pro Antônio de corpo-e-alma,
quer dizer, de corpo-e-valor. Ele fica com o corpo, mas joga os
valores pela janela; e ainda de quebra empurra pra ela os
valores dele, e ensina ela a zelar muito bem por cada um...
A Ana-Paz-velha redescobrindo a casa onde ela nasceu.
Era tanta cena se anunciando que eu achei que o meu dedo ia
pedir um empacamento pelo amor-de-deus, pra se curar do calo
que ele ia criar. (FA, p.29)
Ela se encontra envolvida, os leitores são arrebatados, se envolvem também e
esse envolvimento nos leva pelo caminho equivocado. O mote central de Fazendo Ana
Paz não é a história de Ana Paz, mas sim, como o próprio título já antecipa, a própria
fabricação do texto. O texto brinca com os leitores, criando uma expectativa que não
será satisfeita. Alguns pontos são iluminados, ainda que fracamente, dispostos na
penumbra, como o envolvimento da moça com o jovem, o significado da Carranca e o
motivo do pai ter sido morto por policiais. Entretanto, são elementos rasurados, nunca
concluídos, ao menos não satisfatoriamente.
A figura do pai não é plenamente construída, a narradora encontra sérios
problemas para a sua construção, ele é concebido de uma forma, para que logo essa
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forma seja rejeitada, e em seguida outra a ser esboçada somente para ser também
descartada, e por aí vai. Assim como a Carranca. Assim como o romance da moça com
o jovem, chamado Antonio:
E aí eu comecei outra vez. (grifo da autora)
Hoje eu vou fazer um Pai superforte.
Segunda-feira sem falta esse Pai vai ter um carisma que sai da
frente! (...)
Semana que vem o Antônio vai ser genial.
Não passa do mês que vem, isso eu juro, e eu boto o ponto final
na Ana Paz.
(FA, p.51)
Essa é a última tentativa de construção das pontas soltas do livro, e esse
recurso de adiar a escrita já havia sido utilizado antes na narrativa. Assemelha-se às
tentativas de dietas que tanto nos assombram: na segunda começo; não, semana que
vem; já que passou-se uma semana, deixa logo para começar no início do mês que vem.
Essas promessas normalmente não se cumprem, assim como as promessas da narradora
de nos entregar o fim da história e resolver as questões que nos interessaram e queremos
ver resolvidas. Mas não se resolvem. Não definitivamente. Não claramente. Somos
sujeitos a diversos rascunhos do personagem do Pai, a uma breve exposição da
Carranca, que seria o símbolo dos valores que o Pai desejava transmitir para a filha e o
Antônio continua sendo apenas um nome, o nome do homem com quem se casou e por
quem abandonou aqueles valores que o Pai havia pedido para que não se esquecesse.
Acompanhamos esse processo de escrita imperfeita, inacabada, repleta de
hesitações, riscos, rasgos, frustrações, lemos linha após linha ansiosos por um fim
desses mistérios, mas só chegamos ao fim do livro, não ao fim da história, pois não há.
Chegamos ao fim do livro para nos dar conta que o encantamento do livro não era a
história de Ana Paz, não era o que acontece com ela e por que. O que importa não é a
história em si, sua efabulação, mas como se dá essa efabulação, como se dá o processo
de construção de um personagem, de uma história e todos os percalços que esse
processo traz.
Isso é tão latente que, como se não bastasse o próprio desvelamento desse
processo “work in progress”, há um depoimento sobre o que pensa a narradora a
respeito desse processo de criação: “personagem é feito filho da gente, ruim ou bom a
gente gosta dele, ainda mais assim, quando ele ainda nem sabe ficar de pé. Fazer
personagem é ato de entrega, de amor”. (FA, p.40).
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Em Paisagem, essa tensão entre ficção e não-ficção, autor e narrador, é mais
sutil, mas ainda há, a começar pelo texto CAMINHOS que antecede a narrativa de
Fazendo Ana Paz e do próprio livro em questão. Essa referência extra-textual que se faz
presente em ambas as narrativas cumpre a função de estabelecer uma conexão entre
elas, somando-se ainda à primeira narrativa que compõe a trilogia, LIVRO: um
encontro. Esse recurso provoca a já referida ilusão de referencialidade abordada por
Barthes. É um duplo elemento extra-textual: o texto enquanto forma, já que é
exatamente o mesmo texto e abre as duas narrativas, assemelhando-se a um prefácio; e
o texto com relação ao seu conteúdo, já que lá temos uma voz narrativa justificando
fazendo referência aos livros que compõem a trilogia, explicando brevemente os
caminhos que a levaram a escrevê-los.
Observamos anteriormente que a princípio Fazendo Ana Paz objetivava
apresentar a outra metade da laranja, se LIVRO: um encontro seria a metade leitora,
Fazendo Ana Paz seria a metade escritora. Contudo em meio ao processo criativo do
segundo livro, a autora se dá conta que essa laranja deve ser dividida em três partes,
sendo a terceira uma mistura das duas anteriores:
Assim que eu me envolvi com o Lourenço eu me dei conta
que o símbolo das duas metades da laranja não era o que
eu estava buscando; o que eu queria pra fazer a minha fala
de livro ficar mais redonda era três pedaços da laranja; se
no primeiro eu tinha falado da leitura e no segundo da
escrita, agora eu queria, nessa parte, misturar uma com a
outra. (P, p.8)
Se na seção “Pra você que me lê” de Retratos de Carolina observamos a
ambivalência latente quando a suposta autora irrompe e declara que é uma e outra, aqui
observamos essa mesma ambivalência na mistura dessas duas facetas, leitora e escritora
e mais uma vez somos lançados no terreno do indecidível.
Leonor Arfuch ressalta que “para além do nome próprio, da coincidência
‘empírica’, o narrador é outro, diferente daquele que protagonizou o que vai narrar”
(ARFUCH, 2010, p.54). Partindo desse pressuposto, para além de um prefácio fazendo
referência a elementos que nos remetem a outros textos, criando uma sensação de
unidade e de coincidência entre as personas narrativas, o narrador ainda é outro.
O mote central da trama gira em torno da paisagem que dá título ao livro. A
narradora em primeira pessoa é uma escritora e ela se corresponde com um leitor
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chamado Lourenço. Em uma de suas cartas, Lourenço narra que sonhou com uma
paisagem, a mesma que fazia parte de um livro que a escritora ainda estava escrevendo:
Fiquei olhando pro meu caderno aberto, querendo entender
como é que um Lourenço que morava lá no Rio podia ter
sonhado com uma paisagem que até agora só tinha feito um
caminho: da minha cabeça pro caderno onde eu estava
escrevendo o conto, do caderno pra minha cabeça. Um
Lourenço que eu mal conhecia, que eu nem, sabia se era um
adolescente, uma criança, um adulto? (P, p.15).
A escritora então, impressionada com a coincidência, resolve investigar mais
sobre o sonho de Lourenço, tentando descobrir como ele sonhou exatamente com o
mesmo cenário idealizado por ela. Depois de algumas cartas, Lourenço se despede
dizendo que vai se mudar e não escreve mais. Após seu desaparecimento, e com ele as
possíveis explicações sobre o misterioso sonho, a escritora toma a decisão de ir ao Rio
de Janeiro em busca dele.
A narrativa é em primeira pessoa, mas transcorre sem interferências diretas do
possível autor empírico. A abertura com o texto CAMINHOS, como alegamos antes,
nos direciona para uma identificação da narradora com a autora, e as referências
biográficas da autora Lygia Bojunga são pinceladas durante a trama, como por exemplo:
a escritora personagem do livro mora em Londres, e Lygia é casada com um inglês, tem
uma casa em Londres, dividindo sua moradia entre Inglaterra e Brasil; Lourenço mora
em Santa Teresa, onde se localiza a editora Casa Lygia Bojunga; a escritora do livro não
gosta de entrevistas, assim como a autora gaúcha. Estas pistas poderiam nos levar a crer
que a narradora do livro é a própria Lygia, no entanto, ao mesmo tempo em que a
referencialidade se faz latente, a ficcionalidade imprime sua marca.
Segundo Ítalo Moriconi, “o traço marcante na ficção mais recente é a presença
autobiográfica real do autor empírico em textos que por outro lado são ficcionais”.
(MORICONI, 2005, apud KLINGER 2007, p.12) e Diana Klinger sinaliza que a escrita
de si e a escrita do outro são identificadas como “duas tendências da narrativa
contemporânea: o ‘retorno do autor’ e a ‘virada etnográfica’”. (KLINGER, 2007, p.12).
Com o retorno do autor, essa figura emerge dos bastidores da escrita problematizando a
relação entre o real (referencial) e o ficcional, abandonando o binarismo e funcionando
na dubiedade. O autor aparentemente revela sua face, imprimindo ao texto fatos que
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reconhecemos como parte de sua biografia, mas imprime a esse mesmo texto um caráter
ficcional.
Para Barthes, esses marcadores de realidade produzem um efeito de real, uma
ilusão provocada pelas referências. Temos uma assertiva semelhante em Wolfang Iser e
os atos de fingir, ou atos de transgressão, que produzem uma ilusão de verdade, uma
realidade que pode ser aceita como uma realidade possível. Essa ilusão de verdade é
criada na medida em que o texto que dá voz à autora empírica abre o livro e na mesma
medida em que dados autobiográficos vão sendo pulverizados ao longo narrativa,
fazendo o leitor crer que se trata de uma possível realidade.
Voltando a Iser, os atos de fingir apresentam alguns modos de operação:
seleção, combinação e autodesnudamento. A seleção “é uma transgressão de limites na
medida em que os elementos do real acolhidos pelo texto se desvinculam então da
estruturação semântica ou sistemática dos sistemas de que foram tomados”. (ISER,
1996, p.26). A partir da seleção ocorre a operação da combinação dos elementos
textuais:
Dito de maneira simples: a transgressão da realidade não se dá
apenas pela escolha de valores, usos e costumes presentes no
mundo social em que é gerada a obra, mas também pela
manipulação lexical e pelos esquemas que presidem a escolha
de tipos de personagens e as ações que cumprem. (COSTA
LIMA, 2007, p.288).
O terceiro modo de operação é o autodesnudamento, “tendência que a ficção
literária apresenta de se expor, não como um simulacro da realidade, mas como uma
apresentação desta, muitas vezes desmitificante” (COSTA LIMA, 2007, p.289) No
auto-desnudamento o texto se afirma e se assume como realidade fingida.
Depois que conhece seu leitor, a escritora descobre que a paisagem, antes de
ser sonhada por Lourenço, foi desenhada por uma menina que mora ao lado dele, que a
narradora chama de Menina-do-Lado e Lourenço chama de Monstrinho. Ao ver o
desenho, o rapaz acha que se parece com algo que teria sido criado pela escritora, e só
então sonha com ele. A escritora volta para Londres e termina de escrever o conto, no
qual está inserida como personagem a Menina-do-Lado. Nas duas últimas páginas do
livro, ao reler seu texto a escritora se vê dentro do próprio, e Lourenço, o leitor com
quem ela se correspondia, aparece: “Eu já tinha gostado dessa paisagem no desenho e
no sonho, mas assim, pessoalmente, eu ainda tô achando ela mais legal” (P, p.64) A
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Menina-do-Lado aparece na janela da casa e lá de dentro ouve-se ainda o som de um
clarinete, e subentende-se que lá está o pai de Lourenço, que havia desaparecido.
Na narrativa principal temos os personagens da escritora, Lourenço, e a
Menina-do-Lado. A narrativa principal se desdobra em uma outra, a criada pela
escritora. No fim do livro, a menina, que fazia parte da narrativa principal, desloca-se
para a segunda narrativa, e no último capítulo, o leitor e a escritora também adentram na
segunda trama, criada pela narradora
Nesse momento, a ficção se autodesnuda como ficção, pois apesar das marcas
referenciais irromperem ao longo da trama levando-nos a crer que fosse a própria Lygia
Bojunga a autora personagem do livro, ela jamais poderia ter entrado na própria
história, a não ser por vias ficcionais. E o próprio desdobramento de história dentro da
historia é um recurso frequentemente utilizado pela mesma em outros de seus livros em
que a tensão entre o real e o ficcional não se fazia latente.
A narrativa, chamada LIVRO: Um encontro, foi concebida a partir de uma
encomenda feita à autora pela IBBY (Organização Internacional para o Livro Infantil e
Juvenil) em virtude do Dia Internacional do Livro Infantil. Daí, surge após um tempo a
necessidade de falar sobre a ligação com o livro, só que “é hora de falar mais comprido
e mais direto”. (NUNES, 1988, p.8). Essa necessidade gera um texto em que a narradora
desenvolve a sua faceta leitora. Esse texto transforma-se em uma apresentação teatral
que a autora encena pelo país. No livro o texto intitula-se “LIVRO – eu te lendo”.
Deste, surge uma outra necessidade, a faceta leitora havia sido desvendada, mas o
projeto parecia incompleto sem o desvelamento de sua faceta escritora, faceta pela qual,
afinal de contas, é desvelada o seu “eu-leitora”. O livro então se abre em uma segunda
parte em que são narrados os seus “encontros” com a escrita, como começou a sua
paixão por ela, e o caminho percorrido até se tornar escritora.
Apesar do forte apelo autobiográfico, a narrativa apresenta diversos sinais que
a caracterizam como ficção. Já no texto composto para o Dia Internacional do Livro
Infantil, isso pode ser observado. Vejamos:
LIVRO: a troca
Pra mim, livro é vida; desde que eu era muito pequena os livros
me deram casa e comida.
Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo; em pé,
fazia parede; deitado, fazia degrau de escada; inclinado,
encostava num outro e fazia telhado.
41
E quando casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra
brincar de morar em livro.
De casa em casa fui descobrindo o mundo (de tanto olhar pras
paredes). Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando
palavras.
Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça.
Mas fui pegando intimidade com as palavras. E quanto mais
intimas a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar
o telhado ou de construir novas casas.
Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha
imaginação.
Todo o dia a minha imaginação comia , comia e comia; e de
barriga assim toda cheia, me levava pra morar no mundo
inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-céu, era só escolher e
pronto, o livro me dava.
Foi assim que, devagarinho, me habituei com essa troca tão
gostosa que – no meu jeito de ver as coisas – é a troca da
própria vida; quanto mais eu buscava no livro, mais ele me
dava.
Mas como a gente tem mania de sempre querer mais, eu cismei
um dia de alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra – em
algum lugar – uma criança juntar com outros, e levantar a casa
onde ela vai morar. (L, p.7).
De acordo com Umberto Eco,
os livros escritos na primeira pessoa podem levar o leitor
ingênuo a pensar que o “eu” do texto é o autor. Não é,
evidentemente; é o narrador, a voz que narra. P. G. Wodehouse
certa vez escreveu na primeira pessoa as memórias de um
cachorro – uma demonstração incomparável de que a voz que
narra não é necessariamente a do autor. (ECO, 1994, p.19).
Como foi encomendado à autora empírica, Lygia Bojunga, é natural que o
identifiquemos como uma escrita não-fictícia, mas ele apresenta vários aspectos
característicos de um texto fictício. A começar pelo título, que remete ao conto da
própria “A troca e a tarefa”. Além de evocar a intertextualidade, a referência a um outro
texto reconhecido como texto fictício nos dá pistas de que o que está por vir também o
seja. A própria temática do texto assemelha-se ao referido conto. Se lá havia uma troca
fantástica em que a escritora transformava seus sentimentos em escrita, exorcizando-os,
a troca aqui se dá no âmbito do imaginário, pois a imaginação é alimentada pelos livros,
e em troca a própria imaginação é utilizada para “fabricá-los”.
Nesse texto é utilizado também um recurso frequente em suas obras, conforme
já vimos: o animismo. A imaginação é personificada, ela se alimenta a ponto de ficar
com a “barriga assim toda cheia” e levá-la, como se tivesse braços, “pra morar no
42
mundo inteiro”; sobre o objeto livro também pousa esse mesmo recurso, na medida em
que a ele é atribuída a função de fazer a troca: “quanto mais eu buscava no livro, mais
ele me dava”; e as palavras também adquirem essa conotação, já que a narradora afirma
adquirir “intimidade com as palavras”, como se fossem pessoas de carne e osso e
pudessem com ela travar um diálogo corpo a corpo.
O texto é também carregado de simbolismo e gera imagens líricas. A ideia de
que o livro fornece casa e comida traz duas imagens: uma concreta, já que de fato os
livros eram utilizados para brincar de casinha; e outra simbólica, pois a sua leitura
impulsionava a imaginação. Descobrir o mundo remete ao conhecimento adquirido
através da leitura. Derrubar os telhados com a cabeça não significa apenas ter ficado
grande demais para “morar” dentro do livro, é ainda uma imagem simbolizando que a
relação com a leitura ultrapassou os limites da brincadeira, avançando para o estágio da
leitura até culminar com a passagem para o outro lado: a fabricação dos livros que
serviriam de “morada” para outras crianças.
O próprio recurso do animismo gera belas imagens: a imaginação “come”, ou
seja, ela é ativada pela leitura, esta lhe proporciona prazer e conhecimento; o livro a
leva para o mundo inteiro, ou seja, as histórias do livro, passadas em diversos lugares do
mundo imprimem-lhe a sensação (através da imaginação), de viajar a esses lugares.
Mas, ao mesmo tempo em que o texto fornece fortes indícios de que se trata de
um texto ficcional, há um ponto importante a ser considerado: como foi encomendado à
autora empírica e está em primeira pessoa, identificamos a narradora com a autora.
Esse texto metonimicamente representa todo o livro, pois todo ele oscila nesse
jogo do que é e do que não é ficção. Trata-se de uma primeira pessoa com fortes traços
autobiográficos, mas que se materializa pelas vias ficcionais. Parafraseando Diana
Klinger, mesmo com essa primeira pessoa ancorada em referências autobiográficas, o
texto continua sendo ficção, é ao mesmo tempo ficcional e (auto) referencial,
problematizando a ideia de referência, incitando o abandono do rígido binarismo entre
“fato” e “ficção”(KLINGER, 2007).
1.2) Desdobramentos
A narrativa de Retratos de Carolina é dividida em duas partes, embora a
primeira não seja assim nomeada. De fato, só constatamos que o livro é dividido em
43
duas partes quando nos deparamos com a segunda. Pois bem, a primeira parte é
composta por oito capítulos. Cada capítulo refere-se a um “retrato” de Carolina, cada
retrato narra um episódio marcante da vida da personagem. A segunda parte abarca a
seção “Pra você que me lê” e os dois últimos “retratos” de Carolina.
No quarto capítulo, “Carolina aos vinte e um anos junto da escrivaninha do
Pai”, há a descrição do ambiente da casa que marcará este capítulo, o escritório do Pai:
Quando Carolina tinha uns três ou quatro anos, um dia quis
saber onde é que estava o Pai. A Mãe respondeu que ele estava
no esconderijo dele. Carolina gostou da resposta: ela adorava
brincar de se esconder, e o fato do escritório do Pai ser um
esconderijo fazia daquela peça ensolarada, onde duas janelas
olhavam pra rua, e onde as paredes se cobriam de livros, um
lugar mais que especial: pra Carolina o escritório era mágico.
(RC, p.81)
Lá, o Pai passa boa parte do seu tempo lendo e fazendo anotações em cadernos,
e conversando com sua filha Carolina. Enquanto criança, a menina rondava em frente à
porta do cômodo esperando que o pai a chamasse para conversar. É um ambiente
especial para a personagem, já que é lá onde ela e seu pai passam momentos agradáveis
juntos e também onde fica o seu móvel preferido, a escrivaninha, tanto por sua
arquitetura peculiar, quanto por sua associação ao seu pai. E é nesse ambiente em que
Carolina comunica ao pai a importante decisão de se casar com um homem que só
conhecemos por “Homem Certo”.
Dentro desse retrato, abre-se outro, “Pequeno retrato do Homem Certo”. Nele a
narradora apresenta-nos este personagem. Até essa pequena interrupção, o olhar do
narrador voltava-se para o diálogo entre Carolina e seu pai, alternando o discurso entre
o olhar do pai e o de Carolina.
Ao retratar o Homem Certo, o foco do narrador distancia-se da personagem
principal para aproximar-se desse homem, fornecendo detalhes de sua personalidade
desconhecidas por Carolina e antecipando aos leitores que a união dos dois
possivelmente não será bem sucedida.
Retrato dentro do retrato, ficção dentro da ficção, essa é uma das camadas que
se abrem no texto. Esse desdobramento em camadas duplica, ou melhor, multiplica os
modos de ver. Para John Berger,
44
Todas as imagens corporizam um modo de ver. As fotografias
não são, como muitas vezes se pensa, um mero registro
mecânico. Sempre que olhamos uma fotografia tomamos
consciência, mesmo que vagamente, de que o fotógrafo
selecionou aquela vista de entre uma infinidade de outras vistas
possíveis. Isto é verdade mesmo para o mais banal instantâneo
de família. O modo de ver do fotógrafo reflete-se na sua escolha
do tema. (BERGER, 1972, p.14)
Ainda que o trecho acima se refira ao registro mecânico, é possível traçar um
paralelo com o presente texto. A seleção de determinado episódio da personagem
corporifica um modo de ver. O modo como os leitores absorvem a leitura deste episódio
configura outro modo de ver. Ao desfolhar um retrato dentro do outro se multiplicam os
modos de ver, já que a duplicação referente a um retrato encontra-se noutro, já
duplicado.
Ao lermos o retrato do Homem Certo, não só temos acesso a uma informação
que a personagem central não possui, o que nos delega uma sensação de poder, mas
também nos oferece um outro ponto de vista, a outra face da moeda. Ao abrir um leque
de opções, cria a falsa sensação de poder de decisão, poder escolher entre essa ou aquela
perspectiva. Entretanto, apesar da fala do narrador ser imparcial, ela vem infiltrada pelo
ponto de vista de outra personagem, a ex-mulher do Homem Certo:
Passado um certo tempo, a Eduarda começou a reivindicar do
Homem Certo o abandono de antigas predições, feito cheirar pó
(você vive dizendo que não é dependente; mas se não é, vai
ficar), adular o uísque (por que você não aprende a parar depois
do primeiro ou segundo?), fumar três maços por dia (se você
não se importa de morrer, eu me importo; não tô mais
aguentando respirar tanta fumaça), um consumismo que ela
achava excessivo (você não é mais criança, já tinha que saber
que não se pode gastar desse jeito!), um ritual superelaborado
na fazeção de amor (lá uma vez ou outra, tá bem, mas isso todo
dia não tem que agüente), etc. (RC, p.97)
Além de apresentar um outro modo de ver, o da Eduarda, este entrecorta a
narração com o claro propósito de direcionar a nossa leitura. A voz que surge entre
parêntese abriga críticas ao comportamento do personagem em cheque, consolidando a
nossa opinião a respeito dele.
Esse pequeno retrato tão apocalíptico emerge após a revelação que Carolina faz
ao pai sobre seus sentimentos pelo homem e após comunicar a decisão de se casar com
ele, o que provoca no leitor uma quebra de expectativa. Ao lermos as declarações de
45
Carolina sobre seu amor e suas expectativas em relação ao casamento, ainda que
minadas pela resistência do pai com essa decisão para ele precipitada, nos identificamos
com a sua postura otimista em relação ao primeiro amor e torcemos por ela, afinal, é a
personagem principal.
Contudo, assim que somos informados da consumação do casamento,
deparamo-nos com este retrato frustrando todas as expectativas de felicidade criadas
tanto pela personagem quanto por nós. Exemplo do caráter dinâmico da narrativa,
opondo-se à estaticidade do retrato fotográfico. Os retratos de Carolina são dinâmicos
na medida em que jogam o tempo todo com as expectativas do leitor.
O diário que a personagem Carolina escreve na segunda parte do livro
revitaliza o título da narrativa e instaura mais uma ambiguidade. Na primeira parte os
retratos de Carolina consistem na narração de sua trajetória de vida. São retratos feitos
sobre ela. A feitura do diário modifica o significado da preposição “de”, pois o diário é
de Carolina, pertence a ela, ela que escreve. Logo, os retratos também pertencem a ela.
Em seu diário, Carolina cria uma história para si própria, e fazendo isso ela se
autorretrata. Annateresa Fabris já havia ressaltado que “o sujeito que se deixa fotografar
é ao mesmo tempo pessoa e personagem” (FABRIS, 2004, p.40), visto que:
todo retrato é simultaneamente um auto-retrato, e que todo
auto-retrato pressupõe um espelho. Graças a ele, o indivíduo
constrói uma identidade imaginária e ilusória; atesta a
existência de uma unidade que a própria superfície do espelho
coloca em crise, ao criar uma cisão entre o eu que se apresenta
no reflexo e o que o percebe. (FABRIS, 2004, p.78).
Ao se revoltar contra o destino imposto por aquela que produziu os seus
retratos, a jovem passar criar retratos de si própria: “Mas, Carolina, te retratar pra quê,
se você já se retratou? Agora só falta o título: Auto-retrato aos 26 anos” (RC, p.203).
Esse desdobramento ocorre no plano de ficção, pois Carolina é de fato um
personagem. E não somente ela, mas sua criadora também. Até presenciamos o
confronto entre as duas. E essa criadora, como vimos, é a personagem-autora, alter ego
de Lygia Bojunga. Seriam então os Retratos de Carolina, autorretratos de Lygia?
Afinal, não são retratos e autorretratos entidades simultâneas? Não, Lygia está protegida
sob a imagem que criou de si mesma, aquela que transparece em seus textos. Retratos
de Carolina, e aqui me refiro à sua totalidade, são modalidades de representação de uma
subjetividade.
46
Em um de seus encontros com a autora, a personagem a pressiona para
descrever o novo personagem em que ela está trabalhando, chamado Discípulo. Após
muita hesitação a autora conta para Carolina a história desse novo personagem que ela
está desenvolvendo para uma peça. Após essa conversa Carolina relata em seu diário
sonhos que ela passou a ter com o personagem Discípulo.
Dentro do diário, portanto, abre-se uma nova camada, pois as impressões de
Carolina cedem lugar a uma narrativa ficcional criada por ela própria com um
personagem que originalmente fazia parte de novo um projeto da autora, que não
envolvia a personagem Carolina.
Ao abordar a virada etnográfica, Diana Klinger se refere à antropologia
hermenêutica de Clifford Geertz, em que ele critica a antropologia estruturalista
“negando a existência de um núcleo de sentido, e afirmando que este se produz no jogo
de interpretações, no qual o sujeito e o objeto se modificam simultaneamente”.
(KLINGER, 2007, p.73, grifos da autora). Embora essa premissa esteja inserida no
campo da antropologia, podemos traçar um paralelo com esse ponto da trama de
Retratos de Carolina. A autora, o sujeito. Carolina, o objeto. Ambas se modificam
simultaneamente. A autora se dá por satisfeita com o final dado à sua personagem e se
entrega a um outro personagem, outro objeto. Carolina então, antes objeto, torna-se o
sujeito ao modificar o objeto Discípulo, levando-o para o relato que a personagem fazia
de si mesma.
Ítalo Moriconi assinala: “Ao jogo de pensamento na modernidade, polarizado
pela relação de conhecimento entre sujeito e objeto, propõe-se a alternativa do jogo pós-
moderno de intersubjetividade, da relação entre eu e outro como parceiros no diálogo
(Moriconi, 1994, p.64). Autora e personagem são parceiras no diálogo, ao passo que a
primeira iniciou um processo de construção da segunda e esta toma esse processo para
si e se reinventa, apossando-se, inclusive de outro personagem da autora que a
concebeu.
Foi só abrir o portão que a Carolina veio correndo ao meu
encontro. Me abraçou, me beijou e logo quis saber:
- Dessa vez você trouxe ele, não trouxe?
- Quem?
- Ora.
- O Discípulo?
- Quem mais?
47
Fiquei um tempo olhando pra Carolina, pensando devo? Ou não
devo? Contar logo pra ela o que aconteceu dentro de mim
depois que eu li o diário. Resolvi que devia, sim, devia dizer:
- Trazer o Discípulo por quê, se você já se apossou dele?
(...)
- Ah, ‘pera lá! A única coisa que eu fiz foi rabiscar um diário
que...
- ...que agora é parte da tua história...
- ...que fala de uma vontade, que tece uma fantasia...
- ...e que dá um feitio diferente ao Discípulo que eu inventei.
- Não foi por mal.
- Isso eu sei. (RC, p.203)
Mas a “história de Carolina” é a história da autora, já que Carolina é um
personagem criado por ela, e a própria “autora” é um personagem também, a partir do
momento que está representada em um livro e todo esse jogo está sendo representado
em uma obra de ficção. Para Diana Klinger, “o autor retorna não como garantia última
da verdade empírica e sim apenas como provocação, na forma de um jogo que brinca
com a noção do sujeito real” (KLINGER, 2007, p.44). Esse intricado jogo engendrado
nessa seção de Retratos de Carolina nos provoca no sentido de que somos iludidos o
tempo todo pela ilusão referencial e ludibriados na medida em o texto se desdobra em
camadas uma após outra até a subversão máxima de uma personagem ficcional
apoderar-se de um outro personagem ficcional e a partir daí criar uma nova história, à
parte daquela que havíamos acompanhado até o momento.
Conforme assinalamos no subcapítulo anterior observamos estrutura
semelhante em Paisagem, ainda que em menor escala. A narrativa principal, centrada
na busca da narradora pelo leitor com quem se correspondia se desdobra em outra, a
história produzida pela personagem-autora da trama central. Essa narrativa desenrola-se
em itálico, marcando graficamente esse desdobrar. No entanto, não temos acesso à
história completa, a narradora faz um resumo da trama e em determinado ponto
adentramos na narrativa em si:
...tinha sido tudo muito rápido, mas deu tempo da Mulher
enfiar um bilhete na mão dele: “Te encontro hoje às 5 horas
neste endereço”, e agora o Homem marchava confiante pro
encontro que ia, afinal, acontecer. (P, p.13)
Nessa história um Homem se interessa por uma Mulher e depois a encontra
novamente em uma ocasião em que vai ao teatro. Ela lhe passa um bilhete marcando um
48
encontro, que são as linhas transcritas acima. Ao chegar no local do encontro, o Homem
se depara com a paisagem, a mesma desenhada pela Menina-do-Lado, sonhada por
Lourenço e idealizada pela narradora. Observamos estrutura semelhante no romance Les
Faux Monnayeurs, de 1925. André Gide nos apresenta uma narrativa em que um dos
personagens escreve um romance e o título é o mesmo título do livro que narra a
história desse escritor escrevendo um romance. Para Lucien Dällenbach operacionaliza-
se como mise em abyme, já que, em linhas gerais, uma narrativa em abismo discorre
sobre ela mesma, como um micro relato de si mesma. (DÄLLENBACH, 1989). À
primeira vista, as narrativas do livro “Paisagem” desenvolvido pela narradora e o livro
Paisagem em si, que abarca aquele primeiro não coincidem até o momento, já que a
macro narrativa é a busca da narradora por solucionar o mistério da paisagem sonhada
por Lourenço ser a mesma que ela escreveu e a micronarrativa é a busca do Homem
pela Mulher que ele viu no metrô. Entretanto, um olhar mais atento nos leva a observar
que ambas as narrativas abrigam o tema da busca por algo. Uma busca relatando um
busca.
Mais adiante descobrimos que a paisagem não foi sonhada por Lourenço, mas
desenhada pela vizinha dele, uma menina para quem ele contava as histórias da
narradora, a quem ele chama de Monstrinho e a narradora de Menina do Lado. Após a
visita da narradora ao seu leitor, ela retorna a Londres e ao tentar finalizar a sua história,
ela não consegue se desvencilhar da forte impressão que o desenho da Menina e a
própria Menina lhe causaram:
Eu queria acabar a Paisagem, mas era só pensar n Homem e na
Mulher da minha história que eu me lembrava do desenho que a
Menina do Lado tinha feito. O meu pensamento então saía
passeando pelas vidas anteriores da Renata, enveredava pra
super-ligação dos seres afins do Lourenço, mas era pra Menina
que ele acabava sempre voltando. E ficando. (P, p.55)
A Menina lhe causou uma impressão tão intensa que a solução foi incluí-la na
história do Homem e da Mulher e ela tornou-se o fruto de um encontro de amor, que
nunca mais se repetiu. Contudo, a Menina guarda características físicas do pai e também
a memória da paisagem, do local onde os dois se amaram. A Menina herda essa imagem
e a desenha em uma cartolina, tal qual a Menina do Lado da narrativa principal.
Configura-se aí mais um elemento que se duplica, o desenho da Menina dentro da trama
secundária e o desenho da Menina na narrativa principal. A narradora envia o conto
49
para Lourenço e ele responde dizendo que não gostou. Ela então volta a ler o conto para
tentar descobrir porque o seu leitor não havia gostado do final da história:
Quando cheguei no pedaço que eu descrevo a paisagem e falo
do barco no mar, de repente me deu a impressão que o barco
estava se mexendo (indo? voltando?) Vi que o barco estava
vindo pra praia. E vi que tinha gente dentro. (...)
Sento.
O barco vem vindo. Uma onda pega ele e os dois aterrissam na
areia. O passageiro é o Lourenço. (P, p.64).
Dällenbach menciona um tipo de narrativa que se afirma como narrativa: “eu
sou literatura e esta é a narrativa que me sustenta (DÄLLENBACH, 1989, p.57). A
partir do momento em que a narradora da trama principal desloca-se para a narrativa
secundária, observamos a narrativa afirmando-se como narrativa. De que outro modo
isto ocorreria que não por vias ficcionais?
Em Fazendo Ana Paz esse efeito de desdobramento pode ser observado na
medida em que é um livro que conta a história de como fazer um livro. Como já vimos,
a narrativa alterna-se o frequentemente entre a narrativa propriamente dita e o fazer
literário. De acordo com Dällenbach o efeito de mise em abyme causa essa oscilação
que rompe com a linearidade da narrativa.
Com efeito, em Fazendo Ana Paz a linearidade narrativa é posta em cheque,
pois não há narrativa, já que o livro trata-se da iluminação dos bastidores da escrita. Não
é uma narrativa que se desdobra em outra, mas uma não-narrativa que se desdobra em
uma narrativa despedaçada. Não há linearidade possível em uma trama sujeita aos
entraves da (não) inspiração criativa da narradora autora da história que acompanhamos
a criação work in progress.
1.3) Máscaras
Na capa de um livro constam o seu título, o nome da editora, o número de sua
edição e o nome do autor. Sua apresentação varia de livro para livro. O nome do autor
pode figurar junto ao título, destacado, em fonte maior, menor ou igual, não importa,
mas de modo geral o nome emerge puro e simplesmente. Em Retratos de Carolina, há
50
uma diferença, a indicação de que os “Retratos” foram “feitos por” Lygia Bojunga,
assumindo-se não somente a autoria do livro, como também dos ditos retratos. Mas
afinal, não são ambos o mesmo, já que os “retratos” constituem o corpo narrativo do
texto? Sim, mas ao acrescentar as duas palavrinhas “feitos por”, a autora duplica o seu
papel, ela é autora e retratadora.
Essa aproximação em uma primeira instância nos leva a compartilhar do olhar
do senso comum, já que
existe uma espécie de consenso de princípio que pretende que o
verdadeiro documento fotográfico ‘presta contas do mundo com
fidelidade’. Foi-lhe atribuída uma credibilidade, um peso de
real bem singular. E essa virtude irredutível de testemunho
baseia-se principalmente na consciência que se tem do processo
mecânico de produção da imagem fotográfica”. (DUBOIS,
1993, p.25, grifo do autor).
É claro que a assertiva anterior refere-se ao objeto fotografia, mas é possível
fazer essa aproximação na narrativa analisada. Se os episódios narrados são retratos, e
como tal, “não podem mentir”, está em jogo a questão da verossimilhança.
Em O Ato Fotográfico, Philippe Dubois realiza uma retrospectiva histórica das
diversas posições defendidas ao longo do tempo a respeito do retrato fotográfico.
Segundo ele, esse percurso articula-se em três tempos: a fotografia como espelho do
real, a fotografia como transformação do real e a fotografia como traço de um real.
O primeiro discurso vai de encontro ao olhar do senso comum, em que a
fotografia “é considerada como a imitação mais perfeita da realidade”. Pensando a partir
dessa premissa, poderíamos ser levados a supor que os retratos de Carolina selam um
pacto de verossimilhança. Mas não é tão simples assim. Como vimos, Dubois pontua
três modalidades de discurso a respeito da fotografia. Não cabe aqui realizarmos um
levantamento minucioso de cada uma delas, pontuemos apenas que a concepção inicial
da foto como “espelho do mundo” foi suplantada e libertou-se da obsessão do
ilusionismo mimético:
A terceira maneira de abordar a questão do realismo em foto
marca um certo retorno ao referente, mas livre da obsessão do
ilusionismo mimético. Essa referencialização da fotografia
inscreve o meio no campo de uma pragmática irredutível: a
imagem foto torna-se inseparável de sua experiência referencial,
do ato que a funda. Sua realidade primordial nada diz além de
uma afirmação de existência. A foto é em primeiro lugar índice.
51
Só depois ela pode tornar-se parecida (ícone) e adquirir sentido
(símbolo). (DUBOIS, 1993, p.53, grifos do autor).
De acordo com Annateresa Fabris, o retrato supõe, enquanto história,
a tradução fiel, severa e minuciosa do contorno e do relevo do
modelo. Isso não exclui a possibilidade da idealização, ou seja,
a escolha da atitude mais característica do indivíduo e a
enfatização dos detalhes mais importantes em detrimento dos
aspectos insignificantes do conjunto. (FABRIS, 2004, p.21).
Portanto, se por um lado os retratos produzem um efeito de real e como tal,
haveríamos de supor que os retratos de Carolina são “a tradução fiel, severa e
minuciosa” dos episódios narrados da vida da personagem, eles são filtrados pela lente
da autora, e são enfatizados determinados detalhes em detrimento de outros. Sendo
assim, não se trata de um retrato fiel, mas idealizado, já que somente o que é
considerado significativo é retratado e não todos os aspectos da vida de Carolina.
Os retratos de Carolina obedecem a uma ordem cronológica, eles avançam no
tempo à medida em que a personagem cresce. Entre o primeiro e o segundo retrato há
um intervalo de nove anos, e entre o segundo e o terceiro, de cinco anos. Quem definiu
que justamente os seis e os quinze anos deveriam ser retratados? Por que não os outros?
E dentre os seis e os quinze anos, por que exatamente os episódios descritos, quando
haveria um ano de episódios que poderiam figurar no retrato?
Essa escolha reside na filtragem a que nos referimos anteriormente,
trabalhando a serviço da idealização. A entidade que manipula a câmara escura da
escrita decide o que deve ser narrado e essa decisão está a serviço da imagem que se
deseja que façamos da personagem. São realçados determinados aspectos em detrimento
de outros com o objetivo de delinear as características imprimidas à personagem.
Ao atribuir aos capítulos de seu livro o caráter de “retratos”, Lygia Bojunga, à
primeira vista, lhes imprime uma condição estática, já que um retrato é um objeto que
captura seres humanos e/ou ambientes em um determinado momento, eternizando-o. E
ainda, “tal como o espelho, o retrato fotográfico devolve ao indivíduo uma imagem
morta, criada por uma suspensão temporal” (FABRIS, 2004, p.155). Entretanto, os
retratos feitos por Lygia, ao contrário, são dinâmicos.
O primeiro retrato centraliza-se na relação de amizade entre Carolina e
Priscilla. O pai de Priscilla é cirurgião plástico, deste modo, assemelha-se ao fotógrafo
52
na medida em que ambos moldam as aparências, sendo que o segundo molda um objeto
e o primeiro seres humanos.
Feito coisa que isso era pouco, o pai da Priscilla era cirurgião
plástico, e a Priscilla estava sempre contando pra Carolina tudo
que é operação que o pai fazia. Nossa! era coisa da gente nem
acreditar: botava nariz novo, tirava ruga velha, sumia com
barriga grande, tapava cicatriz de ferida, mudava feitio de
orelha; se mulher tinha peito grande e não gostava, ele cortava;
se outra queria grande, ele botava, nem mágico fazia o que o pai
da Priscilla fazia. (RC, p.14).
O retrato no momento de sua apreensão é irretocável, mas depois de revelado
está sujeito ao retoque das mãos, assim como os seres humanos. São irretocáveis no
momento de sua concepção, mas hoje podem modificar-se ao seu bel prazer, até
alcançar ou pelo menos se aproximar da imagem idealizada. A respeito do retoque,
Fabris assinala:
Em virtude de sua especificidade técnica, a chapa registrava
com exatidão as feições do modelo, cabendo ao retoque a tarefa
de dissimular o que a imagem ostentava com tanta clareza a
ponto de desagradar a clientela. (FABRIS, 2004, p.27).
No caso do fotógrafo, não só o retoque está a serviço da manipulação da
imagem, como também a pose, que permite construção de máscaras. Ainda de acordo
com Fabris:
Ao criar uma imagem ficcional, isto é, ao referir-se à pessoa, a
pose permite analisar o retrato fotográfico pelo prisma do
artifício, não apenas em termos técnicos, mas também pelo fato
de possibilitar a construção de inúmeras máscaras que
escamoteiam de vez a existência do sujeito original. (FABRIS,
2004, p.57)
A questão da aparência está em pauta, em sua ambiguidade. A aparência
enquanto imagem que se mostra externamente e aparência enquanto ilusão. As pessoas
que modificam o corpo tentam alcançar uma imagem idealizada por elas, uma imagem
que desejam que os outros enxerguem tal como eles idealizam. Enquanto que na
fotografia as alterações ocorrem apenas naquela imagem-objeto, na cirurgia plástica as
mudanças ocorrem no corpo, irreversivelmente. Constroem-se máscaras, manipulam-se
as aparências.
53
Em Seis Vezes Lucas Lygia Bojunga já havia trabalhado com o tema da
máscara. Lá, o menino que dá nome ao título do livro molda uma máscara com massa
de modelar e coloca no rosto.
O dedo cava um olho e depois levanta um nariz, e olha que
coisa engraçada! a massa agora é uma cara, e ainda por cima é
uma cara que o Lucas gosta de olhar (...) Foi empurrando de
levinho o canto da boca, querendo ver se a cara ria. Mas assim,
de canto de boca empurrado, a cara pegou um jeito que o Lucas,
mesmo sem saber por que, achou logo que era jeito-de-quem-
conquista; um jeito que ele também quis ter. (NUNES, 1998,
p.21)
Essa máscara é chamada de “cara”, o que é sintomático. Quando Lucas a veste,
não veste apenas uma máscara, mas uma “cara”, ou seja, um outro “eu”. Um “eu” mais
forte, mais corajoso. No momento em que modela a máscara, a criança está em casa
sozinha, está chovendo, já é noite, e ela sente medo. A solução encontrada é
transformar-se em um outro, capaz de vencer os medos e os conflitos com os quais não
consegue lidar: “Puxou o cabelo pra frente, tapando o pedaço onde a massa acabava; e
agora, um era tão o outro, que o Lucas marchou decidido pra sala”. Como observamos
acima, a máscara escamoteia o sujeito original ao criar uma imagem ficcional. É o que
faz o nosso Lucas, quando cria um personagem de si mesmo.
A capa de Querida, último livro lançado pela autora, em 2009, ilustra uma
máscara branca sobre um fundo preto. Apenas a máscara, sem um rosto por trás.
Através das fendas por onde veríamos os olhos apenas o vazio, órbitas vazias, máscara
sem rosto. A princípio não identificamos a relação da ilustração com o título, Querida.
Essa estranheza causada pela aparente falta de conexão é resolvida somente no meio do
livro.
Acompanhamos a fuga de Pollux, que fugiu de casa por ciúmes da mãe em seu
novo casamento para a casa de um tio, chamado Pacífico, que ele nunca havia
conhecido. Pacífico mora na cidade Pedro do Rio com uma mulher misteriosa. Essa
mulher havia sido uma atriz famosa anos antes até que sofreu um acidente que a deixou
desfigurada. Desde então ela utiliza máscaras cenográficas fabricadas por ela mesma.
Essas máscaras são tão perfeitas que parecem ser o próprio rosto.
Para chegar até a casa do tio, o menino convenceu uma senhora e seu bisneto a
irem com ele no ônibus para Pedro do Rio, pois ele temia não poder embarcar sozinho.
A dupla foi enganada por Pollux, já que eles desejavam retornar para o Piauí e ele
54
convenceu-os de que indo até a serra com ele estariam um pouquinho mais próximos do
seu destino:
Mas a senhora tá vindo de São Paulo, quer dizer, a senhora tá
vindo do sul. Já chegou aqui no Rio, quer dizer, já chegou mais
pro norte, mais pra perto do Piauí. A senhora chegando em
Pedro do Rio... porque é lá que eu vou ficar, viu?... a senhora
chegando lá já andou mais um pedaço na direção do Piauí, quer
dizer: tá esquentando... Certo?... (BOJUNGA, 2009, p. 47)
Comprou para eles uma média, pão com manteiga e as passagens. Chegando
lá, abandonou-os na rodoviária e seguiu para a casa de Pacífico sem se incomodar muito
com a senhora e o neto. Na casa de Pacífico, mais mentiras. O menino relata que meses
após a morte de seu pai, sua mãe casa-se com outro homem e que este já tentou matá-lo
três vezes. Ele implora ao tio para adotá-lo, pois segundo ele não tem mais ninguém. No
dia seguinte Pacífico o convence a ir até a cidade para telefonar e tranquilizar sua mãe e
durante esse telefonema ela esclarece que na verdade o seu atual marido se desdobra
tentando conquistar Pollux mas ele está consumido pelo ciúme e não aceita essa
aproximação. Segundo sua mãe a fuga é uma espécie de castigo por ela ter recusado a
dormir com o filho em seu quarto.
Nessa noite, já de volta à casa, Pollux presencia no jardim da casa uma
apresentação encenada pela atriz, cujo nome é Ella. A mulher inicia a apresentação
vestindo a máscara de uma mulher muito jovem e anuncia seu convidados, a senhora e o
menino que haviam sido enganados por Pollux. O bisneto, chamado de Bis, narra como
eles chegaram em Pedra do Rio. Logo depois, Ella inicia a sua representação, que
simboliza o sofrimento de Pollux com a perda, suas mentiras e o ciúme que ele sente de
sua mãe. Após uma breve introdução, em que simula uma conversa com uma estrela,
simbolizando o pai de Pollux, Ella se transfigura completamente em figura grotesca e dá
a ela o nome de CIÚME.
Logo depois a Ella reapareceu e o susto cresceu ainda mais: ela
tinha se transformado por completo. O vestido primaveril que
cobria a figura anterior tinha desaparecido debaixo de um
manto escuro, roto, sujo, que arrastava no chão. Dos quinze
anos que ela aparentava quando surgiu na clareira, agora a cara
era de uma velha-velhíssima, coberta de rugas e deformada por
cicatrizes, manchas e feridas que o capuz do manto, puxado pra
testa, não chegava a disfarçar. A figura entrou em cena curvada
55
sobre uma bengala, arrastando um andar defeituoso pra junto do
Pollux. (BOJUNGA, 2009, p.123)
As máscaras aqui nos remetem às faces de Pollux, o menino inocente antes de
perder o pai a quem tanto amava e a sua transformação em um menino ressentido e
tomado pelo ciúme, capaz de inventar mentiras e fazer o que for possível para alcançar
seu objetivo. Enquanto Lucas vestia uma máscara para revestir-se de coragem e
transfigurar-se em alguém que ele gostaria de ser, as máscaras de Ella desmascaram as
mentiras de Pollux. As máscaras cobrem o rosto da mulher para descobrir a verdadeira
história da fuga do menino.
Por outro lado, temos a máscara como uma ferramenta para esconder a
verdadeira face da atriz, deformada. Ela se utiliza desse recurso não só para auxiliá-la na
composição de personagens como para ocultar o seu rosto tomado por cicatrizes. A
máscara cumpre uma dupla função, ela desvela as mentiras de Pollux e vela o rosto que
está por trás dela.
Temos, portanto, a máscara de Lucas transformando-o em um outro alguém e
temos as máscaras de Ella, escondendo e revelando verdadeiras faces. Refletindo mais
um pouco, apesar da palavra de ordem da máscara de Lucas ser a transformação, ela
também esconde a face que ele deseja transformar, a de um menino tímido e com medo
em determinadas situações. Com isso em mente, retomemos Retratos de Carolina: dado
que o retrato possibilita a construção de máscaras que escamoteiam o sujeito, de acordo
com Annateresa Fabris, é possível traçar um paralelo do livro com essa temática. Os
capítulos/retratos de Carolina, apesar de dinâmicos, não estáveis, constituem uma
máscara, pois escamoteiam a verdadeira face da obra: a tensão real/ficcional que se
desenrola a partir da seção “Pra você que me lê”.
Em Identidade Virtuais, Anna Teresa Fabris discorre acerca de uma série de
cinco fotografias empreendidas por uma artista, Cindy Sherman. Essas fotografias são
autorretratos, Sherman fotografa a si mesma utilizando adereços e maquiagem
diferentes em cada fotografia. A respeito dessa obra, Fabris aponta: “A auto-
representação, que está na base de Stills cinematográficos sem título, é um puro jogo de
superfícies, de aparências. Delas emerge uma visão da mulher não como individuo, mas
como estereótipo cultural, como máscara social”. (FABRIS, 2004, p.59).
Os retratos/capítulos de Carolina funcionam na superfície, fornecendo-nos
pistas sobre o que está por vir, quando a narrativa se desdobrará e o que aparentemente
56
se apresentava como a história de uma moça chamada Carolina se revelará como um
debate sobre representação e identidade.
Ainda sobre Cindy Sherman, Annateresa Fabris assinala:
Seus falsos auto-retratos remeteriam a um mundo feito de
imagens, de sedimentos de uma experiência que já foi direta e
que evocaria, ao lado da despersonalização, uma concepção de
identidade como encenação. Na impossibilidade de estabelecer
qualquer distinção entre sujeito e objeto – posto que a realidade
é o efeito de uma construção cultural e ideológica -, Sherman
afirma o domínio da linguagem. (FABRIS, 2004, p.60)
Ao nos deparamos com um embate entre narradora e autora e ainda com a
narração da própria narradora, aquela seria a retratadora e também com a narração da
personagem, que seria o objeto retratado, esses limites tornam-se difusos, tornando
impossível estabelecer a distinção entre sujeito e objeto, já que o objeto oscila
constantemente da posição de objeto e sujeito de si mesmo, se autorretratando inclusive,
ainda que em sonho. É um falso autorretrato, na medida em que além de ser a narração
de um sonho experenciado por Carolina, a própria Carolina, personagem, objeto, não
poderia se retratar, já que não deveria se configurar como sujeito.
Ainda sobre Cindy Sherman, Fabris continua:
Deste modo, a artista dá a ver o que é de fato fundamental no
retrato: o sujeito como representação. Enquanto representação,
o sujeito é um simulacro, um artificio em cujo corpo se inscreve
a ordem cultural como montagem, ou melhor, como epiderme
segunda, feita de imagens das mais diferentes proveniências.
(FABRIS, 2004, p.66)
Carolina, epiderme segunda, toma para si mesma a sua representação e se
representa. Se o sujeito é simulacro enquanto representação, o que dizer de Carolina,
sujeito e objeto? Objeto que assume o papel de sujeito e reivindica para si a sua própria
representação? Se Sherman, em sua série de fotos assume ao mesmo tempo o papel de
sujeito e objeto na medida em que fotografa a si mesma, Carolina, que antes era o objeto
de representação de outro sujeito, toma para si esse papel, descola-se de sua
representação para desempenhar o papel daquele vai representar. É um beco sem saída,
já que esse jogo de representação ocorre em vias ficcionais e o que temos é a
representação de um jogo de aparências. É o velar e desvelar-se das máscaras. Ao narrar
sua própria história, Carolina põe a máscara de sujeito assumindo um outro papel, assim
57
como Lucas e a cara. Concomitantemente, ao vestir essa máscara, ela desvela os
mecanismos de funcionamento da escrita.
1.4) Perturbações
No primeiro retrato, “Carolina aos seis anos”, o mote principal é a amizade
entre Carolina e Priscilla. Embora Carolina considere Priscilla sua melhor amiga, a
recíproca não é verdadeira: ”Carolina se encantou: era a primeira vez que ela via uma
Priscilla. Achou o nome lindo (...) E agora elas são amigas. Pra Priscilla: mais uma
amiga. Pra Carolina: a amiga sonhada, admirada, unha e carne, amiga amada”. (RC,
p.14). Carolina não nota essa diferença de afeto e continua a nutrir carinho pela amiga,
esforçando-se para criar um vínculo que as una. É uma amizade com pesos desiguais,
com Carolina de um lado iludindo-se em relação a uma amizade que julgava ser
verdadeira: “A aparência, desse modo, deixa de estar conotada à ideia de algo que se
mostra de imediato para assumir o significado de ilusão, de disfarce, de simulação”
(FABRIS, 2004, p.73). A imagem eternizada em um retrato, é o que está aparente, é o
que nossa vista alcança, assim como a amizade de Priscilla e Carolina. Esta última só
enxerga o que está na superfície, a aparência de uma amizade que julga ser sólida. Mas
a aparência aqui, como no retrato fotográfico, assume o significado de ilusão, o que está
na superfície esconde o que está oculto.
Identificamos na figura de Priscilla o primeiro elemento duplo do texto: o de
amiga leal e falsa. No início do retrato temos acesso à aparência e no fim deste o
disfarce se desfaz e emerge sua outra face.
O segundo capítulo retrata a viagem empreendida por Carolina e seus pais pela
Europa, quando esta tinha 15 anos. Dentre os países escolhidos, a personagem ansiava
mais pela visita a Paris e Londres: “Queria conhecer tudo. Mas, mais que tudo, queria
Paris e Londres. Não tinha dúvida de que Paris ia ser uma paixão; e se perguntada,
tendo que escolher uma só, qual das duas você escolhe? ela nem hesitava: Paris” (RC,
p.49). Assim como toda a trama, a escolha de Carolina oscila dentre duas alternativas.
Há sempre duas escolhas, há sempre duas visões, duas perspectivas, dois pontos de
vista.
O duplo é um tema frequente nas narrativas, como nos diz Remo Ceserani em
sua análise do fantástico:
58
O tema, nos textos fantásticos, se torna mais complexo e se
enriquece, por meio de uma profunda aplicação dos motivos do
retrato, do espelho, das muitas refrações da imagem humana, da
duplicação obscura que cada indivíduo joga atrás de si, na sua
sombra. (CESERANI, 2006, p.83)
Apesar da análise de Ceserani aplicar-se ao fantástico, podemos nos servir
dela. De acordo com ele, o retrato é um dos motivos que torna o tema, nos textos
fantásticos, mais complexo e o enriquece. O mesmo ocorre no presente texto. O retrato
fotográfico favorece a construção do duplo, já que presentifica uma imagem capturada
em um dado momento. O retrato evoca a imagem capturada por si só e a imagem que o
fotógrafo capturou.
A fotografia, portanto, duplica, ou melhor, multiplica, os modos de ver. O
modo de ver a si mesmo do retratado, o modo como o retratado acredita ser visto, o
modo de ver do fotógrafo e o modo de ver dos posteriores observadores do retrato, que
passam pelo filtro individual de cada um. “Todavia, embora todas as imagens
corporizem um modo de ver, a nossa percepção e a nossa apreciação de uma imagem
dependem também do nosso próprio modo de ver”. (BERGER, 1972, p.14).
Como sinalizou Remo Ceserani, são muitas as refrações da imagem humana,
portanto um texto que se auto intitula retratos é um texto propício para o
desenvolvimento do tema do duplo. Mais ainda, é um texto que se assume enquanto
duplo. Deste modo, Carolina estar dividida entre duas escolhas reflete o caráter duplo da
narrativa; e sua preferência repousar por sobre a cidade de Paris, mas após a visita recair
sobre Londres, reforça mais ainda a sua duplicidade.
Carolina aguardava a viagem com a mesma ansiedade que o
Pai. queria conhecer tudo. Mas, mais que tudo, queria Paris e
Londres. Não tinha dúvida de que Paris ia ser uma paixão; e se
perguntada, tendo que escolher uma só, qual das duas você
escolhe? ela nem hesitava: Paris.Londres marcou a etapa
final de uma viagem que durou mais de três meses (...); e
Londres foi a grande paixão que Carolina sentiu. (RC,
p.49)
Como percebemos claramente, a preferência de Carolina oscila entre duas
cidades. Priscilla apresenta duas faces. O estopim do conflito entre Carolina e a amiga
gira em torno de dois prêmios. São sempre dois os caminhos a percorrer, assim como:
59
Há duas maneiras de percorrer um bosque. A primeira é
experimentar um ou vários caminhos (a fim de sair do bosque o
mais depressa possível, digamos, ou de chegar à casa da avó, do
Pequeno Polegar ou de Joãozinho e Maria) a segunda é andar
para ver como é o bosque e descobrir por que algumas são
acessíveis e outras não. Há igualmente duas maneiras de
percorrer o texto narrativo. (ECO, 1994, p.33)
A constante presença do duplo remete ao que nos ensina Umberto Eco, há duas
maneiras de percorrer o texto narrativo. A insistência na duplicidade em Retratos de
Carolina nos leva a concordar com o teórico e deduzir que são dois os caminhos a
percorrer no texto analisado. Há na superfície do texto a narração da vida de Carolina,
da infância até sua vida adulta, suas conquistas, suas paixões, suas frustrações, suas
escolhas. Sub-repticiamente desenvolve-se a “produção mútua de sentidos”, que se dá
através da “leitura desconstrutora de sentidos instituídos” (MIRANDA, 1992, p.142).
Só sabemos disso quando chegamos à segunda parte do texto, mas a presença constante
do duplo e diversos elementos ambíguos e difusos sinalizam para tanto.
No terceiro retrato há a apresentação do personagem Homem Certo, elemento
carregado de duplicidade. Carolina está com vinte anos e estuda arquitetura. Sua amiga
de faculdade, Bianca, está sempre em busca daquele que será o grande amor de sua
vida, o homem certo.
- Quanto mais gente eu conheço, mais chance eu tenho de
encontrar o homem certo.
Carolina caiu na gargalhada.
- tá rindo de quê?
- Desse teu homem certo.
Por quê?
- O que você acha que um homem precisa pra ser certo?
- Certo pra mim.
- Sim, não há de ser pra mim. Mas me explica: o que que um
homem tem que ter pra ser certo-pra-você? Além de ser
arquiteto.
- Bom, tambem não tem que ser arquiteto. Se for, melhor. Se
não for, paciência.
- Mas o que mais que ele precisa pra ser certo-pra-você?
- Ah, Carolina, você já me perguntou isso antes.
- Eu sei: não é a primeira vez que você fala nesse tal de homem
certo. Então, não é de hoje que eu tô querendo saber o que que
você acha que um homem tem que ter pra ser certo.
- Já te disse antes: na hora que eu encontrar o homem certo, eu
te explico di-rei-ti-nho o que que um homem tem que ter pra
certo. (RC, p.67)
60
O conceito de “certo” neste diálogo é bem subjetivo e não está sendo
empregado em oposição ao seu antônimo, “errado”, mas no sentido de apropriado.
Quem seria o homem certo para Bianca? O homem perfeito? Não, o homem “certo” é
aquele que vai atingir seu coração, que lhe será atraente de alguma forma, que
provocará nela sensações e sentimentos que a farão sentir-se feliz e que lhe despertarão
a vontade de viver ao seu lado.
Nesse trecho, o homem certo está associado à personagem Bianca. Ela está em
busca do homem ideal, e todo o diálogo gira em torno do que seria ideal para ela,
Carolina argumenta inclusive que o homem almejado por Bianca não haveria de ser
para ela, Carolina.
Imediatamente após esse diálogo narra-se um telefonema de Bianca para
Carolina, em que ela anuncia ter finalmente encontrado o homem certo:
- Encontrei o homem certo! E desligou. (Então ia perder essa
chance e deixar a Carolina na maior curiosidade? Só dias depois
forneceu mais detalhes: o Homem Certo tinha o dobro da idade
dela. E ela não tinha a menor dúvida: isso era coisa que só um
homem certo podia ter. Era casado. Quer dizer, descasado: a
mulher tinha ido embora com outro, e você não imagina como
ele ficou carente, coitado; e você sabe, não é, Carolina, um
homem pra ser certo tem que ser carente. Mais uns dias, mais
uns detalhes: ele á alto, magro, usa o cabelo assim meio
comprido, e aqui, sabe, eu já vi uns fiozinhos brancos, nossa!
mas que homem certo. Mais adiante, veio uma dúvida, eu não
sei se ele cheira pó, viu, Carolina, às vezes eu acho que sim, às
vezes, eu acho que não, e essa coisa de eu-acho-e-desacho tem a
ver com o jeito que, às vezes ele olha pra mim.
-Que jeito?
-É um jeito assim... como é que eu vou te explicar... um jeito...
ah, não sei. Mas é lindo.
-O jeito?
-O jeito, ele, tudo, lindo, lindo, certo, certíssimo! – E, no outro
dia, já escancarava a confissão: -Carolina, eu tô numa paixão
que eu não te conto. Sabe que ele mora numa casona? Pelo jeito
deve ganhar uma grana firme: homem certo pra caramba, minha
amiga. (RC, 2003, p.68)
Como é possível observar, com exceção do último, os aspectos enumerados por
Bianca para justificar a condição de “certo” do tal homem são todos subjetivos: o dobro
da idade, separado, alto, magro, cabelo comprido. Como esses aspectos, por si só,
caracterizam um homem como certo ou errado? Ser alto ou baixo, ter o cabelo comprido
ou grande, com fios brancos ou negros, não qualifica um ser humano para ser certo ou
errado, é uma questão de perspectiva. Pelo discurso da personagem, tanto esse quanto o
61
anterior, em que ela dizia que saberia ser aquele o homem certo a partir do momento em
que o conhecesse, percebe-se que aquelas não são qualidades que ela particularmente
admira num homem e que nesse conseguiu combiná-las todas juntas. Esses são aspectos
que o qualificam como “certo”, porque Bianca se apaixonou por ele, e só. Com isso,
todos os seus atributos tornam-se “certos” para ela.
Um aspecto que corrobora com o que acabamos de afirmar diz respeito à sua
suspeita sobre o uso de drogas por parte do seu amado. De acordo com a sociedade na
qual está inserida, (deduz-se que seja de classe média ou alta, pois cursa a Universidade,
frequenta festas sofisticadas) o uso de drogas é uma atitude condenável, portanto não
poderia ser encaixada como “certa”.
Os conceitos de “certo” e “errado” também são subjetivos, estão relacionados a
diversos fatores, sociais, culturais, familiares, individuais... O interessante aqui é a
suspensão desses fatores, apesar de ter utilizado como parâmetro para a condenação do
uso de drogas o fator social, esta foi uma observação extratexto, não intratexto, ela não
está apontada no texto. No texto o que temos é a confissão da paixão de Bianca para sua
amiga Carolina.
O jeito de olhar do Homem Certo também é considerado um fator que o
qualifica como “certo”. Ora, extremamente subjetivo. O jeito de olhar do homem é certo
para Bianca porque a atrai, porque lhe desperta desejo e paixão. Não porque esse seja
um jeito especial de olhar que todo homem deve ter para ser perfeito.
Esse jeito de olhar, somado à desconfiança de que faça uso de drogas,
conferem ao homem um caráter misterioso, que a seduzem. A dúvida que a cerca
contribui para atraí-la ainda mais, pois esse caráter ambíguo desperta seu interesse. A
atmosfera ambígua e misteriosa que cercava Priscilla e a cidade de Londres aqui
afloram em torno desse homem que nem nome tem, é chamado apenas de Homem
Certo. Ao ser nomeado desta forma cria nos leitores a expectativa de que seja realmente
certo. Em relação a que nos baseamos nisso? No nosso modo de ver o que seja certo e o
que seja errado. Assim como a nossa percepção reflete o nosso modo de ver uma
imagem fotográfica, independente de qual fosse o modo de ver do fotógrafo,
imprimimos ao Homem Certo os nossos próprios conceitos de certo e errado.
Um jantar é combinado na casa do Homem Certo com o objetivo de apresentá-
lo a Carolina. Chegando lá, a jovem, possuidora de um declarado interesse por móveis e
decoração, vai até o banheiro estimulada por Bianca a conhecer o seu interior art déco.
No caminho ela passa por um cômodo cuja porta está entreaberta e permite entrever um
62
guarda-roupa antigo. Com o interesse aguçado, Carolina não resiste e entra para admirar
a peça. Acaba por abrir uma das portas e depara-se com o vestido de Londres:
Foi mais que espanto: foi susto. Um susto tão grande, que a
mão esqueceu que disfarçava e escancarou a porta do guarda-
roupa.
Não tinha mais que meia dúzia de vestidos pendurados. E ele
era o segundo. Da esquerda pra direita.
A mão não pensou duas vezes: arrancou o cabide do guarda-
roupa e levantou ele alto, pro olho vir deslizando vestido
abaixo.
Mas era possível? Era mesmo possível? Ah, era sim, era ele
mesmo, mesminho, ele todo! (RC, p.73)
As lembranças da cidade presentificam-se ao reencontrar o vestido tão
desejado, e ela, sem pensar, o veste. Nesse momento o Homem Certo entra no quarto e
flagra-a extasiada experimentando a roupa. Logo depois chega Bianca, e o
constrangimento de Carolina aumenta, ao descobrir que o homem olhando para ela é o
dono da casa. Mas este, ao contrário do que se poderia esperar, não está aborrecido com
a invasão, encara-a hipnotizado.
Durante o jantar, Carolina tenta se desculpar, mas os dois engrenam em uma
conversa animada sobre o vestido, interrompida por Bianca, visivelmente enciumada.
No dia seguinte ela rompe a amizade com a amiga, mas não consegue romper a atração
estabelecida entre ela o seu namorado. E o Homem Certo de Bianca passa a ser certo
para Carolina.
Isso revitaliza o significado de “certo”. Em citação anterior há um discurso de
Bianca sobre determinadas características do homem que ela considera serem
características que o tornam certo. Mas certo para ela. A partir do momento em que esse
mesmo homem passa a ser o homem certo para Carolina, deixa de ser para Bianca, e os
aspectos que para ela o tornavam “certo”, provavelmente não o tornavam mais e ele
possivelmente passou de “certo” a “errado”.
Errado para Bianca, certo para Carolina. Ou não. Em conversa com o pai, a
moça expõe seus sentimentos sobre o namorado:
-Eu nunca me senti tão mexida, tão... atingida pelo olhar de
alguém com eu me sinto pelo olhar dele.
-?
-Do Homem Certo.
-Quem?
Carolina ri um riso curto.
63
-Homem Certo. É assim que a gente começou a chamar ele, a
Bianca e eu. – Outro riso curto. – Vai ver ele até o Homem
Errado, não sei. O que eu sei é que eu nunca fiquei assim tão...
perturbada, feito você disse. (RC, p.86)
O conceito subjetivo de “certo”, aplicado às idiossincrasias de Bianca ou de
Carolina, adquire outra conotação ao funcionar em oposição ao conceito de errado. O
que atrai Carolina é sua aura de mistério, algo que a persegue desde a amizade com
Priscilla, aos seis anos. Carolina sempre se sente atraída pelo desconhecido, pelo que a
intriga. Os seus aspectos físicos ou da sua personalidade, que atraíram Bianca, não são
determinantes para atrair o interesse de Carolina, mas a sua capacidade de provocar a
sua inquietude. Tanto que ela levanta a hipótese de ser “errado” e não “certo”,
assumindo que possa haver algo nele que não seja tão agradável, mas é justamente essa
ambiguidade que lhe desperta paixão:
Mas é isso mesmo que está me acontecendo, eu estou cega pro
resto: só vejo ele; eu estou confusa demais: nunca pensei que
meu primeiro amor por um homem fosse pegar esse feitio; eu
me sinto arrastada pelo olhar dele, pelo jeito dele, pelo cerco
dele. Ele está me cercando pai! Mas é um cerco tão lindo, todo
feito de chocolate e de flor, e de voz no telefone que eu adoro
ouvir, e de cartão e de carta, que eu leio não sei quantas vezes, e
tudo me chama tanto pra ele! e mesmo não sabendo direito pra
onde é que eu tô indo, eu quero ir, e mesmo intuindo que eu to
indo pra onde eu não devo, eu me sinto arrastada por ele,
confundida por ele, cegada por ele, ah, pai: paixão. (RC, p.89)
Em “Pequeno Retrato do Homem Certo” a narradora nos apresenta um breve
resumo de sua vida, expondo determinados aspectos da sua personalidade: não trabalha,
faz uso de drogas (como desconfiava Carolina), fuma, consome bebida alcoólica em
excesso. A fala da ex-esposa que surge intercalada entre parênteses é carregada de
críticas, sugerindo o nosso posicionamento a seu favor, contra as atitudes de seu então
marido. Esse pequeno retrato consolida o caráter duplo do personagem ao nos fornecer
subsídios para concluirmos que determinadas características da sua personalidade
encaixam-se em nosso conceito de “errado”, em oposição ao “certo” que o denomina.
Nesse mesmo capítulo há uma última manifestação dupla a ser considerada. A
conversa entre Carolina e o Pai ocorre em seu escritório particular, um cômodo dentro
da casa em que ele guarda os seus livros para fazer suas leituras e anotações:
64
Mas as notas que o Pai tomava não se limitavam aos livros que
lia. Não, não: ele tomava nota das despesas da casa, dos filmes
que assistia, das músicas que ouvia, e na viagem que fez à
Europa, anotou tintim por tintim de tudo.
Cada assunto tinha um caderno. Todos de formato igual
(pequeno). Na capa o Pai desenhava o assunto do caderno:
livro, mapa, projetor de filme, Carolina, etc. Sempre gostou de
desenhar. Desenhava pequeno, miniaturas. E nunca mostrou
desenho algum pra ninguém. Nem mesmo pra Carolina. Nos
cadernos-Carolina, ele sempre desenhava a filha a partir de uma
foto qualquer e repetia o que fazia com a leitura: anotava no
caderno tudo que chamava mais a atenção dele no
comportamento e nas palavras da filha. A cada aniversário de
Carolina ele tirava novas fotos dela. Escolhia as que gostava
mais pra colar no caderno, anotando embaixo: Carolina aos seis
anos, Carolina aos quinze anos, Carolina aos... (RC, p.83)
Os cadernos-Carolina são uma duplicação do próprio texto. O livro que lemos,
cujo título é Retratos de Carolina, narra a história de sua vida, destacando os episódios
marcantes. Além disso, as fotografias são utilizadas para ilustrar os eventos narrados, e
é empregado o mesmo procedimento para nomear os capítulos: “Carolina aos seis anos,
Carolina aos quinze anos” e assim por diante. Retratos dentro dos retratos, jogo de
espelhos, “manifestação dupla – simples e complicada, evidente e profunda”(FABRIS,
2004, p.21). O retrato já apresenta um caráter duplo ao sintetizar o modo de ver do
fotógrafo e do posterior leitor da fotografia. A partir do momento em que um retrato
enquanto manifestação dupla apresenta-se dentro de outro, também manifestação dupla,
é o duplo do duplo, cópia da cópia, aparência da aparência.
65
2. EU TE LENDO
E assim, um dia desses, quando você entrar numa livraria
qualquer, é possível que encontre o Feito à Mão por lá. É
possível também que você saia da livraria me abraçando (ele
sou eu, não é?). É possível até que minha companhia te dê
prazer.
E então você e eu vamos continuar mais um livro juntos e
juntas, levando adiante o jeito que escolhemos de nos
comunicar. (FM, p.43)
O trecho acima faz parte da seção “Pra você que me lê” do livro Feito à Mão.
Foi neste livro em que a dita seção foi instituída pela primeira vez, apesar de somente
em Retratos de Carolina ela se configurar como prática efetiva. É possível observar no
trecho o tom de intimidade do texto, semelhante mesmo a um “papo”, uma conversa
íntima.
Já a partir de Livro: um encontro, que mais tarde integrou o projeto Trilogia do
Livro, essa necessidade de um contato mais próximo com seus leitores já havia se
manifestado, já que Livro inicialmente era uma encenação teatral, um monólogo
encenado de forma bastante intimista, apenas um banco, a luz incidindo sobre ela e as
histórias que tinha para contar. Nesse caso, o contato se dava de forma direta, sem
mediação, a autora se expunha em carne e osso, face a face com o seu público.
Após a primeira incidência da seção “Pra você que me lê”, ela passou a figurar
em todos livros posteriores e também em seis dos livros reeditados pela editora Casa
Lygia Bojunga. Entretanto, não é somente em “Pra você que me lê” que o “contato”
com os leitores acontece, esse diálogo é explicitado nessas seções, já que nos deparamos
com uma fala, digamos, direta, como observamos no trecho acima: “quando você entrar
numa livraria”, “então você e eu vamos”. Contudo essa relação com o leitor também
ocorre no decorrer de outras narrativas, algumas vezes de forma mais fluida, outras de
forma mais incisiva, ao eleger o leitor como personagem, por exemplo, conforme
observamos em Paisagem.
É interessante observar neste trecho que a autora se refere a essa comunicação
com os leitores, como um jeito em que ambos escolheram se comunicar, como se o
leitor tivesse participado desse processo de escolha. Contudo, sabemos que os leitores
efetivamente não tiveram poder de escolha, essa escolha foi aparentemente unilateral,
efetuada somente pela voz enunciativa. Porém, refletindo sobre outros textos em que a
66
narrativa propicia a participação do leitor no processo de construção de sentido, o leitor,
sendo uma parte ativa do processo, também faz parte desse processo de escolha, já que,
nas palavras da própria autora, ambos continuam “mais um livro juntos e juntas”.
No primeiro retrato de Retratos de Carolina, “Carolina aos seis anos”,
acompanhamos a amizade da personagem e Priscilla. Na concepção da personagem
título, para uma amizade existir deveria haver segredos compartilhados, e ela sempre
compartilhava os seus com Priscilla, que não retribuía:
E outra das muitas convicções que ela tinha é que amiga-amiga
tem que partilhar tudo que é segredo da gente. Então, bastava
Carolina achar que uma coisa tinha cara de segredo pra já ir
correndo contar pra Priscilla. Mas a Priscilla não retribuía na
mesma moeda. E isso deixava Carolina pensativa.
- Não aconteceu nenhum segredo com você, Priscilla?
- Quando?
- Hoje.
- Por enquanto não.
- E ontem?
- Se aconteceu já esqueci.
- Se acontece amanhã você me conta antes de esquecer?
- Conto.
- Promete?
- Prometo.
Mas não contava. (RC, p.45)
Os segredos que Carolina conta para sua amiga são os que ela julga pequenos
pedaços do Grande Segredo, metáfora utilizada por seu pai para lhe explicar o que é
vida:
Uma vez, falando de segredos, o pai da Carolina disse pra ela
que a vida é um grande segredo, que vai se desvendando
devagar, à medida que a gente vive. Disse que quanto mais a
gente presta atenção nele, mais ele se mostra. Mas disse
também que, por mais que a gente preste atenção nele, ele
jamais se mostra todo. Carolina logo se interessou pelo Grande
Segredo. Quis saber mais. O Pai falou:
-Muita gente passa a vida espiando o Grande Segredo por uma
frestinha estreita assim.
-?
-Já outros conseguem espiar pra ele por frestas mais largas.
-?
-Tem ainda outros que não se contentam com frestas: querem
ver tudo do Grande Segredo. Mas eu já te disse que ele é mestre
nesse jogo de esconde-esconde: ganha sempre.
-?
Pra qualquer um que entra no jogo, ele vai logo abrindo frestas.
Mas estreitas. Sempre muito mais estreitas do a gente quer.
67
-?
-Não nos resta alternativa melhor senão tentar alargar cada uma.
-?
(...)
Depois dessa conversa, sempre que o Pai falava pra Carolina do
Grande Segredo, pegava um tom meio segredado. Um pouco
por brincadeira, um pouco por achar que assim, apresentada
como um grande segredo, a descoberta da vida ainda se tornava
mãos estimulante pra filha. (RC, p.16)
Esse trecho apresenta diversos elementos interessantes que sinalizam o jogo
das aparências por sobre o qual a narrativa está construída. O segredo, por si só, já
guarda uma significação bastante marcada: um segredo é algo que escondemos da
maioria das pessoas, que só compartilhamos com quem confiamos; o segredo guarda
ainda uma característica de algo que está escondido, que não está na superfície. E aqui,
ele adquire ainda uma conotação dupla: a de algo que não pode ser revelado e como
metáfora da vida.
O segredo vai se desvendando aos poucos, mas jamais se revela por completo.
Quanto mais prestamos atenção mais ele se mostra, mas jamais se mostra todo. Assim
como o texto, que vai aos poucos fornecendo pistas do “grande segredo” que ele guarda,
e quando nos esforçamos por desvendá-la, como agora, abre-se para nós um novo
significado. Mas como todo texto fictício, cada vez que o lermos novamente novas
pistas surgirão e com elas nova leituras.
Nesse jogo em que o Grande Segredo ora revela-se, ora se esconde, é
comparado pelo pai a uma brincadeira infantil, o jogo de esconde-esconde, em que,
como sabemos, algumas crianças escondem-se enquanto outra, que estava de olhos
fechados deve encontrar as outras. É possível aqui extrapolar os limites do texto e
considerar nessa figura uma metáfora da relação do autor com o leitor. O leitor é aquele
que está com os olhos fechados, e o autor é aquele que esconde o que o leitor deve
decifrar. Conforme Umberto Eco, a narrativa ficcional,
ao construir um mundo que inclui uma multiplicidade de
acontecimentos e de personagens, não pode dizer tudo sobre
esse mundo. Alude a ele e pede ao leitor que preencha uma
série de lacunas. (...) Que problema seria se um texto tivesse de
dizer tudo o que o receptor deve compreender – não terminaria
nunca. (ECO, 1994, p.9)
68
Através da fala do pai, o texto assume que não se revela imediatamente, que há
o que descobrir, que nem tudo que parece ser é. O leitor deve encontrar e seguir as
pistas, deve montar o quebra-cabeças com as peças que são pulverizadas através dos
retratos, deve preencher as lacunas do texto.
Às lacunas de Umberto Eco podemos acrescentar os vazios de Wolfang Iser,
necessários para a interação entre texto e leitor. Para o autor deve haver
um lugar dentro do sistema para aquele a quem cabe realizar
combinação. Este lugar é dado pelos vazios (Leerstellen) no
texto, que assim se oferecem para a ocupação pelo leitor. como
eles não podem ser preenchidos pelo próprio sistema, só o
podem ser por meio doutro sistema. Quando isso sucede, se
inicia a atividade de constituição, pela qual tais vazios
funcionam como um comutador central da interação entre texto
e leitor. (ISER, 1972, pg.91)
Ainda segundo Iser, o leitor deve preencher a atividade de representação
imposta pelos vazios, seguindo assim as condições assentadas pelo texto. Os vazios
possibilitam ainda “as relações entre as perspectivas de representação do texto e incitam
o leitor a coordenar estas perspectivas” (ISER, 1972, pg.91). Assim, o Grande Segredo
funciona como metáfora da vida e como metáfora dos vazios do texto a ser preenchidos
pelo leitor. Em Lector in Fabula Umberto Eco ressalta que um texto se distingue de
outros tipos de expressão por sua complexidade. Para ele, um texto é complexo
principalmente por ser entremeado do “não-dito”:
“Não-dito” significa não manifestado em superfície, a nível de
expressão: mas é justamente este não-dito que tem de ser
atualizado a nível de atualização de conteúdo. E para este
propósito um texto, de uma forma ainda mais decisiva do que
qualquer outra mensagem, requer movimentos cooperativos,
conscientes e ativos por parte do leitor. (ECO, 2008, p.36).
Essa é uma relação dinâmica, e por mais que os vazios estejam lá para ser
preenchidos, por mais que as pistas estejam lá para direcionar a leitura, a perspectiva do
leitor também interage nesse processo e é exatamente isso que promove o dinamismo do
texto. Ele não é estático, pelo contrário, se abre a diferentes possibilidades de leitura.
No segundo retrato, como já vimos, a personagem antes da viagem pela Europa
encontra-se dividida entre duas cidades, Paris e Londres, embora tenha certeza que sua
69
preferência recairá sobre a primeira. Mas, ao contrário do que esperava, a segunda
desperta a sua paixão.
Ah, sei lá, paixão é coisa difícil de explicar, eu concordo que
Paris é mais bonita, Veneza então nem se fala, Madri eu
também achei linda, mas elas todas se mostram logo, tipo: olha
eu aqui, vê só o arraso que eu sou! mas Londres, não: ela se
esconde, se a gente não gasta sola de sapato procurando, acaba
não encontrando os maiores encantos que ela tem; não olha
assim pra mim, é verdade: ela não é uma cidade que vai logo se
entregando, a gente tem que ir atrás e, mesmo assim, ela só vai
se revelando aos pouquinhos, eu acho lindo esse jeito assim
fechado que ela tem, ah! (RC, p.52)
O que explica a paixão de Carolina pela cidade de Londres é justamente o seu
caráter ambíguo, difuso. Não é uma cidade que se apresenta tal qual é à primeira vista,
para descobrir seus encantos é preciso esquadrinhá-la, e ainda assim ela não se revela
por inteiro, mas aos poucos, assim como o Grande Segredo, metáfora criada pelo pai da
personagem no capítulo anterior. Lá, o tema fascinou a então criança, e esta em tudo
procurava um pedaço do Grande Segredo. Neste retrato, assim como no anterior, um
segredo a fascina e a encanta, uma cidade que não revela imediatamente a sua beleza,
ela está acessível somente àqueles que buscam encontrá-la.
Umberto Eco ressalta: “Num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o
tempo todo”. (ECO, 1994, p.12). O autor evoca o final do romance Narrativa de Arthur
Gordon Pym, de Edgar Alan Poe, em que surge uma figura aparentemente humana, mas
de grandes proporções e com a pele muito branca.
Aqui, onde a voz do narrador se cala, o autor quer que
passemos o resto da vida imaginando o que aconteceu; e, com
medo de que ainda não tenhamos sucumbido ao desejo de saber
o que jamais nos será revelado, o autor – não a voz do narrador
– acrescenta uma nota final para nos dizer que, após o
desaparecimento do sr. Pym, “os poucos capítulos que
completariam a narrativa [...] perderam-se irremediavelmente”.
Nunca escaparemos desse bosque – como aconteceu, por
exemplo, com Júlio Verne, Charles Romyn Dake e H. P.
Lovecraft, que resolveram ficar lá, tentando dar continuidade à
história de Pym. (ECO, 1994, p.13)
Como suas trilhas não muito bem definidas, um bosque também guarda uma
aura de mistério, assim como a cidade de Londres e o texto analisado. O texto não se
revela por completo imediatamente, abre frestas, assim como o Grande Segredo e cabe a
70
nós, leitores decidir qual dessas frestas seguir. O leitor opta por um caminho, assim
como opta a personagem por uma das duas cidades que ansiava por conhecer. O texto é
um jardim de caminhos, e os leitores devem decidir qual deles percorrer.
Em Fazendo Ana Paz acompanhamos, como já vimos, o processo de criação da
personagem-título. Para PatrícaYurgel,
O desejo de expor o percurso da criação ao leitor vai de
encontro ao que Gäetan Picon afirma em O escritor e sua
sombra (1969). Segundo o autor, a obra de arte não é somente
objeto de fruição ou conhecimento; ela invoca a consciência
crítica, que a acompanha como uma sombra. Uma vez que não
se pode fugir da própria imagem, o artista é perpetuamente
seguido por essa sombra tenaz. Cabe a ele analisá-la, optando
por estender ou não tal análise ao público leitor. (YURGEL,
2007, p.39)
Ao desvelar o processo criativo, frente aos olhos do leitor, a narradora analisa
essa sombra que a persegue e estende essa análise ao leitor, convidando-o a participar
desse processo de criação. Juntos e juntas, todos, autora, leitores e leitoras unem suas
mãos na tarefa de decifrar essa sombra que se posta tenaz ao seu lado.
O leitor, ao mesmo tempo em que presencia esse processo “ao vivo”, dele
participa. Ao compartilhar esse processo com o leitor, a ele é dado uma
participação co-operativa, que da referida óptica lhe estaria
interditada, tal partilha inscreve o processo de constituição
textual no espaço da produção mútua de sentidos, levada a cabo
mediante a leitura desconstrutora de sentidos instituídos.
(MIRANDA, 1992, p.142)
A exposição da construção do texto implica não somente compartilhar essa
tarefa com o leitor, mas acarreta também na participação dele no processo mesmo de
construção. O acesso a esse processo de produção, a visualização das indagações, das
hesitações no momento da construção, possibilita a construção múltipla de sentidos. Já
que o texto não está acabado, nós assistimos à fabricação da produção de sentidos,
fabricamos e imprimimos outros sentidos que não aqueles previamente instituídos.
Essa troca é muito rica, imprime um caráter dinâmico ao texto, dinamicidade
essa antecipada na primeira parte da narrativa, aqui observada no capítulo anterior. O
texto brinca com as expectativas do leitor, fazendo-o acreditar em algo para logo depois
inverter a sua perspectiva. Como exemplo dessa artesania destacamos a quebra de
71
expectativa operada pelo “Pequeno Retrato do Homem Certo”, em que aspectos
negativos de sua personalidade são apresentados imediatamente após a declaração de
Carolina sobre o amor que sente este homem, aliada às suas expectativa de felicidade ao
lado deste; os duplos do texto, oferecendo sempre duas possibilidades de leitura; e a
própria quebra deflagrada pela seção “Pra você que me lê”, em que espera-se um
“papo” com o leitor e desenvolve-se a partir daí um complicado jogo artesanal.
De acordo com Wolfang Iser, “os autores jogam com os leitores e o texto é o
campo do jogo” (ISER, 2007, p. 107). Esse jogo em que o leitor é convidado a
participar do processo de criação ocorre normalmente entre o leitor empírico e o texto.
Em Paisagem, temos o leitor a participar desse jogo em carne e osso, na medida em que
ele é personagem do texto, Lourenço, o Leitor, como o próprio se denomina:
Sou teu Leitor. Estou escrevendo Leitor com letra maiúscula de
propósito: acho que ser Leitor é uma ocupação maior, e acho
também que se um Leitor se liga numa escrita do jeito que eu
me liguei nos teus livros é porque existe uma coisa chamada
afinidade, é ou não é? E o Lourenço foi me contando que o
livro X era o preferido dele, só que o final é muito ruim, você
não soube acabar a história; mas em compensação o final do
livro Y foi muito bem encaminhado, só é pena que que não dá
pra gente acreditar no personagem (P, p.9)
É possível observar que a fala da autora e do leitor se alternam sem nenhuma
indicação gráfica, as falas se misturam, sintetizando a participação co-operativa
delegada ao leitor referida por Wander Melo Miranda (1992). Lourenço a princípio
desempenha esse papel como um leitor extradiegético, fazendo observações,
interpretando o texto de acordo com as suas impressões, traçando a sua própria trilha
pelos bosques da narrativa. Contudo esse papel vai se modificando, e essa interferência
vai ganhando outras dimensões, na medida em que ele próprio passa a ocupar um
espaço no texto como personagem e vai interferindo diretamente nos rumos da história.
Como já vimos no capítulo anterior, a narradora/autora viaja para o Rio de
Janeiro a fim de encontrar o Lourenço e nesse momento em que ele passa a fazer de
uma história que narra a busca e o encontro de uma autora com seu leitor, ele abandona
a sua posição de observador e exerce a função de operador e articulador (MIRANDA,
1992). Sendo que, nesse caso, ele exerce essa função ativamente, dentro do texto, já que
Lourenço ocupa o papel de um personagem da história.
Já vimos também que a narradora empreende essa busca para tentar entender
como Lourenço descreve em uma de suas cartas exatamente a mesma paisagem
72
idealizada pela autora para a narrativa que está escrevendo. Ou seja, antes de
desempenhar o seu papel de personagem no livro que estamos lendo, Lourenço já havia
interferido na narrativa que estava sendo desenvolvida pela narradora e essa
interferência a modifica para sempre.
[...] eu sonhei com uma paisagem, você não aparecia no sonho,
mas o tempo todo eu tinha certeza que tudo que eu estava
sonhando tinha sido escrito por você, era uma paisagem assim:
tinha um campo de flor, flor branca amarela vermelha e azul,
mas tudo que é flor de repente parava e começava um areão que
ia indo e ia indo e acabava lá no mar; tinha muita pedra nesse
areão, às vezes era pedra sozinha, às vezes era um monte de
pedra, às vezes elas tinham cara de ruína de antigamente; olhei
pro lado e vi um pedaço duma casa feito da mesma pedra que
tinha na areia, fiquei pensando se a casa estava sendo construída
ou se ela era tão velha que já tinha perdido um pedaço; tinha sol
no campo de flor, mas em compensação no areão não tinha, e
no mar o céu era cinzento, tinha um barco no mar, e eu me
lembro que eu fiquei olhando pra ele e pensando pra onde é que
esse barco tá indo? ou será que ele tá voltando? de repente uma
coisa chamou a minha atenção lá na areia: tudo que é pedra
tinha a mesma forma quadrada, mas uma delas era diferente,
parecia um ovo enorme, e me deu uma vontade danada de ir lá
examinar ela melhor [...] (P, p.11)
Após a carta em que Lourenço descreve a paisagem que supostamente havia
sonhado, a narradora/autora fica perplexa com a coincidência e escreve uma carta para
ele perguntando sobre alguns detalhes do desenho, como a cor das pedras, do barco, a
quantidade de janelas na casa. Aguarda ansiosa e aflita a resposta, mas esta não é
satisfatória, pois após uma longa carta contando sobre o que aconteceu com ele após a
última correspondência, há apenas uma pergunta sobre o motivo da autora querer saber
a quantidade de janelas na casa, mas nenhuma resposta. Impaciente, ela escreve outra
carta relatando sobre a coincidência entre a paisagem do conto que ela está escrevendo e
a paisagem que ele sonhou. Animado ele logo responde fornecendo as informações que
ela havia solicitado, e todas elas são idênticas às da paisagem do seu conto.
No dia seguinte a essa resposta a autora recebe outra carta em que Lourenço se
refere à paisagem como “nossa”, dele e da autora, reivindicando para si a co-autoria no
processo de criação:
Dizia que agora, sempre que pensava em mim, pensava também
na nossa paisagem; então era um livro de contos que eu estava
escrevendo? E Paisagem? Era um conto curto? Comprido? Bem
73
que eu podia mandar o manuscrito pra ele, não é? Etc, etc., e era
só falar na paisagem que botava um nossa na frente. (P, p.19,
grifo da autora)
“Nossa paisagem” produz o mesmo sentido que “eu e você vamos continuar o
livro juntos e juntas” observado na primeira citação, retirada da seção “Pra você que me
lê” do livro Feito à Mão. Neste a autora faz um convite para o leitor continuar
exercendo junto com ela a função de operador da narrativa.
No mesmo dia em que recebe essa carta com a reivindicação do papel de co-
autor, a autora recebe outra carta de Lourenço se afastando desse papel: “Espero que
você consiga dar um ponto final pra tua história” (P, p. 19, grifo nosso). Mas já é tarde
demais, pois a partir do momento em que expôs o seu sonho já modificou o conto que
estava sendo desenvolvido pela pela autora, como modificou também a narrativa que
estamos lendo e que atende pelo nome de Paisagem. Como não obtém nova resposta de
Lourenço, a autora viaja de Londres para o Rio de Janeiro na expectativa de encontrá-lo
e conhecê-lo, para quem sabe entender como essa coincidência extraordinária
aconteceu.
Até decidir-se por essa busca, a narradora/autora vê-se completamente
envolvida pelo mistério do Lourenço: quem é ele? Como ele é? E num movimento
inverso, a autora, operadora e articuladora passa a ocupar a posição antes ocupada por
Lourenço, quando este era mero observador, a de leitora ávida por desvendar o mistério
da narrativa, neste caso simbolizada pela vida de Lourenço e pelos motivos que o
levaram a sonhar com a paisagem. Sobre essa inversão de papéis, Patrícia Yurgel
indaga:
Não seria, no fundo, a representação do desejo de todo leitor
aficionado à obra de seu autor predileto – o desejo de ser visto
pelo autor, de ter importância para ele, de chamar a atenção
para si, em contrapartida ao natural interesse, que vai sempre do
leitor para a obra e/ou para o autor? (YURGEL, 2007, p.63)
À proporção que a narradora/autora empreende sua busca por Lourenço, as
duas narrativas se modificam, tanto a principal quanto a paralela, já que novos dados
vão sendo acrescentados e novas impressões vão se formando na imaginação da
narradora. Chegando ao Rio de Janeiro, já sabemos que ela encontra uma menina
chamada pelo Leitor de Monstrinho e descobrimos que ela é a verdadeira autora da
paisagem, esta foi um desenho feito pela menina.
74
Ao ser indagado pela narradora/autora sobre isso, Lourenço responde que ele
contava as histórias da autora para a menina, logo, a ligação que ele sentia com as
histórias dela foram passadas para o Monstrinho, que também desenvolveu esse vínculo
ao ouvir as histórias contadas por Lourenço. A menina exerce o papel de leitora e
Lourenço é porta-voz e co-autor. Todavia, ao desenhar a paisagem a menina exerce
também esse mesmo papel e os três passam a produzir juntos, construindo e
descontruindo.
Durante sua visita a Lourenço, a narradora/autora conhece mais sobre sua vida
e se envolve com suas venturas e desventuras, tanto que, de volta a Londres, não
consegue mais romper essa conexão, que acaba por influenciar a o conto que estava
desenvolvendo:
Eu queria acabar a Paisagem, mas era só pensar no Homem e na
Mulher da minha história que eu me lembrava do desenho que a
Menina do Lado tinha feito. O meu pensamento então saía
passeando pelas vidas anteriores da Renata, enveredava pra
super-ligação dos seres afins do Lourenço, mas era pra Menina
que ele acabava sempre voltando. E ficando. (P, p.55)
A Menina e o Leitor já se configuram como co-autores do conto e não é mais
possível finalizá-lo sem eles. Porém esse arranjo sofre uma reviravolta quando a autora
leva a Menina-do-Lado para dentro do conto, transmutando-a de co-articuladora para
personagem fictícia e Lourenço ratifica essa transformação: “[...] você levou o
Monstrinho pra dentro do teu conto e só assim eu me livrei dela”. (P, p.58). Ele relata
ainda que não gostou do final do conto e a Autora então decide relê-lo para tentar
descobrir o motivo e é nesse ponto que a subversão final ocorre. Todos se mudam para
dentro da Paisagem, ela, o Lourenço, seu pai, o João e a Menina que já estava lá. Os
papéis, que já estavam difusos, misturados e se alternavam, agora não existem mais,
todos tornaram-se matéria literária, todos são personagens, todos são autores,
desmistificando assim o papel do autor na narrativa.
A avidez de um leitor ao enveredar-se pelos mistérios de um livro,
experenciada pela narradora/autora de Paisagem apresenta um caráter mais amplo no
primeira parte de Livro: um encontro. Importante lembrar que Livro foi o primeiro livro
da trilogia publicado, assim sendo, a sua faceta leitora é desvendada antes da
experiência metaficcional de Paisagem.
75
Como o texto dessa primeira parte, chamado “LIVRO - Eu te lendo” foi
inicialmente concebido como um monólogo, com a própria Lygia Bojunga encenando,
ele adquire um tom íntimo, confessional, assim como presenciamos nas seções “Pra
você que me lê”. Essa configuração também colabora para identificarmos a narradora
como a própria autora empírica, como ela mesma esclarece no prefácio intitulado “O
que que é LIVRO?”:
No ano passado a editora Agir quis promover uma exposição,
mostrando as publicações brasileiras e europeias dos meus
livros. Numa dessas conversas de como-e-onde levar a
exposição, alguém sugeriu que eu fosse junto, fazendo
companhia aos meus personagens. Pra meu espanto, a tal
vontade que estava dormindo acordou profundamente e foi logo
dizendo, tá, eu vou, e vou falar de novo da minha ligação com
livro; só que agora, pra mim, é hora de falar mais comprido e
mais direto.
Mais... direto?
Como direto eu queria dizer: pertinho, junto. Pela primeira vez
me dava vontade de contar uma história ao vivo. (L, p.8, grifo
da autora)
Ao narrar a sua relação com a leitura e com os seus livros e autores preferidos,
a autora desvela o seu eu-leitora, coloca-se em um papel que normalmente é ocupado
por nós, o de leitor extradiegético, realizando o movimento inverso ao operado em suas
narrativas. Sobre Em Liberdade, um diário fictício de Graciliano Ramos, escrito por
Silviano Santiago, Wander Melo Miranda ressalta:
Dessa forma, é cumprido, por deslocamento, o objetivo de levar
o leitor extradiegético para dentro do diário e do livro (...) Tal
atitude, à primeira vista, aparenta ser apenas um ardil textual,
montado com o intuito de obter a “cumplicidade” do leitor, mas
revela-se um modo de impedir o monologismo no diário e a
restrição deste à órbita do eu do diarista, como certamente
sucederia, caso não fosse dada ao leitor a possibilidade de
introduzir-se num discurso que, em princípio, não lhe diz
respeito. (MIRANDA, 1992, p.141, grifo do autor).
Assumindo-se como leitora, desnudando as sensações que experimentou lendo
esses livros, Lygia Bojunga participa como leitora dos jogos operados pelos autores dos
livros que a encantaram, enveredando pelo bosque de caminhos que cada um apresenta.
Contudo, esse relato faz parte de um texto narrativo que nós leitores estamos
degustando, esse movimento é duplo, portanto. Lygia é envolvida pela força dos textos
76
que lê e nós, leitores desse relato, somos envolvidos por esse discurso, nos
identificamos de imediato com essas emoções que ela vivencia em suas leituras e nos
sentimos cúmplices de suas confissões. Como Melo Miranda argumenta, o intuito de
levar o leitor para dentro do livro é um modo de impedir o monologismo do diário, no
caso um monólogo teatral. De uma apresentação unilateral, em que a fala é só dela,
instaura-se o diálogo.
À sua ligação com a leitura ela dá o nome de “casos de amor”. Segundo ela,
“caso” é mais intenso do que qualquer outro relacionamento:
Eu tive seis casos.
Casos de amor, eu quero dizer.
E, pra mim, um caso de amor é coisa de envolvimento muito
intenso.
Eu namorei bastante; flertei à beça; experimentei casamento;
mas casos mesmo foram seis. (L, p.11)
A sua primeira paixão foi Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, aos
sete anos. Dez anos depois, a paixão volta a se manifestar por dois autores, Dostoievski
e Edgar Alan Poe. Do primeiro ela destaca um livro preferido, Crime e Castigo:
“Assim, toda apaixonada, eu não queria largar o Raskolnikov: de dia, de noite, em casa,
na escola, no ônibus, eu tinha sempre que estar abrindo o Crime e Castigo pra me
encontrar com ele” (L, p.15); já com relação ao segundo toda a atmosfera fantástica dos
seus contos a apaixonou:
Nesse caso, não era um romance, não era um personagem
literário, era a coletânea de todos os livros do Poe (todos eles
impregnados de uma atmosfera fantástica), que me amarrava.
Eu já sentia, mesmo não conscientizando muito bem, essa
transa tão peculiar, tão única, que liga o leitor ao escritor, e que
faz com que a gente passe a sentir falta da atmosfera que certos
escritores criam nos livros que eles escrevem. (L. p.14)
Vai se delineando a conexão do leitor com os livros que lê, aqui com uma obra
e a atmosfera de angústia e desespero que ela carrega. É a mesma conexão que
Lourenço sente com a obra da sua autora preferida, a narradora/autora de Paisagem.
Sendo que lá essa conexão ultrapassa o limite do texto e se materializa por vias
ficcionais. Bem, Paisagem é o último livro da trilogia do livro, posto isto, sabemos que
se trata de um projeto: LIVRO abarca a sua relação com a leitura e com a escrita
77
enquanto autora, como se deu esse processo, como esses livros a influenciaram, em que
ponto a sua porção artesã começou a se manifestar; os outros dois são manifestações
vívidas dessas duas facetas: escritora, em Fazendo Ana Paz e leitora, em Paisagem.
Vários anos após seus casos com Dostoievski e Poe, a autora confessa sua
paixão por um autor que não revela o nome:
Mas um dia, quando eu ia saindo de uma dessas fases, eu
chafurdei (a palavra é bem essa: cha-fur-dar) num caso meio
vergonhoso da minha vida de leitora. É o tal caso que eu disse
que ia contar o milagre mas não ia contar o nome do santo. Não
vou nem contar se o santo é brasileiro ou não. Também não
interessa. O que interessa é que foi esse caso – bem negativo
por sinal – que me deu a fantástica dimensão dessa coisa que a
gente é. A gente: nós todos aqui: leitores. (L, p.17)
Para Patrícia Yurgel a intenção é desglamourizar o relato expressando-se como
uma leitora comum (2007) e, para nós, há por conseguinte a desglamourização do mito
do autor. Lygia Bojunga, uma leitora média, passível de envolver-se por textos de gosto
duvidoso, contrariando o seu próprio bom senso. No fim do trecho acima, ela se inclui
nesse grande grupo do qual todos fazemos parte: o de leitores. Somos todos leitores. É a
mesma relação de equivalência que Lourenço se coloca em Paisagem, quando ele se
refere a esta como nossa.
A respeito desse caso de amor cujo autor não é revelado, somos apresentados a
Ana Lúcia, apontada por Lygia como uma grande amiga e que funciona, não só aqui,
como em outros contextos como o contraponto da autora. Ela se envolve com a leitura
de forma analítica e intelectual enquanto que Lygia Bojunga se envolve passionalmente.
Parece-nos duas faces da mesma moeda, o confronto do racional versus emocional, a
moeda desdobrando-se em outra, com as faces escritora e leitora, cada uma com a sua
dupla face, emoção e razão. O eu-artesã entra em confronto o tempo todo com o lado
racional da escrita, representado pelo mercado editorial e o lado da emoção, essa paixão
que move a sua escrita e que muitas vezes entra em conflito com a parte racional, como
no caso do Feito à Mão, idealizado para ser um livro todo artesanal e acabou precisando
ceder às exigências práticas de mercado. O resultado foi o meio termo: um livro
produzido o mais artesanal possível dentro de um limite em que pudesse alcançar uma
tiragem razoável.
A autora relata que leu todos os livros do tal autor, até chegar a um em que ele
narra a sua viagem à India, e ela se sente traída na sua condição de leitora:
78
Puxa, mas como é que ele fazia uma coisa dessas comigo? Eu
não tinha falhado um livro dele. Mesmo me poluindo toda eu
tinha sido de uma fidelidade absoluta -e agora ele me traía
assim? (L, p.19).
Essa sensação de traição é potencializada pelo sentimento de que todos sabiam
dessa mudança de foco. Aquela receita de bolo que ela tanto apreciava, romantismo,
violência, erotismo e suspense foram substituídos por um insípido diário de viagem: “O
editor sabia. O revisor sabia. O capista sabia. Ah, mas o leitor era sempre o último a
saber!” (L, p.20). Sabemos que as seções “Pra você que me lê” são um espaço em que se
promove a aproximação entre o autor e o leitor. Ela abrevia esse caminho longo que
passa pelo editor, revisor e capista estabelecendo uma conexão direta com o leitor. Já
observamos que em algumas dessas seções discute-se sobre o próprio livro em questão,
como em Feito a Mão em que a dita seção ocupa a metade do livro. Ao se identificar
com os leitores, a autora propicia esse diálogo aberto, franco, seus leitores não se
decepcionarão tal como ela quando jovem.
E no meio dessa explosão emocional, de repente, eu me dei
conta de como é forte a transa livro-e-a-gente.
Aquela sensação de frustração que eu estava amargando – e que
se repete a cada dia, cada hora, em cada canto do mundo, cada
vez que um escritor decepciona o seu leitor – tinha me dado a
medida exata da minha parceria. (L, p.20, grifo da autora).
Com a trilogia do livro Lygia instaura essa parceria de forma mais nítida e a
revitaliza com as seções “Pra você que me lê”. Nas últimas linhas da citação acima, ela
ressalta a dinamicidade dessa relação, para ela, uma relação ativa de construção mútua e
não passiva, aceitando mensagens prontas como na televisão e no cinema:
Quando eu ia ao cinema, eu ficava lá sentada no escurinho,
saboreando com os meus sentidos tudo o que a tela me
mostrava. Mas sem responsabilidade; sem par-cer-ria.
Na frente da tevê então nem se fala: a câmera mastigando tudo
pra mim em close-ups, me mostrando tintim por tintim de
tudo; recheando o visual com comercial de refrigerante, de
conta bancária, de desodorante. Essa confusão de imagens me
fazia um solavanco atrás do outro. (L, p.20)
79
Por aí é possível perceber como lhe é cara essa relação dinâmica entre autor e
leitor, esse re-envio incessante a que se refere Dobrouvski, essa participação co-
operativa a que se refere Wander Melo Miranda.
Eu, leitora, crio com a minha imaginação todo o universo que
vem cifrado nesses sinaizinhos chamados letras.
Eu percorro cada pagina no meu ritmo de leitora. Allegro.
Andante. Allegro vivace. Sou eu que determino o ritmo que eu
quero.
Fora disso, a minha transa, a minha trama com quem escreve
livro é tão forte, que sou eu também que vou preenchendo todos
os espaços em branco – as chamadas entrelinhas. (L, p. 21)
Há vários aspectos significativos nesse trecho a considerar. Umberto Eco se
refere a uma viagem de carruagem acontecida no livro Sylvie. Durante a narrativa do
percurso até o destino, em nenhum momento o cavalo que puxa a carruagem é
mencionado. No entanto inferimos que há um cavalo, pois carruagens são puxadas por
cavalos, o nosso conhecimento do mundo real nos possibilita presumir isso sem que
haja a necessidade de que essa informação esteja explicitada no texto:
Ao lermos o trecho imaginamos o cavalo trotando pela noite,
fazendo a carruagem sacolejar, e é sob a influência física desses
sacolejos que o narrador mais uma vez se põe a sonhar, como se
alguém o embalasse. (ECO, 1994, p.91).
Eco sinaliza ainda que por apresentar personagens, local e tempo bem
definidos, o universo ficcional poderia ser considerado reduzido, limitado, contudo
justamente por acrescentar esses elementos a um universo pré-existente, o universo real,
o seu equivalente ficcional não terminaria com a história, pelo contrário, se estenderia
infinitamente (ECO, 1994). Lygia leitora, ao criar com a sua imaginação todo um
universo decodificado pelas letras, está ampliando esse universo. Ao acrescentar a sua
imaginação e o seu modo de ver ao texto que está lendo, ela acrescenta uma infinidade
de possibilidades de leituras àquele texto.
Ao narrar que determina o ritmo da leitura, Lygia reforça a postura ativa que
ela assume como leitora. Além de participar da construção de sentido junto ao autor, é
ela quem determina o ritmo da sua leitura, afinal a leitura é sua. Umberto Eco também
refletiu acerca do ritmo de um texto, para ele o texto impõe um ritmo ao leitor. (ECO,
80
1994). Segundo o autor um texto ficcional apresenta três tempos, o tempo da história, o
tempo do discurso e o tempo da leitura. Vejamos:
O tempo da história faz parte do conteúdo da história. Se o
texto diz que “mil anos se passam”, o tempo da história são mil
anos. Mas, no nível da expressão linguística, ou no nível do
discurso ficcional, o tempo de escrever (e ler) a frase é muito
curto. É por isso que um tempo do discurso rápido pode
exprimir um tempo da história bastante longo. Naturalmente, o
contrário também pode acontecer: vimos na conferência
anterior que Nerval precisou de doze capítulos para nos contar o
que acontecer em uma noite e um dia; e depois, em dois
capítulos curtos nos contou o que aconteceu no decorrer de
meses e anos. (ECO, 1994, p.60, grifos do autor).
Para explicar como isso ocorre o autor utiliza vários exemplos, mas vamos
destacar apenas um, a descrição da morte de um personagem em Casino Royale, de Ian
Fleming. O tempo da história, ou seja, o tempo em que o ataque ao personagem e a sua
morte aconteceria, duraria apenas dois segundos, contudo o tempo do discurso é mais
longo, Eco relata que levou quarenta e dois segundos para ler a passagem, que tem
noventa e sete palavras, dado a minúcia de detalhes. Esse recurso foi utilizado para
desacelerar a narrativa nesse ponto e desse modo o autor impõe ao leitor um ritmo de
leitura.
No entanto Lygia afirma enfaticamente, que é ela quem determina o ritmo da
sua leitura, assumindo mais uma vez uma postura ativa perante o texto, reforçando a
interação dinâmica que ela propõe entre o leitor e o texto. Ela ainda expressa que
preenche os espaços em branco do texto, o que nos leva mais uma vez a Wolfgang Iser e
os vazios do texto. Ao preencher as entrelinhas, a autora preenche o texto utilizando um
outro sistema, o seu sistema, no momento em que o sistema do texto já não dá conta.
Todavia, ela ressalta que preenche esses espaços em branco devido à relação forte que
ela estabelece com o autor do texto, sendo que essa essa configuração não é exclusiva a
ela, preencher os vazios do texto, conforme já observamos em Iser, é algo natural na
relação entre o texto e o leitor. Ao atribuir um caráter de exclusividade a essa relação,
ela atribui-lhe um grau de importância muito alto, e por conseguinte, está atribuindo
esse mesmo grau de importância aos seus leitores.
Através da decepção que sofreu com o tal autor misterioso, Lygia percebeu a
dimensão do seu papel como leitora: “eu sou leitora, logo, eu participo intimamente
desse jogo maravilhoso que é o livro; eu sou leitora, logo, eu crio”. A partir dessas
81
linhas a autora assume que o texto se configura como um jogo (jogo este proposto pelo
autor) e elas também resumem o que estamos refletindo aqui sobre a relação de parceria
proposta ao leitor nos textos de Lygia Bojunga, personificada por Lourenço em Fazendo
Ana Paz.
A obra de Fernando Pessoa foi o seu último caso de amor, que se deu em dois
tempos. O primeiro começou no dia em que o seu caso de amor com Cartas a um Poeta
de Rilke terminou. A autora narra que havia ido ao Arpoador com o namorado e acabou
derrubando o livro de Rilke no mar. Para acalmá-la, o namorado lê um poema de
Pessoa, e nesse momento se inicia o seu último caso de amor. A princípio era um
triângulo amoroso, ela, seu namorado e Fernando Pessoa. Quando se encontravam o
namorado sempre levava um livro do autor e lia para ela; ou ela lia para ele; mas o caso
de amor com os poemas de Fernando Pessoa nesse momento ainda não eram casos de
amor com o poeta, mas casos de amor com o namorado. Ele amava Fernando Pessoa e
ela amava o namorado, portanto amava o poeta também. Com o fim do namoro, o amor
pelo poeta também esfriou e só reacendeu dezessete anos depois, quando se encontrou
com sua amiga Ana Lúcia para jantar, esta não pôde ficar e deixou uma cópia do livro
Obras Poéticas:
Mil sensações esquecidas de dezessete anos atrás voltaram pra
mim naquela noite. E esse é ainda um outro aspecto
maravilhoso do livro: ele guarda, ele segura o que a gente é
quando transa com ele; e então, passados anos, a gente pode
revisitar, reavaliar, reviver a vida da gente, voltando aos livros
com os quais a gente teve um caso de amor. Está tudo ali,
retido, seguro, todas as nossas sensações daquele tempo. E não
importa que a gente diga, ué, como é que eu fui me apaixonar
por ele? Puxa, se fosse hoje eu não me apaixonaria mais. Não
importa. Ele continua a ser o depositário de toda aquela emoção
do passado. (L, p.29)
A relação com a leitura é tão rica, tão intensa, que se mistura com a nossa
história de vida. Aquele livro marcou um determinado momento da nossa vida e relê-lo
significa reviver aquele momento e as experiências que vivemos então, as alegrias, as
decepções, uma viagem, um curso que fizemos, todas as sensações, mesmo que não
relacionadas diretamente com o livro são revisitadas. Façamos nossas as palavras de
Umberto Eco:
82
E, assim, é fácil entender por que a ficção nos fascina tanto. Ela
nos proporciona a oportunidade de utilizar infinitamente nossas
faculdades para perceber o mundo e reconstituir o passado. A
ficção tem a mesma função dos jogos. Brincando as crianças
aprendem a viver, porque simulam situações em que poderão se
encontrar como adultos. E é por meio da ficção que nós,
adultos, exercitamos nossa capacidade de estruturar nossa
experiência passada e presente. (ECO, 1994, p.137).
Iniciamos este capítulo com um trecho da seção “Pra você que me lê” do livro
Feito à Mão, ressaltando que este foi o primeiro livro em que essa seção figura. A partir
de Retratos de Carolina essa seção passou a figurar em lançamentos subsequentes e
ainda em alguns dos livros reeditados pela sua Casa Editorial. Observamos
anteriormente que o título da seção nos remete a um diálogo aberto e franco com os
leitores, e muitas vezes é o que ocorre de fato, contudo outras vezes esse espaço acaba
por fazer parte da história e a autora se instaura como personagem de sua própria
história. Esse é também um espaço móvel, o assunto das seções também varia,
conforme a própria autora salienta na seção de Sapato de Salto:
Se você é meu leitor, minha leitora, já deve ter notado que o
Pra você que me lê é um espaço móvel varia de livro: ora é no
começo, ora no fim; ora se torna ausente, ora se limita a dar
uma ou outra informação sobre o livro que você tem na mão.
(BOJUNGA, 2011, p.253).
Seja qual for o espaço do livro físico que esta seção ocupe, seja fazendo parte
da história ou fornecendo detalhes sobre a escolha da capa daquele livro, Pra você que
me lê destina-se ao leitor, é a autora piscando os olhos para ele, convidando-o a fazer
parte do processo e alertando-o sobre a sua importância nesse processo, que para ela é
essencialmente um processo de troca.
A seção “Pra você que me lê” de Feito à Mão ocupa trinta e nove das cento
quarenta páginas do livro, o que ilustra bem o quão importante é para a autora esse
espaço de comunicação com os leitores. Nesse espaço a autora compartilha todo o
processo de fabricação de livro, desde a ideia de produzir um livro todo feito à mão,
como o próprio título denuncia, passando pelos obstáculos superados durante a
elaboração do projeto até o produto final. A ideia inicial seria ela mesma produzir todo
o material do livro, faria as folhas de papel artesanalmente, escreveria nas folhas à mão,
faria a capa de pano amarrada com um cordão.
83
Mas, como algumas etapas do projeto (como escrever todas as tiragens à mão)
demandariam um tempo muito longo e como há prazos a cumprir no meio editorial, ela
se viu obrigada a fazer concessões, o projeto foi se simplificando e o resultado final não
ficou como havia sido idealizado a princípio. Mesmo assim, ainda se manteve a ideia de
um livro artesanal: o papel e a capa foram produzidos por artesãs e o texto, que após o
abandono da escrita à mão seria tipografado, foi batido em uma antiga máquina de
escrever em plenos tempos de tecnologia ultrapassando os limites da imaginação. A
tiragem inicial foi limitada e ficou fora do circuito comercial, o que levou a editora
Agir, que publicou o texto, a convencer Lygia Bojunga a publicar nova edição com a
roupagem habitual de seus livros anteriores.
Nesse espaço, portanto, acompanhamos todo o desenvolvimento desse
processo, desde o nascimento da ideia:
Tempos atrás me deu vontade de fazer um livro do princípio ao
fim. Movida pela curiosidade que desde pequena vem abrindo o
meu caminho: fazer-pra-ver-como-é-que-e-fazer.
Mas eu só queria fazer o livro se ele fosse feito à mão. Por duas
razões que eu comparei e concluí que uma era cara da outra.
A primeira razão: tudo que eu andava querendo escrever
naquela hora tinha a ver com o fazer à mão: eu queria falar do
meu eu-artesão; e queria lembrar a marca que outros artesãos
me deixaram; (...)
A segunda razão foi – mais uma vez – a compulsão de remar
contra a mar: quanto mais a tecnologia se impõe, mais rédea eu
vou dando pro meu gosto de fazer à mão. (FM, p.7).
Ela relata que o desejo de fabricar um livro assim seria a continuação de uma
experiência começada com o projeto Mambembadas, do qual fez parte Livro: Um
Encontro. No trecho destacado observamos que a primeira razão para realizar esse
projeto é a vontade de falar sobre o eu-artesã, que figurou na segunda parte de Livro.
Sabemos que somente o eu-leitora fez parte das apresentações e o eu-artesã foi
integrado mais tarde, contudo é importante notarmos que essa necessidade de expor os
mecanismos de funcionamento da escrita e se expor, seja desvelando a sua faceta autora
por vias ficcionais, seja expondo-se ao apresentar sozinha um monólogo teatral, é a
ordem do dia para Lygia Bojunga. Essa necessidade impulsionou a mudança
significativa no chamado direcionamento para o público infantil, já que foi a partir de
Livro: Um Encontro que essa mudança ocorreu e impulsionou ainda a grande virada na
84
sua carreira, a fundação da editora Casa Lygia Bojunga. A fundação da Casa é tão
significativa que ela será abordada em diversas outras seções “Pra você que me lê”.
A segunda razão se refere à sua postura desafiadora contra os desenfreados
avanços tecnológicos, assunto recorrente em suas narrativas. Em Sapato de Salto, por
exemplo, dois dos personagens se mobilizam para embargar a obra de um espigão no
lugar de um sobrado demolido, a favor de um orquidário onde funcionaria um espaço
cultural, preservando a memória histórica do largo em que situa. Em suas palavras: “A
segunda razão foi – mais uma vez – a compulsão de remar contra a maré: quanto mais a
tecnologia se impõe, mais rédea eu vou dando pro meu gosto de fazer à mão”. (2008, p.
8). Em diversas ocasiões a autora revelou que ainda prefere escrever à mão em cadernos
do que utilizar o computador. Ao salientar que quanto mais a tecnologia avança, mais
retrocede e insiste no artesanal, a autora está não somente se colocando na contramão da
tecnologia, mas está afirmando a sua liberdade de escolher fazer o quiser da forma que
quiser. A fundação da editora Casa Lygia Bojunga é mais um fator nesse sentido,
editando a si própria ela tem liberdade para criar no seu tempo e à sua maneira.
A relação de Lygia Bojunga com a escrita, mais do que uma relação com a
história e os personagens que cria, envolve também uma relação de amor com o próprio
ato de escrever, já abordado por ela na segunda parte de Livro: um encontro, quando
narra a sua descoberta pelos livros de caligrafia e o prazer de escrever as letras com
capricho e perfeição.
Quando aprendi a ler e a escrever, fui logo tomada pelo prazer
de decifrar palavras e de imprimir palavras num papel. O ato
físico de escrever me encantou: mexer com lápis, borracha e
caneta, mexer com papel; achava caderno bonito (ainda mais
fazendo par com livro), o prazer que eu sentia de me rodear
desses objetos, todos eles tão bons de pegar, de cheirar, de
alisar, de apertar, foi um prazer que me acompanhou vida afora,
e do qual eu não abro mão. Então, nada mais natural que eu
tenha delirado de “escrever” o Feito à Mão: ele não ia ser
impresso, ia ser caligrafado (?!...) (FM, p.11, grifo da autora)
Ela então se embrenha em um estudo da arte da caligrafia, adquirindo diversos
livros sobre o tema, compra o material necessário, começa a treinar e logo percebe que
não será possível escreve cento e vinte livros à mão, isso levaria pelo menos uns vinte e
cinco anos. Passada a decepção inicial e o desgosto por ter que abdicar desse sonho, a
autora decide então que os livros serão tipografados, que seria a segunda opção mais
artesanal, nas palavras da própria. Novo fôlego, novos livros sobre assunto. Decidido
85
isso, Lygia absorve-se na arrumação do espaço que escolheu para trabalhar no projeto: a
sua casa na serra, chamada Boa-Liga. Em meio aos preparativos, recebe uma ligação da
editora Agir perguntando sobre a data do lançamento dos livros, que seria simultâneo ao
lançamento de outros dois, O Abraço e Seis Vezes Lucas. Em choque, ela agenda uma
data para dali a quatro meses e isso provoca outras mudanças no projeto. Da tipografia
passou à máquina de escrever; de datilografar todos os livros um a um passou a uma
copiadora; de fabricar por conta própria o papel e encadernação do livro contratou uma
equipe de artesãs para realizar essa tarefa. E além desses ajustes viu-se limitada a um
prazo apertado e impelida a trabalhar sob pressão para cumprir o combinado, o que
nunca a agradou: “Pecado de duas caras. A primeira se mostrou logo: pra cumprir o
compromisso assumido com a editora (e comigo mesma) eu tinha que começar a
trabalhar em regime de pressão (coisa que eu odeio)”. (FM, p.19).
Dentre as concessões para o projeto incluiu-se a encomenda do papel artesanal
a uma equipe de artesãs e a ideia inicial de encomendar a tipografia do texto. Com a
chegada da primeira leva de papel, Lygia Bojunga partiu em busca de um tipógrafo que
fizesse o serviço, entretanto ninguém aceitou trabalhar com aquele papel, muito menos
sem guilhotinar. A solução encontrada foi datilografar ela mesma o texto uma antiga
máquina de escrever. Contudo, como não seria possível datilografar as cento e vinte
cópias que desejava, rendeu-se e comprou uma copiadora moderna para realizar o
serviço. Esse episódio rendeu um capítulo à parte na seção Pra você que me lê deste
livro: “O SENHOR PECADO E OS PELINHOS / (Tá vendo só como eu sou viciada
em livro? Sentei aqui pra te escrever uma simples carta: fui indo, fui indo, e já estou
caindo em capítulos)” (FM, p.27, grifos da autora).
No capítulo é narrada a aventura em que se transformou a cópia do livro na
máquina profissional usando o papel artesanal, todo irregular e repleto de resíduo de
fibras, os chamados pelinhos. Os resíduos entupiram a máquina duas vezes e o técnico
precisou ir até lá para limpá-la. É bem-humorada a sequência em que ela descreve o
defeito da máquina sua tentativa de limpá-la sozinha:
Mas, por volta das três da tarde, ele deu o primeiro gemido.
Fraquinho. Depois, outro mais forte. Em seguida, começou a
piscar umas luzes que eu nem sabia que ele tinha. Será que ele
estava querendo uma pausa, um descanso? Foi só me fazer essa
pergunta que o Pecado gemeu de novo. Só que, dessa vez,
rouco, forte: um estertor pra ninguém botar defeito.
Esperei um pouco.
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Me apavorei outro pouco.
Arrisquei apertar um botão.
Arrisquei tudo que é botão.
Total imobilidade do tal senhor. (FM, p.35).
Não há capítulos que se sucedem a esse, contudo é inegável a intromissão do
ficcional nesse “papo” com o leitor, não só pela abertura de um capítulo, o que poderia
lhe atribuir um caráter de livro com história contada, por assim dizer, como pelas
artimanhas narrativas empregadas. Nós conseguimos claramente visualizar a máquina
engasgando, a expressão de desespero no rosto da autora e acompanhamos com avidez o
desenrolar do episódio para descobrir o que acontece a seguir. Exatamente como nos
comportamos diante de um livro de ficção. Mesmo num diálogo aberto com os leitores,
em um texto que se pretendia carta, o eu-escritora não se descola, ele se intromete e se
desdobra, arrebanhando o diálogo e transformando-o em uma história boa de ser
contada e boa de ser lida. Notemos que ainda sequer chegamos ao corpo do livro, a
suposta história, até o momento estamos ainda na dita seção.
Após tantos percalços a tiragem inicial enfim fica pronta, o prazo é cumprido e
Lygia Bojunga realiza as apresentações teatrais dos três livros envolvidos, Feito à Mão,
O Abraço e Seis Vezes Lucas, com o primeiro debaixo do braço, vendendo-o
diretamente ao público. Com o fim da tiragem inicial uma dúvida se estabelece: entrega-
se novamente ao projeto de produzir uma nova tiragem artesanalmente ou deveria ser
editado pela Agir como todos os outros? Ela decide-se pela segunda opção, já que assim
o seu grande público teria acesso ao livro, pois o projeto inicial ficou restrito a um
número muito pequeno de pessoas e somente aquelas que tiveram acesso às
apresentações encenadas.
A citação que abre este capítulo finaliza a primeira parte da seção, datada de
1999. Logo após há pouco mais de uma página datada de 2005. O texto de 1999, aqui
resumido, foi acrescentado na edição da editora Agir e o texto de 2005 na reedição deste
pela editora Casa Lygia Bojunga. No último é explicado que foram incluídos os títulos
dos capítulos do livro original, com a caligrafia da autora, em que é possível ver as
ranhuras do papel artesanal; como também um retrato da autora, feito por Carlos Scliar.
Sabemos que a produção deste livro foi um dos fatores determinantes para a
fundação da Casa Editorial e a exposição desse processo de produção em um espaço
destinado ao leitor não somente adota um tom de confissão, já que a autora compartilha
os sentimentos diversos que envolveram a produção e que a levaram mais tarde a querer
87
caminhar por si própria, como também adota o já comentado desvelamento do processo
criativo, tão frequente em suas obras após a trilogia do livro. Nesse caso,
acompanhamos o processo após o ponto final da história. Se antes já havia abordado a
desmistificação do autor, temos aqui a desmitificação total de todo um processo que
envolve a produção de um livro. É significativo que isso ocorra em um espaço destinado
aos leitores, pois se já observamos que seus textos estimulam a construção mútua de
sentidos, personificada, como já vimos, em Paisagem, nada mais natural que essa
exposição ocorra nesse espaço.
No “Pra você que me lê” de O Rio e Eu a autora nos conta sobre a criação da
Casa Editorial. Apesar dos prognósticos sombrios, ela prosseguiu e relata que no início
foi realmente difícil lidar com essa nova tarefa e durante um período não conseguiu se
dedicar à escrita, doando-se totalmente à missão de fazer a Casa funcionar. Ela inicia o
texto anunciando que aquela edição do livro é motivo de comemoração, pois após uma
longa jornada para levar os seus livros publicados pela Agir para a editora Casa Lygia
Bojunga essa jornada chega ao fim com O Rio e eu: “Daí eu estar me sentindo tão a fim
de vir celebrar contigo (afinal, o que seriam os meus livros sem você que me lê?) a
chegada do último filho que estava faltando: O Rio e eu”. (RE, p.92). Assim como em
Feito à Mão, o assunto aqui gira em torno da produção e da edição de livros. Enquanto
que lá o assunto é centralizado no Feito à Mão, aqui o assunto é a criação da editora
Casa Lygia Bojunga, abordado ainda no “Pra você que me lê” de Sapato de Salto.
Em Sapato de Salto, ela narra que começou a escrevê-lo há muitos anos, ele a
princípio se chamava Sandália Dourada e após meses trabalhando salvou duas ou três
cenas e destruiu o resto (2011). Após Retratos de Carolina inicia uma história que se
chamaria Aula de Inglês, mas esta começou a se desenhar bem no momento em que
inaugurou a sua editora e naquele momento resolveu que deveria priorizar o projeto da
editora e a sua escrita foi esporádica:
A escrita de Aula de Inglês começou a ganhar força na hora
errada: eu estava recém criando a minha Casa editorial. A
princípio tentei conciliar as tarefas de editora e escritora. Mas
logo compreendi que, pra tocar pra frente o projeto da Casa, eu
tinha que empurrar a escritora pra segundo plano e fazer ela se
contentar com as sobras do tempo e da dedicação consumidos
pela editora. (BOJUNGA, 2011. p.255).
88
A criação da editora é, portanto, tema recorrente nesse canal de comunicação
com os leitores, o que nos leva a refletir. Expondo esse lado prático da produção de um
livro e expondo, por conseguinte o lado comercial da literatura, a autora está
compartilhando com seus leitores as agruras, dissabores, percalços e vitórias desse novo
caminho percorrido, a transição de uma fase em que o seu papel acabava no ponto final
da história para o prolongamento desse papel para todas as etapas de produção e edição
até a sua distribuição. Já abordamos aqui que essa decisão implicou em uma busca pela
liberdade e ao expor os pormenores desse trajeto, Lygia Bojunga está participando os
leitores desse processo e envolvendo-o pessoalmente nessa caminhada. Afinal ele
também faz parte do processo, após todo o caminho percorrido pelo livro até chegar às
livrarias, o leitor é aquele a quem o produto se destina, é quem vai comprar o livro.
Sendo assim, ele mais uma vez é incorporado como parte ativa do processo. E como
isso é partilhado nesse espaço destinado ao diálogo provoca nos leitores familiaridade e
até intimidade, afinal eles estão acessando memórias, pensamentos e sentimentos,
aparentemente íntimos. O leitor se apropria desse espaço e assume-se inteiramente
como o “você” do “Pra você que me lê”. Assim como o Lourenço, o Leitor com L
maiúsculo. Somos todos Leitores, somos todos Lourenço. Confirmando nosso
argumento, temos logo no início do “Pra você que me lê” de Dos Vinte 1:
Outro dia recebi a carta de uma leitora contando que foi a uma
livraria comprar meu último livro e a primeira coisa que fez foi
verificar se tinha um papo com ela, isto é, se tinha este espaço
que criei pra conversar contigo e que chamei de pra você que
me lê. (BOJUNGA, 2007, p.5)
Mais adiante a autora ressalta que adorou a carta por dois motivos, sendo que
um deles foi o fato de a leitora ter se apossado desse espaço. Se a leitora apossou-se de
um espaço destinado a milhares de leitores, significa que ela identificou-se de alguma
forma e que o espaço está cumprindo o seu objetivo, encurtar e estreitar essa relação.
Após terminar de contar sobre a chegada de O Rio e eu na editora somos
arrebatados mais uma vez, a exemplo de Retratos de Carolina pela intromissão do
ficcional naquele espaço:
Agora, revendo as provas finais d’O Rio e eu, lá pelas tantas me
surpreendi falando baixinho com a Maria da Anunciação (já te
contei isso antes, não é? desde pequena tenho mania de
conversar com os meus personagens):
89
-Você custou a chegar, hem mulher? Olha aí: é a última da fila.
-Última?! Quer dizer que você não vai mais nos inventar?
-Que que é isso?! Bate na madeira. Última a chegar na Casa, foi
o que eu quis dizer. Você e o Rio. Mas espero (se os deuses não
conspirarem contra) que os outros personagens que estão me
esperando faz tempo possam, em breve, vir fazer companhia pra
vocês.
Companhia pros personagens que criei no passado e companhia
pra você que me lê. (BOJUNGA, 2005, p.93).
Maria da Anunciação é uma personagem da história, uma passadeira que vai à
casa da narradora ainda menina e apresenta a ela o Rio de Janeiro através de conversas,
a cada encontro ela fala sobre um aspecto da cidade. A narradora relata como se sentiu
fascinada por Maria e pelas histórias que ela contava sobre a cidade. O seu amor pelo
Rio começa antes mesmo de conhecê-lo, através da fala de Maria da Anunciação. O
capítulo se chama “O anúncio”, pois anuncia a chega do Rio de Janeiro em sua vida. É
significativo que a personagem responsável por esse anúncio se chame Maria da
Anunciação e é significativo também que seja a ela a quem o trecho acima se dirija, já
que está sendo anunciada a vitória da editora, a aquisição do último livro que faltava
recuperar da Agir e reeditar na Casa à moda dela. É a vitória de um ponto de vista, de
um posicionamento adotado pela autora: a tentativa de desvincular a sua imagem de
escritora de livros infanto-juvenis, de libertar os seus livros desse rótulo de livro para
crianças. No Pra você que me lê de Dos vinte 1 esse assunto é retomado:
Mas a questão é que, conforme já te contei em outras ocasiões,
poucas vezes eu sei se o que eu escrevo é mais pra criança, é
mais pra adolescente ou mais pra adulto. Digo poucas vezes
porque sempre achei que meus primeiros livros (Os colegas e
Angélica), positivamente era para crianças, uma vez que eu
escrevi os dois tentando o tempo todo reconstituir o meu eu-
criança, querendo me lembrar do que que eu fazia, do que que
eu gostava, do que eu imaginava. Em outras palavras: procurei
dirigir aqueles dois livros para o chamado mundo infantil. Mas,
a partir do meu terceiro livro (A bolsa amarela), meu processo
criativo foi se modificando e não tardou a se transformar de tal
maneira, que nunca mais consegui distinguir na minha escrita
uma isenção genuína de “querer alcançar” esse ou aquele
público, essa ou aquela faixa etária. E nunca mais soube de
antemão o que que eu ia escrever. (BOJUNGA, 2007, p.15,
grifos da autora)
Esse trecho é revelador, deflagra abertamente dois pontos que já havíamos
discutido: a mudança em seu processo criativo e o questionamento acerca do
90
direcionamento para um determinado público. Torna-se claro, nas palavras da própria
que em muitos de seus livros (a nosso ver a partir da trilogia do livro) não houve
intenção de escrever exclusivamente para crianças. Levantar esses questionamentos
nessa seção adquire um tom de declaração, de anúncio, traçando um paralelo com O Rio
e eu. Ela está declarando aos seis leitores que sua obra não é direcionada ao público
infanto-juvenil. Torna-se claro também o quanto esclarecer esse ponto é importante para
ela, tanto que esse esclarecimento está acontecendo num espaço dedicado a um canal
direto com o público, sem intermediários. Essa declaração ocorre também por meio
visual, através do aspecto que seus livros passaram adquirir depois que foram reeditados
pela Casa Editora Lygia Bojunga. Ainda em Dos vinte 1 a autora esclarece:
Os vinte livros que escrevi foram produzidos no mesmo
formato, utilizando o mesmo papel, a mesma tipologia, as
mesmas cores, enfim, as características para todos os livros são
as mesmas – sejam eles “dirigidos” pra crianças, jovens e/ou
adultos. Segundo eles (o eu-editora, quero dizer, e mais todos os
que criticaram essa opção que eu fiz ao idealizar a morada para
os meus personagens), isso não só confunde os leitores como é,
também uma opção anticomercial. (BOJUNGA, 2007, p.15)
A autora faz uso de uma estratégia amplamente utilizada em seus textos, o
duplo. Ao declarar aos leitores em um espaço de diálogo que não quer que seus livros
sejam rotulados e ao produzi-los todos com a mesma aparência, faz-se uma dupla
declaração. O leitor adquire o livro com aquele formato e ao abri-lo há em seu interior
um depoimento afirmando justamente o que está deflagrado na capa, no papel, na
tipologia do texto, que aquele livro ocupa um espaço neutro, aberto, não definido e
infinito.
No trecho anterior há outra questão a considerar. Nessa seção a autora aponta
uma das críticas que foram feitas a essa nova empreitada, justamente esse formato que
ela escolheu para reeditar os seus livros, que, segundo os críticos, é um formato “na
contramão” (BOJUNGA, 2007). Daí a assertiva do final do trecho, que esse critério de
edição e distribuição confunde os leitores e é anticomercial. Isso porque, pensando em
livros para crianças não é um formato atrativo para esse público, a capa não possui cores
atrativas, é um livro pequeno, assim como as letras. Pensando por esse lado não é
realmente uma opção comercial, contudo, como de acordo com Lygia Bojunga seus
livros não são direcionados para um público em particular, todos fazem parte de um
91
mesmo conjunto, o conjunto da sua obra, todos devem ter a mesma aparência, para
evidenciar esse aspecto de conjunto:
Então, quando um dia resolvi inventar uma casa editorial pros
meus personagens, resolvi também que eles iam ser tratados na
base da “grande família”: onde mora um, moram todos; o que é
dado pra um é dado pra todos... (BOJUNGA, 2007, p.16).
O livro Dos vinte 1 é uma coletânea de vinte capítulos dos seus até então vinte
livros (Querida seria publicado dois anos depois), um capítulo de cada livro. Em sua
seção “Pra você que me lê” é narrado o processo de criação desse livro, como surgiu
essa ideia e como foi o processo de escolha dos capítulos. As questões abordadas
anteriormente estão inseridas nesse contexto, pois terminada a tarefa de escolha dos
capítulos entrou em ação a fase de edição e com a Casa já em pleno funcionamento
cabia à própria autora essa função e nesse momento ela narra os conflitos entre o eu-
escritora e o eu-editora, que representa a parte prática do processo e também todas as
outras vozes agregadas ao cenário editorial.
Retrocedendo um pouco, detenhamo-nos sobre o estágio em que a autora relata
como surgiu a ideia para esse projeto. Segundo ela, nos encontros do qual participa, é
comum perguntarem de qual livro mais gosta, ao que responde: nenhum.
E aqui eu contrario quem afirma que o escritor é um eterno
fingidor: sou absolutamente sincera ao responder: nenhum.
Nenhum dos meus livros me satisfez. E não faço mistério dessa
frustração que carrego: a de nunca ter conseguido escrever um
livro que eu considere realmente bom. (BOJUNGA, 2007, p.7).
A autora argumenta que dispendeu muito trabalho à criação dos seus livros,
escrevendo, corrigindo, descartando, recomeçando e que o critério utilizado para
publicar os livros reside nos personagens, caso ela considerasse que havia conseguindo
imprimir vivacidade a eles e com isso eles seriam capazes de transmitir o que ela
pretendia, resolvia dar o livro por concluído e entregar para publicação, portanto nunca
estava realmente satisfeita com o resultado final.
Ela prossegue detalhando o critério que passou a adotar para criar os seus
personagens, que seria amar todos os eles, independentemente de ser um personagem
“gostável” ou não. Assim, emprestando dedicação igual a todos, todos transpirariam a
vivacidade almejada.
92
(...) eu queria ser capaz de amar meus personagens da maneira
irrestrita com que, ÀS VEZES, se ama um ser de carne de osso,
seja ele amorável ou não. Conseguindo avançar nesse
aprendizado, eu sentiria o gosto bom do fazer (e, então, ia
querer sentir mais... e mais e, mesmo não conseguindo escrever
um livro que me satisfizesse, eu ia usufruir o tesão de fazer
meus personagens. (BOJUNGA, 2007, p.9, grifo da autora)
A exposição dos mecanismos de funcionamento está novamente em
pauta. A exemplo de Fazendo Ana Paz, temos o processo de criação de personagens
como ordem do dia.
Em um desses encontros com o público um menino manifesta o desejo de obter
uma resposta mais uma concreta, o que a leva a realizar uma promessa:
- Te prometo que, uma hora dessas, vou pensar com calma no
assunto e aí te respondo.
- Me escreve?
- Escrevo.
- Num livro?
- Num livro!!
- Pra mim! (BOJUNGA, 2007, p.10)
Anos mais tarde Lygia resolve cumprir a promessa e entregar-se a um exercício
de leitura com o máximo isenção, objetivando selecionar os trechos que lhe
provocassem uma emoção espontânea
Depois cheguei à conclusão de que essa isenção tinha que ser
mais acontecida do que procurada. Se me acontecesse ler um
trecho que, de repente, me arrancasse uma risada imprevista, ou
me provocasse uma súbita emoção, espicaçando minha
curiosidade e interesse pra saber o que ia acontecer em seguida,
aí sim, eu ia poder ter a impressão de que aquele texto tinha
sido escrito por outra pessoa. Essa impressão não só teria sido
provocada pela isenção momentânea acontecida como também
me daria o critério que eu estava buscando pra selecionar nos
meus livros os trechos que eu gostasse mais. (BOJUNGA,
2007, p.13)
Ela nomeou o exercício de “A tarefa”, o que nos remete ao conto “A Troca e a
Tarefa” do livro Tchau. As duas tarefas envolvem a produção de livros, sendo que lá,
em uma esfera fantástica, a tarefa consistia na transformação dos sentimentos da
escritora do conto em história, libertando-a das frustrações que esses sentimentos lhe
suscitavam; já aqui a tarefa consiste no levantamento de trechos que lhe provoquem
93
algum tipo de sentimento. Não deixa de ser o caminho inverso. Se lá a tarefa a afastava
dos sentimentos, aqui vai de encontro à emoção.
Outro aspecto importante a considerar a respeito dessa tarefa é a comparação
que a autora efetua com uma atividade física, a ginástica. Ela relata que a prática da
ginástica a tornou mais consciente dos movimentos do seu corpo e o gosto da
curiosidade que ela sentia praticando esses exercícios físicos foram retomados no
exercício de leitura realizado para selecionar os seus trechos preferidos de cada um de
seus livros. Não é a primeira vez que ela compara um processo criativo de reflexão com
uma prática laboral. Em Feito à mão histórias são inventadas a partir de objetos de
costura; não raro, se refere a si mesma como artesã, artesã da palavra; Em Fazendo Ana
Paz, ela compara a criação da história de Ana Paz com a construção de uma casa; sem
esquecer que Feito à mão é a exaltação do labor, da manufatura. A seção “Pra você que
me lê”, como vimos, aborda o processo de produção do livro e a história em si toda gira
em torno do fazer à mão.
Em vista disso, consideramos que além de louvar as atividades manuais ao
compará-las com uma atividade que exija criatividade e reflexão, esse paralelo se
configura como mais um artifício de desmistificação da escrita e do autor. A
comparação de um processo de reflexão nesse nível de subjetividade (a escolha de
determinados trechos que lhe provoquem um sentimento genuíno, afastando-se de si
mesma, lendo a si mesma como o outro) com uma atividade essencialmente física, a
ginástica, parece estar inserida nesse processo de desmistificação engendrado pela
autora em diversos de seus textos.
Um último aspecto a considerar sobre a tarefa se refere à motivação para
lançar-se nessa empreitada: os leitores. Os questionamentos dos leitores a respeito de
quais seriam os seus livros preferidos ou capítulos a levaram a produzir um livro
coletando capítulos de livros já publicados. Notemos o nível de aproximação com os
leitores de um projeto como esse, produz-se um livro que não apresenta conteúdo
inédito, é uma colcha de retalhos de seus livros anteriores para satisfazer à curiosidade
dos leitores. Isso provoca evidentemente uma grande sensação de cumplicidade e
familiaridade com o público leitor, além de imprimir neste uma sensação de
acolhimento e empatia ao constatar que seus pedidos foram atendidos, e não através de
uma entrevista, ou de um artigo, mas através de um livro, o produto mais caro à Lygia.
Tão caro que apenas vinte e dois foram publicados, ao contrário de outros autores,
principalmente os que se destinam ao público infantil, com dezenas de livros
94
publicados. Vinte e dois livros implica um cuidado maior, um grau de importância
maior à produção das histórias que serão abrigadas por aquele livro.
E para finalizar os comentários acerca do critério utilizados para escolher os
trechos preferidos há novamente a preocupação com o afastamento de rótulos:
Foi a partir daquele momento que os exercícios fluíram com
mais facilidade e interesse. Eu não queria, de jeito nenhum,
sujeitar minha seleção a temas, faixas etárias, ausência ou
presença disso ou daquilo. Queria um critério bem solto: gostei?
me divertiu? me interessou? me comoveu? ah, então, tá.
(BOJUNGA, 2007, p.14)
Finda a tarefa, feita a escolha, concentremo-nos no produto final. Não estamos
mais na seção “Pra você que me lê”, todavia o diálogo com os leitores continua. Ler os
capítulos que a autora elegeu como seus preferidos é ler com seus olhos, compartilhar
do seu ponto vista. Oferecer aos leitores uma coletânea das passagens que mais lhe
agradaram é um convite a penetrar em seu íntimo.
A seção “Pra você que me lê”, ao nos fornecer detalhes sobre a motivação da
autora para publicar esse livro e como foi o processo de escolha dos capítulos, nos
provoca curiosidade a respeito de quais são os trechos favoritos e ainda gera uma
expectativa: será que são os mesmos que os meus? Isso gera proximação e familiaridade
na medida em que os leitores também buscam na memória quais são as suas partes
favoritas e no caso de uma coincidência o público leitor se sentirá conectado com a
autora, já que ambos partilham a mesma predileção. E mesmo que os trechos prediletos
não sejam os mesmos a descoberta o levará a tentar entender por que aquele é o trecho
preferido da autora ou mesmo a questionar, caso não concorde com a escolha. Em
ambos os casos a conexão está posta.
A autora ressaltou durante a seção “Pra você que me lê” que alguns dos trechos
selecionados soavam incompletos e foi feito um arranjo para imprimir coerência ao
conteúdo:
Ao dar por terminada a tarefa, o eu-editora afastou o eu-
escritora pro lado e começou a planejar o livro que ia publicar
do resultado dos exercícios. Nossa primeira desavença
aconteceu quando ela achou que alguns dos trechos que eu
tinha selecionado ficavam muito incompletos e, vai ver, até
incompreensíveis pra você que me lê. Começou a espichar
minhas escolhas daqui e dali. Protestei. Discutimos. Mas
acabamos fazendo uma conta de chegar: em alguns casos o
95
espichamento resultou num capítulo inteiro, em outros, não. E
concordamos que na abertura de cada uma das vinte escolhas
botaríamos um título para o texto selecionado. (BOJUNGA,
2007, p.14, grifo da autora).
Desse modo, o leitor é lançado em um jogo de adivinhação: de qual parte a
autora gostou inteira? Qual o trecho preferido de cada parte? A autora nos ilude com a
possibilidade de acessarmos uma parcela do seu âmago quando de fato somos atirados à
incerteza, já que jamais obteremos resposta às perguntas acima. Entretanto, longe de nos
decepcionar, essa estratégia nos instiga e nos entregamos à leitura desses capítulos que
já havíamos lido anteriormente com prazer e curiosidade renovados. A expectativa de
saber o que vai acontecer depois é substituída pela expectativa de qual será o próximo
trecho do próximo livro e somos arrebatados por essa descoberta tanto quanto se
estivéssemos lendo acerca da solução de um mistério.
O espaço “Pra você que me lê” também é utilizado para discorrer acerca de
modificações realizadas nas reedições da Casa editora Lygia Bojunga, como é o caso de
O Abraço e Nós Três. Os dois constituem o que ela chama de par sombrio:
Por que par sombrio? querem saber, quando eu falo deles.
Porque várias vezes a Morte esteve presente nos meus livros,
mas nunca de maneira tão sombria feito n’O Abraço e em Nós
Três. (BOJUNGA, 2014, p.85, grifos da autora)
No “Pra você que me lê” de Nós Três há uma explanação maior a respeito
dessa nominação. Segundo a autora, esse nome lhe ocorreu algum tempo após a
publicação de O Abraço (oito anos depois de Nós Três):
Pouco tempo depois de ter publicado O Abraço, um dia fui pra
rede pensar num personagem que estava se anunciando, mas a
pergunta que tantos leitores me fazem (por que que a Morte está
tão presente nos teus livros?) se atravessou no caminho.
Comecei então a ruminar a pergunta; (BOJUNGA, 2008,
p.137).
Após reflexão, conclui-se que esses são os únicos livros em que não há o
consolo da esperança. Em Nós Três um assassinato separa definitivamente os três do
título, restando apenas tristeza, amarguras e arrependimentos. Em O Abraço, cujo tema
é o estupro, a personagem central também é assassinada no fim da narrativa.
96
(...) somente em dois de meus livros a presença da Morte é
sombria o bastante pra não deixar uma brecha – por
pequenininha que seja – ao consolo e à esperança. Foi essa
constatação que, naquele momento, me fez batizar Nós Três e O
Abraço de par sombrio; e foi daquela rede em diante que
sempre penso neles com esse subtítulo. (BOJUNGA, 2008,
p.138).
Reparem que a autora relata que pensa nos livros com esse subtítulo. O acesso
a esse subtítulo nos foi dado por ela mesma, no “Pra você que me lê”. Através desse
canal, com a reedição dos livros pela Casa, somos oficialmente apresentados a essa
denominação. Por aí podemos considerar que a autora se utiliza desse espaço para
realizar esclarecimentos acerca de assuntos que não seriam possíveis de outro modo. A
autora é reservada, avessa a entrevistas, quando as fornece, são curtas. Esse é um espaço
em que ela se sente à vontade, o espaço da escrita. Através desse espaço ela pode se
comunicar e fazer isso da forma que considerar melhor, ficcionalizando esse espaço
inclusive, a exemplo de Retratos de Carolina e O Rio e Eu.
No “Pra você que me lê” de O Abraço, além da abordagem do assunto “par
sombrio”, há uma explanação a respeito da presença tão frequente da morte em seus
livros:
Muitas vezes me perguntam por que que a Morte aparece tanto
nos meus livros, e eu sempre acho curioso que, na maioria das
vezes, os leitores se referem à Morte aparecendo, e não
acontecendo. (...)
Acho até que essas perguntas têm um peso na mania que
peguei: venho me acostumando a pensar na Morte como uma
minha personagem e não como “patrimônio” irremediavelmente
universal. Tanto isso é verdade, que, se agora me perguntam por
que que ela aparece tanto nos meus livros, nem penso duas
vezes pra responder:
- Porque a gente se conhece desde pequena.
- Porque ela me visita sempre.
- Porque eu já briguei muito com ela.
- Porque um dia ela me salvou... (BOJUNGA, 2014, p.86).
A autora prossegue esclarecendo que, ao perceber que essas respostas muitas
vezes não satisfazem a curiosidade de quem perguntou, considera que chegou o
momento de encompridar essas respostas. E o resultado disso é uma narrativa inserida
nessa seção “Pra você que me lê”. Assim como em Dos Vinte 1, presenciamos o
nascimento de um projeto a partir de questionamentos de leitores, isso torna inegável o
desejo de corresponder às expectativas dos leitores, aos seus anseios, aos seus
97
questionamentos, ainda que um modo muito seu particular, nos seus termos. Ela se
dispõe a esclarecer sobre a presença da morte em suas narrativas, contudo o faz por
intermédio de uma narrativa, apropriando-se da Morte com uma personagem, despindo-
a da aura de medo que ela transmite.
Observemos como isso se dá no texto. A autora começa narrando a conversa de
uma vizinha com sua mãe quando ainda era criança. Essa vizinha demonstra
preocupação com a naturalidade com a qual a menina trata o assunto da morte, em suas
brincadeiras:
De fato: eu gostava muito de brincar de morte. Ou melhor, com
a Morte. Tudo que é boneca que eu tinha morria; cachorro, urso
e coelho de pelo fabricado morria também. E toca a fazer
enterro! Muitas vezes os mortos ressuscitavam. E toca a
desenterrar e ver o que tinha acontecido com eles depois de
mortos. Vários morreram afogados na banheira e no tanque de
lavar roupa. Outros, que eu não gostava, ficaram enterrados pra
sempre na terra do quintal e do jardim. (BOJUNGA, 2014,
p.87).
A narrativa prossegue dando continuidade a cada um dos itens levantados
acerca da sua relação com a morte, os quatro são interligados de forma fluida, e
constituem uma narrativa coesa e instigante. Acompanhamos as suas brincadeiras com
os brinquedos que morriam; observamos a chegada da morte de forma concreta através
da tuberculose simbolizada por um tecido preto na porta das casas cujos moradores
estavam doentes, transformando a fascinação da menina em medo; a esse medo soma-
se a perplexidade e a revolta diante do inevitável; experimenta-se a dor da perda de um
ser amado para enfim ser “salva” pela Morte, pois apesar de desejar morrer isso não
ocorre, o que é considerado como um “salvamento”, já que apesar de querer, a morte
não a leva. Aqui temos um paralelo com O Sofá Estampado, em que o personagem
Vitor, escolhe ir com a Morte, mas ela escolhe outro personagem e o leva em seu lugar.
Observemos que a autora ficcionaliza essa relação, A Morte não a escolheu, a salvou.
Da mesma forma que a Morte é personificada em seus textos institucionalizando-se
como personagem, na narrativa de Lygia inspirada em fatos pessoais, a autora se utiliza
de um recurso frequente em suas obras de ficção: o animismo e o simbolismo.
Ao final da seção há a menção ao “Pra você que me lê” de Nós Três,
abordando uma alteração gráfica nos dois livros e uma promessa sobre a tentativa de
imprimir esperança caso a Morte se faça presente em outros de seus livros:
98
Vou te falar ainda rapidinho, isso sim, do Pra você que me lê
que escrevi pro Nós Três – livro que forma com O Abraço o
que batizei de meu par sombrio. Lá eu conto as razoes que me
levaram a repetir aqui, nas páginas inicial e final da narrativa, a
tarja que marca os inícios dos capítulos de Nós Três: pequeno
vínculo visual criado pra simbolizar o luto que toma conta das
páginas do meu par. Lá também eu assinalo a intenção de, no
futuro, caso a Morte se fala outra vez presente nos meus outros
livros, que não o par: deixando brechas para a esperança e a
valorização da Vida. (BOJUNGA, 2014, p.98, grifos da autora)
Interessante notar que o assunto da seção de Nós Três é revelado e o que lá
reparamos é um “espichamento” (tomando de empréstimo uma expressão da autora) do
que já foi aqui posto, ao menos o assunto central: as tarjas pretas que antecedem cada
capítulo dos livros e a dita promessa. Como aqui a menção é breve, reproduzem quase
fielmente o que leremos em Nós Três, algumas linhas são idênticas. As duas seções
abordarem o mesmo assunto, a presença da Morte nos dois textos, o motivo do tema se
fazer presente, a referência às alterações gráficas, os textos se referirem um ao outro,
tudo isso somado a trechos que se repetem em ambos, fortalecem o vínculo entre eles e
reforçam o caráter de “par” pretendido pela autora.
A conexão visual entre os dois livros consiste em uma tarja preta marcando o
início de cada capítulo (figuras 1 e 2). Essa tarja preta faz referência a eventos de sua
infância. Quando o carteiro entregava cartas com uma tarja preta sabia-se que alguém
próximo havia morrido. Essa tarja, portanto, representa o luto e como a Morte paira
implacável sobre esses dois textos sem o conforto da esperança. Optou-se por essa
modificação dos textos originais para que essa característica de “par” transpareça
visualmente. Como os livros reeditados possuem todos a mesma a cor com o intuito de
atribuir-lhes o caráter de “coleção”, como já vimos, essa é uma forma de conectá-los
entre si, distinguindo-os dos outros livros sutilmente, sem desassociá-los da coleção.
Nas palavras da autora:
Ao me lembrar deste fato, resolvi tarjar as páginas que
anunciam os capítulos de Nós Três. E repeti o mesmo sinal de
luto nas páginas inicial e final da narrativa d’o Abraço,
estabelecendo, assim, um vínculo discreto pro meu par.
(BOJUNGA, 2008, p.140).
99
As duas seções finalizam manifestando o desejo de imprimir esperança aos
futuros livros que porventura venham a abordar o tema da morte. Contudo a autora, que
já havia declarado nessas mesmas seções que adotou a Morte como personagem, atribui
a ela um aspecto que ela usualmente atribui aos seus personagens nos textos que
discorre acerca deles: a personagem se impõe a despeito da vontade dela, como se
tivessem vida própria, como a Carolina de Retratos de Carolina, como a Raquel de A
Bolsa Amarela:“Acredito que nos meus próximos livros, quando a Morte se fizer
presente, ela vá deixar brechas para a esperança e para a valorização da Vida, feito ela
deixou em todos os meus livros por onde andou”. (BOJUNGA, 2008, p.140).
Mesmo no momento em que trata de um tópico prático acerca dos livros, a
modificação realizada nas suas reimpressões, esse tópico é atravessado pela
ficcionalidade. No “Pra você que me lê” de Dos Vinte 1 vimos que a autora salienta que
não gostou realmente de nenhum de seus livros e os considera terminados quando se dá
por satisfeita com os personagens, quando considera que eles transpiram vida. A
constituição dos personagens lhe é, portanto, um aspecto de suma importância e
atribuindo aos ditos personagens esse aspecto impositivo que sobrepuja a ela mesma,
ela se desloca da posição onisciente em que o autor se encontra, o detentor do destino de
seus personagens. Ao contrário, ela muitas vezes se faz refém de suas vontades e apenas
transmite aos seus leitores as aventuras vividas por esse ou aquele personagem. Tanto
que no trecho acima ela não garante que a esperança e a valorização da vida ocorram
nos próximos livros, ela acredita que a Morte, vá deixar brechas, não ela, autora.
Além do par sombrio, outras duas seções abordam mudanças nas reimpressões,
as de Angélica e Tchau. Em Angélica ela relata que não reproduziu todas as ilustrações
da publicação original e que em uma delas o desenho foi reproduzido em preto e branco.
Lembremos que a própria declarou em outros textos que Angélica foi uma das
narrativas que ela deliberadamente escreveu para crianças e houve uma considerável
diminuição no número de ilustrações que foram retiradas. A autora comunica que isso
ocorreu mas não fornece maiores esclarecimentos sobre o motivo, relata apenas que
optou por poucas imagens. Seria de se esperar que houvesse uma justificativa, já que
estamos no espaço destinado à comunicação direta com os leitores, contudo não há.
Como é uma seção muito curta, ocupa apenas duas páginas, vamos reproduzi-la:
100
Agora que ANGÉLICA está vindo morar na Casa-editora que
criei pros meus personagens, gostaria de te passar aqui três
comentários pequenos:
1. Quando perguntei pra artista que ilustrou ANGÉLICA por
que que tendo eu escrito que o Porto era uma porco escuro, ele
tinha sido retratado tão colorido e claro, ela me respondeu com
naturalidade que tinha visto e sentido ele assim. E eu, que acho
que as imagens que acompanham um texto não têm que,
necessariamente, interpretá-lo ao pé da letra, aceitei a resposta
com naturalidade...
2. Não estou reproduzindo nesta edição todas as ilustrações que
fizeram parte das primeiras publicações de ANGÉLICA: outra
vez optei por poucas imagens acompanhando meu texto.
3. Na edição original do livro a ilustração que mostra Angélica
voltando pra dentro do ovo era também em cor. Mas eu acho o
“desnascimento” um ato tão descolorido (pra dizer o mínimo)
que, outro dia, telefonei pra Vilma Pasqualini pedindo
permissão pra reproduzir este desenho em preto e branco. Ela
concordou, achando muito natural que eu tivesse uma visão
diferente da dela... (BOJUNGA, 2004, p.154)
Notemos que, ao contrário de destacar a justificativa para a retirada de algumas
ilustrações, a autora defende a questão do ponto de vista. Primeiro, coloca a
representação que a artista faz de Porto, com tons claros ao invés dos escuros descritos
no texto. Depois coloca a mudança da ilustração do “desnascismento”, descolorindo-a.
Isso pode parecer uma tentativa de desviar o foco da aparente questão principal: Por que
retirar ilustrações de um livro voltado para crianças? É possível supor que isso faz parte
do projeto de imprimir aos livros um caráter de coleção, portanto mesmo aqueles que
haviam sido destinados a um público particular inicialmente, nessa nova etapa se
adequam a esse projeto de descolar-se da imagem de “literatura infantil” para se
pronunciar como “literatura”. Deste modo, ao valorizar que há e deve haver diferentes
pontos de vista, ela também valoriza a visão que ela posta sobre sua própria obra, para
ela uma obra destituída de rótulos.
Nesse texto ela considera ainda que as ilustrações não precisam representar
fielmente a obra, e o “Pra você que me lê” de Tchau versa justamente sobre este ponto.
Ressaltamos que o todo o texto dessa seção está em itálico, portanto mantivemos o
estilo da fonte original na citação a seguir:
Bom, isso tudo eu estava aqui pensando e quis te passar, mas,
pra contar a verdade, o que eu hoje tenho vontade é de te
contar por que – agora que eu tenho a minha casa-editora e
posso fazer meus livros do jeito que eu quero – escolhi
101
reproduzir na capa do TCHAU um quadro chamado A
Solitária, do pintor norueguês Edward Munch. (BOJUNGA,
2014, p.12).
Percebamos que a autora salienta a liberdade conquistada com a fundação da
Casa-editora, a liberdade de criar, que lhe foi podada lá em Feito em Mão. É uma
sensação de poder, agora ela pode fazer seus livros do jeito que quiser, sem amarras,
sem pressões da editora, agora ela é a sua própria editora. Não é a primeira vez que esse
espaço é utilizado para sustentar esse conquistado privilégio. Tchau não foi a única
publicação com a ilustração da capa alterada, Seis Vezes Lucas, Nós três, Fazendo Ana
Paz e O Sofá Estampado também tiveram suas capas modificadas, partindo do princípio
da não obviedade, que também se ajusta à capa de Tchau (figuras 3 a 12). Em O Rio e
eu há uma menção a isto:
Da mesma maneira que resolvi usar na capa d’A Cama (livro
que chegou na Casa quase ao mesmo tempo que O Rio e eu)
uma imagem que não seja óbvia, quer dizer, que não seja uma
cama, resolvi também usar na capa deste livro – como símbolo
do Rio – um Cristo que não seja o Redentor do Corcovado.
Além de não querer o óbvio, achei que o Cristo que escolhi
tinha muito a ver com as minhas preocupações ecológicas, cujas
despreocupações tanto vem devastando a Cidade maravilhosa...
(BOJUNGA, 2005, p.94, grifo da autora)
A justificativa para a nova capa de Tchau, além do desejo latente de se afastar
da obviedade, adquire um caráter subjetivo ao se basear na familiaridade. A autora narra
que a primeira vez que se deparou com o quadro se sentiu intrigada e ao mesmo tempo
foi invadida por uma sensação de familiaridade, que a princípio ela não conseguia
distinguir claramente, mas percebeu que aquela imagem a fazia lembrar-se de
personagens há algum tempo esquecidos:
Intrigante, sim, mas a intriga maior que eu sentia era pela
sensação de familiaridade que me tomou, assim que meu olho
bateu na figura solitária. Vasculhei minha memoria: já tinha
visto aquela imagem antes? Não. Não mesmo. Então? por que
essa sensação de familiaridade? E, aumentando ainda mais a
minha intriga, junto com a sensação me invadia também – forte
– a lembrança de alguns personagens que, fazia tempo, tinham
abandonado meu pensamento. (BOJUNGA, 2014, p.12)
102
Os personagens aqui referidos são os personagens dos contos de Tchau. O
encontro com o quadro de Munch evocou esses personagens esquecidos na memória,
contudo só mais tarde ela entende o que provocou essa familiaridade entre a pintura e os
personagens: a solidão. Apesar de distintos, os personagens dos contos carregam a
mesma marca da solidão: a filha que observa a mãe partir para nunca mais voltar; a mãe
perdida em uma paixão querendo ir, mas querendo ficar; a escritora que vive uma vida
solitária dedicando-se exclusivamente aos seus livros; o barco, esperando o seu dono
voltar do sono eterno no fundo do mar. A figura d’A Solitária, de olhar perdido no mar,
sustenta uma aura de solidão, de desalento, e embora a imagem por si só não estabeleça
uma conexão direta com os contos do livro, os leitores acabam por estabelecer essa
conexão também.
Caso seja o primeiro contato com o livro, não haverá estranhamento, pois como
não conhecem o seu conteúdo não possuem dados para ativar essa estranheza, não
conhecem as histórias para logo ao avistar a capa ponderar que ela não representa
precisamente o conteúdo. O “Pra você que me lê” antecede a história, portanto os
leitores já se familiarizam com as impressões que ligam o quadro aos personagens. E
caso os leitores já conheçam as histórias, a sensação de estranhamento logo é dissolvida
com a leitura da seção. Se inicialmente somos acometidos pela estranheza da não
obviedade da ilustração em relação à história já nossa conhecida, somos seduzidos pela
narração do seu envolvimento com a pintura e finda a leitura da seção somos
acometidos pela familiaridade que se apossou de Lygia Bojunga, concordamos
totalmente com a escolha, olhamos para a ilustração com os mesmos olhos. Somos
duplamente contagiados pela sensação de familiaridade: nos sentimos familiarizados
com a solidão que marca a figura e os personagens dos contos e nos familiarizamos com
o ponto de vista da autora, assimilando-o para nós. Estabelece-se assim a conexão.
A seção não se inicia contudo com as conjecturas a respeito do quadro de
Munch:
No meu livro Feito à Mão escrevi uma introdução
chamada
Pra você que me lê
Foi um jeito que procurei pra ir estreitando mais e mais
essa relação pra mim tão gostosa: a que eu tenho com
você que me lê. Então, em Retratos de Carolina, eu quis
escrever de novo um pra você que me lê. Só que, dessa
vez, meu papo com você se misturou com a história que eu
103
estava contando e um passou a fazer parte da outra.
(BOJUNGA, 2014, p.9).
A autora prossegue narrando que nessa reedição de Tchau sentiu vontade de
retomar o diálogo com os leitores e escreve o que lhe veio à mente naquele momento
em que se sentou para escrever a seção. E o que se segue é um libelo ao livro e à leitura.
Ela traça um paralelo entre a amizade e a leitura, exaltando o seu vínculo com as
variadas sensações que a leitura provoca, o mesmo assunto de Livro: um encontro.
E tem gente como eu: em qualquer fase da vida não abre mão,
mas não abre mesmo, de ter sempre por perto o tal amigo pra
valer: LIVRO. Mesmo porque ele é o único amigo que nunca
cria caso pra ficar com a gente, seja onde for: sala, quarto,
banheiro, cozinha, sombra de árvore, areia de praia, fundo de
sofá, fundo de mágoa; e fica junto da gente mesmo no pior
lugar do ônibus, do trem, do avião; enfrenta até numa boa
cadeira de dentista e leito de hospital. E, se quem escreveu o
livro consegue mexer com o nosso pensamento e balançar a
nossa imaginação – pronto! aí se forma uma relação, um laço,
que amarra pra valer quem escreve com quem lê (BOJUNGA,
2014, p.10)
Logo após esse trecho ela manifesta a sua perplexidade com relação àqueles
que se interessam somente por livros que são novidade, que se sobressaem na mídia e
perdem o interesse por eles após algum tempo. Para ilustrar esse ponto ela narra ainda
um episódio que viveu com uma menina sua vizinha de oito anos. A garota se aproxima
dela manifestando o desejo de iniciar uma amizade mas logo depois declara que não
quer mais ser sua amiga, pois já não era mais novidade.
Esse assunto é interrompido bruscamente por um trecho transcrito
anteriormente em que ela assume que não era esse o assunto que a levou a escrever essa
seção e sim a escolha do quadro A Solitária para a capa do livro. Isso provoca um
estranhamento maior do que a aparente discrepância entre a capa e o conteúdo. Se não
era esse o assunto pretendido por que então abordá-lo? Parece-nos uma postura de
contestação ao momento em que vivemos na atualidade, uma modernidade líquida,
como nos ensina Bauman, que não se sacia, que rapidamente se cansa do trabalho, do
relacionamento, dos produtos que consome e está sempre em busca do novo: “As modas
vêm e vão com velocidade estonteante, todos os objetos de desejo se tornam obsoletos,
repugnantes e de mau-gosto antes que tenhamos tempo de aproveitá-los” (BAUMAN,
2003, 145).
104
Torna-se cada vez mais claro que estas seções se constituem como mais um
espaço para transmitir as suas crenças. Mais um porque suas narrativas são o espaço
primário para a propagação das suas ideias. Nelas aborda todos os temas que lhe são
caros: desigualdade social, preconceito, poluição, morte... Contudo no espaço “Pra você
que me lê” esses temas são discutidos abertamente em um formato de diálogo aberto e
dessa forma a autora se posiciona firmemente com relação ao que acredita. Os leitores
se sentem lisonjeados ao constatarem que a autora está ali expondo suas opiniões
pessoais e se sentem, mais uma vez conectados com ela. Isso garante uma atenção maior
à mensagem que deseja transmitir.
Verificamos que a autora preza a liberdade de fazer os seus livros da forma que
quiser. Em Aula de Inglês essa liberdade de escolha é transferida aos leitores,
conferindo-lhes mais uma vez o papel de co-autores da trama, dessa vez optando de
forma concreta entre dois finais e o Pra você que me lê deste livro ilumina esse ponto:
Aqui venho de novo conversar contigo, neste espaço que é só
nosso, pra te contar que na etapa final deste meu trabalho fiquei
sem saber qual dos dois epílogos que eu tinha escrito pro livro
eu devia escolher pra encerrar Aula de Inglês. Os dois fecham a
história mais ou menos da mesma maneira; já um tempo
razoável decorreu desde a última cena do livro e as feridas
passionais abertas nos meus personagens estão praticamente
cicatrizadas.
Mas deixa eu te contar: lendo os dois epílogos (como já te disse
antes num outro Pra você que me lê, eu sempre gostei de
epílogos), concluí que quem devia escolher este ou aquele é
você.
Então, aqui te deixo os dois momentos em que o Professor fica
ciente do que aconteceu com Teresa Cristina depois que os dois
se separaram lá em Londres. Quero que você fique com o
momento que preferir. (BOJUNGA, 2006, p.213)
É o jardim de caminhos que se bifurca e induz o leitor a optar pelo caminho
que prefere seguir (ECO, 1994). Em Lector in Fabula, Umberto Eco compara o texto
narrativo a um jogo de xadrez:
O que faz o leitor? Tem à sua disposição a forma do tabuleiro,
as regras do xadrez e uma série de movimentos clássicos
registrados pela enciclopédia do enxadrista, as verdadeiras e
próprias encenações das diferentes partidas, consideradas por
tradição entre as mais proveitosas, as mais elegantes e as mais
econômicas. Tudo isto em conjunto (forma do tabuleiro, regras
do jogo, encenações de jogo) equivale à rede ferroviária do
exemplo anterior: representa um conjunto de possibilidades
105
permitidas pela estrutura da enciclopédia enxadrística. Nesta
base, o leitor prepara-se para configurar a própria solução.
(ECO, 2008, p.97).
Aqui essas possibilidades são apresentadas de forma concreta, e é dado ao
leitor a oportunidade de optar precisamente por um ou outro caminho, um ou outro
final. Aula de Inglês narra a paixão de um professor de inglês, um homem já com uma
idade avançada, por sua aluna. Próximo ao desfecho da história, a aluna, chamada
Teresa Cristina, pede que ele a esqueça e não a procure mais. Nos dois epílogos
passaram-se dois anos, o professor recebe notícias de Teresa Cristina e em ambos o seu
destino é o mesmo. O que os diferencia é a fonte das notícias: no primeiro a própria
escreve a ele e no segundo ele tem notícias de Teresa Cristina através de seu pai, que o
professor encontra por acaso em uma livraria. Nossa escolha recai, portanto, entre um
final positivo e outro melancólico. Como a própria aluna pediu que não a procurasse e a
despeito disso tenha resolvido entrar em contato novamente, isso acalenta o coração do
professor e também o nosso. Ao menos ela não guardou rancor e enviar notícias se
configura como um sinal de carinho. Optando pelo segundo final, ao contrário, optamos
pelo prevalecimento da amargura e da desesperança, afinal ela nunca mais entrou em
contato mesmo e talvez tenha afastado as lembranças do professor de sua mente para
sempre, não restou nenhum sentimento de carinho.
Recordamo-nos de um livro chamado O Noivo da Princesa, de William
Goldman, uma paródia de contos de fadas. No fim do livro os dois amantes estão
fugindo do tirano marido da moça em uma fuga que parece otimista quando nas últimas
linhas tudo dá errado e eles estão prestes a ser capturados. Nesse momento o narrador
interrompe a narrativa e oferece ao leitor o direito de escolher o que aconteceu: eles
conseguiram escapar ou não. Após toda uma narrativa em que somos envolvidos por
aquela história de amor tanto em Aula de Inglês como em O Noivo da Princesa, parece
difícil, quase impossível que algum leitor opte pelo final negativo. Recordamos da
sensação que nos invadiu ao nos deparar-nos com esse final incompleto de O Noivo da
Princesa. Por mais que o narrador nos acalentasse afirmando que poderíamos optar pelo
final feliz, ele não estar ali posto provoca uma sensação de incerteza, de angústia.
Desejávamos o final feliz, mas seria muito melhor se o autor o tivesse sacramentado
assim para acalentar nossos corações com a certeza de que após tantos percalços, tantos
anos separados, os dois namorados ficassem juntos. O mesmo se dá em Aula de Inglês,
de forma ainda mais complexa, já que mais do que apontar duas possibilidades, as duas
106
estão postas, as duas foram idealizadas, escritas e publicadas e a escolha se converte em
uma torcida por um final mais agradável. Torcemos para que o final seja o primeiro e
não o segundo, mas nunca nos decidimos, nunca optamos de fato.
Para finalizar esse capítulo tomemos o “Pra você que me lê” de Querida, sua
última publicação até o momento. Antes, faz-se necessário um esclarecimento acerca do
final do livro, já que a seção se refere a isso. Vimos que Pollux fugiu de casa e abrigou-
se na casa de seu tio Pacífico, a quem não conhecia. Vinte anos depois desse encontro
Pollux, um escritor consolidado, lê no jornal a notícia da morte de Ella, e viaja até
Retiro em que o tio mora para visitá-lo. Eles conversam e Pollux, que até o momento só
escrevia sobre suas viagens, manifesta o desejo de ir até o Piauí, terra da Velha e do Bis,
concentrar suas andanças pelo interior do Brasil e escrever sobre a pobreza que assola o
nosso país. Observemos as linhas finais da narrativa:
- Gostei muito da tua visita, Pollux; me senti muito bem
conversando contigo... te ouvindo... Foi uma ótima ideia você
ter vindo, obrigado.
- Quem tem que agradecer sou: esse nosso encontro, pra mim,
foi tão importante quanto o primeiro.
Se abraçaram. Longa e afetuosamente. O Pollux seguiu pro
carro. O Pacífico fechou o portão de ferro e desceu o caminho
de pedra. (BOJUNGA, 2009, p.231)
Ao terminarmos de ler o último capítulo, com a despedida de Pollux e Pacífico,
consideramos que este seja o fim da história, contudo a seção contraria isso:
Ao botar um ponto final nessa página aí atrás que você acabou
de virar, eu me demorei seguindo mentalmente o Pacífico
descer o caminho de pedra. Quando, afinal, a imagem se apagou
dentro de mim caí em estado de... empacamento verbal,
digamos assim: perdi vontade de conversar com você ou com
qualquer outra pessoa. De modo que só vim pra te contar que
eu não sei se o Pollux chegou a se encontrar de novo, já não
digo com a Velha: ela estava muito velha quando embarcou de
volta pra cidade natal, mas com o Bis. Da mesma maneira que
não sei se o Pollux chegou a escrever a história da pobreza que
encurralava aquela dupla e tantas mais. (BOJUNGA, 2009,
p.232)
Somente a partir do “Pra você que me lê” descobrimos que o livro não havia
terminado, contudo se não houvesse essa seção esse final nos satisfaria plenamente, ele
inclusive lembra a despedida dos dois quando Pollux ainda era criança, eles se abraçam
e o abraço sela a despedida. Essa ressonância colabora para a satisfação desse final, soa
107
como um ciclo, os dois se abraçam, se despedem, o círculo continua até que os dois se
reencontrem, conversem, se abracem e se despeçam. Contudo a seção “Pra você que me
lê” contraria essa ideia, propondo que houve um bloqueio criativo após a despedida dos
dois personagens e lançando questões que não serão respondidas: o Pollux voltou a
encontrar o Bis? Escreveu um romance contando essa história? Não eram questões que
nos assombravam antes, mas a partir do momento em que foram levantadas passaram a
nos perturbar.
Essa seção, portanto, gera perturbações, longe de garantir o fechamento da
história, ao contrário, abre brechas onde aparentemente não havia. Logo a seguir a
autora nos fornece algumas pistas sobre o destino do personagem, envoltas em uma aura
de verossimilhança, como se aqueles fatos realmente tivessem ocorrido e ela estivesse
transmitindo aos leitores rumores que ouviu a respeito de Pollux:
O que eu sei é que, depois de alguns meses do Pollux e da
Lorena viverem juntos pra-sempre, ela entrou em crise (não
estou segura se foi crise de ciúme ou de solidão): não aguentou
mais ver o Pollux sempre agarrado com um novo livro. E foi
viver com um outro que, em matéria de literatura, se
contentava, feito ela, em ser leitor...
Sei também, e disso tenho certeza absoluta, que, um belo dia, o
Pollux recebeu uma correspondência inesperada: o testamento
do pacífico legando o Retiro a ele. (BOJUNGA, 2009, p.233)
Contudo essa tentativa de gerar verossimilhança contraria o início da seção,
que se abre justamente com os bastidores da escrita, são aspectos contraditórios. Um
espaço que se destina ao diálogo com os leitores gera perturbações e os lança no terreno
do indecidível. É em uma escala menor que em Retratos de Carolina, mas é uma
transgressão semelhante. A autora propõe um jogo aos leitores e a eles é dado o prazer
de jogar, seja participando como co-autores do processo, seja simbolizados pelo
Lourenço, seja como interlocutores de um diálogo, seja como motivadores de projetos
de escrita. Mas aos leitores de Lygia Bojunga nunca lhes é dado um papel passivo, eles
têm participação ativa é cumprem papel fundamental em suas narrativas.
108
3. PERFORMANCES EM CENA
Após o retrato “Carolina aos vinte e cinco anos”, a narrativa é interrompida e
abre-se uma segunda parte. Essa segunda parte, por sua vez, divide-se em duas: uma
intitula-se “Pra você que me lê” e a outra consiste no último retrato da personagem,
“Carolina aos vinte e nove anos”. O trecho destacado inicia essa segunda parte. Segunda
parte sem uma primeira. Somente somos informados de que o livro se divide em duas
partes quando se abre uma segunda. Quebra de expectativa. A narração fluía em terceira
pessoa, os fatos narrados obedeciam a uma ordem cronológica, com poucas digressões.
Do ponto de vista formal, até este momento encontramo-nos diante de uma narrativa
convencional. Não tínhamos conhecimento de que havia uma segunda parte, então
quando esta irrompe, seu nome pulsando em uma folha avulsa, a expectativa de que a
narrativa continuaria a fluir como até então se quebra. Como se quebra também a
expectativa de que a seção que se abre, “Pra você que me lê” será um espaço de diálogo
entre o autor e o leitor, o que não ocorre. O leitor então se vê convidado a participar de
um processo de (des)contrução textual:
Na verdade, o ato de dar ao leitor um texto não desejado por
ele, caso do diário, ou um texto que se faz pelo que não é, caso
do livro, tem como objetivo principal provocar um “curto
circuito” no momento da leitura, acabando por se converter em
ganho para o leitor. Por resultar esse curto-circuito na
iluminação dos bastidores do texto, desvelando seus
mecanismos de funcionamento, ao leitor é dado participar do
processo de (des)construção textual, podendo cumprir,
mediante o abandono da sua cômoda posição de mero
observador, a função de operador e articulador da matéria
significante que lhe é proposta. (MIRANDA, 1992, p.142).
Tanto o título da seção quanto os três primeiros parágrafos levam o leitor a crer
que a voz que se enuncia é da própria autora. Neles, a voz refere-se ao livro Feito à
Mão, publicado três anos antes de Retratos de Carolina, refere-se ao próprio Retratos e
à inauguração da própria seção que estamos lendo, concebida no Feito à Mão. Essas são
referências extra-textuais, às quais temos acesso. Além da referencialidade há a
iluminação dos mecanismos de funcionamento do texto: menciona-se que esta seção,
em livro anterior, abria a narração e neste irrompe quase ao fim. Essa é uma estratégia
que interfere no funcionamento do texto, e a exposição da escolha de posicionamento de
um determinando trecho neste ou naquele ponto da narrativa objetiva compartilhar com
109
o leitor desse processo que usualmente fica nos bastidores. Por tudo isso, a identificação
dessa voz com a do autor empírico é natural, já que estão presentes não somente a
referencialidade a elementos extra-textuais, como também o desvelamento do processo
criativo.
Mas a crença de estarmos em contato com a perspectiva da própria autora
dissolve-se imediatamente com a interrupção de Carolina. Se esta é uma personagem
criada pela imaginação de Lygia, como poderia esta travar um diálogo concreto com a
outra? Por outro lado, não podemos negar que os fatos referenciados coincidem com a
sua biografia, assim como os esclarecimentos sobre os mecanismos do texto são
claramente identificáveis com a voz do autor. Como resolver então esse dilema?
Convocaremos o auxílio do conceito de Diana Klinger e de Wander Melo
Miranda para tentar elucidar essa questão. Em seu livro Escritas, escritas do outro: o
retorno do autor e a virada etnográfica, Klinger reformula o conceito de autoficção, e
apesar deste aplicar-se, no texto de Diana, aos gêneros que oscilam entre a autobiografia
e a ficção, é possível aproveitar o seu argumento em nossa tarefa.
A autora considera a autoficcção
como uma narrativa híbrida, ambivalente, na qual a ficção de si
tem como referente o autor, mas não como pessoa biográfica, e
sim o autor como personagem construído discursivamente.
Personagem que se exibe “ao vivo” no momento mesmo de
construção do discurso, ao mesmo tempo indagando sobre a
subjetividade e posicionando-se de forma crítica perante os seus
modos de representação. (KLINGER, 2007, p. 62)
O livro analisado não é autoficção, já que o cerne principal da narrativa é a
história de Carolina, mas na segunda parte, como vimos, há essa ambivalência entre a
figura do autor e do narrador. Não é a primeira vez que isso ocorre na obra de Lygia,
como assinalamos no primeiro capítulo. Conforme observamos, em Livro: um encontro,
há uma confusão de limites entre a voz do autor e do narrador, diversas pistas apontam
para a identificação de um com o outro, mas ainda assim é um texto ficcional. Essa
ambiguidade ocorrerá ainda em Fazendo Ana Paz, Paisagem, Feito à Mão e O Rio e
Eu.
Este último aborda a relação (afetuosa, conflituosa) entre a narradora e a cidade
do Rio de Janeiro. Mais uma vez deparamo-nos com a presença de elementos que se
identificam com a biografia de Lygia Bojunga: a infância no Rio Grande do Sul, a
110
mudança para o Rio de Janeiro, a incursão no teatro, a morada em Londres e em Santa
Teresa. A respeito de dois livros que se situam no limite da ficção e da autobiografia,
Klinger escreve: “Os elementos identificadores dos narradores destes dois romances não
deixam dúvidas sobre as semelhanças com o autor, de maneira que, a princípio,
pareceria possível uma aproximação com a ficção autobiográfica” (KLINGER, 2007,
p.58). O mesmo ocorre em O Rio e Eu. À primeira vista acreditamos estar diante de um
relato autobiográfico. Não há uma indicação clara, mas as coincidências entre os fatos
vividos e os narrados apontam para essa conclusão.
Em contrapartida, do mesmo modo que em Livro: um encontro, há diversos
aspectos em O Rio e Eu que remetem à sua ficcionalidade. O principal deles é a
personificação da cidade do Rio de Janeiro. A narradora trava um diálogo com o Rio,
como se este fosse de carne e osso.
O livro se divide em quatro partes: “O anúncio”, “Papo com o Rio”, “Carta de
Santa Teresa” e “Papo outra vez”. Dessas, somente na primeira não há esse diálogo
imaginário com a cidade do Rio de Janeiro, nos outros três a narrativa transcorre com a
cidade como interlocutora:
Essa pausa que eu dei agora foi porque eu me distraí lembrando
que forte que era esse estar perto de você; e que mais forte que
ficou quando eu te vi pela primeira vez. (...)
Então, no dia seguinte da nossa chegada, a minha mãe
comentou no hotel (aquele que você tinha, o Avenida, que dava
pra Rio Branco e pro Largo da Carioca) que eu nunca tinha ido
à praia. Recomendaram o Leblon.
Lembra só o Leblon que você era naquele tempo? (RE, p.32)
De que modo esse diálogo poderia se materializar, se não por vias ficcionais? É
possível argumentar que um diálogo com o Rio de Janeiro poderia existir sim, na
imaginação. Não é o que fazemos quando escrevemos um diário? Nos dirigimos a um
“eu” imaginário? O mesmo poderia ocorrer aqui. Entretanto, a narradora imprime à
cidade características que se aproximam das características de seres humanos,
envolvendo traços da personalidade e aspectos físicos:
Esse teu lado violento, que antes aparecia pouco, foi se
mostrando mais e mais. Eu me encolhia. E sofria de não confiar
mais em você.
Alguns dos teus traços fisionômicos que eu sempre amei demais
agora espantavam o meu olho, de tanto que me pareciam
alterados, degradados. Os teus morros, por exemplo (e
111
quantos!), se despiam de tudo que é árvore pra se vestir de
barraco, testemunhando a injustiça social que não-era-pra-ser-
mas-é, a miséria que não-podia-existir-mas-existe. (RE, p.40).
A citação acima, isolada do contexto, não oferece nenhuma pista de que o alvo
da desconfiança é uma cidade e não uma pessoa. Isso porque são imprimidas à cidade
características humanas. Mais uma evidência de que estamos lendo um texto de ficção.
O recurso do animismo, inclusive, é frequentemente utilizado pela autora em outros de
seus livros, como constatamos no primeiro capítulo.
Retomando a citação anterior de Diana Klinger, a narrativa O Rio e Eu, é
híbrida, ambivalente, na medida que em nos lança em um terreno ambíguo, oscilando
entre o referencial e o ficcional. O autor funciona como referente, não como pessoa
biográfica, mas como personagem construído.
Para Diana,
o texto autoficcional implica uma dramatização de si que supõe,
da mesma maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito
duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e
personagem. Então não se trata de pensar, como o faz Phillipe
Lejeune, em termos de uma “coincidência” entre “pessoa real” e
personagem textual, mas a dramatização supõe a construção
simultânea de ambos, autor e narrador. Quer dizer, trata-se de
considerar a autoficção como forma de performance.
(KLINGER, 2007, p.53)
Voltando a Retratos de Carolina, ao abrir-se a seção “Pra você que me lê” com
uma voz que identificamos com a voz da autora, para logo depois presenciarmos o
embate da personagem criada pela imaginação da autora com a própria, estamos de
diante da dramatização de si evocada por Klinger. Assistimos ali, “ao vivo” à
construção simultânea da autora e da narradora, o sujeito da escrita, enquanto autor e
narrador, constrói-se como personagem de si mesmo, transforma a si mesmo em matéria
literária.
Ainda de acordo com Klinger, a dramatização de si mesmo pelo sujeito da
escrita compara-se “à arte da performance na medida em que ambos se apresentam
como textos inacabados, improvisados, work in progress, como se o leitor assistisse ‘ao
vivo’ ao processo da escrita” (KLINGER, 2007, p.56). A narrativa de Carolina é
interrompida e uma suposta conversa com o leitor esparrama-se diante de nossos olhos.
112
Esse suposto diálogo, por sua vez, é interrompido pela personagem Carolinaao invadir o
espaço da “autora” para pedir-lhe que escreva mais um ou dois “retratos” de sua vida.
O efeito de real produzido pela referencialidade evocada pelos primeiros
parágrafos da seção é atravessado de ficcionalidade, arrastada pela intromissão da
personagem Carolina no discurso. Essa bivalência reflete o duplo instaurado pela voz
que narra: autora e narradora, real e fictício. Uma ambiguidade que nunca se resolve, e
nem se quer resolver, afinal esse é o encanto do texto, “re-envio incessante em um lugar
impossível e inacessível” (Doubrovsky, 1988, p.70), nunca decidível, sempre bivalente,
ambíguo, andrógino.
O diálogo entre criatura e criadora é recheado de referências ao retrato
fotográfico. Carolina queixa-se de que todos os seus retratos são negativos:
Bom, pra ser bem franca: eu não me conformo da gente se
separar assim: só deixando retratos negativos de mim.
- Negativos?
- Então não são?
- Não mesmo! Eu te retratei estudiosa, corajosa, criativa; eu te
fiz valorizar uma coerência com mesma, uma...
- Você pode até ter me feito uma pessoa legal, como você diz,
mas os retratos que você fez de mim são todos negativos. (...)
Ora, francamente, você tem mais é que concordar comigo: teus
retratos são uma sequência de negativos. (RC, p. 165)
A palavra “negativo”, adquire ambiguidade, tanto pode significar o oposto de
positivo, como pode se referir aos negativos de um retrato. Nesse contexto, dado que
Carolina não está satisfeita com a sua história, é a primeira opção que nos vem à mente
a princípio. Todavia, a clara referência ao retrato fotográfico no título e as semelhanças
entre o texto e o retrato analisadas no segundo capítulo deste estudo nos levam a uma
aproximação com o negativo de uma fotografia.
A ambiguidade, no entanto é apenas aparente. Vejamos: consultando uma
enciclopédia em busca do verbete “positivo”, encontramos, dentre outras que não se
aplicam aqui, a seguinte explicação: “Cópia positiva, o mesmo que POSITIVO. // Prova
(ou imagem) positiva aquela em que as luzes e as sombras correspondem às do original,
ao contrário da negativa, em que elas aparecem invertidas” (GRANDE
ENCICLOPÉDIA LARROUSSE CULTURAL, 1988, pg. 4828). Ora, isso dissolve a
ambiguidade. Sabemos que quando Carolina questiona a negatividade da sua história,
está se referindo uma vida repleta de frustrações, decepções e tristezas. Esses são
aspectos negativos da sua vida. Por outro lado há também diversos aspectos positivos
113
em sua história: um pai presente, amigo; uma personalidade corajosa; o talento natural
para a arquitetura.
Essa oposição, aspectos positivos versus aspectos negativos é refletida na
oposição positivo / negativo fotográfico. O positivo é a foto que reproduz a imagem
capturada, e o negativo é uma imagem desfocada, invertida. Para Carolina, sua vida é
como um negativo fotográfico, sem cor, e seu desejo é que esta seja positiva, colorida.
A oposição de cores é outra que figura no texto: “Eu concordo com você
Carolina, a Priscilla e a família dela davam um monte de retratos coloridos. Mas eu
estava a fim de preto e branco, o que que eu posso fazer?” (RC, p.166). É a mesma
analogia dos positivos e dos negativos. Uma vida em preto e branco é uma vida triste, já
uma vida colorida é alegre e feliz.
Retomando a oposição entre luz e escuridão presente na primeira parte,
imprimimos um novo significado a essa oposição entre o positivo e o negativo
fotográfico. Para que os negativos se tornem fotografia (tornando-se assim positivos)
precisam ser revelados. E onde são revelados? Na escuridão. A vida de Carolina
somente entrará nos eixos depois de atravessar a escuridão, para que haja um retrato
positivo, foram necessários os negativos, com toda a ambiguidade guardada pelo termo.
Após a recusa de criar outros retratos que satisfaçam o seu desejo de felicidade,
a narradora-autora abandona sua personagem no local da discussão e segue para a
cidade do Rio de Janeiro com o objetivo de retomar a criação de um novo personagem
que está trabalhando.
Nesse ponto o narrador em primeira pessoa passa a ser a própria personagem
Carolina:
Ela foi s’embora e me deixou aqui. Melhor que tivesse me
deixado na Boa Liga: lá a gente olha de cada janela e só tem
verde-que-te-quero-verde:montanha, vale, floresta; é um lugar
retirado, estradinha de terra, ainda não tem poluição visual. Mas
aqui? Eu chego na janela e o meu olho de arquiteta tropeça logo
num horror qualquer de tijolo e cimento. (RC, p.170).
Temos, mais uma vez, assim como em Fazendo Ana Paz, a ficção se
autodesnudando como ficção. Lá, a narradora materializa-se dentro da própria história.
Aqui isso também ocorre, mas a extrapolação é ainda maior. No início da segunda parte
acreditamos que a voz que se enuncia é da própria autora. Logo depois, esta trava um
diálogo com a sua própria personagem, ou seja, a autora materializou-se dentro da
114
própria história também. E ainda, essa personagem passa se enunciar em primeira
pessoa, através de um diário. Como se não bastasse, ela toma para si um personagem
que sua criadora estava delineando, o Discípulo, e este passa a habitar os seus sonhos.
Tudo isto no âmbito ficcional. O Discípulo é ficção, Carolina é ficção e a narradora é
ficção. Todas essas vozes, todo esse artesanato é manuseado pela autora empírica, Lygia
Bojunga.
A aparente confusão de limites, os evidentes traços autobiográficos, a
alternância de vozes, o desdobramento em camadas, são recursos discursivos operados
pela autora, e nos fazem retornar a Diana Klinger:
A autoficção é uma máquina produtora de mitos do escritor, que
funciona tanto nas passagens em que se relatam vivências do
narrador quanto naqueles momentos da narrativa em que o autor
introduz no relato uma referência à própria escrita, ou seja, a
pergunta pelo lugar da fala (O que é ser escritor? Como é o
processo da escrita? Quem diz eu?). Reconhecer que a matéria
da autoficção não é biografia mesma e sim o mito do escritor,
nos permite chegar próximos da definição que interessa para
nossa argumentação. (KLINGER, 2007, p.51).
Vivenciamos, nesta seção, a pergunta no lugar da fala. Não é a narração da
história de Carolina que está em pauta, mas os questionamentos a que se refere Klinger.
O que é ser escritor? É contar uma (boa) história? É escrever um diário? Se eu exponho
os meus mecanismos de funcionamento continuo atuando como escritor ou estou agindo
como cópia de mim mesmo? Estou escrevendo autobiografia? Ou Ficção? Como
funciona o processo de escrita? Que mecanismos eu utilizo? A partir do momento que
exponho o meu processo criativo, de quem é essa voz que narra? Minha, do autor
empírico? Do narrador que criei? Do personagem que criei de mim mesma? A partir do
momento que dou voz ao meu personagem, qual faceta está sendo desvendada? “Pra
você que me lê” é a exposição “viva” desses questionamentos, aqui, eles são matéria
literária.
Trabalhemos um pouco com o conceito de “mito do escritor”, referido por
Diana Klinger: “A autoficção participa da criação do mito do escritor, uma figura que se
situa no interstício entre a ‘mentira’ e a ‘confissão’”. (KLINGER, 2007, p.51)
E ainda:
O conceito de performance deixaria ver o caráter teatralizado da
construção da imagem de autor. Desta perspectiva, não haveria
115
um sujeito pleno, originário, que o texto reflete ou mascara.
Pelo contrário, tanto os textos ficcionais quanto a atuação (a
vida pública) do autor são faces complementares da mesma
produção de uma subjetividade, instâncias de atuação do que se
tencionam ou se reforçam, mas que, em todo caso, já não
podem ser pensadas isoladamente. (KLINGER, 2007, p.54)
Essa dramatização de si extrapola os limites em Livro: Um Encontro com
Lygia Bojunga, já que a primeira parte do livro, “Eu te lendo” consistia de fato em uma
apresentação teatral e somente mais tarde publicada em formato de livro, com o
acréscimo de uma segunda parte, “Eu te escrevendo”, que posteriormente também
passou a integrar as apresentações.
Conforme citação anterior, Diana Klinger argumenta que a dramatização de si
supõe um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, o ator é o sujeito real e o
sujeito fictício é o personagem que ele representa. Na autobiografia a configuração é
semelhante, sendo que nela o autor é o sujeito real. Contudo, Livro: um encontro
transgride esse formato na medida em que o sujeito real é autor e personagem ao mesmo
tempo, já Lygia Bojunga é ambas, autora e atriz de um discurso em que a própria
interpreta a si mesma. Já vimos que Diana Klinger compara a autoficção com a arte da
performance, ne medida em que ambos se apresentam como textos inacabados e o leitor
assiste “ao vivo” ao processo da escrita. (KLINGER, 2007). Em Livro: um encontro,
essa construção “ao vivo” ocorre em dois planos, no plano da escrita, na medida em que
nós leitores observamos essa construção simultânea de autor e narrador; e no plano da
performance, no momento em que Lygia no palco opera essa construção simultânea de
autor e narrador literalmente ao vivo, no palco. Assim sendo construção dupla é
ampliada na medida em que a personagem que a autora interpreta de si mesma vai
sendo construída no palco.
O tempo da escrita é anterior ao tempo da leitura, portanto os leitores observam
a operação de uma construção simultânea de autora e personagem que não ocorre
simultaneamente ao tempo da leitura. Nós leitores observamos no nosso tempo posterior
aquele jogo de construção sendo operado, contudo esse jogo foi construído em um
tempo anterior. No palco, por mais que o texto já tenha sido escrito anteriormente ao
tempo da apresentação, a performance ao vivo revigora essa construção e o público tem
a possibilidade de observar esse jogo de simultaneidade sendo operado diante de seus
olhos, em tempo real. A autora está lá enquanto autora, enquanto narradora, enquanto
116
atriz, enquanto personagem, todos esses papéis fundidos durante a representação e a
plateia de fato testemunha essa construção simultânea de sentidos.
Conforme observamos no primeiro capítulo, Fazendo Ana Paz narra o processo
de construção da história da personagem título, oscilando entre o real e o referencial. A
narrativa se constrói com falhas e muitos vazios não são preenchidos. Contudo a
história de Ana Paz é a narrativa secundária, a narrativa principal é o processo de
criação de história. Lá em Livro: em encontro, observamos que na seção “Eu te
escrevendo” o primeiro encontro da autora com a escrita se dá através dos exercícios de
caligrafia, que apesar de ser o seu prazer primeiro no contato com a escrita é um ato
mecânico, cujo objetivo é a forma pela forma. Aqui em Fazendo Ana Paz o processo de
criação da narrativa é comparado à construção de uma casa. Após a Velha anunciar sua
viagem para a casa de sua infância a narrativa fica em suspenso e narradora se ocupa de
elaborar a casa:
Eu fiz ela toda de sobras. Uma sobra da casa do meu avô, outra
da casa da minha tia, outra do apartamento da minha professora
de inglês, que repartia a nossa hora de aula na metade antes do
chá e na metade depois do chá. De cada morada eu tirava um
pedaço, pra ir levantando a casa onde as minhas três mulheres ia
se encontrar.
Fui gostando tanto de fazer a Casa que, em vez de ir pra mesa
escrever, eu ficava me balançando na rede, trazendo pro meu
estúdio uma porta da minha vó. Parava de fazer a Casa e ia
plantar no pátio um pé de jasmim que tinha no jardim da minha
prima; botava num quarto da Casa o guarda-roupa de espelho
na porta que um dia eu encontrei num quarto de hotel; botei até
na cozinha uma torneira que sempre pingava lá na casa onde eu
me criei. (FA, p.25)
A partir desse trecho é possível inferir que esse processo foi longo e transmite a
sensação de que vários dias se passaram enquanto a criação da casa se desenrolava. Esse
tempo em suspenso desacelera a narrativa. Durante o tempo em que o foco da narração
são os bastidores da escrita, esse tempo é desacelerado. Em uma de suas comparações
do texto ficcional com um bosque, Umberto Eco pondera:
Vamos a um bosque para passear. Se não somos obrigados a
sair correndo para fugir do lobo ou do ogro, é uma delícia nos
demorarmos ali, contemplando os raios do sol que brincam por
entre as árvores e salpicam as clareiras, examinando o musgo,
os cogumelos, as plantas rasteiras. Demorar-se não quer dizer
117
perder tempo: com frequência, a gente para a fim de refletir
antes de tomar uma decisão. (ECO, 1994, p.56).
A narrativa de Fazendo Ana Paz, toda fragmentada e entrecortada pelo
desenrolar do processo de produção da história em questão, é desacelerada nesses
momentos para salientar que esse processo demanda tempo, trabalho e dedicação.
A elaboração da casa a isso, em duas dimensões: a construção de uma casa demanda um
tempo longo, tem muitos detalhes, é algo trabalhoso e cansativo. Este livro ilustra o
trabalho que uma história demanda para ser construída; a construção remete ao trabalho
braçal, e vimos que para Lygia Bojunga, aquela que quando criança se divertia com a
construção das palavras, o processo da escrita, que ela prefere ser à mão, com lápis e
borracha, é um processo também manual. Através dessas inferências em que o fazer
literário vem à tona, Lygia possibilita um passeio pelo seu bosque literário nos guiando
através dos caminhos do texto.
Esse tempo de “construção” da casa é equivalente à viagem de avião da Velha,
que percorre o trajeto Rio de Janeiro/Rio Grande do Sul. Apesar de ser uma viagem
razoavelmente longa, não se iguala ao tempo real de construção de uma casa, como
vimos, são tempos diferentes. Ao chegar na casa, a Velha senta-se em uma cadeira para
descansar e a Moça-que-se-apaixonou-pelo-Antônio se aproxima desculpando-se pela
demora, justificando que se perdeu da Ana Paz, a menina do início da história. Após
esse momento em que a narradora descobre que as três são a mesma e objetivo da
viagem da Ana Paz é resgatar a si mesma, a narradora guia a personagem até o quarto,
onde é assaltada por lembranças de quando era menina. Contudo essa lembrança
começar a desenrolar como um diálogo entre as duas Anas, a idosa e a menina:
- Pai! Pai!
Era a voz da Ana-Paz criança chamando. E a Ana Paz-velha
ficou olhando pra ela-mesma-ali-criança-chegando.
Que bom que elas tinham afinal se encontrado.
E feito coisa que elas tavam recém se conhecendo, a menina
começou a passar informações pra velha:
- O meu pai me ensinou a fazer conta. Ontem a gente contou
que faltam quatro meses pr’eu fazer oito anos. O meu pai é que
corta minha unha. Do pé e da mão. É ele que me penteia
também. Quase sempre no domingo. É quando ele tem mais
tempo. Hoje é dia. Paaaai!
A Velha se virou querendo ver o Pai chegar.
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E eu fiquei esperando. Esperando. Esperando esse Pai chegar
dentro de mim. Só que ele não chegava. Quando eu cansei de
esperar fiz a Menina continuar informando: (FA, p.32)
A conversa entre as duas personagens seria o mote que desencadearia a
aparição do Pai, personagem fundamental na história, já que foi o principal responsável
pela formação dos valores que a Ana Paz carregou até a mocidade e por conseguinte o
porta-voz dos valores que a história transmitiria para os leitores. Entretanto a construção
do personagem está intrincada e a demora para o personagem aparecer simboliza a
dificuldade de concebê-lo. A fala da menina então surge como uma estratégia utilizada
pela narradora para esticar o tempo da história e equipará-lo ao tempo do processo de
criação. Ele se desenrola ao vivo.
Mais adiante o Pai finalmente surge: “Lá pelas tantas eu consegui fazer o
barulho duma porta se abrindo. Passos no corredor. A voz do Pai se anunciando:/ -
Prontinho, estou aqui. Cadê o pente?” (NUNES, 1993, p.32). Contudo o que se
desenvolve é uma cena que já havia sido delineada, a fuga do Pai.
E o Pai saiu correndo, e a sacola ficou pra lá, e a Mãe gritou não
sai por aí que eles já cercaram a casa! E tome pancada na porta,
e voz de homem gritando, e a Ana Paz começou a ouvir tiro
tirotiro, e a Mãe gemendo chorado.
Mas, ‘pera aí, eu já fiz essa cena antes, que história é essa?
Acabei achando que eu tinha repetido a cena pra avivar, pra
esquentar o personagem Pai.
Achei mal: ele esfriou. E esfriou de um jeito que eu passei dias
sem conseguir soprar vida pra dentro dele. (FA, p.33)
Essa cena se repete ainda uma terceira vez, reforçando a dificuldade que a
criação deste personagem está implicando. Ao que tudo indica a narrativa começa a
deslanchar e a cena da morte do Pai irrompe bloqueando o prosseguimento da história.
Na tentativa de estruturar o personagem a narradora utiliza estratégias para tentar
alcançar esse objetivo e assistimos a essas tentativas frustradas, frustrando-nos também.
Lá pelas tantas eu achei que o Pai só podia aparecer junto com a
Carranca. Então experimentei fazer os dois chegando juntos.
Voz do Pai: - Ana Paz! Olha aqui o presente que eu te trouxe.
A Ana Paz-criança sai correndo do quarto que a Ana Paz-velha
tá olhando, e para de olho arregalado na porta do escritório do
Pai:
- Que que é isso?!
- Uma carranca.
119
- Carranca? (...)
E aí o Pai começou a inventar um monte de histórias pra ir
respondendo às perguntas da Ana Paz. Cada história que o Pai
inventava era uma história de propósito pra ir passando pr’Ana
Paz tudo que é valor que ele considerava importante. (FA, p.33)
Esses valores são passados através de histórias; ela era metade peixe para poder
viver no mar e lutar contra os maus espíritos, e os maus espíritos eram personificações
das injustiças que assolam o Brasil; ela tem asas porque ama a liberdade; ela tem patas e
não pés porque ama e defende os animais; o tamanho da carranca (menos embaixo e
maior em cima) serviu para exaltar a importância da arte popular. Em meio a essas
histórias somos informados que o pai da Ana Paz pertence a um sindicato de
trabalhadores rurais no Rio Grande do Sul e sua casa estava sempre repleta de pessoas
que lá se reuniam para discutir acerca do movimento. Após o desenrolar desses eventos
a cena da morte do pai se repete pela terceira e última vez, como havíamos sinalizado.
De acordo com a narradora, esse primeiro pai, por ser didático, aproveitando-se de todos
os momentos com a filha para transmitir seus valores, arriscava-se a se tornar um pai
chato. Ela então declara o seu bloqueio na construção deste personagem e prossegue
com os vários conceitos de Pai que foram surgindo: um Pai reservado, que guardava
todas as suas ideias para si; um Pai romântico, que sonhava com o que queria fazer mas
não realizava nada; um Pai incoerente, engajado mas machista.
Esses esboços do Pai, construídos e rasurados, nunca conclusos, ilustram o
processo de construção de um personagem. Nesse mesmo livro a personagem Raquel de
A Bolsa Amarela já havia sido citada, sendo que o processo de construção dela é
invertido, como já vimos. A personagem se impõe, como se tivesse vida e a narradora
fosse apenas o canal que conduzirá a personagem até o texto. Embora em trecho já
observado anteriormente a narradora espere o Pai aparecer, essa é uma espera simbólica
pela inspiração. Já no trecho em que diversos pais são delineados e descartados
acompanhamos um processo em que narradora ocupa um papel efetivamente ativo no
processo, acompanhamos essa tarefa árdua, a ideia a respeito do qual poderia ser o
caráter o personagem, um breve desenvolvimento e o descarte. O processo torna-se
laborioso, sinuoso e não se resolve, pois após várias tentativas, desistências, retomadas
e novas tentativas a narradora simplesmente abandona o processo, não só de construção
do Pai, mas de todo o desenvolvimento e conclusão da história de Ana Paz.
Contudo, retomando o primeiro rascunho do Pai, ele parece bem acabado, os
valores que ele deseja transmitir estão lá, representados pelas histórias que ele conta
120
através da Carranca, sua filiação ao sindicato está lá, sua participação ativa em um
movimento de defesa dos direitos dos trabalhadores rurais, seu carinho e dedicação à
filha. Inclusive ao lermos o livro pela primeira vez, até o momento em que a narradora
declara estar bloqueada:
Tinha acontecido outra vez. A cena que eu estava fazendo se
partia, o Pai me escapava, voltava pra morte dele; e não
adiantava eu querer trazer ele pra página em branco: cada vez
que eu começava a escrever o Pai ele voltava pra primeira cena
do livro.
Empaquei.
Sentava de manhã pra escrever. Começava a brigar com as
palavras. (FA, p.36)
A figura do pai estar ligada à sua morte e sua participação na história se limitar
a esses breves momentos antes de morrer não seria um problema para o desenrolar da
história, o pai de Ana morreu quando ainda era muito jovem. São poucas as lembranças
que tem sobre ele, contudo são fortes as impressões acerca do que é significativo, os
seus valores. Essa configuração é perfeitamente aceitável, contudo a narradora declara
estar bloqueada a partir do momento em que o Pai morre e daí para diante assistimos ao
seu esforço em desenvolver o personagem de forma que a satisfaça. Esse artificio nos
induz a transcorrer esse caminho com ela, somos convidados aos bastidores e dessa
forma conhecemos como se dá esse processo de criação. O escritor, muitas vezes
envolto em aura mítica, quase inalcançável, expõe suas dúvidas e suas fraquezas, se
humaniza. Essa desmitificação remete a uma ilusão de presença, referenciada por
Leonor Arfuch e retomada por Diana Klinger:
Portanto, o que interessa do autobiográfico no texto de
autoficção não é uma certa adequação à verdade dos fatos, mas
sim “a ilusão da presença, do acesso ao lugar de emanação da
voz” (Arfuch, 2005, p.42). Assim, a autoficção adquire outra
dimensão que não a ficção autobiográfica, considerando que o
sujeito da escrita não é um “ser” pleno, senão que é resultado de
uma construção que opera tanto dentro do texto ficcional
quanto fora dele, na “vida mesma”. (KLINGER, 2007. p.55,
grifo da autora)
Apesar do texto acima se referir à escrita de si e estamos no momento
refletindo acerca da escrita do Pai é possível traçar um paralelo. Essa presença que nos
ilude está aqui presente, essa voz narrativa que se identifica como a autora empírica nos
121
confunde, nos ilude fazendo-nos acreditar nesse embuste e adquire de fato uma
dimensão autoficcional. Opera-se no texto uma dupla construção, a construção de si
mesma e a construção da história de Ana Paz, assim como a construção dos personagens
envolvidos na trama. Essa construção que se opera dentro do texto ficcional adquire um
caráter sólido na medida em que observamos essa construção sendo operada
simultaneamente.
Um pouco mais adiante, a narradora relata que sonhou com Ana Paz,
reivindicando o seu pai e acusando-a de não saber mais fazer nenhum personagem. A
narradora acorda e sente a necessidade de criar um personagem, qualquer um:
Eu não quis mais escutar a Ana Paz: acordei. O dia estava
clareando. Senti uma urgência muito minha conhecida: ir pro
jardim mexer na terra, tirar mato, refazer vaso, podar galho.
Mas a voz da Ana Paz não saía da minha cabeça: você não sabe
fazer mais ninguém. Larguei o podão e fui escrever alguém.
Saiu um personagem que eu nunca tinha feito antes: um
jardineiro. (FA, p.40, grifos da autora)
A intromissão inusitada desse novo personagem pode soar como um desvio
despropositado, contudo o encontro da Ana Paz-velha com o jardineiro prepara o que se
desenrolará a seguir, novo embate entre ela e seu filho, que foi até lá para conversar
com a mãe, e esses dois episódios finalizam a história. A Ana Paz-velha e o jardineiro
conversam sobre o jardim, sobre a casa e acordam os papéis de cada um no projeto de
reforma da casa, ela cuidará da casa, ele do jardim. Durante o diálogo com o filho seus
planos para casa são finalmente revelados, ela será tombada e transformada em um
centro cultural. Após a partida do filho a personagem vaga pela casa imersa em
pensamentos ao mesmo tempo em que inspeciona a obra. Senta-se em uma cadeira e
lembra-se do pai:
Voltei pra cadeira de palhinha e comecei a pensar. E aí eu me
lembrei tão forte do mau pai! feito coisa que ele tava ali do meu
lado. Ouvi até ele dizendo, vais ter um inverno muito ocupado,
Ana Paz.
Eu sei, pai. Vai ser bom. (FA, p.49)
Nesse momento a narradora irrompe novamente anunciando que terminou o
livro, mas falta fazer o Pai, a Carranca, o Antonio, refazer os trechos rasgados e
preencher os vazios. Ao mesmo tempo em que soa redundante anunciar o final do livro,
122
que claramente apresentava um tom de final de narrativa, somos surpreendidos pela
quebra de uma expectativa que foi inclusive reforçada pelas palavras da narradora: a
história chegou ao fim. Contudo as linhas seguintes desfazem essa afirmativa ao
enumerar as pontas soltas. O livro é abandonado em uma gaveta e retomado tempos
depois.
Num dia de lembrança mais forte, eu fui lá na gaveta, e li a Ana
Paz toda. Não tive vontade de mudar o fio da história; não tive
vontade de mudar nada! Mas continuei achando que, se eu não
fazia um Pai forte e carismático, capaz de criar uma Carranca
imaginativa, eu não ia ter um livro chamado “Eu me chamo
Ana Paz”. (FA, p.51)
Contudo, realizando o mesmo exercício que fizemos acima de retomar a
narrativa, consideramos que o Pai seja forte e carismático e que a Carranca seja
imaginativa, não compartilhamos dessa angústia da narradora.
Frustrada, a narradora desiste e resolve rasgar o livro. No momento em que
começa a rasgar o dia em a Ana Paz-moça se apaixona pelo Antônio, esta irrompe e
protesta, não quer ser rasgada, o argumento da narradora se baseia na incompletude dos
personagens, eles não estão resolvidos sob o seu ponto de vista. E a resposta de Ana Paz
é muito interessante:
- Você não ficou resolvida.
- Ora, não me vem com isso, quem é que fica resolvido?
- quem? muitos personagens, ué. Eu acabei de fazer um livro:
tudo que é personagem ficou resolvido.
- Pra quem? Pra você? Pra eles? Pra quem te lê?
- Pra mim, é claro! Se sou eu que faço eles, eles têm que ficar
resolvidos pra mim! E você não foi resolvida. (...)
- Mas por que que eu não posso ser assim mesmo?
- Assim mesmo o quê?
- Assim: não resolvida, feito você diz, descosturada, mal
acabada, tanto pedaço de mim rasgado (sabia que você me
rasgou demais?). Você sonhou pra mim uma vida toda bem
feita, só que a tua ideia não eu certo e eu fiquei desse jeito. Mas
por que que você precisa rasgar o que eu fiquei? Por que que
você não pode me contar pros outros assim? Desacertada,
inacabada, esperando a luz que, um dia, vai se acender (ou não)
em tudo que é pedaço que eu tenho de escuridão? Puxa vida! Eu
nasci pra viver num livro! Livre! (você sabe tão bem quanto eu
que não tem anda mais livre que um livro); já chega o tempo
que eu fiquei numa gaveta, já chega o tempo que eu fiquei na
tua cabeça: tudo tão fechado, tão cheio de complicação. Eu
quero ir lá pra fora!!
123
E hoje ela foi. (FA, p.53, grifos da autora)
Observemos os questionamentos de Ana Paz acerca de para quem os
personagem devem estar resolvidos: para a autora, para eles mesmos ou para os leitores.
A narradora, assumindo uma postura de autoridade, responde que os personagens
devem estar resolvidos para ela, autora, já que foi quem os criou. A personagem,
contudo, adota uma postura contestadora, objetando acerca dessa autoria. Leonor
Arfuch, ao explicitar a concepção de sujeito indaga a respeito de “um sujeito não
essencial, constitutivamente incompleto e, portanto, aberto a identificações múltiplas,
em tensão com o outro” (ARFUCH, 2005, p.80). Ela ainda se refere ao relato de si
como um relato “sempre recomeçado e inconcluso” (ARFUCH, 2005, p.81). Essa é
narrativa de Ana Paz, várias vezes recomeçada e nunca concluída, mas se o sujeito é
constitutivamente incompleto e aberto a múltiplas identificações, porque deveriam os
personagens estar necessariamente resolvidos, como desejava a narradora? Eles estão
abertos a identificações, e os leitores também possuem poder de decisão, eles podem
decidir se os personagens estão resolvidos ou não, eles podem atribuir significados
variados à história e preencher os seus espaços. Ressaltamos que aqui o ponto principal
não se refere à escolha do leitor, mas à possibilidade de diversas identificações. A
personagem, inclusive, ao interpelar a autora, apresenta três opções de autoria,
defendendo assim a arbitrariedade da resolução do destino dos personagens na narrativa
em questão.
A personagem defende com veemência a sua incompletude, por que não
permanecer desajustada? A oposição luz e escuridão é utilizada em seu argumento, a
escuridão simbolizando os trechos incompletos e a luz surgiria caso as partes obscuras
fossem preenchidas, embora isso não seja absolutamente necessário. É possível
relacionar essa oposição com a iluminação dos bastidores da escrita, esses trechos
obscurecidos são iluminados na medida em que são desvendados para o público leitor.
A narrativa de Ana Paz então vai “lá pra fora”, com todas as suas imperfeições, as zonas
de penumbra do texto preenchidas pelos mecanismos de funcionamento.
Refletimos anteriormente acerca do livro Feito a Mão no segundo capítulo ao
abordarmos a relação do texto com o leitor. Para tal, nos concentramos na seção “Pra
você que me lê”, que desvela os bastidores da produção do livro, assim como
observamos em Fazendo Ana Paz. Agora, contudo, nos concentraremos na narrativa do
livro em si, aquele intitulado Feito à Mão. A propósito, o título se adequa tanto à seção
124
“Pra você que me lê” quanto à narrativa em si. Se a seção versava acerca do processo de
produção de um livro todo feito a mão, deslindando as etapas do processo, ao
ultrapassarmos a seção e iniciarmos a leitura da narrativa nos deparamos com uma
história em que são narrados episódios ligados ao tema “fazer à mão”. Contudo, ao se
abrir a narrativa, aquela voz que na seção “Pra você que me lê” se anuncia como a
autora travando um diálogo com seus leitores, aqui se lança na penumbra.
Ao se abrir a narrativa nos deparamos com um desenho do rosto da autora
estampado na página que introduz o primeiro capítulo. Esse artificio nos levaria
facilmente a identificar a voz em primeira pessoa com a autora empírica, é quase como
assinar o seu nome abaixo de um título em que se lê “Memórias”, atestando que aquelas
são as lembranças do próprio autor. Silviano Santiago utilizou recurso semelhante em O
Falso Mentiroso, ao ilustrar na capa uma foto de quando era bebê. A respeito desse
livro Diana Klinger ressalta que:
Trata-se de um romance em primeira pessoa que narra as
memórias de Samuel Carneiro de Souza Aguiar e faz um jogo
com os pactos de leitura, a partir dos paratextos e subtítulos
(“Memórias”), e outros indicadores da edição (a foto da capa do
livro é Silviano Santiago quando criança). Esses indicadores do
pacto referencial aparecem como elementos do paradoxo
segundo o qual a diferença ente o verdadeiro e o falso se torna
indecidível. (KLINGER, 2007, p.52).
Em Feito à Mão temos como indicadores, além do desenho do seu rosto, a
própria seção “Pra você que me lê”, em que Lygia assume a sua voz ao desvelar os
bastidores do processo de produção do livro, e temos também na narrativa em si
referências a outras narrativas da autora, bem como referências à sua vida pessoal.
Silviano Santiago brinca com o leitor na medida em que joga com o que seja “verdade”
e com o que seja falso no texto. Declara que o nome do autor é verdadeiro (qual? O
nome do autor da capa ou nome da voz que se autoproclama Samuel Carneiro?); que a
narrativa é autobiográfica, o personagem realiza falsificação de gravuras; apresenta-se
como um “falso filho”, já que foi adotado, portanto seus pais são “falsos”,
desconhecendo os “verdadeiros”. Em dado momento o narrador exprime: “somos dois.
Somos um. Um cópia do outro” (SANTIAGO, 2004, p.53). Apesar de não assinar o
livro como “Memórias”, de modo que associemos automaticamente a narrativa como
autobiográfica, a primeira pessoa do texto “Pra você que me lê” assumindo-se como a
autora empírica e a gravura de seu rosto antecedendo a narrativa propriamente dita
125
geram pistas falsas nos levando a crer que se trata de um livro de memórias. Afinal
vários elementos referenciais estão lá: a infância no Rio Grande do Sul; sua moradia em
Londres, seu marido inglês, o Peter; a casa na serra, chamada de Boa Liga e outros
mais. A contra-capa do livro nos confunde ainda mais:
Aqui está o FEITO À MÃO ao alcance dos leitores de Lygia,
revelando a todos que se interessam pelo processo criativo
vários aspectos ligados ao trabalho e à vida dessa escritora
singular que, mesmo vivendo um perene caso de amor com o
Rio, prende um pedaço de sua vida a Londres.
Esta edição vem com o anexo “Pra você que me lê”, onde a
autora relata as dúvidas, dificuldades e alegrias que permearam
a feitura do livro, nos fazendo sentir o quanto é estimulante o
desafio de dar realidade a um projeto (FM, contra-capa).
Notemos que o texto menciona que serão revelados aspectos ligados ao
trabalho e à vida da escritora, ou seja, mesmo sem um subtítulo “Memórias”, e mesmo
que a voz em primeira pessoa da narrativa não se assuma abertamente como a voz da
autora empírica, esse texto nos apresenta um problema. Estamos diante de uma
autobiografia? Ou tudo não passa de um jogo, a exemplo de Silviano Santiago e sua
“falsa” autobiografia? Todos esses elementos fazem parte de uma estratégia para
confundir o leitor e lançá-lo na indecisão? Ou será que estamos finalmente diante de
uma obra de autoficção de Lygia Bojunga? Deixemos essas questões em suspenso por
enquanto e avancemos em nossa observação.
O primeiro capítulo, “Falando com os botões” remete à infância da narradora,
ela evoca a memória de sua mãe narrando que sempre a associa à costura:
Quando eu ligo a memória, é muito raro ver minha mãe parada,
ela está sempre às voltas com agulha, linha e lã: caprichando no
tapete o ponto de arraiolos, bordando o pano de mesa todo em
cruz, preparando a tela pro filet, tricotando o suéter,
crochetando a colcha, cerzindo a meia no ovo de madeira,
cortando e alinhavando o pano pra fazer um vestido. Então, eu
nunca me lembro da minha mãe sozinha: é sempre ela e o
costureiro. (FM, p.47)
Se em Livro: um Encontro o prazer da escrita é descoberto através dos
exercícios de caligrafia, aqui a primeira atividade ligada a algo relacionado aos
trabalhos manuais é o universo da costura. Sua mãe tinha um costureiro e lá dentro um
mundo de objetos que ela transformava em brinquedo: alfinete de fralda, linha, colchete,
126
botão, principalmente os botões. O trecho em que é narrada a conversa com sua mãe a
respeito de uma expressão que ela utiliza é especialmente interessante:
Às vezes, numa noite de insônia, num embalo de rede, numa
viagem de trem, eu gosto de dar linha pra minha memória. Só
pra ficar vendo até onde é que ela vai. Aqui e ali dou um puxão
na linha, pra ver se a memória volteia bonito pra mais e mais
longe que eu já consegui fazer ela voar: eu me vi aos quatro
anos, sentada no chão, a minha mãe do lado, o costureiro
também; e me escutei dizendo:
- Tu ficas muito tempo sem falar.
E ouvi ela respondendo:
- Engano teu: eu estou falando.
- Falando com quem?
- Com os meus botões.
- Eu não ouvi.
- Quando a gente fala com botão, os outros não escutam. (FM,
p.49)
Essa imagem da linha representando a memória gera uma imagem poética, a
partir da narração visualizamos a linha volteando e percorremos o caminho com ela até
chegar na memória que a narradora nos apresenta, ela e sua mãe conversando próximas
ao costureiro. No início da descrição da cena ela se apresenta estática e vai se avivando,
ganhando cores equanto o diálogo começa a se desenvolver. A expressão “falar com os
botões” é interpretada pela criança de forma literal e conversar com os botões,
transformá-los em personagens de uma história transforma-se em sua brincadeira
favorita: “Mas eu falava em voz alta: afinal de contas, falar era falar. (...) De quê? Ora,
do casamento do botão de madeira, do nascimento do botão de madrepérola, do noivado
do botão de metal, da doença e morte de um botão sem furo”. (FM, p.51). é na infância
da narradora, portanto, que o prazer de criar histórias se manifesta, ligado ao primeiro
prazer de trabalhar com as mãos: “Foi bom querer imitar a minha mãe nos trabalhos
manuais e aprender que a mão é um instrumento único”. (FM, p.51). O prazer, a
preferência pelo manual se manifesta em outros textos de Lygia Bojunga, essa
preferência às vezes se expressa de forma direta, como em “A Troca e a Tarefa”, em
que a narradora declara preferir escrever à mão; ou de forma indireta, simbolizada
através de personagens como o jardineiro de Fazendo Ana Paz.
No capítulo seguinte, “Crow’s Nest”, a narradora reflete acerca da sua
necessidade de isolar-se no momento da escrita e relata a busca por um espaço em que
possa utilizar como estúdio em Londres, onde mora com seu marido, Peter. A narração
127
é desordenada e recheada de digressões, nos confunde a princípio iniciando com uma
explicando sobre o significado do título do capítulo. A narradora inicia o capítulo
discorrendo acerca da familiaridade com esses pássaros, já que os tem encontrado
recorrentemente ao longo de sua vida e há muitos deles onde mora em Londres. A
seguir, explica o significado da palavra crow, que pode ser corvo ou gralha, pois são da
mesma família, mas como corvo remete ao mau agouro e gralha remete a falatório e voz
esganiçada, ela optou por não traduzir e manter a palavra em inglês. Notemos que crow
possui um duplo significado e como é uma palavra só que atribui significado a dois
pássaros distintos da mesma família, nos atrevemos a exprimir que é uma palavra que
copia a si mesma atribuindo-lhe uma dupla significação.
A seguir a narradora divaga acerca de um dia em que viu um ninho no alto de
árvore e seu marido confirmou que seria um crow’s nest e explicou que aquele termo
era utilizado em inglês para se referir a ninhos desses pássaros em particular mas
também é lugar no alto do mastro de um navio de onde os marinheiros observam o
horizonte:
E me explicou que crow’s nest tinha também um outro
significado, além de ser o ninho do crow: era o lugar onde um
marinheiro se aboletava, no alto dos mastros dos navios, pra
ficar olhando o horizonte. Quando enxergava a terra, ele gritava
lá de cima: land ahoy!
- Ahoy?
- É, ahoy.
- Mas o que quer dize ahoy?
- É uma exclamação, uma admiração, uma saudação, tudo isso
misturado. (FM, p.58).
Assim como a palavra crow, a expressão crow’s nest também se duplica, sendo
que esta ainda vem atrelada a um termo que se desdobra em mais de um significado,
ahoy, que tanto pode ser uma exclamação, uma admiração ou uma saudação. Além
disso, esse termo não possui tradução, pois não é uma palavra que pode ser verbalizada,
é um termo que traduz um sentimento, se encontra em uma zona de penumbra,
indecidível, indecifrável. Os duplos, e ainda a categoria do indecidível, vão se
acumulando.
Em meio às elucubrações acerca do título do capítulo a narradora retoma a
expressão “falar com os botões”, do capítulo anterior. Ela se refere ao som que os esses
pássaros fazem, relatando que não consegue chegar uma decisão sobre a razão dos
animais emitirem esse som:
128
Mas, com toda a atenção que eu sempre presto na hora dele se
pronunciar, eu nunca cheguei a uma conclusão: ele está
cantando? Resmungando? Chamando? Quem sabe, ele está
falando com os botões? Seja o que for, uma coisa é certa: a voz
do crow já faz parte dos ruídos que – pra mim – caracterizam
esta parte de Londres onde eu vivo. (FM, p.57).
Retomando a explicação de Peter sobre o termo land ahoy!, após o diálogo da
citação anterior, a narradora faz novamente alusão à expressão em pauta: “Fiquei
repetindo com os meus botões: ahoy! ahoy!” (BOJUNGA, 2008, p.58). Esse recurso nos
induz a uma identificação imediata com o episódio da sua infância, a mãe “falando com
os botões”, a própria brincando de “falar com os botões” e depois falando consigo
mesma, refletindo, assim como sua mãe, hábito que carregou por toda a vida. Deste
modo, o aflorar dessa expressão desperta uma memória afetiva, carregada de emoção e
nostalgia. Além disso traz à tona o “eu” brasileiro em meio à narração num ponto em
que o “eu” londrina (ou andarilha, ou migratória, como veremos adiante) está se
manifestando. Esse, a propósito, é um aspecto a ser considerado. É possível relacionar a
não tradução dos termos crow’s nest e land ahoy! com essa ruptura entre esses dois
“eus”. Não há a possibilidade de ligar e desligar um botão para intercambiar entre as
duas facetas, elas então se misturam, se alternam, sem um limite bem definido. O “eu”
está na penumbra.
A seguir a narradora discorre acerca da necessidade de isolamento no momento
da escrita e sobre a sua busca por um local em Londres que pudesse transformar em
estúdio. Contudo, antes disso, há um pequeno trecho sobre os seus diversos “eus”,
confirmando nossa assertiva anterior:
Anos atrás eu comecei a fazer literatura movida por uma
compulsão, por uma necessidade de criar personagens dentro de
uma liberdade que só a literatura dá. Não imaginei que os
personagens nascidos dessa compulsão iam poder pagar as
contas dos meus eus (inclusive do eu-andarilha, migratória),
não imaginei que eu ia ter essa sorte. (FM, p.58).
Nos aproximamos uma vez mais de Silviano Santiago e sua cópia de si mesmo,
contudo aqui Lygia Bojunga amplia essa categoria, visto que se Silviano alegava-se
dois, Lygia alega-se várias. Observamos anteriormente em citação de Diana Klinger,
que a dramatização de si supõe um sujeito duplo, simultaneamente real e fictício. Posto
129
que essa narrativa híbrida oscilando entre o referencial e o ficcional já supõe uma
dramatização de si, essa cisão dos “eus” na narrativa reforçam essa noção de
performance, vários “eus” são representados e eles se alternam na trama. Prosseguindo
com a busca pelo estúdio, a narradora justifica a sua procura por um local que possa
usar como estúdio mencionando um aspecto muito particular do seu processo criativo:
Desde que comecei a fazer literatura, venho sentindo uma
necessidade cada vez maior de me isolar quando eu escrevo.
Sempre levei muito tempo pra “esquentar”, pra sintonizar numa
mesma faixa a minha imaginação, a minha disciplina e o meu
raciocínio. Qualquer interferência – a conversa do lado, o
telefone tocando, um barulho de televisão – faz logo a minha
faixa sair do ar. (FM, p. 59, grifo da autora).
Notemos as imagens que ela utiliza para descrever esse processo, são todas
ligadas a tecnologia e a elementos que remetem a sons: sintonizar, interferência,
telefone, televisão, sair do ar. Daí é possível considerar dois aspectos: primeiro, traduz
esse momento de transformação de um “eu” para o outro, do “eu” que está sintonizado
naquele momento para o “eu” escritora. Essa transformação demanda um esforço de
concentração e necessita de um descolamento da rotina diária que está envolta em
ruídos; o outro aspecto é a rejeição aos elementos que remetem à tecnologia. Já
constatamos que a autora possui restrições com relação à tecnologia e esse afinal é o
propósito do projeto desse livro feito à mão, valorizar o artesanal. Portanto, essa troca
de sintonia simboliza o abandono (ainda que temporário) dessa realidade tecnológica,
para adentrar numa realidade mais próxima da experiência artesanal. O local escolhido
para estúdio, uma mansarda, precisa de reformas e ao entrar lá para escrever, ela se vê
cercada de projetos que envolvem atividades manuais: a restauração do soalho, o jardim
plantado na varanda, as cortinas, colchas, almofadas e tapetes confeccionadas para
decorar o local. Não somente o ato de escrever é manual, a papel e lápis, mas também o
ambiente é cercado por elementos que remetem a essa atividade.
Há neste capítulo a localização do espaço da escrita, duplicando o efeito de
real, pois desta forma atribui um tempo real à narrativa, além de identificar o espaço em
que o tempo da escrita ocorre, o crow’s nest: “Foi aqui no Crow’s Nest que a minha
vontade de fazer um livro o mais feito à mão possível ficou mais forte”. (BOJUNGA,
2008, p.65). A partir dessa declaração, imaginamos a narradora nesse espaço,
escrevendo aquelas linhas que estamos lendo, como se elas estivessem sendo
130
produzidas ao mesmo tempo em que efetuamos a leitura. É o efeito que esse caráter de
escrita “ao vivo” provoca em nossos sentidos.
Em uma das digressões do capítulo a narradora divaga acerca do espaço em
torno do qual a mansarda está localizada. Até o momento acompanhamos sua busca
pelo estúdio, sua instalação no local, e de repente nos deparamos com essa digressão
que nos desloca do fio da narrativa e a desacelera:
Neste pedaço de Londres não tem prédios altos tapando o céu, a
vista aqui da minha mesa é boa de olhar: telhados e casas,
campanários de igrejas e a copa de muita árvore arrematando
tudo: é o verde da floresta de Highgate.
Às vezes o sino da igreja mais perto toca (...)
A rua do Crow’s Nest me agrada. Começa ali na esquina, numa
elevação de vista bonita. (...) De lá, a rua vem descendo e, na
calçada, volta e meia tem árvore. Tem também muita planta que
se debruça pra rua: inglês tem mesmo de flor: tudo que é casa
da rua tem um jardim pequenino de desordenado na frente.
(FM, p.67).
Essa digressão é duplicada, pois ela se desdobra ao abrir-se uma outra. Há um
asterisco indicando uma observação no fim da página que é uma nota sobre a
encomenda da grade que cercuo a plataforma e a transformou em uma pequena varanda
onde a narradora plantou o seu jardim. A digressão é duplicada e a desaceleração
também se duplica. O tempo da narrativa é desacelerado ao passo que ocorre essa
divagação acerca da rua onde se localiza a mansarda e a marcha diminui ainda mais, ao
nos deslocar para o pé da página, nos desviando da narrativa principal.
Avançando no capítulo, mais uma digressão. A narradora comenta a respeito
de uma rede que levou do Rio para pendurar no Crow’s Nest e um momento de
contemplação ocorrido enquanto estava deitada na rede é capturado:
Agora mesmo deitei nela e larguei o meu olho pra ele flanar por
aqui.
É julho. Está acontecendo um verão raro pra brasileiro nenhum
botar defeito: faz calor, faz azul, faz sol o dia todo.
Me senti contente aqui na rede, tive consciência de estar
vivendo um momento simplesmente bom. (FM, p.68).
Somos mais uma vez tragados para o momento da escrita ao vivo e nos
deitamos na rede junto com ela, observando a mesma paisagem. Logo após essa
manifestação de júbilo com a beleza do momento, a narradora manifesta a sua tristeza
131
com a possibilidade da perda do momento, pois o verão passará e essa impressão de
beleza tão forte se apagará. A solução para armazenar esse momento na memória é
simples: escrever: “Peguei este papel e este lápis, os dois estão sempre à mão (...), e
comecei a botar aqui este contentamento, esta tristeza, esta tarde de verão”. (FM, p.69).
Percebamos como este movimento é duplicado. Ao anunciar que pegou o papel e o lápis
para registrar o momento, nós estávamos lendo sobre ele, pois a narração dessa
digressão é o registro a que a narradora se refere.
O capítulo seguinte, “Uma minha casa”, retrocede no tempo narrando um
episódio da infância da narradora, em que ela transforma um galinheiro sem uso em
uma casa para brincar: “Um dia eu entrei num galinheiro desativado. Um pedaço dele
tinha desabado. Mas o resto do galinheiro me pareceu ótimo, tipo do espaço bom pra eu
fazer ‘uma minha casa’. Pedi pro meu pai, e o meu pai me deu” (FM, p.72). Esse prazer
de construir e recriar um espaço já havia sido explorado no capítulo anterior, inclusive
lá é mencionado que é aqui que esse prazer nasce. Entretanto somente no capítulo
seguinte seremos apresentados ao episódio em que esse prazer se originou. Essa
inversão soa como uma digressão, o tempo da narrativa é desacelerado para voltar no
tempo e narrar esse episódio. No primeiro capítulo esse recurso é utilizado através da
metáfora da linha sendo esticada; no segundo capítulo também observamos algumas
digressões, sendo uma delas indicada através de recurso gráfico; e aqui esse recurso
ocorre mais uma vez, a memória dessa vez ligada à visão, ela “enxerga” essa memória
da sua janela: “Mas um dia eu enxerguei ela de novo aqui da janela” (FM, p.74). Apesar
de não estar claro, inferimos que esse “aqui” é o Crow’s Nest, devido ao capítulo
anterior, que localiza a narrativa naquele espaço. Todavia, essas digressões não são
marcadas, a narrativa se desenrola com tamanha fluidez que não sentimos esses saltos
no tempo.
O próximo capítulo se chama “Boa Liga” e faz referência ao sítio que Lygia
Bojunga possui nas montanhas do Rio Janeiro. Aqui é narrado o primeiro encontro com
a região onde mais tarde seria o sítio seria e a relação de afeto que se construiu com o
local. Dentre todas as referências presentes no texto, esta é mais significativa, pois é a
que mais fornece elementos de identificação extratextuais. No site da Casa Lygia
Bojunga, há um tópico que aborda a fundação da Casa Editorial. Esse tópico é
entremeado por trechos entre aspas e itálico, que remetem a uma fala da própria autora e
por fotos que ilustram cada fala:
132
... nas trilhas por onde eu ando – sejam de água ou de terra ... (figura
13) / ... nos bancos onde me demoro – pensando no feitio que eu vou
dar a isso ou àquilo ... (figura 14) ... debruçada na janela do quarto
onde escrevo (de olho perdido no verde) – eu sonho de me acabar!
Depois, aqui, ali, aos poucos, vou extraindo dos sonhos os meus
personagens, os meus projetos de trabalho, a minha vida. Foi na Boa
Liga que, um dia, eu sonhei criar uma casa editorial para o meu pessoal
... (figura 15) (http://www.casalygiabojunga.com.br/pt/acasa.html
acessado em: 27/12/2015)
Não há dúvida, portanto, de que a Boa Liga do livro é a mesma que a autora
empírica utiliza como espaço de criação e como espaço para os seus projetos da
Fundação Cultural Casa Lyfia Bojunga. Essa é a referência extradiegética mais marcada
e a que deixa menos margem para dúvida. Nas fotos, inclusive, há a própria Lygia
imprimindo a sua face à narrativa e praticamente atestando a veracidade do texto.
Apesar disso, será que o texto se situa em um campo preciso? Até o momento
observamos diversos recursos narrativos, as digressões, a abertura do texto em camadas,
imagens líricas, figuras de linguagem, mas a categoria do duplo que insistentemente
predomina no texto acarreta uma ambiguidade. Lembremos que a dramatização de si
supõe um sujeito duplo e que o sujeito da escrita é resultado de uma construção que
ocorre tanto dentro do texto quanto fora dele. Ao expor-se nas fotos Lygia está criando
um mito de si mesma, o mito do escritor. Ao construir essa imagem de si mesma, uma
construção que é inacabada, que está em constante processo, a autora está executando
uma performance aos olhos do leitor. Sobre a arte da performance, Ravetti pondera:
A arte da performance supõe uma exposição radical de si mesmo, do
sujeito enunciador assim como do local da enunciação, a exibição dos
rituais íntimos, a encenação de situações autobiográficas, a
representação das identidades como um trabalho de constante
restauração sempre inacabado (Ravetti, 2002, p.47, in: KLINGER,
2007, p.56).
No capítulo seguinte, “As rezas”, há mais uma regressão no tempo, retornamos
à adolescência da narradora, aos 14 anos. Ela narra que nessa idade foi enviada para um
internato de freiras e adquiriu o hábito de rezar balbuciando. Esse hábito ficou
esquecido depois que abandonou o internato até que muitos anos depois seu marido
flagrou-a balbuciando para o mar e perguntou se ela estava rezando. Esse capítulo soa
deslocado em relação aos outros, já que não há relação aparente com o “fazer a mão”,
contudo ele se conecta ao processo criativo no trecho que a narradora reproduz a sua
reza para o mar:
133
Ah... quando o Peter entrou na linha eu estava falando da falta
que eu tinha sentido do mar. Estava dizendo que eu nunca tinha
pensado no nosso reencontro acontecendo em Copacabana ou
na Barra. Nem com o sol a pino, tampouco. Foi sempre assim
que eu quis te rever. Justo assim, numa praia deserta. Feito essa.
E te imaginava, de manhazinha, você recém se mostrando, mais
pr’azul aqui, mais pra verde ali, mas já se amarelando um
bocadinho do sol que ia aparecer. (...) Mas sabe, não sei por
que, eu só te pensava calmo; não te imaginei nem uma vez
nessa agitação de onde grande que você está. E que te deixa
ainda mais bonito. Mas também terrível, sabe, também terrível.
Não faz mal. É bom demais te ver de novo. (FM, p.98).
Esse diálogo com o mar nos remete a um outro diálogo semelhante, o longo
diálogo que se caracteriza a narrativa de O Rio e Eu, a identificação é instantânea. O
trecho é carregado de imagens, é possível visualizar as cores que o sol vai tomando
conforme ela descreve, as ondas se levantando, o mar agitado... é uma imagem lírica
que ao mesmo tempo em que nos transporta para o universo ficcional nos remete ao
universo extra textual, acarretando uma dupla função.
O capítulo “Os mercados do México” narra o despertar do seu eu-artesã,
esquecido desde a adolescência. Não é possível precisar em que época aconteceu essa
retomada, mas inferimos que seja em algum lugar depois que o eu-escritora já está
estabelecido. Durante sua viagem pela primeira vez à Cidade do México, a narradora
encontra um mercado em suas andanças pela cidade e lá presencia uma profusão de
atividades feitas à mão, que desperta nela esse prazer há muito esquecido:
(...) à medida que eu ia chegando perto do mercado, mais
artesãos se comprimiam na rua, mais as cores explodiam, os
cheiros se misturavam, o barulho crescia, era gente, era bicho,
era tráfego, era música tocando. Na entrada do pavilhão eu
parei, mal podendo acreditar no que via, de tão grandioso que
era o visual daquele mercado (e quantos! Quantos outros eu fui
investigar depois, tomada que eu logo fiquei pelo fascínio das
artesanias), coberto de cima baixo por mil panos e chapéus e
bordados e pinturas, avizinhados de uma variedade imensa de
legumes e de frutas e de peixes e de grãos. Era uma amostragem
tão intensamente artesanal e colorida de vida pulsando, que o
meu olho ficou meio tonto, nem sabendo onde parar, mas por
onde ele passava a minha mão chegava atrás, doida pra alisar o
sisal da bolsa, sentir a lã do tapete, apalpar a tecedura do xale,
acarinhar o barro do pote, roçar o ponto do bordado, o trançado
do cesto. Era tanto pra sentir, que a minha mão, lá pelas tantas,
emudeceu. Feito com medo de sentir mais. (FM, p.110).
134
Conforme a narradora vai se aprofundando pelas ruas da cidade, vai
encontrando pessoas executando as mais diversas atividades artesanais, tecendo,
trançando, moldando, bordando, esculpindo. A sua descrição é tão vívida, que
visualizamos as ruas estreitas e ao chegar no mercado sentimos os cheiros, ouvimos os
barulhos, nos sentimos tontos como ela. Retomando a metáfora do texto narrativo como
um jardim de caminhos, ao nos guiar através das ruas da Cidade do México, a narradora
nos guia através do caminho que ela pretende seguir no bosque da narrativa. Esse
caminho nos leva até o mercado e ao seu reencontro com a artesania. À noite, ela tem
um sonho bastante curioso:
Quando, no fim, eu acabei dormindo, eu sonhei comigo, quer
dizer, com um pedaço de mim: a minha mão: dedo
tamborilando no tampo da mesa, feito a gente faz quando bate
uma impaciência ou quando espera um pensamento se aclarar.
Meu dedo tamborilou e tamborilou. Depois a mão pegou um
feitio de esperando. Quieta. E pronto, o sonho acabou aí. (FM,
p.112).
A figura do sonho remete o seu eu-artesã reivindicando o seu aflorar
novamente, primeiro impaciente, depois aguardando. O mais curioso, contudo, é a
ligação com Retratos de Carolina. A personagem, após o divórcio conturbado, aluga
uma quitinete e prepara-se para reconstruir a sua vida. Sua mãe a visita, as duas
discutem, e Carolina fica aborrecida, confusa, desnorteada, é tomada por saudade do
falecido pai e após horas sentada à escrivaninha adormece e seu sonho é carregado de
imagens com a sua mão. Ela sonha que percorre um túnel, no meio do qual encontra
objetos que foram significativos em sua vida, o vestido que a ligou ao ex-marido, o
sapato do pai com quem tinha tanta conexão e no fim do túnel avista uma gaiola vazia.
Essa gaiola simboliza a liberdade da personagem, ela agora está livre para fazer o que
quiser. O sonho é todo tateado, ela apreende o sentido com as mãos:
Carolina está na boca de um túnel comprido e escuro, que tem
que atravessar. (...) De repente, o embate temido: os dedos
entram por uma coisa adentro. (...) A mão se estende e procura
um rosto; não encontra; desce então, hesitante, tateia: encontra
presença: macia. A mão começa a investigar, apalpar, não é
seda, não é algodão, nem cetim. (...) Mas no chão tem outra
presença. A mão se encolhe, medrosa. (...) Mas é compulsório:
a mão tem que investigar: vai desfazendo a bacia e se abaixa pra
tatear, pra buscar. Encontra e apalpa a presença no chão. (RC,
p.155).
135
Ao encontrar a gaiola aberta, percebe o pedaço de bambu que prendia a porta
da gaiola e o aperta em sua mão. Essa imagem se conecta a um episódio de sua infância,
o primeiro retrato, “Carolina aos seis anos”, em que na festa de sua amiga Priscilla é
enganada por ela em uma distribuição e prêmios e é presenteada com uma um pássaro
em uma gaiola. Ela foge frustrada para o jardim com a gaiola na mão e acaba soltando o
bambu que prende a porta da gaiola. Seu pai e busca e a gaiola fica esquecida. Ao
encontrar a gaiola vazia no sonho e segurar o pedaço de bambu em sua mão ela percebe
que libertou o pássaro. A sua mão foi a responsável pela liberdade do pássaro e
simboliza a libertação dela mesma como o seu despertar para uma nova vida:
Durante um tempo Carolina fica olhando pra mão, tentando
trazer pra lembrança uma imagem sonhada que fugiu.
A cabeça começa a fazer um movimento de assentimento. A
voz sai clara, sublinhado o que a cabeça afirma: Ser dona da
minha vida... com essa minha mão aqui... eu vou fazer. (RC,
p.159).
Essa reconstrução, essa retomada, se liga diretamente com a redescoberta do
eu-artesã no capítulo “Mercados do México”. Em ambas as histórias, a imagem da mão
é utilizada para simbolizar o renascimento, a mão é o instrumento que vai construir um
novo caminho. E ainda em ambos o sonho é utilizado como recurso para provocar esse
resgate. O resgate de si, o resgate de um prazer há muito esquecido.
O penúltimo capítulo, “As Mambembadas”, discorre acerca desse projeto, e
temos aqui outra forte referência extra-textual. Esse projeto não só já havia sido
mencionado em Livro: um encontro, como também foi mencionado em seções “Pra
você que me lê” e ainda está disponível no site Casa Lygia Bojunga. As linhas iniciais
deste capítulo são marcadas com relação à voz que está narrando em primeira pessoa:
“Um dia eu concluí que o primeiro projeto da Casa Lygia Bojunga tinha que ser feito a
três (eus): escritora, atriz e andarilha. Peguei meu livro Fazendo Ana Paz e comecei a
trabalhar uma maneira de contar aquela história no palco”. (FM, p.116). Observemos
que ao mesmo tempo em que a voz narrativa assume a sua identidade como a autora
empírica, cinde-se a si mesma em três “eus”, gerando um desequilíbrio. Esses “eus” não
são três pessoas de fato, claro, contudo não é primeira vez na narrativa que esse recurso
de multiplicação de identidade ocorre, e ocorrendo em um texto em que a primeira
pessoa apresenta fortes traços autobiográficos, nos leva a crer que esta é uma das
136
muitas armadilhas identitárias do texto. De acordo com Leonor Arfuch a
dessacralização do autor permite ultrapassar o limiar da autenticidade em direção às
várias formas de autoficção (ARFUCH, 2005): “Autoficção como relato de si que
coloca armadilhas, brinca com as pistas referenciais, dilui os limites” (ARFUCH, 2005,
p.137).
Essa questão é problematizada mais à frente. Durante o desenvolvimento do
projeto no interior do Brasil, muitas vezes encontrava-se espaços com recursos precários
para a apresentação e nesse momento os “eus” se desentendiam:
Se o espaço tinha recursos de iluminação, maravilha!! Se não
tinha, paciência... e se o eu-atriz se rebelava:
- Não entro em cena sem o refletor!
O eu-escritora logo acudia:
- Mas o que que você tava pensando? Que ia encontrar o
Lytelton? O Olivier? É o palco do National Theatre que você tá
querendo é?
- Mas olha aí o terror dessa luz fluorescente! (...)
Ora, deixa de frescura. Já pra cena!
- Não vou.
- Vai. E vai já!!
E pronto: a voz do eu-escritora é sempre mais forte. (FM,
p.117).
Esse diálogo entre dois “eus”, o eu-escritora e o eu-atriz nos remete ao que
observamos em Livro: um encontro, a respeito da dramatização de si, em que o sujeito é
duplo, ator e personagem, mas que em Livro se apresenta como autor, atriz e
personagem ao mesmo tempo, ocorrendo ainda em dois planos, no plano da escrita e no
plano da performance. Aqui temos também essa tríade, escritora atriz e personagem se
desdobrando em dois planos. No plano da performance, na medida em que a narradora
representa a autora e a sua porção atriz/personagem apresentando Fazendo Ana Paz com
as Mabembadas; e no plano da escrita, na medida em que, dramatizando a si mesma
temos a narradora/autora criando uma personagem de si mesma. Esse diálogo
corporificando os dois “eus” simboliza essa multiplicidade de identidades que o sujeito
apresenta em um texto em que o “eu” é a matéria de ficção.
Para Doubrovsky, “Se a verdade de um sujeito é a ficção que rigorosamente
dele se constrói, a verdade da ficção é fictícia”. Ao construir um texto sobre si mesma,
sua infância, suas experiências, suas viagens, seu processo criativo, Lygia Bojunga
constrói ficção a partir de sua verdade, transformando dessa forma a sua verdade em
ficção. Leonor Arfuch pondera que
137
Se os gêneros canônicos são obrigados a respeitar certa
verossimilhança da história contada -o que não supõe
necessariamente veracidade-, outra variantes do espaço
biográfico podem produzir um efeito altamente
desestabilizador, talvez como “deforra” diante de um excesso
de referencialidade “testemunhal”: as que, sem renúncia à
identificação de autor, se propõem a jogar outro jogo, o de
transtornar, dissolver a própria ideia de autobiografia, diluir
seus umbrais, apostar no equivoco, na confusão identitária ou
indicial. (ARFUCH, 2005, p.64).
Em Feito à Mão nos deparamos justamente com o excesso de referencialidade
testemunhal, o que, nos guiando por Arfuch, ao invés de atestar a sua veracidade,
desestabiliza. Lygia Bojunga não renuncia à identificação com a sua figura autora e
desta forma joga um outro jogo, ela transtorna e dissolve a ideia de autobiografia. São
os “eus” que se multiplicam, confundindo a identificação do sujeito.
Livro: um encontro com Lygia Bojunga Nunes, Fazendo Ana Paz, Paisagem,
Feito à Mão, O Rio e Eu e Retratos de Carolina se situam nesse entre-lugar da mentira
e da confissão, no meio do caminho entre a autobiografia e a ficção. Não são
autobiografia, mas são extremamente auto referenciais. A imagem do autor, que se
materializa naquela voz que nos confunde por vezes, é uma imagem construída,
teatralizada. A autora pode abarrotar o texto de referências autobiográficas o quanto
quiser, pode se expor, exprimir suas ideias livremente, opinar, criticar o meio editorial,
ela é totalmente livre, pois não é ela, Lygia Bojunga, quem fala, é uma personagem-
autora. Por isso, é perfeitamente possível materializar-se na própria narrativa, dialogar
com uma de suas personagens, cindir-se em múltiplos “eus”.
De acordo com Klinger,
O sujeito que “retorna” nessa nova prática de escritura em
primeira pessoa, não é mais aquele que sustenta a autobiografia:
a linearidade da trajetória da vida estoura em beneficio de uma
rede de possíveis ficcionais. Não se trata de afirmar que o
sujeito é uma ficção ou um efeito de linguagem, como sugere
Barthes, mas que a ficção abre um espaço de exploração que
excede o sujeito biográfico. (KLINGER, 2007, p.49).
Lygia Bojunga abre um espaço de exploração nesses textos, abre infinitas
possibilidades. Ela traz à tona a sua face autora (aquela marcada pelo rótulo de autora de
livros infanto-juvenis) e desmistifica essa imagem, expondo uma face inacabada, em
138
construção, que se multiplica e nos confunde. Somos lançados na penumbra, no
interstício entre “real’ e “ficção”, os limites diluídos para dar lugar à incerteza.
Narrando a si mesma, a autora cria para si um personagem e questiona a respeito dos
modos de representação. Será mesmo necessário decidir? É ficção? É autobiografia? É
autoficção? É literatura infanto-juvenil? Não precisamos decidir, apenas jogar esse jogo
de representação que o texto nos apresenta e prosseguir através do jardim de caminhos
do texto ficcional de Lygia Bojunga.
139
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo Leonor Arfuch, com a pós-modernidade advém
a crise dos grandes relatos legitimadores, a perda de certezas e
fundamentos (da ciência, da filosofia, da arte, da política), o
decisivo descentramento do sujeito e, coextensivamente, a
valorização dos “microrrelatos”, o deslocamento do ponto de
mira onisciente e ordenador em benefício da pluralidade de
vozes, da ludibridização, da mistura irreverente de cânones,
retóricas, paradigmas e estilos. (ARFUCH, 2010, p.17)
Há a valorização dos pequenos relatos e o retorno do sujeito em detrimento do
sujeito coletivo. A entrevista e sua compulsão de realidade, seu caráter “ao vivo”
adquirem importância, uma amostra do gosto pelo consumo da privacidade alheia,
exacerbada nos realities shows. As confissões, autobiografias, memórias, diários
íntimos ocupam um espaço decisivo para a consolidação do individualismo (ARFUCH,
2010).
Nesse cenário temos o segundo movimento do trajeto literário de Lygia
Bojunga identificado aqui nesse estudo e isso propicia um espaço para discussão. As
seis narrativas que compõem o nosso corpus principal, priorizam em maior ou menor
grau esse espaço de confissão, esse relato do íntimo, esse tom de memórias. As seções
“Pra você que me lê” adquirem um tom predominantemente confessional, na medida em
que a voz narrativa se dirige aos leitores e revela aspectos do processo criativo que
ficariam na escuridão, caso não fossem iluminados naquele espaço. Contudo, Lygia
Bojunga orgulha-se por estar na contramão das tendências: prefere escrever a lápis a
usar o computador; produz um livro artesanal em plena era tecnológica, funda uma
editora que não pretende lucrar, já que os únicos livros editados serão os seus; percorre
o interior do Brasil realizando apresentações teatrais sem nenhuma veiculação
publicitária. A partir dessa perspectiva, situamos suas narrativas em primeira pessoa no
entre-lugar da tendência e da contramão.
A “trilogia do livro” inaugura essa nova etapa com as primeiras narrativas em
primeira pessoa, e além de serem em primeira pessoa carregam uma voz extremamente
referencial e que no caso de Livro: um encontro, o primeiro livro da trilogia, até
assume-se como a voz da autora.
140
Em Livro: um encontro com Lygia Bojunga Nunes, temos essa voz que se
assume como Lygia Bojunga, está na capa inclusive e a narrativa se constitui de
memórias, são narrados episódios em que a leitura despertou paixões, bem como
episódios e reflexões acerca do seu envolvimento com a escrita. Apesar do nome na
capa, a primeira pessoa não se atribui nome algum, mas há vários elementos
identificadores na narrativa, além de fotos da autora no livro, referentes à apresentação
teatral encenada a partir deste livro. Para Diana Klinger,
O autor é considerado como sujeito de uma performance, de
uma atuação, um sujeito que “representa um papel”, na própria
“vida real”, na sua exposição pública, em suas múltiplas falas
de si, nas entrevistas, nas crônicas e auto-retratos, nas palestras.
Portanto, o que interessa do autobiográfico no texto de
autoficção não é uma certa adequação à verdade dos fatos, mas
sim “a ilusão da presença, do acesso ao lugar de emanação da
voz” (Arfuch, 2005, p.42). Assim, a autoficção adquire outra
dimensão que não a ficção autobiográfica, considerando que o
sujeito da escrita não é um “ser” pleno, senão que é resultado de
uma construção que opera tanto dentro do texto ficcional
quanto fora dele, na “vida mesma”. (KLINGER, 2007, p.55,
grifos da autora).
Portanto, essa voz em Livro: um encontro é uma voz que se constrói dentro do
texto, se reinventa e ao remeter diretamente à voz do sujeito empírico evoca uma
construção desse própria sujeito, criando o mito do escritor. Pensar em Lygia Bojunga é
pensar em uma autora engajada com os problemas sociais, preocupada com questões
ecológicas, responsável por projetos que estimulem a leitura. Essa figura é o mito
construído cuidadosamente em seus livros cuja voz se (con)funde com a voz da autora e
nas seções “Pra que você que me lê”, em que se instaura um diálogo aberto e que
propicia a transmissão dos elementos que deseja difundir.
E além disso essa narrativa é a publicação em livro de uma apresentação
teatral, o que reforça a construção do mito do escritor. Ao dramatizar-se a autora
constrói uma personagem de si mesma, nos fornece essa construção simultânea de
autora/atriz/personagem ao vivo. Se a escrita em que as vozes do autora e do narrador
difusas já implica uma construção em que o texto inacabado vai se construindo ao vivo,
a dramatização desse texto no palco transcende essa metáfora e é presentificada no
palco.
141
Em Retratos de Carolina, com o embate entre autora e personagem há o
desdobramento em dois planos, o plano em que se dá esse embate e o plano das
memórias da personagem, e assim se abre um espaço de subversão dos modos de
representação. A seção “Pra você que me lê” é um espaço destinado ao diálogo com o
leitor, contudo aqui se abre um outro espaço de narrativa, em que o processo da escrita
se desenrola ao vivo e que questiona a autoria. Carolina se apossa das memórias da
narradora/autora e cria para si as suas próprias, afastando-se inclusive de si mesma, já
que nesse novo contexto a história da personagem desenvolvida na narrativa até então
está em suspenso.
Em Escritas de si, escritas do outro, Diana Klinger reflete acerca de um
romance de João Gilberto Noll, Berkeley em Bellagio, romance em que há muitos
elementos identificadores com a figura do autor. O narrador se chama João, é um
escritor de meia-idade, brasileiro, leciona na Universidade de Berkeley e que recebe um
convite para escrever um romance em Bellagio, na Itália. Todos esses elementos
coincidem com o autor empírico. Entretanto o narrador sofre uma queda e provoca um
distúrbio em sua memória, tornando as suas lembranças nebulosas, assim como a sua
própria identidade. Uma autobiografia se fundamenta na memória, são lembranças de
episódios ocorridos na vida do autor, portanto a perda da memória desestabiliza a
autenticidade do discurso autobiográfico. Klinger complementa:
De maneira que o retorno do autor, do nome próprio recalcado
nos outros romances de Noll, é coerente com a reconfiguração
contemporânea a noção de subjetividade, isto é, não como
retorno de um sujeito pleno, fundamento e autoridade
transcendente do texto, e sim como um sujeito não essencial,
fragmentado, incompleto e suscetível de autocriação.
(KLINGER, 2007, p.61).
A personagem Carolina representa esse sujeito fragmentado, incompleto e
suscetível de autocriação. A narrativa em episódios, os chamados “Retratos”, é
fragmentada, já que cada episódio retrata um dos momentos de vida que muitas vezes
espaçam-se por anos, no primeiro ela tem seis anos, no segundo quinze e no terceiro
vinte anos. Além disso, há momentos de digressão que remontam a um tempo anterior e
também que funcionam como um parêntese para desenvolver um momento ou um
personagem que ainda não havia sido elaborado. A narrativa é incompleta, a seção “Pra
você que me lê” irrompe anunciando que após o último narrado desenvolvido antes dali
142
houve um bloqueio e a narradora não conseguiu avançar, o que gera todo esse
movimento de desdobramento mencionado. Depois disso há a retomada com os dois
últimos retratos, mas que ainda assim permanecem em aberto, abertos a múltiplas
identificações. Se a narrativa é incompleta, a personagem é incompleta, inacabada, e
insatisfeita com a sua incompletude busca preencher esse vazio criando-se a si mesma a
partir de seu diário. Essa subversão da memória, portanto, desestabiliza a autenticidade
da voz narrativa como a voz do sujeito empírico, é o autor como personagem construído
no discurso.
Feito à Mão e O Rio e Eu são as narrativas que mais se assemelham a
memórias instaurando instantaneamente a identificação com a autora empírica, devido
não só aos vários elementos identificadores presentes na narrativa como também ao tom
mesmo de confissões operado na trama. São lembranças da infância, da adolescência, de
momentos significativos da trajetória da narradora e tudo isso leva a uma automática
identificação com um relato de memórias. Contudo Leonor Arfuch argumenta que
outras variantes do espaço biográfico podem produzir, além do efeito desestabilizador a
que já nos referimos, esse autor difuso, que seria:
um autor que dá seu nome a um personagem ou se narra na
segunda ou na terceira pessoa, faz um relato fictício com dados
verdadeiros ou o inverso, inventa para si uma história outra,
escreve com outros nomes, etc etc. Deslizamentos sem fim, que
podem assumir o nome de “autoficção” na medida em que
postulam explicitamente um relato de si consciente de seu
caráter ficcional e desligado, portanto, do “pacto” de
referencialidade biográfica (ARFUCH, 2010, p.127, grifos da
autora).
Esses relatos são conscientes de seu caráter ficcional, se desligando assim da
sua referencialdiade biográfica. Não há pacto estabelecido através da coincidência ou
não entre autor e narrador que estabeleça se o texto é ou não ficcional. Esses textos
instauram a ambiguidade, se propõem transtornar e dissolver a ideia de um texto
calcado nas certezas: este é um texto ficcional, este é um texto autobiográfico, este é um
texto infanto-juvenil, este é um texto teatral. Na contramão da valorização dos textos de
memórias, confissões, que valorizam o individualismo, Lygia Bojunga provoca
incertezas e nos lança no terreno da ambiguidade. Por que classificar seus textos como
um ou outro, quando podem ser um e outro?
A iluminação dos bastidores da escrita é a palavra de ordem nos seis livros que
compõem o nosso corpus principal. Seja refletindo sobre ele, seja expondo esse
143
processo, seja transformando esse processo em matéria literária, seja mitificando o autor
e assim mitificando esse processo, o desvelamento do processo criativo é um tema caro
e recorrente nesses livros. Ele é o ponto de partida para os questionamentos acerca dos
modos de representação e subverte na medida em que cria arte com o que normalmente
permanece nos bastidores.
Observamos o quão complexa é a obra de Lygia Bojunga para encaixotá-la em
uma categoria de “autora de livros infanto-juvenis”. Reconhecemos a sua força nesse
âmbito, contudo consideramos que aprisioná-la em uma categoria limita o potencial da
sua obra. Por que não literatura que criança também pode ler ao invés de literatura
infanto-juvenil? Sendo que, como observamos, a maioria dos livros concebidos após a
trilogia podem ser lidos por crianças. Não pretendemos aqui levantar uma bandeira
acerca da “inclusão” de Lygia na categoria “literatura para adultos”, se é que isso existe,
pretendemos apenas questionar acerca desses modos de representação e desejamos
profundamente que os leitores que encontrarem livros de Lygia Bojunga nas prateleiras
das livrarias se libertem dessas amarras e leiam seus livros despidos de pré-conceitos.
Lançamos aqui essas provocações e esperamos suscitar outros projetos no
futuro, que visem estudar a obra de Lygia Bojunga e de outros autores considerados
infanto-juvenis abordando características inerentes à sua narrativa, sem a roupagem
habitual de texto voltados para o público infanto-juvenil.
Para finalizar, lançando uma última provocação, retomo a primeira pessoa da
introdução que não foi casual, nem descuidada, mas uma pequena fagulha em um
estudo sobre as performances de uma primeira pessoa ancorada na referencialidade.
Penso que, para finalizar nada mais justo do que assumir a minha referencialidade e
retomar o que comecei, lançando mão de uma provocação: Por que não, de preferência,
a inverdade? Ou a incerteza? Ou mesmo a insciência? (Nietzche, 2000, p.9).
144
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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145
___. Tchau. Rio de Janeiro: Agir, 1987.
___. Corda Bamba. Rio de Janeiro: Agir, 1988.
___. Livro: um encontro com Lygia Bojunga Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 1988.
___. A Casa da Madrinha. Rio de Janeiro: Agir, 1989.
___. Fazendo Ana Paz. Rio de Janeiro: Agir, 1993.
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Lygia Bojunga. 224p. Tese (Doutorado). Universidade Estadual Paulista, Instituto de
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152
ANEXOS
Figura 1. Título do capítulo de Nós Três.
Figura 2. Página que precede a narrativa de O Abraço.
153
Figura 3. Capa de Tchau pela Editora Agir.
Figura 4. Capa da edição de Tchau pela Casa Lygia Bojunga.
154
Figura 5. Capa de Seis Vezes Lucas pela Editora Agir.
Figura 6. Capa da edição de Seis Vezes Lucas pela Casa Lygia Bojunga
155
Figura 7. Capa de Nós Três pela Editora Agir.
Figura 8. Capa da edição de Nós Três pela Casa Lygia Bojunga.
156
Figura 9. Capa de Fazendo Ana Paz pela Editora Agir.
Figura 10. Capa da edição de Fazendo Ana Paz pela Casa Lygia Bojunga.
157
Figura 11. Capa de O Sofá Estampado pela Editora Agir.
Figura 12. Capa da edição de O Sofá Estampado pela Casa Lygia Bojunga.
158
Figura 13.
Figura 14.
159
Figura 15.