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ISSN 2177-8892
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ASPECTOS PEDAGÓGICOS DA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
BRASILEIRA NA FORMAÇÃO DE TRABALHADORES RURAIS:
UM ESTUDO SOBRE O PROSAVANA EM MOÇAMBIQUE
Inny Accioly1
INTRODUÇÃO
O processo de “transnacionalização” de empresas brasileiras e a expansão destas
em direção a países africanos coloca em evidência a demanda por formação profissional
no exterior. Ao mesmo tempo, é observado que instituições brasileiras de formação
profissional (como SENAI, SENAR e EMBRAPA) estão servindo de modelo para a
estruturação de centros de formação profissional em países africanos (BANCO
MUNDIAL; IPEA, 2011).
Esta pesquisa de doutoramento, que se encontra em andamento, busca investigar
o modelo de educação voltado para a formação de trabalhadores rurais que é exportado
pelas instituições técnico-científicas brasileiras envolvidas no programa PROSavana.
Este programa tem o objetivo de promover o “desenvolvimento rural” em Moçambique,
por meio de Cooperação Técnica trilateral firmada entre os governos do Brasil, Japão e
Moçambique.
Enquanto formação de força de trabalho em uma sociedade capitalista, a
formação profissional é um campo em disputa entre “projetos hegemônicos voltados ao
capital e projetos outros de educação do trabalhador como resistência ao modo de
produção de vida existente” (PEREIRA, 2012, p.288).
Desta maneira, a formação profissional rural difunde saberes, valores e modos
de agir no mundo do trabalho que, no caso da agricultura, expressa tensões e
contradições, entre, de um lado, formas de uso comum da terra e a agricultura
camponesa e, de outro, a organização capitalista da agricultura e o agronegócio.
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e bolsista CAPES. [email protected]
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A problemática de pesquisa aponta para a necessidade de compreender quais as
concepções de educação são difundidas por meio das instituições brasileiras quando
estas atuam no exterior.
Para responder a esta problemática, selecionamos o caso do PROSavana, que
está sendo implementado em Moçambique.
Enquanto fundamento teórico-metodológico, elegemos o materialismo histórico-
dialético.
Nossa hipótese aponta que as instituições de formação profissional brasileiras
envolvidas no PROSavana cumprem a função ideológica de formar trabalhadores
moldados às estritas necessidades do mercado capitalista, encoberta pela função técnica
de difundir conhecimentos acumulados sobre agricultura tropical. Por conseguinte, o
PROSavana excluiria as perspectivas da formação para emancipação humana presentes
no processo de independência das colônias africanas.
1. OBJETIVO GERAL
Investigar o modelo de educação exportado pelas instituições técnico-científicas
brasileiras para a formação de trabalhadores rurais no projeto PROSavana.
2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS
Identificar se existem afinidades entre as demandas de formação de
trabalhadores expressas pelos grupos empresariais brasileiros que atuam em
Moçambique e as ações pedagógicas promovidas pelas instituições técnico-
científicas envolvidas no PROSavana.
Identificar em que medida as ações do PROSavana dialogam e/ou incorporam as
críticas formuladas pelos movimentos sociais camponeses de Moçambique.
Identificar se existem tensões e contradições entre as demandas do capital e as
demandas dos camponeses moçambicanos e em que medidas estas tensões se
relacionam com a perspectiva de emancipação humana.
RELAÇÕES ENTRE BRASIL E MOÇAMBIQUE
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Moçambique figura como o “laboratório” da Cooperação Internacional
brasileira. Este país africano, que guarda semelhanças com o Brasil devido à
colonização portuguesa, estabeleceu acordos de cooperação com o Brasil para a
implantação de diversos projetos, entre eles: o projeto Bolsa-Escola; o Programa
Alfabetização Solidária; o Programa de Alfabetização e Educação de Adultos; o
Programa Nacional de Alimentação Escolar de Moçambique; o Centro de Formação
Profissional Brasil-Moçambique (para implantação de modelo baseado nas práticas de
gestão do SENAI); o Programa de Cooperação para formação, em regime de Educação
a Distância (EaD), de professores e agentes do serviço público de Moçambique, e,
ainda, projetos de formação direcionados às áreas da saúde e da agricultura.
Além de abrigar empresas brasileiras como a Vale, Camargo Correa, Odebrecht
e Andrade Gutierrez, Moçambique é a única nação do mundo (além do Brasil) em que
atuam quatro instituições do Sistema “S” (SENAR, SENAI, SENAC e SEBRAE),
voltadas para a formação profissional e aperfeiçoamento de processos produtivos.
O panorama abaixo, apresentado em 2009 na ocasião da 39a
Reunião do Centro
Interamericano para o Desenvolvimento do Conhecimento na Formação Profissional
(CINTERFOR), realizada em Brasília, apresenta a atuação internacional do “Sistema
S”.
Fonte: http://www.oitcinterfor.org/sites/default/files/edit/docref/rct/39/senai_pt.pdf
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Em fevereiro de 2013, em discurso proferido na ocasião da cerimônia de
abertura da III Cúpula América do Sul-África (ASA), realizada na Guiné Equatorial, a
presidenta Dilma Rousseff anunciou:
Mas eu estou aqui hoje para propor e construir parcerias concretas.
Quero propor como mais uma parceria entre nós e para os países
africanos no âmbito da ASA, uma parceira na área da formação de
professores e gestores para o ensino técnico profissionalizante para a
formação de estudantes especialmente do setor agropecuário. [...] Nós
usaremos toda a rede que o Brasil tem de institutos federais de ensinos
técnicos, profissionais. Usaremos a nossa Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária, a parceria com entidades empresariais do
setor agrícola e do setor industrial para dar suporte à formação tanto
de estudantes quanto de professores, de técnicos como de agrônomos,
na área do ensino médio como na área do ensino universitário. Na
última década, o Brasil ofertou mais de 5 mil bolsas de estudo de
graduação e pós-graduação. Nós também criamos a universidade, a
chamada Unilab, universidade voltada para a integração com a África
e América Latina, que hoje já tem mais de mil estudantes. Mas nós
queremos caracterizar essa cooperação e focá-la mais ainda em áreas
que nós podemos fazer a diferença com a nossa cooperação. Outra
iniciativa importante que também nós colocamos à disposição é a
Universidade Aberta do Brasil, de ensino à distância, que hoje já
opera um pólo presencial em Moçambique. Estamos dispostos a
ampliar essa rede especialmente para os cursos, repito, de agronomia e
da área de saúde. Queria lembrar aos senhores que no passado nós
construímos a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária enviando
para o exterior na década de 70, 80, final da década de 70 e início da
década de 80, enviando mil estudantes para os Estados Unidos e a
Europa. A partir desses mil estudantes nós criamos, talvez, uma das
tecnologias agrícolas mais competitivas do mundo. O que nós estamos
oferecendo aos senhores é uma trajetória diferente dessa. Nós estamos
oferecendo não só a formação lá no Brasil, mas também - com o apoio
dos senhores - aqui na África, o que nós consideramos que nós temos
de melhor. Aliás, as atividades do escritório da Embrapa, Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária, em Gana; e de projetos como a
fazenda modelo para produção de algodão, nos países do Cotton 4 e o
Pró-Savana, em Moçambique, são exemplos bem sucedidos de
cooperação para o desenvolvimento agrícola.2
2 O Discurso na íntegra está disponível no site do Planalto:
<http://www2.planalto.gov.br/imprensa/discursos/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-na-
cerimonia-de-abertura-da-iii-cupula-america-do-sul-africa-malabo-guine-equatorial>. Acesso setembro de
2013.
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O programa PROSAVANA, fruto de parceria entre os governos do Brasil, Japão
e Moçambique, tem como objetivo o “desenvolvimento agrícola e rural” em
Moçambique.
O Programa se inspira na experiência adquirida através dos programas
brasileiros de desenvolvimento agropecuário realizados em parceria
com a Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA),
principalmente a experiência e os resultados do Programa de
Cooperação Japão-Brasil para o Desenvolvimento dos Cerrados
(PRODECER) e Programas de Assentamento Dirigido no Distrito
Federal (PAD-DF), desenvolvido a partir de 1973. [...]Concebido
como um Programa de Desenvolvimento Agrícola e Rural para o
Corredor de Nacala, em Moçambique, o ProSAVANA-JBM tem
como objetivo melhorar a competitividade do setor rural da região,
tanto em matéria de segurança alimentar a partir da organização e do
aumento da produtividade no âmbito da agricultura familiar, como na
geração de excedentes exportáveis a partir do apoio técnico à
agricultura orientada para o agronegócio. (PROSAVANA-TEC, 2011,
p.3)
Este programa vem sendo denunciado por movimentos sociais de Moçambique,
do Brasil e do Japão 3 por promover, na região de Nacala, em Moçambique, a
apropriação de terras por corporações transnacionais, o que contribuiria para a
expropriação de agricultores familiares moçambicanos e o surgimento da figura do
trabalhador rural sem-terra em Moçambique.
Em termos de infraestrutura, o PROSAVANA prevê a estruturação de “centros
integrados de investigação agrária”, equipados com laboratórios e unidades de
“beneficiamento” de sementes genéticas e básicas, dispondo de “recursos humanos
capazes de planejar, coordenar e executar projetos de pesquisa agropecuária”
(PROSAVANA-TEC, 2011, p.7).
Em termos de capacitação e treinamento de recursos humanos, a ideia
é romper os problemas de internalização dos sistemas de produção a
serem estudados e recomendados e relativos tanto aos diferentes
idiomas falados no campo, como no que se refere às atitudes e
3 “Mais de 60 movimentos sociais, ambientais, camponesas e várias organizações da sociedade civil
(OSC) de Moçambique, Brasil e Japão participam da Primeira Conferência Triangular dos Povos
agendada para os próximos dias 7 e 8 de Agosto de 2013 na cidade de Maputo. A Conferência de Maputo
tem como objetivo fortalecer a articulação internacional e as estratégias de luta e resistência contra o
Programa Prosavana em curso no país desde 2009, contribuindo deste modo para uma melhor definição,
implementação e monitoria de políticas públicas em prol de um desenvolvimento integrado”. Disponível
em < http://www.unac.org.mz/index.php/7-blog/56-povos-de-mocambique-brasil-e-japao-discutem-em-
maputo-formas-de-resistencia-detencao-e-reflexao-do-prosavana>. Acesso setembro 2013.
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comportamentos sociais segundo as diferentes etnias e estágios de
conhecimentos em agricultura e pecuária. Neste caso, é que se
pretende envolver instituições e organizações locais na execução do
projeto, treinar seus quadros no Brasil e em Moçambique, e formar
uma equipe de pelo menos 150 multiplicadores capazes de ensinarem
e disseminarem na região novas técnicas de gerenciamento do uso de
recursos naturais para uso agrícola; de multiplicação, beneficiamento
e comércio de sementes; de gestão da pesquisa, planejamento
participativo e de difusão de tecnologias; e do uso de modelos de
decisão para o gerenciamento da produção, processamento e comércio
da produção agrícola; entre outros. (idem, p.12)
Percebemos que o PROSAVANA carrega em seu discurso a ideia de educação
enquanto uma ferramenta voltada unicamente para “capacitação” e “treinamento” de
pessoas – vistas como “recursos humanos” -, com o objetivo de facilitar a chamada
“internalização” das recomendações, em um processo explicitamente de fora para
dentro.
A previsão de formação de “multiplicadores” reforça esta ideia, afirmando que
estes indivíduos terão a função de disseminar “novas técnicas de gerenciamento do uso
de recursos naturais”, desconsiderando as técnicas tradicionais locais. Ao mesmo
tempo, o documento fala em “planejamento participativo”.
Nestes “Centros Integrados” também está prevista a criação de um módulo de
“Educação Ambiental em Agricultura”. Entretanto, o projeto não fornece maiores
detalhes sobre os objetivos educacionais deste módulo.
No âmbito do PROSAVANA, a formação profissional rural está a cargo da
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), empresa pública vinculada
ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), e do Serviço
Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), entidade de direito privado, paraestatal,
mantida pela classe patronal rural, vinculada à Confederação da Agricultura e Pecuária
do Brasil (CNA).
Por compreendermos que a educação apresenta-se historicamente como um
campo da disputa hegemônica, materializando-se no embate pela articulação das
concepções e pela organização dos processos educacionais que ocorrem nas diferentes
esferas da vida social de acordo com os interesses de classes (FRIGOTTO, 2010),
entendemos que os “conhecimentos técnicos” a serem “transferidos” não são
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conhecimentos neutros e que seguem a lógica de uma racionalidade cindida pela
perspectiva de classes.
Na perspectiva das classes dominantes, historicamente, a educação
dos diferentes grupos sociais de trabalhadores deve dar-se a fim de
habilitá-los técnica, social e ideologicamente para o trabalho. Trata-se
de subordinar a função social da educação de forma controlada para
responder às demandas do capital. (FRIGOTTO, 2010, p.28)
Conforme aponta Frigotto (2010), o embate entre as concepções de educação da
classe trabalhadora e das classes dominantes aparece repleto de sutilezas, que se
refletem nas concepções acerca do papel social da educação ou, especificamente, da
relação entre o processo de produção e os processos educativos ou de formação humana.
Neste embate, as políticas públicas de educação e de formação humana foram
historicamente definidas a partir das necessidades e demandas do processo de
acumulação de capital sob as diferentes formas de sociabilidade que este assumiu em
seus diferentes momentos históricos. “Ou seja, reguladas e subordinadas pela esfera
privada, e à sua reprodução”. (FRIGOTTO, 2010, p.33)
Ao afirmarmos o Estado enquanto instrumento de uma classe, precisamos
sempre considerar que ele é também, e ao mesmo tempo, lugar de luta pela hegemonia
e processo de unificação das classes dirigentes (LIGUORI, 2007). O “Estado
Ampliado”, enquanto conceito de Gramsci, é atravessado pela luta de classes. A
dialética é real, aberta, o resultado não pode ser predeterminado.
O estado é certamente concebido como organismo próprio de um
grupo, destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima
deste grupo, mas este desenvolvimento e esta expansão são
concebidos e apresentados como a força motriz de uma expansão
universal, de um desenvolvimento de todas as energias “nacionais”,
isto é, o grupo dominante é coordenado concretamente com os
interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida
como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis (no
âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses
dos grupos subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo
dominante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja, não
até o estreito interesse econômico-corporativo. (GRAMSCI, 2011,
p.41-42)
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Se é verdade que a disputa da classe trabalhadora por processos educacionais
geridos pelo Estado tenciona para que os recursos públicos sirvam a esta classe e
contribuam para seu processo de formação e organização seguindo seus próprios
interesses, também é verdade que a ideologia das classes dominantes, por ter meios de
difusão em maior quantidade e com maior força, contribui para que os interesses da
classe burguesa sejam absorvidos como sendo interesses comuns e em “harmonia” aos
interesses da classe trabalhadora.
Florestan Fernandes (1975), em suas análises sobre a formação social nos países
capitalistas dependentes, aponta que as burguesias nacionais destes países, para além da
defesa de um “legítimo interesse nacional”, se converteram em formas internalizadas de
defesa do capitalismo:
As burguesias nacionais dessas nações converteram-se, em
consequência, em autênticas “fronteiras internas” e em verdadeiras
“vanguardas políticas” do mundo capitalista (ou seja, da dominação
imperialista sob o capitalismo monopolista) [...] Elas querem: manter
a ordem, salvar e fortalecer o capitalismo, impedir que a dominação
burguesa e o controle burguês sobre o Estado nacional se deteriorem.
(FERNANDES, 1975, p.294-295, grifos do autor)
Fontes (2010) aponta que a burguesia brasileira remói, resulta e promove
contradições: atualiza as heranças das formas de dominação pregressas (como o racismo
e a subalternidade cultural); resulta da contraditória articulação que conecta setores
nativos profundamente desiguais a uma subordinação ao capital-imperialismo; promove
contradições ao levar ao extremo sua ambivalente situação de impotente prepotente,
com enorme crescimento da produção de commodities (adequada à posição de
subalternidade) ao lado do estímulo dado pelo Estado à expansão de empresas
transnacionais, procurando aproximar-se da ponta dominante do capital-imperialismo.
Nesta linha, Fontes (2010) ainda ressalta as formas com que a burguesia
brasileira insere-se no capitalismo mundial: exportando suas tradições truculentas,
somadas à uma ampla rede de convencimento no âmbito da sociedade civil, convertida
em política de Estado.
Neste contexto, assume materialidade o conceito Gramsciano de Estado
“educador”, na medida em que uma das suas funções mais importantes (e quase sempre
esquecida) é elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e
moral, nível que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas
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e, portanto, aos interesses da classe que está no domínio. Desta forma, o Estado age
também como uma “racionalização” da produção nacional, como um instrumento de
“aceleração” que, operando segundo um plano, pressiona, incita e impele.
A “COOPERAÇÃO” BRASILEIRA
O histórico da cooperação técnica internacional, como mecanismo “auxiliar do
desenvolvimento”, remonta ao final da Segunda Guerra Mundial, especificamente à
conferência de Bretton Woods, em 1944, quando foram criados o Banco Mundial e o
Fundo Monetário - FMI. As primeiras iniciativas de estruturação da cooperação
internacional (científica, técnica e tecnológica) foram motivadas pelas Nações Unidas
sob a justificativa da necessidade de reconstrução dos países afetados pela guerra e da
necessidade de acelerar o desenvolvimento dos países “menos industrializados”.
A expressão “assistência técnica” foi instituída, em 1948, pela Assembleia Geral
das Nações Unidas (ONU), que a definiu como sendo
a transferência, em caráter não comercial, de técnicas e
conhecimentos, mediante a execução de projetos a serem
desenvolvidos em conjunto entre atores de nível desigual de
desenvolvimento, envolvendo peritos, treinamento de pessoal,
material bibliográfico, equipamentos, estudos e pesquisas. 4
Em 1959, a Assembleia Geral da ONU decidiu rever o conceito de "assistência
técnica”, substituindo a expressão por "cooperação técnica”, termo que era propício para
definir “uma relação que, se por um lado pressupõe a existência de partes desiguais, por
outro representa uma relação de trocas, de interesses mútuos entre as partes”. 5
A influência dos “acordos de cooperação internacional norte-sul” e do Banco
Mundial nas políticas educacionais brasileiras já foi alvo de inúmeras investigações
(LEHER,1998; FONSECA,1998; ARRUDA,1998). Estas políticas contam com o apoio
decisivo dos governos e das elites nacionais que viabilizam sua inserção e
4 Agência Brasileira de Cooperação. Disponível em
<http://www.abc.gov.br/CooperacaoTecnica/Historico>. Acesso setembro 2013. 5 Agência Brasileira de Cooperação. Disponível em
<http://www.abc.gov.br/CooperacaoTecnica/Historico>. Acesso setembro 2013.
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operacionalização seguindo as orientações das agências que monitoram, por meio do
mecanismo das condicionalidades, as metas acertadas.
Nesse sentido, a propalada “cooperação” consiste, de fato, em
estratégia de expansão das políticas e interesses do capital
internacional, sendo que a educação, nessa perspectiva, restringe-se ao
papel de reproduzir a força de trabalho para o capital, formar
ideologicamente conforme os interesses do mesmo e servir como
segmento do mercado a ser explorado comercialmente pelo setor
privado. (CRUZ, 2003, p.72)
No discurso oficial do Ministério das Relações Exteriores, a cooperação
internacional
constitui importante instrumento de desenvolvimento, auxiliando um
país a promover mudanças estruturais nos campos social e econômico,
incluindo a atuação do Estado, por meio de ações de fortalecimento
institucional. Os programas implementados sob sua égide permitem
transferir ou compartilhar conhecimentos, experiências e boas-práticas
por intermédio do desenvolvimento de capacidades humanas e
institucionais, com vistas a alcançar um salto qualitativo de caráter
duradouro.6
O surgimento da “cooperação técnica entre países em
desenvolvimento (CTPD)”, também conhecida como “cooperação horizontal” ou
“cooperação sul-sul”, é associado à inauguração do “Movimento dos Países Não
Alinhados” na Conferência de Bandung, em 1955, sob o contexto de descolonização e
da Guerra Fria (ABREU, 2012).
A partir da análise histórica da Cooperação Sul-Sul (CSS), observa-se que
inicialmente o discurso diplomático multilateral do Sul era opositivo aos países do
Norte. No entanto, ela passou a ser considerada como complementar à “ajuda oficial ao
desenvolvimento”, promovida nas Cooperações Norte-Sul. A principal justificativa
dessa capacidade de complementaridade é a semelhança dos desafios enfrentados pelos
países do Sul, gerando um tipo de conhecimento específico e mais efetivo no “caminho
ao desenvolvimento” que o conhecimento dos países do Norte.
O Brasil entende a cooperação técnica internacional como uma opção
estratégica de parceria, que representa um instrumento capaz de
produzir impactos positivos sobre populações, alterar e elevar níveis
de vida, modificar realidades, promover o crescimento sustentável e
6 Agência Brasileira de Cooperação. Disponível em
<http://www.abc.gov.br/CooperacaoTecnica/Conceito>. Acesso setembro 2013.
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contribuir para o desenvolvimento social. [...] A CGPD [Coordenação
Geral de Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento]
brasileira se faz pela transferência de conhecimentos técnicos e
experiência do Brasil, em bases não comerciais, de forma a promover
a autonomia dos parceiros envolvidos. Para tanto se vale dos seguintes
instrumentos: consultorias, treinamentos e a eventual doação de
equipamentos. [...] A missão da CGPD é "contribuir para o
adensamento das relações do Brasil com os países em
desenvolvimento, para a ampliação dos seus intercâmbios, geração,
disseminação e utilização de conhecimentos técnicos, capacitação de
seus recursos humanos e para o fortalecimento de suas instituições”.7
No Brasil, a cooperação técnica entre países em desenvolvimento ganhou
impulso com a criação, em 1987, da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), ligada
ao Ministério das Relações Exteriores (MRE).
Entre as áreas de atuação mais intensa da ABC se destaca a de
agricultura e educação (programas de alfabetização), responsáveis por
55% da cooperação prestada pelo país, secundadas pelas áreas de
formação de quadros técnicos, biocombustíveis (etanol e diesel),
saúde (combate ao HIV/aids), apoio eleitoral (urnas eletrônicas),
cooperação desportiva (futebol), entre outras. Segundo o Chanceler
brasileiro, ao oferecer oportunidades de cooperação, o Brasil não
almeja ganho ou lucro comercial, assim como nenhuma outra
condicionalidade. Segundo o discurso da ABC, a cooperação prestada
se baseia em valores como a nova visão das relações entre países em
desenvolvimento, inspirada na comunhão de interesse e na ajuda
mútua. (VIDIGAL, 2010, p.41-42)
No âmbito da cooperação técnica sul-sul, o Brasil têm se posicionado, nas
últimas décadas, prioritariamente na condição de “prestador de cooperação técnica”:
O Brasil possui um importante acervo de conhecimentos técnicos e
soluções imaginativas que podem ser aplicados em países com
carência de recursos e de "know-how”. A estratégia maior da
cooperação técnica prestada pelo Brasil, que não é assistencialista, não
tem fins lucrativos nem pretensões comerciais e está centrada no
fortalecimento institucional de nossos parceiros, condição
fundamental para que a transferência e a absorção de conhecimentos
sejam efetivas8.
7 Disponível no site da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), ligada ao Ministério das Relações
Exteriores. < http://www.abc.gov.br/SobreAbc/Direcao/CGPD>. Acesso em setembro de 2013. 8 Disponível em <http://www.abc.gov.br/SobreABC/Direcao/CGPD>. Acesso em setembro de 2013.
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No entanto, em relação a Moçambique, as “pretensões comerciais” brasileiras
fizeram o Brasil alcançar, no ano de 2012, o posto de maior investidor estrangeiro9 neste
país, chegando a superar a antiga metrópole portuguesa.
A Vale do Rio Doce explora carvão mineral em Moatize. A Camargo
Corrêa vai instalar uma hidrelétrica no Rio Zambeze – Mphanda
Nkuwa, a segunda maior da África. A Odebrecht está construindo o
aeroporto internacional de Nacala, em Nampula. Depois da mineração
e da infraestrutura, o agronegócio está virando a mais nova frente de
atividade para os empresários brasileiros.10
Fonte: Projeto PROSAVANA: Melhoria da capacidade de pesquisa e de transferência de tecnologia para o
desenvolvimento da agricultura no corredor de Nacala em Moçambique. Programa EMBRAPA_Moçambique.
Cooperação trilateral Brasil-Moçambique-Japão.
Neste processo, é importante ressaltar a participação ativa das instituições
Moçambicanas, que garantem o “ambiente propício” para os investimentos brasileiros.
Como parte deste “ambiente propício”, está a garantia de intervenção no projeto de
educação do país, conforme explicitado no “Plano estratégico da educação do
Ministério da Educação de Moçambique (2012-2016)”:
O direito de todos à Educação não é apenas responsabilidade e/ou
obrigação do Estado, mas de todos: pais e encarregados de educação,
famílias e comunidades, organizações não-governamentais e parceiros
internacionais. Cada um destes grupos alvo desempenha um papel na
9 Informação divulgada no Jornal O GLOBO do dia 11 de dezembro de 2012. Disponível em
<http://oglobo.globo.com/economia/brasil-desbanca-portugal-se-torna-maior-investidor-estrangeiro-em-
mocambique-7005344>. Acesso setembro de 2013. 10
Disponível em <http://oglobo.globo.com/economia/brasil-desbanca-portugal-se-torna-maior-investidor-
estrangeiro-em-mocambique-7005344>. Acesso setembro de 2013.
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oferta e procura de serviços educativos, dentro das suas capacidades e
meios, em função das necessidades. (Moçambique, 2012, p.19)
CONSIDERAÇÕES
Por ser uma investigação em andamento e que se encontra em estágio iniciais,
nos falta elementos para melhor compreender as contradições que permeiam o objeto de
análise.
Entretanto, considerando que o ensino técnico-profissional agrícola de
Moçambique encontra-se em processo de reforma financiado pelo Banco Mundial,
apontamos a importância desta investigação na compreensão das contribuições
brasileiras neste processo.
É importante ressaltar que os documentos de financiamento do Banco Mundial
preveem reassentamento de famílias como parte da reforma do ensino técnico-
profissional.
Desta forma, consideramos que a compreensão acerca dos aspectos pedagógicos
das relações de cooperação técnica entre Brasil e Moçambique na área da agricultura
trará importantes elementos para o debate sobre as relações entre as atuais diretrizes
pedagógicas para o meio rural no Brasil e demais países do “sul”.
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