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AVICENA (IBN SINA) As DUAS FACES DA ALMA MIGUELATIIE FILHO Abstract: This article presents some employ- ments of the 'Sina'a' (art) in Avicenna's works. It still presents some ideas about Avicenna's writings and his life. Moreover, it introduces some explanation on the analogies between Avicena's medical art and phylosophy accord- ing to his own concept of the human sou!. Houve, na história da filosofia, muitos filósofos que foram médicos, e muitos médicos que foram filósofos. Abu 'Ali Al-Hussein Ibn 'Abd Allah Ibn Al-Hassan Ibn 'Ali Ibn Sina (980-1037 Buhara) conhecido no ocidente pelo nome de Avicena, foi um dos médicos-filósofos da história da filoso- fia. Sua influência no ocidente medieval foi marcante nas duas áreas do conhecimento. O fato de ter curado, em sua juventude, o príncipe Ibn Mansur de uma grave doença, proporcionou-lhe na ocasião, a oportunidade de lhe serem franqueadas as portas da riquíssima biblioteca do príncipe. Este fato colocou em cena três aspectos importantes e que estarão intimamente ligados durante toda a sua vida: a medicina, a filosofia e a política. No campo da medicina, por exemplo, sua obra Al-Qanun fi Al-Tib (o Cânon da Medicina) foi ensinada durante mais de três séculos nas universidades européias, tendo sido este tratado, em cinco volumes, uma síntese dos conhecimentos médicos da época e de seus próprios estudos e pesquisas. Miguel Attie Filho é pesquisador de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. HYPNOE ANO} / NO4

Avicena-As Duas Faces Da Alma

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Estudo sobre o pensador Árabe Avicena (Ibn Sina) e a sua investigação sobre a alma.

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AVICENA (IBN SINA)As DUAS FACESDA AL MAMIGUEL ATIIEFIL HOAbstract: This article presents some employ-ments of the 'Sina'a' (art) in Avicenna's works.It stillpresents someideasabout Avicenna'swritings and his life. Moreover, it introducessomeexplanation on the analogies betweenAvicena's medical art and phylosophy accord-ing to his own concept of the humansou!.Houve, na histria da filosofia, muitos filsofos que foram mdicos, emuitos mdicos que foram filsofos. Abu 'Ali Al-Hussein Ibn 'Abd AllahIbn Al-Hassan Ibn 'Ali Ibn Sina (980-1037 Buhara) conhecidono ocidentepelo nome de Avicena, foi um dos mdicos-filsofos da histria da filoso-fia. Sua influncia no ocidente medievalfoi marcante nas duas reas doconhecimento.O fato de ter curado,em sua juventude, o prncipe Ibn Mansur deuma grave doena, proporcionou-lhe na ocasio, a oportunidade de lheserem franqueadas as portas da riqussima biblioteca do prncipe. Estefatocolocou em cena trs aspectosimportantes e que estaro intimamenteligados durante toda a sua vida: a medicina, a filosofia e a poltica.No campo da medicina,por exemplo, sua obra Al-Qanun fi Al-Tib(o Cnon da Medicina) foi ensinadadurante mais de trs sculos nasuniversidadeseuropias, tendo sido este tratado, em cinco volumes, umasntese dos conhecimentos mdicos da poca e de seus prprios estudose pesquisas.MiguelAttie Filho pesquisador de Filosofia na Pontifcia Universidade Catlica de SoPaulo.H Y P N O EAN O } / N O 486AvicE N A (IBN S IN A) As dUAS fAC E S dA AlMAEntre os rabes, foi chamado "al-Sah,al- Ra'is" - o grandemestre,ograndesbio -,o "Prncipedos Filsofos", o "Galenorabe". Seu pensa-mento foiem parteinfluenciado pelafilosofia aristotlica; sua prticamdica, em parte, pelas teoriasde Galeno.Mesmo assim, noparece ser unnime, porm, que tenha sido omaior dos mdicos rabes. A figura de Al-Razi (Razes no ocidente) talvezpossa t-losuplantado, mas isto teria ocorrido somente no campo daprticada medicina. Na filosofia, reconhece-se que o seu sistema devemuito ao de Al-Farabi, precursor de inmeros elementos importantes dafilosofia rabe. No entanto, parece ser difcil apontar, dentroda histria dafilosofia, algum que se equipare a Ibn Sina em envergadura e importn-cia, simultaneamente nas duas reas - filosofia e medicina.Afirmo isto no simplesmente comouma justificativada sua impor-tncia histrica, o que no seria necessrio, mas antes com o intuitodemostrar que a prticamdicaaliada filosofia lhe possibilitou desenvol-ver um sistema, principalmente nas cincias naturais, de amploalcance,possibilitando que as duas reas se harmonizassem no conjunto de suavida e de sua obra. Esta unidade tambmum dos temas desenvolvidospor Goichon em seu artigo "L'unit de Ia pense avicennienne", no qualatribui o estudofragmentrio do filsofo rabe justamente pela amplitudede sua obra.Por essa razo, entendo que antes mesmo de procurarmos em suafilosofia o queele entendeu por tchne, poderamos dizer quea artemdicafoiporexcelncia, e antesde tudo, a arte de Ibn Sina.No sporque teorizou sobre ela, mas porque a viveu e a praticou.Especificamente, no que se refere utilizao do termo tchne emseus tratados filosficos, encontramo-lo traduzido pela palavra rabe SINA'A.Esta palavra um substantivo que significa arte, fabricao, produo, etc.Este substantivo, SINA'A, uma derivao da raiz verbal triltereSINA'A,que significa produzir, criar, fabricar, obrar,etc.O termo SINA'A utilizado por Ibn Sina num sentido amplo, maisprximo do sentido clssicoencontrado em Plato, do que propriamenteda designao mais restrita dada por Aristteles. Amlie Marie Goichonregistra a ocorrncia do termo SINA'Apara designar arte, assim como tam-bm disciplina, no sentido mais clssico. Se diz geralmente das cinciasonde h uma parte de prtica.Os empregos mais habituais so encontrados em passagens como esta:H Y P N O ~AN O~ /NO 487MiGuElArrie Hll-oQuando afaculdade, que sechama alma racional,reunida mat-ria, o animal, por exemplo, torna-seento racional, prontoa receber acincia eas artes tais como anavegao, aagricultura eaescritura.( Msl, f!l8, b, 1. 9-10)Encontra-se, ainda, SINA'Apara designar a "a arte mdica" (Al-Najat,345 ); assim como tambm "a arte dos naturalistas e dos fsicos (AI-Najat,328).As artes, tomadas nesse sentido, possuem,para Ibn Sina, uma impor-tncia fundamental tanto emrelao formao da sociedade, quanto emrelao manuteno e transmissodesses conhecimentos, pois "o ho-mem quando se encontra na existncia proposta a ele como objetivo, nodeve se abster das sociedades na duraode sua existncia, e no sercomo o resto dos animais onde cada um, na economia de seus meios deviver, limita-se a si mesmo e aos seres existentes,segundo a sua natureza.(...) Melhor, o homem tem necessidade de coisas mais abundantes do queaquilo que est na natureza,por exemplo da comida feita, da roupa feita.(...) por essa razo que o homem temnecessidade, como primeira coisa,da agricultura, e mesmo de outras artes. O homem sozinho no tem opoder de realizar, por si, tudo isso de que ele temnecessidade, antes pelasociedade, de tal modo que algum cozinha o po para este, que estetece para aquele,que aquele transporta algo de pases estrangeirosparaaquele outro, e que este d, de um pas vizinho, algo em troca disso. (...)Assim, por essas causas e por outras mais escondidas, mas mais firmesque estas, que o homem tem necessidadede ter em sua natureza umpoder de ensinar ao outro que seu companheiro, o que est nele mes-mo, por uma designao convencional." (Al-Nafs, V, 1). Esta passagemparece,na verdade, estar ecoando velhos temas gregos sobre a formaoda cidade, tratados por exemplo, por Plato (Repblica, 1 1 ,369b-c) eAristteles(A Poltica, I, 1e 2) dos quais certamente, de algum modo, IbnSina tinha conhecimento.Por outro lado, encontramos tambm o termo SINA'Ana metafsica,por exemplo, num outro sentido,como na seguinte passagem, apesar deno ser frequente: evidentepara ti, segundo esse resumo, que o ser enquanto ser algo de comum atodas essas coisas eque ele deve ser dado como 'sujeito'dessa disciplina(SINA'A).(Al-Sifa' , II 281)HY P NOEAN O ) / N 488AvicE N A(IBN S IN A) As dUAS lAC E S dA AlMAomesmotermo encontrado, ainda, quando se refere lgica:ohomem que possuiaarte da lgica pode regular sua conduta. (Msl,f 3a,l,23)Ou ainda:Ns o explicaremos, embreve,na arte da sabedoria. (Al-Sifa', I 357)Assim, entendo que mesmo no havendo em sua obra uma definioprecisa, e apesar de ser usado fundamentalmente quando se diz das cin-cias onde h uma parte de prtica, o emprego do termoem vrias reasdo saber parececonfirmar que tchne,SINA'A,isto , arte, utilizado porIbn Sina num sentido amplo que englobaria, de certomodo, tanto osconhecimentos prticos, quantoos tericos, sem se confundir, obviamentecom a designao de cincia. A amplitude atribuda ao termo SINA'A,portanto, indicaria uma certa relao entreas artes, a qual, entendidadesse modo, resultaria numa clara aproximao da arte da medicina quecura o corpo, com a arte da sabedoria e da filosofia que cura a alma;isto, que SINA'A, poderia ser,nessamedida, tantoo conjunto dosmeiosnecessrios cura do corpopela medicina, quanto para a cura da almapela filosofia.Para reforar essa posio, lembramos que no sem razo, talvez,que o seu maior tratadofilosfico, em doze volumes, abrangendo grandepartedos conhecimentos de sua poca (lgica, fsica,cincias naturais,matemtica e metafsica) e que foitraduzido parcialmente pelos medie-vais ocidentais, chama-se justamente "AI -Sifa'", isto "A Cura". Obvia-mente que, nesse caso, no se trata da cura pela medicina dos males docorpo, mas justamente da cura da alma dos seus erros,atravs da filosofia.Se admitirmos, ento, entre outrascoisas, que a medicina sendo aarte da cura do corpo e a filosofia sendo a arte da cura da alma, tmintimasrelaes e emanam, se realizam e se harmonizam pela alma hu-mana,a partir do princpio de que as duas seriam um conjunto que buscaum fim, restaria saber ento, em que medida o sistema de Ibn Sina permi-te ou no que afirmemos isso.Para tanto recorremos ao Livro VI do "Al-Sifa'", intitulado Al-Nafs quequer dizer "a alma" e que ficou conhecido como a "Psicologiade Avicena"ou o "De Anima de Avicena"que apresenta a estruturada alma humana. Aestrutura geral doAl- Nafs adota, sem dvida, a linha do peri psycbs deAristteles. Mas no se trata de um comentrio deste; antes, uma expo-sio sistemtica das idiasdo prprio Ibn Sina,possuindo um suporteH Y P N O EAN O }/N 0489Mqurl Arrie Fill-omuito conciso a partir da reunio das experincias mdicas na construoe justificao de todo o desenvolvimento da idia de alma.No captuloV, Ibn Sina tratandodas faculdades da alma racionalhumana, afirma que ela possui duas faces. A primeira uma faculdadeque se refere especulao e chama-seinteligncia especulativa, aopasso que a segunda se refere pratica e chama-se inteligncia prtica.Aquela fundamentalmente para a verdade e falsidade,o necessrio, opossvele o impossvel,enquantoesta para o bem e o mal, o feio e obonito,nas coisas particulares. Os princpios da primeira faculdade vmdas primeiras premissas, enquanto os princpios da segunda vm dascoisas conhecidas, das opinies recebidas e das coisas presumidas. (IanBaks explica que essas duas faculdades so, em Aristteles,o intelectoterico e o intelecto prtico.)No entanto,diz Ibn Sina, nenhuma das duas aalma humana. Antes,a alma a coisa que possui essas faculdades, e ela uma substncia una,que temuma relao emdireo adois lados: umque est acima dela e ooutro que est abaixo dela. Conforme cada lado, possui uma faculdadepela qual organizada a conexo entre ela e esse lado. Assim, a faculda-de prtica a faculdade que a alma possuiem razo da conexo com olado que mais baixo que ela, e o corpo seu governo. Quanto faculdade especulativa, ela uma faculdade que a alma possuiem razoda conexo com o lado que est acima dela, a fimde que ela adquira ereceba desse lado.Desse modo, portanto, as duas faces da alma racionalhumana mos-tram em que medida pode se entender, e como podem se articular osdiversos sentidos do termo SINA'Autilizados por Ibn Sina. Emrazo destaestrutura da alma racionalhumana que seriam possveis, ento, a filoso-fia, a medicina e a poltica. As trs reas importantes em sua vida. Artecomo mantenedoradas estruturas sociais eda transmisso do conhecimen-to, arte da medicina na cura do corpo, eda filosofia eda sabedoria na curada alma.O "Al-Saih, al- Ra'is" demonstrouque isso era possvel,no apenasnas pginas de seus livros, no somente nas construes lgicas e meta-fsicas. Ibn Sina foi vizir, mdico e filsofo. Desse modo, essas qualidadesestiveram presentes no apenas em suas obras, mas nele mesmo, em suaprpria alma.Se isso for certo, ento, Ibn Sina teria dedicado toda a sua vida, dearte e cincia,para servir a humanidade, curando-a. Podendo ser visto,nessa medida, tanto como o mdico do corpo quanto como o mdico daH Y P N O LANOUN0490AvicE N A (IBN S IN A) As dUAS fAC E S dAAlMAalma, convicto de que isso era possvel justamente porque "anossa almapossui duas faces: uma voltada para o que est acima dela e outra para oque est abaixo dela (...) uma face em direo ao corpo, (...) e uma faceem direo aos princpios supremos (...)".BIBL IOGRAFIAGOICHON, A.M. Lexique deta LanguePbilosopbique d'IbnSina. Paris,1938GOICHON, A.M.L'unitdeta penseauicennienne. Paris, 1952BAKOS, J AN. La Psycbologie d'IbnSina. Praga, 1956REIG, DANIEL. Dictiorinaire Arabe-Franais. Larousse. Paris, 1987.ISKANDAR, J AMIL IBRAHIM. AI-Mabda'wa AI- Ma ad. Tese dedoutorado, Unicamp, 1997HY P NOEAN O ~ / N O 4