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A Voz do Silêncio: o discurso menor da loucura

B a Voz de Silêncio - Guilherme Augusto Souza Prado Edital

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Enxerto dedicado à revisão da dissertação de mestrado A voz do silêncio, sobre loucura e arte na clínica.

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A Voz do Silncio:o discurso menor da loucura

Dedicatria

minha me Celina, base de apoio incondicional, com todo amor e dedicao.

Aos companheiros de Loko na Boa, inspirao de aprendizados profundos e marcantes; viagens, passagens, ensaios, shows e dias que juntos passamos e nos quais estamos sempre.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer ao meu orientador Leonardo Almeida, orientador, pelos inestimveis apontamentos e leituras, pelo acolhimento e companhia no insensato jogo de pensar a loucura. Obrigado, Leo!Aos professores Eduardo Passos e Heliana Conde pelas contribuies, compreenso e pelo flego na apneia. CAPES pela bolsa de fomento concedida que possibilitou a confeco do trabalho.Aos funcionrios e professores da ps-graduao em psicologia da UFF. Em especial aos professores Cludia Abbs, Luiz Antonio, Marcelo Santana e Marcia Morais, pela pacincia e escuta.Aos vrios amigos do caminho, sem os quais no seria possvel suportar o peso dos pensamentos. Companheiros de Minas, Rio, So Paulo e Galcia. De maneiras menos ou mais evidentes vocs esto presentes. Entre tantos, deixo agradecimentos especiais a Felipe, Kwame, Pamela, Serginho e Carol, pela proximidade, dedicao e incentivo com os quais desenhamos possveis no horizonte.Ao pessoal do Caps de Assis e aos parceiros de Loko na Boa, em especial Clia Felina, Claudenir, Josefa, Marcelo e Wilson.Por fim, minha famlia, s mulheres batalhadoras da vida. tia Genesi, v Rosa e minha me, sem vocs nada disso seria possvel.

Tudo aquilo que a nossacivilizao rejeita, pisa e mija em cima,serve para poesiaManoel de Barros

Sumrio

Introduo 7 Ausncia de obra 14A palavra da loucura: interdito e auto-implicao 16 O terror, o encantamento e o apaziguamento da desrazo 19Ausncia de obra e o mar da linguagem: canto de Orfeu e o canto das sereias 24O procedimento 30 A produo da loucura 34 Limite e transgresso 36 Obra e desobramento 43Arte e Loucura: regimes de auto-implicao 54A loucura como doena: normatividade, patologia e sade 58A questo do saber em Foucault: violncia e distncia 58Vida e funo 64Jogos entre a loucura e a razo 68Normatividade e o anormal 70Singularidade e a loucura capturada pelo corpo 76Norma e a operao esttica de atribuio de valores 87Normalizao: Foucault e a vida lida pela morte 90Pierre Macherey e a imanncia da norma 94Canguilhem e o saber trgico 100Experincia trgica e minoridade da loucura 108 O sentido do trgico em Nietzsche 108 O Pensamento trgico 111 A experincia trgica da loucura: entre o nada e a negativizao 115 Uma face impessoal: o neutro 124 O problema do fora 132 Multiplicidade e fragmento 136 Minoridade e o discurso menor da loucura 142Trgico e minoridade na crtica ao exclusivismo da razo: abertura e criao de possveis 146Concluso defesa 158Referncias Bibliogrficas 162

Introduo:

A loucura constituda historicamente por um parmetro de diferenciao perante a experincia cotidiana comumordinria. Segundo Foucault (1979), ela encarna o outro de nossa cultura, como aquilo que tem que ser excludo sob pena de comprometer os sistemas de validao e de ordenamento dos saberes e dos poderes que organizam a vida em sociedade.De fato, a desrazo rompe com as regras, ocasionando em inacabamento e transgresso daquilo que tido como limite da experincia humana. Ora, os limites do eu e da linguagem estabelecem o estrito campo do que permitido e, a partir destes interditos, a loucura submetida a um regime de silenciamento. Enquanto fator contrrio consistncia e obra, a loucura colocada parte, num isolamento traduzido na funo material do internamento desde o sculo XVII. Sua linguagem no referencial e no referente lida como vazio de sentido na medida em que dita suas prprias regras num regime de auto-implicao. A ascenso do humanismo enquanto sistema de organizao e produo do pensamento ocidental assentado na ideia de homem moderno tem incio com o ocaso da desrazo que, passa a ser tomada como outro da razo, sendo paulatinamente excluda do pensamento e da experincia. O internamento da loucura substitui o lugar de fascnio e terror que ela ocupara at a idade Mdia.Sob o manto vazio de silncio e clausura da loucura, permanece um fundo de desrazo que os saberes sobrecodificam, numa conjugao que define o fora-de-si a partir de uma relao especfica com a verdade. Neste contexto, a loucura deixa de ser uma questo para o pensamento e passa a ser um problema a ser interpelado pelos diversos saberes, deixando de ser algo da esfera do encantamento e da temerosidade para se tornar uma varivel dentro dos sistemas de conhecimento jurdico, psicolgico, mdico, etc. Esta mudana configura a passagem da loucura do registro de outro da cultura para o do louco enquanto indivduo excludo. Sobre estAli, na figura do sujeito louco refletida conjurada a humanizao da loucura e, consequentemente, rompem-se os grilhes que prendem os loucos, pois os limites so dados na linguagem e nas prticas que incidem sobre seu ser, fazendoe do seu interior sua priso seu interior, o lugar desvalido de expresso a que so relegados. Uma vez que os limites so dados na linguagem (FOUCAULT, 2001[1963]), a transgresso, enquanto campo possvel para a ausncia de obra e o no definitivo, tambm desdobrada na linguagem, configurando o vazio denso de potencial do qual emergem a multiplicidade dos sentidos. Vazio a partir do qual se estabelece um jogo perigoso no qual h a possibilidade de ser arrastado at uma dimenso de mortificao na qual a loucura acarreta necessariamente em doena ou pode se estabelecer relaes de trnsito com o fora como produo de sentidos e valores atravessada pelo nada, o desconhecido e o infinito.OraDesta maneira, nosso interesse na literatura se d na medida em que ela constri, a partir da relao com este fora, outros mundos possveis. Este o ponto chave da articulao com a ideia de ausncia de obra. Por outro lado, Aa loucura, entretanto, o fora excludo pelo homem, mas no qual o humano no deixa de se identificar, nisto consiste seu fascnio e sua ameaa. Portanto, literatura e loucura no devem ser lidas pelo a partir de um interior personalista, mas como exposio ao fora que se reintegra experincia nas formas que lhe so permitidas em nossa cultura, precisjustamente a loucura e a literatura. Uma vez que a loucura reduzida doena, na literatura e na arte que reaparece a desrazo na modernidade.Segundo Foucault (1979), a estrutura da loucura a linguagem que, enquanto tal, se constitui como potncia impessoal e de despersonalizao. A partir desta configurao que entendemos a construo de novos possveis atravs da linguagem num procedimento que denominamos produo da loucura, para aquilo que a loucura produz de abertura no ser e na experincia, em sua capacidade criativa de afirmao do valor maior da vida. Esta concepo se d em contraposio a uma produo de loucura, que corresponde clausura do fora no sujeito, ao indivduo que de fato decai em doena, no momento em que a loucura capturada pelo corpo.A produo da loucura passa pelo contato com o vazio da morte na construo de ouras relaes com ser e linguagem, com valores e sentidos. Este arranjo d corpo ao discurso menor da loucura que surge no cerne do discurso maior orientado pelo privilgio da razo como possibilidade de se estabelecer uma pequena sade como tal qual coloca Deleuze (2011), apoiado na ideia nietzschiana de grande sade enquanto experimentao de criao. Assim, partimos das relaes de transgresso operadas na linguagem para aproximarmos literatura de loucura, na desobrigao com a significao e o ordenamento intrnsecos aos sistemas submetidos aos saberes e ao eu. Ora, no cerne de uma relao de linguagem que, transgredindo estes limites, a loucura se constitui para alm da doena. Porm, isto no significa que a experincia transgressiva negue a existncia de limite. Antes, a transgresso leva aos limite, engendra novos limites afirmando o ilimitado e o limitado paroxisticamente. Esta operao remete colocao do ser no desconhecido. Uma vez que a produo da loucura pr-individual, pr-discursiva e desvia da exigncia de identificao, ela exige entrar em contato com o desconhecido em sua relao de estranhamento para romper com o j dado que enclausura o fora da loucura na doena e o da arte na obra.Destarte, partimos de algumas aproximaes e diferenciaes entre Foucault e Deleuze para desdobrar o texto. O primeiro define o fora a partir do ser da linguagem enquanto o segundo leva a questo do fora ao pensamento, e conjectura que a fora do fora a prpria vida, em uma conjuno com a primazia do valor vital em Canguilhem, referncia utilizada para tratar de normatividade e patologia. Por outro lado, Foucault toma a loucura como objeto de pesquisa da arqueologia e Deleuze a pensa como um elemento de condio do pensamento do impensvel a partir da noo de fora. Enquanto Foucault se preocupa com as condies de possibilidade, Deleuze se volta para as condies de realidade da expresso e da constituio da a terminologia em torno da noo de territrio. Enquanto este ltimo leva a questo da vontade de potncia em Nietzsche afirmao radical da vida (problematizando os processos de subjetivao), de encontro com Canguilhem, Foucault (2010) se volta para o problema da governabilidade (problema que se desdobra numa preocupao com o poder), conjeturando que somente capaz de governar aos outros, aquele que pode governar a si. Concomitantemente, ambos se interessam pela loucura enquanto forma de sair do binarismo recauchutado pela dialtica na lgica da unidade que conduz o ser ao mesmo e ao assujeitamento. Desta forma, a loucura, promovendo o trnsito entre o pensar e o no-racional, pode se constituir enquanto discurso menor no bojo do discurso maior da racionalidade fazendo variar esta ordem maior. Contudo o discurso maior, lugar referencial dos sentidos e valores, no abstrado ou substitudo pelo menor. A minoridade no compete com o majoritrio, antes, inacabamento nas tenses da linguagem, seu discurso configurado pelo devir num esgotamento da ordem maior. De maneira que o discurso menor da loucura da ordem trgica e acolhe a multiplicidade ao passo em que faz frente ao discurso maior da razo pautado pela unidade. Afinal, as questes levantadas no texto devem ser entendidas sob a luz das questes nietzschianas do sentido e do valor enquanto crtica exclusividade da razo em nossa cultura.Tendo isto em vista, no primeiro captulo, desenvolvemos a noo de ausncia de obra no entendimento do plano de interseco entre loucura e literatura. Neste ponto comum so evidenciadas as relaes de trnsito ou clausura com o fora e a problematizao de ambas enquanto linguagem interdita e de auto-implicao perante a dimenso mortfera e encantadora do canto das sereias alegoria que nos valemos ao tratar da relao com o fora. Desta forma, apontamos que a desrazo, outrora fonte de terror e encantamento, silenciada, colocada em uma lgica de exceo a partir da era clssica. Isto se d sob a estrutura do internamento, indicativo da excluso da loucura da experincia e do pensamento que est nas bases de sua reduo interioridade do sujeito e concepo de doena. Ao final, cunhamos o conceito de produo da loucura para designar o procedimento lingustico da loucura em relao de transgresso com os limites que lhe so impostos enquanto ao de desobramento essencial obra.No segundo captulo, tratamos das relaes de conhecimento intrnsecas ao reconhecimento e ao trato com a loucura em nossa cultura. Tomamos pelo fundamento da noo de produo de loucura aquilo que Foucault (2002, 2008) denomina normalizao, enquanto ao de homogeneizao das diferenas e conteno do mltiplo na experincia, pelo fundamento da produo de loucura, juntamente aos elementos do discurso maior da razo. De fato, a leitura foucaultiana elucida os parmetros de violncia e distncia na relao dos saberes sobre a vida, tornados possveis a partir da ideia de funo e de uma leitura da vida pelo vis da morte, que redunda em controle da experincia atravs de tecnologias, como a disciplina e o biopoder.Paralelamente, pensamos a partir de Canguilhem (2002, 2008) a noo de normatividade enquanto ao de produo de normas no intuito de lidar com as dificuldades e os impasses que nos coloca a existncia tendo em vista a colocao deste autor de que as cincias da vida agem em prol da vida. Neste contexto, assinalamos os jogos que se estabelecem entre anmalo, normal e anormal em sua influncia para a constituio da singularidade e variabilidade dentro dos movimentos de sade que podem ser estabelecidos a partir da produo da loucura. Assim, se a atividade de normar constitui uma operao esttica de atribuio de valores, ressaltamos em Macherey (2009) uma dimenso de imanncia da norma para com aquilo que ela produz e com seus efeitos para retomar em Canguilhem a afirmao da vida em um carter trgico.No terceiro captulo, debatemos as bases da noo de trgico em Nietzsche (1992) e suas ressonncias com os demais autores trabalhados. Ademais, trazemos a ideia da experincia trgica da loucura que se estabelece anteriormente conscincia crtica desta que, a partir do sculo XVII, lana as bases da concepo moderna de sujeito e dos saberes acerca do homem. Estes ltimos incorrem na negativizao da loucura e na supresso da desrazo, enquanto outro da razo, a um inofensivo nada numa operao de reduo, ao de foras reativas em termos nietzschianos sobre a experincia. Por fim, no engendramento do discurso menor da loucura em meio ao discurso maior da unidade, os procedimentos de produo da loucura propiciam a emergncia de um impessoal em contraposio concepo ensimesmada que delimita o sujeito sua loucura. Ali emerge o neutro, como marca da presena do fora na experincia, desbaratando as concepes de interioridade e exterioridade, e, como consequncia, construmos outros possveis para alm da lgica da unidade. Em passagem pelo mltiplo e pelo fragmentrio, conclumos que o discurso menor da loucura se constitui sob a lgica dos devires em inacabamento e inventividade e, desta maneira, abre os possveis da experincia para que, a partir da produo da loucura, possamos estabelecer uma sade para alm dos campos que ligam a loucura exclusivamente doena.

Ausncia de obra

Para Foucault em Histria da Loucura (1979) pensar a loucura pensar a diferena e suas formas de excluso em nossa cultura, ambas elas definem e demarcam o lugar no qual a primeira alocada em e por nossa experincia. J em As Palavras e as Coisas (2000), Foucault pondera que enquanto este seu livro trata da aproximao entre as coisas mais especificamente de uma experincia de proximidade, organizando-a em um quadro para percorr-la , Histria da Loucura trata de como uma cultura postula de forma macia e geral a diferena que a limita.O pensamento da loucura ou a experincia da loucura aquilo que difere da ordem racional reinante em nossa cultura que leva e encarna o sujeito, o homem antropolgico[footnoteRef:1] a sombra do discurso divino aps a morte de Deus na experincia moderna. Concomitantemente, surge na modernidade a psiquiatria, saber cujo gesto inaugural se d em um contexto no qual a desrazo enclausurada em um ditame de liberdade. Deste ponto em diante, o louco, no mais atado a um sistema de coeso fsica materializado nas correntes, enclausurado em uma liberdade subjetivista, submisso a um discurso que ele no pode alcanar. O que, evidentemente, no diz respeito a sua capacidade, mas a seu reconhecimento de colocao em nossa cultura um louco no pode ser livre, ele escravo de alguma coisa alheia razo, tal como instintos, paixes, animalidade, demnios. Ali, sob tal regime de conteno e retraimento, o louco se encontra totalmente impotente perante os mecanismos que o excluem da ordem da produo e do reconhecimento (o indivduo louco desvalido at da luta contra o que o oprime). O que outrora caracterizara um silncio cercado de tenso, o qual sinaliza a ruptura e o parmetro de desigualdade contido na relao discurso racional e desrazo, se transforma em loucura balbuciante a partir de uma ruptura mais radical instalada pela prpria ordem racional e que tem a forma do corte, tornando-a fala desvalida de qualquer poder de expresso este calar o verdadeiro silncio da loucura. [1: O homem, conceito moderno que remete antropologia de cunho humanista, colocado por Foucault (2000) na berlinda. Figura de existncia recente, ele pode, conseqentemente, se desfazer em nossa experincia por vir. O homem uma espcie de compensao figura metafsica do Deus enterrado com a emergncia da modernidade; ele a figura decalcada da linguagem em fragmentos do fim do discurso da era clssica e que centraliza a tarefa de pensar a finitude a partir da filosofia do sujeito e das cincias humanas. O homem se v no lugar de objeto de saber e sujeito conhecedor, que o discurso moderno funda na liberdade, mas que Foucault entende como fundado em um limite muito especfico, e a partir desta compreenso, encaminha seu projeto enquanto despojamento do humanismo e da dialtica, mas tambm da antropologia que a luz que guia o sonho do saber e a sede de conhecimento desde a falncia do modelo da representao da era clssica. O humanismo pode at rechear as concepes de homem, mas nenhum dos dois uma constante em nosso pensamento, o homem uma oscilao entre o indivduo jurdico e o disciplinar, entre reivindicao e exerccio de poder (FOUCAULT, 2006).]

Em outras palavras, a loucura passa de elemento integrado ao pensamento renascentista, a uma ciso com a experincia na cultura ocidental. O ponto chave desta virada o classicismo, a partir de quando a loucura passa a ser sistemtica e paulatinamente excluda daquilo que abarcado por nossa cultura no somente no nvel de saber, mas em nvel de vivncia e experincia. Excluso que radicalizada na modernidade. Nossa cultura descobre a loucura e a recobre de um manto de silncio. A experincia trgica da loucura traz tona a relao do homem com o impossvel dele mesmo, uma dor que no est no corpo ao qual ele pertence. No curso desta histria, perde-se a relao com a desrazo, sobrando apenas outra coisa que menos que a sombra dispersa do que fora a loucura do Renascimento, resta a doena mental. Trata-se de um processo que dispersa seus poderes assustadores e fascinantes atravs de uma sobrecodificao na qual uma mirade de signos e sentidos j dados, preestabelecidos, formam o espesso vu dos saberes sobre a loucura.Tendo isto em vista, h algo de estranho em tomar a loucura como inacabamento quando vivemos em regimes de espacializao e verbalizao que a delimitam insgnia de diferena, erro e, mais refinadamente, doena. Reduzida a objeto de estudo das cincias humanas e da vida (medicina a inclusa), a loucura estritamente objetivada em uma generalidade desvalida dos poderes sombrios que tivera. No que se carea de verses sobre a loucura, no entanto, mesmo sua sobrecodificao passa por relaes que presumem dela excesso ou falta, nunca a deixando, entretanto, um espao lacunar de significao ou no qual a loucura possa dar sentido a si mesma enquanto experincia distinta da ordem racional e moral de verdade.Na tarefa de pensar como nos tornamos o que estamos sendo agora como as coisas se transformam no que so ou ainda, como a loucura se tornou doena tomamos a constituio do discurso moderno sobre a loucura a partir da fundao da psiquiatria. A revoluo c(l)nica operada por Pinel, tornada ato mtico por seu discpulo Esquirol num golpe sobre a memria ocidental. Tal revoluo foi possvel a partir do giro conceitual em torno da negatividade que at ento definira a loucura, com Pinel esta deixa de ser o outro de razo e, antes ainda, desrazo, tornando-se falta de razo para posteriormente ser objetivada em falta de sade. Trata-se da passagem do entendimento da loucura de anti-racional para no-racional e da para patologia (que corresponde a uma racionalizao, momento em que a razo incide sobre a loucura sujeitando-a e tomando-a como objeto). Desde o sculo XVIII, restam, contudo, desrazo e ao desatino, as obras de Nerval, Nietzsche, Artaud, dentre outros; obras que so indefinidamente irredutveis a essas alienaes que curam, resistindo com sua fora prpria a esse gigantesco aprisionamento moral que se est acostumado a chamar, sem dvida por antfrase, de a libertao dos alienados por Pinel e Tuke (FOUCAULT, 1979, p. 503). Seguindo as pistas da anlise arqueolgica foucaultiana que toma o curso da histria atravs dos papis que exercemos hoje, pretendemos buscar na obra a colocao dos loucos entendidos enquanto os sem-histria. Isto , a formao da loucura, que nas palavras de Foucault (1999b[1961]), no prefcio primeira edio de Histria da Loucura, seria em sua materialidade final, ausncia de obra. Pois o objeto da arqueologia o homem e suas verdades criadas, com a ressalva de que a prpria noo de homem ela mesma uma verdade inventada. Sendo o referido livro a arqueologia do silncio imposto pelo discurso da racionalidade loucura.H de se questionar, entretanto, o que haveria de se silenciar na experincia da loucura se os loucos so os sem-voz? O que h de se calar na experincia da loucura no uma voz localizvel no louco ou em um louco, mas a voz que emerge da experincia da loucura que intolervel ordem e ao registro, ao sujeito e histria; a um s passo insuportvel aos limites que fundam a experincia e continuidade com o transcendente. Contudo, uma voz vinda de muitos lugares no se identifica com lugar algum (no se atm a identidade alguma), ela , antes, a presena material da ausncia de vozes. O mltiplo no pode ser enclausurado em unidade porque unidade alguma o comporta, sob ele recai a insgnia do interdito.

1.1 - A palavra da loucura: interdito e auto-implicao

Em A Loucura, Ausncia de Obra, Foucault (1999[1964]) afirma que a loucura percorreu os quatro tipos de transgresso da palavra: as faltas de linguagem relativas s leis; as palavras blasfematrias, que no podem circular; as palavras que so submetidas censura, por conta de sua significao intolervel; e a palavra que causa um excedente mudo, ou seja, que so submetidas a outros cdigos de linguagem que no os que dela fazem parte esta ltima chamada por ele de palavra esotrica.Esta palavra esotrica pura apresentao. Isto , ela no representa nada mais que si mesma, designando simplesmente sua expresso, de maneira a se diferenciar inclusive da palavra mgica ou supersticiosa, as quais presumem o desencadear de algo que lhes confira sentido. A palavra esotrica lana o sentido ao infinito, linguagem ao infinito.; Iisto , j que ela palavra esotrica no remete a algo que a delimite ou a encaixe num jogo de estrutura e dominao, a cada vez que se d, elsta palavra expressa sua prpria apresentao no vazio de sentido que soobra desta mesmaprpria experincia. a dobra essencial da palavra para Foucault (1999[1964]), aquilo que a palavra tem de fugidia e que constitui um espao indeterminado sem luz que as sociedades tm dificuldade em aceitar (no comum movimento de tolerncia, represso, etc.). A palavra, portanto, s transgressiva em seu jogo, nas relaes que ela estabelece, e no em seu sentido ou em sua matria verbal, mas justamente por conta desse desprendimento radical de qualquer sentido que a palavra esotrica interdita; enquanto linguagem sem referentes e que no serve de referncia.No obstante, se a loucura a palavra interdita, linguagem excluda da linguagem, a reforma de Pinel no rompe com esta excluso, antes a confirma reiteradamente. Sua reforma pretende calar as palavras sem significao dos imbecis; as sacralizadas dos furiosos e violentos; ou ainda as significaes interditas ou proibidas dos libertinos e obstinados.Assim sendo, uma vez que o humanismo atualizado na reforma de Pinel o cale-se da palavra interdita, da linguagem excluda, no seria surpresa alguma que o enlace entre loucura e doena mental se desfizesse com o esmaecimento do conceito de homem; como deixassem de fazer parte de mesma unidade antropolgica. E assim, afastando-se do patolgico e mais perto da linguagem, a loucura se efetuaria em dobra de algo sem dvida visvel, mas ainda no-nomevel para ns.At l, no entanto, todas as categorias de linguagem dos loucos apontadas acima so justificadamente excludas. Conjectura Foucault (1999 [1964]. p. 190) que, talvez, um dia, no saibamos mais muito bem o que pode ter sido a loucura. Sua figura ter se fechado sobre ela prpria, no permitindo mais decifrar os rastros que ela ter deixado. Esses rastros mesmos, seriam eles outra coisa... [dia este no qual] Artaud pertencer ao solo de nossa linguagem e no sua ruptura; s neuroses e s formas constitutivas (e no aos desvios) de nossa sociedade. O que queremos ressaltar com isto que a ordem contextual que objetiva a desrazo transformando-a em loucura e doena mental no de uma ordem natural, desde sempre dada como tal. Tampouco ela se interps por uma evoluo do saber mdico em direo verdade ltima da loucura, supondo-se que haja uma; ou ainda como uma unidirecional humanizao crescente do cuidado e trato com a loucura. O humanismo no a natureza da humanidade, nossas aes e o decorrer da histria no so uma caminhada rumo ao melhor, so contradio e embate; a arqueologia nos mostra isto indo at partes negligenciadas dos discursos, resgatando elementos convenientemente rasurados ou esquecidos dos enunciados como forma de reconstruir ou reordenar a construo dos saberes, compondo um outro nvel de histria.A respeito das diversas formas de se lidar com a palavra da loucura, Foucault (1999 [1964]) pondera que a descoberta da Freud realocou a loucura no campo das linguagens, retirando-a do espao unvoco de excluso, de linguagem excluda. Com isto, a palavra da loucura passa a constituir, em relao lngua que cria, sua prpria razo de ser e seu prprio sistema de valores ela contm os signos de sua prpria decifrao. A loucura, palavra proibida ou intolervel, passa a ser linguagem que envolve a si mesma em seu desvelamento. A psicanlise aborda a loucura pela linguagem, restabelecendo a possibilidade de dilogo com a desrazo. Algo que se havia calado por muito tempo ou que no possua outra linguagem a no ser a fulgurao lrica, outra forma a no ser a fascinao da arte, tenta de novo falar (BLANCHOT, 2007, p. 180); ou seja, aquilo que expressado sob uma forma radical como um grito ou uma ruptura em Goya e Sade, por exemplo, ganha outro campo de expresso com a psicanlise, enquanto domnio de expresso do indizvel. Contudo, por conta de seu funcionamento atravs de interpretao que busca significados velados que sejam capazes de restituir o sujeito ou elementos que o representem, a psicanlise acaba insensvel s vozes da desrazo e incapaz de lidar com os signos que emanam da e que so incompatveis com esta ordem que a submetem. Se no asilo o olhar alienista concretiza o monlogo da razo, com a psicanlise, do paciente que parte a fala sem resposta que engendra a desigualdade no movimento dialgico da comunicao[footnoteRef:2]. [2: O sistema asilar preza a lei do silncio enquanto o psicanaltico assimila uma lgica de confisso que redunda em culpa. No obstante, a psicanlise um saber que exerce violncia a partir da interpretao que se impe como aparato racional/estrutural, reduzindo por fim e ao cabo as sadas e as entradas que conduzem at o inconsciente aos meandros do instinto ou a uma sobrevalorizao do passado. Enquanto interpretao, subbjuga seus contees impondo uma forma e um sistema de hierarquizao especficos. ]

No momento em que a loucura se inscreve como linguagem esotrica, no comunica mais nada seno a prpria criao disrruptiva da lngua que ela mesma fala. Aps Freud, a loucura uma no-linguagem ou uma linguagem de reduplicao sem ter sido duplicada[footnoteRef:3], uma matriz de linguagem que, em sentido estrito, no diz nada. Dobra do falado que uma ausncia de obra (1999[1964], p. 196). O que Freud faz levar ao extremo a saturao da palavra da loucura, at ali onde no diz nada seno ela mesma, at o ponto em que expressa to somente sua existncia. [3: Guardemos esta colocao de uma reduplicao sem duplicao para desenvolvermo-la mais adiante. Pois no se trata de um duplo, como um sentido verdadeiro sob a superfcie, algo a ser decifrado, como uma metafsica de iluso a ser desmascarada por uma interpretao certeira. Mas da verdade que se desenrola na superfcie, camadas que se interpe sucessivamente, figuras que no chegam a um fundo de verdade. A reduplicao sem duplicao atirar-se ao vazio e ao porvir da experincia no que ela pode outorgar.]

Pois a loucura no tem seu sentido e seu significado, pois, velado em uma verdade das profundezas. Antes, a loucura pode guardar um excesso de significao, num processo de superfcie de incessante produo de sentido que no se amarra ou se restringe ao j dado da experincia. Porm, no que Freud tenha descoberto uma verdade da loucura que subjaz racionalidade (dos saberes da psiquiatria e da psicologia de ento) como algo que vem superfcie ser banhada pela luz da razo para ganhar sentido. A descoberta freudiana alivia a experincia da loucura do pesado manto que a razo lhe impe, afastando-a da, do mandato da conscincia, recorrendo ao vazio de sentido para devolv-la s palavras que, em regime de auto-implicao so algo muito alm ou muito aqum dos sentidos dados.

1.2 - O terror, o encantamento e o apaziguamento da desrazo

H de se questionar: como fora a loucura antes, porm, de toda experincia freudiana e antes ainda de Pinel? Qual fora a relao que se estabelecera entre a loucura, sua expresso e sua linguagem? Neste contexto, as tores que mais nos interessam se deram de maneira paulatina. Primeiramente, na Idade Mdia, os quadros de Bosh atormentavam com porque eram a converso da desrazo que circulava no mundo de ento atravs dapela nau dos loucos, esta tambma mesma pintada pelo prprio pintor dos pases baixos. Na era clssica, a loucura ainda imiscuda desrazo e, enclausurada nas fronteiras do internamento, sucumbe em silncio. Silncio este que se prolonga at a modernidade; a sim, por meio do asilo que tem a clausura como recurso ltimo , a psiquiatria, signo do monlogo que o discurso racional impe loucura, objetiva esta em doena mental. No entantoContudo, nesta ltima experincia, na modernidade sobressaltam as vozes da desrazo soterradas durante trs sculos na cultura ocidental as vozes da desrazo retornam na literatura e nas artes[footnoteRef:4]. So dessas vozes que vamos tratar nesta parte do texto. Afinal, se no registro de sua linguagem que a loucura mostra seu ser, atravs da literatura e da arte que desmantelado o denso manto de silncio sobrecodificado que isola a loucura. A partir deste novo horizonte de expresso do ser da loucura, podemos entrar em contato com sua experincia e retomar o contato com a desrazo sem a mediao inquisitria de um saber (mdico ou psi)qualquer. [4: Foucault (1979) aponta distintas referncias da emergncia da desrazo em vrios campos de expresso que vo de maneira mais tmida e incipiente de Goya a Sade, e que explodem de vez em Nietzsche e Van Gogh, culminando em Artaud.]

Entretanto, oAfinal, o que quereremos dizer com desrazo, afinal? Para Foucault, desrazo aquilo que no est de acordo com uma razo vigente, inoculada ordem dominante de fato, a desrazo abarca a loucura, a mesma que veio a se tornar doena mental, mas compreende tambm umaquela srie de categorias sem nenhuma filiao comum que foram reunidas no interior do Hospital Geral durante a era clssica. Ou seja, mais que uma diferena de termos ou mesmo conceitual, a distino entre loucura e desrazo presume maneiras diferentes de tratamento e colocao, especialmente a partir do ponto em que a loucura comea a ser reduzida doena mental no sculo XVII.Valendo-nos de Doena Mental e Psicologia (1975), que trata da loucura como alienao, podemos traar linhas de uma arqueologia na qual o alienado moderno no mais um ser possudo por um esprito maligno, mas um sujeito despossudo de si, despossudo da liberdade que caracteriza o homem da conscincia o cidado de dever da nascente organizao burguesa do Estado. Como apontamos acima, o louco destitudo judicialmente da condio de cidado e socialmente do convvio comum. A compreenso do louco como doente mental desgua em transferncia de seus direitos e de seu poder de deciso para outra pessoa. Como apontado em O Mundo Correcional,no terceiro captulo de Histria da Loucura, O Mundo Correcional, no que o louco no chega a perderca a liberdade no asilo, mas ali sua liberdade ali circunscrita, restringida e organizada. A loucura imnplica certa relao do homem com a verdade e com a sua verdade, relaoo que acaba por acarretar desdobramentoconsequncias sua liberdade. A partir da era clssica, a relao do louco com sua verdade passa a ser dada do exterior. Na era da representao[footnoteRef:5], o louco aquele incapaz de representar a si mesmo no esquema social. A loucura destituda de sua capacidade de enunciao que gerara medo e terror num contexto de experincia trgica. No entanto, se a poca clssica percebe e distingue o indivduo louco, ela oferece apenas uma definio nosogrfica de loucura, uma representao assentada no jardim das espcies. Ela uma doena de definio abstrata para a medicina de ento, que da prope as figuras que ilustram a desrazo no plano concreto. Lembrando que a desrazo abrange uma ampla gama de vida errante que soma ao meramente irracional o primitivo, o mgico, o numinoso, certas categorias de deficincia e marginalidade, dentre outros tipos marcados pela excluso da ordem da razo vigente. Bane-se o louco e todos aqueles que pensam mal (entenda-se, diferentemente), confinando-os ao mesmo lugar, atirando-os mesma (falta de) sorte. [5: Em As Palavras e as Coisas e demais obras do perodo arqueolgico, Foucault sustenta que a era Clssica caracterizada sobretudo pelo domnio da representao na experincia.]

Neste contexto, a alienao da qual trata, de um lado, o filsofo, e do outro, o mdico, se prestam uma outra e encarnamndo a mesma figura, a do louco que rene alienao mental e alienao social e do serontolgica sob o pretexto de uma incompatibilidade geral (leia-se negao) para com os esquemas racionais-representacionais daquele regime de verdade. Escutemos essa sentena: trata-se de um momento decisivo da histria ocidental: o homem, como consumao da razo, afirmao da soberania do sujeito capaz do verdadeiro, a impossibilidade da loucura, e decerto pode acontecer de os homens serem loucos, mas o homem mesmo, o sujeito no homem, no poderia s-lo, pois s homem aquele que se consuma pela afirmao do Eu soberano, na escolha inicial que faz contra a Desrazo; infringir, de algum modo, essa escolha seria precipitar-se para fora da possibilidade humana, escolher no ser homem. (BLANCHOT, 2007, p. 176)A afirmao filosfica do eu soberano, senhor de si e (capaz) da verdade se rene ao objeto mdico bem-ordenado, aquele que se enquadra aos pressupostos do prtico o mdico, o cirurgio da poca clssica; o descendente daquele mesmo charlato com funil na cabea que extrai a pedra da loucura num quadro de Bosh. No por acaso, so praticamente contemporneos a abertura do Hospital Geral em Paris e a publicao do Discurso do Mtodo de Descartes. Este ltimo a figura que proclama a hostilidade com o que considera uma extravagncia, fechando as portas do pensamento para qualquer relao com a loucura, dando incio ao processo que ser cumprido na aurora da modernidade de exclu-la totalmente do pensamento. No que a loucura tenha simplesmente desaparecido das discusses da filosofia durante sculos por uma escolha aleatria. Ela empurrada para alhures do universo do pensar por uma escolha fundada na ameaa que constitui para a ordem do pensamento ocidental entendido a partir da era clssica. Os efeitos deste rechao so de um lado o silncio do discurso da loucura e de outro a maante produo discursiva e extradiscursiva acerca da loucura. Em lugar da aura mstica e lrica que rodeia, mesmo que ameaadoramente, a desrazo, a loucura passa a ser entendida como um problema social ou subjetivo, de sade, ou ainda, da famlia. Ao passo em que se passa a exercer um maior controle sobre a loucura, seu rosto assustador e encantador se esvaece em meio a instituies de cuidado, medicamentos e tecnologias que aparelham esta transio. No contemporneo, isto acompanhado por dois movimentos confluentes, o movimento deo reconhecimento que h um pouco de louco em cada um de ns e outro, deo apaziguamento das loucuras mais desviantes.No decorrer do processo em que a loucura deixa de ser uma questo e passa a ser um problema daos saberes (PELBART, 1993), sua positividade definida na modernidade do sculo XIX, ainda por uma relao de excepcionalidade com a verdade. A verdade do sujeito psicolgico normal definida a partir da anormalidade que objeto da psicologia, Ou seja, na transio para a modernidade que aa loucura , que definida como doena mental na reestruturao da experincia caracterizada pelo giro da era clssica perante uma. Nesta reorganizao que a separa que loucura e desrazo so apartadas definitivamente da desrazo em nossa experincia. Isto implica que, uma vezOu seja, quando desvencilha a alienao mdica se desvencilha da alienao de postulao filosfica, que a loucura se separa de vez do campo da desrazo, sendo convertida, atravs de uma operao de reduo, em patologia. Aparta-se de vez o contato com a desrazo dos sem-razo. Tal ruptura marcada pela criao de um espao delimitado exclusivamente loucura: surge o manicmio no rastro dos hospitais gerais[footnoteRef:6]. [6: Em As Palavras e as Coisas, Foucault (2000, p. 67) coloca que o louco, entendido no como doente, mas como desvio constitudo e mantido, como funo cultural indispensvel, tornou-se, na experincia ocidental, o homem das semelhanas selvagens. Essa personagem, tal como bosquejada nos romances ou no teatro da poca barroca e tal como se institucionalizou pouco a pouco at a psiquiatria do sculo XIX [...] Segundo a percepo cultural que se teve do louco at o fim do sculo XVIII, ele s o Diferente na medida em que no conhece a Diferena; por toda a parte v semelhanas e sinais da semelhana; todos os signos para ele se assemelham e todas as semelhanas valem como signos. Na outra extremidade do espao cultural, mas totalmente prximo por sua simetria, o poeta aquele que, por sob as diferenas nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os parentescos subterrneos das coisas, suas similitudes dispersadas. So pelas marcas da experincia com a linguagem, por relaes de estranhamento e proximidade com a linguagem relaes de distoro, pois que ele associa nesta obra o poeta e o louco na episteme clssica que a da ordem e organizao.]

A separao acontece em duas frentes, o movimento daqueles indivduos internados que no querem coabitar o espao com a loucura se d paralelamente funo de correo dos internos para fins de recuperao da mo-de-obra. O que acaba por atar cada vez mais a loucura internao e que propicia que, em algumas leituras do problema, sob os auspcios da escusa de um mal irremedivel, a loucura seja tida como um mal incurvel.A loucura ento objetivada e posta sob a dupla lgica de sujeio e liberao, pautada pelo conceito moderno-burgus de liberdade (segundo o qual entende-se que o louco tolhido de sua liberdade por ele mesmo, por sua prpria condio) que rege as instituies asilares e o alienismo de Tuke e Pinel. Pois a concepo de louco em Histria da Loucura se d perante acondiz imposio do confinamento e do silncio a partir da era Clssica e se soma, arqueologicamente a seu o reconhecimento e englobamento pelda medicina. Pinel pe em jogo outro tipo de submisso do corpo, no mais uma relao heternoma de aprisionamento, pura e simplesmente, mas de submisso voluntria do corpo ao tratamento (a cura sendo a sujeio ao outro e ao sistema econmico). O que se desdobra com o alienismo incorre em como uma configurao de interiorizao da relao loucura/razo, intimamente relacionada moralidade, fundante dedo um posicionamento e uma atitude crtica para com a loucura. Nesta ordemdisposio, o embate entre loucura e razo passa a ser da alada da interioridade porque o pensamento no o comporta mais, ele expulso da ordem da experincia e passa a ser do domnio exclusivamente individual e, subjetivo, porm, restrito ao sujeito louco. De fato, a ascenso da atitude crtica para com a loucura s pode ocorrer com o decair da experincia da desrazo, gradativamente soterrada e silenciada desde o incio da era clssica. Os loucos da Renascena so, sem dvida, marginais, embora no totalmente excludos, so de certa forma integrados ao funcionamento da sociedade, integram o pensamento e a cultura. Foucault (1999[1970], p. 214) afirma que depois do sculo XVII, produziu-se uma grande ruptura: toda uma srie de modalidades transformou o louco enquanto um ser marginal em um ser completamente excludo. Por meio de aes policiais de manejo e internao do louco, a humanidade ocidental constituiu uma das escolhas originais mais importantes da sua histria. Desde ento, a loucura, separada das figuras da desrazo que a acompanhavam at a era clssica, vem a ser entendida como doena e ela (a doena loucura) passa a expressar a verdade ltima do sujeito, desnudando-o at o ponto de satisfao dsegundo a leitura antropolgica de homem, definida anteriormente no texto. Assim, o rompimento da loucura com a desrazo propicia que a doena seja ontologizada. O diagnstico adquire poderes de enunciao sobre o ser do indivduo que examina, nisto consiste a verdade que o saber quer impor sobre sua no-relao com a loucura, ignorando sua linguagem de auto-implicao e submetendo-a a seus regimes de objetividade e coerncia. Ressaltando o processo no qual a loucura deixa de fazer parte do pensamento e passa alada do encantamento, Foucault (1979, p. 19) enftico:converso fundamental do mundo das imagens: a coao de um sentido multiplicado o libera do ordenamento das formas. Tantas significaes diversas se inserem sob a superfcie da imagem que ela passa a apresentar apenas uma face enigmtica. E seu poder no mais o do ensinamento mas o do fascnio.Isto implica queOu seja, aoquando passar ao mbito de uma priso de formas , na tentativa de se positivar uma forma determinada, calcada nos saberes e tendo como pano de fundo a mediao de uma racionalidade imperante , que a loucura, ausncia de obra, se abre s inmeras significaes. Fundo e figura se mesclam desestabilizando as relaes sujeito e objeto, e aquilo que avaliza o conhecimento racional. A loucura excluda nada no representa nada.Por fim, se a relao de excluso que se d com a desrazo e a loucura no to diferente, o que muda sobretudo, sobretudo a relao da sociedade com esta excluso e com aquilo que excludo. Este o ponto central da argumentao foucaultiana e levanta algumas questes. A partir da, podemos conjecturar que a estranheza da humanizao da loucura corresponde ao processo de desaparecimento totalrecalcamento da desrazo e seus traos escusos de outrora em prol do paradigma assptico da doena mental,, assptica e sobre a qual guardamos mais uma inofensiva quase indiferena do que medo ou encantamento. atravs desta humanizao que nossa sociedade engloba a loucura que lhe seria exterior, uma vez que a modernidade, tornando tudo familiar, aprendeu a domesticar o Estranho, seja sob o modo da tutela clnica, da dominao tcnica ou da oposio antittica. (PELBART, 1993, p. 95). Isto , atravs de uma operao marcadamente de controle, a desrazo se torna a forma primordialmente soterrada quando a loucura aparece em cena.A desrazo marca uma diferena deveras incontornvel e capaz de exercer sobre o homem poder maior do que qualquer loucura. No obstante, e a relao fundamental de sua excluso da desrazo se d anteriors mesmo das grandes internaes que denuncia Foucault (1979) e de maneira ainda mais radical do que acontecera com esta ltima, p. Pois a desrazo carrega as marcas de uma intransponvel resoluo de exterior que , designada sob diversas formas, como Caos do Mundo, Aventura da Linguagem, Estranheza da Natureza, Transcendncia do Divino, Fria da Morte, Sagrado dos Elementos, Bestialidade do Humano, etc. (PELBART, 1993, p. 95). Atravs destes termos, que o homem se relaciona com aquilo que impossvel a seu estatuto ontolgico e sua linguagem, com aquilo que lhe diferente e absolutamente estranho enquanto homem e enquanto depositrio do discurso da unidade, tornando-o descentrando-o em relao experincia de nossa cultura.

1.3 - Ausncia de obra e o mar da linguagem: canto de Orfeu e o canto das sereias

A linguagem da literatura, por sua vez, o descentramento das palavras da linguagem corrente, da lngua padro. A escrita suspende o domnio da lngua, logo, o papel da crtica literria consiste justamente no trabalho sempre inacabado de drenar de volta as palavras, da lngua (descontextualizada) para a lngua comunal (e das regras de linguagem) drenagem de um discurso menor, para oum discurso maior, como exploraremos no terceiro captulo mais a frente.Se a escrita literria opera a suspenso das regras da lngua, mesmo que se faa dela e apesar de se fazer nela, a crtica no mais que uma segunda linguagem confabulada exteriormente literatura e que pretende dar conta deste vazio estabelecido entre a psicologia de sua criao e o ato de sua leitura, na intimidade da obra, como ressalta Blanchot (2011b). A crtica tampouco pode pretender encerrar a obra na lngua que cria, que sempre provisria. Isto , a crtica o movimento imprescindvel embora nunca totalmente realizvel em plenitude, de produo de sentido para a obra. Foucault (1999[1964], p. 197) coloca isso nos termos do jogo em que a fala reconduzida sua lngua, e atravs do que a lngua estabelecida sobre a fala.No que loucura e literatura sejam frutos do mesmo funcionamento psicolgico, pois a primeira no o nascimento de uma obra ou sequer sua manifestao. Foucault (1999[1964], p. 197) assinala na mesma pgina que antes, que a loucura entendida como uma linguagem designa a forma vazia de onde vem essa obra, quer dizer o lugar de onde ela no cessa de estar ausente, no qual jamais a encontramos porque jamais ela a se encontrou. Concepo que, depois de Mallarm, Roussel e Artaud, a literatura tm se aproximado cada vez mais, pois o ser da literatura tem a ver com a auto-implicao e com seu duplo, no se apoia no sentido, tampouco na estrutura.Na obra de Foucault, pPodemos afirmar localizar trs eixos quede o interesse e aproximaes com a literatura se d em trs eixos na obra de Foucault: A) o que a associa loucura, com Artaud e Hlderlin; 2) o que gira em torno do problema da sexualidade com Sade e Bataille; e 3) o que se faz perante o problema da linguagem, com Mallarm e Blanchot. Em Loucura, Literatura e Sociedade, Foucault afirma que a obra de Sade s foi possvel porque a figura humana Sade passou pelo sistema de excluso ao qual fora submetido. Seu interesse por escritores to distintos como Mallarm, Artaud, etc. se d no ponto em que o mundo da loucura que havia sido afastado a partir do sculo XVII, esse mundo festivo da loucura, de repente fez irrupo na literatura (1999[1970], p. 215), neste ponto seu interesse pela loucura vai ao encontro com o interesse pela literatura.At o final do sculo XVII, escreve-se para circular em determinado crculo social, com o intuito de ensinar ou divertir. Depois disto, medida em que se assemelha loucura como atividade vertical e intransmissvel, a escrita pode existir sem um pblico (em um ou outro momento Blanchot (2010, 2007) e Piglia (2004) referem-se a livros escritos para no serem lidos e assim se perderem no universo de obra). Pois a loucura a palavra destituda de seu valor de troca, emas, no fim das contas, os dois extremos se encontram. Essa escrita no circulatria, essa escrita que se mantm de p justamente um equivalente da loucura. normal que os escritores encontrem seu duplo no louco, ou em um fantasma. Por trs de todo escritor esconde-se a sombra do louco que o sustenta, o domina e o recobre. Poder-se-ia dizer que, no momento em que o escritor escreve, o que ele conta, o que ele produz no prprio ato de escrever no outra coisa seno a loucura (FOUCAULT, 1999[1970], p. 220). O risco de ser levado nestas correntezas caracterstica do ato de escrita. A reside a subverso da escrita, aquilo que o texto foucaultiano toma de emprstimo a Barthes, considerando o carter intransitivo da escrita e sua funo de transgresso. Piglia (2004) relata em Formas Breves, a audcia e perspiccia de Joyce que fora capaz de ouvir o canto e a voz secreta das sereias, to sinistro quanto sedutor, para depois cont-lo sobre sua escrita, fazendo desta o relato velado desta transmisso imprecisa. No obstante, o escritor argentino conta-nos ainda um trecho muito interessante que se soma sua opinio sobre o escritor irlands. Quando estava escrevendo Finnegans Wake, Joyce escutava muito sua filha Lcia, a qual, tida como psictica, era encorajada pelo pai a escrever, como uma das formas de atravessar as passagens que sua condio que relegara. Eis as palavras de Piglia (2004, p. 55-56): Joyce nunca quis admitir que sua filha estivesse doente e procurava instig-la a sair, a buscar na arte um ponto de fuga. Uma das coisas que Lcia fazia era escrever. Joyce a instigava a escrever, lia seus textos, e Lcia escrevia, mas ao mesmo tempo se colocava sempre em situaes difceis, at que por fim recomendaram a Joyce que fosse consultar Jung. Estavam vivendo na Sua, e Jung, que escrevera um texto sobre o Ulysses e portanto sabia muito bem quem era Joyce, tinha ali sua clnica. Joyce ento foi v-lo, para lhe expor o dilema da filha, e disse a Jung: "Aqui esto os textos que ela escreve, e o que ela escreve o mesmo que eu escrevo", porque ele estava escrevendo o Finnegans Wake, um texto totalmente psictico, se o olharmos dessa perspectiva: inteiramente fragmentado, onrico, atravessado pela impossibilidade de construir com a linguagem outra coisa que no seja a disperso. Assim, Joyce disse a Jung que sua filha escrevia a mesma coisa que ele, e Jung lhe respondeu: "Mas onde voc nada, ela se afoga". a melhor definio que conheo da distino entre um artista e... outra coisa, que no vou chamar de outro modo que no esse. O autor trata, neste espao de nadar, nadar no mar da linguagem, donde o louco est deriva, atirado aos mares e s mars, enquanto o escritor capaz de enfrent-los entrando neles capaz de escapar da deriva e impor ritmo e rumo sua trajetria. Entre nadar e se afogar h, evidentemente, uma diferena no apenas de condio, mas de manejo. O manejo sempre singular, para cada caso ou para cada escritor; a maneira como, loucura ou literatura, se lida com a ausncia de obra. Para discorrermos sobre os riscos e as promessas deste vazio abismal no qual James e Lcia Joyce tm distintas posies, evocamos a literatura como escuta do canto das sereias que precede uma navegao no mar da linguagem.Foucault, em O Pensamento do Exterior, sustenta que ao aproximar frases impossveis como eu minto, eu escrevo e eu deliro, nos aproximamos das culturas que assimilaram louco com divindade, besta ou signo. E surpreender-se-o, sem dvida nenhuma, que nos tenhamos podido reconhecer um to estranho parentesco entre o que, por muito tempo, foi temido como grito, e o que, por muito tempo, foi esperado como canto (1999[1964], p. 198) talvez o canto de Orfeu que se faz na e pela pulsante ausncia de Eurdice[footnoteRef:7]. [7: Referimo-nos, ao belo texto de Blanchot (2011b) que est em O Espao Literrio e se chama , O Olhar de Orfeu.]

Se eu minto fora capaz de constranger o sistema de enunciao grego, segundo o qual aquele que falava era tambm sobre o qual era falado, o eu escrevo a chave para a literatura moderna. Ora, o eu no pode escrever literatura moderna, no da maneira como Foucault (2001[1966]) juntamente com Blanchot (2011b) e outros pensadores compreendem-na. Da mesma maneira, como complicador o eu fao obra, s se pode haver obra quando e como haja ausncia de obra. Se no eu falo a linguagem se assume em estado bruto, desfazendo-se de qualquer responsabilidade do sujeito que fala sobre ela, uma vez que exterioridade pura, ela se faz passagem interioridade apenas superficialmente. Trata-se, antes, de uma passagem ao fora[footnoteRef:8] a linguagem escapa forma de ser do discurso. Logo, a literatura consiste no alheamento no apenas do eu, como tambm afastamento das regras da linguagem das regras, da lingustica ou da sintaxe, que a pretendem subjulgar, distanciando-se dos signos e dos significados eles mesmos. [8: O conceito do fora, muito importante para o desenvolvimento do textoa dissertao, devidamente elucidado no terceiro captulo.]

Enquanto o eu penso cartesiano afirma a existncia de um sujeito (do sujeito tal qual concebido pelo pensamento cartesiano), a anttese do eu falo remete dissoluo de qualquer possibilidade de sujeito e sujeio inclusive a sujeio da linguagem colocada em xeque a, como se esta de repente se rebelasse contra o sujeito e libertasse as palavras dos objetos. Se por um lado o pensamento do pensamento leva a uma profunda interioridade, por outro, a fala da fala leva literatura, este fora no qual desaparece o sujeito, dando lugar a outras formas de ser.Porm, retornemos ao problema de Orfeu e do canto das sereias para desenvolvermos a reflexo sobre a ausncia de obra. Blanchot (2011b, p. 186) afirma que quando Orfeu desce em busca de Eurdice, a arte a potncia pela qual a noite se abre. Entretanto, Eurdice no mximo musa, nunca cano; ela no canta, quem canta Orfeu, que canta sua falta.Por outro lado, o canto das sereias, no como um residurio artstico, ou o arcabouo imaginrio da humanidade. No so imagens, tampouco so reprodues que passariam pela imagem. O canto das sereias a promessa do por vir da obra. Quase como se escrever fosse unicamente um desdobramento deste canto primeiro. O canto mudo das sereias como o rosto de Eurdice voltando terra dos mortos, ambos so o vazio sobre o qual se faz obra. Em outros termos, a figura do rosto de Eurdice tanto quanto o canto das sereias um vazio pleno em potncia, condio para a obra. Potncia de significao que aparece como no-significao.O canto das sereias to somente encantamento e apreciao, no uma direo de vida, no resolve dilemas, no ajuda nas escolhas; o canto das sereias no d lio. Transita entre a mais pura falcia e a mais audaz das verdades. Mentira primeira que verdade ltima, ou vice-versa. As sereias cantam, contudo, seu canto no satisfaz. um canto imperfeito que anuncia todo canto por vir, levando aquele que o ouve possibilidade de produo de canto (obra). A verdade derrisria cantada pelas sereias leva ao ponto que se desaparece e no qual desaparece tambm a msica. Verdade da vidaque dita atravs da morte. Verdade inegvel e inconsolvel reiterada na morte da tripulao do heri na Odisseia e na volta de Eurdice terra dos mortos no mito de Orfeu. Inegvel prazer da queda, abertura em que se perde o eu (BLANCHOT, 2005)[footnoteRef:9]. [9: N neste ponto, no qual perde-se do eu, que reside a fala do neutro impessoal, desvencilhada de eus, de sujeitos]

O vazio aberto ou indicado pelo canto das sereias o de uma criao que presume sacrifcio, um eu que se esvai. A obra exige que o homem que escreve se sacrifique por ela, se torne outro, se torne no um outro com relao ao vivente que ele era, o escritor com seus deveres, suas satisfaes e seus interesses, mas que se torne ningum, o lugar vazio e animado onde ressoa o apelo da obra (BLANCHOT, 2005, p. 316). Deixa-se o eu para que haja canto, para que haja obra. a travessia do mortal canto das sereias que restitui[footnoteRef:10] o inominvel do outro lado da travessia, que a obra. Isto mesmo, de um lado da travessia, o vazio, do outro, a obra. Vazio que condio, entretanto, da obra. O canto das sereias condio de possibilidade para o canto de Orfeu. Ora, a verdade da travessia assentada no poo de iluses que so as sereias. Iluses de um poo muito real, a partir do qual (das iluses que da emanam) so criados reais. [10: Deleuze e Guattari (2000) consideram a arte uma das formas especficas de expresso do pensamento. Partindo do que ela tem de ciso e de abertura, entendem-na como uma possibilidade de restituio do infinito que passa pelo finito. Blanchot (2005), por sua vez, entende que h restituio como um elemento de composio que se d no encontro com o vazio do abismo. Restituio que restituid aquilo que no fora tidose teve anteriormente, restituio de algo totalmente novo que, embora inscrito no passado, s se realiza no futuro.]

A obra o canto das sereias contado, o jogo de presena-ausncia que torna este canto to fascinante apesar de sinistro. Portanto, para Blanchot (2005) a luta entre a trajetria herica de Ulisses e o encontro mortal com o canto das sereias a luta entre aquilo que de fato h na obra e o vazio que condio a esta. O poema (a palavra literria, a escrita o canto de Orfeu) o produto desta luta que se d no encontro de Ulisses com a fora e a voz do abismo. A abertura para o infinito se d neste encontro, infinito de significao da obra, que se d na realizao da ausncia de obra, pela imploso de toda significao estvel.Pois a obra o infinito do mar a navegar, mas tambm o poro que guarda e priva da esperana do navegar. Mesmo que no se afogue, nada, entretanto, garante os destinos das guas deste mar de linguagem. A palavra de ordem que impe aos navegantes esta: que seja excluda toda aluso a um objetivo e a um destino (BLANCHOT, 2005, p. 6-7). O canto mudo das sereias sedutor como o a vertigem que se sente no apenas ao olhar para baixo de um ponto alto, mas tambm de se olhar de baixo para um ponto muito alto. O navegante no consegue fixar o alvo ou predizer o destino de sua navegao ele est insistentemente reduzido deriva destas superfcies. Enquanto Ulisses navega, a voz a possibilidade de narrao, de vida, para Orfeu, o lamento, a perda absoluta a profundidade que esvai na superfcie. Um faz epopeia, o outro canta sua prpria runa, materializada e traduzida na queda de Eurdice que nela se perde para sempre. Ulisses, no entanto, pode se arrepender de no ter cedido ao sedutor canto mortal, enquanto Orfeu, pode se resignar em ter visto o rosto proibido no momento mesmo em que ele se desfazia na noite eterna. Afinal, Eurdice que nada mais que a promessa de um rosto, tal como as sereias so apenas a promessa de um canto e do que viria aps este chamada da sombra pelo canto que aplaca a morte. interessante destacar o comentrio de Foucault acerca do olhar de Orfeu sobre a morte a vida se desfazendo, desaparecendo e da qual se preserva apenas o nada , o mais terrvel que se pode enxergar, em seu extraordinrio poder de atrao. A esse olhar que, no limiar oscilante da morte, vai buscar a presena desaparecida, tenta traz-la de volta, imagem, at a luz do dia, mas dela conserva apenas o nada, onde o poema justamente pode aparecer (...) O olhar de Orfeu recebeu a mortal potncia que cantava na voz das sereias (2001[1966], p. 235-6). De fato, h uma linha que liga a viso da queda de Eurdice a todo canto posterior de Orfeu. Pois Blanchot (2011b) afirma que o canto das sereias no satisfaz, ele no mximo aponta os caminhos para onde devem caminhar a felicidade da obra. Uma vez que a seduo do canto das sereias reside justamente no vazio que ele abre[footnoteRef:11]. [11: Nesta abertura e neste vazioA residemiria o mtuo atravessamento do vivido e do vivvel a questo e a questo da obra, como coloca Deleuze em Crtica e Clnica. Todos estes elementos olhar, canto, voz, travessia so imprescindveis obra. ]

Navegar no mar da linguagem, antes ou depois de passar pela ilha das sereias e o que se faz com a audio do canto delas?. Esta parece ser a questo da ausncia de obra, dae literatura ou dae loucura, de James e de Lcia Joyce. Sem dvidas, uUma questo de procedimento.

1.4 - O procedimento

No captulo intitulado A Transcendncia do Delrio, em de Histria da Loucura, Foucault (1979, p. 237) afirma que a linguagem a estrutura primeira e ltima da loucura. Ela sua forma constituinte, nela que repousam os ciclos nos quais ela enuncia sua natureza. Ou seja, a loucura tem por instrumento e expresso a linguagem. Por sua vez, Deleuze (2011, p. 20) aponta que a psicose inseparvel de um procedimento lingsticolingustico varivel. O procedimento o prprio processo da psicose. Ora, podemos presumir que entre delrio e linguagem h poucas coisas em comum. Uma o parmetro de traduzibilidade da comunicao entre os homens, representa as possibilidades formais de partilha, outra a impossibilidade e a quebra deste sistema de significao e partilha pela intruso de incurses particularssimas. Mas o que os rene num procedimento que diz respeito psicose (afeco delirante) e linguagem necessria e simultaneamente[footnoteRef:12]? [12: Afinal, o que diferencia a loucura da literatura certa abordagem pelo campo dos saberes. Problematizao a ser abordada no captulo seguinte.]

No segundo captulo de Crtica e Clnica[footnoteRef:13], Louis Wolfson, ou o procedimento, Deleuze (2011) postula que o procedimento um colocar-se na lngua, escutando o canto das sereias e sobrevivendo a ele para cont-lo posteriormente. Terreno donde as palavras so desvinculadas das significaes que as ligam aos objetos ou linguagem corrente e, mais importante ainda, livra a linguagem da exigncia mesma de esquemas de significao objetivos e univalentes; o lanamento de si num espao que abre a linguagem multiplicidade; um uso intensivo da linguagem, sem amarras a significaes; esta linguagem da diferena o que o filsofo francs chama de procedimento. [13: Livro no qual Deleuze se pe a estudar a literatura de lngua inglesa, especialmente a norte-americana; acreditamos que tocado pelo fato, segundo suas palavras, de que o ato fundador do romance americano, o mesmo que o do romance russo, consistiu em levar o romance para longe da via das razes e dar nascimento a esses personagens que esto suspensos no nada, que s sobrevivem no vazio, que conservam seu mistrio at o fim e desafiam a lgica e a psicologia (DELEUZE, 2011, p. 107). Esta literatura e seus personagens no podem ser entendidos ou no faz sentido l-los atravs dos postulados racionais ou da psicanlise, que o autor considera ainda um sopro ltimo da razo sobre a existncia. Romancistas que olham, pois, para o mundo com olhos de profeta, no de psiclogo.]

Entretanto, o procedimento , ele mesmo, um acontecimento, marcada indelevelmente por singularidade. Por isso a frmula de Bartleby exposta no dcimo captulo do supracitado livrode Crtica e Clnica condiz a Bartleby apenas, no se estendendo como frmula geral para aventureiros no mar da linguagem. O fim abrupto revela a indeterminao daquilo que Bartleby recusa, como se na verdade ele no recusasse, mas afirmasse. E, afirmando sua recusa com certa pompa de inatingvel ele parece tornar-se de fato inalcanvel pelas palavras do advogado na pea. Este fala na linguagem corrente, lngua dos homens frvolos e mundanos que habitam os lugares-comuns da fala e das heranas, alimentam os clichs e as tradies sem um pingo de questionamento configurando aquilo que Deleuze denomina de um personagem particular. Um personagem particular porta caractersticas que o formam e formam sua imagem de acordo com o meio em que so inseridos na obra este afetado pelo meio.J Bartleby, podemos consider-lo, juntamente com Deleuze, um personagem original, um personagem que afeta o meio. Pois ele inexplicvel, no justifica seus atos e sua existncia e tampouco por eles justificado. Bartleby sabe de alguma coisa muito grande ou muito poderosa que ningum sabe e isto o coloca num lugar de destacamento generalidade expressiva humana. Ele sabe algo inexplicvel e inexprimvel, seu irracionalismo superior a marca de sua frmula, o legado e o que propicia a aplicao de seu procedimento.No fundo, sua frmula no chega sequer a ser uma recusa, mas a afirmao de uma preferncia. Bartleby prefere no (I would prefer not to...). A frmula implode a ordem dialgica dicotmica da escolha, demole o prefervel e o no-prefervel. Ela a colocao de uma escolha sem termo, no bojo da qual cresce o indiscernvel e indeterminao, nunca a certeza ou a clareza esperadas de uma escolha. A frmula de Bartleby seu procedimento, consiste em arrasar a vontade subtraindo-lhe qualquer preferncia inteligvel como escolha. Escolha que expressa no uma vontade de nada (como um vazio estrutural), mas um nada de vontade pulsante e violento prpria lgica da escolha. como se o sim ou o no de Bartleby fossem demasiadamente fracos para exercer alguma vontade, qualquer que seja. O paradoxo do nada de vontade se d porque a vontade presume um mnimo de sada do zero para existir e o prefiro no no um preferir nada, mas um nada preferir, no-preferncia. Com efeito, Bartleby nem afirma nem nega, constituindo assim uma dobra da linguagem na qual ela volta-se a si mesma. A frmula e sua aplicao colocam Bartleby num ponto de estrangeiramento (e estranhamento) em relao lngua (apesar de nascer dela), que seria gerida por outras regras que no as que comumente se usa. Contrariando Desembaraada de todo e qualquer referencial, a lngua original[footnoteRef:14] com a qual Bartebly tem contato impessoal e inumana. Ela no lida com escolhas do cotidiano ou da existncia, pois est fora do cotidiano e da existncia. Na medida em que no trata de particular algum, no obedece s regras gerais nem se prende a semelhanas, assim como no respeita referncias, esta linguagem exploso em diferena. Logo, a literatura se exerce enquanto terreno despojado de eu ou razo. No se trata da fala do escritor ou do leitor, mas de uma terceira pessoa, uma potncia impessoal capaz de atingir a mxima singularidade. [14: A noo de original aparece em Deleuze (2011) como questo sem resposta, movimento potente no-explicvel, lgica sem racionalidade. Se o particular afetado pelo meio, o original afeta-o ora como processo estacionrio, fonte imvel do incio das coisas, ora como curso fulgurante de velocidade infinita inapreensvel. Essas duas dimenses do original so reconciliadas na reconciliao do humano com o inumano, mediante a dissoluo das funes referenciais. Desta maneira, podemos afirmar que a lngua original revela a imperfeio das leis e o vazio e que, ademais, seus vestgios ou projees arrastam a linguagem ao limite do silncio ou da msica, a zonas de indiscernibilidade.]

Afinal, Bartleby desestabiliza toda lgica de pressupostos gerais, antepostos da razo no agir. O advogado dir que ele no um homem de suposies, mas de preferncias. E a preferncia de Bartleby pela ao de no preferir, desfaz todo referencial da lngua com relao s coisas e tambm s aes e estados de coisas. Ele escapa aos esquemas de definio, o vagabundo (o sem-lugar) do no-movimento, aquele que, no se movimentando, vagabundo porque deslocado em referncia (novamente, a ausncia de referncias) ao movimento do mundo.Deleuze comenta que Bartleby demasiadamente liso para que se possa pendurar qualidades que o definiriam. No sabemos de sua histria e praticamente nada podemos dizer de suas caractersticas. Ele o homem em um estado outro de coisas est num estado de indiferente diferena. No por acaso, na pea, Bartleby aquele que no visto, ele obedece ao estranho regime imposto pelo advogado de ficar a trs do biombo. Alis, ele entra de cabea neste regime, no abandona o biombo e emite a frmula quase como uma palavra esotrica, cuja possibilidade de significao est contida apenas nela mesma. Palavra que diz a si mesma e, dizendo-se, longe de tautologia ou de cadeia de significaes (que so ainda assim cadeias, aprisionam sentidos) faz a linguagem cair no silncio que, mais que a cifra do nadavazio, a plena manifestao de um nada de vontade. Abrindo a linguagem para alm do que fora permitido a ela designar. O destino de Bartleby no deixa dvidas, ele para de copiar as palavras: no pode mais copiar. Incapacidade de fazer igual linguagem rasteira do cotidiano, esta a marca operacional de sua lngua original.No obstante, a frmula germina e prolifera. A cada ocorrncia o estupor em torno de Bartleby, como se se tivesse ouvido o Indizvel e o Irrebatvel. E o silncio de Bartleby, como se tivesse dito tudo e de chofre, esgotado a linguagem (DELEUZE, 2011, p. 93). Ele repete com mais ou menos variaes a frmula nas mais variadas situaes. Neste ponto, cada nova modulao, na verdade, cada enunciao (modulada ou no) da frmula, soma mais loucura ao redor de Bartleby, loucura que acomete sobretudo o advogado que parece, desajeitado, se afogar cada vez mais perante a fala montona de um outrora submisso Bartleby. Este sobrevive distncia destas manifestaes, distncia que gerada pelo suspense de sua no-escolha.Ora, o procedimento se d como acontecimento, ele no se restringe fala ou ao pensamento, mas seu efeito sobre a ao. Logo, ao enunciar a frmula em que consiste seu procedimento, Bartleby no apenas para de copiar, a frmula afirma a negao daquilo que ele no quer fazer e daquilo que ele fazia o que, em tese, preferiria continuar fazendo. Uma vez que o procedimento refere-se a um colocar-se na linguagem (e no no eu, no sujeito), o carter representacional de percepo e do pensamento que diferencia os fenmenos da (alucinao e do delrio) dos sentidos saudveis. Evidentemente, no cabe diferenciar percepo e alucinao, ambos incorrem na produo de mundos por vieses distintos. No obstante, Deleuze (2011) ressalta trs aspectos que aparecem na experincia de produo de mundos pelo ato de escrever: a despersonalizao, ascendncia do impessoal; a criao de uma lngua menor e, nesta operao, a experimentao de um limiar. Atravs do procedimento entramos em contato com certa dimenso do real na qual a vida passa na linguagem, constituindo mais que vises, audies ou mesmo ideias, construindo possveis para a experincia. Neste ponto se apresenta um momento elementar ao procedimento, que a desconstruo da desconstruo, dela se forma o por vir da experincia de criao artstica. Trata-se de um procedimento que tem como fim um outrar-se. Tornar-se outro num processo inconscientemente consciente. Piglia (2004) sustenta ainda a opinio de que a psicanlise a empreita empreende a tarefa de escuta da voz das musas que os escritores convocam, como uma msica que se d no cerne da linguagem, mas que aindaembora diferente da linguagem, como outra linguagem outra que nasce traindo a linguagem primeira. Criao que o engendramento que se d por uma ruptura e por um contingente inconcilivel, comum literatura e loucura. Ora, Deleuze (2011, p. 95) insiste que prprio da psicose pr em ao um procedimento que consiste em tratar a lngua ordinria, a lngua standard, de modo a faz-la restituir uma lngua original desconhecida. Parece-nos que o drama que envolve Bartleby a habitao deste espao sem lugar, o hiato reflexo do procedimento de estrangeiramento da lngua. Procedimento que provoca a experimentao do agramatical e faz uma linguagem anti-natural, sem vnculos bvios, evidentes ou ocultos. Escancarando radicalmente que tudo criao, conclui-se pelo engendramento de uma lngua inumana. Processo de linguagem que diz sobre uma produo, mas tambm sobre uma loucura.

1.5 - A produo da loucura

Aqui chegamos ao ponto de problematizao deste escritoa dissertao. At agora, preparamos o terreno para a ideia de que literatura e loucura se renem sob a gide da ausncia de obra. Ambas suspendem todo sentido pr-estabelecido, se dispem perante um vazio abismal, um nada de significado que ainda assim possibilidade de toda significao, apesar de no chegar nunca a um sentido ltimo. Por isto afirmamos que a ausncia de obra o que possibilita a prpria obra; no caso da literatura, o livrotexto, no caso da loucura, o que chamamos aqui de produo da loucura . Um conceito que criamos a partir de certo parentesco com o que Deleuze (2011) chama de procedimento em Crtica e Clnica.Mantendo a ambivalncia, entendemos por produo da loucura, algo que transita entre a loucura produzida e aquilo que a loucura produz. Esta noo compactua com o procedimento que comeamos a descrever acima: a extrao da outra face da lngua, a execuo de certa arte de bricolagem que corta e recompe os nexos (desterritorializa e reterritorializa[footnoteRef:15]). A produo da loucura algo entre os produtos advindos da loucura, ou melhor, as condies e formas de tal produo e o processo de subjetivao da loucura (algo que se d, valendo-nos novamente de DeleuzeDeleuze (2011), dizemos que algo que se d mediante processos de corte e conexo). Pois a loucura no ausncia de subjetivao, mas uma subjetivao que no se amarra ao que sustenta a subjetividade dos no-loucos; estes ltimos so entendidos ora como estruturados, ora como sujeito ensimesmado, enquanto os fora-de-si no podem se apregoar aos ditames que definem estas categorias, porque perante eles, a loucura capturada na forma de doena. Referimo-nos aqui a um procedimento que um enlouquecimento no da linguagem, mas um enlouquecimento que passa pela linguagem. [15: Valemos-nos da noo de territrio para pensar as superfcies e percepes da loucura a partir das modulaes da arte. Em se considerando a concepo da realidade enquanto composio de linhas, a noo de territrio condiz a um emaranhado interpenetrado de fluxos de foras e linhas abstratas e se d a partir da expresso do que o caracteriza, h territrio a partir do momento em que componentes de meios param de ser direcionais para se tornarem dimensionais, quando eles param de ser funcionais para se tornarem expressivos (DELEUZE & GUATTARI apud ALVAREZ & PASSOS, 2009, p. 133). Deleuze e Guattari (1992) ponderam que a arte pretende nos restituir, atravs dos perceptos (que nos retiram dos lugares habituais) e afectos (que consistem nos aspectos no-humanos dos devires que nos atravessam) que cria, algo que fora perdido, num jogo cujo fim justamente no ter finalidade alguma. Assim que, com a reterritorializao que propomos, afirma-semos mais que a criao de um novo territrio, a emulao de uma topologia distinta, a qual constitui uma linha de fuga aos preceitos sob os quais tomado o louco. A desterritorializao, por sua vez, presume o arrancar fulminante de um territrio, conduzindo necessariamente a outro, produzido no processo ou j dado.]

Afinal, esta a tese defendida por Deleuze no livro citado acima, a de que a linguagem carrega as possibilidades de construo para alm do corte que ela necessariamente incorre. Tendo em vista as manifestaes de loucura possveis a partir da modernidade apontadas por Foucault (1979) em obras como a de Nietzsche e Artaud, para nos resumirmos a dois nomes localizamos neste ponto de ruptura com a sua reduo em doena mental, o que denominamos produo da loucura. O que interessa produo da loucura enquanto procedimento a desconstruo do produto da desconstruo operada pelo corte. Ela a reterritorializao do que fora desterritorializado, no para fins de restituio do territrio primeiro (o estado pr-adoecimento se falamos de sade; as formas originrias se tratamos de processos de criao), mas para constituir novos territrios, novas expressividades e expresses restituio, pela abertura ao vazio, de algo que nunca existira, isto , engendramento do novo na experincia. Pois Deleuze (2011, p. 30) aponta que o procedimento impele a linguagem a um limite, mas nem por isso o transpe, ou seja, o procedimento leva aos limites, radicalizando o ser no seu contato com o vazio.A linguagem, por ela mesma, no confere sentido, a linguagem apenas exerce ratificaratificao e retificaretificao, e faz ambos de acordo com regras bem delimitadas em cada tipo de discurso, de acordo com o espao no qual se d cada linguagem. De maneira que os nexos e as ligaes que estabelecem a produo da loucura so aqueles da ordem que liga a loucura literatura, para alm do enlouquecimento da linguagem. Nexos que se do sob a forma de experincias que extrapolam as formataes restritivas e desvinculam a loucura da doena mental, nem que seja por um instante fugaz, o momento em que a produo da loucura exerce sua ao de composio. Na literatura, o contato com o vazio da morte anunciada no canto das sereias remete criao de um mundo possvel. No cruzamento com o que h de frgil no homem e na loucura, por sua vez, este vnculo expressado na herana com a lepra, que consiste na excluso daqueles que sentiram, em vida, a presena da morte. Foucault (2001[1963b], p. 47) aponta em Linguagem ao Infinito que esta proximidade com a morte o que possivelmente cava no ser e no presente o vazio a partir do qual e em direo ao qual se fala, e que, pela mesma sorte, impulsiona escrita.Neste contexto, a produo da loucura apresentada sob trs aspectos: 1) como um entreposto na interface entre arte e loucura ambas se encontram no limiar de uma experincia-limite, donde se experiencia o vazio da morte; 2) uma vez que o mundo do presente negado loucura, resta queles em contato com o vazio da morte, se atirarem na presena pulsante de um mundo porvir, procedendo no por negao deste mundo, mas por afirmao de uma outra relao com a lngua (mundo) e nesta afirmao, terminam por minorar a lngua maior (fazer um uso menor da lngua) na qual falam em seu prprio exerccio; 3) pela linguagem outra da loucura, a que escapa ao esteretipo tanto da lngua padro quanto que a doena proporciona como sintomatologia e percepo. A linguagem outra da loucura se d por uma ao que propicia na lngua o estrangeiro, isto , pela minorao de uma lngua no seio da lngua em que se escreve fabrica-se possveis e reais. Estas problematizaes so desenvolvidas no decorrer do texto. Em sequncia, transitamos por outras relaes estabelecidas entre a produo da loucura e a construo de possveis.

1.6 - Limite e transgresso

fato que literatura incorre em certo procedimento de produo de mundos, no entanto, o que este procedimento teria em comum com a loucura? Em nossa cultura, a relao entre linguagem e experincia marcada por uma indelvel diagramao dos signos, dos objetos e dos enunciados que desemboca numa lgica de similitudes e semelhana a ordem do imperativo do mesmo que exige e assegura a lgica sistemtica de estruturao do saber ocidental tal qual constituidoconstitudo desde Descartes. Os procedimentos artsticos de composio assim como e aqueles do enlouquecimento perturbam esta relao. O poeta, observa Foucault (2000, p. 68)pe-se escuta de outra linguagem, aquela, sem palavras nem discursos, da semelhana. O poeta faz chegar a similitude at os signos que a dizem, o louco carrega todos os signos com uma semelhana que acaba por apag-los. Assim, na orla exterior da nossa cultura e na proximidade maior de suas divises essenciais, esto ambos nessa situao de limite postura marginal e silhueta profundamente arcaica onde suas palavras encontram incessantemente seu poder de estranheza e o recurso de sua contestao. Entre eles abriu-se o espao de um saber onde, por uma ruptura essencial no mundo ocidental, a questo no ser mais a das similitudes, mas a das identidades e das diferenas.Logo, por uma relao de perturbao com relao lgica das similitudes que organiza a linguagem padro que literatura e loucura desdenham, no jogo das identidades e diferenas, das regras que ligam as palavras s coisas. Fazendo tremer estes vnculos, ambas liberam as palavras s suas prprias implicaes. Pois a linguagem se torna absoluta se livrando de toda representao a palavra liberta, isto o que designamos neste texto por apresentao.Alheios s similitudes e aos signos esto o louco e o poeta. Neste contexto, a produo da loucura algo dado como transgresso no limite da suportabilidade entre um e outro. Contudo, h de se assinalar que nem sequer a loucura tomada pura, destacada e simplesmente no , necessariamente, transgressiva. A loucura transgressiva no jogo que interpe com os limites impostos pela cultura, pelo eu e pela linguagem.Pois se Foucault se apoia no pensamento de Georges Dumzil para descobrir a forma estruturada da loucura a excluso social , o faz com o uso de noes de geometria como fora, limite, situao, dentro, separao etc.[footnoteRef:16] De maneira que limite, em seu pensamento imprescindvel transgresso, como exposto em Prefcio Transgresso (2001[1963]). A transgresso que engendra a experincia da loucura repousa no entendimento de que ela o outro no s da sociedade, mas do prprio sujeito tomado em termos de identidade. Ou seja, enlouquecer passa por ser outro de si, outro em relao razo e conscincia, rompendo com a entidade idem do ser, sendo alheio ordem subjetivante ensimesmada. [16: Para maiores detalhes sobre esta afirmao conferir o timo texto de Michel. Serres (1969) La Geometria de lo Incomunicable: La Locura.]

Entretanto, a loucura no transgressiva em si, ela o relacionalmente, pois se no estreito espao da linha do limite que reside a transgresso, a loucura, tomada em si mesma, est alm ou aqum dessa linha em relao razo e ao limite que uma cultura traa para definir o que exterior a ela. Porque antes de a loucura ser objetivada pelo saber mdico ela uma experincia marcada por uma distino da experincia racional, os parmetros que a regem so de outras ordens. Ela se faz distintamente da experincia racional, assinalada privilegiadamente pela diferena e pela forma de lidar com sua marca indelvel,: a excluso.Se a loucura, tomada como o que expelido pelo limite que a cultura coloca, no , em si mesma, transgresso porque o terreno privilegiado desta o da linguagem e no cruzamento da linguagem com a loucura que a transgresso deve ser encarada como a possibilidade de mltiplos sentidos e no como mais um sentido determinado em si mesmo. A transgresso uma profanao sem objeto, ela uma alterao (alter-ao: ao de outro ou de outros) em relao ao discurso da unidade, emulado por Deus na era Clssica e pelo homem na modernidade, ela impossibilita o primeiro como o que limita pelo ilimitado e o segundo como ilimitado limite prprio de si mesmo.A referncia transgresso que Foucault faz se baseia em Nietzsche e a morte de Deus, a qual referente prpria fundao do pensamento moderno. Este por sua vez simboliza a ordem emulada pelo homem o simulacro moderno do que fora Deus para o pensamento clssico enquanto seu prprio ilimitado limite. De maneira que, se para o pensamento clssico Deus era o limite ilimitado da experincia, com o giro para a era moderna, o homem no mais limitado por este ilimitado Deus (onipotente, onisciente, etc.), antes, ele descobre seu prprio limite e numa dobra do pensar desdobra-se enquanto limite ao infinito (pelas cincias humanas e pela concepo de um saber universal). Num movimento que, ao mesmo tempo em que desfaz limites, incrusta novos, constituindo transgresso em cima de transgresso na experincia.O que Foucault sinaliza com a morte de Deus em Prefcio Transgresso (2001[1963]) que esta desfaz o limite do ilimitado em que se calcava a experincia clssica. Enquanto a modernidade marcada pelo ilimitado do limite, que o prprio homem, sujeito e objeto de saber. No entanto, o que o autor francs indica com a morte de Deus no a tardia conscincia de sua inexistncia, mais que isso, o espao em que produzimos nossa experincia a partir da era moderna espao este fundamental literatura. Com a experincia moderna esgotamos as possibilidades de transcendncia do ser por algo exterior a ele prprio o ser o ser do homem; igualmente, ela designa o reino da liberdade e da interioridade que, contudo, no indica a ausncia de limites, mas justamente o ilimitado do limite e, subsequentemente, o horizonte possvel de sucessivas transgresses da a ligao da transgresso com a morte de Deus em Nietzsche. Em outras palavras, o desaparecimento da limitao pelo ilimitado divino desdobra radicalmente a existncia, levando-a reiteradamente aos seus limites[footnoteRef:17], levando as coisas e os valores a seus limites, onde passam a ser definidos por uma afirmao no positiva, ou so positivados numa negao (em se levando o problema aos meandros da ontologia), isto , so afirmados numa contestao que os lana a seus limites. [17: Foucault (2001[1963], p. 31) escreve: a morte de Deus no nos restitui a um mundo limitado e positivo, mas a um mundo que se desencadeia na experincia do limite, se faz e se desfaz no excesso que a transgride. Ainda neste texto, a morte de Deus e o pensamento trgico so apontados pelo pensador francs como imprescindveis para a ultrapassagem da dialtica que ope ser a limite.]

O ser da transgresso e o do limite esto implicados um no outro; ligados por relao menos de oposio do que de complementaridade, um a condio de existncia do outro preciso desfazer a dualidade dicotmica que os ope e que coloca a transgresso num intuito de abolio total de limites. Se transgredir implica a transgretransgresso dedir um limite que delimita um excesso em relao a ele, denota igualmente atransgredir compocomposio der novas margens para uma experincia, a propoproposio der novos termos para o contorno do ser. Se partirmos do discurso da unidade primordial, a transgresso visa abranger o que fora expelido da experincia como excedente, drenando-o de volta ao campo da experincia. Nesta volta, o que fora expelido, retorna revigorado, como um elemento que recupera sua fora pois a transgresso deve a densidade de seu ser ao limite, e o ser do limite disposto segundo as possibilidades de transgresso que se impe a ele.De fato, estar sob o domnio do limite signo de estar sujeitado a algum sistema de leis ou regras, impostos pelos simulacros de Deus (leia-se o ilimitado) sob a terra. Ou seja, o regime de limite uma imposio do reino do limitado. O reino do ilimitado no faz dos limites sua estrutura de colocao no mundo. Com relao literatura, ela nasce no ponto em que Hlderlin se intera que somente pode fazer literatura se afastando dos deuses e que a linguagem se d como possibilidade de ultrapassar a morte[footnoteRef:18]. Este afastamento carrega algo de paradoxal, a criao se equipara a certo sentimento de experimentao do divino na construo de um mundo. Mas um sentido de divino ligado profanao; esta encarna a descontinuao dos interditos (rompendo com estes) e do sagrado, a continuidade entre o ser e a transcendncia, dada inclusive para alm dos limites da finitude. Roberto Machado (2005, p. 60) comenta que a transgresso organiza a continuidade, a fuso, nascida da violncia, rearranjando o ser a partir do prolongamento, o que vai de encontro ao que poderamos presumir num raciocnio rasteiro que liga a experincia transgressiva descontinuidade com relao aos limites. [18: o momento (ou quase) em que Hlderlin percebeu at a cegueira que no poderia mais falar a no ser no espao marcado pelo circuito dos deuses e que a linguagem no devia mais seno ao seu prprio poder manter a morte afastada. Ento se desenhou embaixo do cu essa abertura em direo qual nossa palavra no cessou de avanar (FOUCAULT, 2001[1963], p. 52)]

Se os interditos so relativos sexualidade e morte, as leis, por sua vez so caractersticas do reino dos limitado, condizem morte de Deus na modernidade. Sendo assim, Bataille (apud MACHADO, 2005, p. 60-61) entende quea transgresso excede, sem destruir, um mundo profano [isto , de limites], do qual ela complemento. A sociedade humana no apenas o mundo do trabalho. Simultaneamente ou sucessivamente o mundo profano e o mundo sagrado, que so duas formas complementares, a compe. O mundo sagrado se abre a transgresses limitadas. o mundo da festa, dos soberanos e dos deuses Logo, a transgresso preserva uma lgica de limites, no podemos relacion-la a uma liberdade anterior civilizao. Sua organizao de violncia presume limites assim como a violao e transgresso destes. neste espao de engendramento da finitude pela morte que a literatura moderna se desdobra ao infinito, passando ao largo, entretanto, da palavra divina, palavra do ilimitado capaz de limitar a linguagem. Alis, trata-se justamente do contrrio, a literatura a palavra ilimitada da/na experincia do limitado, ela o infinito atual da miragem que constitui, em sua vacuidade, a espessura da obra esta ausncia no interior da obra de onde esta, paradoxalmente, se ergue (FOU