Badiou Oito Teses Sobre o Universal (1)

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    OITO TESESSOBREO UNIVERSAL*

    ALAIN BADIOU

    TRADUZIDO DO FRANCS POR NORMAN R. MADARASZ.REVISO TCNICA DE MNICA COSTA NETTO.

    TESE1. O ELEMENTOPRPRIODOUNIVERSALOPENSAMENTO.

    Chama-se pensamento o Sujeito, enquanto constitudo numprocesso transversal totalidade dos saberes disponveis ou, como o dizLacan, na brecha dos saberes.Observaes adjacentes:a) Que o elemento prprio do universal seja o pensamento significa quenada universal na forma do objeto ou da legalidade objetiva. O universal essencialmente inobjetivo. experimentvel apenas na produo, ouna reproduo, de uma trajetria de pensamento, e essa trajetria constitui,ou reconstitui, uma disposio subjetiva.Exemplo-tipo: a universalidade de uma proposio matemtica s experimentvel na inveno ou na reproduo efetiva da suademonstrao. A universalidade situada de um enunciado poltico s

    experimentvel na prtica militante que o efetua.b) Que o pensamento, como pensamento-sujeito, seja constitudo numprocesso significa que o universal no de modo algum o efeito de umaconstituio transcendental, que suporia um sujeito constituinte. Aocontrrio, da abertura possibilidade de um universal que depende queexista, localmente, um pensamento-sujeito. O sujeito a cada vezconvocado como pensamento num ponto do procedimento em que ouniversal se constitui. O universal o que determina seus prprios pontoscomo sujeitos-pensamento, ao mesmo tempo que ele a re-coleo virtualdestes pontos. Portanto, a dialtica central do universal a do local, comosujeito, e do global, como procedimento infinito. Esta dialtica opensamento mesmo.

    * Centre International dtude de la Philosphie Franaise Contemporaine, publicadono website em 19 novembre 2004.Traduo e publicao brasileira autorizadas pelo autor.

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    Assim: a universalidade da proposio a srie dos nmeros primos ilimitada reside simultaneamente na convocao do pensamento pararefazer, ou reencontrar, a sua demonstrao singular, e no procedimentoglobal onde se desdobra, dos Gregos at hoje, a teoria dos nmeros comsuas axiomticas subjacentes. Ou ainda: a universalidade do enunciado-prtico exigvel que os operrios sem documentos de um pas consigamter seus direitos reconhecidos reside simultaneamente nas efetuaesmilitantes de todas as ordens, nas quais o sujeito poltico ativamenteconstitudo, e no processo global de uma poltica no que diz respeito aoque ela prescreve quanto ao Estado, suas decises, suas regras e suas leis.

    c) Que o processo do universal ou de uma verdade a mesma coisa seja transversal a todos os saberes disponveis significa que o universal sempre um surgimento incalculvel, e no uma estrutura oferta descrio.Dir-se- igualmente que uma verdade intransitiva ao saber e at mesmoque ela essencialmente no sabida. O que um dos sentidos possveisdo seu carter inconsciente.

    Chamar-se- particular o que identificvel no saber pelospredicados descritivos. J aquilo que, identificvel como procedimentoem andamento numa situao, subtrai-se a toda descrio predicativa,dir-se- singular. Assim, os traos culturais de uma populao qualquerso particulares. Mas aquilo que, para alm desses traos, depondo todadescrio repertoriada, convoca universalmente um sujeito-pensamento,

    singular. Da a tese 2.

    TESE2. TODOUNIVERSALSINGULAROUUMASINGULARIDADE.

    Observao adjacente. No h nenhum substituto universalpossvel da particularidade enquanto tal. Uma tese corrente hoje a deque a nica prescrio realmente universal o respeito dasparticularidades. Essa tese, a meu ver, inconsistente. De resto, os fatoscomprovam que sua aplicao sempre tolhida pelas particularidadesque o partidrio da universalidade formal considera como intolerveis.Na realidade, para se sustentar que o respeito das particularidades umvalor universal, preciso previamente distinguir as ms e as boasparticularidades. Em outras palavras, tem-se que hierarquizar ospredicados descritivos. Dir-se-, por exemplo, que uma particularidadecultural ou religiosa ruim se ela no inclui nela mesma o respeito dasoutras particularidades. Quem no percebe que significa exigir que ouniversal formal j esteja presente na particularidade? Definitivamente,

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    a universalidade do respeito das particularidades apenas a universalidadeda universalidade. uma tautologia mortfera. Ela acompanhanecessariamente um protocolo, na maioria das vezes violento, deerradicao das particularidades realmente particulares, ou seja, daquelasque so imanentes, no sentido de que imobilizam seus predicados emcombinaes identitrias auto-suficientes. Portanto, preciso sustentarque todo universal se apresenta no como regulamentao do particularou das diferenas, mas como singularidade subtrada aos predicadosidentitrios, ainda que, obviamente, ela proceda neles e atravs deles. assuno das particularidades, preciso opor a sua subtrao. Mas, se

    uma singularidade pode pretender subtrativamente ao universal, porqueo jogo dos predicados identitrios, ou a lgica dos saberes descritivos daparticularidade, no permite de maneira alguma prev-la ou pens-la.

    Decorre disso que uma singularidade universal no da ordemdo ser, mas da ordem do surgimento. Da a tese 3.

    TESE 3. TODO UNIVERSALSE ORIGINADE UMACON TECI MENTO, E OACONTECIMENTOINTRANSITIVOSPARTICULARIDADESDASITUAO.

    A correlao entre universal e acontecimento fundamental. Demodo elementar, percebe-se com clareza que a questo do universalismo

    poltico depende completamente do regime de fidelidade ou deinfidelidade apoiado, no desta ou daquela doutrina, mas da Revoluofrancesa, ou da Comuna de Paris, ou de Outubro 1917, ou das lutas deliberao nacional, ou de Maio 1968. Ao contrrio, a negao douniversalismo poltico, a negao do motivo mesmo da emancipao,exige mais do que uma simples propaganda reacionria. Exige o quedeve se chamar de um revisionismo acontecimental1. Ou seja, por

    1 NTT. A adoo do pouco atraente neologismo acontecimental para traduzir otermo francs vnementiel justifica-se pelo adjetivo qualificativo assim forjadose encarregar de uma nuance semntica que do acontecimento ocultaria. Quando

    falamos de um livro monumental no queremos dizer que tal livro de mesmanatureza que um monumento, tampouco que provenha dele, mas que possui ascaractersticas do monumento. Assim, banco nacional pode ser um sinnimo debanco da nao, mas livro do monumento no um sinnimo de livromonumental. Da mesma forma,acontecimental caracteriza algo como tendo ascaractersticas do acontecimento, mas no como de mesma natureza ou origem. Nocaso, revisionismo acontecimental indica que se trata no s de um revisionismo

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    exemplo, o trabalho de Franois Furet para estabelecer que aRevoluo francesa foi completamente intil e infecunda; ou asinumerveis declaraes que reduzem Maio 68 a uma galopada deestudantes em favor da liberdade sexual. O que visado norevisionismo acontecimental a conexo entre universalidade esingularidade. Nada teve lugar alm do lugar, as descriespredicativas so suficientes, e o que tem um valor geral estritamenteobjetivo, ou tem a forma do objeto. Isto , in fine, reside nosmecanismos e na potncia do capital e suas acomodaes estadistas.

    Neste caso, o destino animal da humanidade est encerrado na

    relao entre particularidades predicativas e generalidade legislativa.Que um acontecimento venha iniciar um procedimento singular

    de universalizao e nele constituir seu sujeito, antinmico ao parpositivista da particularidade e da generalidade.

    O caso da diferena dos sexos significativo aqui. Pode-seconceber de maneira abstrata as particularidades predicativas queidentificam, numa dada sociedade, as posies homem emulher. E pode-se colocar como princpio geral que os direitos,estatutos, localizaes e hierarquias dessas posies devem serregulados pela lei num sentido igualitrio. Tudo isto excelente,mas no enraza nenhuma espcie de universalidade na distribuiopredicativa dos papis. Para que seja o caso, preciso que surja a

    singularidade de um encontro, ou de uma declarao, onde seentrelaa um sujeito cujo avatar justamente que ele experimentesubtrativamente a diferena dos sexos. Com efeito, tal sujeitoresulta, no encontro amoroso, da sntese disjuntiva das posiessexuadas. A cena verdadeira onde alguma universalidade singularse pronuncia sobre o Dois dos sexos, e finalmente sobre a diferenacomo tal, , portanto, a cena amorosa, e apenas ela. A se d aexperimentao subjetiva indivisa da diferena absoluta. De resto,sabemos bem que, no que diz respeito ao jogo dos sexos sempre e

    dos acontecimentos, que seria uma prtica comum da cincia historiadora em suareleituras e novos recortes, mas de um revisionismo que se ataca ao estatuto mesmodo acontecimento enquanto tal. Assim como a histoire vnementielle que deuorigem ao termo em francs, qualifica um modo de se fazer a histria que se atmde forma exagerada aos acontecimentos, j que se toda histria de alguma formahistria dos acontecimentos, nem toda histria se resume ao factual ou pretendeque a histria em geral deva a ele se resumir.

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    em qualquer lugar, so as historias de amor que apaixonam. Eapaixonam a partir dos obstculos diferenciados e particularizadosque tal ou tal formao social lhes ope. patente, aqui, que aatrao exercida pelo universal est justamente nele se subtrair,ou tentar se subtrair, como singularidade a-social, aos predicadosdo saber.

    Portanto, preciso dizer que o universal advm comosingularidade, e que s temos, de incio, a precariedade de umsuplemento, cuja nica fora reside em que nenhum predicadodisponvel o obriga submisso erudita.

    Coloca-se ento a questo de se saber sobre qualmaterialidade, sobre qual efeito de presena inclassificvel, se apia,na situao, o procedimento subjetivante do qual um universal omotivo global.

    TESE4. UMUNIVERSALSEAPRESENTAINICIALMENTECOMODECISODEUMINDECIDVEL.

    Tem-se que elucidar este ponto cuidadosamente.Chamamos enciclopdia o sistema geral dos saberes

    predicativos internos a uma situao, ou seja, o que todos sabemos

    sobre a poltica, sobre os sexos, sobre a cultura ou a arte, sobre astcnicas, e assim por diante. Certas coisas, enunciados, configuraes,fragmentos discursivos no so decidveis quanto a seu valor a partirda enciclopdia. Tm um valor incerto, flutuante, annimo; constituema margem da enciclopdia. Trata-se de tudo aquilo que est submetidoao regime do talvez sim, talvez no; do que se pode falar sem fim,sob a regra, ela mesma enciclopdica, da no-deciso. A obrigaodo saber, quanto a esse ponto, de no decidir. Como hoje, porexemplo, quanto a Deus. Sustenta-se de bom grado que talvez existaalgo, ou talvez no. Em nossas sociedades, Deus um valor deexistncia inatribuvel: uma espiritualidade vaga. Ou quanto existncia possvel de uma outra poltica. Fala-se sobre isto, masno se v nada chegando. Ou ainda: os trabalhadores sem documentosque trabalham aqui na Frana, ser que eles compem este pas? Elesso daqui? Sim, sem dvida, porque eles moram e trabalham aqui.No, porque eles no tm os documentos que atestam sua identidadefrancesa ou regular. A palavra clandestino designa a incerteza dovalor, ou do no-valor do valor. Gente que daqui, mas no realmente

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    daqui. Logo, expulsveis, o que quer dizerexpostos possivelmenteao no-valor dovalor (operrio) da sua presena.

    Fundamentalmente, um acontecimento o que decide sobreuma zona de indecidabilidade enciclopdica. Mais precisamente, huma forma implicativa do tipo:

    E d(psilon),que l-se: toda subjetivao real do acontecimento tal como

    ele desaparece no seu aparecer, implica que psilon, que indecidvelna situao, foi decidido. Assim, por exemplo, com a ocupao daigreja Saint-Bernard em Paris pelos sem-documento, que proclama

    publicamente a existncia e o valor do sem-valor, que decide queaqueles que esto aqui so daqui, e que destitui, portanto, a palavraclandestino.

    Chamaremos psilon o enunciado acontecimental. Em virtudeda regra lgica da separao, percebe-se que a abolio doacontecimento, cujo ser inteiro est em desaparecer, deixa subsistir oenunciado acontecimental psilon, que o acontecimento implica, comosendo ao mesmo tempo um real da situao (pois ele j estava a),mas tomado numa mudana radical de valor, j que ele era indecidvele foi decidido. Ou ainda: ele no tinha valor e agora tem um.

    Dir-se- ento que a materialidade inaugural de umasingularidade universal o enunciado acontecimental. Ele fixa o

    presente do sujeito-pensamento do qual o universal se tece.Assim ocorre tambm com o encontro amoroso, do qual oenunciado eu te amo, de uma forma ou de outra, fixa o presentesubjetivo, mesmo quando, do prprio encontro, a circunstncia apagada. Desta forma, uma sntese disjuntiva indecidvel decididae, quanto inaugurao do seu sujeito, fixada s conseqncias doenunciado acontecimental.

    Observe-se que todo enunciado acontecimental , qualquer sejaa sua forma, proposio, obra, configurao ou axioma, de estruturadeclarativa. Implicado pelo aparecer-desaparecer do acontecimento,ele declara que algo indecidvel foi decidido, ou que algo sem-valorpassou a ter um valor. a esta declarao que se encadeia o sujeitoconstitudo, e ela que abre o espao possvel de um universal.

    A partir da, para que o universal se desdobre, trata-se apenasde ser conseqente com o enunciado acontecimental. Isto , de tirarsuas conseqncias na situao.

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    TESE5. O UNIVERSALDEESTRUTURAIMPLICATIVA

    Uma objeo muitas vezes feita idia de universalidade quetudo que existe, ou que tudo que representado, remete a condiesparticulares e a interpretaes governadas por interesses ou foras dspares.Desta forma, no poderia haver uma apreenso universal da diferena,levando-se em conta a irredutibilidade da apreenso sexual segundo aposio ocupada, a posio homem ou a posio mulher. Ou ainda,grupos culturais diversos chamariam de atividade artstica produessem denominador comum. Ou mesmo, uma proposio matemtica no

    seria intrinsecamente universal, porque depende, quanto sua validade,dos axiomas que a sustentam.

    Este perspectivismo hermenutico esquece que toda singularidadeuniversal se apresenta como rede de conseqncias de uma decisoacontecimental. O que universal sempre da forma psilon pi, ondepsilon o enunciado do acontecimento epi uma conseqncia, ou umafidelidade. evidente que, para quem recusa a deciso sobre psilon, paraquem remete reativamente psilonao seu estatuto de indecidabilidade, paraquem aquilo que tomou valor deve permanecer sem valor, para tal sujeito,a forma implicativa no impe de modo algum que a conseqnciapi sejacorreta. Contudo, ele precisar admitir que h universalidade da implicaomesma. Em outras palavras, que se voc subjetivar o acontecimento a partir

    do seu enunciado, as conseqncias inventadas sero necessrias.Quanto a esse ponto, o aplogo do Mnon de Plato permaneceincontornvel. Se um escravo ignora tudo sobre a fundao acontecimentalda geometria, no pode validar a construo do quadrado de superfciedupla de um quadrado dado. No entanto, se os dados primordiais lhe foremtransmitidos e se ele aceitar subjetivar a transmisso, subjetiver tambma construo considerada. A implicao que inscreve essa construo nopresente que instaura o surgimento geomtrico grego , portanto,universalmente vlida.

    Diro: com a inferncia matemtica, voc est arranjando as coisaspara o seu lado. Mas no. Todo procedimento universalizante implicativo.Ele atesta as conseqncias no que diz respeito ao enunciado acontecimentalque fixa2 o acontecimento desaparecido. O protocolo de subjetivao,

    2 NTT. O verbo utilizado pelo autor: pingler de pingle, alfinete significafixar, afixar, pendurar com um alfinete; a traduo por fixar, portanto, noconsegue dar conta do modo como o enunciado acontecimental fixa o acontecimento.

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    iniciando-se com este enunciado, por este fato mesmo, torna-se capaz deinventar as conseqncias e de as separar como universalmentereconhecveis.

    A denegao reativa do acontecimento, a mxima nada tevelugar alm do lugar, sem dvida o nico meio de desabilitarumasingularidade universal. Ela disqualifica as conseqncias e anula opresente do procedimento. Mas incapaz de anular a universalidadeda implicao mesma.

    Se, por exemplo, a Revoluo Francesa a partir de 1792 umacontecimento radical, fixado pela declarao imanente de que a

    revoluo , como tal, uma categoria poltica, ento, verdadeiro queo cidado se constitui apenas segundo a dialtica da Virtude e doTerror. Esta implicao est fora de acometimento e universalmentetransmissvel, por exemplo, nos escritos de Saint-Just. Evidentemente,se a revoluo no nada, a virtude como disposio subjetiva tambmno existe, e resta apenas o terror como fato insensato, sobre o qualimpe-se que se profira um julgamento moral. A poltica desapareceu.Mas no a universalidade da implicao que a dispe.

    E, quanto a este ponto, no cabe de forma alguma evocar umconflito de interpretaes. a nossa tese 6.

    TESE6. O UNIVERSALUNVOCO.

    Na medida em que se trata da subjetivao das conseqncias,h uma lgica unvoca da fidelidade que constitui uma singularidadeuniversal.

    preciso retornar, aqui, ao enunciado acontecimental.Lembremos que, a ttulo de entidade indecidvel, ele circula nasituao. H consenso ao mesmo tempo sobre sua existncia e sobresua indecidabilidade. Ontologicamente, ele uma das multiplicidadesque compem a situao. Logicamente, tem valor intermedirio, nodecido. O que ocorre acontecimentalmente no concerne nem ao serem jogo no acontecimento, nem ao sentido desse enunciado, masunicamente ao seguinte: que ele ter sido decidido, ou decidoverdadeiro, quando era indecidvel. Ou que, sem valor significativo,ter tomado um valor excepcional. Assim se d com o clandestinoque, na igreja Saint-Bernard,mostra sua existncia.

    Dito de outro modo, o que afeta o enunciado, tal como tomadoimplicativamente pelo desaparecimento acontecimental, da ordem

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    do ato, e no da ordem do ser ou do sentido. E precisamente esseregistro do ato que unvoco. Aconteceu o enunciado ter sido decidido,e isto subtrado a toda interpretao. Depende do sim ou do no,mas de modo algum da pluralidade equvoca dos sentidos.

    Na realidade, trata-se de um ato lgico, pode-se quase dizercomo Rimbaud, de uma revolta lgica. O que a lgica anteriormantinha no indecidvel ou no no-valor, o acontecimento decide emfavor da sua verdade ou de seu valor eminente. Obviamente, isso s possvel se, gradualmente, toda a lgica da situao for transformadaa partir do ato unvoco que modifica o valor de um dos componentes

    da situao. O ser-mltiplo da situao no transformado em si, masseu aparecer lgico, o sistema de avaliao e da ligao dasmultiplicidades, pode s-lo de maneira bem profunda. E a trajetriadessa mutao compe a diagonal universalizante da enciclopdia.

    A tese da equivocidade do universal, de fato, remete asingularidade universal s generalidades que legiferam sobre asparticularidades. Ela apreende apenas o ato lgico que instaurauniversal e univocamente uma transformao de todo o aparecer.

    Pois toda singularidade universal pode ser assim definida: oato que, encadeando um sujeito-pensamento, revela-se capaz de abrirum procedimento de modificao radical da lgica e, portanto, doque aparece enquanto aparece.

    Essa modificao, evidentemente, nunca completa, acabada.Pois, o ato unvoco inicial, sempre localizado, implica uma fidelidade,isto , uma inveno das conseqncias, que to infinita quanto asituao mesma. Da a tese 7.

    TESE7. TODASINGULARIDADEUNIVERSALINACABVEL, OUABERTA.

    O nico comentrio suscitado por essa tese diz respeito ao ndo sujeito, como localizao de uma singularidade universal, e doinfinito, como lei ontolgica do ser-mltiplo. Mostrar-se-ia, nesteponto, que entre os filsofos da finitude, de um lado, e a negao douniversal, o relativismo, o descrdito da noo da verdade, do outro,h uma cumplicidade essencial. Digamos numa s mxima: a surdaviolncia, a arrogante ingerncia da concepo dominante dos direitoshumanos provm do fato que esses direitos so na verdade os direitosda finitude e, finalmente, como o mostra o tema insistente da eutansiademocrtica, os direitos da morte. A concepo acontecimental das

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    singularidades universais impe que os direitos humanos sejam os doinfinito, como foi observado por Jean-Francois Lyotard noDiffrend.Ou ainda, os direitos da afirmao infinita. Eu diria, ainda maisexatamente: os direitos do genrico.

    TESE8. A UNIVERSALIDADENADAMAISQUEACONSTRUOFIELDEUMMLTIPLOGENRICOINFINITO.

    O que deve-se entender por multiplicidade genrica? Muito

    simplesmente, um subconjunto da situao que no determinadopor nenhum predicado do saber enciclopdico, ou seja, um mltiplotal que pertencer a ele, ser um elemento seu, no o resultado denenhuma identidade ou propriedade particular. Se o universal paratodos, no sentido preciso de que o ato de se inscrever nele nodepende de nenhuma determinao particular. Assim ocorre com amanifestao poltica, que s universal por sua indiferena provenincia social, nacional, sexual, ou de gerao. Assim ocorrecom o casal amoroso, que universal somente ao produzir uma verdadeindivisa sobre a diferena das posiessexuadas. Assim ocorre com ateoria cientfica, que universal apenas ao excluir, no seudesdobramento, toda marcao de sua provenincia. Assim ocorre

    com as configuraes artsticas, cujos sujeitos so as obras, e onde,como o constatava Mallarm, o autor uma particularidade abolida.Tanto que as configuraes inaugurais exemplares, como a Ilada e aOdissia, so tais que o nome prprio que as sustenta, Homero,finalmente remete apenas ao vazio do sujeito. Assim, o universal surgesegundo o acaso de um suplemento, deixa como rastro dodesaparecimento do acontecimento que o funda um simples enunciadoseparado, inicia seu procedimento no ato unvoco pelo qual se decideo valor do que no tinha valor nenhum, encadeia a este ato um sujeito-pensamento que inventa as conseqncias, constri de maneira fieluma multiplicidade infinita genrica, a qual, na sua abertura mesma, o que Tucdides declarava que seria, contrapondo-se particularidadehistrica da guerra do Peloponeso, sua histria escrita dessa guerra:uma aquisio para sempre.