Baianidade Nas Letras de Caetano Veloso e Gilberto Gi1

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Masarykova univerzita Filozofick fakulta

A baianidade nas letras de Caetano Veloso e Gilberto Gil(zvren magistersk prce z Portugalskho jazyka a literatury)

Jana Zrnkov

Vedouc prce: PhDr.Zuzana Burianov, PhD.

Brno 2007

Prohlauji, e tuto diplomovou prci jsem vypracovala sama za pouit uveden literatury a internetovch zdroj.

Chtla bych podkovat pan doktorce Zuzan Burianov za veden m prce, ochotu vst konzultace i na dlku a samozejm za vechny cenn pipomnky.

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A baianidade nas letras de Caetano Veloso e Gilberto Gil

Estou pensando / no mistrio das letras de msica to frgeis quando escritas / to fortes quando cantadas a palavra cantada no a palavra falada / nem a palavra escrita a altura a intensidade a durao a posio da palavra no espao musical / a voz e o mood mudam tanto a palavra canto / outra coisa Augusto de Campos

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ndice 1. Introduo.........................................................................................5 2. A cultura baiana na perspectiva histrica .........................................8 3. A baianidade...................................................................................16 4. A Bahia na MPB.............................................................................22 5. As biografias...................................................................................25 5.1. A biografia de Caetano Veloso....................................................25 5.2. A biografia de Gilberto Gil..........................................................28 6. O tropicalismo ................................................................................31 7. A baianidade de Caetano Veloso e Gilberto Gil.............................39 7.1. Alegria .........................................................................................40 7.2. Festas...........................................................................................42 7.3. Religiosidade ...............................................................................46 7.4. Sensualidade................................................................................54 7.5. Saudade da Bahia ........................................................................56 7.6. Primazia.......................................................................................57 7.7. Os lugares da Bahia e de Salvador ..............................................61 7.8. As personalidades baianas...........................................................63 7.9. Os lados negativos dos baianos ...................................................65 8. Consideraes finais.......................................................................69 Bibliografia.........................................................................................71 Anexo .................................................................................................74

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1. IntroduoA msica brasileira sempre teve e continua a ter um grande renome no mundo musical. So raras, por exemplo, as pessoas que no sabem que o samba provm do Brasil. Outro estilo tipicamente brasileiro a bossa nova. A bossa nova conquistou o mundo na primeira metade dos anos 60 do sculo passado, com sua leveza e a batida tpica, mas no foi a ltima contribuio do pas tropical para a variedade musical. Os ritmos e danas brasileiros, surgidos durante a folia carnavalesca, causaram enormes ondas do sucesso nos anos 80 e 90 (mencionemos a lambada ou ax-music). A riqueza e a diversidade dos gneros musicais brasileiros incrvel. O que teve um grande impacto na msica popular brasileira (MPB) e seguiu-se ao sucesso da bossa nova foi a produo musical do movimento tropicalista. O tropicalismo, o nico ismo tipicamente brasileiro1, no se limitou apenas msica, mas foi essa que superou as outras manifestaes tropicalistas e que com suas letras acendeu tambm o grande interesse por parte dos crticos literrios ou dos prprios poetas. O distinguido poeta, tradutor e crtico literrio Augusto de Campos afirmou, em fins dos anos 60, que o que melhor estava se fazendo em poesia no Brasil estava sendo produzido por compositores da MPB que foi influenciada pelo tropicalismo. O mesmo considerou Caetano Veloso o maior poeta da sua gerao. Assim, Caetano Veloso, o pai-fundador do movimento tropicalista, e seu irmo-gmeo, Gilberto Gil, entraram no centro do interesse deste trabalho, cujo objetivo pesquisar de que maneira a origem baiana, ou a chamada baianidade, deixou vestgios em sua obra potica. Vamos tentar identificar alguns dos principais assuntos e idias baianos propostos pelos compositores ao longo de sua criao artstica,

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Assim chamado por Sylvia Helena Cyntro no prefcio do livro A forma da festa tropicalismo: a exploso e seus estilhao. Braslia, Editora Universidade de Braslia, 2000, p. 6.

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sem usar nenhum limite peridico, esforando-se tanto por identificar o sentido das letras das canes em sua totalidade quanto por a analisar detalhamente cada fragmento do enunciado referente Bahia. , porm, preciso destacar que a obra dos dois artistas no a poesia em stricto senso. Antes pode ser designada como a poesia da cano. A designao poesia tem aqui seu fundamento porque a presena dos elementos literrios na linguagem da cano brasileira contempornea inegvel e merece considerao. verdade que a poesia da cano e a poesia destinada leitura possuem a mesma origem histrica e mantm muitas afinidades, mas no so exatamente iguais. A avaliao literria das letras da msica, sem tomar em considerao tambm a parte musical, sempre incompleta. A letra a parte de um todo (a cano) e deve estar em sincronia com o cdigo musical, obedecendo a uma mtrica, a uma sonoridade e a um tamanho correspondentes a essa parte. Feita para compor a unidade com o elemento musical, os dois se influenciam mutuamente, tanto ao nvel da seleo temtica, quanto ao nvel estrutural: em sua origem, texto e msica so inseparveis.2 Portanto claro que a anlise trazida nesse trabalho tem certos limites e no pode exprimir toda a riqueza da cano, a irrepetvel juno da palavra e do tom. Apesar de ser muito ampla a literatura sobre Caetano Veloso e Gilberto Gil, dedica-se quase toda a outros aspectos. A nica fonte, que se aproxima do problema determinado por este trabalho, a tese de Anes Francine de Carvalho Mariano com o ttulo A arte de ser baiano: segundo as letras das canes da msica popular3, mas a tese, abrangendo um perodo do inteiro sculo XX, s traz percepes bsicas ao tema sem grande profundidade. Outra obra, com o ttulo prometedor A presena da Bahia naPara saber mais sobre as especifidades da anlise da letra ver: Perrone, Charles A. Letras e letras da msica popular brasileira. Rio de Janeiro, Elo Editora, 1988, p. 11-22 e Gos, Fred de. Gilbeto Gil. Literatura comentada. So Paulo, Abril Educao, 1982, p. 15. 3 Mariano, Agnes Francine de Carvalho. A arte de ser baiano: segundo as letras das canes da msica popular. Tese de doutorado da UFBA, Salvador, 2001.2

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msica popular brasileira de Luiz Amrico Lisboa4, limita a sua pesquisa s ao ano de 1964, quando os msicos por ns analisados ainda no lanaram nenhum disco LP. Somente uma breve meno ao nosso tema trazida por Felix Ayohomidire em sua tese de doutoramento intitulada Yorubanidade mundializada: o reinado da oralitura em textos yorub nigerianos e afro-baianos contemporneos5. Ento, no restava nada do que tentar fazer o mosaico dos estilhaos encontrados nos depoimentos de Caetano Veloso e Gilberto Gil e na literatura secundria sobre eles. No podemos esqueer, porm, as prprias letras, que se tornam a fonte fundamental e o objeto deste trabalho. No que diz respeito estrutura deste trabalho, primeiro, queremos aproximar brevemente a cultura baiana porque ela tem muitas especifidades e sem esse conhecimento fundamental no podemos desdobrar o discurso sobre a baianidade. A seguir, vamos questionar o conceito da baianidade de vrios ngulos o que esse termo significa para os baianos, para outros brasileiros e, para completar, queremos tambm trazer o olhar de fora. Antes de comear com o ncleo do trabalho, com a anlise dos elementos baianos na obra de Caetano Veloso e Gilberto Gil, queremos tambm mencionar como se a baianidade refletiu nas letras dos compositores mais antigos, com a maior ateno prestada a Dorival Caymmi.

2. A cultura baiana na perspectiva histrica

Lisboa Jnior, Luiz Amrico. A presena da Bahia na msica popular brasileira. Braslia, MusiMed/Linha Grfica Editora,1990. 5 Felix Ayohomidire. Yorubanidade mundializada: o reinado da oralitura em textos yorub nigerianos e afro-baianos contemporneos. Tese de doutoramento da UFBA Salvador, 2005.

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Tratando da cultura baiana, o mais importante salientar o fato que ela no homognea. A cultura do litoral extremo-sul da Bahia, da regio cacaueira, muito diferente do interior, por exemplo, da regio do rio So Francisco. At para um estrangeiro que visita esta zona, as diferenas entre as regies visitadas na Bahia so ntidas. A culinria de cada lugar na Bahia tem seu sabor prprio, o sotaque dos baianos difere de um lugar para outro, assim como a msica tocada nas ruas tem seus ritmos variveis. Portanto falar sobre uma cultura baiana impossvel. Mas o que ento entender sob a designao da cultura baiana? Para a maioria dos brasileiros, a Bahia intimamente ligada cidade de Salvador, s vezes chamada a Cidade da Bahia. Assim, a cultura baiana , para este texto, entendida, conforme a definio de Antonio Risrio, como a cultura predominantemente litornea do recncavo agrrio e mercantil da Bahia, que tem como principal ncleo urbano a tradicional Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos6. Essa cultura, ganhando ao longo do tempo influncias de vrias naes, pode ser hoje simplificadamente caracterizada como luso-banto-iorubana com traos tupis. Tomando em considerao tambm os aspetos econmicos e polticos, vamos falar sobre a contribuio de vrias naes para a constituio da cultura baiana. Os ndios tupinambs, do grupo lngstico tupi, foram os primeiros habitantes da baa de Todos os Santos. Os colonizadores portugueses, que chegaram no incio do sculo XVI, apesar de exercer a poltica da dizimao, no conseguiram extirpar toda a herana indgena. Ela permanece no vocabulrio baiano, principalmente nos topnimos e no lxico pesquiero e, por exemplo em Itapu, o bairro ligado a Dorival Caymmi, bastante notvel. Alm de Caymmi, tambm Caetano Veloso notou essa herana do tupi

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Risrio, Antnio. Bahia com H. In: Reis, Jos Joo (org.). Escravido e inveno da Liberdade. So Paulo, Ed. Brasiliense, 1988, p. 146.

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e comps a melodia Two Naira fifty Kobo com letra sequinte: a fora vem dessa pedra, que canta Itapu, fala tupi, fala iorub. A influncia portuguesa omnipresente e no necessrio abordar amplamente esta questo. Com a fora dos colonizadores, os portugueses imprimiram na Bahia as marcas de sua cultura (por exemplo, o centro de Salvador com seus sobrados pode-se facilmente confundir com as cidades portuguesas da poca) e o portugus tornou-se a nica lngua oficial do Brasil inteiro. Em 1549 fundaram Salvador. A cidade j foi planejada pelo governo portugus com fins transnacionais e no evoluiu, como era comum, de um agrupamento, que se transforma em vila e posteriormente em cidade. A Cidade da Bahia tornou-se a capital da nova colnia e seu centro comercial e administrativo que se aproveitou do comrcio aucareiro. Esse perodo da histria de Salvador bem caraterizado nos poemas do famoso Boca do Inferno, Gregrio de Mattos, que bebeu o mel dos engenhos nos lbios grassos das negras.7 Nos sculos XVI e XVII, Salvador era a maior cidade europeia fora da Europa, mas tambm o maior agrupamento africano fora da frica. Nos sculos XVI e XVII (depois da proclamao da lei de 1570 que proibira a escravatura dos ndios), por conta do trfico de escravos, apontaram na Bahia os povos do grupo lingstico banto, vindos de Angola e do antigo reino do Congo. A mo-deobra deles ficou imprescindvel para a indstria aucareira. A partir dos fins do sculo XVIII perderam a hegemonia, quando o comrcio de escravos se mudou para a frica superequatorial (regio da Costa da Mina e Golfo do Benin lugares com as primeiras feitorias portuguesas na frica). Entretanto, esses negros bantos, apesar de contnuo processo de aculturao, deixaram marcas profundas na sociedade baiana. Por exemplo, eles criaram j no sculo XVI a importante irmandade do Rosrio dos Pretos do

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Risrio, Antnio. Avant-garde na Bahia. So Paulo, 1995, p. 157.

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Pelourinho, que se mantm at o presente e que, alm da funo religiosa e social, contribui divulgao da cultura negra. As lnguas bantos tm presena marcante nos falares populares foram eles que deixaram no lxico baiano as palavras como dend, bunda, samba, candombl, quiabo, macumba e umbanda. Os bantos estavam presentes no carnaval de fins do sculo XIX, com entidades como os Pndegos da frica; foram responsveis pela introduo da capoeira e do samba na Bahia (e no Brasil em geral); mantiveram suas tradicionais religies atravs dos candombls congo e angola. O fluxo dos bantos para a Bahia pra nos fins do sculo XVIII, quando teve incio um perodo de influncia marcadamente sudanesa, com a chegada dos fons do Benin, identificados como jjes, e dos iorubs, conhecidos tambm como nags. Por terem vindo em grande nmero e pelo intercmbio constante com a costa ocidental africana, exercem considervel supremacia no sculo XIX e passam a ocupar o lugar central entre as culturas africanas. J naquela poca a Cidade da Bahia era o caldo cultural, porque quando os escravos chegaram para a Bahia, foram estrategicamente misturados pelos senhores de engenho, para que no houvesse a concentrao das pessoas da mesma nao, a fim de evitar uma revolta organizada. Ento, misturaram-se vrias naes e a cultura deles com culturas diferents. Com a superioridade numerosa dos negros, Salvador tornou-se, literalmente, uma cidade africanizada, pautada em um florescimento cultural jje-ngo, com grande nfase na preservao de formas institucionais religiosas, animadas por uma recente memria.8 Mas entende-se que a camada portuguesa com a religio catlica no desapareceu e portanto a Cidade da Bahia permaneceu portuguesa-banto-jje-nag e o sincretismo e a diversidade cultural se torna uma das caractersticas marcantes da Bahia.

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Bacelar, Jeferson. A hierarquia das raas. Negros e brancos em Salvador. Rio de Janeiro, Pallas, 2001.

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Aqui conveniente sublinhar a estabilidade que caracterizou a histria demogrfica da regio. A Bahia ficou quase inatingida por aquilo que, da perspectiva da histria geral do Brasil, chamado de migraes secundrias (com a exceo da imigrao iberiana, que no mudou seriamente a distribuio das naes e cultura instalada na Bahia). At a proclamao de lei que proibiu o trfico dos negros, em 1851, chegaram Bahia negros de vrias naes para que trabalhassem como escravos nos engenhos baianos e nos campos de tabaco. Mas os grandes dias do acar acabaram com o desenvolvimento da tecnologia do uso da beterraba para a produo aucareira na Europa e com o incremento dos engenhos de acar no Caribe. E chegou mais um golpe a descoberta do ouro nas Minas Gerais, no ltimo decnio do sculo XVII. Mesmo ao longo da primeira metade do sculo XVIII, em favor de suas funes de porto comercial e centro poltico, Salvador era ainda a mais importante, rica e populosa cidade do Imprio portugus, depois de Lisboa.9 O que mais humilhou a vaidosa Cidade da Bahia foi a mudana da capital para o Rio de Janeiro, que ofereceu as melhores possibilidades para o comrcio do ouro, em 1763. Esta mudana, bem como a instalao da sede da monarquia lusitana, em 1810, e, posteriormente, da sede do imprio brasileiro atestam a significncia secundria da velha mulata, reduzida de centro do Brasil Colnia a uma funo meramente regional. A Bahia vai se encerrando em si mesma e em seu isolamento mantm a arcaica trama produtiva que no foi muito atingida pela alterao revolucionria nas relaes trabalhistas com a Lei urea de 1888 o que acelera seu declnio. O certo isolamento intesificou as relaes pessoais e, assim, promoveu o desenvolvimento de costumes locais. Na passagem do sculo XIX para o sculo XX,

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Risrio, Antnio (1988), op. cit., p. 147.

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Salvador at deixa de ser o centro regional, com Recife assumindo o comando das operaes nordestinas e a expanso dos cacauais no eixo Ilhs-Itabuna.10 At a dcada de 50 do sculo passado, Salvador continua a ser uma cidade ancorada nas tradies, hierarquizada scio-racialmente, conservadora e pr-industrial. A este propsito, fala-se s vezes de enigma baiano. A Bahia no teve lugar na primeira onda de modernizao urbano-social, que se armou no pas aps a revoluo de 1930 e a estrutura econmica da provncia permanece essencialmente agro-mercantil. S nos anos 50, com o desenvolvimento industrial provocado pela descoberta do petrleo e com a vinda da Petrobrs para o Recncavo, podemos observar mudanas srias na sociedade e na cultura baiana. Vamos dedicar mais espao ao conjunto de elementos que teve influncia nessa alterao mais acentuada nos modelos relacionais dos habitantes desta regio e no campo da cultura e que possibilitou o nascimento da tropiclia. At podemos dizer que se criou uma atmosfera de efervescncia cultural propcia ao aparecimento, formao e ao desenvolvimento de uma personalidade cultural criativa que se encarnou em artistas-pensadores como Caetano Veloso ou Glauber Rocha. De boa parte responsvel por esta situao foi a implantao da Universidade Federal da Bahia, em 1946, que foi dirigida pelo reitor Edgar Santos. Ele foi uma peachave, personagem fundamental no processo do desenvolvimento cultural de Salvador. Esta afirmao pode ser ilustrada pelas palavras de Gilberto Freyre, o importante antroplogo brasileiro: Encontrei, o ano passado, a Bahia ainda mais cheia que nos anos anteiores do esprito universitrio que vai comunicando sua vida e sua cultura o reitor Edgard Santos...Pois, a ao renovadora desse reitor verdadeiramente magnfico no se vem limitando a dar novo nimo ao sistema universitrio baiano,

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Ibidem, p. 151.

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considerado apenas nos seus limites convencionais. Ao contrrio: ele vem se especializando em associar, de modo mais vivo, a Cidade Universidade.11 O reitor concentrou-se na instituio universitria, fazendo dela o centro da agitao cultural. Mas, como fica claro da citao de Gilberto Freyre, a Universidade no ficou encerrada em si; Egdard Santos planejava grande difuso da Universidade rumo Cidade. Por exemplo, na abertura dos Seminrios Internacionais de Msica, realizados em 1958, o reitor acentua a importncia dos msicos na vida espiritual da cidade.12 A Universidade foi muito inovadora em 1956, por exemplo, abriram ali o nico curso de dana de nvel superior no pas. Entre as dcadas de 1950-1960, a isolada e tradicional Cidade da Bahia achou-se de repente sob um forte influxo de informaes internacionais. Foi porque Edgard Santos deixou-se cercar por colaboradores estrangeiros. A Escola da Dana recebeu a polonesa Yanka Rudzka, uma das pioneiras da dana moderna no Brasil, o convite do reitor foi aceitado pelo msico alemo Hans Koellreutter, que tornou o Seminrio da Msica em um centro de liberdade criativa e experimentao artstico-musical. Sob a proposta do pensador portugus Agostinho da Silva, foi pela UFBA criado o Centro dos Estudos Afro-Orientais (CEAO), o ncleo do conhecimento brasileiro acerca das realidades africanas e asiticas. Outras pessoas com idias vanguardistas

desembarcaram na Bahia. Por exemplo, o compositor experimental Walter Smetak, foi uma das fontes da inspirao para Caetano Veloso e Gilberto Gil e os dois elogiam-no em sua obra.13 Alm da Universidade, outras institues formaram o avant-garde baiano. Na cidade foi estabelecido o Cineclube baiano, decisivo para a divulgao dos filmes no-comercias e para a criao do Cinema Novo no pas, representado por

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Apud: Risrio, Antnio (1995), op. cit., p. 78. Ibidem, p. 41. 13 Como aponta o nome do msico, ele da origem tcheca.

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Glauber Rocha.14 Sob o comando de outra estrangeira, arquiteta italiana Lina Bo Bardi, foi construda outra instituio extrauniversitria, o Museu da Arte Moderna, que uma pea fundamental no desenvolvimento cultural da cidade. Para a ilustrao da importncia dos acontecimentos culturais em Salvador na dcada de 50 e 60, para o grupo dos artistas como Glauber Rocha, Gilberto Gil ou Maria Bethnia, ouamos as palavras de Caetano Veloso: Todos dessa gerao devemos muito ao reitor Edgard Santos, devemos enormemente a dona Lina [Bo Bardi]...Lina responsvel pela civilizao de uma gerao.15 Os protagonistas e consumidores dessa fase do florescimento cultural, chamado tambm de o avantgarde baiano, eram preponderantemente os brancos16, a minoria da populao de Salvador. Mas os negros no ficaram fora da agitao cultural da poca, apesar de no pertencerem ao avant-garde baiano. Sobre grande avaliao da cultura negra vamos falar a seguir. Seria injusto no mencionar outras personalidades que no pertenceram ao avant-garde, mas que tambm contriburam com seu trabalho ao desenvolvimento cultural da Bahia. Como j foi o caso dos artistas e pensadores citados, muitas delas eram estrangeiros. Inspirado pela leitura do romance Jubiab, de Jorge Amado, e em busca de uma cultura vital, de raiz negroafricana, o francs Pierre Verger decidiu morar na Bahia. Impressionado pela beleza e profundidade do culto do candombl, passou a freqentar este mundo e em suas fotografias apanhava a vida dos negros baianos. Sem a formao acadmica, tornou-se um antroplogo respeitado e um especialista na rea das relaoes Bahia-frica. Tambm o pintor de origem argentina, conhecido pelo apelido Caryb, achou a fonte da inspirao no mundo dos rituais afro-brasileiros, nos orixs e

Mais uma aluso ao ambiente tcheco: o filme Barravento de Glauber Rocha foi agraciado, em 1962, com o prmo de melhor filme de diretor estreante no festival de Karlovy Vary. 15 Apud: Risrio, Antnio (1995), op. cit., p. 137. 16 Uma das excees justamente Gilberto Gil.

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no folclore dos baianos. Ele tambm veio de longe por causa das referncias da Bahia nos livros de Jorge Amado e, apesar de no ser baiano, ele considerado o maior retratista da chamada baianidade. A todos acima referidos, aos artistas vanguardistas, assim como a Verger e a Caryb, dedica as palavras de homenagem o escritor Jorge Amado, que no pode faltar, juntamente com Dorival Caymmi, na lista dos nomes que contriburam ao florescimento da cultura baiana nas dcadas de 50 e 60. Graas ao trabalho das personalidades como Verger ou Caryb, na dcada de 70 desenvolve-se a propagao da cultura negra junto com a criao dos blocos afro, organizaes comunitrias dos negros, como Il Aiy e Olodum. A cultura negra j no marginalizada e, junto com aquela cultura superior, criada sob a influncia vandguardista nos anos 60, constri a cultura baiana contempornea, talvez a mais significativa expresso cultural do Brasil inteiro.

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3. A baianidadeA prpria anlise dos elementos baianos na obra de Caetano Veloso e Gilberto Gil no pode ser feita sem o esclarecimento do conceito de baianidade que pode ser chamado, segundo vrios autores, tambm de identidade baiana, idia da Bahia ou o que faz ser baiano. Mas novamente queremos sublinhar que essa baianidade diz respeito apenas cidade de Salvador e ao Recncavo da Baia de Todos os Santos com as cidades histricas como Santo Amaro da Purificao, Cachoeira, So Felix e outras. O conceito de baianidade tornou-se to frequente que mereceu at um verbete num dos dicionrios da lngua portuguesa, no Aurlio. L podemos ler: 1. Maneiras, atitudes, sentimento, prprios de baiano. 2. Amor intenso Bahia, sua gente, aos seus costumes. O socilogo baiano Milton Moura, doutor na UFBA, tentou definir a baianidade mais complexamente: A baianidade entendida como um texto identitrio, ou seja, que realiza a assero direta de um perfil numa dinmica de identificao. compreendida como um ethos baseado em trs pilares: a familiaridade, que supe a ambivalncia numa sociedade to desigual, a sensualidade associada naturalizao de papis e posturas e a religiosidade que costuma acontecer como mistificao numa sociedade to tradicional.17 Ento, Moura props aqui os trs pilares bsicos da baianidade, a familiaridade, a sensualidade e a religiosidade. Nessas categorias podem caber ainda outras que parecem mais explcitas e vm cabea de muitas pessoas logo quando pensam na Bahia a nas caractersticas do baiano tpico. Mais acertado nos parece a alegria que a essncia das festas de Salvador e do Recncavo. Acrescentaramos ainda a hospitalidade e a cordialidade, mas essas talvez caibam na categoria da familiaridade do socilogo Milton Moura.

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Moura, Milton. Carnaval e Baianidade. Tese de doutorado da UFBA, Salvador, 2001, p. 63.

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A sensualidade dos baianos poderia ser s vezes trocada at pela sexualidade, e o sexo no pode estar fora da pauta da baianidade. O assunto sempre esteve associado Bahia, e principalmente s mulheres baianas, e muitas vezes foi abordado na literatura, chega lembrar a Rita Baiana, mulata assanhada do romance de Alzio Azevedo ou as numerosas personagens do escritor Jorge Amado. A imagem dos baianos como sexualmente disponveis, assecveis, at lascivos muito espalhada entre os brasileiros do Sul e tambm entre os estrangeiros. Muitos deles escolhem a Bahia s por causa dessa fama e vm l como turistas sexuais. Falta ainda um aspecto da baianidade que muito imporante. Podemo-lo chamar a primazia. Os baianos se sentem muito orgulhos de sua maior cidade que cheia de antiguidade histrica. So bem conscientes da importncia de Salvador como a primeira capital do Brasil, a primognita de Cabral18. Stefan Zweig, com seu olhar europeu, foi enftico: A Bahia para o Novo Mundo o que para ns so as metrpoles milenrias.19 A Bahia apresenta uma identidade cultural especfica, orgulhosa de seu passado, costumes e tradies. Nenhum outro estado brasileiro aprecia tanto as tradies e a originalidade. Desse fato tambm provm a auto-estima dos baianos e a certa sensao de diferena. Milton Moura disse o seguinte: Parece que um dos itens da baianidade justamente sentirmo-nos diferentes. Claro, toda a identidade contrstica, etc, etc. Mas a prpria diferena, como mdulo, um valor para os baianosno?20 Os conceitos da baianidade referidos (a alegria, a familiaridade, a cordialidade, a hospitalidade, a sensualidade/a sexualidade, a religiosidade, a primazia) so atribudos a todos os baianos e passam a ser algo como a marca registrada da Bahia. Essas

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Risrio, Antnio. Caymmi: uma utopia de lugar. So Paulo, Perspectiva, 1993, p. 113. Apud: Risrio, Antnio (1993), op.cit., p. 113. 20 Moura, Milton op. cit., p. 68.

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construes so muitas vezes utilizadas, por exemplo, pela Bahiatursa (principal rgo responsvel pelo turismo na Bahia), como atrao para turistas (e eles mesmo vm a Salvador para ver a primeira capital do Brasil, curtir as festas, admirar as belas baianas ou viver uma experincia religiosa extraordinria no terreiro do candombl), e j so to enraizadas no pensamento dos brasileiros, assim como dos estrangeiros, que se afinal tornaram para muitas pessoas a verdade incontestvel. Todas as caractersticas atribudas aos baianos nos pargrafos anteriores so positivas. Ser que o baiano sem jaa? Claro que no. A viso brasileira da Bahia e dos baianos carimbada por uma certa ambivalncia. A Bahia com seus habitantes no s a terra prometida, sedutora, idealizada. H tambm a opinio oposta em que a expresso baiano ganhou a conotao pejorativa. associada s grandes massas migratrias dos nordestinos para So Paulo, que foram recebidas na metrpole sulista com muito receio. Naquela poca, na dcada de 40 do sculo passado, chegavam s os nordestinos sem qualificao, ameaando assim as classes populares. Os paulistas reagiram desse jeito: comearam a inventar piadas sobre o baiano porque o representante mais visvel dos nordestinos foi o baiano. At surgiu a nova palavra com sentido despreciativo, baianada. Significa, segundo o dicionrio Aurlio, ao desleal, suja; sujeira, patifaria. Essa viso do baiano permanece nos Estados do Sul at hoje e os baianos l tm que enfrentar muitos preconceitos. O baiano a um s tempo idealizado e depreciado, amado e hostilizado. Alm de considerado burro, ele tambm preguioso. O mito da preguia baiana um trao do preconceito contra os imigrantes, mas pode significar tambm o preconceito racial porque o baiano tem sangue negro na veia. E justamente o rtulo que mais irrita os baianos a fama de preguisoso. verdade que os prprios msicos baianos forneceram os ingredientes para esta atribuio. Eles muitas vezes mostraram as caractersticas diferenciadas em relao

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quelas associadas normalmente s maiores cidades brasileiras, como por exemplo, diligncia, empenho, indstria e celeridade com que tudo se faz.21 Mas a viso idealizada tambm no desapareceu. Tudo que foi dito acima a imagem da Bahia mais aceita entre os brasileiros a tambm os estrangeiros e necessrio dizer que se trata de uma imagem criada, fala-se at do mito da Bahia. Mesmo nesse sentido pronunciou-se sobre a Bahia Caetano Veloso e deixemos soar o pensamento dele. A citao longa, mas preciosa:Olha, vou comear falando da Bahia porque o que mais sei, eu sou de l...Tem o seguinte: h um nmero muito grande de bons artistas, na msica ou nas outras reas, que so baianos. Por outro lado, a Bahia foi a primeira capital e tem ainda hoje vrios bairros onde a arquitetura interessantssima, e uma cidade com maioria dos negros no Brasil, uma cidade basicamente negra, a gente pode dizer. Ento, uma cidade que desperta sempre...por exemplo, no tempo do teatro de revista todo show tinha que terminar com uma homenagem Bahia. As escolas de samba volta e meia desfilam com um enredo sendo Bahia, e h milhes de msicas feitas sobre a Bahia, e h todo um mistrio, um mito e um folclore em torno da Bahia, porque a Bahia ficou sendo como uma raiz, como sendo um lugar...onde o Brasil mais profundo, essa coisa toda. Por causa desses elementos e da mitificao que esses elementos receberam, no ? Ento, num pas basicamente sem razes, se voc for comparar qualquer pas da Amrica com os pases europeus ou com pases africanos, voc vai notar que a Amrica toda uma cafonada de cima e baixo, ou seja, um continente sem passado, n? O passado americano resume-se no aniquilamento das naes indgenas, n? Claro que tambm no que veio depois disso, ou seja, na colonizao europeia, inglesa, espanhola, francesa, holandesa ou portuguesa, e na importao de escravos e este detalhe da maior importncia neste nosso continente. Ento, voc...eu t falando como se soubesse, meio professoralmente, mas no isso...so coisas que passam na minha cabea e eu vou falando...Voc tem permanncia de uma lngua europia, uma continuao, mas j em outras condies que as de uma cultura europia, entendeu? Ento isso d uma baguna danada, voc tem ao mesmo tempo fossas, o americano tem fossas, o americano todo ele, do Canad a Patagnia, fossas por falta de razes,21

Especialmente Dorival Caymmi, alm de suas msicas, que refletem um ritmo lento e motivos da vida sossegada da Bahia, com sua fala lenta e muitos depoimentos sobre sua pregia, ajudou a construir esse mito.

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fossas de importao, necessidade de afirmar o carter nacional artificialmente, coisa que no acontece na Europa, t entendendo? Quer dizer, isso uma viso que eu tenho. Sei pouco de histria, mas o que sinto nas coisas de agora, talvez nem seja isso historicamente, mas uma maneira de dizer o que vejo atualmente. Ento, a Bahia, no Brasil, tem feito um pouco esse papel de mito de raiz, t entendendo? Eu no quero desmentir no, acho que a Bahia tem fora, um lugar incrvel...o reconcavo baiano um negcio maravilhoso, mas tenho uma distoro muito grande pra falar porque sou de l. Por um lado t mais apto a falar porque vivi todo o tempo l, mas por outro sei que uma viso distorcida, profundamente ligada ao lugar. Mas tenho maturidade bastante pra saber que no interessa pra gente...ultimamente vem se falando muito aqui no Sul que a Bahia tem tudo concentrado, que a Bahia que vai dizer as coisas, que da Bahia que sai tudo, no sei o qu.22

Muitos baianos dizem que a baianidade uma identidade construda para satisfazer interesses como os da indstria do turismo, por exemplo. E criada pela mdia que resolveu investir fundo nessa idia de uma Bahia extica e embarcou na supervalorizao do que acha que cultura afrobrasileira porque esta agrada muito e tambm vende por causa do exotismo. E a mdia encontra-se nas mos dos brancos, portanto podemos dizer que a identidade baiana no criada pelos prprios baianos (preponderamente negros), mas pela minoria branca que utiliza o mito do exotismo ligado ao negro.23 Nesse aspecto podemos unir a baianidade com a identidade afrobaiana. Mas aqui necessrio mais uma vez salientar que no existe uma marca e no existe uma identidade; s existe a tendncia de generalizar, padronizar e querer tipificar. Exitem duas teorias de construo da baianidade. Uma diz que existe uma Bahia endgena e a baianidade emerge de baixo para cima. Existe o ethos baiano, uma alma da cidade que se constituiu depois de 400 anos de sincretismo, da mistura afro-luso-tupi. Nos ltimos 20 anos vem se constituindo outra teoria, dizendo que isso um mito constitutivo da identidade, mas no passa de um mito. Segundo essa teoria, a Bahia foi

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Veloso, Caetano. Alegria, alegria. Rio de Janeiro, Pedra Q Ronca, 1977, p. 124-125. Ver: http://www.sbpccultural.ufba.br/index.html

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construda de fora para dentro porque, em primeiro lugar, ela uma imagem opositiva daquilo que foi o Rio de Janeiro no sculo antepassado. O Rio tornou-se a metrpole, capital do Brasil, e a Bahia tentou se construir por oposio. Portanto, diferentemente do Rio de Janeiro, vai representar a tradio, o passado, as razes e tambm a negritude. Na primeira metade do sculo XX a metrpole cultural e industrial brasileira desloca-se para So Paulo e nesse momento tambm So Paulo vai produzir uma forte imagem da baianidade, colocando em oposio a crescente megalpole, que representa a civilizao, o trabalho, a modernidade, a civilidade e a razo, e a Bahia com seu anacronismo, preguia, passado, exuberncia e mstica.24 claro que nos encontramos aqui com uma mera estereotipizao da Bahia. O antroplogo da UFBA Roberto Albergaria v isso assim: O que o baiano ? Predominante evanglico. O que o baiano quer? comer McDonalds, no acaraj. botar sandalinha no p? No, botar tnis Nike. Mas no interessa dizer isso, por que a imagem da Bahia que vigora a imagem da Bahia negra, tradicional, da natureza, da mstica.25 Parece que o baiano hoje em dia, segundo Albergaria, no nem catlico, nem segue as religies afro-brasileiras; no gosta da culinria baiana e de outras coisas tradicionais. Apesar disso, temos vrias camadas superpostas de imagens tradicionais da Bahia, que vo se acrescentando e se intensificando pela fora da mdia e por isso o mito da Bahia hoje to forte. Aquela baianidade tradicional, aquela cidade praieira, festeira, que Caymmi canta, que Jorge Amado descreve, que Verg fotografa e etniciza, no existe mais. Encontramo-nos na poca, quando por causa da globalizao muita gente sente a crise da identidade. Provavelmente por causa disso, muitos baianos insistem em manter a baianidade viva. Acabamos este captulo com uma certa desconstruo do termo da baianidade, mostrando que ele j no corresponde24 25

Ver: http://www.sbpccultural.ufba.br/index.html Da entrevista com Prof. Dr. Roberto Albergaria. Publicado na Internet: WWW http://www.sbpccultural.ufba.br/index.html

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plenamente sua caracterstica (maneiras, atitudes, sentimento, prprios de baiano). No trabalho a seguir, porm, vamos continuar a usar o termo porque est estreitamente ligado ao imaginrio das canes analisadas.

4. A Bahia na MPBA posio da Bahia na histria da msica brasileira era sempre excepcional. A Bahia s vezes considerada como o estado principal da musicalidade brasileira e, como diz uma cano famosssima, tambm o bero do gnero mais brasileiro: o samba nasceu l na Bahia. bem notvel a importncia creditada msica e aos msicos na construo do discurso da baianidade porque so estes a quem atribudo o papel de representantes oficiais, embaixadores ou, digamos, porta-vozes da Bahia. Os vestgios da presena da Bahia na msica popular brasileira podemos encontrar com muita facilidade desde a introduo da indstria fonogrfica ao Brasil.26 A verdadeira exploso dos temas baianos na msica brasileira chega nos anos 30 com o compositor mineiro Ary Barroso. Ele no visitou a Bahia at 1937, quando j tinha escrito vrias canes com temas baianos, mas isso no lhe impediu imortalizar esta regio em sua obra, cantando as belezas das mulheres e da cidade ou os sabores da culinria baiana. Foi ele quem elevou o crdito da Bahia no Brasil inteiro. Clssicas se tornaram as canes como Bahia, o samba Na Baixa dos Sapateiros ou No tabuleiro da baiana. Ary Barroso fala do ponto de vista de quem visita a Bahia, mas o mais famoso compositor dos temas baianos um verdadeiro baiano, porque provm da cidade

Nesse respeito, no fica para ns sem interesse o fato que a pessoa que divulgou o invento de Thomas Alva Edison no Brasil foi o tcheco de origem judaica, nascido em Milevsko u Tbora, Frederico Figner. Em 1902, ele gravou o primeiro disco brasileiro. E neste disco sau a gravao da msica com o ttulo Isto bom, da autoria de Xisto Bahia, interpretada pelo artista conhecido pela alcunha Baiano. So duas referncias Bahia j com a primeira gravao brasileira. Essas, porm, ainda no se ligam tematica baiana

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baiana de Nazar. Falamos do querido moo Caymmi, como foi chamado pelo grande amigo, o escritor famoso Jorge Amado. Dorival Caymmi nasceu em 1914 e j seu primeiro sucesso, aos 25 anos, dedicado temtica baiana. a msica O que que a baiana tem? que foi gravada por ele juntamente com a maior estrela brasileira daquela poca, Carmen Miranda.27 Desde esse sucesso Caymmi tomou gosto em encantar sua terra e tornou se assim o maior promotor da Bahia. A prova deste fato pode ser a afirmao dos rgos responsveis pelo turismo da Bahia, a Bahiatursa, afirmando que j nos anos 60 Caymmi era campeo em matria de vender a Bahia para turistas potenciais. Fazia isso atravs das canes como Voc j foi Bahia, Saudade da Bahia, A lenda do Abaet, L vem a baiana, Vatap, Acontece que eu sou baiano, msicas que falam da saudade do compositor, elogiam a beleza dos patrimnios fsicos e culturais da Bahia, como as igrejas e a gastronomia baiana, com sua predileo em uso do tpico azeite de dend. As letras de Caymmi cantam ainda a sensualidade das baianas, com as elegantes rendas, colares e balangands que lhes vieram de suas ancestrais nags e no esquecem de falar tambm de Itapu, o bairro soteropolitano, que Caymmi optou por sua morada para longos anos. L deparou com a cultura dos pescadores e essa se tornou um dos temas centrais de sua poesia. Sendo mulato, mantinha sempre a intimidade com os valores da baianidade nag e isso tambm o levou ao terreiro da Me Menininha do Gantois, espelhando-se nos versos que falam do mundo do candombl. Mas qual , afinal, a concepo da Bahia de Dorival Caymmi? A Bahia dele encontra-se ainda no estdio pr-industrial, ancorada nas tradies, at podemos dizer que semiparalisada. Na potica caymmiana h lugar s para a celebrao da Bahia, a obra dele plena de uma Bahia ideal, sedutora, cheiaO que que a baiana tem? foi includa no filme da produo americana de Walt Disney, Banana da Terra. Carmen recebeu as instrues de Dorival para danar a msica e dessa maneira surgiu a imagem baiana de grande artista brasileira. Com essa imagem Carmen levou seu nome gloria nos Estados Unidos e depois conquistou o resto do mundo. Para mais informaes sobre Carmen Miranda e a vida de Dorival Caymmi ver: http//:www.dicionariompb.com.br27

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de alegria, com a gotinha de nostalgia amorosa, livre de atributos incmodos e indesejveis. O pesquisador na rea da msica Luz Amrico Lisboa Jnior28 juntou as letras de 272 msicas em que se fala da Bahia, entre 1904 e 1964. Analisando essas canes, chegamos concluso que a maioria se refere aos mesmos aspectos da Bahia como Caymmi. So os seguintes: A sensualidade dos baianos, mulheres ou homens. Ressalta-se o traje tpico da baiana (o exemplo insupervel deste tema ficar O que que a baiana tem?) e as caractersticas como a faceirice, a brejeirice, o dengo. s vezes se sublinha a malandragem do baiano. A sensualidade transformada em dana o samba. A vida do baiano significa cantar e sambar. A culinria que leva dend, sobretudo acaraj, vatap ou caruru. A religiosidade; o mais citado o Senhor do Bonfim e, mais tarde, com a aceitao do candombl, surgem muitas referncias aos orixs, especialmente a Iemanj e Xang. O enigma loci de Salvador, com os lugares da arquitetura nobre como a Praa da S, o Bonfim, ou os cantos misteriosos como Itapu ou a Baixa dos Sapateiros. Resumido, as letras da msica do perodo de 1904-1964 representam aquele lado ideal da baianidade (a sensualidade, a primazia e originalidade), da mesma maneira como fazia Dorival Caymmi. Apareceram apenas raras excees das letras, na maioria dos autores sulistas, que ressaltam a preguia dos baianos (dizendo que estes no trabalham, vivem apenas cantando e danando e so malandros).

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Lisboa Jnior, Luiz Amrico. A presena da Bahia na msica popular brasileira. Braslia, MusiMed/Linha Grfica Editora,1990.

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5. As biografiasNo queremos abranger muito amplamente a vida destes msicos baianos, mas alguns fatos biogrficos bsicos sero necessrios para a compreenso de sua obra.

5.1. A biografia de Caetano VelosoCaetano Emmanuel Vianna Telles Veloso29 nasceu a 7 de agosto de 1942 em Santo Amaro da Purificao, cidade pequena no Recncavo baiano, conhecida pela tradicional produo de acar. filho de Claudionor Veloso Dona Can, uma mulher muito admirada em Santo Amaro, e de Jos Veloso que trabalhou como funcionrio dos Correios e Telgrafos. Tinha sete irmos, dos quais se destacou tambm no campo da msica a irm mais nova, Maria Bethnia. Aos catorze anos, muda-se para o Rio de Janeiro, onde pde usufruir desde cedo de seus programas favoritos, como a msica e o cinema. Aps um ano passado no Rio regressa a Santo Amaro e, em 1959, conhece o trabalho de Joo Gilberto atravs do LP Chega de saudade. Este seria o msico que mais influncia sua trajetria artstica, como Caetano afirma: No Joo, parece que tudo mais justo, necessrio: melodia, as vogais, as consoantes, os sentimentos, o respeito por aquela forma, que ele reconheceu ali, o jeito daquelas coisas se expressarem esteticamente. Joo traduz a cano.30 Em 1960 passa a morar em Salvador, onde mais tarde ingressa na Faculdade de Letras da UFBA. L conhece e torna-se amigo do dolo que j conhecia pela TV, Gilberto Gil, e, em 1964, juntamente com ele e com Maria Bethnia, Gal Costa e Tom Z, fazem o show Ns, por exemplo na ocasio da inaugurao do teatro Vila Velha, em Salvador, que foi dirigida por Caetano e que inaugura a carreira dos artistas. Esse show representa um marcoA biografia completa de Caetano, do Dicionrio Cravo Albin da MPB, acessvel na Internet: WWW http://www.dicionariompb.com.br/detalhe.asp?nome =Caetano+Veloso. 30 Dicionrio Albin Cravo da MPB. Acessvel na Internet: WWW http://www.dicionariompb.com.br.29

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histrico, reunindo pela primeira vez o ncleo que futuramente ser conhecido como Doces Brbaros. O mesmo grupo apresenta ainda o show Nova bossa velha e velha bossa nova. Caetano e Gil mudam logo depois ao Sul do Brasil que oferece melhores oportunidades para os msicos, Caetano ao Rio de Janeiro, abandonando a Faculdade e acompanhando Maria Bethnia chamada para substituir Nara Leo no show Opinio. E segue o perodo dos festivais da msica. Em 1966, Caetano recebe o prmio pela melhor letra da Um Dia no II Festival de MPB da TV Record. Grava seu primeiro disco Domingo, em 1967, no qual inclui a cano Alegria, alegria, que classificada no quarto lugar no III Festival da Record. Esse Festival foi o ponto de partida para o movimento tropicalista, movimento que reuniu Gilberto Gil, Torquato Neto, Jos Carlos Capinam, Gal Costa ou Tom Z, s vezes chamado grupo baiano. Este movimento vai ser analisado mais adiante. Tambm nesse festival onde Caetano chama a ateno dos poetas concretos Augusto e Haraldo de Campos e Dcio Pignatari, que o familiarizam com sua obra e crtica literria de Ezra Pound, James Joyce e Oswald de Andrade, o que ter de grande importncia na fase tropicalista. A situao poltica vai se agravando naquele tempo. O governo militar precisava de poderes excepcionais, que no constavam na Constituio. Assim, os Atos Institucionais, que oprimiram a oposio ao governo, foram lanados. Isso tem grandes conseqncias para Caetano Veloso. Primeiro, seu samba A voz do morto foi censurado e o disco com a msica foi recolhido das lojas. Mas isso s comeo. Dentre os Atos Institucionais editados, o AI n5 tido como mais repressivo e visto pela maioria dos jovens como o fechamento dos meios de resistncia pacfica ao regime. AI n5 cerceou completamente a liberdade de expresso. No dia 27 de dezembro de 1968, aplicando este AI, Caetano foi preso juntamente com Gilberto Gil sob o pretexto de

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desrespeito ao hino e bandeira do Brasil. Foram levados para o quartel do exrcito de Marechal Deodoro, no Rio de Janeiro, permanecendo detidos por dois meses. A situao torna-se insustentvel e aps o ltimo show de despedida, realizada em Salvador nos dias 20 e 21 de julho, Caetano Veloso e Gilberto Gil embarcam junto com suas mulheres, as irms Ded e Sandra Gadelha, para o exlio na Inglaterra. Mesmo no exlio, produo de Caetano no pra e ele lana pelo selo ingls dois discos. Em janeiro de 1972, volta definitivamente ao Brasil e continua em seu trabalho musical, colaborando com vrios compositores e cantores, com Chico Buarque ou Milton Nascimento, entre outros. No dia 24 de junho de 1974, 10 anos depois do show Ns, por exemplo, Caetano reencontra Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethnia no elenco do espetculo Doces Brbaros e a mesma situao acontece ainda em 1994, no show Doces Brbaros na Mangueira. No incio de 1977, participa, ao lado de Gilberto Gil, do 2 Festival Mundial de Arte e Cultura Negra, em Lagos (Nigria) e o encontro com a original cultura africana fornece vrios motivos para seu trabalho. Em abril desse ano, lana seu primeiro livro, Alegria, alegria, uma compilao de artigos, manifestos e poemas, alm de entrevistas concedidas ao amigo e poeta Waly Salomo. A tentativa de se exprimir no s atravs da msica e das letras continua e Caetano Veloso torna-se o autor de vrios livros, dos quais mais importante o livro Verdade tropical, um relato pessoal sobre sua viso do mundo, lanado em 1997. Aps mais de 40 anos da carreira, Caetano Veloso continua a ser uma das pessoas mais respeitveis no mundo da msica brasileira e continua a compor novas msicas. Seu trabalho foi apreciado at no estrangeiro; em 2000, pelo CD Livro, recebeu na categoria World Music o Prmio Grammy Awards.

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5.2. A biografia de Gilberto GilOs caminhos do destino de Gilberto Gil so muito parecidos com aqueles de Caetano Veloso, como j pudemos ver no captulo anterior. Gilberto Passos Gil Moreira31 nasceu a 26 de junho de 1942 em Salvador. At os nove anos de idade viveu com o pai, mdico Jos Gil Moreira, e a me, professora primria Claudina, na cidade de Ituau, no interior da Bahia, para onde foi com vinte dias de nascido. L comea a interessar-se pela msica das bandas da cidade e pelo que ouvia no rdio, como Orlando Silva, Dorival Caymmi e Luiz Gonzaga, cuja influncia notvel em vrios discos de Gil Gilberto. De volta a Salvador, em 1951, foi morar na casa da tia Margarida no bairro de Santo Antnio no centro histrico da cidade e l comea a aprender, provavelmente sob a impresso da msica do j mencionado Luiz Gonzaga, a tocar acordeom. Na juventude outro nordestino (baiano) famoso, Joo Gilberto, com sua bossa nova se torna uma influncia importante para ele e Gil passa a tocar violo: Quando o Joo Gilberto apareceu, eu disse: 'Ta o que eu queria'. E entrei na bossa nova com ele.32 Depois de terminar o colgio, inscreve-se no curso de Administrao de Empresas na UFBA, onde se formou em 1964. No incio da carreira artstica, ainda em Salvador, apresentou-se em programas de rdio e televiso. Foi atravs desses programas que ganhou a admirao de Caetano Veloso, que mais tarde se tornou seu parceiro e grande amigo. No incio da grande colaborao dos artistas h dois espetculos Ns, por exemplo e Nova bossa velha e velha bossa nova, realizados no teatro Vila Velha, em Salvador. Cedo aps a formatura, assim como Caetano, tambm Gilberto Gil muda ao Sul do pas e reside em So Paulo, onde trabalha na multinacional Gessy-Lever. Em 1967,

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A biografia completa de Gilberto Gil, do Dicionrio Cravo Albin da MPB, acessvel na Internet: WWW http://www.dicionariompb.com.br/detalhe.asp?nome=Gilberto+Gil. 32 Encarte do disco Gilberto Gil, da srie Histria da MPB - grandes compositores.

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abandona seu emprego e nos anos seguintes dedica-se apenas msica e participa dos festivais da msica popular, compondo novas e novas canes e tambm grava, neste ano, seu primeiro LP Louvao. O festival mais importante para sua carreira o III Festival da Record, em 1967, onde Gilberto toca Domingo no parque, acompanhando pelos Mutantes, uma das msicas mais impactantes do festival, classificada em segundo lugar. Alegria, alegria, de Caetano, classificada em quarto lugar, formaria junto com Domingo no parque o embrio do movimento tropicalista, em boa parte por causa da insero de guitarras eltricas em uma msica que no era rock. Em 1968, com uma proposta de antropofagia de valores culturais estrangeiros baseada em idias de Oswald de Andrade, o tropicalismo se concretizou com Tropiclia ou panis et circensis, disco conceitual que contou, alm de Caetano e Gil, com os Mutantes, Torquato Neto, Capinam, Tom Z, Nara Leo e arranjos do maestro Rogrio Duprat. A faixa Gelia geral, msica composta por Gilberto Gil em parceria com Torquato Neto, teve especial destaque por representar uma sntese dos cnones do prprio movimento tropicalista, alm de ser um modelo de seu contorno potico.33 Como j vimos na biografia de Caetano Veloso, em 1969, depois de serem presos pela ditadura, partem os dois msicos baianos com suas esposas para o exlio poltico na Inglaterra. Antes de partir, Gilberto Gil lana a irnica Aquele abrao, uma de suas msicas famosas. Do exlio regressa juntamente com Caetano ao Brasil em 1972 e juntam se novamente com Gal e Bethnia, formando o grupo baiano Doces Brbaros. Os sentimentos depois da volta a terra natal descreve a cano Back in Bahia. Volta a descobrir a cultura nordestina sertaneja, que faz parte de sua infncia, e revitaliza-a no LP Espresso 2222.

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Severiano, Jairo, Homen de Mello, Zuza. Cano no tempo. So Paulo, Editora 34, p. 125.

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Na dcada de 70, viaja Gilberto Gil vrias vezes frica com a inteno de conhecer uma das razes fundamentais da baianidade, a contribuio africana, e natural que essa experincia se reflete depois com maior intensidade na obra dele, como por exemplo no lbum Realce, de 1979, ou no Raa Humana. Em 1993, vinte cinco anos depois do disco tropicalista Tropiclia ou panis et circensis, Caetano e Gil retomam a idia do Tropicalismo e lanam junto Tropiclia 2. Tambm a obra de Gil reconhecida internacionalmente, quando o disco Quanta, lanado em 1997, foi premiado com o Grammy na categoria World Music. Mas Caetano Veloso e Gilberto Gil no se restringem apenas msica. Os dois costumam expressar a sua opinio a todos os problemas que afligem o Brasil. Gilberto Gil foi o primeiro negro a integrar o Conselho de Cultura da Bahia e exerceu o cargo do presidente da Fundao Gregrio de Mattos. Seu interesse pela poltica sempre foi grande, tendo sido eleito vereador em Salvador em 1988, ano em que lanou o livro O potico e o poltico, escrito em parceria com Antnio Risrio. Como uma pessoa politicamente muita ativa, depois da queda da ditadura, no Partido Verde, recebeu o cargo de Ministro da Cultura no governo do atual Presidente Luis Incio Lula da Silva.

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6. O tropicalismoO movimento denominado tropicalismo ou tropiclia considerado o nico movimento vanguardista originalmente brasileiro. Como esse movimento surgiu a partir das idias de Caetano Veloso e Gilberto Gil, achamos indispensvel caraterizar em breve as principais fontes inspiradoras, as manifestaes e as atividades do tropicalismo. O tropicalismo conecta-se ao tema da baianidade atravs de seus protagonistas porque grande parte deles so da Bahia (s vezes o ncleo dos tropicalistas chamado grupo baiano), apesar de no fazer da Bahia um de seus temas. Este fato ilustrado pelas palavras de Caetano Veloso: ...A existncia da Bahia o tropicalismo mal tratou de assunto...34. Como j insinuamos nas biografias dos dois msicos, o movimento tropicalista surgiu em So Paulo aps III Festival da Record, onde Caetano Veloso apresentou a msica Alegria, alegria e Gilberto Gil Domingo no parque. Mas essas canes ainda no integraram um movimento e os cantores no se apresentaram como portavozes do qualquer grupo. Antes eles tentaram explicar de vrias formas a novidade das composies, mostrando as principais influncias que sofriam. Como vemos na tantas vezes repetida afirmao do prprio lder do tropicalismo, a inovao teria que ser feita atravs da retomada da linha evolutiva da tradio da msica brasileira na medida em que Joo Gilberto fez".35 Ento, como quiseram Caetano e seus companheiros evoluir a MPB? O primeiro impulso foi quebrar o antagonismo msica de protesto/jovem guarda, como foi, segundo um programa na TV Record, designado o suave rock brasileiro comercial criado sob a influncia de Elvis Presley e, posteriormente, dos Beatles. O primeiro passo foi a

Veloso, Caetano (1977), op. cit., p 97. Apud: Tinhoro, Jos Ramos. Pequena histria da msica popular: da modinha lambada. So Paulo, Art Edirora, 1991, p. 248.35

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insero das guitarras eltricas nas canes de Caetano e Gil, o que ocorreu justamente no III Festival da Record. Esse fato no foi bem visto pela ala nacionalista da bossa nova. Portanto, o primeiro impulso tropicalista foi, com a inspirao de arte pop, abrir as portas para o produto estrangeiro, combatendo a xenofobia que impedia o dilogo da produo nacional com internacional. Essa abertura significava trabalhar as questes do universo pop como a inevitabilidade do consumo, o imediatismo da propaganda, a vida urbana, usando muitas citaes do mundo externo, de um outro, com fim de questionar o problema.36 Os futuros tropicalistas viam aquela retomada da linha evolutiva na adoo da linguagem universal do rock e esse fato pode ser ilustrado mais uma vez por prprio Caetano: Nego-me folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades tcnicas.37 Mal aceita por uma parte do pblico e pela ala nacionalista do mundo musical, no entanto, desde o primeiro momento a atitude dos tropicalistas baianos recebeu o apoio decisivo dos grupos mais fechados da msica e, o que tambm era muito importante, da poesia de vanguarda. Estes viam no novo movimento um reforo na luta contra o subdesenvolvimento do pas, contra o tradicional, e a possibilidade da abertura para o internacional e o universal.38 J foi dito que os poetas, que com maior intensidade mostraram o interesse pela produo da tropiclia, eram os concretistas de So Paulo. Eles descobriram desde logo as afinidades entre a linguagem do grupo baiano e o concretismo, alm de parantesco de comportamento deles com as propostas antropofgicas de Oswald de Andrade. Antropofagismo, a corrente literria liderada por Oswald de Andrade, que surgiu em 1928 como uma importante tendncia do modernismo brasileiro, baseada na idia da devorao cultural e teve algumas idias incorporadas pelos tropicalistas. Celso

Favaretto, Celso. Tropiclia alegoria, alegria. So Paulo, Ateli Editorial, 1996, p. 27-45. Apud: Favaretto, Celso, op. cit., p. 27. 38 Paiano, Enor. Tropicalismo: Bananas ao vento no corao do Brasil. So Paulo, Scipione 1996, p. 444837

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Favaretto acha as seguintes afinidades: O que o tropicalismo retm do primitivismo antropofgico mais a concepo cultural sincrtica, o aspecto de pesquisa de tcnicas de expresso, o humor corrosivo, a atitude anrquica com relao aos valores burgueses, do que a sua dimenso demogrfica e a tendncia em conciliar as culturas em conflito. Constri um painel em que o universo sincrtico se apresenta sob a forma de um presente contraditrio, grotescamente monumentalizado, como uma hiperble distanciada de qualquer origem.39 Com a contribuio dos concretistas, principalmente de Augusto de Campos, as apresentaes do grupo baiano passaram a configurar realmente um movimento, apesar de, segundo Gilberto Gil: Tropicalismo surgiu mais de uma preocupao entusiasmada pela discusso do novo do que propriamente como um movimento organizado.40 Ento, o movimento do tropicalismo assumiu as construes da bossa nova, as idias da poesia vanguardista, os conceitos da contracultura em que se inscrevia a arte pop e da msica internacional base de rock. Mas a enumerao das manifestaes que subjazem o tropicalismo ainda no completa. Quem teve em vista as atividades do movimento desde o incio e acompanhou as entrevistas e os debates a respeito da cultura brasileira, dos quais participaram Caetano Veloso e Gilberto Gil, teve a oportunidade de ver ratificadas as influncias que eles sofreram dos espetculos realizados para o cinema, para o teatro e para a galeria. O filme, que causou maior impacto no ambiente dos tropicalistas, foi o exemplo da produo do Cinema Novo no Brasil Terra em transe, de 1967, dirigido pelo amigo de Caetano e Gil, conhecido desde os tempos universitrios em Salvador, Glauber Rocha. Alm da inovao formal e da busca radical de uma linguagem inovadora, o

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Favaretto, Celso, op. cit., p. 49. Apud: Cyntro, Sylvia Helena (org.), op. cit., p. 42.

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filme trouxe o questionamento da poltica e da identidade nacional, mas no de forma didtica e militante, e sim como um problema. A manifestao do teatro que se aproximou das prticas tropicalistas foi a pea de Oswald de Andrade O rei da vela, encenada pela primeira vez em 1967 em So Paulo. Essa farsa tambm contm a questo poltica, mas com cinismo dedica-se ao desenvolvimento mental e artstico do Brasil com o propsito de chocar a platia. A respeito do filme Terra em transe e da pea O rei da vela, confirmando assim a importncia dessas manifestaoes artsticas, Caetano Veloso confessou: Toda aquela coisa de Tropiclia se formou diante de mim no dia em que vi Terra em transe...voc sabe, eu compus Tropiclia uma semana antes de ver O rei da vela, a primeira coisa que eu conheci de Oswald.41 De todas as experincias que, em 1966-1967, se aproximavam melhor do procedimento tropicalista, quem o primeiro melhor expressou a tendncia foi o artista pltico Hlio Oiticica. Na exposio Nova objetividade brasileira, no Museu de Arte Moderna em So Paulo, ele apresentou com seu trabalho intitulado Tropiclia as principais tendncias artsticas da poca: vontade construtiva geral, tendncia para o objeto, participao corporal, ttil, visual, semntica, do espectador, tomada de posio em relao a problemas polticos, sociais, ticos, tendncia a uma arte coletiva e reformulao do conceito antiarte.42 Do conceito antiarte aproxima-se a tendncia kitsch que frequentemente usada pelos tropicalistas. Pela retomada crtica do kitsch, definido como todo material arstico-literrio considerado popularmente como de m qualidade, em geral de cunho sentimentalista ou sensacionista, mas produzido com o intuito de apelar para o gosto popular43, os tropicalistas conseguiram abalar os padres do bom gosto estabelecido na sociedade brasileira e, ao mesmo tempo,41 42

Ibidem, p. 41. Ibidem, p. 43. 43 Ibidem, p. 61.

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provocar e criar um sentido crtico. A permabilidade ao kitsch revela-se tambm na participao no programa do Chacrinha, rejeitado pela maioria dos msicos srios, onde os protagonistas do tropicalismo apresentaram os verdadeiros happenings.44 Os movimentos da vanguarda lanaram seu iderio de ruptura em manifestos. O tropicalismo tambm tem um manifesto, mas este da natureza diferente daqueles da virada do sculo XIX para XX um disco. Com a participao dos baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Z, Rogrio Duprat, Torquato Neto, Capinam e de Nara Leo, musa da bossa nova, e do grupo Os Mutantes foi lanado, em maio de 1968, Tropiclia ou panis et circensis, que exprime, em forma que exige a decifrao, as idias do movimento. Msica, letra, fotografia da capa e texto da contracapa combinam-se num signo complexo, compreensvel apenas para qum j est familiarizado com o pensamento dos protagonistas do movimento. At o ttulo do disco pede uma decifrao, concretamente a parte em latim. Essa deve remeter ao tempo do po e circo romano, mas a palavra circencis no existe em latim.45 O ttulo do disco mostra que tudo comea com humor, no entanto, surge uma questo: a funo da arte desviar o povo dos seus problemas reais, como acontecia na poca romana?

A cana mais importante do disco Tropiclia ou panis et circensis, ou at podemos dizer do movimento tropicalista, Tropiclia, composta em 1967 por Caetano Veloso. Segundo ele, a cano no tinha nome, mas justificava para ele a existncia do disco, do movimento e tambm de sua profisso do msico, que ainda lhe parecia provisria. O nome foi proposto pelo fotgrafo Lus Carlos Barreto que tinha

44 45

Mais sobre o assunto em: Paiano, Enor, op. cit., p. 44-48. Ibidem, p. 40.

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encontrado as afinidades entre a msica de Caetano e a obra Tropiclia de Hlio Oiticica.46 Tropiclia surpeende j em seu incio com a citao pardica de um trecho da carta de Pero Vaz Caminha, acompanhada pelos sons e rudos, que imitam os cantos de pssaros e o rumor da selva.47 Esta introduo antecipa toda a cano que construda atravs de justaposio e superimposio de frases, citaes e fragmentos sonoros, dos quais deve ser erguida a imagem do Brasil contemporneo. O texto estruturado em torno da oposio dos elementos nacionais, dos fragmentos arcaicos e modernos. Caetano usa na cano muitas citaes, que, como j vimos, uma das caractersticas do movimento tropicalista, e essas frases ditas por um outro sujeito coloca em contradio. Ento, a imagem do pas construda e ao mesmo tempo desmontada, oscilando entre o jocoso e o srio. Alguns pesquisadores denominam esta alternncia carnavalizao e descarnavalizao.48 A letra da msica composta de cinco estrofes, intercaladas por refres que do vivas a elementos nacionais, que tambm so destacados pela contradio. Nos refres temos ento as oposies como bossa e palhoa, onde bossa aponta para o moderno, o que agrada a juventude urbana de classe mdia, enquanto as classes populares e o arcaico representa a palhoa. No outro refro so dadas em oposio o bairro carioca da classe mdia e o centro da Bossa Nova Ipanema com Iracema, a ndia de Jos de Alencar, um dos mais importantes smbolos da brasilidade, mas tambm algo, que se encontra no estado puro, intato pela civilizao. Como aMores da Silva, Mrcia. A polifonia nas letras das canes de Caetano Veloso. Acesscel: WWW 47 Alis, essa citao surgiu esponneamente durante a gravao, quando o baterista Dirceu, ouvindo a introduo da cano, lembrou-se do paraso tropical descrito por Vaz de Caminha. Pau Brasil de Oswald de Andrade comea tambm com uma montagem dos textos de Caminha e uma das razo para incluir a citao na msica pode ser vista em sua relevncia. 48 Esta denominao usada, por exemplo, por Girlene Lima Portela. Da Tropiclia Marginlia: O intertexto (a que ser que se destina) na produo de Caetano Veloso. Feira de Santana, Universidade Estadual de Feira de Santana, 1999, p. 78.46

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contradio para a Bahia, serviu a Caetano Maria, fazendo assim aluo ao filme de Louis Malle com o mesmo ttulo, que faz a referncia s mulheres na Amrica Latina. Segundo a observao de Mrcia Mores de Silva, na palavra Bahia, com a pronunciao das ltimas duas slabas destacadada, h que se ressaltar a voz dos negros baianos, os quais chamam a patroa, a senhora a quem servem de i-i.49 Na primeira estrofe Caetano situa a si memo como narrador em Braslia, no centro das decises do pas, onde se passa da ao sria e transformadora (eu organizo o movimento) ao ldica (eu oriento o carnaval) e, afinal, ao oficial e conservadora (eu inauguro o monumento). Mas apesar de verbos terem os sentidos bastante diferentes, Caetano tenta sugerir a sensao de que os elementos so equivalentes e intercambiveis por usar exatamente a mesma quantidade de slabas, com o acento forte colocado na mesma posio, e entoados com a mesma melodia.50 A segunda estrofe descreve aquele monumento, inaugurado na estrofe anterior, e ele ganha aqui significados diferentes torna-se antes uma brincadeira carnavalesca. Mas logo depois o monumento revela o lado repugnante e, neste momento, Caetano Veloso ousa usar uma contradio mesmo chocante: e no joelho uma criana sorridente feia e morta / estende a mo. Na terceira estrofe, novamente deparamo-nos com a contraposio de felicidade burguesa, modernidade e elementos de beleza natural: No ptio interno h uma piscina / com gua azul da Amaralina / Coqueiro, brisa e fala nordestina e faris. Amaralina, coqueiro, brisa, fala nordestina e faris, alm de remontar origem de Caetano, so elementos tpicos da paisagem da Bahia, mas tambm signos do subdesenvolvimento dentro do desenvolvimento. Na penltima estrofe o autor apresenta como a imagem da esquerda vista no Brasil. H uma aluso guerrilha, na qual estava empenhada uma parte da esquerda estudantil, mas tambm referido um smbolo49 50

Mores da Silva, Mrcia, op. cit. Paiano, Enor, op. cit., p. 34.

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brasileiro, aqui representando o nacionalismo, um samba.51 A cano termina com um comentrio sobre o cenrio musical brasileiro: encontramo-nos aqui com duas aluses aos programas da televiso dedicadas MPB (O Fino da Bossa, comandado pelos grandes cantores Elis Regina e Jair Rodrigues e O Fino da Fossa), e com a citao explcita de uma cano de Roberto Carlos, um dos protagonistas da internacionalizao da msica brasileira e representante da Jovem Guarda: que tudo mais v pro inferno.52 Vimos que Caetano mistura na cano Tropiclia muitos dos ingredientes tpicos para o tropicalismo. Ele usa-se da ironia, das metforas e da polissemia como formas da heterogeneidade, alm de justapor vozes para construir a imagem do Brasil e, ao mesmo tempo, desmontar mitos do nacionalismo ufanista e do Brasil como pas onde tudo acaba em carnaval.53 Seria possvel dedicar ainda muito mais espao s manifestaoes do tropicalismo de Caetano Veloso, mas isso no fundamental para a nossa questo. Vamos proseguir para a anlise dos vrios aspectos da baianidade no somente na obra de Caetano, mas tambm de Gilberto Gil.

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Franchetti, Paulo Elias, Pecora, Alcyr Bernardes. Caetano Veloso. Literatura comentada. So Paulo, Abril Educao, 1981. 52 Paiano, Enor, op. cit., p 38. 53 Mores da Silva, Mrcia, op. cit.

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7. A baianidade de Caetano Veloso e Gilberto GilPara o ncleo deste trabalho juntamos o mximo possvel, aproxidamente nove centenas das letras de Caetano Veloso e Gilberto Gil, sendo a fonte principal a Internet.54 H muitas canes nas quais os dois mencionam explicitamente seu Estado natal, em outras as referncias Bahia so mais implcitas.55 Na anlise da baianidade nas letras dos compositores baianos utilizamos como critrio da seleo o interesse por um abrangente do modo como o tema Bahia retratado e no a preocupao com os detalhes. Assim, aos invs de dedicar uma ateno minuciosa a cada fragmento do enunciado, vamos tentar identificar alguns dos principais assuntos e idias propostos pelos poetas, privilegiando o sentido captado na letra da cano em sua totalidade e no conjunto das letras. Escolhemos, no entanto, sessenta e oito canes, das quais citamos no texto e que, inteiras, fazem parte deste trabalho no anexo. Identificamos dois aspectos centrais nesse discurso de um lado, os temas que so mais visveis, aquilo sobre o que se fala e, de outro lado, os conceitos subjacentes, os pressupostos que so defendidos, ou seja, o que se fala sobre esses temas baianos e como se fala. O objectivo perceber, alm dos temas pautados, quais so as caractersticas com que eles so definidos e que traos positivos entram na argumentao para valoriz-los. Alguns temas relacionados ao modo baiano de viver vo merecer uma explorao mais cuidadosa, pela recorrncia e ateno com que aparecem nas letras das canes. possvel identificar rapidamente a importncia dos ritos coletivos na construo desse discurso, como as formas tpicas de expressar religiosidade, de divertir-se, de celebrar. Essa referncia especial aos rituais deriva possivelmente da54 55

WWW http://www.lyrics-songs.com interessante que a baianidade de Caetano um trao to significativo de sua obra que uma revista, entrevistando Caetano Veloso, at utilizou a parafrse da cano caymmiana para a manchete, destacando a origem de Veloso: Acontece que ele baiano.

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fora que a manifestao da adeso, a expresso palpvel e muitas vezes pblica dessa adesso possui para solidificar a cumplicidade grupal ao mesmo tempo em que se demonstra a adeso, o fazer parte, subentende-se tambm o respeito, a confiana e a obedincia a essa tradio, j que seguir ou entregar-se a uma tradio uma forma de manifestao de f.56 Encontramos tambm abundantes referncias a elementos mais idiossincrticos, que comporiam uma espcie de personalidade tipicamente baiana, como estados de esprito, formas de agir, sentimentos, desenvoltura fsica.

7.1. AlegriaSer alegre, ou seja, sentir-se bem, satisfeito, expressar esse prazer de viver e tambm ser capaz de contagiar os outros com um estado do esprito animado, otimista , possivelmente, reivindicado como a principal caracterstica do jeito baiano nas composies da segunda metade do sculo XX. Tambm um tema bastante frequente na poesia de Gil e Veloso a alegria um pilar da baianidade, por este trabalho considerado o mais importante. A alegria mencionada, em vrias formas, em numerosas msicas. A mais significante das todas que falam de alegria e bom esprito baiano nos parece a msica Odara, de Caetano, sem que essa nem uma vez mencione a palavra alegre ou feliz: Deixe eu danar / Pro meu corpo ficar odara / Minha cara minha cuca ficar odara / Deixe eu cantar / Que pro mundo ficar odara / Pra ficar tudo jia rara / Qualquer coisa que se sonhara / Canto e dano que dar. Toda a letra, ainda mais na juno com a parte musical, exprime a sensao de bem-estar, mas a chave para interpretar essa cano se encontra na palavra odara. O termo odara no tem qualquer sentido definido por um emprego usual em portugus. O que significa ento? Segundo o prprio Caetano, ele deparou com esse termo durante sua estadia em

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Mariano, Agnes Francine de Carvalho, op.cit., p. 15.

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Nigria, no II Festival Mundial das Artes e Culturas Negras em Lagos, em 1977. Odara uma expresso iorubana, formada pelo pronome pessoal no qual vem embutido o verbo ser (ele ), mais o adjetivo dra que significa lindo.57 empregada, originariamente, com o sentido de estar bem ou sentir-se feliz e assim tambm funciona na cano de Caetano. O resgate do conceito de odara por Caetano Veloso teve grande repercusso nos meios artsticos baianos e tornou-se quase uma moda. Outra gria que Caetano ganhou durante sua visita a Nigria Two Naira fifty Kobo, referente ao preo invarivel da corrida de txi em que se deslocavam com Gil na metrpole de Lagos. Essa expresso mais tarde virar o ttulo de uma composio homnima, em que tambm sublinhada, da mesma maneira como j reparamos na cano Odara, a alegria exprimida atravs da msica: O certo ser gente linda e cantar, cantar, cantar / O certo fazendo msica. Com a rapidez e a ambigidade prpria da poesia, em que se passa de um assunto a outro, Gilberto Gil comea tratando da importncia da f para se conviver com a pobreza e segue esboando um tratado da filosofia da vida baiana onde a alegria ocupa o ponto central: Onde a gente no tem pra comer / Mas de fome no morre / Porque na Bahia tem me Iemanj / De outro lado o Senhor do Bonfim / Que ajuda o baiano a viver / Pra cantar, pra sambar, pra valer pra morrer de alegria / Na festa de rua, no samba de roda / Na noite de lua, no canto do mar (Eu vim da Bahia). Mais outro exemplo da onipresente alegria na vida dos baianos da caneta de Gil a cano Tradio onde o autor descreve a Cidade de Salvador no tempo que Lessa era goleiro do Bahia e encerra com seguintes versos: Sempre lindo e sempre sempre / Sempre rindo e sempre cantando. Aqui e no exemplo anterior, Gil associa, assim como Caetano, a alegria com a dana e o canto.

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O conceito Odara amplamente analisado pelo nigeriano Felix Ayohomidire, op. cit., p. 187-190

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7.2. FestasO tema da alegria e dana intimamente ligado com as festas. Festa uma forte expresso do esprito baiano, mas a maioria das festas, tendo a origem religiosa, tambm ligada com outro pilar da baianidade, com a religiosidade.58 Essa ligao podemos observar j na letra anterior de Gil onde ele menciona a Iemanj, a divindade afro-brasileira, e Senhor do Bonfim dos catlicos. Com maior freqncia, Caetano e Gilberto encantam a maior e a mais catica de todas as festas: o carnaval. O carnaval de Salvador um dos maiores no Brasil e por muitos considerado o carnaval mais tradicional e o mais democrtico onde celebram pessoas de todas as classes sem restries. Um especfico de Salvador a procisso dos trios eltricos pela cidade. Cada trio tem seu grupo de msicos ou um cantor de destaque e considera-se grande prestgio cantar para a multido de milhes de pessoas. Caetano Veloso e Gilberto Gil participavam do evento desde os anos 60 e em sua obra dedicaram muitas msicas ao carnaval de Salvador; Caetano Veloso at gravou um disco inteiro com as msicas carnavalescas. Sobre elas ele diz: Eu ainda no fiz um

Acho que esta ligao merece pouco mais espao. Um fenmeno muito interessante em Salvador e no Recncavo so as festas de largo uma conjuno do sagrado (missa, procisso) e profano (festa popular), dos campos opostos, embora complementares. A expresso festa de largo j dirige nossa ateno para o espao onde tudo deve ocorrer: o fronteiro igreja, a praa, o largo; mas sem o templo e o que se passa dentro aquela parte sagrada, a festa do largo no seria completa. verdade que, nos dias de hoje, o nmero cada vez maior de pessoas participa s da segunda parte da festa do largo, que segue ao rito - da festa popular com as oportunidades de danar e beber em abundncia em pblico com a consagrao da sociedade. O ciclo das festas de largo tem o incio no ltimo dia de novembro quando comea a festa de Nossa Senhora da Conceio da Praia (dura at oito de dezembro o dia da Santa), em Cachoeira tem no dia 4 de dezembro festa de Santa Brbara, que no seu sincretismo mistura o cristanismo e o candombl e onde, alm da missa Santa, podemos assistir cerimnia dedicada Ians. O ciclo continua no primeiro dia do ano com a festa de Nosso Senhor dos Navegantes, vem a famosssima Lavagem do Bonfim e tudo desemboca na festa maior do ano, no Carnaval. O Carnaval tem o carter diferente das festas do largo. As igrejas ficam nesse perodo fechadas e os folies ocupam as ruas e praas para se divertir, sem pensar no contedo religioso desse acontecimento a ltima ocasio de se divertir e comer bem antes do jejum e da contemplao nos 40 dias da quaresma. O carnaval se tornou uma festa secular, j nem podemos atribuir-lhe as caractersticas duma festa profana em sensu estrito. As grandes festividades pblicas voltam a ocorrer na Semana Santa, mas essas so bastante diferentes. Passam-se s no campo sagrado (a igreja ou a procisso) e no contm o lado profano. Podemos ento dividir as festas baianas em trs categorias: 1. festas cujo transtorno se d tanto dentro quanto fora das igrejas (Lavagem do Bonfim, festas juninas); 2. as igrejas ficam fechadas e a festividade cinge-se folia da rua; 3. o evento tem lugar apenas no interior do templo.

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samba que fosse muito legal pra carnaval, porque as marchas-frevo so mais constantes e importantes no carnaval da Bahia do que o samba. Eu fao mais no estilo do trio eltrico. Fiz Atrs de Trio Eltrico, Deixa sangrar, Chuva, suor e cerveja, La barca, com Moacir, e Qual a baiana?. Voc no entende nada tambm fiz para o carnaval.59 Por exemplo, numa letra dele chamada Muitos carnavais, o carnaval deixa de ser um simples substantivo, para tornar-se uma expresso com um sentido mais amplo, assumindo as funes de adjetivo, advrbio e verbo, anunciando um modo de ser e agir: Somos muitos carnavais / Nossos clarins / Sempre a soar / Na noite, no dia / Bahia / Vamos viver / Vamos ver / Vamos ter / Vamos ser / Vamos desentender / Do que no / Carnavalizar a vida corao. Para os baianos a festa precisa ter a qualidade, mas o folio tambm avaliado em sua capacidade de entrega a esta celebrao coletiva ou talvez em sua coragem de deixar-se contagiar. Assim, como na argumentao dos compositores mais antigos, onde os crticos do samba eram taxados de ruim da cabea ou doente do p, quem no participa do carnaval hoje em dia recebe qualificativos tambm pouco elogiosos, como os de Veloso: Atrs do trio eltrico / S no vai quem j morreu (Atrs do trio eltrico). O trio eltrico da Bahia mesmo to autntico que se tornou o tema principal de muitas msicas. No incio, apenas a fonte de som, depois tambm gerador de luz, o trio chega a ser definido como sol, elemento central da festa, ao redor do qual tudo orbita: Nem quero saber se o diabo nasceu / Foi na Bahia, foi na Bahia / O trio eletro-sol rompeu no meio-dia / No meio-dia(Veloso). O mesmo autor continua celebrando o trio eltrico e, usando as repeties dos finais das palavras, faz os jogos da palavra que ainda aumentam a sensao da riqueza e da alegria da festa baiana: No trio eltrico

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Veloso, Caetano, op.cit, p. 96.

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rico / Rico, rico, rico, rico, rico deseendoidecer / De alegria, ria, ria, ria, ria / Que a luz se irradia dia, dia, dia, dia / Dia de sol na Bahia (Cara a cara). Como num cortejo ou procisso, os folies definem sua participao na festividade freqentemente em funo do modo de relacionar-se com o trio. Seguir, correr ou danar atrs dele a opo preferida pelos seus fiis adoradores. Assim faz, como j vimos, Caetano Veloso e faz tambm Gilberto Gil: Tou atrs do trio / Tou atrs do fio pra ligar (Atrs do trio). Em outra cano intitulada Inicitica ele refere-se a um enorme sucesso da autoria de Caetano, da msica Chuva, suor e cerveja: Quando toda aquela gente / Reparou que de repente chovia / Trio eltrico tocando Chuva, suor e cerveja / Bahia. O trio eltrico mesmo um fenmeno do carnaval baiano e seu poder mais uma vez afirmado nos versos seguintes: Toda a eletricidade / Trio eltrico o seu gerador / Toda energia que magnetiza a cidade (Veloso O bater do tambor). Os compositores baianos costumam definir como pioneiro, inventivo e de uma relevncia perene o trabalho de Dod e Osmar, indissociavelmente ligado ao carnaval da Bahia. Dod e Osmar so considerados os pais ou inventores do trio eltrico e at os dias de hoje um dos trios traz o nome deles. Caetano presta sua homenagem a esses msicos, nomeando-os entre outras personagens da cultura baiana na cano Bahia, minha preta: Te chamo Menininha do Gantois / Candolina, Marta, Didi, Dod e Osmar. Todas as caractersticas do carnaval a alegria, a euforia, o caos esto presentes nas lembranas de Gilberto Gil: A primeira vez que pai me trouxe / Pra que eu fosse batizado / Na religio pag do carnaval... Eu tive uma febre aquele dia / De alegria, de euforia, de prazer de viver...Nunca mais perdi o bloco que desce do Candeal / Fui batizado com doce / Doce no lugar do sal / Papapai cedo me trouxe / Pra brincar o carnaval. Estas lembranas musicadas so com propriedade intituladas Doce

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carnaval e Gil cita nelas a cidade do interior onde passou alguns anos de sua infncia, o Candeal. Numerosas so na obra de Veloso e Gil as referncias a Filhos de Gandhi o que o nome de um dos mais famosos grupos de afox do carnaval baiano. O afox um cortejo que sai pelas ruas de Salvador, celebrando os orixs, sendo por isso conhecido como candombl de rua. Aqui temos mais um exemplo de ligao das festas com a religiosidade baiana. Gil chega at ao sincretismo, chamando no s os orixs, mais tambm Senhor do Bonfim: Filhos de Ob / Manda descer / Pra ver Filhos de Gandhi / Senhor do Bonfim / Faz um favor pra mi / Chama o pessoal / Manda descer / Pra ver Filhos de Gandhi / Oh! Meu Deus do cu / Na terra carnaval. O Senhor do Bonfim e a festa em sua louvao Lavagem, organizada em Salvador cada ano em meados de janeiro, uma referncia frequente na obra de Gilberto Gil. Ele at dedicou uma msica a esse evento importante e na letra faz quase uma reportagem jornalstica da Lavagem, descrevendo o caminho do cortejo, a comida servida durante a festa ou a tpica roupa branca num dia quente do vero baiano: Lavagem do Bonfim, quinta-feira / Sai da Conceio da Praia a primeira / Talagada de batida na Praa Cairu / Levanta a pista ao alto o Lacerda . Dia 2 de fevereiro, todos os anos, milhares de baianos e turistas lotam as praias do bairro soteropolitano Rio Vermelho para reverenciar Iemanj, a Me Dgua. Tambm esta festa no passou sem que ficasse adaptada nas letras dos compositores baianos. Gilberto Gil canta: Aqui estamos reunidos / beira-mar / Nesta noite de anonovo / Nesta festa de Iemanj / Pra prestar nossa homenagem / De corao (De ouro e marfim). Na cano Onde o Rio mais baiano Caetano faz certa comparao da Bahia e do Rio de Janeiro (isso podemos ver j no trocadilho no ttulo da cano) e lembra a festa famosa do bairro do Rio Vermelho, da qual no pode estar presente:

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Pensando em Jamelo no Rio Vermelho / Todo ano, todo ano / Na festa de Iemanj / Presente no dois de fevereiro / Ns aqui e ele l / Isso a confirmao de que a Mangueira / onde o Rio mais baiano.

7.3. ReligiosidadeA religiosidade continua sendo um tema pautado na msica baiana da segunda metade do sculo XX. Mas, ao contrrio da situao no perodo anterior, j no nos encontramos com tanta importncia dos santos cristos. Nasce um novo panteo com vigor nas letras dos dois poetas. So os orixs da tradio afro-baiana. Como j mencionamos, na primeira metade do sculo o candombl ainda era mal visto, mas, mais tarde, a familiaridade com os rituais e com os fundamentos da religio torna-se um signo de bom gosto e erudio. A significativa substituio da referncia aos deuses catlicos pelas divindades nag-iorubs retrata a lenta e progressiva conquista de espao e respeito pelas expresses culturais negras na Bahia, que at as primeiras dcadas do sculo a elite local tentava insistentemente banir. Agora, os orixs transformam-se em uma presena constante, com a qual os baianos parecem manter um intercmbio permanente. Um exemplo do grau de ateno que os intelectuais e os artistas passam a dedicar religio afro-baiana dado pela expressiva remisso nas canes aos nomes de casas religiosas, terreiros, seus sacerdotes, palavras litrgicas, etnias africanas e arrisca-se at definies de princpios bsicos da religio. A lngua iorub vai ganhando o espao alm dos muros dos terreiros em palavras como ax, orix, Afonj, Olorum. Especialmente na obra de Gilberto Gil, a religiosidade muito ligada com a etnicidade.60 Gil, consciente de sua origem da vertente nag, aborda os diferentes aspectos da cultura afro-brasileira. Ora retrata as citaes vividas pelo homem negro na grande60

Gil trabalha a temtica negra tanto a nvel de linguagem, quanto a nvel de construo meldica, ou seja, h casos onde a letra no revela explicitamente a presena dos elementos culturais negros.

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cidade, ora busca inspirao nos ancestrais africanos, nos deuses mitolgicos. Portanto nas canes com a temtica religiosa, que so no caso de Gil muitssimas61, encontramo-nos nomeadamente no mundo do candombl cheio de expresses iorubanas. So as msicas com os nomes estranhos como Ax, Bab, Sarar Miolo, Emori, Ians, Iemanj, Loguned, Opachor etc.. Conforme o autor, algumas destas msicas surgiam numa espcie de transe: ...como se a santo fosse rodopiar. E quando ela vem assim , , , Ax, Bab, como se j estivssemos num terreiro e estivssemos todos incorporados...62 Na msica Bab Alap, que o pai de santo ancestral africano, ele trata da perda de suas referncias ancestrais, chamando Egum, o esprito dos ancestrais mortos: O filho perguntou pro pai / Onde que t o meu av? / O meu av / Onde que t?...Pai Xang, Aganju / Viva Egum / Bab Alap. Vamos ainda esclarecer o sentido das outras palavras da cano: Xang um grande e poderoso orix, deus do trovo, retratado sempre com o machado alado, e Aganju outro nome para Xang. Gilberto Gil admite diretamente a sua inspirao no lxico da origem nag quando canta: Emori deve ser uma palavra nag / uma palavra de amor, um paladar / Emori deve ser alguma coisa de l / o Sol, a Lua, o cu pra Oxal. Emori uma palavra que funciona como um mantra, uma espcie de evocao sonora, de inspirao nag, para saudar a natureza atravs de Oxal, o deus que governa a Terra.63 Entre as sacerdotisas e as casas religiosas da Bahia o destaque especial mereciam Me Senhora do Il Ax Op Afonj, no So Gonalo do Retiro, e Me Menininha do Gantois, do terreiro na Federao. A primeira, considerada por muitos a me-de-santo mais influente que a Bahia j teve, era procurada por chefes do estado, brasileiros e africanos,Gilberto Gil uma pessoa extramamente ligada f. Foi criado na religio catlica. Durante o perodo de sua priso e estadia em Londres comeou a interessar-se pelas filosofias orientais e, afinal, aderiu ao candombl. Um grande nmero das canes tem um denominar comum: as inquietaes existencias do autor. Em Gil, o estar no mundo, a razo do viver, a morte o momento presente e o porvir so constantes fontes de inspirao e questionamento e ele busca as respostas com a ajuda das diferentes religies. 62 Fonteles, Ben. Giluminoso: a po.tica do Ser. Braslia, Editora Universidade de Braslia, 1999, p. 206. 63 Fred de Gos, op. cit., p. 59.61

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artistas e intelectuais os quais ela sabiamente buscou aproximar de sua casa religiosa, conferindo-lhes cargos e ttulos religiosos. Se muito foi escrito sobre o Op Afonj, provvel que ainda mais se tenha cantado o Gantois e sua Me Menininha, retratada sempre como uma mulher muito doce e possivelmente a me-de-santo mais querida pelo povo. As duas so cantadas por Caetano em Bahia, minha preta e aparecem como elementos de exaltao da Bahia: Bahia, fonte mtica encantada / expande teu ax, no esconde nada...Te chamo de Senhora Op Afonj / Eros, Dona Lina, Agostinho e Edgar / Te chamo Menininha do Gantois. Sob o comando da Me Menininha, o Gantois foi o terreiro especialmente prximo dos artistas. A prova disso pode ser a cano-orao feita exclusivamente para ela por Dorival Caymmi e, o que nos interessa ainda mais, a cano Rquiem pra Me Menininha do Gantois composta por Gilberto Gil aps a morte da me-de-santo onde o autor revela a sua relao ntima finada: Minha me se foi / Sem deixar de ser - ora, ii, / Di / Minha alma ainda di.... Minha me se foi / Sem deixar de ser a Rainha do Trono Dourado de Oxum / Sem deixar de ser / Me de cada um / Dos filhos pra quem eternamente sempre haver / Me Menininha. A cano Loguned, que tambm o nome de um dos orixs, muito apreciada por Gilberto Gil. Como ele afirma: Eu acho a cano mais especial daquele disco, o Realce. Por tudo, pela cano em si, pelo arranjo, pelo modo como ela foi tratada musicalmente. Uma das razes desta importncia da Loguned para o prprio autor pode ser vista no seguinte depoimento, que ao mesmo tempo pode tambm substituir para ns a anlise da letra e revelar o processo da criao artstica de Gil. Tomamos a liberdade de fazer aqui uma citao longa, porque s esta pode nos mostrar o pensamento do autor e aproximar nos do mundo do candombl dele: Me Menininha do Gantois descobriu e identificou Loguned na minhalinhagem, entre meus santos, quando ela jogou os bzios. Porque chegei l e disse: Olha, Me, eu sei que sou de Xang contei para ela a histria do

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terrreiro de Egum, que tinha ido l e ela disse: T! Mas eu vou jogar pra voc, pra ver... A jogou.......e disse: Ah! Pois , eu t vendo aqui, tem uma Loguned a. Me explicou quem era Loguned. Depois, fiz uma msica baseada exatamente na narrativa dela, com as qualidades de Loguned. Ela dizia: Loguned voc! Loguned aquele menino esperto que gosta de estar sempre no colo da me Oxum. Oxum louca por ele, faz tudo quanto mimo, tudo quanto dengo, tudo quanto vontade. Ele cheio de vontade. E ele uma moa tambm, ele vira uma moa. A contou vrios mitos, as lendas sobre o orix. E eu que me identificava com Xang...Caetano, por exemplo, achava muitas caractersticas de Xang em mim: nos modos da personalidade, nos vrios casamentos, em tudo. Mas eu achava que tinha um lado assim muito doce, muito semelhante ao que ela dizia de Loguned. Ento, eu fiquei muito contente quando soube que era de Loguned. Ficou como meu santo preferido durante muito tempo...Loguned, um dos donos da minha cabea. Queria tributar isso, fazer uma cano para Ele e pensava: Tenho que dizer que charmoso, que jovem; ele esperto e um rapaz vivaz. Ao mesmo tempo ele o filho de Oxum e Oxssi. Fui organizando essas idias todas e imaginando por onde que devia comear, escolhendo um jeito de falar tudo isso