Barroco e Pedra Do Reino

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABACENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    RODRIGO EMMANUEL ARAJO LEO

    O CASO DA PEDRA DO REINO E A IDENTIDADE NORDESTINA:

    QUADERNA E A DEFINIO CULTURAL DA REGIO

    NORDESTE E DO BRASIL

    JOO PESSOA2011

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    RODRIGO EMMANUEL ARAJO LEO

    O CASO DA PEDRA DO REINO E A IDENTIDADE NORDESTINA:

    QUADERNA E A DEFINIO CULTURAL DA REGIO

    NORDESTE E DO BRASIL

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras, do Centro de CinciasHumanas, Letras e Artes, da Universidade Federalda Paraba, como requisito para a obteno do graude Mestre em Letras, na rea de concentraoLiteratura e Cultura.

    ORIENTADORA: Profa. Dra. Elins de Albuquerque Vasconclos e Oliveira

    JOO PESSOA

    2011

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    L437c Leo, Rodrigo Emmanuel Arajo.O caso da Pedra do Reino e a identidade

    nordestina: quaderna e a definio cultural da regionordeste e do Brasil / Rodrigo Emmanuel ArajoLeo.- Joo Pessoa, 2011.

    111f. : il.

    Orientadora: Elins de AlbuquerqueVasconcelos e OliveiraDissertao (Mestrado) UFPB/CCHLA1. Suassuna, Ariano (A Pedra do Reino)

    crtica e interpre-tao. 2. Literatura e Cultura. 3.Identidade cultural nordeste. 4. Historiografiabrasileira.

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    RODRIGO EMMANUEL ARAJO LEO

    O CASO DA PEDRA DO REINO E A IDENTIDADE NORDESTINA:

    QUADERNA E A DEFINIO CULTURAL DA REGIO

    NORDESTE E DO BRASIL

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras, do Centro de CinciasHumanas, Letras e Artes, da Universidade Federalda Paraba, como requisito para a obteno do graude Mestre em Letras, na rea de concentraoLiteratura e Cultura.

    Aprovada em 30 de Maio de 2011

    BANCA EXAMINADORA

    Professora Dra. Elins de Albuquerque V. e Oliveira (Orientadora)

    Professora. Dra. Maria Luiza Teixeira Batista (1a. examinadora)

    Professora Dra. Antonia Marly Moura da Silva (2a. examinadora)

    Professora Dra. Ana Cristina Marinho (Suplente)

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    A Josefa Possidnia de Arajo,minha av e Rainha do reino imaginoso de minha infncia.

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    AGRADECIMENTOS

    A todos os nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos que

    comigo caminharam pelas terras desse serto imaginoso. Muitoagradecido.

    A painho e mainha, que acreditaram quando ningum acreditava,deram um sacode quando pensei em relaxar e me sustentaram eofereceram uma garapa quando tropecei assustado. Muito agradecido.

    A minha orientadora, profa. Dra. Elins de Albuquerque Vasconclose Oliveira, pela valentia de me pegar pela mo quando o calor doserto quase torrou o meu juzo e por me oferecer a sombra deUmbuzeiro que me deixou terminar a caminhada. Meu eterno respeito,

    carinho e amizade. Muito agradecido.

    s duas professoras que coordenaram a ps-graduao durante minhasandanas sertanejas, a profa. Dra. Profa. Dr. Liane Schneider e a

    profa. Dra. Ana Cristina Marinho Lcio. Meu respeito pela vitalidadee competncia com que organizaram essa feira de ideias e meurespeito e gratido pela pacincia com que aturaram e solucionaramtantos dos meus problemas. Muito agradecido.

    s grandes amigas Luciany, Suelany, Gilsa, Marina e ao amigo Joopelos dedos de proza e gaitadas que ficaro pra sempre gravadas nosolo pedregoso de minha memria. Muito agradecido.

    A minha famlia e minha namorada Rayane Dantas, que conseguiramsuportar as invencionices e aporrinhaes que surgiram junto com ocalor sertanejo. Muito agradecido.

    Ao CNPq, que financiou essa viagem pelas palavras desse sertoimaginoso, e aos professores e colegas com quem constru tantossaberes. Muito agradecido.

    A todos enfim, que mesmo no sendo citados nessas bandas, sabemque foram importantes para essa jornada. Meus prstimos, minhagratido, minha festa, minha alegria, meu carnaval.

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    O cisico, coisica: os cavalos, cavalam, as rvores arvoram, osjumentos jumentam, as pedras pedram, os mveis movelam, ascadeiras cadeiram e o farutico, machendo e feminando, queconsegue genter e farauticar! assim que o tdico tudica e o penetral

    penetralae esta, Quaderna, a realidade fundamental!

    (Clemente explicando a Quaderna a filosofia do Penetral)

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    Destruir um Imprio para vencer uma guerra no vitria.E abandonar uma batalha para salvar um Imprio no derrota.

    (PROVRBIO KLINGON)

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    RESUMO

    Esta dissertao versa sobre a identidade cultural brasileira, e mais especificamente

    nordestina, no Romance dA Pedra do Reino e o prncipe do sangue do vai-e-volta, de autoria

    do paraibano Ariano Suassuna. Nosso objetivo principal foi a investigao do pensamento

    sobre a identidade nordestina que empregado na obra de Suassuna. Qual sua definio?

    Quais so os traos que podemos apontar como constitutivos do nordestino, segundo o autor?

    Para a investigao, buscamos na historiografia brasileira os pensadores e movimentos

    culturais que se ocuparam da definio identitria do pas. Buscamos tambm as influncias

    apontadas pelo prprio Suassuna como fonte e filiao de sua arte, a saber o barroco e suavariante contempornea, o neobarroco. Por encontrarmos na obra do estudioso Bakhtin vrios

    conceitos que trabalham com elementos do barroco, como o caso da carnavalizao,

    tambm associamos e utilizamos tal conceito em nossa anlise. A anlise da obra se deu em

    trs etapas: primeira a estrutura, se ocupando da diviso da obra, da narrativa e sua

    composio fsica. Segunda, do personagem-narrador Quaderna, que defendemos ser uma

    representao da identidade nordestina. Por fim, na terceira etapa, investigamos uma

    derivao da obra de Suassuna: a minissrie televisiva A Pedra do Reino, a fim de saber comoos elementos que encontramos no romance foram traduzidos para outro meio que no a

    escrita.

    PALAVRAS-CHAVE: Identidade, Nordeste, Romance dA Pedra do Reino

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    ABSTRACT

    This dissertation focuses on the problem of Brazilian cultural identity, more specifically on

    the identity of the Brazilian northeast region present in the Romance da Pedra do Reino e o

    prncipe do sangue do vai-e-volta, written by Ariano Suassuna. The aim of this work is to

    investigate the Northeastern identity and the way it is presented by Suassuna. What is its

    definition? What are the features that can be pointed out through Suassunas work? Trying

    to answer these questions, we seek in the historiography thinkers and cultural movements

    that have previously studied the matter of the Brazilian identity. We also researched on the

    studies developed by Suassuna himself about this matter pointing out it as a strong influenceto which his art is affiliated. This analysis is also supported by the theories of the baroque and

    its contemporary variant, namely the neo-baroque. From Bakhtin came the concept of the

    carnavalization that is joined to the two previously presented to complete the theoretical basis

    of this work. In matter of presentation, this work follows three steps. First of all, it will be

    presented the structure showing the division of the work, the narrative and its physical

    composition. The second part will contemplate the character-narrator Quaderna that is

    considered, in this study, as the representation of the northeastern identity. And finally, thisinvestigation will focus on the television mini series A Pedra do Reino, analyzing in which

    way some elements from the novel were translated to another medium.

    KEY-WORDS: Identity, Northeast, Romance d`A Pedra do Reino.

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    SUMRIO

    PEQUENO CANTAR ACADMICO A MODO DE INTRODUO 12

    FOLHETO IO caso do barroco e a construo da identidade nacional 16

    1.1. Do Barroco ao Neobarroco 16

    1.2. O Neobarroco na construo-formao da identidade cultural brasileira 23

    1.3. Movimento Armorial: atualizao nordestina do Neobarroco 31

    FOLHETO IIO caso de Quaderna, sua obra e a representao da identidade 40

    2.1. O romance e sua estrutura 41

    2.2. As faces de Quaderna 47

    2.2.1 Quaderna, o Rei 47

    2.2.2 Quaderna, o Intelectual 50

    2.2.3 Quaderna, o Narrador (ou o pcaro farsante) 542.3. Aproximaes entre A Pedra do Reino e a Stira Menipia 61

    2.4. O cordo azul e o encarnado 71

    2.5. Por cima da Pedra: o barroco evidenciado 80

    2.5.1. Lodo e p: teorizaes e referncias de Quaderna 80

    2.5.2. Minrio 83

    FOLHETO IIIO caso da releitura da Pedra do Reino na minissrie televisiva 87

    3.1. Caracterizao: entre a fantasia e a alegoria 90

    3.2. Cenrio e atuaes: o espao em movimento 97

    A SAGRAO DO GNIO NORDESTINO CONHECIDO 107

    REFERNCIAS 110

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    O grande idealizador do Movimento Armorial o escritor paraibano Ariano

    Suassuna. Autor de obras traduzidas para diversos idiomas, consagradas pela crtica e

    pelo pblico, o controverso autor j se tornou uma figura notria quando o assunto a

    defesa da cultura brasileira diante da influncia estrangeira.

    Em praticamente toda a produo do escritor, a temtica nordestina est

    presente, valorizando elementos da dita nordestinidade e contribuindo para ideais

    pregados pelo prprio: a ampliao da cultura nordestina como sendo a essncia da

    cultura brasileira.

    A tarefa a que nos propomos pegar uma de suas poucas obras publicadas em

    prosa, O romance dA Pedra do Reino e o Prncipe do Sangue do vai -e-volta, e

    investigar os traos da identidade nordestina presentes na mesma. Sabemos que o

    escritor, sempre que tem tal oportunidade, afirma o quanto essa identidade nordestina a essncia da identidade brasileira. Todavia, mesmo sabendo o que afirma o prprio

    Suassuna a respeito do assunto, preferimos escapar da falcia de discusses em torno da

    existncia ou no de uma identidade nacional. Para isso, resolvemos afunilar o conceito

    e tratar apenas de identidade nordestina.

    Sabendo da multiplicidade que a identidade, do quanto complexo delimitar

    tal conceito e definir o que vem a ser essa nodestinidade, propomos investigar o que

    Suassuna prope enquanto tal. Que elementos ele emprega em sua obra pra constituiressa tal identidade, para afirmar e definir o que vem a ser o nordestino (ou, como o

    prprio autor prefere, o brasileiro)?

    At mesmo o conhecedor mediano de Suassuna, de sua produo acadmica,

    literria e em colunas de jornais, sabe que o autor defende a herana portuguesa e

    ibrica como os elementos mais fortes e mais dignos de valorizao dentro do leque da

    cultura brasileira, e, para fins de nosso trabalho, nordestina. Nesse conjunto que so as

    culturas ibricas e portuguesas, h um estilo artstico que digno das maiores atenes

    por parte de Suassuna e apontado por ele como algo eterno e constante na arte universal

    e especificamente brasileira: o barroco. Com isso em mente, torna-se inevitvel no

    investigarmos o barroco e sua influncia na cultura brasileira e nordestina ao longo da

    histria. Nessa empreitada, surge o neobarroco, movimento artstico formalizado

    principalmente por Lima e Sarduy e que deixou traos fortes por toda a Amrica Latina.

    Por isso mesmo, o primeiro captulo de nosso trabalho ser totalmente dedicado

    investigao do barroco e do neobarroco. Como entender a valorizao da cultura

    brasileira hoje e ontem de extrema importncia, tambm dedicaremos parte deste

    captulo tal tema. At mesmo porque h momentos importantes em que a valorizao

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    do nacional no Brasil se cruza com o pensamento barroco, se no explicitamente, ao

    menos de forma implcita, na adoo de pontos de vista semelhantes e realizaes

    estticas em comum. Neste momento do trabalho, faremos tambm uma leitura de

    pensadores clssicos do pensamento social brasileiro at os dias de hoje, sempre

    trazendo isso para o contexto da produo de Suassuna e da esttica barroca.

    No segundo captulo, iniciaremos a anlise propriamente dita. Munidos de boa

    parte do que discutimos a respeito do barroco e do pensamento social brasileiro,

    pretendemos lanar um olhar sobre a obra de Suassuna, buscando quais traos da obra

    podem ser apresentados como representantes ou caractersticos da cultura nordestina.

    Lembrando sempre que no estamos buscando um conceito existente (a identidade

    nordestina) na obra, mas apenas observando nela a construo desse conceito. Quem

    conhece o Romance dA Pedra do Reino sabe que no um livro dos menores, deleitura rpida. Isso sem dvida dificulta a leitura e a anlise. Entretanto, em contato com

    a obra, inevitvel desviarmos de um foco constante assumido pela narrativa: o

    narrador Quaderna. Justamente por isso, adotamos a investigao do personagem como

    parmetro metodolgico de nossa anlise. Assumimos com isso que a identidade de

    Quaderna uma representao em microescala da identidade nordestina, e, por isso

    mesmo, ao investigar o personagem estaremos investigando o conceito de

    nordestinidade construdo por Suassuna em seu livro.Aps a anlise do romance, dedicamos o terceiro captulo a um tpico que

    compreendemos no apenas como pertinente como tambm inevitvel. Vamos neste

    tpico analisar uma adaptao televisiva da obra de Suassuna, a minissrie da rede

    Globo de televiso, A Pedra do Reino, dirigida por Luiz Fernando Carvalho. Neste

    captulo, alm de uma abordagem introdutria e conceituao do meio audiovisual de

    produo da obra, pretendemos demonstrar como os traos da nordestinidade, do

    barroco e sua essncia carnavalizante, foram interpretados pelas lentes do diretor. Assim

    como elencamos Quaderna como nosso parmetro de anlise para o romance, na

    investigao da minissrie, resolvemos nos distanciar do roteiro e focar em elementos

    de cena, como os figurinos, os cenrios e as atuaes. Com a anlise de tal material

    audiovisual, pretendemos alm de tudo demonstrar que a percepo da identidade

    nordestina dentro da obra, bem como a essncia barroca da mesma, so to

    fundamentais para o romance que se torna fora motriz da mesma, sendo inevitvel a

    reproduo destes elementos em provveis adaptaes.

    Ao final de toda a anlise, esperamos ter em mos material consistente o

    suficiente para compreender no apenas o pensamento deste importante escritor

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    paraibano que Suassuna ou uma faceta de sua obra, mas, principalmente, compreender

    como o pensamento sobre a identidade nordestina e brasileira foi moldado e como o

    barroco esteve sempre presente, seja de forma explcita ou implcita, dando consistncia

    essncia carnavalizante que Suassuna faz questo de representar em sua escrita.

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    FOLHETO I

    O caso do barroco e a construo da identidade nacional

    Neste trabalho, nosso objetivo maior investigar os traos da identidade

    nordestina na obra do escritor paraibano Ariano Suassuna. Suas peas e romances so

    intencionalmente recheados de uma temtica regional difcil de limitar em qualquer

    investigao. Na tentativa de entendermos o cenrio cultural no qual Suassuna est

    inserido, precisamos ir muito alm da sua obra e buscar na histria nacional as matizes

    ideolgicas que constituem o pensamento do autor paraibano. Para tanto, temos alguns

    caminhos a percorrer que nos auxiliam na investigao. Algumas correntes de

    pensamento, bem como algumas figuras de importncia nacional e alguns conceitospodem ser percebidos de forma clara em praticamente todos os textos publicados pelo

    autor em revistas, jornais e ensaios.

    O primeiro tema a ser enfocado, e principal conceito trabalhado por Suassuna,

    o barroco, que, segundo o prprio, a raiz da cultura brasileira e isto seria retomado de

    forma evidente em suas obras. Em seguida, precisamos analisar o conceito de cultura

    castanha trabalhado pelo prprio autor, bem como a aproximao deste conceito ao de

    miscigenao, de presena constante na histria da ideologia brasileira. Por fim, aindaneste captulo, abordaremos tambm o Movimento Armorial, sempre muito citado entre

    os estudiosos de sua obra e que representa uma formalizao concreta de seus ideais.

    1.1. Do barroco ao neobarroco

    Enquanto estilo, o barroco faz parte da histria artstica do mundo ocidental.

    Mesmo no tendo presena em todos os pases, este estilo de poca, como se

    convencionou chamar, deixou profundas marcas por onde passou. sabido que em seu

    surgimento, o barroco foi elemento do conhecido movimento de Contra Reforma da

    Igreja Catlica, utilizado principalmente pelos jesutas e levado aos novos

    continentes, principalmente aqueles sobre os quais a Espanhaum dos principais pases

    em que este estilo artstico se proliferouteve domnio.

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    No caso brasileiro tivemos como principais expoentes desta expresso as formas

    de Aleijadinho na escultura, as cores de Mestre Atade na pintura, os versos de Gregrio

    de Matos e os sermes do padre Antnio Vieira1na literatura.

    Entre todos esses nomes, podemos destacar como mais conhecidos os versos de

    Gregrio de Matos e as formas de Aleijadinho. Ambas trazem alguns dos principais

    traos do Barroco: a mescla de contrrios e o rebaixamento da nobreza ou divindade

    para junto do povo, s pra citar alguns. Aleijadinho caracterizava suas esculturas sacras

    com traos que no eram encontrados comumente nesse tipo de arte: seus santos eram

    todos meio caboclos, com olhos amendoados e pouca barba, rosto afilado, muito

    diferente do tipo europeu que se tornou modelo de representao das divindades crists.

    Gregrio de Matos, tambm conhecido como Boca do Inferno, utilizava-se da

    lrica da poesia para jogar pedras na vidraa de grandes personalidades da sua poca.Carregava de ironia versos que eram comumente usados para falar de temas distantes e

    no terrenos, quase sempre criticando a prpria instituio catlica. Como o barroco

    assumiu aqui uma caracterstica quase devoradora, de incorporar o alheio e

    reconstru-lo em novos moldes, estudiosos chegaram a descrever o citado autor como

    um dos primeiros antropofgicos da nossa literatura2.

    No sculo XX o estilo barroco foi atualizado, tornando a fazer parte da cultura

    da Amrica Latina e tambm do Brasil. a que surge o chamado neobarroco, queacabou se concretizando como principal fora da literatura latino-americana. Sabendo

    disso, precisamos entender como este estilo artstico retorna especificamente na

    literatura, e tambm entender quais so as suas principais caractersticas. A respeito do

    neobarroco e sua evidente relao com o barroco, a obra de Chiampi (1998) a mais

    completa que pudemos encontrar.

    Logo no incio de seu livro, este autor aponta:

    Um passado mediterrneo, ibrico, colonial e finalmente assumidocomo americano ao ser reapropriado por nossa escritura moderna,salta da esfera do marginal e excludo e, conquistando a sualegibilidade esttica, alcana a sua legitimao histrica. A Funo dobarroco, com a sua excentricidade histrica e geogrfica, diante docnone do historicismo (o novo classicismo) construdo nos centroshegemnicos do mundo ocidental, permite recolocar os termos com

    1 Mesmo sendo portugus, o que implica numa viso portuguesa dentro do Brasil, foi aqui que ele

    produziu parte de sua obra enquanto missionrio e como parte do barroco brasileiro que ele catalogadoem livros escolares no geral.2Mais adiante em nosso trabalho, explicitaremos melhor este conceito, citando inclusive Helena (1983)como um desses estudiosos dos quais falamos.

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    que a Amrica Latina se posicionou ante a modernidade euro-norte-americana (CHIAMPI, 1998, p. 3).

    Para ele, o barroco condiz com caractersticas prprias do continente latino-americano:

    a incapacidade (ou impossibilidade) dos pases constituintes do continente em

    incorporar o projeto iluminista, isso aliado (e tambm devido) a certa dissonncia da

    modernidade do continente em relao ao resto do mundo.

    Devemos salientar que a apropriao e releitura do estilo no se deu de forma

    imediata, segundo Chiampi (1998, p. 126):

    As inseres do barroco no arco histrico da modernidade literria daAmrica Latina descrevem, portanto, uma longa trajetria de 100 anose coincidem, grosso modo, com os ciclos de ruptura e renovao

    potica que compendiam o seu processo: 1890, 1920, 1950, 1970.Neles, a continuidade do barroco revela o carter contraditrio dessaexperincia moderna, que canibaliza a esttica da ruptura produzidanos centros hegemnicos, ao mesmo tempo que restitui o incompleto einacabado de sua prpria tradio.

    Ou seja, o barroco foi incorporado arte latino-americana em etapas. Na modernidade,

    o primeiro a utiliz-lo em sua produo literria foi o poeta Rubn Drio, que manteve

    um uso recreativo e sem grandes pretenses ideolgicas. A etapa de apropriao veio

    com os poetas de vanguarda, que buscaram no barroco um meio de renovao da suaproduo. Apenas nas dcadas de 1950 e 1960 que a apropriao assumiu uma

    perspectiva crtica, dos reais significados e usos da esttica barroca no contexto da

    modernidade americana, bem como uma preocupao de incorporar elementos da

    cultura do continente aos meios estticos do estilo. Chiampi (1998) aponta Lezama

    Lima (1950) e Alejo Carpentier (1960) como os principais nomes desta fase

    consciente do barroco latino-americano:

    O terceiro ciclo da insero do barroco na modernidade literria daAmrica Latina s se inaugura quando a experimentao (e recreao)com as formas barrocas se conjuga com a atribuio de um contedoamericano. Refiro-me, claro est, a uma conscincia americanista,reivindicatria de identidade cultural, que explicita ideologicamente oque as formas poticas s consigam sub specie metafrica[...]. Estespassos decisivos so tomados pelo prprio Lezama Lima, nos anos 50e Alejo Carpentier nos anos 60 (CHIAMPI, 1998, p. 6)

    O primeiro, Lezama Lima (apud CHIAMPI, 1998), institui que este estilo algoespecificamente ibrico e latino-americano, no obtendo correspondente no resto do

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    mundo. Com isso, ele define que este o mais importante e mais caracterstico produto

    da cultura que o continente produziu. Isto serve como ponto de partida para a

    proposio do barroco como ferramenta se que assim podemos chamar o papel de

    uma escola dentro de um movimento artstico capaz de elaborar a fundao da nova

    ordem cultural necessria aos artistas latino-americanos.

    Ao falarmos dessa pretenso de Lima, devemos ter em mente que o continente

    latino-americano demorou muito para se firmar enquanto proprietrio de um tipo de arte

    e de uma cultura institucionalizada e reconhecida pelos meios acadmicos3. No caso

    especfico da literatura, a recente produo se comparada produo dos pases que

    praticamente inauguraram a literatura clssica engatinhou por muito tempo at se

    firmar em suas prprias caractersticas.

    A preocupao de uma definio de seus traos, de uma identidade artsticaenquanto pertencentes ao continente latino-americano, era uma constante para os

    artistas do incio e de meados do sculo XX. No Brasil, devemos lembrar a famosa

    semana de 1922, que inaugura o Movimento Modernista e estabelecesse as bases da

    literatura brasileira ao romper os laos com as escolas clssicas e manter, quase que

    exclusivamente, alguns poucos laos com o simbolismo.

    Para Lima, o barroco, com seu poder de contestao, de destruio e,

    ambiguamente como o prprio estilo, de reunificao dos fragmentos, era o meio peloqual poderia se chegar definio da genuna arte da Amrica Latina, at porque ele

    considerava este um estilo quase que exclusivamente de seu continente.

    Em contraposio a Lima, Carpentier (apud CHIAMPI, 1998) enxerga o barroco

    enquanto universal e constante na histria artstica de todas as civilizaes. Enquanto

    Lima o propunha como tipicamente nosso, numa tentativa de dar ainda mais autoridade

    de apropriao do estilo pelos artistas latino-americanos, Carpentier o coloca como

    universal e explicita essa autoridade pelo vis da propriedade coletiva mesmo sendo

    universal isso no nos tira o direito de dele nos utilizarmos e dele fazermos proveito.

    parte as contradies quanto concepo do barroco enquanto propriedade

    universal ou americana, ambos enxergam nele uma possibilidade de retirar a literatura, e

    ainda mais a prosa, de um contexto da mera descrio para um cenrio de elaborao de

    alegorias e recriao das formas e contedo.

    3Sabemos que em toda Amrica Latina, como em qualquer cultura, sempre existiram manifestaesartsticas e culturais prprias do continente. Entretanto, estamos nos referindo neste trecho culturaacadmica, formalizada e institucionalizada dentro de certos cnones e padres.

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    Era necessrio romper com as amarras da arte clssica que assolava o continente

    e instaurar uma nova arte, menos descritiva, mais imaginativa e contestadora. Para

    ambos, tanto Lima quanto Carpentier, o barroco carrega as caractersticas necessrias

    para essa contestao.

    Lembrando o contexto de seu surgimento e de sua utilizao inicial, percebemos

    que o barroco foi uma das principais ferramentas da Contrarreforma. Usada e

    disseminada principalmente pelos jesutas, este estilo artstico serviu para combater a

    nova ordem imposta tempos atrs pela Reforma Protestante, ou seja, esses primeiros

    pensadores do Barroco na Amrica Latina, o viam como uma ferramenta de contestao

    por excelncia, que servia em essncia para questionar a ordem e inserir nela aqueles

    que foram colocados a sua margem.

    Vindo para o passado mais recente, incio e meados do sculo XX, podemospensar tambm no continente latino-americano como que isolado nas manifestaes

    artstico-culturais por qual passava a Europa, ou, se no isolado, mantendo-se em

    postura de copiar o queacontecia no velho-continente.

    Assim como o barroco foi utilizado na Contrarreforma para questionar a ordem

    que vinha sendo imposta pelo velho continente, os idealizadores do que se conheceu

    como Neobarroco, propunham sua utilizao para questionamento da ordem artstica

    que vinha sendo imposta, ou, como nas palavras de Chiampi (1998, p. 18): Se obarroco a esttica dos efeitos da Contra-Reforma, o neobarroco o da contra-

    modernidade. Tal utilizao possui ainda mais autoridade no caso de Lima, que

    enxerga o barroco como um produto genuinamente latino-americano. Dessa forma, com

    seu poder de destruio e sntese, este estilo artstico serviria para os fins propostos:

    derrocada de velhos paradigmas e estabelecimento de novas diretrizes artsticas capazes

    de definir culturalmente o continente.

    Severo Sarduy, escritor cubano que, dentre todos os escritores contemporneos e

    at anteriores a ele, foi o que mais se ocupou em teorizar a esttica do neobarroco,

    definiu algumas das bases dessa esttica. O termo neobarroco, por exemplo, foi

    primeiramente teorizado pelo prprio, conforme nos diz Chiampi:

    O termo Neobarroco tem sido frequentemente usado para referir-se aosexerccios verbais de alguns notveis romancistas latino-americanos [...]Mas foi Severo Sarduy o escritor latino-americano que recolheu essatradio reivindicatria dos mestres cubanos e desenvolveu sua prpriateorizao no quadro das mudanas culturais dos anos 60 (CHIAMPI, 1998,

    p.26).

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    Sarduy ainda foi muito mais alm da definio do estilo e se ocupou de

    descrever os processos de aplicao dessa esttica. Mostrar o como fazer parecia ser

    uma preocupao do escritor cubano. Foi assim que ele definiu que uma das bases do

    neobarroco a pardia e a autopardia.

    Consultando o livro de SantAnna (2007)e o trabalho de Monegal (1980) sobre

    o assunto, vemos que a pardia um mecanismo essencialmente de contestao da

    ordem, de violao da estrutura, de questionamento do que parodiado. Com seu tom

    paro e autoparodstico, o barroco moderno, ou neobarroco, vem para questionar a

    influncia ou a presena dos elementos estrangeiros dentro do cenrio cultural latino

    americano, bem como questionar o prprio cenrio latino americano como detentor de

    uma identidade prpria e isenta de influncias. E, alm disso, o barroco serve ainda para

    vislumbrar essa influncia (ou presena) estrangeira como algo no mnimo positivo paraa construo de uma cultura prpria da Amrica Latina. Comentando a pardia, o

    barroco e a carnavalizao, Monegal (1980, p. 11) afirma:

    Em um movimento tipicamente carnavalesco, Bakhtin deslocou ocentro para a periferia e provou que as formas marginais haviamocupado o centro. [...]. A mesma operao pode ser praticada com aliteratura latino-americana que sofreu, at pouco tempo atrs, por estarsubmetida a uma crtica demasiado preocupada com o logocentrismo

    dos modelos ocidentais.

    O prprio Sarduy revela que justamente pela polifonia cultural que o Neobarroco se

    inscreve com propcia facilidade neste terreno americano.

    Entendemos com Propp (1992) que a Pardia tambm insere um elemento de

    comicidade no contexto no qual ela est inserida. O autor nos diz que a pardia um

    dos instrumentos mais poderosos da crtica social. Segundo ele, podemos encontrar

    muitos casos de pardia principalmente no folclore.

    A pardia um dos instrumentos mais poderosos de stira social.Exemplos muito evidentes disso so fornecidos pelo folclore. Nofolclore mundial e no russo existe uma quantidade de pardias damissa, da catequese das oraes.A pardia cmica somente quando revela a fragilidade interior doque parodiado (PROPP, 1992, p. 87).

    A pardia como um recurso de comicidade foi amplamente utilizada pelo poeta

    Gregrio de Matos, que, segundo o que dissemos anteriormente, j foi apontado pelacrtica Helena (1983) como um poeta essencialmente antropofgico j em sua poca.

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    Ora, nada mais apropriado para um artista barroco, estilo prprio para a destruio e

    unio de contrrios, do que ser reconhecido enquanto antropofgico, adjetivo este que

    deriva do Movimento Antropofgico proposto por Oswald de Andrade para renovao

    da literatura brasileira. Um movimento que colocava a cultura estrangeira do outro,

    como algo a ser devorado, digerido e s ento reconstitudo com traos tipicamente

    nacionais.

    Essa postura de unio sem a perda das caractersticas, de compartilhamento do

    que h de melhor no outro, nos faz pensar num conceito amplamente utilizado por

    Bakhtin, especificamente em Esttica da Criao Verbal (BAKHTIN, 2006). Antes,

    vejamos um trecho da obra:

    O que enriqueceria o acontecimento se eu me fundisse com outrapessoa, se de dois passssemos a um? Que vantagem teria eu se ooutro se fundisse comigo? Ele veria e saberia apenas o que eu vejo esei, ele somente reproduziria em si mesmo o impasse da minha vida; bom que ele permanea fora de mim, porque dessa sua posio elepode ver e saber o que eu no vejo nem sei a partir da minha posio,e pode enriquecer substancialmente o acontecimento de minha vida.Se apenasme fundo com a vida do outro, no vou alm de aprofundara sua inviabilidade e duplica-la numericamente. Do ponto de vista dareal eficcia do acontecimento, quando somos dois o que importa no que alm de mim exista maisum indivduo, no fundo o mesmo(doisindivduos), mas que ele seja outro para mim, e neste sentido a

    simples simpatia dele por minha vida no representa nossa fuso numser nico nem a repetio numrica de minha vida e sim umenriquecimento substancial do acontecimento, pois minha vida vivenciada empaticamente por ele em nova forma, em nova categoriaaxiolgica como vida do outro, que tem colorido axiolgico diferentee aceita e justificada diferentemente da prpria vida dele. A eficciado acontecimento no est na fuso de todos em um todo mas natenso da minha distncia e da minha imiscibilidade, no uso doprivilgio do meu lugar nico fora dos outros indivduos (BAKHTIN,2006, p. 80).

    O conceito de exotopia, elaborado e discutido por Bakhtin, no possui uma

    definio pontual dentro da obra do autor, assim como acontece com vrios outros

    pontos por ele trabalhados. Amplamente utilizada para discutir a relao entre autor e

    personagem, nada impede que a estendamos tambm para o contato entre culturas, entre

    indivduos. Conforme vimos no trecho acima, o que importa no contato no outro no a

    fuso total de dois em um, mas o compartilhamento de experincias e caractersticas.

    Tal qual defende Oswald com o antropofagismo, o importante aqui a transformao apartir do contato com o outro.

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    1.2. O neobarroco na construo-formao da identidade cultural brasileira

    Anteriormente, no incio desde captulo, comentamos que o neobarroco surge do

    interesse de artistas latino-americanos, a partir do sculo XX, em definir uma identidade

    cultural para o continente. No Brasil tambm havia uma necessidade de definio de

    identidade e um interesse cada vez mais crescente nos que j haviam se ocupado desta

    definio.

    Ao tentar elencar um conjunto de correntes ideolgicas, de pensamentos e

    pensadores sobre um determinado tema ao longo da histria, temos a tendncia de

    agrupar pensadores e pensamentos em uma grade linear, com pensamentos que so

    ultrapassados e do origem a novos conceitos. Quando pretendemos falar do Brasil e dopensamento construdo acerca dessa nao, devemos enxergar o conjunto de

    pensamentos e pensadores dentro de um conjunto no-linear e sem pretenses

    evolutivas. Devemos entender

    que as diferentes interpretaes do Brasil tambm se tornaram, aolongo do tempo, como que matrizes de diferentes modos de sentir epensar o pas e de nele atuar. Justamente porque no operam apenasem termos cognitivos, mas constituem tambm foras sociais que

    direta ou indiretamente contribuem para delimitar posies e conferir-lhes inteligibilidade em diferentes disputas de poder travadas nasociedade, as interpretaes do Brasil existem e so relidas nopresente. (BOTELHO e SCHWARCZ, 2009, p.13).

    Assim, no podemos definir que pensamento X ou Y foi ultrapassado ou coisa do

    passado, todos influenciam e so influenciados em leituras constantes que so realizadas

    no presente.

    Em Cultura Brasileira e Identidade Nacional, Ortiz (2006) coloca Euclides da

    Cunha, Nina Rodrigues e Silvio Romero como os percussores do pensamento social

    brasileiro bem como do pensamento racial. Segundo o prprio autor:

    O discurso que construram possibilitou o desenvolvimento de escolasposteriores, como por exemplo a escola de antropologia brasileira,que, vinculada aos ensinamentos de Nina Rodrigues, adquire comArthur Ramos a configurao definitiva de cincia da cultura (ORTIZ,2006, p.14).

    Ou seja, estes trs autores seriam basilares para o pensamento que foi construdo e aindacontinua em fase de construo nos dias de hoje sobre a identidade brasileira.

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    No incio do pensamento social brasileiro, o conceito do negro no existia

    enquanto parte do Brasil. Alis, havia uma ausncia do brasileiro de origem africana

    no s no pensamento social, mas tambm em todas as reas, inclusive na artstica.

    Ortiz (2006) comenta este fato demonstrando que at um autor pouco progressista como

    Silvio Romero chega a comentar (e reclamar) deste que, segundo o prprio, era to

    prejudicial s Cincias Sociais.

    Somente com o movimento abolicionista e as transformaesprofundas por que passa a sociedade que o negro integrado spreocupaes nacionais. Pela primeira vez pode-se afirmar o que hojese constitui num trusmo, que o Brasil o produto da mestiagem detrs raas: a branca, a negra e a ndia (ORTIZ, 2006, p.38).

    Contudo, apesar da mestiagem j ser cogitada, ela vista de forma negativa eapontada por muitos como um dos principais, seno o principal, motivos do fracasso

    brasileiro. Havia at os que defendiam um embranquecimento do povo na tentativa de

    melhorar as chances de sucesso do pas.

    Evidentemente a negativizao no era a nica tendncia de pensamento sobre a

    mestiagem. Entretanto, aqueles que no a negativizavam no tinham fora suficiente

    dentro do cenrio ideolgico para impor a prpria voz.

    Ortiz coloca Gilberto Freyre como o pice e firmao definitiva da positivao

    da mestiagem: Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestio em positividade,

    o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que h muito

    vinha sendo desenhada (Ortiz, 2006, p.41).

    Freyre, em sua poca, teve a grande vantagem diante do pensamento local

    brasileiro de ter sado para estudar nos Estados Unidos, sob a orientao do renomado

    professor Franz Boas, que tinha como grande diferencial de seu trabalho o culturalismo.

    Ou seja, o orientador de Freyre, em seus estudos de sociedades, deixava de lado, ou

    dava menos importncia, o fator raa conceito ainda amplamente utilizado no Brasil

    por essa poca e inseria o fator cultural como motivador e esclarecedor dos

    movimentos sociais.

    Casa-Grande & Senzala(FREYRE, 2006), principal obra de Gilberto Freyre, a

    obra que rene com maior clareza embora falar de clareza seja um tanto quanto

    arriscado quando se trata desta obra aquilo que ns e Ortiz (2006) chamamos de

    positivao do mestio. Algo caracterstico deste livro sua capacidade de sntese, de

    unio.

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    ele une a todos, casa-grande e senzala, sobrados e mocambos. Por issoele saudado por todas as correntes polticas, da direita esquerda. Olivro possibilita a afirmao inequvoca de um povo que se debatiaainda com as ambiguidades de sua prpria definio. Ele setransforma em unicidade nacional. Ao retrabalhar a problemtica dacultura brasileira, Gilberto Freyre oferece ao brasileiro uma carteira de

    identidade (ORTIZ, 2006, p. 42).

    Percebemos com isso que o trabalho de Freyre vai alm da mera positivao da

    mestiagem e coloca-se em prol do prprio brasileiro, numa tentativa de unir a todos,

    sejam estes diferentes ou semelhantes entre si.

    Diante do que se afirmou sobre o Barroco no incio deste captulo, vemos como

    impossvel no comentarmos a aproximao deste percurso realizado por Freyre na

    unio dos diversos povos para formao dessa identidade nacional genuinamentemestia com a caracterstica barroca de aproximao de contrrios e, alm disso, para a

    caracterstica barroca de criao de simulacros4.

    Mesmo falando de povos, ou raas como Freyre por tantas vezes se refere em

    Casa-Grande & Senzalaevidentemente distintos em tantos aspectos, o autor utiliza-se

    do poder das palavras para a criao de um universo, de um territrio por vezes

    imaginrio, fantasiosoem que brancos, negros e ndios (estes em menor proporo e

    relevncia) vivem em um estado harmnico. Para o autor, a colonizao no Brasiladquiriu ares diferenciados do restante do mundo, criando laos entre colonizadores e

    colonizados:

    A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternizao entrevencedores e vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem deser relaes as dos brancos com as mulheres de cor desuperiores e inferiores e, no maior nmero de casos, de senhoresdesabusados e sdicos com escravas passivas, adoaram-se,entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos deconstiturem famlia dentro dessas circunstncias e sobre essa base. Amiscigenao que largamente se praticou aqui corrigiu a distnciasocial que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala (FREYRE,2006, p. 33).

    Laos estes completamente contraditrios, estabelecidos por meio da dominao, mas

    que, para Freyre, se adoam por meio do que os colonizadores tm de humano,

    representado na necessidade de constiturem famlia.

    4O que aqui consideramos simulacros a criao de um ambiente ficcional de tal forma que parea real.Ou seja uma realidade que, mesmo evidentemente ficcional, seja palpvel e concreta o suficiente para serreal.

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    Por essa caracterstica barroca, geradora de simulacros para estabelecimento de

    verdades, a obra de Freyre recebeu suas maiores crticas, muitas das quais aconteceram

    quando o autor ainda estava vivo. Entretanto, nenhuma dessas crticas foi forte o

    suficiente para retirar a importncia da obra e a tornar menor do que de fato ela .

    Devemos reconhecer, evidentemente, que a obra tem seus deslizes e que a

    gerao de simulacros como os propostos por Freyre no so cabveis em uma obra que

    se pretende cientfica. Entretanto, havemos de reconhecer que justamente essa

    caractersticae cremos que no arriscado dizeressencialmente barroca de Freyre

    que o torna grande e o que define sua posio na histria brasileira. Afinal, foi o seu

    simulacroresponsvel pela consolidao de uma identidade dentro e fora do Brasil

    que estabeleceu a importncia da mestiagem enquanto fator positivo para nossa

    formao e nos liberou de um estigma que perseguia a constituio de nosso povo.No nenhuma novidade afirmar que Casa Grande & Senzala, sua obra mais

    estudada e citada, um dos estudos fundantes da identidade brasileira. Tambm no

    nenhuma novidade afirmar que nesta obra o autor cria uma viso idlica sobre a

    colonizao portuguesa, como se todo o perodo de ocupao, povoamento e

    gerenciamento da colnia tivesse sido dotado de extrema harmonia entre portugueses,

    negros e ndios.

    Entretanto, mais importante do que estas afirmaes so as suas comprovaes ea compreenso de seus motivos. isso que tenta fazer Ricardo Benzaquen de Arajo

    em sua obra Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos

    anos 30 (ARAJO, 1994). Durante toda a obra, que uma verso de sua tese de

    doutorado, Ricardo faz uma leitura, e at certa medida um questionamento, das crticas

    ao trabalho empreendido pelo estudioso pernambucano. Para tanto, ele utiliza-se de

    elementos do contexto histrico-ideolgico da produo de sua obra mais popular.

    A ns interessa um captulo em especial do livro de Arajo (1994), o segundo,

    no qual o autor tenta compreender e (em certa medida) rebater a crtica a respeito da

    construo de um paraso tropical na obra freyriana, paraso este construdo, segundo

    o prprio autor, sob o elogio da miscigenao:

    A acusao de que Gilberto esboa em CGS, por intermdio do elogioda miscigenao, um quadro extremamente suave, edulcorado econsequentemente mistificador do nosso passado colonial ,realmente, das mais graves e recorrentes (ARAJO, 1994, p. 43).

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    Ele explicita que utilizar especificamente o captulo 3 de CG&S5 (Casa-Grande &

    Senzala), justamente o que trata da formao do povo portugus e suas caractersticas.

    Isso porque o conceito de miscigenao trazido principalmente neste captulo estaria

    intimamente relacionado ao conceito de mestiagem. Em um primeiro momento ele se

    detm a demonstrar que a mestiagem reconhecida por Freyre como no sendo

    exclusiva do povo brasileiro, mas tambm prpria do portugus, que o resultado da

    miscigenao entre diversas raas desde os perodos mais remotos. Em trecho do

    captulo estudado por Arajo (1994), encontramos as seguintes afirmaes de Freyre:

    Essa dualidade de formas de cultura caracterizaria a situao daPennsula, em geral, e do territrio hoje portugus [...].[...]

    Durante a poca histrica, os contatos de raa e de cultura, apenasdificultados, nunca porm impedidos pelos antagonismos de religio,foram em Portugal os mais livres e entre elementos os mais diversos(FREYRE, 2006, p. 279, 282).

    Na qual percebemos a noo do autor de que o povo portugus, era de fato o mais

    miscigenado da Europa, desde as suas mais remotas razes.

    importante salientar que todo o movimento intelectual empreendido por

    Arajo (1994) at este momento realizado levando-se em considerao apenas o

    conceito de miscigenao dentro de CG&S, independente da conceituao que outros

    estudiosos empreguem ao termo, da a total desconsiderao de outros estudos da poca

    de Freyre, ou at mesmo anteriores, sobre o mesmo assunto.

    Aps realizar um determinado percurso expondo pontos do terceiro captulo que

    comprovem a noo do portugus enquanto povo miscigenado, o autor conclui a

    respeito da concepo de mestiagem em Freyre:

    Essa concepo envolve, a meu juzo, uma compreenso damestiagem como um processo no qual as propriedades singulares decada um desses povos no se dissolveriam para dar lugar a uma novafigura [...] temos a afirmao do mestio como algum que guarda aindelvel lembrana das diferenas presentes na sua gestao(ARAJO, 1994, p. 44).

    5Como neste trecho de nosso trabalho precisaremos citar repetidas vezes a obra Casa Grande & Senzala,de Gilberto Freyre, optamos por abreviar tal ttulo sob a forma CG&S, com fins meramente pragmticosde tornar a leitura mais fluda.

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    Com isso, o crtico associa esta concepo de miscigenao trazida por Freyre a uma

    outra ideia j exposta no primeiro captulo, que a de que a obra freyriana marcada

    por ambiguidades, tal como acontece com a prpria definio do povo portugus.

    No restante do captulo, onde parte para a investigao da escravido segundo a

    tica de Freyre, Arajo (1994) tenta demonstrar que o que mais importa em CG&S o

    hibridismo caracterstico da colonizao portuguesa, um hibridismo que se encontra

    presente inclusive nas ambiguidades do prprio Freyre. Nas palavras do estudioso da

    obra freyriana:

    Assim, da mesma maneira que as distintas influncias tnicas eculturais conseguiam combinar-se separadamente no portugus, aviolncia e a proximidade sexual, o despotismo e a confraternizao

    familiar parecem tambm ter condies de conviver lado a lado, emum amlgama tenso, mas equilibrado (ARAJO, 1994, p.57).

    Antes de o miscigenado ser o resultado de uma unio inter-racial, ele

    essencialmente um ser hbrido, que mantm em seu cerne elementos de todos aqueles

    outros que participaram de sua constituio. Com essa viso, Freyre desbanca a antiga

    ideologia de desvalorizao da miscigenao por culpa de um certo enfraquecimento

    da raa e instaura na ideologia brasileira a noo de que justamente essa

    miscigenao o maior atributo do povo brasileiro.Gilberto Freyre se popularizou rapidamente e sua influncia foi decisiva na

    moldagem de vrios movimentos do incio do sculo XX. Alis, o incio do referido

    sculo foi bastante movimentado, com pelo menos dois eventos de grande importncia

    para os rumos culturais do pas. O primeiro deles, e talvez o mais significativo em

    escala nacional, foi a Semana de Arte Moderna de 1922. Este evento lanou as bases do

    movimento modernista e foi responsvel pela grande virada cultural brasileira.

    Finalmente a arte nacional deixou as slidas amarradas que por sculos manteve com ocontinente europeu e passou a enxergar o solo nacional como principal fonte de sua

    produo artstica. Evidentemente, as amarras no foram rompidas por completo, afinal,

    vrias foram as influncias de vanguarda no modernismo brasileiro. Entretanto, os

    princpios das vanguardas europias foram usadas sempre no intuito de trabalhar com a

    matria-prima nacional.

    No muito mais tarde, ainda dentro dos eventos relacionados ao Modernismo,

    Oswald de Andrade liderou o chamado Movimento Antropofgico, que pregava a

    absoro (e digesto) dos elementos estrangeiros junto com a cultura local. Algo que, de

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    certa forma, s intensificava uma posio do prprio Modernismo em relao cultura

    estrangeira.

    Isso mais uma vez nos remete ao incio deste captulo, quando citamos o caso de

    Gregrio de Matos, que, barroco como era, tinha caractersticas antropofgicas.

    Evocamos esse trecho de nosso trabalho, pra lembrar que o Modernismo, chegando no

    Brasil no incio do sculo, integra parte das iniciativas latino-americanas de definio

    das identidades locais. Por isso mesmo, acaba no sendo coincidncia a utilizao do

    modernismo no Brasil e, mais tarde, do Neobarroco como forma para a produo

    artstica. como se o barrocoo primeiro, o mesmo de Gregrio de Matosfosse uma

    rvore frondosa que lana seus galhos ao longo da histria da Amrica Latina e deixa

    embries que frutificam em tentativas e mais tentativas de definies identitrias.

    Em paralelo ao Movimento Modernista inaugurado pela popular Semana de1922, ocorreu, sob liderana de Gilberto Freyre, um evento de natureza regionalista,

    com presena de vrios intelectuais da poca e no qual foi lido o Manifesto

    Regionalista. O evento e o manifesto serviram de base para o que se chamou de

    Movimento Regionalista. Diferente do Modernismo, o Regionalismo6 pregava total

    desprendimento das influncias estrangeiras e pregava um olhar focado apenas na

    cultura nacional, mais especificamente na cultura do interior do Nordeste.

    Os seguidores desta corrente justificam a busca pela cultura do interior porqueesta seria a fonte mais confivel da genuna cultura nacional. O interior, estando mais

    isolado pela falta de tecnologia e dificuldade de acesso, manteria a cultura intacta,

    distante das culturas estrangeiras e, sendo a cultura estrangeira a principal causa de

    degradao da cultura nacional, o interior nordestino justamente por o Nordeste ser

    um reduto afastado do progresso o ideal a ser alcanado para perpetuao da nossa

    verdadeira cultura e identidade.

    Na segunda metade do sculo XX, em plena ditadura militar, o Tropicalismo

    reviveu os ideais modernistas com ainda mais vigor. Utilizando-se da traduo de

    elementos estrangeiros e nacionais lanou as bases para a produo cultural que temos

    at os dias de hoje. Apesar de ter nordestinos no ncleo base de sua idealizao e

    execuoGilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Z, s pra citar alguns o Tropicalismo

    teve as regies sul e sudeste, ento principais eixos de desenvolvimento do Brasil, como

    vitrine para o resto do pas e do mundo.

    6Devemos salientar que o regionalismo a que aqui nos referimos o movimento de 1930, que, comoressaltamos foi liderado por Gilberto Freyre.

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    Ainda na segunda metade do sculo XX, especificamente no ano de 1970, o

    dramaturgo Ariano Suassuna iniciou no Nordeste o Movimento Armorial, que tinha

    como um de seus objetivos revigorar e perpetuar a genuna cultura nacional. Assim

    como o Movimento Regionalista, o Armorial em sua base ideolgica renega qualquer

    influncia estrangeira.

    interessante observar como estes dois movimentos se aproximam primeira

    vista dos movimentos do incio do sculo, o Tropicalismo mais para o Modernismo e o

    Armorial mais para o Regionalismo, sendo que o que os diferencia so os mesmos

    elementos essenciais: aproveitamento ou total desprendimento da influncia estrangeira

    contempornea.

    No Armorial bem clara a existncia de um elemento cultural estrangeiro: o

    barroco ibrico. Segundo o prprio idealizador do Movimento Armorial, ArianoSuassuna, tal fato ocorre porque o barroco a base para as principais manifestaes de

    cultura popular que encontramos. Este estilo seria o gene principal de nossa genuna

    cultura, pois a partir dele e o recriando que a arte popular se manifesta.

    At onde nos foi possvel averiguar, nos trabalhos e colunas publicadas por

    Suassuna no h referncia clara aos idealizadores do que comentamos at agora como

    neobarroco. Entretanto, as circunstncias temporais e os motivos so to coincidentes

    que fica fcil acreditar numa vinculao intencional ou ao menos numa influncia nopensamento do escritor paraibano das ideias desse movimento estabelecido na Amrica

    Latina. Para comprovarmos isso, basta observarmos dois fatores: a) a preocupao do

    Armorial essencialmente com a identidade cultural brasileira e b) o Armorial acontece

    algumas dcadas aps a difuso das ideias de Sarduy.

    Como temos observado at aqui, o barroco uma influncia artstica que vem

    permeando toda a produo cultural brasileira ao longo dos sculos. Quando se busca

    uma definio identitria para o pas, muito comum encontrarmos caractersticas desse

    estilo mesmo que inconscientemente que apontem para uma possibilidade real de

    definio. Assim aconteceu com os primeiros pensadores sociais, que vimos com base

    no trabalho de Ortiz (2006), assim aconteceu com o pensamento e a estrutura adotada

    por Freyre, e assim se repetiu no Modernismo, no Regionalismo, no Tropicalismo e no

    Armorial. No caso deste ltimo, de uma forma ainda mais clara que nos outros, j que o

    barroco nele apontado claramente como o gene da cultura brasileira.

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    1.3. Movimento Armorial: a atualizao nordestina do neobarroco

    Conforme vimos no primeiro ponto deste captulo, o neobarroco instaura na

    Amrica Latina a noo da unio de contrrios, algo necessrio para a definio

    identitria de povos que possuem tantas diferenas dentro de suas comunidades. Desta

    forma, o poder de sntese e de unio dos contrrios instaura uma unio das diferenas,

    que entrega ao continente uma identidade cultural e artstica h tanto tempo buscada.

    Claramente filiado ao barroco ibrico mas no explicitamente ao neobarroco

    de Sardu o escritor paraibano Ariano Suassuna coloca como um dos ncleos

    emblemticos do Movimento Armorial a noo de que o povo brasileiro miscigenado

    em essncia, uma ideia que o escritor j vinha amadurecendo h tempos, como pregamalguns dos estudiosos de sua obra, a exemplo de Newton Junior (1999), e como

    podemos perceber na sua tese de livre-docncia (SUASSUNA, 1976).

    Apesar de sempre fazer questo de declarar abertamente o seu distanciamento da

    ideologia freyrianaprincipalmente no tocante opinio acerca do sertanejo enquanto

    tpico brasileiro a tese de Suassuna tambm parte do princpio cultural adotado por

    Freyre e v na mestiagem a grande vantagem do povo brasileiro. Assim como tambm

    acontece em Casa Grande, o autor da Pedra do Reino(SUASSUNA, 2007) adota emsua obra uma postura que visa demonstrar o quanto vantajoso para os povos

    castanhos a unio de contrrios, a miscigenao.

    O contraditrio do pensamento de Suassuna, bem como do prprio Freyre,

    enxergar na influncia estrangeira moderna um mal, e apenas na influncia estrangeira

    do passado algo valoroso. Para ambos, a formao da identidade nacional vista no

    como processo constante, mas como um resultado findo que deve ser conservado a

    qualquer custo. A entrada do elemento estrangeiro modernizante seria um deturpador

    da nossa identidade e, portanto, um mal a ser evitado.

    Logo no incio de seu trabalho, Suassuna (1976) se ocupa de definir

    caractersticas para diversos povos. As definies do autor paraibano so limitadas e

    passveis de questionamento, principalmente porque, adotando um ngulo culturalista, o

    autor ignora o quanto estes conceitos sobre cada povo esto permeados de esteretipos

    construdos ao longo de sculos por historiadores, artistas e pensadores. Nos diz

    Suassuna, que os povos castanhos e insulares so ao mesmo tempo apolneos e

    dionisacos, solares e noturnos, numa sntese entre opostos que nos lembra de imediato

    a premissa barroca. O autor ainda complementa afirmando que, diferente dos povos

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    frios do norte da Europa, os povos castanhos so mais danarinos e musicais do que

    reflexivos. O autor ressalta que o fato de serem esses povos mais danarinos e musicais

    do que reflexivos no significa necessariamente uma desvantagem. Citando Nietsche, a

    quem ele chama de um castanho nascido entre os povos frios, esclarece que o excesso

    de razo muitas vezes prejudica o progresso, bem como classifica os povos castanhos

    como mais performticos, capazes de se expressar mais pela performance do que pelo

    isolamento.

    Ao definir os povos castanhos, que seriam povos essencialmente misturados

    advindos no norte da frica e da pennsula ibrica, Suassuna (1976) prossegue

    afirmando que mais castanho ainda se tornou o povo brasileiro que mistura dos j

    castanhos portugueses foram acrescentados os elementos negros e indgenas.

    O autor ento tenta sintetizar o povo brasileiro em poucas palavras:

    [...] reduzindo essas caractersticas mais marcantes do Povo brasileiroa uma s, que resume todas: trata-se, a meu ver, da unio decontrrios, da tendncia para assimilar e fundir contrastes numasntese nova e castanha que d unidade a uma complementaridade deopostos (SUASSUNA, 1976, p. 4).

    Ora, nada mais apropriado para os ideais barrocos do que um povo que tem como

    principal caracterstica a miscigenao. Suassuna (1976) percebe isso e logo em seguidacomenta que o barroco [...] um estilo contraditrio e totalizante, por ser a primeira

    manifestao romntica de dissoluo do Clssico (SUASSUNA, 1976, p.7).

    Essa noo de dissoluo do Clssico, como coloca o autor, condiz

    perfeitamente com aquilo que j vimos no tpico anterior deste captulo. Quando o

    neobarroco comea a tomar forma enquanto estilo prprio da expresso artstica latino-

    americana, justamente essa noo de dissoluo do clssico que os intelectuais da

    poca pretendiam. Afinal, estando a Amrica Latina margem do mundo artstico ento centrado na Europarestava apenas destruir o clssico institudo para instaurar a

    sua prpria ordem.

    O autor paraibano sabe da margem em que se encontra o Brasil dentro do

    cenrio global e sabe mais ainda da situao marginal da cultura nordestina dentro dessa

    margem que j o nosso pas. Por isso, ele lana mo do barroco, assim como fizeram

    os artistas latino-americanos, na tentativa de desconstruir a viso instaurada, de romper

    a viso clssica de que a cultura de valor sempre vem de fora, para estabelecer no serto

    as verdadeiras razes da cultura brasileira, e, para alm disso, estabelecer esta cultura

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    enquanto dotada de valores e atributos universais que tambm esto presentes nas mais

    elogiadas obras da cultura mundial.

    Suassuna no se mede publicamente em tecer elogios ao barroco e evidenciar a

    influncia deste estilo na sua obra como um todo e tambm nas proposies artsticas do

    prprio Movimento Armorial. Em texto sobre a arte popular brasileira (SUASSUNA,

    2008a), comenta:

    O Barroco, com sua capacidade dialtica de unir contrastes,introduz s vezes o esprito popular na Literatura erudita. Surgem,ento, os romances em verso de Gngora ou as novelas picarescascomo o Lazarilho de Tormes. [...]No caso do Brasil, a situao muito semelhante. A causa principal dadiscriminao, aqui, o encontro cultural que nossa formaopropiciou, com a cultura europeia dominando entre os Senhores e coma negra e a indgena formando a base da cultura do Povo. verdadeque imediatamente o nosso Povo comea a recriar e reinterpretar oBarroco ibrico de um modo brasileiro, tosco, mestio [...](SUASSUNA, 2008a, p.153-154).

    No trecho citado podemos perceber toda a importncia que o autor v no barroco

    e sua justificativa enquanto elemento essencial daquilo que ele chama de cultura

    popular brasileira. O prprio escritor paraibano fala do poder sintetizante de contrrios

    do povo brasileiro, que de um modo at natural comea a recriar e reinterpretar o

    estilo artstico europeu a seus moldes.

    Neste ponto, podemos trabalhar com clareza a aproximao de dois conceitos

    que estamos trabalhando: barroco e mestiagem, ambos complementares,

    principalmente no Brasil. Aqui tambm conseguimos entender porque no h uma

    filiao clara de Suassuna ao movimento neobarroco. Para este autor, o barroco j foi

    reinventado dentro das razes da cultura popular brasileira, assim, ele nega (ou sequer

    nota) a influncia acadmica produzida pelos artistas e intelectuais latino-americanos

    na segunda metade do sculo XX.

    Prosseguindo no j citado texto, Suassuna continua com uma srie de

    comparaes a autores clssicos da literatura com elementos da cultura popular, como,

    por exemplo, Gil Vicente e o Bumba-meu-boi. O autor no fim desse seu ensaio se refere

    peculiaridade da arte popular e a define:

    A cultura popular feita pelo Povo, pelo quarto-Estado, aqui

    identificado com os analfabetos ou semi-analfabetos. o conjunto dosespetculos como o Bumba-meu-boi, dos versos do Romanceiro, doscontos orais, das xilogravuras das capas dos folhetos das esculturasem barro queimado, das talhas, dos ornamentos, das bandeiras e dos

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    estandartes de cavalhadasenfim, de tudo aquilo que o Povo cria paraviver ou para se deleitar e que, tendo sido criado margem dacivilizao europeia e industrial, , por isso mesmo, mais peculiar esingular (SUASSUNA, 2008a, p. 156).

    A partir dessas consideraes, abrimos espao para a introduo de um aspecto

    fundamental de sua obra: o Movimento Armorial. Conforme percebemos no trecho

    anterior, Suassuna define a cultura popular essencialmente como um produto do

    Povo, o quarto-Estado, que, segundo o prprio, seria constitudo essencialmente por

    analfabetos ou semi-analfabetos, ou seja, pessoas com pouca escolaridade.

    Como j afirmamos em outro ponto deste captulo, a premissa base de Suassuna

    e de tantos outros pensadores que o precederam ou a ele se filiaram de que a genuna

    cultura brasileira a cultura popular. Evidente que dentro desta definio de cultura

    popular, mesmo seguindo o conceito passado pelo prprio Suassuna, no se enquadra

    outras produes do Povo que possua alguma influncia de elementos de culturas

    estrangeiras. Para ser a genuna cultura popular, a nica influncia estrangeira aceitvel

    a vinda com portugueses e espanhis na poca da colonizao.

    Assim sendo, e ainda segundo a tica do Movimento Armorial, dentro do nicho

    da cultura popular, uma cultura que est ainda mais prxima da verdadeira e genuna

    cultura nacional a cultura sertaneja. Como j dissemos, justamente por ser o serto

    uma parte isolada do pas, distante do avano tecnolgico e, quase que por

    consequncia, das influncias estrangeiras. Vale lembrar que Suassuna assumidamente

    contra o avano tecnolgico e continua, at hoje, a produzir sua obra toda mo, sem

    uso sequer de mquina de datilografar.

    Com essa noo de cultura popular enquanto o elemento essencial da cultura

    nacional brasileira, Suassuna empreende a partir de 1970 o chamado Movimento

    Armorial, que em termos simples podemos dizer que se pretende uma revitalizao da

    cultura popular por vias eruditas ou uma apropriao clssica da cultura popular.O Movimento Armorial teve incio oficialmente em 18 de outubro de 1970, na

    cidade de Recife (PE), conforme nos mostra Newton Jnior (1999). De acordo com o

    estudioso, o movimento foi lanado com um concerto da Orquesta Armorial de Cmera

    e uma exposio de gravuras, pinturas e esculturas.

    Na poca de lanamento, pouca ateno foi dada ao Movimento pela imprensa

    em geral. Apenas um ano aps o seu lanamento que o resto do pas e at mesmo do

    Nordeste comea a tomar conhecimento do Movimento Armorial, tudo devido a umasrie de excurses que o prprio Suassuna passou a fazer com a Orquestra Armorial a

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    fim de divulgar a produo artstica dos que a ele aderiram, eram as chamadas aulas -

    espetculo.

    Podemos dizer que o sucesso da excurso representou o lanamento,

    em nvel nacional, do Movimento Armorial. A partir dela, de fato, oMovimento comeou a ser conhecido e divulgado para alm dasfronteiras do que Suassuna considera o corao do Nordeste Pernambuco, Paraba e Rio Grande do Norte (NEWTON JNIOR,1999, p.85-86).

    Para definir o movimento, sua premissa bsica e seus ideais, devemos pensar

    primeiro no porqu do nome Armorial. Pra entender, citemos mais uma vez Newton

    Jnior (1999,p. 86-87)

    Armorial, em nosso idioma, era somente substantivo: livro ondevm registrados os brasesuma palavra ligada herldica, portanto.Ariano Suassuna, idealizador do Movimento, passou a emprega-latambm como adjetivo. Criou, assim, um neologismo para identificara arte que defendia e defende, uma arte erudita que, baseada nopopular to nacional quanto a arte popular, elevando-se importncia desta e conseguindo manter, com ela, uma unidadefundamental para combater o processo de vulgarizao edescaracterizao pelo qual vem passando a cultura brasileira.

    Ou seja, o Movimento Armorial formulado por Suassuna com o intuito essencial demanter viva a cultura nacional diante do processo de vulgarizao e descaracterizao

    pelo qual vem passando a cultura brasileira. Para isso, os artistas armoriais se munem

    da produo popular e a recriam dentro dos moldes eruditos, dando a essa nova

    produo uma importncia e validade identitria to genuna quanto a prpria cultura

    popular.

    nesse ponto que Suassuna recebe as mais negativas crticas ao seu

    pensamento. Defensor da cultura popular nordestina, Suassuna v toda influnciaexterna contempornea como sendo uma vulgarizao. uma posio radical, que

    estabelece como ideal a ser seguido apenas uma arte clssica, que funciona muito bem

    dentro da histria da arte, mas no tem muito sentido em um mundo modernizado e

    tecnolgico como o que vivemos nos sculo XX e continuamos ainda mais a viver no

    sculo XXI.

    Os modernistas entenderam a necessidade da simbiose de culturas e de suas

    vantagens, principalmente Oswald de Andrade, assim como entenderam ainda mais os

    Tropicalistas, que levaram ao extremo a mistura entre os elementos culturais mais

    diversos.

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    Porm, Suassuna se mantm como um Rei, o mesmo Rei degolado de sua obra,

    A Pedra do Reino, tentando defender seu castelo diante das invases brbaras. H em

    Suassuna o mesmo esprito saudosista que encontramos em Gilberto Freyre. Este via

    nas antigas casas-grandes e senzalas uma poca gloriosa a que ele no tinha mais acesso

    porque j estava em vias de extino. J o escritor paraibano, membro de uma das mais

    poderosas famlias da Paraba, v ainda criana o poder de sua famlia se esvair diante

    das investidas de polticos progressistas. Perseguidos, seus familiares fogem para

    Pernambuco, seu pai assassinado e fica em Suassuna uma necessidade de reviver um

    passado que durou pouco demais para t-lo satisfeito e que acabou rpido o suficiente

    para deixar o desejo de revitalizao desse passado. Nesse desejo saudoso, o progresso,

    a produo cultural que vem com ele e as inovaes tecnolgicas so os inimigos a

    serem combatidos, justamente porque esse progresso que destri as possibilidades derevitalizao e manuteno do passado idealizado.

    O Movimento Armorial em si uma tentativa de revitalizao de um passado.

    Sabemos que a cultura um elemento dinmico e que formas artsticas vm e vo de

    acordo com as necessidades da poca. Entretanto, isso no significa que o Armorial seja

    um equvoco, muito pelo contrrio. Junto com outras produes da sua poca ele

    tambm atendeu uma necessidade e teve seu papel dentro da cultura contempornea

    nacional.O msico e compositor Chico Science, muito conhecido nos anos 1990 pela

    ampla divulgao a nvel nacional do movimento conhecido como Manguebeat

    reconheceu vrias vezes sua filiao aos apontamentos armoriais, como diz o prprio

    Suassuna em entrevista contida na edio do Cadernos de Literatura (SUASSUNA,

    2000) a ele dedicado. Nesta mesma entrevista, Suassuna afirma que no concordava

    com Science na valorizao de elementos da cultura estrangeira que o escritor paraibano

    classifica enquanto lixo cultural, como o rock.

    Diferente do que aconteceu nos movimentos de vanguarda, no Armorial no

    tivemos um manifesto.

    Quando se fala em um movimento, pensa-se, logo, em um grupo deintelectuais reunidos para escrever um manifesto, para ento, a partirda, surgirem obras que expressem friamente as reflexes tericas dogrupo. Nada disso pode ser vinculado ao Armorial. Primeiro porque,neste caso, a arte armorial precedeu o prprio Movimento. De fato,muito antes do lanamento oficial do Movimento, vrios artistas,

    intuitivamente ou no, j trilhavam o caminho que mais tarde seriaanunciado como bandeira do Armorial [...] (NEWTON JUNIOR,1999, p.88).

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    Como vemos no trecho citado, a ideia era que o Armorial agregasse os artistas

    que j mantinham essa orientao em comum sem ser necessrio a exposio de um

    manifesto ou elaborao de uma espcie de manuala ser seguido.

    Entretanto, apesar da inexistncia de um Manual e de um manifesto, vrias

    concepes de arte guiam o trabalho daqueles artistas que se agregam ao Movimento.

    Apenas em 1974 que Suassuna publica uma coletnea de suas colunas publicadas no

    Jornal da Semana, na qual falava sobre os ideais armoriais. Em essncia, a arte

    armorial de base popular, porque, para seus seguidores, o popular a base do

    nacional. Newton Junior (1999) nos fala da problemtica em se aliar popular nacional

    diante da viso de que esta uma postura retrgrada e esclarece que, para Suassuna, a

    questo da arte popular e da arte erudita tpica de culturas constitudas por povos quedominam outros. A arte popular, no caso do Brasil, identifica-se com aqueles elementos

    do nosso povo mantidos, de qualquer forma, desde o sculo XVI, margem da cultura

    oficial. So os descendentes mais escuros de ibricos pobres, negros e ndios

    (SUASSUNA, 1986 apud NEWTON JUNIOR, 1999, p.101-102).

    Definir uma arte como erudita ou popular no atribuir qualidade, mas sim

    distinguir diferentes categorias. Da mesma maneira, filiar-se a uma ou a outra no

    questo de escolha, mas de formao. Um determinado artista que tenha formaoerudita no poder, mesmo que queira, fazer arte popular. O que ele pode fazer ligar-

    se de alguma maneira ao popular, em busca de uma unidade nacional (NEWTON

    JUNIOR, 1999, p. 104).

    Nesses termos, havemos de considerar a coerncia do escritor paraibano em

    definir aqueles que participam de seu movimento. Os artistas armoriais no produzem

    arte popular, mas sim se utilizam desse tipo de arte para produzir algo nos moldes

    acadmicos. O prprio Suassuna faz questo de no ser classificado enquanto escritor

    popular, afinal, ele em sua posio de ex-professor universitrio e fomentador cultural

    que tantas vezes ocupou importantes cargos pblicos em Pernambuco est longe de ser

    um semi-analfabeto, premissa bsica, segundo o prprio, para a produo de cultura

    popular.

    O Movimento Armorial possui pelo menos trs fases bem definidas e que

    condizem com a forma que ele foi assumindo ao longo do tempo. Assim que surgiu, por

    querer agregar um nmero cada vez maior de artistas, o Movimento acabou assumindo

    muitas incoerncias e at desvios. Essa, de 1970 a 1975, Suassuna chamou de

    experimental (NEWTON JUNIOR, 1999). Nesse perodo, houve a adeso de muitos

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    artistas ao Movimento, muitos dos quais no possuam tanta qualidade artstica, mas

    que mesmo assim eram muito bem recebidos pelo idealizador e tinham seus trabalhos

    divulgados. Em citao trazida por Newton Jnior (1999, p. 92), Suassuna explica:

    [...] na primeira fase, eu tive que comear vrias coisas de qualquermaneira, fechando deliberadamente os olhos para certos adesismos,improvisaes, artificialismos e equvocos, algumas vezes graves. [...]Bastaria o aparecimento de Antnio Jos Madureira, do QuintetoArmorial e da Orquesta Romanal Brasileira para justificar todo oresto do trabalho. No esquecer, por outro lado, que Gilvan Samicoprestigiou o movimento, que se engrandeceu com seu nome,respeitado por todo mundo. O tempo vai depurando tudo: uns, deixamo Movimento porque, de fato, nunca se interessaram verdadeiramentepela Cultura brasileira; outros porque, mais sensveis s modas e scrticas, resolveram tomar outros caminhos; outros porque tm o

    temperamento mais solitrio, e assim por diante.

    A segunda fase do movimento, denominada Romanal (de 1975 a 1981),

    considerada a mais madura, tendo na Orquestra Romanal e no Bal Armorial os

    grandes expoentes da produo. Na terceira, a Arraial, iniciada a partir dos anos 1990,

    h uma influncia dos folguedos e festas populares na obra de todos os artistas

    integrantes.

    Hoje o Movimento Armorial tem no artista Antnio Nbrega e na figura do

    prprio Suassuna seus maiores expoentes. Apenas para termos uma ideia, um site da

    web que agrega vdeos mandado por usurios o Youtube possui inmeros vdeos

    protagonizados pelo idealizador do Movimento Armorial em inmeras aulas-espetculo.

    Uma doce ironia, j que justamente a tecnologia, to criticada pelo autor paraibano,

    que ajuda na difuso de seus ideais.

    Ao longo deste captulo vimos as caractersticas do barroco, seu ressurgimento

    no sculo XX, seus principais pensadores e idealizadores, bem como suas diversas

    apropriaes seja de forma explcita ou no no Brasil e na Amrica Latina.

    Suassuna, enquanto autor comprometido com a revitalizao da cultura popular (ou

    genuinamente brasileira) tambm se filia ao neobarroco, mesmo sem citar essa filiao,

    ao estabelecer o barroco como uma essncia da cultura popular que ele prope

    revitalizar.

    A filiao ao neobarroco corresponde no pensamento de Suassuna com a sua

    concepo do povo brasileiro enquanto uma raa castanha, ou seja, dotada de

    caractersticas mestias prximas ao estabelecido por Freyre. Um povo que mantmelementos das mais diversas culturas, reunindo em um todo partes que muitas vezes so

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    antagnicas, mas que no prejudicam a hegemonia geral, assim como acontece com o

    prprio barroco, estilo dos paradoxos por essncia.

    Para promover o ideal barroco nas artes e na cultura brasileira em geral,

    Suassuna torna-se o grande fomentador do Movimento Armorial, que se prope a fazer

    releituras da cultura popular por meios clssicos. Tal movimento, apesar de controverso,

    deixou suas marcas na cultura brasileira em geral e marcou fortemente principalmente a

    produo literria de Suassuna, como acontece com a obra que nos propomos analisar:

    O Romance da Pedra do Reino.

    No captulo seguinte, pretendemos iniciar a anlise da obra,A Pedra do Reino,

    luz essencialmente do neobarroco e do dilogo desta vertente artstica com o

    Movimento Armorial. Entendendo os paradoxos, a parodizao e a carnavalizao,

    acreditamos que poderemos entender tambm a essncia da prpria obra de Suassuna, oque nos levar, consequentemente, a entender a concepo do autor a respeito da

    identidade nacional.

    Antes de prosseguirmos, devemos salientar que haver em nossa anlise um

    afunilamento desse conceito identitrio. Apesar de sempre se referir a identidade

    nacional, sabemos e entendemos que da identidade nordestina que Suassuna est

    falando. Assim, sempre vamos nos referir a identidade nordestina em nossa anlise,

    muito embora dentro do prprio livro seja a identidade brasileira que seja trabalhada ereforada. Como j ressaltamos ao longo deste captulo, o Brasil tanto por suas

    dimenses continentais, como por seu complexo processo de formao formado por

    inmeros povos que clama, com direito, cada um a sua prpria identidade. Dizer que a

    representao tipicamente nordestina deA Pedra do Reino um exemplo da identidade

    nacional como um todo, um reducionismo que Suassuna comete e ns no precisamos

    repetir.

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    FOLHETO II

    O caso de Quaderna, sua obra e a representao da identidade

    A partir deste ponto de nosso trabalho, iniciaremos a anlise propriamente dita.

    Destacando trechos e elementos da obra, pretendemos evidenciar os traos constitutivos

    da identidade nacional presente no livro e o quanto esta identidade corresponde aos

    ideais ou caractersticas da esttica barroca.

    Investigar um romance como aPedra do Reinono uma tarefa fcil, tanto pela

    sua extenso quanto pela variedade de elementos. Para guiar nossa investigao

    precisamos de um ponto concreto ao qual poderemos nos prender e dele extrair o

    mximo possvel de elementos passveis de investigao. A escolha de um nico pontose justifica por preferirmos levantar elementos coerentes, inter-relacionados, que

    passem em si uma vista ampla da homogeneidade da obra de Suassuna.

    Quaderna o grande foco da obra e em torno dele que ela construda.

    Conforme veremos, cada detalhe do romance tecido em volta de seu narrador e sua

    trajetria identitria. Por isso, torna-se quase impossvel fugir da escolha de Quaderna

    como o pilar de nossa anlise. Quando colocamos seu narrador no foco da investigao,

    a obra do escritor paraibano funciona como um romance de formao. A vida destepersonagem, suas ideias e motivaes so temas recorrentes em toda a narrativa.

    Percebemos ao longo do romance a formao da identidade desse personagem e, mais

    que isso, como essa identidade uma representao em microescala da identidade

    nordestina defendida por Suassuna e que tem na filiao ao barroco nossa hiptese de

    trabalho. Assim, sempre que estivermos falando de Quaderna tambm do nacional que

    estamos falando. Ao passo que formos analisando este personagem, vamos tambm

    evidenciar o quanto esta relao que propomos pertinente, afinal, o prprio

    personagem que tantas vezes se coloca como o genuno brasileiro ao longo de narrao.

    Neste captulo optamos pela diviso em dois aspectos: o primeiro tratando do

    romance em sua estrutura e o segundo mais focado em Quaderna, do qual iremos extrair

    boa parte do contedo de nossa argumentao.

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    2.1 O romance e sua estrutura

    O Romance dA Pedra do Reino e o Prncipe do Sangue do Vai-e-Volta o

    primeiro romance escrito por Ariano Suassuna a ser publicado. Datada de 1971,um ano

    aps o lanamento do Movimento Armorial, esta a sua obra mais extensa. O Romance

    dA Pedra do Reino uma obra ficcional, ambientada no serto paraibano, mais

    especificamente em Tapero e regio fronteiria entre Paraba e Pernambuco. Apesar de

    tratar-se de uma fico, a obra traz em seu mote narrativo fatos conhecidos da histria

    brasileira. O personagem principal e narrador da obra ou ao menos assim se

    proclamabisneto da principal figura envolvida no, assim chamado, massacre da Pedra

    Bonita. Segundo relatos do prprio personagem, o seu av teria escapado ainda beb,aps nascer no exato momento em que sua me foi degolada pelo Rei da Pedra

    Bonita, que por sua vez era pai deste e bisav do personagem-narrador.

    Seu av cresceu sob os cuidados de um padre, que suprimiu o sobrenome

    Ferreiramais conhecido quando o assunto era o massacre na pedra e registrou o

    menino apenas com o sobrenome de Quaderna, muito menos conhecido que o primeiro.

    Para completar toda a herana real do personagem, o pai deste portanto, filho do

    beb que teve o sobrenome Ferreira suprimido casou-se com a irm de um poderosofazendeiro do serto paraibano, Sebastio Garcia Barreto. Desse casamento nasceu,

    entre outros tantos irmos, Pedro Dinis Ferreira Quaderna, o nosso narrador, que, sendo

    descendente dessas duas linhagens, se acha no direito de se proclamar herdeiro do

    verdadeiro trono do Brasil.

    A princpio tudo pode parecer confuso e podemos acreditar que Quaderna

    simplesmente um louco megalomanaco, entretanto, o modo como o discurso narrativo

    constitudo nos ajuda a entender o personagem e at simpatizar com suas nobres

    causas. Toda a obra focada em seu narrador, apesar desta por ele ser elaborada e ter

    como principal objetivo narrar uma aventura pica e inigualvel que o consagraria como

    o gnio da raa algo que ser melhor compreendido apenas adiante, quando

    adentrarmos nestes pormenores. Vejamos como o livro est organizada estruturalmente

    e como se configura o prprio personagem principal na estrutura narrativa.

    A Pedra do Reino um livro robusto, de 754 pginas em sua nona edio, e

    composto por cinco Livros. No devemos achar que esta diviso em livros seja algo

    prximo a algumas investidas contemporneas de fragmentao da narrativa. O padro

    narrativo permanece clssico e a mesma histria segue ao longo dos cinco livros. O que

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    vai distinguir cada uma dessas divises menores apenas a temtica abordada por cada

    uma dessas partes.

    O Livro I uma apresentao do personagem principal, com contextualizao

    bsica de sua condio atualpreso na cadeia pblica de Tapero. Aps isso, temos boa

    parte desta parte dedicada formao de Quaderna sua infncia e educao os

    caminhos que o levaram a se entender enquanto membro de uma linhagem real e

    explorao da histria de sua famlia paterna, os reis da Pedra do Reino. Aqui vemos o

    Quaderna menino procurando entender a desordem da sua famlia e se encantando pelos

    elementos da cultura popular que tanto venera.

    O Livro II descreve a relao de Quaderna com seus professores Samuel e

    Clemente e sua ascendncia materna, a filiao famlia dos Garcia-Barreto. Neste

    livro, entendemos as aspiraes rgias de Quaderna e acompanhamos sua formaointelectual. Aqui comeam a serem delineados os traos ambguos de seu carter,

    sempre caminhando entre a esquerda-extremista de Clemente e a direita-conservadora

    de Samuel.

    No Livro III tem incio o maior conflito da obra e o principal mote de progresso

    da narrativa: o inqurito ao qual Quaderna submetido e que est relacionado morte

    de seu tio e padrinho, Sebastio Garcia Barreto morto a facadas enquanto estava

    trancado em uma torre a quem ningum poderia ter acesso. O depoimento possui umtom de confisso ou at mesmo de sesso psicanaltica se assim podemos dizer. Tal

    qual um paciente sendo analisado, Quaderna vai sendo interrogado de tal forma que

    comea a se desdobrar. Segundo a psicanlise, justamente aquilo que no

    queremos dizer que mais importa (FINK, 1998). Alm disso, apesar de reconhecermos

    em outras passagens da obra as contradies de Quaderna, no depoimento ao

    corregedor que vemos o seu carter redondo, conforme a conceituao de Forster

    (1985)7. Para o terico, os personagens podem ser divididos em redondos e planos, os

    redondos sendo personagens previsveis, de comportamento uniforme, enquanto os

    redondos so personagens que surpreendem o leitor pelo seu comportamento,

    aproximando-se, segundo o prprio Forster (1985), mais da natureza humana. Assim,

    Quaderna comea a dizer coisas que no queria dizer. Neste trecho da obra, o prprio

    7No original: The test of a round character is whether it is capable of surprising in a convincing way. If

    it never surprises, it is flat. If it does not convince, it is a flat pretending to be round. It has theincalculability of life about itlife within the pages of a book. And by using it sometimes alone, moreoften in combination with the other kind, the novelist achieves his task of acclimatization and harmonizesthe human race with the other aspects of his work (FORSTER, 1985, p. 78).

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    leitor apresentado a uma face do personagem queapesar de j conhecidano tinha

    se mostrado de forma to explcita e agressiva: o mentiroso.

    O foco do inqurito, at ento dedicado chegada de Sinsio filho de

    Sebastio Garcia Barreto e sobrinho-primo de Quaderna (porque era filho do padrinho

    com a irm do narrador) passa a ser o prprio Quaderna a partir do Livro IV.

    Deixamos de prestar ateno aos fatos que cercam a chegada do rapaz do cavalo

    branco e passamosa enxergar apenas os atos do narrador.

    Neste livro o corregedor se ergue narrativamente como o grande antagonista

    do personagem-narrador e arranca destes fatos que o leitor sequer tinha conscincia da

    existncia. Esta parte da obra tem uma importncia significativa por contribuir para a

    revelao da farsa narrativa de Quaderna e nos fazer mergulhar com mais intensidade

    em suas ambiguidades.O Livro V intensifica as revelaes do personagem e nos mostra melhor a

    faceta enganadora do narrador. Submerso em sua prpria narrativa, Quaderna se desfaz

    de suas mscaras e revela para o corregedor fatos que at ento tinha ocultado de todos,

    inclusive do leitor.

    Como podemos perceber, apesar da pretenso de Quaderna ser a abordagem da

    saga dos filhos de seu padrinho aps sua morte o caso do rei degolado o prprio

    narrador que se torna o foco maior da narrativa. Assim, fica fcil entender porqueescolh-lo como nosso objeto de anlise.

    Ainda no plano estrutural, e alm da diviso em Livros, A Pedra do Reino

    evidencia toda sua intertextualidade com a literatura popular ao adotar Folhetos ao

    invs de Captulos. A respeito desta presena de elementos da cultura popular na obra,

    h trabalhos como o pioneiro estudo de Lind (1974) e a pesquisa de Moura (2002).

    O trabalho de Lind (1974) se deteve a um levantamento quantitativo de folhetos

    presentes na obra do escritor paraibano. Como podemos ver no trecho a seguir:

    Destes 37 romances, dois pertencem ao ciclo dos romances deamor [...], trs aos romances de safadeza e putaria [...]. Ao ciclodos cangaceiros e cavalarianos pertencem 12 romances [...]. Dosromances de espertezas o autor aproveitou apenas um, o do JooMalasarte e o Portugus. O ciclo melhor representado, logo aseguir aos romances de cangaceiros e cavalarianos o religiosoe proftico: Suassuna cita 8 destes romances religiosos [...]. 26dos 37 romances so facilmente classificveis. Os restantes 11

    ou resistem a uma classificao fcil ou revelam-se comoinvenes do prprio cronista D. Pedro Dinis (LIND, 1974,p.36-37).

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    J Moura (2002) realiza uma investigao sobre as relaes estticas que Suassuna

    estabelece entre seu romance e a arte popular nordes