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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ NUESTRA AMÉRICA] Ano 2, n° 2 | 2012, verão
ISSN [2236-4846]
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Biografias e autobiografias como fontes para a história do comunismo.
Os trabalhos de biografia coletiva após a abertura dos arquivos do
Comintern*
Bruno Groppo**
Introdução1
Uma das especificidades do comunismo foi a enorme importância que os partidos e os
sistemas políticos comunistas atribuíam à biografia/autobiografia e à supervisão biográfica.
Nos partidos comunistas a supervisão biográfica – por intermédio das autobiografias de
partido, dos questionários biográficos e das avaliações formuladas pela comissão dos quadros
do partido - era o principal método de controle, de seleção e de gestão dos quadros e mais
geralmente dos militantes. Nos sistemas de tipo soviético, no qual o poder era monopolizado
pelo partido comunista, a supervisão biográfica era utilizada também no interior da
administração, das empresas e das instituições de Estado em geral, afim de controlar e de
vigiar o conjunto da população. Um “ imenso trabalho biográfico e autobiográfico (…) –
notam Claude Pennetier e Bernard Pudal - caracteriza(va) o funcionamento da URSS, da
Internacional comunista e dos diferentes partidos comunistas, e, no pós-guerra, o das
‘Democracias populares’ ”2. Por sua amplitude e sua importância, esse fenômeno não tinha
equivalente em outros movimentos ou regimes políticos da época. Introduzido após novembro
de 1917, na Rússia, em princípio no seio do partido bolchevique (chamado a partir de 1918 de
partido comunista) e em seguida do Estado soviético, esse sistema se generalizou a partir dos
* Artigo recebido em setembro de 2011 e aprovado para publicação em fevereiro de 2012. ** Centre d’histoire Sociale du XXe Siècle - CNRS / Université de Paris I Panthéon-Sorbonne - Università di Padova – Facoltà di Scienze Politiche 1 Comunicação apresentada no Seminário internacional "Arquivo Edgard Leuenroth : historia e pesquisa" (Campinas, 17-20 de maio de 2010). 2PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. “Un monde biographique nouveau. Avant-propos”, in PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. Autobiographies, autocritiques, aveux dans le monde communiste, Paris: Belin, 2002. p. 9.
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anos 1920 no conjunto dos partidos comunistas e do Comintern3. Após a Segunda Guerra
Mundial, se estendeu aos novos países em que os comunistas tomaram o poder. Após ter
atingido seu apogeu na época stalinista, entre o fim dos anos 1920 e meados dos anos 1950,
esse sistema de controle biográfico começou em seguida a enfraquecer, ao mesmo tempo
permanecendo durante décadas ainda um dos traços distintivos dos partidos e dos regimes
comunistas. As reflexões apresentadas abaixo concernem sobretudo à época do stalinismo.
Dois aspectos nos interessam mais particularmente: de um lado, os rastros que esse sistema de
supervisão biográfica deixou nos arquivos dos partidos e dos Estados comunistas (que
chamaremos, para simplificar, de arquivos do comunismo); e de outro, sua importância para
as pesquisas, notavelmente históricas, sobre o comunismo.
Os documentos biográficos nos arquivos comunistas
A importância dada às questões biográficas no mundo comunista levou ao acúmulo de
uma massa considerável de dossiês pessoais sobre os quadros e militantes comunistas nos
arquivos dos partidos e dos Estados comunistas. O comunismo, que Nicolas Werth definiu
como “uma cultura do relatório”, deixou atrás de si uma quantidade impressionante de
documentos escritos, que permaneceram durante muito tempo inacessíveis aos pesquisadores.
Entre esses documentos, aqueles de caráter biográfico e autobiográfico ocupam um lugar não
negligenciável. Parcialmente acessíveis graças à abertura dos arquivos comunistas nos anos
1990, eles permitiram explorar a história do comunismo com outras abordagens além daquela
da história política tradicional, atenta sobretudo à evolução do discurso, da ideologia, e aos
aspectos organizativos. A abordagem sociobiográfica, em particular, permitiu realizar, a partir
da abertura dos arquivos, biografias coletivas dos atores do movimento comunista e
compreender melhor o papel da subjetividade nesse movimento e nas sociedades comunistas.
Esse método já era usado nos estudos sobre o movimento operário (e, logo, também sobre os
3 Os partidos comunistas se apresentavam então como as seções nacionais de um partido agindo em escala mundial, a Internacional Comunista (IC) ou Comintern. Esse modelo de organização muito centralizado, de tipo quase militar, era uma novidade em relação às internacionais operárias.
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militantes comunistas nesse movimento, dentro do qual o comunismo foi um componente)4,
sobretudo à partir dos anos 1970, e havia levado à realização de dicionários biográficos do
movimento operário em vários países. Graças à disponibilidade das fontes biográficas já
citadas, ela se revelou nas duas últimas décadas muito frutífera nas pesquisas sobre os atores
do movimento comunista. Evocarei mais além alguns projetos de pesquisa que foram
possibilitados pela abertura dos arquivos comunistas e que permitiram organizar dicionários
ou bases de dados biográficos sobre os quadros comunistas que exerceram algum papel no
Comintern; assim como um trabalho sociobiográfico de grande envergadura sobre os
comunistas alemães de 1918 a 1945. Farei alusão mais rapidamente, em compensação, a
outras pesquisas recentes sobre a dimensão biográfica e autobiográfica no mundo comunista.
O acesso a novas fontes permitiu de fato aprofundar a reflexão sobre alguns mecanismos que
caracterizaram o mundo comunista, como a autocrítica, as confissões, as purgações, e mais em
geral “a autoanálise” dos militantes comunistas. Ainda que já se dispusesse de elementos de
conhecimento sobre esses aspectos, graças sobretudo aos testemunhos de ex-comunistas, o
acesso aos arquivos permitiu ter uma visão mais precisa, menos “impressionista”, e uma
compreensão mais fina, em particular da construção de um novo tipo de militante, o quadro
stalinista, que apresenta traços comuns mesmo em situações geográficas e contextos culturais
muito diferentes.
A supervisão biográfica nos partidos comunistas
Nos partidos comunistas, qualquer militante que obtinha responsabilidades no seio da
organização devia redigir uma nota autobiográfica (que chamaremos aqui autobiografia de
partido) ou preencher um questionário biográfico (em russo anketa) preestabelecido, dando
informações detalhadas, de caráter a uma só vez pessoal e político, sobre sua origem social,
sua família, seus conhecidos, seu nível de instrução, seu trabalho, seu itinerário político, suas
4 O comunismo foi um componente, mais ou menos importante segundo os países e as épocas, do movimento operário na medida em que este manteve sua autonomia e sua independência. A situação é muito diferente nos Estados comunistas, em que o movimento operário perdeu qualquer autonomia e foi absorvido pelo partido-Estado.
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atividades militantes, as perseguições sofridas, as funções exercidas, etc5. Uma vez
verificadas, para assegurar sua veracidade, essas informações eram objeto de uma avaliação
(em russo karacteristika) pelos responsáveis da comissão dos quadros. Elas permitiam aos
dirigentes do partido ter uma ideia bastante precisa do militante em questão, de suas
capacidades e de seus pontos fracos, de seu vínculo à causa, e assim considerar em quais
tarefas ele poderia ser mais útil ao partido e quais responsabilidades se poderia eventualmente
confiar a ele. Esse controle biográfico respondia ao mesmo tempo a uma inquietação em
matéria de segurança - se proteger de eventuais infiltrados - e à exigência de uma gestão
eficaz dos “recursos humanos” disponíveis. O partido aspirava a formar um tipo de quadro
totalmente devotado à causa comunista, disposto a sacrificar-lhe inteiramente sua vida
privada. Já que se tratava de formar “revolucionários profissionais”, conforme o modelo
esquissado por Lenin em Que fazer?, não se podia ser militante comunista part-time: o partido
exigia um engajamento ilimitado, que apagava completamente a fronteira entre vida privada e
atividade política. Desse ponto de vista, o militantismo comunista podia ser comparado a um
tipo de sacerdócio, de vocação religiosa baseada no espírito de sacrifício e no dom de si, o
próprio comunismo podendo ser considerado como uma religião política. O militante ideal, do
ponto de vista do partido, era aquele cujo capital político dependia inteiramente deste e que,
por consequência, devia tudo ao partido. Este desconfiava, em compensação, daqueles que
dispunham de um capital político próprio, que não dependiam da investidura conferida pelo
partido: assim, por exemplo, na França pós 1945, dirigentes comunistas que se destacaram
durante a Segunda Guerra Mundial por seu engajamento na Resistência e que tinham, dessa
forma, adquirido uma legitimidade própria, que não dependia da investidura do partido, foram
afastados das posições de responsabilidade porque eram potencialmente incontroláveis.
Na União Soviética, a prática do questionário biográfico se impôs tanto no seio do
partido como do Estado (os dois estando estritamente imbricados, já que o partido
monopolizava todo o poder). Durante a NEP – o sistema de economia mista inaugurado por
Lenin em 1921 para acalmar o descontentamento dos camponeses - o campo escapava ainda
ao empreendimento do partido, mas com a coletivização forçada da agricultura no fim dos
5PENNETIER, Claude ; PUDAL, Bernard. “Écrire son autobiographie (les autobiographies comunistes d’institution, 1931-1939)”. Genèses, 23, 1996, p. 53-75.
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anos 1920 o partido-Estado tornou-se o mestre absoluto de toda a economia. Todos os
cidadãos soviéticos estavam doravante submetidos a seu controle, que passava em larga
medida pelo controle sobre a biografia de cada um. O questionário biográfico tornou-se cada
vez mais detalhado, a lista das perguntas feitas cada vez mais longa. Os documentos de
identidade mencionavam obrigatoriamente a classe social.
Nos anos 1920, com a “bolchevização”, os partidos comunistas, que nesse momento
eram ainda muito heterogêneos, se modelaram cada vez mais ao partido russo e introduziram,
eles também, um controle biográfico mais e mais esmiuçador. As autobiografias e os
questionários preenchidos pelos militantes eram confiados à comissão dos quadros, que
avaliavam esses documentos e seus autores e em seguida encaminhava os mais importantes à
sede do Comintern, onde eles eram classificados nos arquivos dessa organização e submetidos
a novas avaliações. As purgações periódicas, outra novidade introduzida pelo partido
bolchevique, implicavam “verificações” em larga escala, isto é, um novo exame das biografias
dos membros do partido. A biografia constituía, então, um elemento central do mundo
comunista.
No que concerne às biografias de partido, o ideal buscado era a transparência absoluta.
O militante não devia esconder nada do partido, pois isso significaria falta de confiança e uma
adesão “sob reservas”. Ora, biografias redigidas em períodos diferentes da vida de um
militante apresentavam inevitavelmente diferenças, que podiam a qualquer momento ser
interpretadas como elementos de acusação. A comissão dos quadros, encarregada das
biografias, então, detinha um poder temível. Ela utilizava as biografias para selecionar os
militantes, promovê-los ou retrogradá-los, breve, para gerir o pessoal político comunista, um
pouco como a direção de pessoal de uma empresa, (o Comintern podendo por sua vez ser
comparado a uma empresa multinacional com filiais, os PCs, no mundo inteiro).
O Comintern e a difusão das práticas biográficas soviéticas
Diferente da Segunda ou da Primeira Internacional, o Comintern era uma estrutura
extremamente centralizada, concebida como um tipo de Estado-maior da revolução mundial
do qual os partidos afiliados eram simplesmente seções submetidas à autoridade do centro (o
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que queria dizer, concretamente, à autoridade do PC soviético). À centralização política
correspondia também uma centralização documental e arquivística. Os partidos comunistas
enviavam a Moscou seus documentos de arquivos, entre os quais as “bios” de seus quadros e
militantes. Essa medida respondia também a exigências de segurança: a situação de
ilegalidade na qual vários partidos comunistas se encontravam fazia Moscou parecer o local
mais seguro para guardar esses documentos. Graças a essa acumulação de informações
biográficas, a direção do Comintern dispunha a qualquer momento de uma visão completa
sobre os recursos militantes existentes nos diferentes países e podia também exercer um
estreito controle sobre cada partido, favorecendo a ascensão de certos quadros e deixando
outros de lado.
Cada dossiê individual continha geralmente várias biografias do mesmo militante,
redigidas em momentos diferentes de sua vida e seu itinerário político, assim como outros
tipos de documentos (cartas, fotos, etc.) que lhe concerniam. As versões sucessivas da
biografia podiam ser comparadas, permitindo verificar, por exemplo, se o militante havia
ocultado certas informações, ou dado versões contraditórias. Elas permitiam sobretudo seguir
nos mínimos detalhes seu percurso político e as posições que ele havia adotado nas lutas
internas do seu partido ou do Comintern: essas informações, as quais a polícia política
soviética tinha acesso direto, podiam ser utilizadas, e elas o foram efetivamente, para eliminar
(inclusive fisicamente) todos aqueles que, em um momento ou outro, se afastaram da "linha
geral" do partido). Na época do stalinismo, o simples fato de ter pertencido no passado a (ou
de ter simpatizado com) uma corrente caída em desgraça era suficiente para fazer de um
militante um suspeito de desvio ou de dissidência e para expô-lo à repressão. Na União
Soviética as repressões stalinistas atingiram igualmente numerosos comunistas estrangeiros
que se refugiaram nesse país para escapar das ditaduras fascistas nos seus países de origem6.
A utilização das biografias conservadas nos arquivos do Comintern foi um dos meios pelos
6Os comunistas alemães refugiados na União Soviética pagaram um tributo particularmente pesado. Várias centenas dentre eles foram assassinados nesse país, enquanto centenas de outros foram entregues à Gestapo na duração do pacto germano-soviético. Cf. WEBER, Hermann. "Weisse Flecken" in der Geschichte. Die KPD-Opfer der stalinschen Säuberungen und ihre Rehabilitierung. Berlim: LinksDruck Verlag, 1990. Ver também MÜLLER, Reinhard. Menschenfalle Moskau. Exil und stalinistische Verfolgung. Hamburgo: Hamburger Edition HIS Verlag, 2001. (Esse livro contém também uma lista das vítimas e notas biográficas).
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quais o stalinismo eliminou qualquer oposição no interior do partido soviético e dos outros
partidos comunistas.
Nem a socialdemocracia, de onde o comunismo era proveniente, nem as outras correntes
do movimento operário anteriores a 1914 não haviam desenvolvido práticas de controle
biográfico comparáveis àquelas do movimento comunista. Além disso, nenhum outro
movimento havia construído para si uma forma de organização internacional tão centralizada:
ora, é precisamente a centralização da organização comunista o que facilitou a generalização
das práticas biográficas do bolchevismo no conjunto dos partidos comunistas. Pode-se
lembrar, a título de comparação, que a Internacional Socialista antes de 1914 federava partidos
que buscavam coordenar sua ação sobre o plano internacional, mas na qual cada um
conservava sua plena autonomia. Se, para muitos desses partidos a socialdemocracia alemã
parecia o modelo que eles procuravam imitar, cada um permanecia, todavia, inteiramente livre
em suas escolhas. Não era diferente na Internacional Operária Socialista reconstituída após a
Primeira Guerra Mundial, ou na Federação Sindical Internacional, que reagrupava as centrais
nacionais de orientação reformista. Nos arquivos (ou o que resta deles) dessas organizações se
procuraria em vão autobiografias ou questionários biográficos como aqueles presentes nos
arquivos do Comintern. É preciso também lembrar que nenhum outro movimento se
encontrou tão estreitamente dependente de um Estado como foi o caso do movimento
comunista face à União Soviética. Essa circunstância é importante por duas razões. Em
primeiro lugar, porque o laço com a União Soviética exerceu uma influência determinante
sobre o movimento comunista internacional, a situação política em Moscou repercutindo
diretamente sobre todos os partidos comunistas. A fidelidade incondicional à União Soviética
foi durante décadas o artigo fundamental do credo comunista no mundo inteiro. A identidade
política do militante comunista se definia antes de tudo por essa fidelidade para com a "pátria
do socialismo". Em seguida, porque os recursos do Estado soviético permitiram o
desenvolvimento, no seio do movimento comunista, de um aparelho burocrático
superdimensionado, sem medida comum com aqueles dos seus concorrentes socialistas. Basta
comparar o número de pessoas empregadas pelo Comintern e a Internacional Sindical
Vermelha em Moscou e nas suas sedes no exterior com o do pessoal assalariado da IOS e da
FSI para constatar que se tratava de duas realidades completamente diferentes: de um lado,
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centenas de pessoas, remuneradas diretamente ou indiretamente pelo Estado soviético; do
outro, algumas dezenas no máximo (IOS e FSI reunidos), remunerados pelas cotizações
depositadas pelos partidos e centrais sindicais afiliadas. O Comintern e as outras organizações
internacionais comunistas especializadas (Internacional Sindical Vermelha, Internationale
Paysanne, Socorro Vermelho, etc.) dependiam materialmente do Estado soviético. Por si só, a
gestão dos arquivos do Comintern, tão preciosas para os historiadores hoje, exigia um pessoal
numeroso e qualificado, que era também remunerado pelo Estado soviético. Essa dependência
material dos partidos comunistas para com Moscou foi um dos fatores que facilitaram a
difusão das práticas russas e soviéticas nesses partidos. É também na União Soviética que
funcionavam as escolas de quadros do Comintern, como a Escola Internacional Lenin, onde se
formaram numerosos militantes comunistas, destinados em seguida a exercer funções
dirigentes no seu partido. De uma maneira geral, as escolas do partido foram um lugar de
transmissão privilegiada das práticas biográficas em vigor nos partidos comunistas7.
As origens do controle biográfico na Rússia soviética
As práticas dos partidos comunistas em matéria de controle biográfico têm sua origem
no bolchevismo russo. Para compreendê-los, é preciso debruçar sobre a situação russa.
No império czarista, os partidos socialistas não tinham existência legal8. A atividade
revolucionária em condições de ilegalidade exigia um engajamento total da parte dos
militantes, prometidos a maior parte do tempo à prisão, ao degredo ou ao exílio. Uma grande
vigilância era necessária para impedir a infiltração de agentes da polícia no seio dos
7Ver, para a Itália, BOARELLI, Marco. "Il mondo nuovo. Autobiografie di comunisti bolognesi 1945-1955". Italia contemporanea. n. 182, março de 1991; ONNIS, Gian Carlo. "La gioia di essere e il sacrificio di vivere. Autobiografie di comunisti savonesi 1945-1956", XX° Secolo. n. 7-8, 1993; MARIJNEN, Anne. "Sous le microscopo bolchevik: le contrôle biografique au sein du PCI", in PENNETIER, C; e PUDAL, B. op. cit., p. 189-201. 8Mencheviques, bolcheviques, SR, bundistas se consideravam todos como revolucionários. Somente o partido bolchevique, todavia, desenvolveu, por iniciativa de Lenin, a visão do "revolucionário profissional", tendo como missão trazer do exterior a consciência revolucionária a uma classe operária que, deixada a si própria, tendia naturalmente ao reformismo.
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movimentos revolucionários9. A biografia dos militantes era, então, escrutada com uma
atenção extrema dentro das organizações.
Tomando o poder em novembro de 1917, o partido bolchevique instalou um sistema
político que resultou rapidamente na rejeição de todos os outros partidos e na ditadura de um
só, o deles. No plano social assistiu-se a um desabamento geral dos valores. A hierarquia
social não era mais fundada sobre os elementos que a definiam anteriormente – o capital
econômico (propriedade, dinheiro), cultural (nível de instrução) ou social (o pertencimento a
categorias como a nobreza, a burguesia ou o clero) – e que doravante não tinham mais valor.
Para distribuir os cargos de responsabilidade, o novo poder devia definir outros critérios, que
permitiriam, a uma só vez, afastar as antigas elites e promover novas, inteiramente devotadas
ao novo regime. É nesse ponto que intervém, como elemento determinante para definir a nova
hierarquia social, a biografia. O critério fundamental foi o exame do passado político, da
origem social proletária e do atamento ao novo regime: o capital econômico, social, cultural,
que estava na base da antiga sociedade, foi assim substituído pelo capital político. A biografia
pessoal, e sobretudo a biografia política, adquire assim uma importância excepcional. É sobre
essa base que se seleciona doravante os quadros do novo Estado e de uma burocracia em
expansão rápida: esse critério foi aplicado à todos os aspectos da vida quotidiana, como a
atribuição de um alojamento, a provisão alimentar, etc. O Estado "operário e camponês" devia
ao mesmo tempo permitir a ascensão social dos proletários e, paralelamente, afastar das
posições de responsabilidade todos aqueles que, por seu pertencimento à elite social anterior
(nobreza, burguesia, burocracia) ou a categorias julgadas inúteis ou prejudiciais (clero, polícia,
comerciantes, artesãos), eram considerados pelo novo regime como inimigos. Neste mundo ao
inverso, em relação à Rússia anterior a 1917, o fato de pertencer à classe operária ou dela ser
proveniente tornava-se, por assim dizer, um título de nobreza que dava direito a vantagens e
que abria numerosas possibilidades de escalar a nova escala social. Os camponeses pobres
estavam inclusos na classe operária, todavia sem que se saiba exatamente onde passava a linha
de separação entre estes e o resto do campesinato. Pertencer ou ser proveniente de outras
categorias tornava-se, ao contrário, uma deficiência, que relegava à base da nova hierarquia
9 Apesar dessas medidas, infiltrações ocorreram até o mais alto nível, tanto no partido bolchevique como no dos socialistas revolucionários (SR), o caso mais espetacular sendo o de Azef, terrorista SR e informante da polícia.
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social. Já que a biografia era doravante o elemento determinante, o uso do questionário
biográfico se generalizou. Para não importa qual procedimento era-se obrigado a preencher
questionários nos quais era necessário indicar obrigatoriamente, entre outras informações, a
origem social.
Uma vez instalado só no poder, o partido comunista se encontrou rapidamente
confrontado a um problema que o pequeno partido bolchevique de antes de 1917 não havia
conhecido: um afluxo enorme de novos aderentes, e por conseguinte a necessidade de triar
para distinguir o joio do trigo, os revolucionários dos oportunistas. Com esse objetivo, o
partido começou, a partir de 1919, a efetuar "recadastramentos" dos recém-chegados,
utilizando como critério de triagem a biografia de cada um.
No Comintern também se tratava de triar, afim de impedir a entrada de elementos
reformistas nos novos partidos comunistas10. Progressivamente, as práticas biográficas que se
estabeleciam no partido e no Estado soviéticos se generalizaram no conjunto do partidos
comunistas, graças notavelmente à "bolchevização". Em cada partido começou-se a redigir
várias "bios" e a preencher questionários biográficos. Para felicidade dos futuros historiadores,
essas práticas biográficas deixaram de herança, nos arquivos dos partidos comunistas e do
Comintern, uma quantidade muito importante de dados biográficos11.
As biografias e os questionários biográficos eram concebidos como instrumentos de
informação e de controle que deviam servir ao partido e ao Comintern exclusivamente para
uso interno. A prática do sigilo, instaurada desde os anos 1920 e levada ao extremo pelo
stalinismo, relegava a um fechamento perpétuo os arquivos do movimento comunista.
10 É precisamente com este fim que foram aprovadas pelo segundo congresso do Comintern (1920) as famosas "Vinte e uma condições para a admissão à Internacional Comunista". 11 Em maio de 1926 uma circular do Comitê Executivo da Internacional Comunista (CEIC) pedia às seções da IC para transmitir os arquivos de partido aos arquivos centrais da IC em vista de sua conservação. Essa disposição concernia ao conjunto dos documentos produzidos pelos partidos comunistas, inclusas, então, as biografias dos quadros e militantes. Os documentos de natureza biográfica eram desde o início competência do Sekrétariat do CEIC. No início de 1921, todos os documentos do Secretariado do CEIC e todos os documentos de caráter secreto foram retirados dos arquivos gerais da IC e confiados a uma seção secreta. A partir de 15 de junho de 1932, os documentos de caráter biográfico foram confiados à Seção dos Quadros do CEIC, que acabava de ser criada. FOMITSCHOW, Waleri. "Organisation und Entwicklung der Aktenführung im Apparat des Komintern". in BUCKMILLER, Michael; MESCHKAT, Klaus (dir.). Biographisches Handbuch zur Geschichte der Kommunistischen internacionale. Ein deutsch-russisches Forschungsprojekt. Berlim: Akademie Verlag, 2007. p. 55-56.
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Biografias coletivas de quadros comunistas: primeiras experiências
Na União soviética, o Dicionário enciclopédico soviético Granat publicou de 1927 a
1929, por ocasião do décimo aniversário da revolução de Outubro, uma série de biografias
autorizadas de personalidades bolcheviques, redigidas de 1924-1925 (então antes da vitória de
Stalin e da eliminação de qualquer oposição no interior do partido)12, que, como ressaltou
Georges Haupt13, testemunham a heterogeneidade ideológica e política da velha guarda
bolchevique. Esses verbetes podem ser considerados como o primeiro esboço de uma
biografia coletiva dos dirigentes bolcheviques. À medida que o stalinismo se consolidava na
União Soviética (e no movimento comunista), tais publicações tornaram-se impossíveis,
porque os dirigentes comunistas caídos em desgraça, excluídos do partido e atingidos pelas
repressões stalinistas tornavam-se desde então "não-pessoas" cujos nomes não podiam mais
ser mencionados, salvo nos autos de acusação e nas condenações emitidas pelos tribunais, por
ocasião dos "processos de Moscou", que liquidaram a velha guarda bolchevique. Essa prática
soviética de transformar em "não-pessoas" e de relegar ao esquecimento os comunistas
dissidentes ou heréticos se instalou também nos outros partidos comunistas, então
"stalinizados", ao mesmo tempo, outras práticas provenientes da experiência soviética, como
as sessões de autocrítica14, a confissão pública dos "desvios" cometidos, e até mesmo a prática
dos processos, copiada do modelo dos "processos de Moscou" dos anos 193015.
12 Enciclopédia Granat. Deiateli SSSR y Oktiabr’skoi Revoliutsii. Moscou: 1927-1929. Ver a tradução em francês em HAUPT, Georges; MARIE, Jean-Jacques. Les Bolchéviks par eux-mêmes. Paris: Maspero, 1969. Ver também a análise dessas biografias por MOSSE, Werner. "Makers of the Soviet Union", Slavonic and East European Review. London, n. 46, 1968. p. 141-154. 13 Ibid. p. 19. 14Cf. UNFRIED, Berthold. "L’autocritique dans les milieux cominterniens des années 1930", in PENNETIER, C.; PUDAL, B. Autobiographies …, op. cit., p. 43-62 . Id., "Parler de soi au parti. L’autocritique dans les milieux du Komintern en URSS dans les années trente". in STUDER, Brigitte; UNFRIED, Berthold; HERRMANN, Irène (dir.). Parler de soi sous Stalin. La construction identitaire dans le comunisme des années Trente. Paris: Editions de la MSH, 2002, p. 147 e seguintes. 15Alguns "processos de Moscou" ocorreram após 1945 em vários países comunistas da Europa oriental (processo Rajk na Hungria, processo Kostov na Bulgária, processo Slansky na então Tchecoslováquia). Eles tiveram seu correspondente na França com o "caso" Marty-Tillon, e na Itália com o caso Cucchi-Magnani.
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O comunismo no poder publicou também, mas bastante tardiamente, dicionários
biográficos16. Redigidos por "coletivos de historiadores" dos Institutos de Marxismo-
Leninismo, a instituição a cargo da "história oficial" nos regimes comunistas, esses
dicionários obedeciam a critérios políticos tanto na seleção dos nomes que podiam figurar ali
quanto na redação dos verbetes. Considerando o fato de que nesses regimes a "história oficial"
era remanejada sem cessar, a sorte dessas obras permanecia sempre incerta. Um dos
problemas mais delicados aos quais eles se confrontaram era o dos quadros comunistas
vítimas das repressões stalinistas na União Soviética. Esse problema era particularmente
colocado para partidos como o Partido Comunista Alemão, do qual várias centenas de
militantes haviam sido assassinados na União Soviética, ou ainda para o partido comunista
polonês, do qual praticamente todos os quadros que tiveram a infelicidade de se encontrar
nesse país nos anos 1930 haviam sido liquidados fisicamente. O Biographisches Lexicon leste-
alemão de 1970 (que tratava do conjunto do movimento operário alemão, não somente os
comunistas) apresentava, pela primeira vez, as biografias de dez dirigentes comunistas
alemães vítimas das repressões na União Soviética, precisando que eles eram inocentes. Era,
aparentemente, ir longe demais. Imediatamente após sua publicação, o volume foi retirado de
circulação, e só reapareceu em algumas livrarias dez anos mais tarde17. Com toda evidência,
enquanto o partido persistia a querer exercer o monopólio da verdade histórica, redigir um
dicionário biográfico permanecia um exercício perigoso.
Uma primeira exploração de caráter científico da dimensão biográfica do Comintern foi
o Biographical Dictionary of the CominternLearn about Author Central, publicado em 1973
por Branko Lazitch em colaboração com Milorad Drachkovitch, quando os arquivos de
Moscou ainda estavam rigorosamente fechados. Apareciam nesta obra 718 biografias de
quadros comunistas que exerceram algum papel no seio do Comintern 18. Nesse ínterim, a
abordagem sociobiográfica se afirmava progressivamente no campo científico como um 16 Ver por ex., para a RDA, Institut für Marxismus-Leninismus beim ZK der SED. Geschichte der deutschen Arbeiterbewegung. Biographisches Lexikon. Berlim: Dietz, 1970; para a Tchecoslováquia, Prirucni Slovnik k Dejinam KSC [A Concise Dictionary of the History of the CPCS]. Praga: Nakl. politické literatury SNPL, 1964. 17WEBER, H."Weisse Flecken" in der Geschichte. …, op. cit., p. 45-47. No volume apareciam também, pela primeira vez, os nomes de ex-dirigentes comunistas caídos em desgraça, como Paul Levi, Heinrich Brandler, Ruth Fischer e outros. 18LAZITCH, Branko; DRACHKOVITCH, Milorad. Biographical Dictionary of the Comintern, Stanford: Hoover Institution Press, 1973. Uma nova edição, revista e aumentada, foi publicada em 1986, contendo desta vez 753 biografias.
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método original da história social, em particular na labour history. O exemplo mais
conhecido, e provavelmente o mais interessante no plano do método, é o do Dictionnaire
biographique du mouvement ouvrier français , obra de grande envergadura dirigida e por
iniciativa do historiador Jean Maitron e por isso chamada habitualmente de Le Maitron19 ; mas
essa abordagem se difundia também em outros países, notavelmente na Inglaterra e na
Alemanha20. Neste país a abordagem através da biografia coletiva da história do movimento
operário foi desenvolvida em particular, desde o fim dos anos 70, pelo Zentrum für
Historische Sozialforschung da Universidade de Colônia, por iniciativa do Prof. Wilhelm
Heinz Schröder. Entre os principais resultados desse trabalho é preciso citar um dicionário
biográfico dos deputados e candidatos social-democratas ao Parlamento do Reich (Reichstag)
de 1898 a 191821 e a base de dados BIOSOP sobre os parlamentares social-democratas no
Reichstag e nos parlamentos regionais (Landtage) de 1867 a 193322.
Alguns projetos sociobiográficos após a abertura dos arquivos comunistas
Para os historiadores do comunismo as biografias de militantes conservadas nos
arquivos do Comintern e tornadas em parte acessíveis após a abertura dos arquivos soviéticos
nos anos 1990, representam uma fonte extremamente preciosa, sobretudo para uma
abordagem sociobiográfica. Convém lembrar que antes da abertura dos arquivos do
Comintern os historiadores do comunismo tinham a sua disposição três tipos de fontes :
primeiramente, as biografias e autobiografias "oficiais" de dirigentes comunistas23, que
obedecem, no essencial, a uma lógica hagiográfica e de legitimação; em segundo lugar, as
19GOTOVITCH, José. art. cit. 20 GALLUS, Alexander. " Biographie und Zeitgeschichte", Aus Politik und Zeitgeschichte. Bonn, 2005, n. 1-2, p. 40-46. 21 SCHRÖDER, Wilhelm Heinz. Sozialdemokratische Reichstagsabgeordnete und Reichstagskandidates 1898-1918. Biographisch-statistisches Handbuch. Düsseldorf, 1986. 22SCHRÖDER, Wilhelm Heinz. SozialdemokratischeParlamentarier in den deutschen Reichs- und Landtagen 1867-1933. Düsseldorf, 1995. A base de dados BIOSOP pode ser consultada diretamente na internet no site do Centro na Universidade de Colonha (http://biosop.zhsf.uni-koeln.de/) ou no da Fundação Friedrich Ebert (http://www.fes.de/hfz/arbeiterbewegung/Members/schochr/biosop-online . 23Típico, sob esse ponto de vista, a autobiografia do dirigente comunista francês Maurice Thorez, Fils du peuple, publicada em 1937. Ver PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. "Les autobiograohies des "fils du peuple". De l’autobiographie édifiante à l’autobiographie auto-analytique", in PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. op. cit. p. 217-246 ; GROPPO, Bruno. "Entre autobiographie et histoire. Les récits autobiographiques de communistes italiens publiés après 1945", in PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. op. cit. p. 247-265.
[BIOGRAFIA E AUTOBIOGRAFIAS COMO FONTES PARA A HISTÓRIA DO COMUNISMO: OS TRABALHOS DE BIOGRAFIA COLETIVA APÓS A ABERTURA DOS ARQUIVOS DO COMINTERN
* BRUNO GROPPO]
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narrativas autobiográficas de ex-comunistas, que tratam frequentemente do registro da
confissão (dos erros ou das ilusões passadas) e do ajustamento de contas com o partido e os
antigos camaradas24 ; e enfim, os documentos conservados nos arquivos de polícia25. Vinham
acrescentar-se, mais raramente, biografias "atípicas", escritas em uma perspectiva de
historiador, como por exemplo a biografia de Stalin por Boris Souvarine26. Faltava, todavia,
um elemento essencial: os arquivos dos partidos comunistas. A obsessão pelo sigilo,
característica do movimento comunista, e a impossibilidade de acesso aos arquivos
entravaram durante muito tempo o desenvolvimento das pesquisas sobre o comunismo. Não se
saberia, então, subestimar a importância da abertura desses arquivos nos anos 1990 como
consequência do desmoronamento do sistema soviético: pondo fim a esses bloqueios, ela abriu
o caminho para uma nova fase dos estudos sobre esse assunto.
A abertura dos arquivos dos partidos comunistas nos países ex-comunistas da Europa
central e oriental após 1989, e mais ainda a dos arquivos russos após o fim da União Soviética,
modificaram profundamente a situação e as perspectivas das pesquisas sobre o comunismo.
Pela primeira vez os documentos do Comintern e de outras organizações comunistas
tornavam-se acessíveis aos pesquisadores, que poderiam assim interrogar-se sobre a história
do movimento comunista apoiando-se nas fontes originais. Era o fim da prática do sigilo que
havia enclausurado durante décadas os arquivos do comunismo e as ligações dos partidos
comunistas com sua própria história.
As mudanças no domínio dos arquivos na Rússia se inseriam no processo geral de
abertura dos arquivos nos outros países ex-comunistas da Europa central e oriental27.
24As autobiografias de ex-comunistas constituem um gênero literário em si. Ver ROLOFF, Ernst-August. Ex-Kommunisten. Abtrünnige des Weltkommunismus. Ihr Leben und ihr Bruch mit der Partei in Selbstdarstellungen. Mainz, 1968 ; KÜHN, Hermann. Bruch mit dem Kommunismus. Über autobiographische Schriften von Ex-Kommunisten im geteilten Deutschland. Münster, 1990. 25Por exemplo, no caso italiano, os dossiês do Casellario Politico Centrale (Fundo Político Central, no Archivio Centrale dello Stato), meticulosamente atualizado pelo regime fascista com objetivo de vigiar e reprimir seus adversários políticos na Itália e no exterior. 26 SOUVARINE, Boris. Staline. Aperçu historique du bolchevisme, Paris: Plon, 1935. 27 Um processo complexo, já que se tratava, entre outras coisas, de definir a situação futura dos arquivos dos partidos comunistas, que acabavam de ser expulsos do poder, e mais em geral de todos os arquivos dos quais os Institutos de marxismo-leninismo eram depositários, eles também destinados ao desaparecimento. Na impossibilidade de poder aprofundar aqui esse aspecto do problema, nos limitaremos a observar que em geral os arquivos dos partidos comunistas foram depositados, em modalidades variadas, nos arquivos nacionais dos países respectivos. Um outro aspecto do problema concernia aos arquivos das diferentes polícias políticas da época comunista.
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Paralelamente, vários partidos comunistas ocidentais, dos quais alguns já haviam começado
antes de 1989 a abrir parcialmente seus arquivos, retiravam os últimos obstáculos que
entravavam o acesso a esses documentos, decidindo confiar a guarda a instituições públicas
(arquivos nacionais ou estaduais) para que elas os deixassem à disposição do público. Na
Alemanha assistiu-se até a uma situação paradoxal: após a reunificação, os arquivos da ex-
RDA tornaram-se imediatamente acessíveis até 1989, enquanto na ex-República Federal
continuava a se aplicar a regra geral dos 30 anos para os documentos da história
contemporânea. A sorte final dos arquivos comunistas mostrava claramente que uma página
da história estava definitivamente virada e que elas pertenciam doravante ao passado.
Não é minha intenção fazer aqui um balanço sobre as repercussões da "revolução dos
arquivos" na historiografia do comunismo em geral. Limitarei-me a levar em consideração
aquelas que concernem especificamente à problemática sociobiográfica. É preciso notar antes
de tudo que a abertura dos arquivos russos não foi completa. Certas partes, julgadas
politicamente sensíveis, continuam fechadas: outras ainda, após terem sido abertas durante
alguns anos, foram em seguida novamente fechadas. No caso dos dossiês pessoais dos
militantes comunistas conservados nos arquivos do Comintern a abertura foi apenas parcial, já
que eles contém documentos tratando da vida privada e que, enquanto tais, estão sujeitos às
restrições que se aplicam a esse tipo de arquivo. Os pesquisadores puderam, contudo, ter
acesso a uma parte dos documentos que aparecem nesses dossiês, e mais precisamente aos
questionários biográficos e às autobiografias de partido. Isso se fez geralmente dentro de
projetos de cooperação científica entre o RGASPI (Arquivos de Estado Russos de História
Social e Política) e historiadores russos, de um lado, e historiadores de outros países, de outro.
Três projetos fizeram avançar consideravelmente os conhecimentos biográficos sobre os
comunistas que exerceram algum papel no Comintern. O mais ambicioso foi realizado na
Universidade de Hanôver, sob a direção de Michael Buckmiller e Klaus Meshkat, e resultou
na criação de uma base de dados e na publicação de um volume intitulado “Manual biográfico
sobre a história do Comintern”28. Um segundo projeto, mais limitado, é sobre os quadros de
28 BUCKMILLER, Michael; MESHKAT, Klaus (dir.). Biographisches Handbuch zur Geschichte der Kommunistischen internacionale. Berlim: Akademie Verlag, 2007. A base de dados se apresenta sob a forma de um CD-Rom. O livro contém os anais de um colóquio realizado em 2005 na Universidade de Hanôver como conclusão do projeto de pesquisa.
[BIOGRAFIA E AUTOBIOGRAFIAS COMO FONTES PARA A HISTÓRIA DO COMUNISMO: OS TRABALHOS DE BIOGRAFIA COLETIVA APÓS A ABERTURA DOS ARQUIVOS DO COMINTERN
* BRUNO GROPPO]
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língua francesa do Comintern, realizado por uma equipe de historiadores franceses, belgas,
suíços, luxemburgueses, russos (Claude Pennetier, Serge Wolikow, Michel Dreyfus, José
Gotovitch, Brigitte Studer, Peter Huber, Henri Wehenkel, Mikhaïl Narinski) realizado pelo
Centre d’Histoire Sociale du XXe Siècle (Université Paris I / CNRS), em associação com o
Centre d’Histoire et de Sociologie des Gauches (Université Libre de Bruxelles), o Centre de
Recherches d’Histoire Contemporaine (Université de Dijon) e o RGASPI de Moscou29. A
esses dois projetos é preciso acrescentar uma terceira iniciativa, ligada ao projeto biográfico
de Hanôver, que resultou em um dicionário biográfico, em espanhol, sobre o Comintern e a
América Latina, redigido por dois historiadores russos (Lazar Jeifets e Victor Jeifets) e um
historiador suíço, Peter Huber30.
Esses três dicionários têm em comum, antes de tudo, o objeto de estudo: o Comintern, e,
então, as primeiras décadas do movimento comunista. Essa coincidência não é fruto do acaso:
é de fato nesse primeiro período que os arquivos de Moscou forneceram a maior quantidade
de documentos. É também o período em que se formam, no movimento comunista, o novo
tipo de militante e de quadro, já evocado, e logo, de numerosos dirigentes que continuarão a
exercer um papel chave nos partidos comunistas mesmo após a dissolução do Comintern. É
enfim o período durante o qual o comunismo apresenta maior homogeneidade. Após 1945
assiste-se de fato a uma fragmentação do movimento, primeiro com o cisma iugoslavo, em
seguida e sobretudo com o cisma chinês (e albanês), que divide de maneira irremediável o
movimento.
Uma segunda característica comum dessas iniciativas é o fato de terem sido realizadas
em colaboração com historiadores e arquivistas russos trabalhando no RGASPI, o herdeiro do
29 GOTOVITCH, José e NARINSKI, Mikhaïl (dir.). Komintern : l’histoire et les hommes. Dictionnaire biographique de l’Internationale communiste en France, en Belgique, au Luxembourg, en Suisse et à Moscou (1919-1943). Paris: Editions de l’Atelier, 2001. 30JEIFETS, Lazar; JEIFETS, Victor; HUBER, Peter. La internacional comunista y America Latina, 1919-1943. Diccionario biográfico. Moscou/Genebra: Instituto de Latinoamérica de la Academia de las ciencias/Institut pour l'histoire du communisme, 2004. Na base desse dicionário está a obra publicada em 2000, em russo, por Lazar e Victor Jeifets e intitulada “A América Latine na órbita do Comintern. Ensaio de dicionário biográfico” (JEIFETS, Lazar; JEIFETS, Victor. Latinskaia Amerika v orbite kominterna. Opyt biograficheskogo slovara. Moscou, 2000). O dicionário de Jeifets e de Huber contém 900 biografias de comunistas latino-americanos ou que tiveram relações com a América Latina (por exemplo, como emissários do Comintern). Apesar de certas lacunas, é uma obra particularmente útil, considerando o vazio que existia anteriormente nesse domínio. Esse trabalho havia sido realizado no "Projeto de pesquisa biográfica sobre o Comintern" realizado pelo Instituto de Ciências Políticas e de Sociologia da Universidade de Hanôver sob a direção de Michael Buckmiller e Klaus Meshkat
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ex-Instituto de Marxismo-Leninismo e dos seus arquivos, entre os quais aqueles do
Comintern. Uma tal colaboração entre especialistas ocidentais e especialistas russos, animada
por preocupações científicas e não políticas, era impensável no tempo da guerra fria e
materialmente impossível antes da abertura dos arquivos.
Observaremos enfim que essas iniciativas coincidem em parte. Os cominternianos de
língua francesa, estudados pela equipe franco-belga, e os da América Latina (ou que tiveram
algum papel em relação a esse continente) já aparecem, normalmente, na base de dados de
Hanôver; de outro lado, alguns cominternianos de língua francesa, como o suíço Jules
Humbert-Droz, também estiveram estreitamente envolvidos nas questões da América Latina, e
aparecem também no dicionário latino-americano.
O projeto germano-russo de Michael Buckmiller e Klaus Meschkat propusera realizar,
baseado nos arquivos de Moscou e em outras fontes disponíveis, um recenseamento o mais
exaustivo possível dos comunistas que, de um modo ou de outro, exerceram um papel no
Comintern. Ele foi concluído em estreita colaboração com vários arquivistas do RGASPI e
outros especialistas russos. O resultado é um conjunto de 28.626 nomes registrados e de
15.815 biografias, o mais importante, por suas dimensões, realizado até agora. Entre os nomes
que aparecem nessa base de dados, 6.000 eram completamente desconhecidos. Os dados não
são apresentados sob a forma de narrativa biográfica, como no dicionário franco-belga, mas
em fichas, construídas segundo o mesmo modelo. Cada uma compreende seis seções em que
aparecem diferentes tipos de informações sobre o militante em questão. Uma das seções
indica se existe nos arquivos de Moscou um dossiê pessoal sobre o militante e as referências
dos documentos de arquivos utilizados. A base de dados está disponível apenas em CD-rom,
não há edição impressa, e somente em alemão. O volume que acompanha o CD-rom contém
os anais de um colóquio internacional realizado em 2004 na Universidade de Hanôver como
conclusão do projeto. Ele inclui as comunicações dos principais colaboradores alemães e
russos do projeto, assim como as contribuições de alguns outros especialistas (José Gotovitch,
Felx Tych, Hermann Weber) em biografias coletivas. Essa obra é interessante tanto, no plano
do método, pelas reflexões que ela propõe sobre a problemática da biografia coletiva, quanto
pelas informações trazidas sobretudo pelos arquivistas russos sobre diferentes aspectos dos
arquivos do Comintern. Esse projeto biográfico se inspirou nos trabalhos de biografia coletiva
[BIOGRAFIA E AUTOBIOGRAFIAS COMO FONTES PARA A HISTÓRIA DO COMUNISMO: OS TRABALHOS DE BIOGRAFIA COLETIVA APÓS A ABERTURA DOS ARQUIVOS DO COMINTERN
* BRUNO GROPPO]
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realizados na Universidade de Colônia sob a direção do professor Schröder e mais
particularmente na base de dados BIOSOP, sobre os parlamentares social-democratas
alemães, já citada31.
O dicionário biográfico sobre o Comintern e a América Latina publicado em 2004, em
espanhol, por Peter Huber, Lazar Jeifets e Victor Jeifets32, foi realizado em grande parte no
âmbito do projeto biográfico de Hanôver, no qual os autores foram contribuidores. Uma
primeira versão havia sido publicada em Moscou em 2000 sob a única assinatura de Lazar
Jeifets com o título "A América Latina na órbita do Comintern. Ensaio de dicionário
biografico"33. O dicionário de 2004 compreende 900 verbetes biográficos de comunistas
latino-americanos ou que tinham ligações com a América Latina (por exemplo, como
emissários do Comintern). Eles são apresentados não como biografias propriamente ditas, e
sim mais como uma enumeração de dados factuais (etapas do itinerário político, funções
exercidas, etc.), o que deixa a leitura um pouco árida. Apesar desse limite, e sem levar em
conta alguns erros ou imprecisões – aliás quase inevitáveis nesse tipo de trabalho -, essa obra
preenche uma lacuna e constitui um ponto de partida para pesquisas mais aprofundadas. A
dimensão biográfica do comunismo na América Latina foi estudada até agora somente de
maneira bastante fragmentada. A tarefa é particularmente difícil e complicada em razão do
estado lacunar e da situação precária dos arquivos do movimento comunista na maior parte
dos países da América Latina. Todavia, certas publicações recentes mostram-se preciosas por
uma abordagem biográfica do comunismo latino-americano mesmo que ela só trate esse tema
parcialmente. É o caso, por exemplo, do dicionário biográfico da esquerda argentina publicada
em 2007 sob a direção de Horácio Tarcus34. Cobrindo um período de mais de um século, de
1870 à 1976, essa obra pioneira – que se inspira largamente no Maitron - trata apenas em
parte dos comunistas, aos quais ele consagra, entretanto, uma centena de biografias,
frequentemente muito detalhadas, de um total de 500. O interesse dessas biografias 31A BIOSOP também se apresenta na forma de fichas, e não de relatos biográficos. Infelizmente a base de dados de Hanôver, diferente da BIOSOP, não é consultável on-line. 32Jeifets, Lazar; Jeifets, Victor; Huber, Peter. La internacional comunista y America Latina, 1919-1943. Diccionario biográfico. Moscou, Genebra: Instituto de Latinoamérica de la Academia de las ciencias, Institut pour l´histoire du communisme, 2004. 33Jeifets, Lazar; Jeifets, Victor, Latinskaia Amerika v orbite kominterna. Opyt biograficheskogo slovara, Moscou, 2000. 34Tarcus, Horacio (dir.). Diccionario biográfico de la izquierda argentina, De los anarquistas a la “nueva izquierda” (1870-1976). Buenos Aires: Emecé, 2007.
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comunistas ultrapassa, aliás, o contexto argentino, já que muitas delas (como a de Victorio
Codovilla, a dos irmãos Rofolfo e Oreste Ghioldi, de Carlos Dujovne, etc.) esclarecem o
funcionamento das redes comunistas no nível da América Latina como um todo, assim como
as relações que existiram entre os diferentes partidos comunistas desta região do mundo.
O projeto sobre os cominternianos de língua francesa fixara um objetivo mais limitado
que o projeto de Hanôver: recensear os quadros e os militantes de língua francesa que
estiveram ativos no Comintern. Tratava-se então, no essencial, da França, da Bélgica, da Suíça
e de Luxemburgo 35. Esse projeto, realizado também em colaboração com especialistas
russos, nasceu seguindo o rastro do Maitron, estando seus realizadores, parte deles,
implicados há muito tempo nessa empresa prosopográfica, a começar por Claude Pennetier,
que a dirige desde a morte de Jean Maitron. É preciso lembrar aliás que, ao lado do dicionário
do movimento operário francês, outros dicionários biográficos na linha do Maitron e tratando
do movimento operário de outros países já haviam aparecido na França36, o que testemunhava
um interesse considerável pela dimensão internacional do movimento operário nos seus
aspectos biográficos. Em 1981 o Maitron havia entrado no seu quarto período, o dos anos
1914-1939. Os volumes que cobrem esse período tratavam também do comunismo como
corrente do movimento operário francês37. O dicionário biográfico dos cominternianos de
língua francesa nasceu de uma rede informal de pesquisadores, interessados pela abordagem
sociobiográfica da história do movimento operário e do comunismo, que tinham o hábito de
trabalhar juntos. Franceses, belgas, suíços, luxemburgueses, eles tinham em comum a língua
francesa, e é principalmente esse limite linguístico que levou a delimitar assim o projeto. O
grupo havia estabelecido contatos regulares com historiadores e arquivistas russos (Mikhaïl
Narinski, Michel Panteleïev, Marina Smolina), e é dessa colaboração que resultou, no final, o
dicionário. O volume inicia por uma história do Comintern por Serge Wolikow e apresenta em
seguida perto de 500 biografias, redigidas no modelo daquelas do Maitron: são verdadeiras
35Sobre o nascimento e o desenvolvimento desse projeto ver GOTOVITCH, José. "Zum biographischen Wörterbuch der Kommunistischen internacionale für die französischsprechenden Länder", in M. BUCKMILLER, M.; MESCHKAT, K. op. cit., p. 101-110. 36Áustria (1971), Japão (1971-1972), China (1985), Grã-Bretanha (1986), Alemanha (1990), Marrocos (1998). 37DBMOF. Quatrième partie : 1914-1939. De la première à la Seconde guerre mondiale, sob a dir. de Jean MAITRON e Claude PENNETIER, vol. 16-43, Paris, 1981-1993. Essa quarta parte do DBMOF foi redigida antes da abertura dos arquivos de Moscou. A abertura desses arquivos permitiu realizar numerosas integrações, que figuram na nova edição do Maitron na forma de CD-rom.
[BIOGRAFIA E AUTOBIOGRAFIAS COMO FONTES PARA A HISTÓRIA DO COMUNISMO: OS TRABALHOS DE BIOGRAFIA COLETIVA APÓS A ABERTURA DOS ARQUIVOS DO COMINTERN
* BRUNO GROPPO]
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histórias de vida, detalhadas, solidamente documentadas e bem apresentadas. Essa obra,
escreve Claude Pennetier em sua apresentação do que ele chama "um ensaio de biografia
coletiva", "permite descobrir, por detrás da imagem rigidificada do cominterniano, ao mesmo
tempo aventureiro e agente disciplinado, a vida dos atores da IC nos seus diferentes períodos.
Aos criadores às vezes afastados pela evolução da Internacional, sucede-se uma geração
bolchevique formada nas Escolas leninistas, enquadrada, "verificada", disciplinada, que
forjará as direções dos partidos comunistas nacionais, não sem dificuldades, assim como ela
exaltará "o homem novo". (…)
Os cominternianos eram em primeiro lugar os atores da vida das instâncias
internacionais (congresso, plenária), mas também, emissários políticos e técnicos nas
diferentes seções ou responsáveis pelos serviços na sede do Komintern. O secundário tornou-
se principal. Ao oferecer esses quinhentos itinerários, nós pretendemos permitir uma releitura
da dimensão internacional do comunismo no tempo do bolchevismo e do stalinismo"38
Entre os trabalhos de biografia coletiva tratando de um partido comunista publicados
recentemente, o mais notável é, na minha opinião, o dicionário biográfico dos comunistas
alemães para o período de 1918-1945, publicado em 2004 por Hermann Weber e Andreas
Herbst39. Essa obra é o coroamento de uma longa série de trabalhos nos quais Hermann
Weber, o principal especialista do comunismo alemão, já havia explorado a dimensão
biográfica desse movimento. Seu estudo sobre o comunismo alemão na República de Weimar,
publicado em 196940 e desde então obra de referência, já continha mais de 500 biografias de
quadros comunistas alemães, redigidas com base nas informações então disponíveis. Essas
biografias não se limitavam ao período da República de Weimar (1919-1933), mas levavam
em conta igualmente a trajetória política desses quadros durante a ditadura nacional-socialista
e após 1945. Em 1989 Weber publicava uma outra obra, desta vez sobre os comunistas
alemães vítimas das repressões stalinistas41. O livro continha curtas biografias de quase 400
38PENNETIER, Claude. “Présentation”, in Komintern : l’histoire et les hommes, op. cit., p. 8. 39WEBER, Hermann; HERBST, Andreas. Deutsche Kommunisten. Biographisches Handbuch 1918 bis 1945. Berlim: Dietz, 2004. Uma nova edição, revista e aumentada, foi publicada em 2008. 40WEBER, Hermann. Die Wandlung des deutschen Kommunismus; die Stalinisierung der KPD in der Weimarer Republik. Frankfurt am Main: Europaische Verlagsanstalt, 1969. (2 vol.) 41WEBER, Hermann. Weisse Flecken in der Geschichte. Die KPD-Opfer der stalinschen Säuberungen und ihre Rehabilitierung. Frankfurt am Main: ISP-Verlag, 1989. Uma nova edição, aumentada, foi publicada no ano seguinte em Berlim pelo editor Christoph Links. Em 1998 Weber dirigiu, com Ulrich Mahlert, um grande
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comunistas alemães que perderam a vida nas prisões ou nos campos soviéticos ou na
Alemanha após terem sido entregues pela URSS à Gestapo durante o pacto germano-
soviético. A abertura dos arquivos comunistas da ex-República Democrática Alemã após a
unificação, e em seguida dos arquivos do Comintern após o fim da URSS permitiram a
Hermann Weber, com a colaboração de Andreas Herbst, alargar e aprofundar as pesquisas
biográficas sobre os comunistas alemães, resultando assim no que se pode verdadeiramente
chamar uma biografia coletiva dos comunistas alemães até 1945. A obra, editada em 2004 e
reeditada em 2008, contém as biografias de 1400 quadros comunistas encarregados com
responsabilidades dentro do KPD e de outras organizações de massa entre 1918 e 1945. Não
existem, que seja de meu conhecimento, trabalhos de amplitude comparável a este para outros
partidos comunistas. Citaremos contudo, ainda no domínio sociobiográfico, os trabalhos de
Kevin Morgan sobre os comunistas britânicos42, as pesquisas que se multiplicaram em vários
países sobre os voluntários das brigadas internacionais na guerra da Espanha43, ou sobre
diferentes exílios políticos ligados ao movimento operário, etc. 44 . Todos esses trabalhos se
desenvolveram em um contexto científico e cultural favorável ao florescimento do método
sociobiográfico, que foi aplicado também ao estudo de grupos sociais e políticos muito
distantes do movimento operário ou do comunismo45.
volume sobre as purificações stalinistas : ver WEBER, Hermann; MAHLERT, Ulrich (dir.), Terror: Stalinistische Parteisauberungen 1936-1953: Paderborn: Schöningh, 1998. (nova edição, aumentada, em 2001). Sobre o destino trágico da maior parte dos comunistas alemães refugiados na URSS ver também MÜLLER, Reinhard. Menschenfalle Moskau. Exil und stalinistische Verfolgung, Hamburg: Hamburger Edition HIS Verlag, 2001. (Esse livro contém também uma lista das vítimas e notas biográficas). 42 MORGAN, Kevin; COHEN, Gidon; FLYNN, Andrew. Communists in British Society 1921-1991, Londres: Rivers Oram Press, 2006. MORGAN, Kevin; CAMPBELL, Alan (ed.). Party People. Communist Lives, Londres: Lawrence & Wishart, 2001. 43SKOUTESKY, Rémi. L’espoir guidait leurs pas. Les volontaires français dans les brigades internacionales 1936-1939. Paris: Grasset, 1998. BILL, Alexander. British Volunteers for Liberty: Spain 1936-1939. Londres, 1982. LANDAUER Hans. em colaboração com HACK, Erich. Lexikon der österreichischen Spanienkämpfer 1936-1939. Viena, 2003. WEHENKEL, Henri. D’Spaniekämpfer. Volontaires de la guerre d’Espagne partis du Luxembourg. Dudelange, 1997. NIC, Ulmi; HUBER, Peter. Les combattants Suisses en Espagne républicaine (1936-1939). Lausanne: Verlag Antipodes, 2001. BAUMANN, Gino Gerold. Los voluntarios latinoamericanos en la guerra civil española. San José de Costa Rica: Editorial Guayacán, 1997. 44Ver também os ensaios reunidos em GROPPO, Bruno; UNFRIED, Berthold (dir.). Gesichter in der Menge. Kollektivbiographische Forschungen zur Geschichte der Arbeiterbewegung. Viena: Akademische Verlagsanstalt, 2006. 45Um exemplo particularmente interessante é o estudo de Michael Wildt sobre os quadros dirigentes do Reichssicherheitshauptamt nazista (400 pessoas de um total de 3000 funcionários dessa instituição). Cf. WILDT, Michael. Generation des Unbedingten. Das Führungskorps des Reichssicherheitshauptamtes. Hamburg, 2002.
[BIOGRAFIA E AUTOBIOGRAFIAS COMO FONTES PARA A HISTÓRIA DO COMUNISMO: OS TRABALHOS DE BIOGRAFIA COLETIVA APÓS A ABERTURA DOS ARQUIVOS DO COMINTERN
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Conclusões
A grande importância dada à biografia/autobiografia e ao controle biográfico foi uma
característica específica do comunismo, sobretudo no período stalinista. Os arquivos do
Comintern e dos partidos comunistas contém, por conseguinte, uma quantidade considerável
de documentos biográficos/autobiográficos sobre os quadros e os militantes desse movimento,
que constituem uma fonte preciosa para os historiadores do comunismo, mas também para os
sociólogos, os antropólogos, os linguistas. Esses documentos tornaram-se, pela primeira vez,
parcialmente acessíveis aos pesquisadores graças à abertura dos arquivos na Rússia e nos
outros países ex-comunistas da Europa central e oriental após o desmoronamento dos regimes
comunistas. A abertura dos arquivos comunistas – parcial, repetimos, para os documentos
biográficos (que, por definição, tocam a vida privada), muito mais ampla para os outros -
permitiu relançar sobre bases mais sólidas os estudos sobre a história do comunismo. Entre as
novas pistas de pesquisa que se abriram, aquelas que se inspiram na abordagem
sociobiográfica se mostraram particularmente fructuosas. A partir dos anos 1990, grupos de
pesquisadores do Oeste europeu puseram em obra, em colaboração com pesquisadores e
arquivistas russos, projetos de biografia coletiva tratando sobretudo dos quadros do
Comintern. Desse trabalho resultaram até o momento uma base de dados sobre os quadros do
Comintern, no seu conjunto, e dois dicionários biográficos, um sobre os kominternianos de
língua francesa, o outro sobre o Comintern e a América Latina. Outras pesquisas
prosopográficas foram realizadas sobre os quadros de certos partidos comunistas, em
particular o partido alemão, assim como sobre alguns grupos, como os voluntários das
brigadas internacionais, que contavam com um número importante de comunistas nas suas
fileiras. Foi igualmente possível, graças à abertura dos arquivos russos e de outros países,
realizar pesquisas aprofundadas sobre as vítimas das repressões stalinistas na ex-União
Soviética e em outros lugares. Podemos assinalar como particularmente significativa, por seu
interesse metodológico e seu caráter exaustivo, uma sobre as vítimas italianas das repressões
na União Soviética46.
46DUNDOVICH, Elena; GORI, Francesca; GUERCETTI, Emanuela. (eds.). Reflections on the Gulag. With a documentary appendix on the Italian victims of repression in the USSR. Milão: Fondazione Feltrinelli, 2003. A pesquisa conduzida pela Fundação Feltrinelli de Milão, em colaboração com a associação russa Memorial
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Os estudos sociobiográficos sobre o movimento comunista, que nos interessam aqui,
conheceram desde os anos 1990 uma forte impulsão. Eles permitiram renovar parcialmente
esse campo de pesquisa, ao mesmo tempo evitando as armadilhas de uma historiografia
política que reduziria o fenômeno comunista a uma aventura criminal e que ignoraria suas
outras dimensões. Eles se situam no âmbito mais geral dos trabalhos de biografia coletiva que
resultaram, entre outras coisas, na realização de dicionários biográficos do movimento
operário em vários países. O método sociobiográfico continua a obter resultados significativos
na história operária e social, entre os quais, no Brasil, com o dicionário biográfico do
movimento operário no Rio de Janeiro, dirigido por Claudio Batalha47, e outros dicionários
atualmente em preparação. Esse método se interessa pelo indivíduo como ator da história, mas
situando-o no contexto mais vasto da sua geração, do seu meio político e cultural, de um
universo mental partilhado com outros indivíduos.
É preciso não perder de vista, naturalmente, as diferenças que separam o trabalho
sociobiográfico sobre o movimento operário e sobre o movimento comunista. Enquanto
movimento, o comunismo foi uma corrente do movimento operário e tem então seu lugar no
seio deste. Porém o comunismo foi também um sistema estatal, cujas instituições, por
exemplo os sindicatos oficiais, podem dificilmente ser consideradas como parte do
movimento operário, ainda que eles continuassem a reivindicá-lo nos discursos48. Podemos
dizer, para resumir, que os trabalhos sociobiográficos sobre os movimentos operários do
século XX trazem também numerosos elementos de conhecimento sobre os militantes e os
quadros comunistas que estiveram ativos nesses movimentos; e que, vice-versa, os dicionários
biográficos sobre os quadros e militantes comunistas contribuem também para o
conhecimento dos movimentos operários de forma geral.
As fontes e as práticas biográficas que evocamos – autobiografias de partido,
questionários, avaliação, autocrítica, confissão, revisões periódicas – constituem uma
especificidade do mundo comunista e de sua herança arquivística. Enquanto fontes, elas
permitiu a realização de uma base de dados biográficas ("Gli italiani nel Gulag"), consultável on-line, que apresenta breves biografias de mais de mil vítimas italianas das repressões na União Soviética (http://www.gulag-italia.it/gulag/gulaghome2.htm). 47BATALHA, Claudio (dir.). Dicionário do movimento operário - Rio de Janeiro do século XIX aos anos 1920 – militantes e organizações. Fundação Perseu Abramo, 2009. 48Nesse caso, seria preciso incluir igualmente no movimento operário os sindicatos fascistas italianos ou seus homólogos franquistas ou nazistas.
[BIOGRAFIA E AUTOBIOGRAFIAS COMO FONTES PARA A HISTÓRIA DO COMUNISMO: OS TRABALHOS DE BIOGRAFIA COLETIVA APÓS A ABERTURA DOS ARQUIVOS DO COMINTERN
* BRUNO GROPPO]
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podem ser utilizadas tanto para investigações propriamente históricas quanto para análises
provenientes de outras disciplinas (a sociologia, a antropologia, a psicologia, a linguística).
Elas nos informam não somente sobre a pessoa "biografada" e seu universo mental e político,
mas também sobre o funcionamento e os objetivos da instituição, o partido, responsável pelo
controle biográfico. Elas permitem seguir, passo a passo, a construção de um certo tipo de
quadro comunista, característico da época stalinista e que, graças notavelmente às escolas do
Comintern, acabou por prevalecer no conjunto dos partidos comunistas49. As práticas de
supervisão biográfica nos partidos comunistas atingiram seu apogeu na época do stalinismo e
em seguida perderam progressivamente sua importância. São todavia os quadros selecionados
e formados nessa época que dirigiram os partidos comunistas durante décadas.
No caso da população soviética em geral, as biografias conservadas nos arquivos
permitem analisar as estratégias individuais para contornar e omitir, utilizadas para adaptar e
apresentar sua própria biografia conforme às exigências de um poder "biocrático" que aspirava
à estabelecer um controle total sobre o indivíduo50. Após a abertura dos arquivos, numerosos
trabalhos exploraram as histórias de vida dos indivíduos sob o regime stalinista. A história
oral produziu pesquisas de enorme valor sobre a vida privada e as estratégias de sobrevivência
na Rússia stalinista51.
49Ver STUDER, Brigitte; UNFRIED, Berthold. Der stalinistische Parteikader. Identitätsstiftende Praktiken und Diskurse in der. Sowjetunion der Dreißiger Jahre. Colônia, Weimar, Viena: Böhlau Verlag, 2001. Para a França, ver os trabalhos de Claude Pennetier e Bernard Pudal, em particular "La politique d’encadrement : le cas français", in. DREYFUS, Michel; GROPPO, Bruno; INGERFLOM, Claudio; LEW, Roland; PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard; WOLIKOW, Serge. Le siècle des comunismes. Paris: Editions de l’Atelier, 2000. p.359-368. PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. "Le questionnement biographique en France" in PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. Autobiographies, autocritiques, aveux dans le monde comuniste, op. cit., p. 119-153. Em anexo desse artigo está reproduzido o "Esquema de autobiografia (1931, revisto em 1937)" (154-156), utilizado pelo partido comunista francês. Com suas 73 perguntas, ele deveria servir ao militante para redigir sua autobiografia e devia ser devolvido ao partido junto a este. 50Cf. FITZPATRICK, Sheila. "The two faces of Anastasia.: narratives and counter-narratives of identity in Stalinist everyday life ". in STUDER B.; UNFRIED, B. Parler de soi sous Stalin …, op. cit., p. 53-63. A autora mostra como Anastasia Plotnikova, uma mulher comum que se tornou uma administradora comunista em Leningrado na metade dos anos 1920 havia adaptado sua biografia e como o NKVD, investigando sobre ela em 1936, procedeu a uma leitura completamente diferente. Ver também FITZPATRICK , Sheila; SLEDZKINE, Yuri (eds.) In the Shadow of Revolution. Life Stories of Russian Women from 1917 to the Second World War. Princeton: Princeton University Press, 2000. Sobre a obsessão bolchevique pelo pertencimento de classe ver FITZPATRICK, Sheila. “Ascribing class. The construction of social identity in Soviet Russia". Journal of Modern History, n. 65, 1993, p. 745-770. 51FIGES, Orlando. Les chuchoteurs. Vivre e survivre sous Stalin. Paris: Denoël, 2009. (orig. The Whisperers. Private Life in Stalin’s Russia. London: Allen Lane, 2007).
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Um vasto campo de pesquisa se abre diante dos historiadores do comunismo
interessados pela abordagem sociobiográfica. Biografias coletivas como aquela de Weber e
Herbst sobre os comunistas alemães seriam desejáveis também para outros países. Aqueles
que considerariam se atrelar a uma tal empresa encontrarão numerosas indicações úteis nos
trabalhos evocados neste artigo.