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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ NUESTRA AMÉRICA] Ano 2, n° 2 | 2012, verão ISSN [2236-4846] 226 Biografias e autobiografias como fontes para a história do comunismo. Os trabalhos de biografia coletiva após a abertura dos arquivos do Comintern * Bruno Groppo ** Introdução 1 Uma das especificidades do comunismo foi a enorme importância que os partidos e os sistemas políticos comunistas atribuíam à biografia/autobiografia e à supervisão biográfica. Nos partidos comunistas a supervisão biográfica – por intermédio das autobiografias de partido, dos questionários biográficos e das avaliações formuladas pela comissão dos quadros do partido - era o principal método de controle, de seleção e de gestão dos quadros e mais geralmente dos militantes. Nos sistemas de tipo soviético, no qual o poder era monopolizado pelo partido comunista, a supervisão biográfica era utilizada também no interior da administração, das empresas e das instituições de Estado em geral, afim de controlar e de vigiar o conjunto da população. Um “ imenso trabalho biográfico e autobiográfico (…) – notam Claude Pennetier e Bernard Pudal - caracteriza(va) o funcionamento da URSS, da Internacional comunista e dos diferentes partidos comunistas, e, no pós-guerra, o das ‘Democracias populares’ ” 2 . Por sua amplitude e sua importância, esse fenômeno não tinha equivalente em outros movimentos ou regimes políticos da época. Introduzido após novembro de 1917, na Rússia, em princípio no seio do partido bolchevique (chamado a partir de 1918 de partido comunista) e em seguida do Estado soviético, esse sistema se generalizou a partir dos * Artigo recebido em setembro de 2011 e aprovado para publicação em fevereiro de 2012. ** Centre d’histoire Sociale du XXe Siècle - CNRS / Université de Paris I Panthéon-Sorbonne - Università di Padova – Facoltà di Scienze Politiche 1 Comunicação apresentada no Seminário internacional "Arquivo Edgard Leuenroth : historia e pesquisa" (Campinas, 17-20 de maio de 2010). 2 PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. “Un monde biographique nouveau. Avant-propos”, in PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. Autobiographies, autocritiques, aveux dans le monde communiste, Paris: Belin, 2002. p. 9.

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Biografias e autobiografias como fontes para a história do comunismo.

Os trabalhos de biografia coletiva após a abertura dos arquivos do

Comintern*

Bruno Groppo**

Introdução1

Uma das especificidades do comunismo foi a enorme importância que os partidos e os

sistemas políticos comunistas atribuíam à biografia/autobiografia e à supervisão biográfica.

Nos partidos comunistas a supervisão biográfica – por intermédio das autobiografias de

partido, dos questionários biográficos e das avaliações formuladas pela comissão dos quadros

do partido - era o principal método de controle, de seleção e de gestão dos quadros e mais

geralmente dos militantes. Nos sistemas de tipo soviético, no qual o poder era monopolizado

pelo partido comunista, a supervisão biográfica era utilizada também no interior da

administração, das empresas e das instituições de Estado em geral, afim de controlar e de

vigiar o conjunto da população. Um “ imenso trabalho biográfico e autobiográfico (…) –

notam Claude Pennetier e Bernard Pudal - caracteriza(va) o funcionamento da URSS, da

Internacional comunista e dos diferentes partidos comunistas, e, no pós-guerra, o das

‘Democracias populares’ ”2. Por sua amplitude e sua importância, esse fenômeno não tinha

equivalente em outros movimentos ou regimes políticos da época. Introduzido após novembro

de 1917, na Rússia, em princípio no seio do partido bolchevique (chamado a partir de 1918 de

partido comunista) e em seguida do Estado soviético, esse sistema se generalizou a partir dos

* Artigo recebido em setembro de 2011 e aprovado para publicação em fevereiro de 2012. ** Centre d’histoire Sociale du XXe Siècle - CNRS / Université de Paris I Panthéon-Sorbonne - Università di Padova – Facoltà di Scienze Politiche 1 Comunicação apresentada no Seminário internacional "Arquivo Edgard Leuenroth : historia e pesquisa" (Campinas, 17-20 de maio de 2010). 2PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. “Un monde biographique nouveau. Avant-propos”, in PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. Autobiographies, autocritiques, aveux dans le monde communiste, Paris: Belin, 2002. p. 9.

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anos 1920 no conjunto dos partidos comunistas e do Comintern3. Após a Segunda Guerra

Mundial, se estendeu aos novos países em que os comunistas tomaram o poder. Após ter

atingido seu apogeu na época stalinista, entre o fim dos anos 1920 e meados dos anos 1950,

esse sistema de controle biográfico começou em seguida a enfraquecer, ao mesmo tempo

permanecendo durante décadas ainda um dos traços distintivos dos partidos e dos regimes

comunistas. As reflexões apresentadas abaixo concernem sobretudo à época do stalinismo.

Dois aspectos nos interessam mais particularmente: de um lado, os rastros que esse sistema de

supervisão biográfica deixou nos arquivos dos partidos e dos Estados comunistas (que

chamaremos, para simplificar, de arquivos do comunismo); e de outro, sua importância para

as pesquisas, notavelmente históricas, sobre o comunismo.

Os documentos biográficos nos arquivos comunistas

A importância dada às questões biográficas no mundo comunista levou ao acúmulo de

uma massa considerável de dossiês pessoais sobre os quadros e militantes comunistas nos

arquivos dos partidos e dos Estados comunistas. O comunismo, que Nicolas Werth definiu

como “uma cultura do relatório”, deixou atrás de si uma quantidade impressionante de

documentos escritos, que permaneceram durante muito tempo inacessíveis aos pesquisadores.

Entre esses documentos, aqueles de caráter biográfico e autobiográfico ocupam um lugar não

negligenciável. Parcialmente acessíveis graças à abertura dos arquivos comunistas nos anos

1990, eles permitiram explorar a história do comunismo com outras abordagens além daquela

da história política tradicional, atenta sobretudo à evolução do discurso, da ideologia, e aos

aspectos organizativos. A abordagem sociobiográfica, em particular, permitiu realizar, a partir

da abertura dos arquivos, biografias coletivas dos atores do movimento comunista e

compreender melhor o papel da subjetividade nesse movimento e nas sociedades comunistas.

Esse método já era usado nos estudos sobre o movimento operário (e, logo, também sobre os

3 Os partidos comunistas se apresentavam então como as seções nacionais de um partido agindo em escala mundial, a Internacional Comunista (IC) ou Comintern. Esse modelo de organização muito centralizado, de tipo quase militar, era uma novidade em relação às internacionais operárias.

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militantes comunistas nesse movimento, dentro do qual o comunismo foi um componente)4,

sobretudo à partir dos anos 1970, e havia levado à realização de dicionários biográficos do

movimento operário em vários países. Graças à disponibilidade das fontes biográficas já

citadas, ela se revelou nas duas últimas décadas muito frutífera nas pesquisas sobre os atores

do movimento comunista. Evocarei mais além alguns projetos de pesquisa que foram

possibilitados pela abertura dos arquivos comunistas e que permitiram organizar dicionários

ou bases de dados biográficos sobre os quadros comunistas que exerceram algum papel no

Comintern; assim como um trabalho sociobiográfico de grande envergadura sobre os

comunistas alemães de 1918 a 1945. Farei alusão mais rapidamente, em compensação, a

outras pesquisas recentes sobre a dimensão biográfica e autobiográfica no mundo comunista.

O acesso a novas fontes permitiu de fato aprofundar a reflexão sobre alguns mecanismos que

caracterizaram o mundo comunista, como a autocrítica, as confissões, as purgações, e mais em

geral “a autoanálise” dos militantes comunistas. Ainda que já se dispusesse de elementos de

conhecimento sobre esses aspectos, graças sobretudo aos testemunhos de ex-comunistas, o

acesso aos arquivos permitiu ter uma visão mais precisa, menos “impressionista”, e uma

compreensão mais fina, em particular da construção de um novo tipo de militante, o quadro

stalinista, que apresenta traços comuns mesmo em situações geográficas e contextos culturais

muito diferentes.

A supervisão biográfica nos partidos comunistas

Nos partidos comunistas, qualquer militante que obtinha responsabilidades no seio da

organização devia redigir uma nota autobiográfica (que chamaremos aqui autobiografia de

partido) ou preencher um questionário biográfico (em russo anketa) preestabelecido, dando

informações detalhadas, de caráter a uma só vez pessoal e político, sobre sua origem social,

sua família, seus conhecidos, seu nível de instrução, seu trabalho, seu itinerário político, suas

4 O comunismo foi um componente, mais ou menos importante segundo os países e as épocas, do movimento operário na medida em que este manteve sua autonomia e sua independência. A situação é muito diferente nos Estados comunistas, em que o movimento operário perdeu qualquer autonomia e foi absorvido pelo partido-Estado.

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atividades militantes, as perseguições sofridas, as funções exercidas, etc5. Uma vez

verificadas, para assegurar sua veracidade, essas informações eram objeto de uma avaliação

(em russo karacteristika) pelos responsáveis da comissão dos quadros. Elas permitiam aos

dirigentes do partido ter uma ideia bastante precisa do militante em questão, de suas

capacidades e de seus pontos fracos, de seu vínculo à causa, e assim considerar em quais

tarefas ele poderia ser mais útil ao partido e quais responsabilidades se poderia eventualmente

confiar a ele. Esse controle biográfico respondia ao mesmo tempo a uma inquietação em

matéria de segurança - se proteger de eventuais infiltrados - e à exigência de uma gestão

eficaz dos “recursos humanos” disponíveis. O partido aspirava a formar um tipo de quadro

totalmente devotado à causa comunista, disposto a sacrificar-lhe inteiramente sua vida

privada. Já que se tratava de formar “revolucionários profissionais”, conforme o modelo

esquissado por Lenin em Que fazer?, não se podia ser militante comunista part-time: o partido

exigia um engajamento ilimitado, que apagava completamente a fronteira entre vida privada e

atividade política. Desse ponto de vista, o militantismo comunista podia ser comparado a um

tipo de sacerdócio, de vocação religiosa baseada no espírito de sacrifício e no dom de si, o

próprio comunismo podendo ser considerado como uma religião política. O militante ideal, do

ponto de vista do partido, era aquele cujo capital político dependia inteiramente deste e que,

por consequência, devia tudo ao partido. Este desconfiava, em compensação, daqueles que

dispunham de um capital político próprio, que não dependiam da investidura conferida pelo

partido: assim, por exemplo, na França pós 1945, dirigentes comunistas que se destacaram

durante a Segunda Guerra Mundial por seu engajamento na Resistência e que tinham, dessa

forma, adquirido uma legitimidade própria, que não dependia da investidura do partido, foram

afastados das posições de responsabilidade porque eram potencialmente incontroláveis.

Na União Soviética, a prática do questionário biográfico se impôs tanto no seio do

partido como do Estado (os dois estando estritamente imbricados, já que o partido

monopolizava todo o poder). Durante a NEP – o sistema de economia mista inaugurado por

Lenin em 1921 para acalmar o descontentamento dos camponeses - o campo escapava ainda

ao empreendimento do partido, mas com a coletivização forçada da agricultura no fim dos

5PENNETIER, Claude ; PUDAL, Bernard. “Écrire son autobiographie (les autobiographies comunistes d’institution, 1931-1939)”. Genèses, 23, 1996, p. 53-75.

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anos 1920 o partido-Estado tornou-se o mestre absoluto de toda a economia. Todos os

cidadãos soviéticos estavam doravante submetidos a seu controle, que passava em larga

medida pelo controle sobre a biografia de cada um. O questionário biográfico tornou-se cada

vez mais detalhado, a lista das perguntas feitas cada vez mais longa. Os documentos de

identidade mencionavam obrigatoriamente a classe social.

Nos anos 1920, com a “bolchevização”, os partidos comunistas, que nesse momento

eram ainda muito heterogêneos, se modelaram cada vez mais ao partido russo e introduziram,

eles também, um controle biográfico mais e mais esmiuçador. As autobiografias e os

questionários preenchidos pelos militantes eram confiados à comissão dos quadros, que

avaliavam esses documentos e seus autores e em seguida encaminhava os mais importantes à

sede do Comintern, onde eles eram classificados nos arquivos dessa organização e submetidos

a novas avaliações. As purgações periódicas, outra novidade introduzida pelo partido

bolchevique, implicavam “verificações” em larga escala, isto é, um novo exame das biografias

dos membros do partido. A biografia constituía, então, um elemento central do mundo

comunista.

No que concerne às biografias de partido, o ideal buscado era a transparência absoluta.

O militante não devia esconder nada do partido, pois isso significaria falta de confiança e uma

adesão “sob reservas”. Ora, biografias redigidas em períodos diferentes da vida de um

militante apresentavam inevitavelmente diferenças, que podiam a qualquer momento ser

interpretadas como elementos de acusação. A comissão dos quadros, encarregada das

biografias, então, detinha um poder temível. Ela utilizava as biografias para selecionar os

militantes, promovê-los ou retrogradá-los, breve, para gerir o pessoal político comunista, um

pouco como a direção de pessoal de uma empresa, (o Comintern podendo por sua vez ser

comparado a uma empresa multinacional com filiais, os PCs, no mundo inteiro).

O Comintern e a difusão das práticas biográficas soviéticas

Diferente da Segunda ou da Primeira Internacional, o Comintern era uma estrutura

extremamente centralizada, concebida como um tipo de Estado-maior da revolução mundial

do qual os partidos afiliados eram simplesmente seções submetidas à autoridade do centro (o

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que queria dizer, concretamente, à autoridade do PC soviético). À centralização política

correspondia também uma centralização documental e arquivística. Os partidos comunistas

enviavam a Moscou seus documentos de arquivos, entre os quais as “bios” de seus quadros e

militantes. Essa medida respondia também a exigências de segurança: a situação de

ilegalidade na qual vários partidos comunistas se encontravam fazia Moscou parecer o local

mais seguro para guardar esses documentos. Graças a essa acumulação de informações

biográficas, a direção do Comintern dispunha a qualquer momento de uma visão completa

sobre os recursos militantes existentes nos diferentes países e podia também exercer um

estreito controle sobre cada partido, favorecendo a ascensão de certos quadros e deixando

outros de lado.

Cada dossiê individual continha geralmente várias biografias do mesmo militante,

redigidas em momentos diferentes de sua vida e seu itinerário político, assim como outros

tipos de documentos (cartas, fotos, etc.) que lhe concerniam. As versões sucessivas da

biografia podiam ser comparadas, permitindo verificar, por exemplo, se o militante havia

ocultado certas informações, ou dado versões contraditórias. Elas permitiam sobretudo seguir

nos mínimos detalhes seu percurso político e as posições que ele havia adotado nas lutas

internas do seu partido ou do Comintern: essas informações, as quais a polícia política

soviética tinha acesso direto, podiam ser utilizadas, e elas o foram efetivamente, para eliminar

(inclusive fisicamente) todos aqueles que, em um momento ou outro, se afastaram da "linha

geral" do partido). Na época do stalinismo, o simples fato de ter pertencido no passado a (ou

de ter simpatizado com) uma corrente caída em desgraça era suficiente para fazer de um

militante um suspeito de desvio ou de dissidência e para expô-lo à repressão. Na União

Soviética as repressões stalinistas atingiram igualmente numerosos comunistas estrangeiros

que se refugiaram nesse país para escapar das ditaduras fascistas nos seus países de origem6.

A utilização das biografias conservadas nos arquivos do Comintern foi um dos meios pelos

6Os comunistas alemães refugiados na União Soviética pagaram um tributo particularmente pesado. Várias centenas dentre eles foram assassinados nesse país, enquanto centenas de outros foram entregues à Gestapo na duração do pacto germano-soviético. Cf. WEBER, Hermann. "Weisse Flecken" in der Geschichte. Die KPD-Opfer der stalinschen Säuberungen und ihre Rehabilitierung. Berlim: LinksDruck Verlag, 1990. Ver também MÜLLER, Reinhard. Menschenfalle Moskau. Exil und stalinistische Verfolgung. Hamburgo: Hamburger Edition HIS Verlag, 2001. (Esse livro contém também uma lista das vítimas e notas biográficas).

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quais o stalinismo eliminou qualquer oposição no interior do partido soviético e dos outros

partidos comunistas.

Nem a socialdemocracia, de onde o comunismo era proveniente, nem as outras correntes

do movimento operário anteriores a 1914 não haviam desenvolvido práticas de controle

biográfico comparáveis àquelas do movimento comunista. Além disso, nenhum outro

movimento havia construído para si uma forma de organização internacional tão centralizada:

ora, é precisamente a centralização da organização comunista o que facilitou a generalização

das práticas biográficas do bolchevismo no conjunto dos partidos comunistas. Pode-se

lembrar, a título de comparação, que a Internacional Socialista antes de 1914 federava partidos

que buscavam coordenar sua ação sobre o plano internacional, mas na qual cada um

conservava sua plena autonomia. Se, para muitos desses partidos a socialdemocracia alemã

parecia o modelo que eles procuravam imitar, cada um permanecia, todavia, inteiramente livre

em suas escolhas. Não era diferente na Internacional Operária Socialista reconstituída após a

Primeira Guerra Mundial, ou na Federação Sindical Internacional, que reagrupava as centrais

nacionais de orientação reformista. Nos arquivos (ou o que resta deles) dessas organizações se

procuraria em vão autobiografias ou questionários biográficos como aqueles presentes nos

arquivos do Comintern. É preciso também lembrar que nenhum outro movimento se

encontrou tão estreitamente dependente de um Estado como foi o caso do movimento

comunista face à União Soviética. Essa circunstância é importante por duas razões. Em

primeiro lugar, porque o laço com a União Soviética exerceu uma influência determinante

sobre o movimento comunista internacional, a situação política em Moscou repercutindo

diretamente sobre todos os partidos comunistas. A fidelidade incondicional à União Soviética

foi durante décadas o artigo fundamental do credo comunista no mundo inteiro. A identidade

política do militante comunista se definia antes de tudo por essa fidelidade para com a "pátria

do socialismo". Em seguida, porque os recursos do Estado soviético permitiram o

desenvolvimento, no seio do movimento comunista, de um aparelho burocrático

superdimensionado, sem medida comum com aqueles dos seus concorrentes socialistas. Basta

comparar o número de pessoas empregadas pelo Comintern e a Internacional Sindical

Vermelha em Moscou e nas suas sedes no exterior com o do pessoal assalariado da IOS e da

FSI para constatar que se tratava de duas realidades completamente diferentes: de um lado,

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centenas de pessoas, remuneradas diretamente ou indiretamente pelo Estado soviético; do

outro, algumas dezenas no máximo (IOS e FSI reunidos), remunerados pelas cotizações

depositadas pelos partidos e centrais sindicais afiliadas. O Comintern e as outras organizações

internacionais comunistas especializadas (Internacional Sindical Vermelha, Internationale

Paysanne, Socorro Vermelho, etc.) dependiam materialmente do Estado soviético. Por si só, a

gestão dos arquivos do Comintern, tão preciosas para os historiadores hoje, exigia um pessoal

numeroso e qualificado, que era também remunerado pelo Estado soviético. Essa dependência

material dos partidos comunistas para com Moscou foi um dos fatores que facilitaram a

difusão das práticas russas e soviéticas nesses partidos. É também na União Soviética que

funcionavam as escolas de quadros do Comintern, como a Escola Internacional Lenin, onde se

formaram numerosos militantes comunistas, destinados em seguida a exercer funções

dirigentes no seu partido. De uma maneira geral, as escolas do partido foram um lugar de

transmissão privilegiada das práticas biográficas em vigor nos partidos comunistas7.

As origens do controle biográfico na Rússia soviética

As práticas dos partidos comunistas em matéria de controle biográfico têm sua origem

no bolchevismo russo. Para compreendê-los, é preciso debruçar sobre a situação russa.

No império czarista, os partidos socialistas não tinham existência legal8. A atividade

revolucionária em condições de ilegalidade exigia um engajamento total da parte dos

militantes, prometidos a maior parte do tempo à prisão, ao degredo ou ao exílio. Uma grande

vigilância era necessária para impedir a infiltração de agentes da polícia no seio dos

7Ver, para a Itália, BOARELLI, Marco. "Il mondo nuovo. Autobiografie di comunisti bolognesi 1945-1955". Italia contemporanea. n. 182, março de 1991; ONNIS, Gian Carlo. "La gioia di essere e il sacrificio di vivere. Autobiografie di comunisti savonesi 1945-1956", XX° Secolo. n. 7-8, 1993; MARIJNEN, Anne. "Sous le microscopo bolchevik: le contrôle biografique au sein du PCI", in PENNETIER, C; e PUDAL, B. op. cit., p. 189-201. 8Mencheviques, bolcheviques, SR, bundistas se consideravam todos como revolucionários. Somente o partido bolchevique, todavia, desenvolveu, por iniciativa de Lenin, a visão do "revolucionário profissional", tendo como missão trazer do exterior a consciência revolucionária a uma classe operária que, deixada a si própria, tendia naturalmente ao reformismo.

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movimentos revolucionários9. A biografia dos militantes era, então, escrutada com uma

atenção extrema dentro das organizações.

Tomando o poder em novembro de 1917, o partido bolchevique instalou um sistema

político que resultou rapidamente na rejeição de todos os outros partidos e na ditadura de um

só, o deles. No plano social assistiu-se a um desabamento geral dos valores. A hierarquia

social não era mais fundada sobre os elementos que a definiam anteriormente – o capital

econômico (propriedade, dinheiro), cultural (nível de instrução) ou social (o pertencimento a

categorias como a nobreza, a burguesia ou o clero) – e que doravante não tinham mais valor.

Para distribuir os cargos de responsabilidade, o novo poder devia definir outros critérios, que

permitiriam, a uma só vez, afastar as antigas elites e promover novas, inteiramente devotadas

ao novo regime. É nesse ponto que intervém, como elemento determinante para definir a nova

hierarquia social, a biografia. O critério fundamental foi o exame do passado político, da

origem social proletária e do atamento ao novo regime: o capital econômico, social, cultural,

que estava na base da antiga sociedade, foi assim substituído pelo capital político. A biografia

pessoal, e sobretudo a biografia política, adquire assim uma importância excepcional. É sobre

essa base que se seleciona doravante os quadros do novo Estado e de uma burocracia em

expansão rápida: esse critério foi aplicado à todos os aspectos da vida quotidiana, como a

atribuição de um alojamento, a provisão alimentar, etc. O Estado "operário e camponês" devia

ao mesmo tempo permitir a ascensão social dos proletários e, paralelamente, afastar das

posições de responsabilidade todos aqueles que, por seu pertencimento à elite social anterior

(nobreza, burguesia, burocracia) ou a categorias julgadas inúteis ou prejudiciais (clero, polícia,

comerciantes, artesãos), eram considerados pelo novo regime como inimigos. Neste mundo ao

inverso, em relação à Rússia anterior a 1917, o fato de pertencer à classe operária ou dela ser

proveniente tornava-se, por assim dizer, um título de nobreza que dava direito a vantagens e

que abria numerosas possibilidades de escalar a nova escala social. Os camponeses pobres

estavam inclusos na classe operária, todavia sem que se saiba exatamente onde passava a linha

de separação entre estes e o resto do campesinato. Pertencer ou ser proveniente de outras

categorias tornava-se, ao contrário, uma deficiência, que relegava à base da nova hierarquia

9 Apesar dessas medidas, infiltrações ocorreram até o mais alto nível, tanto no partido bolchevique como no dos socialistas revolucionários (SR), o caso mais espetacular sendo o de Azef, terrorista SR e informante da polícia.

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social. Já que a biografia era doravante o elemento determinante, o uso do questionário

biográfico se generalizou. Para não importa qual procedimento era-se obrigado a preencher

questionários nos quais era necessário indicar obrigatoriamente, entre outras informações, a

origem social.

Uma vez instalado só no poder, o partido comunista se encontrou rapidamente

confrontado a um problema que o pequeno partido bolchevique de antes de 1917 não havia

conhecido: um afluxo enorme de novos aderentes, e por conseguinte a necessidade de triar

para distinguir o joio do trigo, os revolucionários dos oportunistas. Com esse objetivo, o

partido começou, a partir de 1919, a efetuar "recadastramentos" dos recém-chegados,

utilizando como critério de triagem a biografia de cada um.

No Comintern também se tratava de triar, afim de impedir a entrada de elementos

reformistas nos novos partidos comunistas10. Progressivamente, as práticas biográficas que se

estabeleciam no partido e no Estado soviéticos se generalizaram no conjunto do partidos

comunistas, graças notavelmente à "bolchevização". Em cada partido começou-se a redigir

várias "bios" e a preencher questionários biográficos. Para felicidade dos futuros historiadores,

essas práticas biográficas deixaram de herança, nos arquivos dos partidos comunistas e do

Comintern, uma quantidade muito importante de dados biográficos11.

As biografias e os questionários biográficos eram concebidos como instrumentos de

informação e de controle que deviam servir ao partido e ao Comintern exclusivamente para

uso interno. A prática do sigilo, instaurada desde os anos 1920 e levada ao extremo pelo

stalinismo, relegava a um fechamento perpétuo os arquivos do movimento comunista.

10 É precisamente com este fim que foram aprovadas pelo segundo congresso do Comintern (1920) as famosas "Vinte e uma condições para a admissão à Internacional Comunista". 11 Em maio de 1926 uma circular do Comitê Executivo da Internacional Comunista (CEIC) pedia às seções da IC para transmitir os arquivos de partido aos arquivos centrais da IC em vista de sua conservação. Essa disposição concernia ao conjunto dos documentos produzidos pelos partidos comunistas, inclusas, então, as biografias dos quadros e militantes. Os documentos de natureza biográfica eram desde o início competência do Sekrétariat do CEIC. No início de 1921, todos os documentos do Secretariado do CEIC e todos os documentos de caráter secreto foram retirados dos arquivos gerais da IC e confiados a uma seção secreta. A partir de 15 de junho de 1932, os documentos de caráter biográfico foram confiados à Seção dos Quadros do CEIC, que acabava de ser criada. FOMITSCHOW, Waleri. "Organisation und Entwicklung der Aktenführung im Apparat des Komintern". in BUCKMILLER, Michael; MESCHKAT, Klaus (dir.). Biographisches Handbuch zur Geschichte der Kommunistischen internacionale. Ein deutsch-russisches Forschungsprojekt. Berlim: Akademie Verlag, 2007. p. 55-56.

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Biografias coletivas de quadros comunistas: primeiras experiências

Na União soviética, o Dicionário enciclopédico soviético Granat publicou de 1927 a

1929, por ocasião do décimo aniversário da revolução de Outubro, uma série de biografias

autorizadas de personalidades bolcheviques, redigidas de 1924-1925 (então antes da vitória de

Stalin e da eliminação de qualquer oposição no interior do partido)12, que, como ressaltou

Georges Haupt13, testemunham a heterogeneidade ideológica e política da velha guarda

bolchevique. Esses verbetes podem ser considerados como o primeiro esboço de uma

biografia coletiva dos dirigentes bolcheviques. À medida que o stalinismo se consolidava na

União Soviética (e no movimento comunista), tais publicações tornaram-se impossíveis,

porque os dirigentes comunistas caídos em desgraça, excluídos do partido e atingidos pelas

repressões stalinistas tornavam-se desde então "não-pessoas" cujos nomes não podiam mais

ser mencionados, salvo nos autos de acusação e nas condenações emitidas pelos tribunais, por

ocasião dos "processos de Moscou", que liquidaram a velha guarda bolchevique. Essa prática

soviética de transformar em "não-pessoas" e de relegar ao esquecimento os comunistas

dissidentes ou heréticos se instalou também nos outros partidos comunistas, então

"stalinizados", ao mesmo tempo, outras práticas provenientes da experiência soviética, como

as sessões de autocrítica14, a confissão pública dos "desvios" cometidos, e até mesmo a prática

dos processos, copiada do modelo dos "processos de Moscou" dos anos 193015.

12 Enciclopédia Granat. Deiateli SSSR y Oktiabr’skoi Revoliutsii. Moscou: 1927-1929. Ver a tradução em francês em HAUPT, Georges; MARIE, Jean-Jacques. Les Bolchéviks par eux-mêmes. Paris: Maspero, 1969. Ver também a análise dessas biografias por MOSSE, Werner. "Makers of the Soviet Union", Slavonic and East European Review. London, n. 46, 1968. p. 141-154. 13 Ibid. p. 19. 14Cf. UNFRIED, Berthold. "L’autocritique dans les milieux cominterniens des années 1930", in PENNETIER, C.; PUDAL, B. Autobiographies …, op. cit., p. 43-62 . Id., "Parler de soi au parti. L’autocritique dans les milieux du Komintern en URSS dans les années trente". in STUDER, Brigitte; UNFRIED, Berthold; HERRMANN, Irène (dir.). Parler de soi sous Stalin. La construction identitaire dans le comunisme des années Trente. Paris: Editions de la MSH, 2002, p. 147 e seguintes. 15Alguns "processos de Moscou" ocorreram após 1945 em vários países comunistas da Europa oriental (processo Rajk na Hungria, processo Kostov na Bulgária, processo Slansky na então Tchecoslováquia). Eles tiveram seu correspondente na França com o "caso" Marty-Tillon, e na Itália com o caso Cucchi-Magnani.

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[BIOGRAFIA E AUTOBIOGRAFIAS COMO FONTES PARA A HISTÓRIA DO COMUNISMO: OS TRABALHOS DE BIOGRAFIA COLETIVA APÓS A ABERTURA DOS ARQUIVOS DO COMINTERN

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O comunismo no poder publicou também, mas bastante tardiamente, dicionários

biográficos16. Redigidos por "coletivos de historiadores" dos Institutos de Marxismo-

Leninismo, a instituição a cargo da "história oficial" nos regimes comunistas, esses

dicionários obedeciam a critérios políticos tanto na seleção dos nomes que podiam figurar ali

quanto na redação dos verbetes. Considerando o fato de que nesses regimes a "história oficial"

era remanejada sem cessar, a sorte dessas obras permanecia sempre incerta. Um dos

problemas mais delicados aos quais eles se confrontaram era o dos quadros comunistas

vítimas das repressões stalinistas na União Soviética. Esse problema era particularmente

colocado para partidos como o Partido Comunista Alemão, do qual várias centenas de

militantes haviam sido assassinados na União Soviética, ou ainda para o partido comunista

polonês, do qual praticamente todos os quadros que tiveram a infelicidade de se encontrar

nesse país nos anos 1930 haviam sido liquidados fisicamente. O Biographisches Lexicon leste-

alemão de 1970 (que tratava do conjunto do movimento operário alemão, não somente os

comunistas) apresentava, pela primeira vez, as biografias de dez dirigentes comunistas

alemães vítimas das repressões na União Soviética, precisando que eles eram inocentes. Era,

aparentemente, ir longe demais. Imediatamente após sua publicação, o volume foi retirado de

circulação, e só reapareceu em algumas livrarias dez anos mais tarde17. Com toda evidência,

enquanto o partido persistia a querer exercer o monopólio da verdade histórica, redigir um

dicionário biográfico permanecia um exercício perigoso.

Uma primeira exploração de caráter científico da dimensão biográfica do Comintern foi

o Biographical Dictionary of the CominternLearn about Author Central, publicado em 1973

por Branko Lazitch em colaboração com Milorad Drachkovitch, quando os arquivos de

Moscou ainda estavam rigorosamente fechados. Apareciam nesta obra 718 biografias de

quadros comunistas que exerceram algum papel no seio do Comintern 18. Nesse ínterim, a

abordagem sociobiográfica se afirmava progressivamente no campo científico como um 16 Ver por ex., para a RDA, Institut für Marxismus-Leninismus beim ZK der SED. Geschichte der deutschen Arbeiterbewegung. Biographisches Lexikon. Berlim: Dietz, 1970; para a Tchecoslováquia, Prirucni Slovnik k Dejinam KSC [A Concise Dictionary of the History of the CPCS]. Praga: Nakl. politické literatury SNPL, 1964. 17WEBER, H."Weisse Flecken" in der Geschichte. …, op. cit., p. 45-47. No volume apareciam também, pela primeira vez, os nomes de ex-dirigentes comunistas caídos em desgraça, como Paul Levi, Heinrich Brandler, Ruth Fischer e outros. 18LAZITCH, Branko; DRACHKOVITCH, Milorad. Biographical Dictionary of the Comintern, Stanford: Hoover Institution Press, 1973. Uma nova edição, revista e aumentada, foi publicada em 1986, contendo desta vez 753 biografias.

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método original da história social, em particular na labour history. O exemplo mais

conhecido, e provavelmente o mais interessante no plano do método, é o do Dictionnaire

biographique du mouvement ouvrier français , obra de grande envergadura dirigida e por

iniciativa do historiador Jean Maitron e por isso chamada habitualmente de Le Maitron19 ; mas

essa abordagem se difundia também em outros países, notavelmente na Inglaterra e na

Alemanha20. Neste país a abordagem através da biografia coletiva da história do movimento

operário foi desenvolvida em particular, desde o fim dos anos 70, pelo Zentrum für

Historische Sozialforschung da Universidade de Colônia, por iniciativa do Prof. Wilhelm

Heinz Schröder. Entre os principais resultados desse trabalho é preciso citar um dicionário

biográfico dos deputados e candidatos social-democratas ao Parlamento do Reich (Reichstag)

de 1898 a 191821 e a base de dados BIOSOP sobre os parlamentares social-democratas no

Reichstag e nos parlamentos regionais (Landtage) de 1867 a 193322.

Alguns projetos sociobiográficos após a abertura dos arquivos comunistas

Para os historiadores do comunismo as biografias de militantes conservadas nos

arquivos do Comintern e tornadas em parte acessíveis após a abertura dos arquivos soviéticos

nos anos 1990, representam uma fonte extremamente preciosa, sobretudo para uma

abordagem sociobiográfica. Convém lembrar que antes da abertura dos arquivos do

Comintern os historiadores do comunismo tinham a sua disposição três tipos de fontes :

primeiramente, as biografias e autobiografias "oficiais" de dirigentes comunistas23, que

obedecem, no essencial, a uma lógica hagiográfica e de legitimação; em segundo lugar, as

19GOTOVITCH, José. art. cit. 20 GALLUS, Alexander. " Biographie und Zeitgeschichte", Aus Politik und Zeitgeschichte. Bonn, 2005, n. 1-2, p. 40-46. 21 SCHRÖDER, Wilhelm Heinz. Sozialdemokratische Reichstagsabgeordnete und Reichstagskandidates 1898-1918. Biographisch-statistisches Handbuch. Düsseldorf, 1986. 22SCHRÖDER, Wilhelm Heinz. SozialdemokratischeParlamentarier in den deutschen Reichs- und Landtagen 1867-1933. Düsseldorf, 1995. A base de dados BIOSOP pode ser consultada diretamente na internet no site do Centro na Universidade de Colonha (http://biosop.zhsf.uni-koeln.de/) ou no da Fundação Friedrich Ebert (http://www.fes.de/hfz/arbeiterbewegung/Members/schochr/biosop-online . 23Típico, sob esse ponto de vista, a autobiografia do dirigente comunista francês Maurice Thorez, Fils du peuple, publicada em 1937. Ver PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. "Les autobiograohies des "fils du peuple". De l’autobiographie édifiante à l’autobiographie auto-analytique", in PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. op. cit. p. 217-246 ; GROPPO, Bruno. "Entre autobiographie et histoire. Les récits autobiographiques de communistes italiens publiés après 1945", in PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. op. cit. p. 247-265.

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narrativas autobiográficas de ex-comunistas, que tratam frequentemente do registro da

confissão (dos erros ou das ilusões passadas) e do ajustamento de contas com o partido e os

antigos camaradas24 ; e enfim, os documentos conservados nos arquivos de polícia25. Vinham

acrescentar-se, mais raramente, biografias "atípicas", escritas em uma perspectiva de

historiador, como por exemplo a biografia de Stalin por Boris Souvarine26. Faltava, todavia,

um elemento essencial: os arquivos dos partidos comunistas. A obsessão pelo sigilo,

característica do movimento comunista, e a impossibilidade de acesso aos arquivos

entravaram durante muito tempo o desenvolvimento das pesquisas sobre o comunismo. Não se

saberia, então, subestimar a importância da abertura desses arquivos nos anos 1990 como

consequência do desmoronamento do sistema soviético: pondo fim a esses bloqueios, ela abriu

o caminho para uma nova fase dos estudos sobre esse assunto.

A abertura dos arquivos dos partidos comunistas nos países ex-comunistas da Europa

central e oriental após 1989, e mais ainda a dos arquivos russos após o fim da União Soviética,

modificaram profundamente a situação e as perspectivas das pesquisas sobre o comunismo.

Pela primeira vez os documentos do Comintern e de outras organizações comunistas

tornavam-se acessíveis aos pesquisadores, que poderiam assim interrogar-se sobre a história

do movimento comunista apoiando-se nas fontes originais. Era o fim da prática do sigilo que

havia enclausurado durante décadas os arquivos do comunismo e as ligações dos partidos

comunistas com sua própria história.

As mudanças no domínio dos arquivos na Rússia se inseriam no processo geral de

abertura dos arquivos nos outros países ex-comunistas da Europa central e oriental27.

24As autobiografias de ex-comunistas constituem um gênero literário em si. Ver ROLOFF, Ernst-August. Ex-Kommunisten. Abtrünnige des Weltkommunismus. Ihr Leben und ihr Bruch mit der Partei in Selbstdarstellungen. Mainz, 1968 ; KÜHN, Hermann. Bruch mit dem Kommunismus. Über autobiographische Schriften von Ex-Kommunisten im geteilten Deutschland. Münster, 1990. 25Por exemplo, no caso italiano, os dossiês do Casellario Politico Centrale (Fundo Político Central, no Archivio Centrale dello Stato), meticulosamente atualizado pelo regime fascista com objetivo de vigiar e reprimir seus adversários políticos na Itália e no exterior. 26 SOUVARINE, Boris. Staline. Aperçu historique du bolchevisme, Paris: Plon, 1935. 27 Um processo complexo, já que se tratava, entre outras coisas, de definir a situação futura dos arquivos dos partidos comunistas, que acabavam de ser expulsos do poder, e mais em geral de todos os arquivos dos quais os Institutos de marxismo-leninismo eram depositários, eles também destinados ao desaparecimento. Na impossibilidade de poder aprofundar aqui esse aspecto do problema, nos limitaremos a observar que em geral os arquivos dos partidos comunistas foram depositados, em modalidades variadas, nos arquivos nacionais dos países respectivos. Um outro aspecto do problema concernia aos arquivos das diferentes polícias políticas da época comunista.

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Paralelamente, vários partidos comunistas ocidentais, dos quais alguns já haviam começado

antes de 1989 a abrir parcialmente seus arquivos, retiravam os últimos obstáculos que

entravavam o acesso a esses documentos, decidindo confiar a guarda a instituições públicas

(arquivos nacionais ou estaduais) para que elas os deixassem à disposição do público. Na

Alemanha assistiu-se até a uma situação paradoxal: após a reunificação, os arquivos da ex-

RDA tornaram-se imediatamente acessíveis até 1989, enquanto na ex-República Federal

continuava a se aplicar a regra geral dos 30 anos para os documentos da história

contemporânea. A sorte final dos arquivos comunistas mostrava claramente que uma página

da história estava definitivamente virada e que elas pertenciam doravante ao passado.

Não é minha intenção fazer aqui um balanço sobre as repercussões da "revolução dos

arquivos" na historiografia do comunismo em geral. Limitarei-me a levar em consideração

aquelas que concernem especificamente à problemática sociobiográfica. É preciso notar antes

de tudo que a abertura dos arquivos russos não foi completa. Certas partes, julgadas

politicamente sensíveis, continuam fechadas: outras ainda, após terem sido abertas durante

alguns anos, foram em seguida novamente fechadas. No caso dos dossiês pessoais dos

militantes comunistas conservados nos arquivos do Comintern a abertura foi apenas parcial, já

que eles contém documentos tratando da vida privada e que, enquanto tais, estão sujeitos às

restrições que se aplicam a esse tipo de arquivo. Os pesquisadores puderam, contudo, ter

acesso a uma parte dos documentos que aparecem nesses dossiês, e mais precisamente aos

questionários biográficos e às autobiografias de partido. Isso se fez geralmente dentro de

projetos de cooperação científica entre o RGASPI (Arquivos de Estado Russos de História

Social e Política) e historiadores russos, de um lado, e historiadores de outros países, de outro.

Três projetos fizeram avançar consideravelmente os conhecimentos biográficos sobre os

comunistas que exerceram algum papel no Comintern. O mais ambicioso foi realizado na

Universidade de Hanôver, sob a direção de Michael Buckmiller e Klaus Meshkat, e resultou

na criação de uma base de dados e na publicação de um volume intitulado “Manual biográfico

sobre a história do Comintern”28. Um segundo projeto, mais limitado, é sobre os quadros de

28 BUCKMILLER, Michael; MESHKAT, Klaus (dir.). Biographisches Handbuch zur Geschichte der Kommunistischen internacionale. Berlim: Akademie Verlag, 2007. A base de dados se apresenta sob a forma de um CD-Rom. O livro contém os anais de um colóquio realizado em 2005 na Universidade de Hanôver como conclusão do projeto de pesquisa.

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língua francesa do Comintern, realizado por uma equipe de historiadores franceses, belgas,

suíços, luxemburgueses, russos (Claude Pennetier, Serge Wolikow, Michel Dreyfus, José

Gotovitch, Brigitte Studer, Peter Huber, Henri Wehenkel, Mikhaïl Narinski) realizado pelo

Centre d’Histoire Sociale du XXe Siècle (Université Paris I / CNRS), em associação com o

Centre d’Histoire et de Sociologie des Gauches (Université Libre de Bruxelles), o Centre de

Recherches d’Histoire Contemporaine (Université de Dijon) e o RGASPI de Moscou29. A

esses dois projetos é preciso acrescentar uma terceira iniciativa, ligada ao projeto biográfico

de Hanôver, que resultou em um dicionário biográfico, em espanhol, sobre o Comintern e a

América Latina, redigido por dois historiadores russos (Lazar Jeifets e Victor Jeifets) e um

historiador suíço, Peter Huber30.

Esses três dicionários têm em comum, antes de tudo, o objeto de estudo: o Comintern, e,

então, as primeiras décadas do movimento comunista. Essa coincidência não é fruto do acaso:

é de fato nesse primeiro período que os arquivos de Moscou forneceram a maior quantidade

de documentos. É também o período em que se formam, no movimento comunista, o novo

tipo de militante e de quadro, já evocado, e logo, de numerosos dirigentes que continuarão a

exercer um papel chave nos partidos comunistas mesmo após a dissolução do Comintern. É

enfim o período durante o qual o comunismo apresenta maior homogeneidade. Após 1945

assiste-se de fato a uma fragmentação do movimento, primeiro com o cisma iugoslavo, em

seguida e sobretudo com o cisma chinês (e albanês), que divide de maneira irremediável o

movimento.

Uma segunda característica comum dessas iniciativas é o fato de terem sido realizadas

em colaboração com historiadores e arquivistas russos trabalhando no RGASPI, o herdeiro do

29 GOTOVITCH, José e NARINSKI, Mikhaïl (dir.). Komintern : l’histoire et les hommes. Dictionnaire biographique de l’Internationale communiste en France, en Belgique, au Luxembourg, en Suisse et à Moscou (1919-1943). Paris: Editions de l’Atelier, 2001. 30JEIFETS, Lazar; JEIFETS, Victor; HUBER, Peter. La internacional comunista y America Latina, 1919-1943. Diccionario biográfico. Moscou/Genebra: Instituto de Latinoamérica de la Academia de las ciencias/Institut pour l'histoire du communisme, 2004. Na base desse dicionário está a obra publicada em 2000, em russo, por Lazar e Victor Jeifets e intitulada “A América Latine na órbita do Comintern. Ensaio de dicionário biográfico” (JEIFETS, Lazar; JEIFETS, Victor. Latinskaia Amerika v orbite kominterna. Opyt biograficheskogo slovara. Moscou, 2000). O dicionário de Jeifets e de Huber contém 900 biografias de comunistas latino-americanos ou que tiveram relações com a América Latina (por exemplo, como emissários do Comintern). Apesar de certas lacunas, é uma obra particularmente útil, considerando o vazio que existia anteriormente nesse domínio. Esse trabalho havia sido realizado no "Projeto de pesquisa biográfica sobre o Comintern" realizado pelo Instituto de Ciências Políticas e de Sociologia da Universidade de Hanôver sob a direção de Michael Buckmiller e Klaus Meshkat

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ex-Instituto de Marxismo-Leninismo e dos seus arquivos, entre os quais aqueles do

Comintern. Uma tal colaboração entre especialistas ocidentais e especialistas russos, animada

por preocupações científicas e não políticas, era impensável no tempo da guerra fria e

materialmente impossível antes da abertura dos arquivos.

Observaremos enfim que essas iniciativas coincidem em parte. Os cominternianos de

língua francesa, estudados pela equipe franco-belga, e os da América Latina (ou que tiveram

algum papel em relação a esse continente) já aparecem, normalmente, na base de dados de

Hanôver; de outro lado, alguns cominternianos de língua francesa, como o suíço Jules

Humbert-Droz, também estiveram estreitamente envolvidos nas questões da América Latina, e

aparecem também no dicionário latino-americano.

O projeto germano-russo de Michael Buckmiller e Klaus Meschkat propusera realizar,

baseado nos arquivos de Moscou e em outras fontes disponíveis, um recenseamento o mais

exaustivo possível dos comunistas que, de um modo ou de outro, exerceram um papel no

Comintern. Ele foi concluído em estreita colaboração com vários arquivistas do RGASPI e

outros especialistas russos. O resultado é um conjunto de 28.626 nomes registrados e de

15.815 biografias, o mais importante, por suas dimensões, realizado até agora. Entre os nomes

que aparecem nessa base de dados, 6.000 eram completamente desconhecidos. Os dados não

são apresentados sob a forma de narrativa biográfica, como no dicionário franco-belga, mas

em fichas, construídas segundo o mesmo modelo. Cada uma compreende seis seções em que

aparecem diferentes tipos de informações sobre o militante em questão. Uma das seções

indica se existe nos arquivos de Moscou um dossiê pessoal sobre o militante e as referências

dos documentos de arquivos utilizados. A base de dados está disponível apenas em CD-rom,

não há edição impressa, e somente em alemão. O volume que acompanha o CD-rom contém

os anais de um colóquio internacional realizado em 2004 na Universidade de Hanôver como

conclusão do projeto. Ele inclui as comunicações dos principais colaboradores alemães e

russos do projeto, assim como as contribuições de alguns outros especialistas (José Gotovitch,

Felx Tych, Hermann Weber) em biografias coletivas. Essa obra é interessante tanto, no plano

do método, pelas reflexões que ela propõe sobre a problemática da biografia coletiva, quanto

pelas informações trazidas sobretudo pelos arquivistas russos sobre diferentes aspectos dos

arquivos do Comintern. Esse projeto biográfico se inspirou nos trabalhos de biografia coletiva

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realizados na Universidade de Colônia sob a direção do professor Schröder e mais

particularmente na base de dados BIOSOP, sobre os parlamentares social-democratas

alemães, já citada31.

O dicionário biográfico sobre o Comintern e a América Latina publicado em 2004, em

espanhol, por Peter Huber, Lazar Jeifets e Victor Jeifets32, foi realizado em grande parte no

âmbito do projeto biográfico de Hanôver, no qual os autores foram contribuidores. Uma

primeira versão havia sido publicada em Moscou em 2000 sob a única assinatura de Lazar

Jeifets com o título "A América Latina na órbita do Comintern. Ensaio de dicionário

biografico"33. O dicionário de 2004 compreende 900 verbetes biográficos de comunistas

latino-americanos ou que tinham ligações com a América Latina (por exemplo, como

emissários do Comintern). Eles são apresentados não como biografias propriamente ditas, e

sim mais como uma enumeração de dados factuais (etapas do itinerário político, funções

exercidas, etc.), o que deixa a leitura um pouco árida. Apesar desse limite, e sem levar em

conta alguns erros ou imprecisões – aliás quase inevitáveis nesse tipo de trabalho -, essa obra

preenche uma lacuna e constitui um ponto de partida para pesquisas mais aprofundadas. A

dimensão biográfica do comunismo na América Latina foi estudada até agora somente de

maneira bastante fragmentada. A tarefa é particularmente difícil e complicada em razão do

estado lacunar e da situação precária dos arquivos do movimento comunista na maior parte

dos países da América Latina. Todavia, certas publicações recentes mostram-se preciosas por

uma abordagem biográfica do comunismo latino-americano mesmo que ela só trate esse tema

parcialmente. É o caso, por exemplo, do dicionário biográfico da esquerda argentina publicada

em 2007 sob a direção de Horácio Tarcus34. Cobrindo um período de mais de um século, de

1870 à 1976, essa obra pioneira – que se inspira largamente no Maitron - trata apenas em

parte dos comunistas, aos quais ele consagra, entretanto, uma centena de biografias,

frequentemente muito detalhadas, de um total de 500. O interesse dessas biografias 31A BIOSOP também se apresenta na forma de fichas, e não de relatos biográficos. Infelizmente a base de dados de Hanôver, diferente da BIOSOP, não é consultável on-line. 32Jeifets, Lazar; Jeifets, Victor; Huber, Peter. La internacional comunista y America Latina, 1919-1943. Diccionario biográfico. Moscou, Genebra: Instituto de Latinoamérica de la Academia de las ciencias, Institut pour l´histoire du communisme, 2004. 33Jeifets, Lazar; Jeifets, Victor, Latinskaia Amerika v orbite kominterna. Opyt biograficheskogo slovara, Moscou, 2000. 34Tarcus, Horacio (dir.). Diccionario biográfico de la izquierda argentina, De los anarquistas a la “nueva izquierda” (1870-1976). Buenos Aires: Emecé, 2007.

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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ NUESTRA AMÉRICA] Ano 2, n° 2 | 2012, verão

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comunistas ultrapassa, aliás, o contexto argentino, já que muitas delas (como a de Victorio

Codovilla, a dos irmãos Rofolfo e Oreste Ghioldi, de Carlos Dujovne, etc.) esclarecem o

funcionamento das redes comunistas no nível da América Latina como um todo, assim como

as relações que existiram entre os diferentes partidos comunistas desta região do mundo.

O projeto sobre os cominternianos de língua francesa fixara um objetivo mais limitado

que o projeto de Hanôver: recensear os quadros e os militantes de língua francesa que

estiveram ativos no Comintern. Tratava-se então, no essencial, da França, da Bélgica, da Suíça

e de Luxemburgo 35. Esse projeto, realizado também em colaboração com especialistas

russos, nasceu seguindo o rastro do Maitron, estando seus realizadores, parte deles,

implicados há muito tempo nessa empresa prosopográfica, a começar por Claude Pennetier,

que a dirige desde a morte de Jean Maitron. É preciso lembrar aliás que, ao lado do dicionário

do movimento operário francês, outros dicionários biográficos na linha do Maitron e tratando

do movimento operário de outros países já haviam aparecido na França36, o que testemunhava

um interesse considerável pela dimensão internacional do movimento operário nos seus

aspectos biográficos. Em 1981 o Maitron havia entrado no seu quarto período, o dos anos

1914-1939. Os volumes que cobrem esse período tratavam também do comunismo como

corrente do movimento operário francês37. O dicionário biográfico dos cominternianos de

língua francesa nasceu de uma rede informal de pesquisadores, interessados pela abordagem

sociobiográfica da história do movimento operário e do comunismo, que tinham o hábito de

trabalhar juntos. Franceses, belgas, suíços, luxemburgueses, eles tinham em comum a língua

francesa, e é principalmente esse limite linguístico que levou a delimitar assim o projeto. O

grupo havia estabelecido contatos regulares com historiadores e arquivistas russos (Mikhaïl

Narinski, Michel Panteleïev, Marina Smolina), e é dessa colaboração que resultou, no final, o

dicionário. O volume inicia por uma história do Comintern por Serge Wolikow e apresenta em

seguida perto de 500 biografias, redigidas no modelo daquelas do Maitron: são verdadeiras

35Sobre o nascimento e o desenvolvimento desse projeto ver GOTOVITCH, José. "Zum biographischen Wörterbuch der Kommunistischen internacionale für die französischsprechenden Länder", in M. BUCKMILLER, M.; MESCHKAT, K. op. cit., p. 101-110. 36Áustria (1971), Japão (1971-1972), China (1985), Grã-Bretanha (1986), Alemanha (1990), Marrocos (1998). 37DBMOF. Quatrième partie : 1914-1939. De la première à la Seconde guerre mondiale, sob a dir. de Jean MAITRON e Claude PENNETIER, vol. 16-43, Paris, 1981-1993. Essa quarta parte do DBMOF foi redigida antes da abertura dos arquivos de Moscou. A abertura desses arquivos permitiu realizar numerosas integrações, que figuram na nova edição do Maitron na forma de CD-rom.

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* BRUNO GROPPO]

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histórias de vida, detalhadas, solidamente documentadas e bem apresentadas. Essa obra,

escreve Claude Pennetier em sua apresentação do que ele chama "um ensaio de biografia

coletiva", "permite descobrir, por detrás da imagem rigidificada do cominterniano, ao mesmo

tempo aventureiro e agente disciplinado, a vida dos atores da IC nos seus diferentes períodos.

Aos criadores às vezes afastados pela evolução da Internacional, sucede-se uma geração

bolchevique formada nas Escolas leninistas, enquadrada, "verificada", disciplinada, que

forjará as direções dos partidos comunistas nacionais, não sem dificuldades, assim como ela

exaltará "o homem novo". (…)

Os cominternianos eram em primeiro lugar os atores da vida das instâncias

internacionais (congresso, plenária), mas também, emissários políticos e técnicos nas

diferentes seções ou responsáveis pelos serviços na sede do Komintern. O secundário tornou-

se principal. Ao oferecer esses quinhentos itinerários, nós pretendemos permitir uma releitura

da dimensão internacional do comunismo no tempo do bolchevismo e do stalinismo"38

Entre os trabalhos de biografia coletiva tratando de um partido comunista publicados

recentemente, o mais notável é, na minha opinião, o dicionário biográfico dos comunistas

alemães para o período de 1918-1945, publicado em 2004 por Hermann Weber e Andreas

Herbst39. Essa obra é o coroamento de uma longa série de trabalhos nos quais Hermann

Weber, o principal especialista do comunismo alemão, já havia explorado a dimensão

biográfica desse movimento. Seu estudo sobre o comunismo alemão na República de Weimar,

publicado em 196940 e desde então obra de referência, já continha mais de 500 biografias de

quadros comunistas alemães, redigidas com base nas informações então disponíveis. Essas

biografias não se limitavam ao período da República de Weimar (1919-1933), mas levavam

em conta igualmente a trajetória política desses quadros durante a ditadura nacional-socialista

e após 1945. Em 1989 Weber publicava uma outra obra, desta vez sobre os comunistas

alemães vítimas das repressões stalinistas41. O livro continha curtas biografias de quase 400

38PENNETIER, Claude. “Présentation”, in Komintern : l’histoire et les hommes, op. cit., p. 8. 39WEBER, Hermann; HERBST, Andreas. Deutsche Kommunisten. Biographisches Handbuch 1918 bis 1945. Berlim: Dietz, 2004. Uma nova edição, revista e aumentada, foi publicada em 2008. 40WEBER, Hermann. Die Wandlung des deutschen Kommunismus; die Stalinisierung der KPD in der Weimarer Republik. Frankfurt am Main: Europaische Verlagsanstalt, 1969. (2 vol.) 41WEBER, Hermann. Weisse Flecken in der Geschichte. Die KPD-Opfer der stalinschen Säuberungen und ihre Rehabilitierung. Frankfurt am Main: ISP-Verlag, 1989. Uma nova edição, aumentada, foi publicada no ano seguinte em Berlim pelo editor Christoph Links. Em 1998 Weber dirigiu, com Ulrich Mahlert, um grande

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comunistas alemães que perderam a vida nas prisões ou nos campos soviéticos ou na

Alemanha após terem sido entregues pela URSS à Gestapo durante o pacto germano-

soviético. A abertura dos arquivos comunistas da ex-República Democrática Alemã após a

unificação, e em seguida dos arquivos do Comintern após o fim da URSS permitiram a

Hermann Weber, com a colaboração de Andreas Herbst, alargar e aprofundar as pesquisas

biográficas sobre os comunistas alemães, resultando assim no que se pode verdadeiramente

chamar uma biografia coletiva dos comunistas alemães até 1945. A obra, editada em 2004 e

reeditada em 2008, contém as biografias de 1400 quadros comunistas encarregados com

responsabilidades dentro do KPD e de outras organizações de massa entre 1918 e 1945. Não

existem, que seja de meu conhecimento, trabalhos de amplitude comparável a este para outros

partidos comunistas. Citaremos contudo, ainda no domínio sociobiográfico, os trabalhos de

Kevin Morgan sobre os comunistas britânicos42, as pesquisas que se multiplicaram em vários

países sobre os voluntários das brigadas internacionais na guerra da Espanha43, ou sobre

diferentes exílios políticos ligados ao movimento operário, etc. 44 . Todos esses trabalhos se

desenvolveram em um contexto científico e cultural favorável ao florescimento do método

sociobiográfico, que foi aplicado também ao estudo de grupos sociais e políticos muito

distantes do movimento operário ou do comunismo45.

volume sobre as purificações stalinistas : ver WEBER, Hermann; MAHLERT, Ulrich (dir.), Terror: Stalinistische Parteisauberungen 1936-1953: Paderborn: Schöningh, 1998. (nova edição, aumentada, em 2001). Sobre o destino trágico da maior parte dos comunistas alemães refugiados na URSS ver também MÜLLER, Reinhard. Menschenfalle Moskau. Exil und stalinistische Verfolgung, Hamburg: Hamburger Edition HIS Verlag, 2001. (Esse livro contém também uma lista das vítimas e notas biográficas). 42 MORGAN, Kevin; COHEN, Gidon; FLYNN, Andrew. Communists in British Society 1921-1991, Londres: Rivers Oram Press, 2006. MORGAN, Kevin; CAMPBELL, Alan (ed.). Party People. Communist Lives, Londres: Lawrence & Wishart, 2001. 43SKOUTESKY, Rémi. L’espoir guidait leurs pas. Les volontaires français dans les brigades internacionales 1936-1939. Paris: Grasset, 1998. BILL, Alexander. British Volunteers for Liberty: Spain 1936-1939. Londres, 1982. LANDAUER Hans. em colaboração com HACK, Erich. Lexikon der österreichischen Spanienkämpfer 1936-1939. Viena, 2003. WEHENKEL, Henri. D’Spaniekämpfer. Volontaires de la guerre d’Espagne partis du Luxembourg. Dudelange, 1997. NIC, Ulmi; HUBER, Peter. Les combattants Suisses en Espagne républicaine (1936-1939). Lausanne: Verlag Antipodes, 2001. BAUMANN, Gino Gerold. Los voluntarios latinoamericanos en la guerra civil española. San José de Costa Rica: Editorial Guayacán, 1997. 44Ver também os ensaios reunidos em GROPPO, Bruno; UNFRIED, Berthold (dir.). Gesichter in der Menge. Kollektivbiographische Forschungen zur Geschichte der Arbeiterbewegung. Viena: Akademische Verlagsanstalt, 2006. 45Um exemplo particularmente interessante é o estudo de Michael Wildt sobre os quadros dirigentes do Reichssicherheitshauptamt nazista (400 pessoas de um total de 3000 funcionários dessa instituição). Cf. WILDT, Michael. Generation des Unbedingten. Das Führungskorps des Reichssicherheitshauptamtes. Hamburg, 2002.

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[BIOGRAFIA E AUTOBIOGRAFIAS COMO FONTES PARA A HISTÓRIA DO COMUNISMO: OS TRABALHOS DE BIOGRAFIA COLETIVA APÓS A ABERTURA DOS ARQUIVOS DO COMINTERN

* BRUNO GROPPO]

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Conclusões

A grande importância dada à biografia/autobiografia e ao controle biográfico foi uma

característica específica do comunismo, sobretudo no período stalinista. Os arquivos do

Comintern e dos partidos comunistas contém, por conseguinte, uma quantidade considerável

de documentos biográficos/autobiográficos sobre os quadros e os militantes desse movimento,

que constituem uma fonte preciosa para os historiadores do comunismo, mas também para os

sociólogos, os antropólogos, os linguistas. Esses documentos tornaram-se, pela primeira vez,

parcialmente acessíveis aos pesquisadores graças à abertura dos arquivos na Rússia e nos

outros países ex-comunistas da Europa central e oriental após o desmoronamento dos regimes

comunistas. A abertura dos arquivos comunistas – parcial, repetimos, para os documentos

biográficos (que, por definição, tocam a vida privada), muito mais ampla para os outros -

permitiu relançar sobre bases mais sólidas os estudos sobre a história do comunismo. Entre as

novas pistas de pesquisa que se abriram, aquelas que se inspiram na abordagem

sociobiográfica se mostraram particularmente fructuosas. A partir dos anos 1990, grupos de

pesquisadores do Oeste europeu puseram em obra, em colaboração com pesquisadores e

arquivistas russos, projetos de biografia coletiva tratando sobretudo dos quadros do

Comintern. Desse trabalho resultaram até o momento uma base de dados sobre os quadros do

Comintern, no seu conjunto, e dois dicionários biográficos, um sobre os kominternianos de

língua francesa, o outro sobre o Comintern e a América Latina. Outras pesquisas

prosopográficas foram realizadas sobre os quadros de certos partidos comunistas, em

particular o partido alemão, assim como sobre alguns grupos, como os voluntários das

brigadas internacionais, que contavam com um número importante de comunistas nas suas

fileiras. Foi igualmente possível, graças à abertura dos arquivos russos e de outros países,

realizar pesquisas aprofundadas sobre as vítimas das repressões stalinistas na ex-União

Soviética e em outros lugares. Podemos assinalar como particularmente significativa, por seu

interesse metodológico e seu caráter exaustivo, uma sobre as vítimas italianas das repressões

na União Soviética46.

46DUNDOVICH, Elena; GORI, Francesca; GUERCETTI, Emanuela. (eds.). Reflections on the Gulag. With a documentary appendix on the Italian victims of repression in the USSR. Milão: Fondazione Feltrinelli, 2003. A pesquisa conduzida pela Fundação Feltrinelli de Milão, em colaboração com a associação russa Memorial

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Os estudos sociobiográficos sobre o movimento comunista, que nos interessam aqui,

conheceram desde os anos 1990 uma forte impulsão. Eles permitiram renovar parcialmente

esse campo de pesquisa, ao mesmo tempo evitando as armadilhas de uma historiografia

política que reduziria o fenômeno comunista a uma aventura criminal e que ignoraria suas

outras dimensões. Eles se situam no âmbito mais geral dos trabalhos de biografia coletiva que

resultaram, entre outras coisas, na realização de dicionários biográficos do movimento

operário em vários países. O método sociobiográfico continua a obter resultados significativos

na história operária e social, entre os quais, no Brasil, com o dicionário biográfico do

movimento operário no Rio de Janeiro, dirigido por Claudio Batalha47, e outros dicionários

atualmente em preparação. Esse método se interessa pelo indivíduo como ator da história, mas

situando-o no contexto mais vasto da sua geração, do seu meio político e cultural, de um

universo mental partilhado com outros indivíduos.

É preciso não perder de vista, naturalmente, as diferenças que separam o trabalho

sociobiográfico sobre o movimento operário e sobre o movimento comunista. Enquanto

movimento, o comunismo foi uma corrente do movimento operário e tem então seu lugar no

seio deste. Porém o comunismo foi também um sistema estatal, cujas instituições, por

exemplo os sindicatos oficiais, podem dificilmente ser consideradas como parte do

movimento operário, ainda que eles continuassem a reivindicá-lo nos discursos48. Podemos

dizer, para resumir, que os trabalhos sociobiográficos sobre os movimentos operários do

século XX trazem também numerosos elementos de conhecimento sobre os militantes e os

quadros comunistas que estiveram ativos nesses movimentos; e que, vice-versa, os dicionários

biográficos sobre os quadros e militantes comunistas contribuem também para o

conhecimento dos movimentos operários de forma geral.

As fontes e as práticas biográficas que evocamos – autobiografias de partido,

questionários, avaliação, autocrítica, confissão, revisões periódicas – constituem uma

especificidade do mundo comunista e de sua herança arquivística. Enquanto fontes, elas

permitiu a realização de uma base de dados biográficas ("Gli italiani nel Gulag"), consultável on-line, que apresenta breves biografias de mais de mil vítimas italianas das repressões na União Soviética (http://www.gulag-italia.it/gulag/gulaghome2.htm). 47BATALHA, Claudio (dir.). Dicionário do movimento operário - Rio de Janeiro do século XIX aos anos 1920 – militantes e organizações. Fundação Perseu Abramo, 2009. 48Nesse caso, seria preciso incluir igualmente no movimento operário os sindicatos fascistas italianos ou seus homólogos franquistas ou nazistas.

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[BIOGRAFIA E AUTOBIOGRAFIAS COMO FONTES PARA A HISTÓRIA DO COMUNISMO: OS TRABALHOS DE BIOGRAFIA COLETIVA APÓS A ABERTURA DOS ARQUIVOS DO COMINTERN

* BRUNO GROPPO]

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podem ser utilizadas tanto para investigações propriamente históricas quanto para análises

provenientes de outras disciplinas (a sociologia, a antropologia, a psicologia, a linguística).

Elas nos informam não somente sobre a pessoa "biografada" e seu universo mental e político,

mas também sobre o funcionamento e os objetivos da instituição, o partido, responsável pelo

controle biográfico. Elas permitem seguir, passo a passo, a construção de um certo tipo de

quadro comunista, característico da época stalinista e que, graças notavelmente às escolas do

Comintern, acabou por prevalecer no conjunto dos partidos comunistas49. As práticas de

supervisão biográfica nos partidos comunistas atingiram seu apogeu na época do stalinismo e

em seguida perderam progressivamente sua importância. São todavia os quadros selecionados

e formados nessa época que dirigiram os partidos comunistas durante décadas.

No caso da população soviética em geral, as biografias conservadas nos arquivos

permitem analisar as estratégias individuais para contornar e omitir, utilizadas para adaptar e

apresentar sua própria biografia conforme às exigências de um poder "biocrático" que aspirava

à estabelecer um controle total sobre o indivíduo50. Após a abertura dos arquivos, numerosos

trabalhos exploraram as histórias de vida dos indivíduos sob o regime stalinista. A história

oral produziu pesquisas de enorme valor sobre a vida privada e as estratégias de sobrevivência

na Rússia stalinista51.

49Ver STUDER, Brigitte; UNFRIED, Berthold. Der stalinistische Parteikader. Identitätsstiftende Praktiken und Diskurse in der. Sowjetunion der Dreißiger Jahre. Colônia, Weimar, Viena: Böhlau Verlag, 2001. Para a França, ver os trabalhos de Claude Pennetier e Bernard Pudal, em particular "La politique d’encadrement : le cas français", in. DREYFUS, Michel; GROPPO, Bruno; INGERFLOM, Claudio; LEW, Roland; PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard; WOLIKOW, Serge. Le siècle des comunismes. Paris: Editions de l’Atelier, 2000. p.359-368. PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. "Le questionnement biographique en France" in PENNETIER, Claude; PUDAL, Bernard. Autobiographies, autocritiques, aveux dans le monde comuniste, op. cit., p. 119-153. Em anexo desse artigo está reproduzido o "Esquema de autobiografia (1931, revisto em 1937)" (154-156), utilizado pelo partido comunista francês. Com suas 73 perguntas, ele deveria servir ao militante para redigir sua autobiografia e devia ser devolvido ao partido junto a este. 50Cf. FITZPATRICK, Sheila. "The two faces of Anastasia.: narratives and counter-narratives of identity in Stalinist everyday life ". in STUDER B.; UNFRIED, B. Parler de soi sous Stalin …, op. cit., p. 53-63. A autora mostra como Anastasia Plotnikova, uma mulher comum que se tornou uma administradora comunista em Leningrado na metade dos anos 1920 havia adaptado sua biografia e como o NKVD, investigando sobre ela em 1936, procedeu a uma leitura completamente diferente. Ver também FITZPATRICK , Sheila; SLEDZKINE, Yuri (eds.) In the Shadow of Revolution. Life Stories of Russian Women from 1917 to the Second World War. Princeton: Princeton University Press, 2000. Sobre a obsessão bolchevique pelo pertencimento de classe ver FITZPATRICK, Sheila. “Ascribing class. The construction of social identity in Soviet Russia". Journal of Modern History, n. 65, 1993, p. 745-770. 51FIGES, Orlando. Les chuchoteurs. Vivre e survivre sous Stalin. Paris: Denoël, 2009. (orig. The Whisperers. Private Life in Stalin’s Russia. London: Allen Lane, 2007).

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Um vasto campo de pesquisa se abre diante dos historiadores do comunismo

interessados pela abordagem sociobiográfica. Biografias coletivas como aquela de Weber e

Herbst sobre os comunistas alemães seriam desejáveis também para outros países. Aqueles

que considerariam se atrelar a uma tal empresa encontrarão numerosas indicações úteis nos

trabalhos evocados neste artigo.