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Biografismo e os Elementos Jornalísticos na Produção da Narrativa
Biográfica1
ADAM, Felipe (Mestrando)2
UEPG/PR
Resumo: Considerado por Vilas Boas (2002) como um gênero híbrido, as biografias estão
tensionadas por vários campos, entre eles a História, Literatura e o Jornalismo. Este artigo busca
discorrer sobre o envolvimento de jornalistas escritores na concepção do campo do biografismo
e busca compreender quais os elementos jornalísticos podem ser encontrados nos livros de
gênero biográfico. Para isso, iremos nos apropriar dos textos de Bauer (2000), Motta (2004),
Gadini (2005) com o intuito de analisar conceitos e técnicas, tais como o livro-reportagem, a
pesquisa bibliográfica e a entrevista, nesse tipo de projeto. Como resultado, observa-se que o
biografismo brasileiro surgiu após a década de 1980 e tem se consolidado como um importante
meio cultural para a prática da reportagem. Conclui-se assim que, por terem exercido o ofício
em jornais ou revistas, os jornalistas que se dedicam à escrita biográfica também transportam as
técnicas de apuração, edição e escrita ao meio literário.
Palavras-chave: biografia; biografismo; livro-reportagem; entrevista.
Introdução
Nas livrarias, elas possuem uma estante de destaque. Até em sebos ou em sites
de vendas pela internet, a categoria chama atenção. Muitas a procuram pelo interesse
alheio que move a curiosidade do ser humano; outros, apenas pelo prazer da leitura. O
fato é que jornalistas perceberam nas biografias uma oportunidade de trabalho, com
mais tempo e espaço do que os tradicionais meios impressos. Porém, a discussão se
aquilo que se produz é jornalismo, motiva debates sobre o gênero.
Goste ou não, o fato é que a produção de obras classificadas como biográficas
no mercado editorial brasileiro tem demonstrado fôlego. Segundo a pesquisa Produção e
Vendas do Setor Editorial Brasileiro3, as biografias apresentaram em 2017 um
1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Impressa, integrante do VII Encontro Regional Sul de
História da Mídia – Alcar Sul, 2018. 2 Graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali/SC),
campus de Itajaí e Mestrando em Jornalismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-
mail: [email protected]. 3 Ano-Base 2017. Encomendada pela Câmara Brasileira do Livro, Sindicato Nacional dos Editores de
Livro e a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, a pesquisa divulgou que os temas didáticos,
religiosos e de literatura adulta foram os mais produzidos no Brasil. Disponível em
crescimento de produção de 11,14% em comparação ao ano de 2016, o que corresponde
a 5.710.986 milhões de exemplares no total. Para corroborar essa influência, vale
mencionar que outras categorias - como os didáticos e os religiosos - apontaram
retrocesso, embora liderem a produção, com 179.599.663 e 90.576.879,
respectivamente.
A pergunta que irá nortear esta discussão é quais os elementos do discurso
jornalístico poderão ser encontrados nos livros de gênero biográfico? A razão pela
escolha das biografias femininas se dá pela pouca visibilidade literária na categoria
biografia aos grupos tidos como oprimidos. Paiva (2011) os define como sendo de
minoria4, tecendo uma relação com a própria hegemonia.
Em síntese: trabalhar o conceito de minoria significa primeiramente
enveredar pelo ambiente que propicia seu aparecimento. Sendo assim, torna-
se praticamente impossível estabelecer o que se entende por minoria sem
antes agendar o entendimento do seu princípio gerativo e sua estrutura
constitutiva: o conceito de hegemonia (PAIVA, 2011, p.29).
Como metodologia, optou pela análise de conteúdo, método a qual Martín Bauer
(2000, p. 192) classifica como “pesquisa de opinião pública com outro meios”. Os
procedimentos da AC, de acordo com o psicólogo suíço, reconstroem as dimensões
sintática e semântica. A primeira teria relação a como algo é dito ou escrito – “o
frequente emprego de uma forma de palavras que não é comum pode identificar um
provável autor e determinado vocabulário pode indicar um tipo provável de público”
(BAUER, 2000, p. 193). Já a semântica daria atenção a quantidade de ocorrências de
palavras numa frase ou parágrafo – ou seja, aos “sentidos denotativos e conotativo em
um texto. A semântica tem a ver com ‘o que é dito em um texto?’, os temas e
avaliações.
Herscovitz (2007, p. 124) ensina que a análise de conteúdo no jornalismo faz
com que os pesquisadores entendam “um pouco mais sobre quem produz e quem recebe
http://www.snel.org.br/apresentado-o-resultado-da-pesquisa-producao-e-vendas-do-setor-editorial-
brasileiro-ano-base-2017. Acessado em 29 de maio de 2018. 4 Dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, divulgada pelo IBGE em 2013, indicam
que viviam no Brasil 103,5 milhões de mulheres, o equivalente a 51,4% da população.
http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/03/mulheres-sao-maioria-da-populacao-e-ocupam-
mais-espaco-no-mercado-de-trabalho
a notícia e também a estabelecer alguns parâmetros culturais implícitos e a lógica
organizacional por trás das mensagens”. A autora compara os interessados nas técnicas
da AC “como detetives em busca de pistas que desvendem os significados aparentes
e/ou implícitos dos signos e das narrativas jornalísticas, expondo tendências, conflitos,
interesses, ambiguidades ou ideologias presentes nos materiais examinados” (2007, p
127).
Biografar é uma arte exaustiva, complexa, condensada. A trilha para encontrar
personagens, convencer as fontes a dar uma entrevista, checar informações, enumerar os
dados mais notórios e finalmente, tentar iniciar o texto, pertencem a técnicas
acumuladas no decorrer da experiência profissional. São esses bastidores os quais este
trabalho possui a intenção de apresentar. E sendo a biografia um assunto que mergulha
na história cultural do país, o escritor acaba tendo que desvendar os meandros que
possam esclarecer a atividade do jornalista.
Os múltiplos campos da biografia
Realmente, a biografia despertou estudos em variadas áreas, como a Literatura, a
Semiótica e a História. O professor Mozahir Salomão Bruck (2010), por exemplo, infere
que possa haver apontamentos para se construir um conceito de biografia literária. Para
o estudioso, “ela é resultado do trabalho, reconhecidamente artístico de um autor crítico,
cuja obra narrativa prioriza a si mesma como presença no mundo e se vale do mote
biográfico, em geral, como oportunidade de exercício o fazer literário” (BRUCK, 2010,
p. 187). Atrelado a isso, o filósofo Mikhail Bakhtin já dizia que havia os escritores
ingênuos, que acreditavam na biografia puramente como a reposição do real e aqueles
ditos críticos, nos quais valorizavam mais os aspectos estéticos. Em suma, o russo
defendia que “o mundo da biografia não é fechado nem concluído, e o princípio de
fronteiras firmes não o isola no interior do acontecimento da existência” (BAKHTIN,
1997, p. 179) E ainda complementa:
A biografia se atribui como tarefa artística fundamental representar a vida em
seus valores biográficos, a vida do herói, mas não visa determiná-lo interior e
exteriormente, dar-lhe uma imagem concluida; o importante não é saber
quem ele era, mas o que viveu, o que fez. A biografia, claro, comporta
também aspectos que determinam a imagem do herói (a heroificação), mas
nenhum desses aspectos assegura o acabamento da pessoa; o herói é
significante a título de portador de uma vida histórica notável e determinada,
plena e rica; é essa vida que constitui o centro dos valores da visão e não o
todo do herói, cuja vida pessoal, em suas determinações, não passa de uma
caracterização sua. (BAKHTIN, 1997, p. 187)
A semiótica também se debruçou ao olhar a biografia como uma espécie de
quebra-cabeça. Roland Barthes cunharia a expressão “biografema”, quando a definiria
como uma representação da escrita biográfica (BARTZ, 2014, p. 09).
Os biografemas são, pois, uma forma de ficcionalizar os documentos e
provas, uma vez que, sem factualidade e comprovação documental, os
biografemas também não existem. E, quando se valorizam demasiadamente
os biografemas ou fatos de pouca ou nenhuma importância, a biografia se
torna o que Pignatari (1996) chama de puzzle em que se pode “observar
enormes lacunas [...] transformando-se num arquipélago bizarro de
biografemas flutuantes.” (PIGNATARI, 1996 apud BARTZ, 2014, p. 09).
Enquanto isso, o historiador francês François Dosse (2009) a classificou como
um gênero impuro. Segundo ele, a biografia vive numa “tensão constante entre a
vontade de reproduzir um vivido real passado, segundo as regras da mimesis, e o polo
imaginativo do biógrafo, que deve refazer um universo perdido segundo sua intuição e
talento criador” (2009, p. 55) e complementa que “a imaginação é explicitamente
requerida para compensar as insuficiências documentais e o resgate impossível do
passado” (2009, p. 69). Para tanto, é necessário registrar que até o início dos anos 1980,
a biografia para a história era um gênero totalmente renegado. Fruto da École dos
Annales, que propôs renovar as histórias ditas tradicionais em prol de uma história
social. Na época, o segmento era vinculado ao sistema elitista e dominador, sendo
considerada “um dos pilares do complexo processo de construção das nações”
(MOTTA, 2000, p. 05). Após esse período, as biografias – em especial do século XIX -
foram taxadas como “lugares onde a memória nacional se fixou” (MOTTA, 2000, p.
09).
Ademais, é importante incluir neste quesito o termo ilusão biográfica cunhado
pelo francês Pierre Bourdieu (2001). Nele, o sociólogo credita que a vida de um sujeito
não é possível de se registrar num livro em única ou mais edições ou que essa história
aconteceu daquela maneira, de forma linear.
Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o
relato coerente de uma seqüencia de acontecimentos com significado e
direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação
comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa
de reforçar (BOURDIEU, 2001, p. 185).
Por esses vieses, pode-se observar que o gênero biográfico já serviu de debates
em variadas pesquisas. Gadini (2005) discute as dificuldades na pesquisa jornalística e
as referências utilizadas por pesquisadores em alusão aos estudos da comunicação, em
detrimento aos processos jornalísticos. “Além da ausência de produções bibliográficas
capazes de dar sustentação e base para estudos, formação profissional específica (...) o
campo jornalístico se mantém ‘preso’ ou, talvez, um pouco limitado às generalizações
da área de comunicação social” (2005, p. 04). Interessante notar que, através da
abordagem de Gadini, pode-se também avaliar que a aceitação, no campo do próprio
jornalismo, ainda é reticente. Houve casos tanto de autores que tentaram se aproximar
da biografia quanto daqueles que resolveram se afastar, crendo que essa categoria não
se encaixa com a realidade jornalística.
Vilas Boas (2002) foi enfático e assim como pensava Bourdieu (2001),
considerou como utópica a ideia de totalizar uma vida. “Biografia é o recorte de uma
vida, não a vida. Dito de outro modo: ela é um arranjo de vidas a partir de fatos que
levam à interpretação de uma vida” (VILAS BOAS, 2002, p. 136).
Biografismo e o jornalismo na etapa de produção
Conforme já relatado acima, nossa perspectiva neste paper é saber quais
atributos, quais movimentos de jornalismo podem ser identificados em biografias
elaboradas por jornalistas. Antes, é notório registrar a evolução do biografismo
brasileiro. Vieira (2015) constitui em dois períodos os momentos da escrita sobre
histórias de vida: a primeira, da década de 1930 a 1960; a segunda, a partir dos anos
1980 a contemporaneidade.
O jornalismo mergulharia no biografismo durante a segunda fase, protagonizada
em especial pela publicação de Morte no paraíso: A tragédia de Stefan Zweig (1981),
biografia do escritor austríaco, assinada pelo carioca Alberto Dines. Em seguida, outro
jornalista atingiria sucesso editorial de vendas: o mineiro Fernando Morais com Olga
(1985)5, história da companheira judia de Luís Carlos Prestes, líder da Coluna Prestes,
que percorreu o interior do Brasil na década de 1920 e da Intentona Comunista em
1935. Ainda em 1985, a paulista Regina Echeverria abriria espaço às mulheres
biógrafas ao estrear no meio literário com o lançamento de Furacão Elis6.
Na década seguinte, o jornalismo presenciaria um crescimento exponencial na
vendagem de biografias. Entretanto, ao mesmo tempo que jornalistas escritores
colheriam bons frutos de seus livros, esses autores também teriam que se preocupar com
os herdeiros dos biografados. Os cariocas Carlos Didier e João Máximo lançaram Noel
Rosa: Uma biografia (1990), mas se depararam com problemas junto aos parentes do
ex-sambista. Em 1992, o mineiro Ruy Castro publicava O anjo pornográfico; dois anos
depois, Fernando Morais e o seu Chatô, o Rei do Brasil7. O ano de 19958 marcaria o
jornalismo pelas publicações de duas obras: Mauá: Empresário do Império, do paulista
Jorge Caldeira e Estrela solitária: Um brasileiro chamado Garrincha9, de Ruy Castro.
Exemplos como esses apresentados no parágrafo demonstram o êxito do gênero e
suporte para a formação de um mercado. De acordo com Vieira (2015), esses
jornalistas:
5 A obra serviria de roteiro para o filme Olga, estreado em 20 de agosto de 2004. Dirigido por Jayme
Monjardim, a cinebiografia era protagonizada pela atriz Camila Morgado no papel-título e Caco Ciocler,
como Luís Carlos Prestes. Disponível em: http://globofilmes.globo.com/filme/olga/. Acessado em:
06/08/2018. 6 O livro receberia uma nova edição em 2012, quando se completavam 30 anos do falecimento da cantora
Elis Regina. Disponível em: http://www.reginaecheverria.com.br/biografias_14.html. Acessado em:
06/08/2018. 7 A biografia de Fernando Morais serviria novamente de inspiração para os cinemas. Porém, o longa
dirigido por Guilherme Fontes sofreu com orçamento baixo, dívidas e após vinte anos parado num
imbróglio judicial, em 2015 foi finalmente liberado para a estreia. Disponível em:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-
arte/2015/11/26/interna_diversao_arte,508079/cheio-de-poemicas-o-filme-chato-de-guilherme-fontes-
estreia-em-brasi.shtml. Acessado em 06/08/2018. 8 Chatô (205 mil exemplares), Mauá (106 mil) e Estrela solitária (76 mil) lideraram a vendagem dos
livros de não-ficção em novembro de 1995. Os dados foram fornecidos pela editora Companhia das
Letras, relacionados às vendas realizadas até março de 2001. Disponível em VILAS BOAS, Sergio.
Afinidades eletivas. In: Biografias & Biógrafos: jornalismo sobre personagens: São Paulo: Summus,
2002. P. 23-31. 9 A obra seria finalista da categoria Estudos Literários (Ensaios) do Jabuti de Literatura em 1996. A
premiação criaria um segmento próprio para Biografia apenas em 2006, quando Ruy Castro conquistaria
o troféu com Carmen: Uma biografia.
(...) levaram para outro suporte, o livro, a sua experiência da reportagem
promovendo a um novo status de autoria uma nova geração de jornalistas
que, depois de construírem uma carreira no jornalismo diário, encontram na
produção de biografia – e das reportagens históricas, outro nicho – um lugar
de fala e de expressão jornalística (VIEIRA, 2015, p. 07).
Sustentar uma biografia jornalística é difícil, já indicava Vilas Boas (2002, p.
16). “Se as definições tivessem de estar circunscritas aos campos de formação, os
jornalistas, especialmente, estariam muito restringidos. Teriam de escrever sobre a vida
de jornalistas renomados ou proprietários de empresas de comunicação” (VILAS
BOAS, 2002, p. 17). Contudo, existem elementos que aproximam o jornalismo desse
segmento.
A começar pelo suporte. O professor Edvaldo Pereira Lima foi pioneiro em
conceituar o livro-reportagem como plataforma jornalística. Para caracterizá-lo, Lima
(2009) se aproxima do legado de Otto Groth (2011) ao observar os quatro tópicos
enumerados pelo teórico alemão como fundamentais para se estabelecer a essência da
ciência dos jornais: periodicidade, universalidade, atualidade e publicidade. O primeiro
aspecto possuiria relação com a regularidade; o segundo, seria intrínseco aos conteúdo.
"Sem a universalidade, todo esforço em encontrar ressonância em camadas sociais mais
amplas seria inconcebível e em vão. (...) O jornal é hoje o maior educandário, 'a escola
dos adultos'" (LIMA, 2011, p. 218). Sobre a atualidade, Groth discorre que é nela que se
encontra "a força mais potente" do jornal (2011, p. 223). Por fim, o alemão orienta que
"a publicidade é o meio pelo qual a coletividade torna-se objetivo do jornal" (GROTH,
2011, p. 315).
Lima (2009) aponta que o livro-reportagem constitui apenas duas dessas
qualidades – a universalidade e a publicidade, nomeada por Lima como “difusão
coletiva”; porém, não apresenta periodicidade, bem como seu conceito de atualidade.
“A atualidade, idéia de tempo presente, ganha diferentes contornos, de acordo com a
periodicidade do veículo em que é inserida. (...) encontramos no livro-reportagem uma
extensão do tempo presente superior àquele que percebemos nos periódicos” (LIMA,
2009, p. 30-31). Embora não se encaixe perfeitamente nos quatro quesitos de Groth, o
livro-reportagem abarca procedimentos operacionais do jornalismo, como a pauta,
redação e edição. Além disso, como aponta Lima (2009), sua narrativa por excelência é
a reportagem. O autor sugere:
É interessante observar que o livro-reportagem mantém uma espécie de
relação às avessas, de ponta-cabeça, com a periodicidade. Embora (...) não
obedeça a nenhuma produção regular no tempo, há uma ligação que este
estabelece com a periodicidade, se a entendermos conforme a conceituava o
teórico alemão. (...) Refere-se ao efeito da periodicidade, mediante a qual a
repetição prolonga a existência dos acontecimentos, estende sua durabilidade,
diminui sua perecibilidade (LIMA, 2009, p. 45-46).
Nessa fala, é importante trazer apontamentos percebidos pelas professoras Paula
Rocha e Cintia Xavier (2013) quanto ao processo de produção do livro-reportagem e
que se aproximam da técnica jornalística. Muito mais do que limitar esse suporte como
sendo uma extensão da reportagem, o livro traz metodologias que contextualizam e
aproximam o jornalismo dessa prática. A seleção das fontes é uma delas. “Os tipos de
informantes escolhidos pelos jornalistas vão determinar qual é o tipo de abordagem
dada ao assunto” (ROCHA; XAVIER, 2013, p. 149). A observação é outro ponto
notório, já que a humanização é um diferencial estratégico que aproxima o jornalismo
do leitor. “Tem que estar atento a tudo, pois gestos, atos, movimentos, cenas, ambientes
também informam, mesmo a ausência é uma informação” (ROCHA; XAVIER, 2013, p.
151). Sendo assim:
Não tem como desconsiderar todos esses elementos no processo de produção
do livro-reportagem, desde a seleção do tema, passando pela apuração,
construção do texto, edição e veiculação. Lembrando que a apuração,
construção do texto e edição ocorrem concomitantemente no livro-
reportagem. E é justamente essa inter-relação entre todos esses fatores
elencados, ora se sobressaindo um ou outro, ora não, que consiste as
especificidades do suporte e o afasta de uma visão singela de que ele é
apenas uma extensão da reportagem (ROCHA; XAVIER, 2013, p. 154).
A apuração, não apenas bibliográfica, é outra técnica muito utilizada por
jornalistas no momento da confecção da livro-reportagem (aqui, leia-se biografia).
Mesmo não sendo algo exclusivo do campo, os jornalistas escritores precisam percorrer
alguns caminhos em busca da informação. “A pesquisa e o documento são fontes
primordiais nas abordagens investigativas e também na elaboração do livro-reportagem”
(ROCHA; XAVIER, 2013, p. 149). Neste parágrafo, para ilustrar esse caso, abrimos
espaço para Lira Neto recontar o bastidores de pesquisa para Getúlio 1882-1930: Dos
anos de formação à conquista do poder (2012)10
Muitos são estudos acadêmicos, publicados em livro ou lidos ainda no
formato de dissertações de mestrado e, particularmente, teses de doutorado.
Getúlio, como não poderia deixar de ser, é um tema que desperta interesse
privilegiado na universidade brasileira. (...) Mas o leitor notará – ou já terá
notado – que boa parte da narrativa deste livro foi construída a partir da
pesquisa em fontes primárias, no garimpo de arquivos públicos e privados.
Durante os dois anos e meio que levei para escrever este livro, percorri
diferentes cidades brasileiras, em busca de documentos, jornais, de época,
objetos, publicações raras, depoimentos, filmes, músicas e fotografias,
qualquer pista que me ajudasse a contar a história de Getúlio. (NETO, 2012,
p. 527).
A partir dessa citação, observa-se que o jornalista enquanto biógrafo se apropria
de elementos do próprio ofício, através das técnicas de apuração, entrevista, checagem para se
debruçar na pesquisa biográfica. Tendo em vista que as narrativas estão inseridas num
determinado contexto social, Motta (2013) conclui que elas são “dispositivos argumentativos
produtores de significados e sua estruturação na forma de relatos obedece a interesses do
narrador (individual ou institucional) em uma relação direta com o seu interlocutor, o
destinatário ou audiência” (MOTTA, 2013, p. 120-121). Assim, a narrativa biográfica, por
exemplo, produz significações culturais, cristalizados em valores e ideologias.
Os elementos jornalísticos na narrativa biográfica
Cremilda Medina (1986) já havia comentado que a entrevista “é uma técnica de
interação social, de interpenetração informativa, quebrando assim isolamentos grupais,
individuais, sociais; pode também servir à pluralização de vozes e à distribuição
democrática da informação” (MEDINA, 1986, p. 08). Vieira (2013) também auxilia
nesse debate, ao dizer que “o ‘como’ escutar estabelece para o trabalho da entrevista as
pistas do ‘como narrar’ (...) ampliando, assim, a finalidade da entrevista, na qual a
informação não é apenas um dado, mas um sentido” (VIEIRA, 2013, p. 12).
Borges e Araújo (2017) analisaram o livro Maysa – Só uma multidão de amores
(2007) e identificaram elementos jornalísticos ao longo da narrativa biográfica. Além da
10 A obra seria finalista da categoria Biografia do Prêmio Jabuti de Literatura em 2013. A estatueta de
ouro ficaria com Mário Magalhães, autor de Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo (2012).
busca pela verdade e objetividade – embora esse caminho seja sempre delicado, em
especial quando se depara com familiares da personagem - e da utilização de excertos
de manchetes e reportagens como construção do texto, Lira Neto utilizou-se de
entrevistas variadas, conforme ele mesmo exemplificou abaixo num trecho da obra:
Com base no material saído dos baús da cantora, fui atrás de parentes,
amigos, ex-namorados, ex-maridos, conhecidos, parceiros, músicos,
produtores, enfim, gente que conviveu direta ou indiretamente com ela. Fiz
cerca de duzentas entrevistas, com mais de meia centena de pessoas. A maior
parte das conversas foi feita pessoalmente, algumas poucas pelo telefone, nos
dois casos sempre com a ajuda do gravador. Como novas informações iam
surgindo durante a pesquisa uma história sempre puxa outra -, muitos
entrevistados foram ouvidos mais de uma vez. (NETO, 2007, p. 264).
Quanto a narratividade, Motta (2004) faz ponderações pertinentes. “Pode a
linguagem objetiva e descritiva do jornalismo ser interpretada como narrativa? Nesse
caso, há alguma semelhança entre a narrativa jornalística e a narrativa de ficção
literária?” (MOTTA, 2004, p. 01). Essas indagações tentam problematizar um paradoxo
enfrentado como hipótese pelo autor: “o jornalismo não é ficção, mas é narrativa; como
narrativa, pode ser interpretado como ficção” (MOTTA, 2004, p. 02). A fim de
compreender a definição de narrativa, Motta vai até a literatura de Mieke Bal para
explicar que texto narrativo é quando há um agente narrador, além de personagens
praticando ações num espaço demarcado e num tempo específico. Em outras palavras,
uma história contada por linguagens. “Isto implica dizer que o texto narrativo é aquele
no qual se relata uma história, mas o texto não é a história. Os textos podem diferir entre
si e contar a mesma história. A essência da identidade se transfere para o plano da
história” (MOTTA, 2004, p. 03). Essa “falsa história” faz traçar um paralelo com o
estudo de Reinaldo (2011) a respeito da relação biográfica entre a imagem e a palavra.
Quando pintamos, filmamos ou fotografamos, quando compomos um
personagem performaticamente atentos ao seu figurino e aos seus
movimentos ou quando biografamos, o que de nós se transfere para obra
escondido sob a aparência do outro? Entendemos que a escrita biográfica em
vários aspectos se avizinha do retrato, gênero pictórico que se fundamenta na
semelhança (retratar vem de retrahere, que quer dizer copiar), e que, mesmo
em se tratando de signos com diferenças e com marcas que os singularizam e
que não podem ser desprezadas, sendo um do registro da imagem e o outro
pertencente ao domínio da palavra, retrato e biografia acabam atuando de
maneira correspondente (REINALDO, 2011, p. 01-02).
Quanto ao campo das identidade dos enunciados, o autor ainda busca na teoria
literária uma oposição de conceitos: showing x telling. Para Motta (2004), o jornalismo
tenderia para o primeiro aspecto, pelo fato de apresentar a situação, demonstrar
distância do ocorrido “e deixar as conclusões éticas, morais e políticas para os leitores e
ouvintes” (MOTTA, 2004, p. 04).
Em seguida, observa-se que Motta busca identificar a definição de narratividade
jornalística, fato ainda nebuloso para ele. Para isso, apoia-se em Sánchez (1992) com o
intuito de refletir que a narração possui como características a cronologia e a
personificação. Porém, enquanto no literário, o narrador não é definido; no jornalismo,
o narrador é específico. “O discurso informativo tem uma finalidade externa (...) precisa
ajustar-se ao mundo real, se dirige a alguém com a finalidade de comunicar informação
(...). O discurso literário, por outro lado, (...) cria o que diz, o sujeito é universal em uma
situação eterna” (MOTTA, 2004, p. 06).
Em outra fonte de argumentação, Motta (2004) cita o crítico literário Wolfgang
Iser para demonstrar a incapacidade totalitária de uma história, fato semelhante com o
que Bakhtin (1997) e Bourdieu (2001) já nos apontaram anteriormente com as suas
ingenuidade e ilusão biográficas, respectivamente. Por essas brechas utópicas, conclui-
se que “(...) o próprio texto é pontuado por lacunas e hiatos que têm de ser negociados
no ato da leitura. Tal negociação estreita o espaço entre texto e leitor, atenua a
assimetria entre eles, uma vez que por meio dessa atividade, o texto é transportado para
a consciência do leitor”. (MOTTA, 2004, p. 14-15). Entretanto, mesmo não tendo o
poder de reconstituir a história conforme ocorreu, o mundo do jornalismo é uma
atividade que representa a vida contemporânea e, por isso, ainda é o “mundo da tragédia
e da comédia humanas” (MOTTA, 2004, p. 15).
Considerações finais
Neste paper, sugerimos refletir a respeito do biografismo brasileiro e os
elementos jornalísticos encontrados nesse gênero. Como metodologia, optou-se pela
análise de conteúdo, segundo as definições de Bauer (2000).
Durante nossa avaliação, trouxemos para o debate os conceitos de biografia
segundo as óticas de outras áreas, como a História e Literatura. Como o objetivo era
avaliar a biografia como algo próximo da realidade jornalística, nos baseamos no texto
de Gadini (2005) quando este pondera a respeito das pesquisas em jornalismo, quase
sempre buscando reflexões das Ciências Sociais para se entender o Jornalismo.
A fim de contextualizar a técnica do biografismo, buscou-se contextualizar essa
área no Brasil, em especial aos jornalistas. Avaliou-se elementos jornalísticos durante a
fase de produção, desde a opção pelo livro-reportagem, escolha de fontes e entrevistas.
Por fim, a análise da narrativa pelo olhar de Motta (2004) despertou uma reflexão
importante diante da questão jornalismo x ficção: embora ambos utilizem personagens
num espaço e ao longo de um período temporal, “os enunciados jornalísticos não
possuem ficcionalidade, uma atitude de fingimento consensual que se estabelece entre
autor e leitor no jogo da ficção (suspensão voluntária da descrença)” (MOTTA, 2004, p.
07).
Por fim, o objetivo deste paper é compreender o trabalho realizado por
jornalistas na tentativa de biografar personagens e assim, contribuir para o
desenvolvimento do estudo no campo do biografismo. Além disso, o trabalho este
trabalho também integra a pesquisa, cuja fase está em andamento e será constituída nos
próximos meses no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade
Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
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