3
 Blue Line Text Texto de Peter Einsemam publicado na Revista AU Freqüentemente se argumenta que os princípios do Modernismo derivaram da filosofia de Hegel. Nessa discussão, os fundamentos desenvolvidos em “Discursos sobre Estética” de Hegel evoluíram par a a ruptura modernista em relação à tradição clássica. De particular significado foi o conceito central da dialética metafísica do qual surgiram oposições como forma e função, estrutura e ornamento, figura e abstração. O fato de, em arquitetura, esses termos terem permanecido sem questionamento, livres de análise crítica, indica que o domínio da metafísica da dialética permanece poderosamente inalterado. Hoje está claro que, apesar da renovação de sua imagem retórica e das intenções radicais de seu programa social, a tão proclamada ruptura do Modernismo foi ilusória: ele sempre deu continuidade à tradição clássica. Apesar de as formas serem realmente diferentes  o modo pelo qual elas ganharam significado ou representaram seu significado real   derivaram da tradição da arquitetura. Em outras disciplinas, particularmente em Ciência e Filosofia, houve desde meados do século XIX mudanças extraordinárias na forma real, no método para produzir sentido. Hoje a cosmologia que articula as relações entre Homem, Deus e a Natureza se distanciou muito das normas da dialética hegeliana. Nietszche, Freud, Heidegger em mais recentemente, Jacques Derrida, contribuíram para a dramática transformação do pensamento e da conceituação do Homem e de seu universo. Entretanto, muito pouco desse impacto encontrou eco na arquitetura contemporânea, que não questionou criticamente seus próprios fundamentos como a Ciência e a Filosofia. Permaneceu fiel a princípios próprios a essas duas áreas do conhecimento, que foram se tornando insustentáveis devido a seu inerente questionamento interno. Os fundamentos dessas disciplinas mantêm-se hoje essencialmente incertos, sendo possível se perguntar se essa incerteza também não é válida para as bases da arquitetura, onde essa questão nunca foi articulada, nunca teve resposta. Isso ocorre porque a arquitetura nunca elaborou uma teoria apropriada sobre o Modernismo, compreendido como um conjunto de idéias que lida com as incertezas intrínsecas e com a alienação da condição moderna. A arquitetura sempre acreditou que os fundamentos de seu Modernismo residiam na certeza, na visão utópica da ciência do século XIX e na Filosofia. Atualmente essa visão não pode ser sustentada. Todas as disciplinas especulativas e artísticas  teologia, literatura, pintura, cinema e música   chegaram, de um modo ou de outro, a um acordo em relação a essa desagregação. Cada uma delas redefiniu o mundo a seu próprio modo, de acordo com princípios que podem ser chamados de pós- hegelianos. Assim, o chamado Pós-Modernismo em arquitetura, uma ruidosa nostalgia pela aura perdida do autêntico, do verdadeiro e do original, ignorou essa importante tarefa. Pode-se constatar que, hoje, o último baluarte de projeto individual está no compromisso com essa aura do autêntico, do verdadeiro e do original. Porém o saldo do Pós-Modernismo em arquitetura foi a produção em massa de objetos que tentam parecer não terem sido produzidos em massa. É dessa forma que o Pós-Modernismo destrói sua essência, sua própria “raison d’être”, tornando -se um veículo de estetização do banal.  A questão que se coloca então é: por que a arquitetura encontra tanta dificuldade em se posicionar no domínio pós-hegeliano? Porque a arquitetura é simplesmente a disciplina que encontra maior dificuldade em se deslocar, a e ssência de sua atividade é se “locar”. A arquitetura não especula meramente sobre a gravidade, ela opera a favor e contra a gravidade. Por essa razão, sua presença

Blue Line Text.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • Blue Line Text Texto de Peter Einsemam publicado na Revista AU

    Freqentemente se argumenta que os princpios do Modernismo derivaram da filosofia de Hegel.

    Nessa discusso, os fundamentos desenvolvidos em Discursos sobre Esttica de Hegel evoluram para

    a ruptura modernista em relao tradio clssica. De particular significado foi o conceito central da

    dialtica metafsica do qual surgiram oposies como forma e funo, estrutura e ornamento, figura e

    abstrao. O fato de, em arquitetura, esses termos terem permanecido sem questionamento, livres de

    anlise crtica, indica que o domnio da metafsica da dialtica permanece poderosamente inalterado.

    Hoje est claro que, apesar da renovao de sua imagem retrica e das intenes radicais de

    seu programa social, a to proclamada ruptura do Modernismo foi ilusria: ele sempre deu continuidade

    tradio clssica. Apesar de as formas serem realmente diferentes o modo pelo qual elas ganharam

    significado ou representaram seu significado real derivaram da tradio da arquitetura.

    Em outras disciplinas, particularmente em Cincia e Filosofia, houve desde meados do sculo

    XIX mudanas extraordinrias na forma real, no mtodo para produzir sentido. Hoje a cosmologia que

    articula as relaes entre Homem, Deus e a Natureza se distanciou muito das normas da dialtica

    hegeliana. Nietszche, Freud, Heidegger em mais recentemente, Jacques Derrida, contriburam para a

    dramtica transformao do pensamento e da conceituao do Homem e de seu universo. Entretanto,

    muito pouco desse impacto encontrou eco na arquitetura contempornea, que no questionou

    criticamente seus prprios fundamentos como a Cincia e a Filosofia. Permaneceu fiel a princpios

    prprios a essas duas reas do conhecimento, que foram se tornando insustentveis devido a seu

    inerente questionamento interno. Os fundamentos dessas disciplinas mantm-se hoje essencialmente

    incertos, sendo possvel se perguntar se essa incerteza tambm no vlida para as bases da

    arquitetura, onde essa questo nunca foi articulada, nunca teve resposta.

    Isso ocorre porque a arquitetura nunca elaborou uma teoria apropriada sobre o Modernismo,

    compreendido como um conjunto de idias que lida com as incertezas intrnsecas e com a alienao da

    condio moderna. A arquitetura sempre acreditou que os fundamentos de seu Modernismo residiam na

    certeza, na viso utpica da cincia do sculo XIX e na Filosofia. Atualmente essa viso no pode ser

    sustentada. Todas as disciplinas especulativas e artsticas teologia, literatura, pintura, cinema e msica

    chegaram, de um modo ou de outro, a um acordo em relao a essa desagregao. Cada uma delas

    redefiniu o mundo a seu prprio modo, de acordo com princpios que podem ser chamados de ps-

    hegelianos. Assim, o chamado Ps-Modernismo em arquitetura, uma ruidosa nostalgia pela aura perdida

    do autntico, do verdadeiro e do original, ignorou essa importante tarefa.

    Pode-se constatar que, hoje, o ltimo baluarte de projeto individual est no compromisso com

    essa aura do autntico, do verdadeiro e do original. Porm o saldo do Ps-Modernismo em arquitetura

    foi a produo em massa de objetos que tentam parecer no terem sido produzidos em massa. dessa

    forma que o Ps-Modernismo destri sua essncia, sua prpria raison dtre, tornando-se um veculo

    de estetizao do banal.

    A questo que se coloca ento : por que a arquitetura encontra tanta dificuldade em se

    posicionar no domnio ps-hegeliano? Porque a arquitetura simplesmente a disciplina que encontra

    maior dificuldade em se deslocar, a essncia de sua atividade se locar. A arquitetura no especula

    meramente sobre a gravidade, ela opera a favor e contra a gravidade. Por essa razo, sua presena

  • objetiva dentro dos termos da realidade, ela sempre foi obrigada a simbolizar esses preceitos e seu

    funcionamento, como provedora de abrigo e retiro.

    Conseqentemente, a arquitetura se depara com uma difcil tarefa: deslocar o que ela situa.

    Esse seu paradoxo. Devido ao imperativo da presena, da importncia do objeto arquitetnico para a

    experincia do aqui e agora, a arquitetura enfrenta esse paradoxo como nenhuma outra disciplina. Por

    estar ligada condio fundamental de abrigo compreendido na sua dimenso fsica e metafsica, j que

    ele existe tanto no mundo real quanto no das idias, a arquitetura opera ao mesmo tempo como

    condio de presena e de ausncia.

    Em sua contnua nostalgia pela autenticidade, a arquitetura sempre procurou, sem perceber,

    reprimir o aspecto interior a si prpria e essencial da ausncia. A tradio da presena arquitetnica e da

    objetividade, assim como a representao do Homem e suas origens sempre foram tidas como naturais,

    o que foi obtido atravs de uma linguagem formal, tida tambm como natural.

    A coluna e a viga, o arco e as arcadas, o capital e a base, por exemplo, foram todos pensados

    como naturais arquitetura. Assim, a nostalgia ps-moderna tentou conduzir a arquitetura a um retorno

    sua herana verdadeira, natural. Mas possvel, atuando em sentido contrrio, propor uma

    arquitetura que inclua as instabilidades e deslocamentos que hoje constituem a verdade, e no um mero

    sonho de uma verdade perdida.

    A idia de que a arquitetura deve ter a verdade como tradio representar, alm de sua funo

    de abrigo, o bom e o belo exerce uma represso primitiva que passa despercebida. De fato, a verdade

    da instabilidade que tem sido reprimida. Pois, se a arquitetura uma conveno, que no natural,

    existe ento outra verdade passvel de ser proposta alm da natural verdade do objeto clssico.

    Somente quando se alterar a idia de uma verdade natural fora de sustentao da represso causada

    pelo conceito de natural -, a arquitetura participar significativamente do projeto ps-hegeliano.

    Essa represso est tambm enraizada na persistncia da natureza supostamente isenta de

    julgamento de valor das categorias tipolgicas da arquitetura e de sua hierarquia intrnseca. Mas no h

    equivalncia entre estrutura e ornamento: o ornamento acrescentado estrutura. Assim como no h

    equivalncia entre figura e razo; a figura acrescentada ao fundo primordial. Cada um dos termos

    desses opostos dialticos tem um valor intrnseco: estrutura bom, ornamento ruim. Para a arquitetura

    entrar na condio ps-hegeliana, ela deve se afastar da rigidez e da estrutura de valor dessas

    oposies dialticas. Por exemplo, a oposio tradicional entre estrutura e ornamento, abstrao e

    representao, figura e fundo, forma e funo, poderia ser dissolvida. A arquitetura poderia iniciar uma

    explorao do entre nessas categorias.

    Tal arquitetura no buscaria mais a separao de categorias, a hierarquia de valores ou os

    sistemas classificatrios tradicionais de tipologia formal e funcional e sim turvar essas e outras

    estruturas. A idia da falta de clareza no menos precisa, nem menos racional, mas admite o irracional

    no racional. Hoje podemos identificar essa idia nas pinturas de David Salle, nas fotografias de Cindy

    Sherman, onde o nebuloso aparece entre o belo e o feio, o sensual e o intelecto. Exploram

    simultaneamente o belo no feio e o feio no belo.

    O que o entre em arquitetura? Se arquitetura normalmente determina o lugar, ento estar

    entre significa estar entre algum e nenhum lugar. Se a arquitetura tradicionalmente se relaciona com

    topos uma idia de lugar -, ento estar entre significa buscar um atopos, a atopia dentro do

    topos. Muitas cidades americanas modernas so exemplo de atopia. Ainda assim, os arquitetos

  • querem negar a atopia da existncia atual e restabelecer os topos do sculo XVIII, trazer de volta uma

    condio que no pode mais existir. O que h realmente de valioso na recriao de um vilarejo do sculo

    XVIII em Los Angeles ou Houston?

    A lio do Modernismo sugere que no h topos no futuro. Os novos topos devem ser

    encontrados explorando a inevitvel atopia do presente que est no na nostalgia estetizada do banal,

    mas sim naquilo que existe entre o topos e a atopia.

    Para que esse processo se concretize, o modo pelo qual o significado expresso deve ser

    examinado criticamente. Assim como a teologia, a filosofia e a cincia, a arquitetura deve rever suas

    verdades, particularmente a tradio da representao.

    Desde Aristteles, a verdade tem condicionado a metfora, que consiste em relacionar um

    referencial verdade. possvel, entretanto, empregar outros tropos retricos e assim questionar o

    status da metfora. H, de fato, um tropo retrico chamado catacrese que fala do entre. A catacrese

    penetra na verdade e torna possvel olhar para aquilo que a verdade reprime. Verdade e metfora

    podem ser revistas no atravs do exame crtico de suas estruturas. Segundo Tafuri, h dois tipos de

    arquiteto: o mgico e o cirurgio; penetrar na metfora para revelar a catacrese, penetrar nos atopos

    para revelar um novo topos.

    H duas condies de catacrese e atopia no seio da arquitetura: o arabesco e o grotesco. O

    arabesco est entre a figurao e a abstrao, entre a natureza e o homem, entre significado e forma.

    Tradicionalmente, seu uso tem sido meramente decorativo, mas possvel sugerir a presena da

    estrutura no arabesco ou, pelo menos, delimitar a condio entre estrutura e ornamentao.

    Analogicamente, o grotesco, cujas razes so relacionadas s do arabesco, pode ser usado para

    explorar o entre. No coincidncia que se faam aluses aos trabalhos de Sherman e Salle como

    grotescos. Nos Contos do Arabesco e do Grotesco, de Edgar Allan Poe, a casa mal-assombrada uma

    imagem central. Isso no quer dizer que devamos literalmente construir casas mal-assombradas, nem

    romancear a qualidade do assombrado, mas sim que o grotesco talvez esboce um potencial potico,

    uma possibilidade para a arquitetura do entre, hoje.

    PETER EISENMAN

    Traduo: MARCIA CAMPOS

    Existe um sentido figurativo para esse ttulo em ingls. Blue line o nome informal da prova de texto que o

    impressor manda para o autor ou editor para ser corrigido antes que a verso final seja impressa (a cor da tinta

    dessa prova azul, da o termo blue line). Pelo fato de o blue line ser uma verso intermediria do texto,

    produzida depois do primeiro esboo e antes da verso final impressa, ele cumpre a condio do entre, referida

    por Peter Eisenman neste texto.