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Boletim Paulista Boletim Paulista Boletim Paulista Boletim Paulista Boletim Paulista de de de de de Geografia Geografia Geografia Geografia Geografia ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS SEÇÃO LOCAL SÃO PAULO Nº 83 DEZEMBRO DE 2005 SÃO PAULO (BRASIL) PERSPECTIVA CRÍTICA

Boletim Paulista de Geografia - Formação Espacial

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Boletim Paulista de Geografia

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ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROSSEÇÃO LOCAL SÃO PAULO

Nº 83DEZEMBRO DE 2005

SÃO PAULO(BRASIL)

PERSPECTIVA CRÍTICA

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA

ISSN 0006-6079

O Boletim Paulista de Geografia é editado pela Associação dosGeógrafos Brasileiros - Seção Local São Paulo.

Os trabalhos exprimem as opiniões dos respectivos autores e nãonecessariamente da AGB-SP ou dos editores do BPG.

IDEALIZAÇÃO: Alexandre Santana Odzioba, Joana Cury, José Raimundo SousaRibeiro Junior, Paulo Miranda Favero, Renata Sampaio e Renato Ferreira.

EDITORES: Carolina Massuia de Paula, José Raimundo Sousa RibeiroJunior e Paulo Miranda Favero.

CONSELHO EDITORIAL: Alvanir de Figueiredo, Ana Fani AlessandriCarlos, Ana Maria Marques Camargo Marangoni, Ariovaldo Umbelinode Oliveira, Armen Mamigonian, Eva Alterman Blay, Gil Sodero deToledo, João José Bigarella, José Pereira de Queiroz Neto, José deSouza Martins, Juergen Richard Langenbuch, Luis Augusto de QueirozAblas, Lylian Coltrinari, Manoel Fernando Gonçalves Seabra, MarceloMartinelli, Orlando Valverde e Pasquale Petrone.

DIRETORIA DA AGB-SP (2004-2006): Diretora: Sônia Maria VanzellaCastellar; Vice-diretor: Nilo Américo Rodrigues Lima de Almeida; 1ªSecretária: Maíra Bueno Pinheiro; 2º Secretário: Carlos Carriel Castro;1º Tesoureiro: André dos Santos Baldraia Souza; 2º Tesoureiro:Wladimir Jansen Ferreira; Coordenação de Publicações: LeandroEvangelista Martins; Coordenação de Biblioteca: Gilberto Américo;Coordenação de Intercâmbio: Renata Smocowisk Miranda;Coordenação de Divulgação: Paulo Miranda Favero; Bolsistas: Alinede Souza Melo, Elaine Rosângela da Silva e Léa Lameirinhas Malina.

Os artigos publicados no Boletim Paulista de Geografia são indexados por: Geo abstracts,Sumários Correntes Brasileiros e Geodados: http://www.dge.uem.br/geodados.

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Reservados todos os direitos de acordo com a legislação vigente. Dezembro de 2005

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Copyright 2005 da AGB

É proibida a reprodução parcial ou integral,sem autorização prévia dos detentores do copyright

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USPFicha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

Boletim Paulista de Geografia / Seção São Paulo - Associação dosGeógrafos Brasileiros. - nº 1 (1949) - São Paulo: AGB, 1949.

Irregular

Continuação de: Boletim da Associação dos Geógrafos Brasileiros

ISSN 0006-6079

1. Geografia 2. Espaço Geográfico 3. História do Pensamento Geográfico.I. Associação dos Geógrafos Brasileiros. Seção São Paulo.

CDD 910

Impressão: Xamã Editora

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIANÚMERO 83 SÃO PAULO – SP DEZ. 2005

EDITORIAL ........................................................... 3

ARTIGOSRuy Moreira .......................................................... 5SOCIEDADE E ESPAÇO NO BRASIL (AS FASES DA FORMAÇÃO ESPACIALBRASILEIRA: HEGEMONIAS E CONFLITOS)

Paulo Roberto Teixeira de Godoy.................................. 31TEORIAS E CONCEITOS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O DEBATE CRÍTICOEM GEOGAFIA

Amélia Luisa Damiani................................................ 55A GEOGRAFIA QUE DESEJAMOS

Arlete Moysés Rodrigues............................................ 89PROBLEMÁTICA AMBIENTAL = AGENDA POLÍTICAESPAÇO, TERRITÓRIO, CLASSES SOCIAIS

William Rosa Alves .................................................. 109O ORDENAMENTO TERRITORIAL CAPITALISTA E A ESPACIALIDADEBRASILEIRA ATUAL: UMA INTRODUÇÃO AO DEBATE DA RELAÇÃOENTRE FORMAÇÃO SOCIOESPACIAL E BLOCO HISTÓRICO

Marcos Bernardino de Carvalho.................................... 139GEOGRAFIA: CIÊNCIA DA COMPLEXIDADE (OU DA RECONCILIAÇÃOENTRE NATUREZA E CULTURA)

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EDITORIAL

É com muito prazer que apresentamos o Boletim Paulistade Geografia no 83 – Perspectiva Crítica. Fruto de um trabalhocoletivo, este BPG só pôde ser editado graças ao esforço dealgumas pessoas, que vêem na AGB um canal importante parapromover um debate comprometido não somente com aGeografia, mas também com a transformação da realidade.

Entendemos que a construção do conhecimento é coletivae, portanto, plural. Assim, nesta publicação, tentamos realizarmais do que uma simples exposição de artigos. Nossa principalintenção é fomentar um debate qualitativamente diferente, aocolocar “frente a frente” autores que tenham uma postura críticadiante da realidade em que estamos inseridos.

Amélia Luisa Damiani, Arlete Moysés Rodrigues, MarcosBernardino de Carvalho, Paulo Roberto Teixeira de Godoy, RuyMoreyra e William Rosa Alves apresentam contribuições distintas,que devem ser entendidas e debatidas. Mais do que a pura esimples adoção de rótulos, o que nos interessa é a postura com aqual estes autores tentam decifrar o mundo em que vivemos.

Nos últimos tempos temos visto a Geografia ser cada vezmais tomada pelos discursos tecnicistas que tentam diminuir opapel da teoria para o entendimento e transformação darealidade. Este BPG caminha no sentido contrário, apontandopara o debate teórico como algo imprescindível não somentepara a Geografia, como para toda e qualquer ciência.

Para finalizar, é importante dizer que este BPG faz partede um movimento muito maior, que não começa e nem terminaaqui. Sua importância está de fato na possibilidade de que eleseja lido, comentado, usado e principalmente debatido.Esperamos ter contribuído de algum modo para esse debate.

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ARTIGOS

SOCIEDADE E ESPAÇO NO BRASIL (AS FASES DAFORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA: HEGEMONIAS ECONFLITOS)

SOCIETY AND SPACE IN BRAZIL

Ruy Moreira1

Cinco são as fases da formação espacial brasileira, balizandoas formas de relação sociedade-espaço no Brasil no tempo: a dosvetores fundacionais; a dos ciclos de assentamento; a da redivisãoterritorial industrial do trabalho; a da privatização da gestão edesintegração espacial do projeto nacional; e a da articulação dassociabilidades e as tendências de uma formação espacial complexa.São fases marcadas por um contraponto entre modelos comunitários,engendrados espontaneamente, e o modelo de sociedade dominante,num conflitamento que tensiona a formação espacial brasileira pordentro em caráter reiterado e permanente.

Se no longo do tempo este contraponto foi mantido àsocultas pelo modo de regulação de espaço instituído pela facehegemônica, emerge hoje à evidenciação da consciência social,liberado pela reestruturação por que passa a formação espacialbrasileira como resultado da entrada do modo de produçãocapitalista, seu nexo estruturador, no rumo duma forma de

1 Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado)em Geografia da Universidade Federal Fluminense.

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organização e regulação espacial nova. Evidenciação reveladana surgência dos seus novos sujeitos. Quais as raízes históricas eas formas de tendência dessa realidade nova que a formaçãoespacial brasileira aos poucos revela?

OS VETORES FUNDACIONAIS

A formação espacial inicial do Brasil tem origens na açãode dois vetores da formação do território: o bandeirantismoe a expansão do gado. Caminhando em sentidos contrários,no século XVIII estes dois vetores vão encontrar-se no planaltocentral e assim cristalizar a matriz do arranjo da formaçãoespacial que hoje conhecemos.

O bandeirantismo tem foco de irradiação em São Vicentee avança rumo a quatro direções: o litoral sul, seguindo pelocosteamento; o sudoeste, rumo ao território das missõesjesuíticas; o oeste e noroeste, rumo aos territórios dascomunidades indígenas do planalto central e da Amazônia; e onordeste, rumo aos territórios quilombolas rebelados contra oscentros canavieiros da zona da mata nordestina. São incursõesapresadoras e de repressão, em cujos rastros os bandeirantesvão deixando manchas de cultivos e núcleos de futuras cidadesque pontuarão a base logística da sociedade em formação.

Todavia, a inspiração real é a descoberta de minas deouro e prata, intento perseguido tenaz e permanentemente, como destino de cumprir na Colônia a política do metalismo quenorteia todo o empreendimento colonial de Espanha e Portugalneste momento. Daí o bandeirantismo perdurar por todo o correrdos séculos XVI ao XVIII, culminando com a descoberta das minasde ouro e diamantes no planalto central-mineiro, quando entãocessa. Em cada ponto para o qual se dirige, combina então oapresamento de índios e a busca da descoberta do eldorado.Estimulado pela demanda interna de trabalho escravo, que

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aumenta na Colônia com o sucesso e a expansão da economiaaçucareira dos engenhos, o apresamento e venda de índios comoescravos é o que motiva os bandeirantes em todos os seusmovimentos de incursão pelo hinterland, não respeitando omarco legal do Tratado de Tordesilhas, pelo qual o domínio colonialportuguês pouco vai além da faixa estreita do litoral do Atlântico(MONTEIRO, 1995; MOOG, 1966), acumulando com o tempo umaexperiência de guerra, a quem recorre a classe plantacionista dazona da mata em diferentes momentos.

Neste propósito, as incursões bandeirantes avançam rumoao litoral sul, onde suas tropas vão disputar hegemonias deterritório e de apresamento indígena com as tropas espanholas,que aí também agem, em nome da pertença dessas terras àEspanha segundo o Tratado de Tordesilhas. Indo para além dolimite da região de Laguna, no litoral de Santa Catarina, omovimento bandeirante alarga os domínios da Colôniaportuguesa, ao tempo que garante a mercadoria escrava que omotiva. É mais rico de possibilidades, todavia, o apresamentonas missões jesuíticas, que reúnem numerosa população de índiosguaranis, aldeados, desde 1610, em terras do atual Paraguai,Argentina e Rio Grande do Sul. Uma seqüência de conflitosatravessa a história das relações de bandeirantes e a regiãomissioneira, que leva, por fim, à dissolução e dispersão dascomunidades no século XVIII, em 1768, quando são extintas. Mastambém são grandes atrativos as aldeias espalhadas pela imensidãodos sertões do Centro-Oeste e da Amazônia, focos preferidos daação de apresamento para muitas tropas de bandeirantes porseu menor poder de resistência e coincidir com a possibilidadede descoberta de metais preciosos, unindo apresamento edescoberta num só movimento (HOLANDA, 1976 e 1986). Fogema este escopo, porém, as incursões dos bandeirantes à região doNordeste açucareiro (PUNTONI, 2002). Seguidamente derrotadosem campos de batalha pelos negros escravos organizados nosquilombos, de que Palmares ficou como grande símbolo, a elite

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açucareira dos engenhos da Zona da Mata convoca os serviçosdo capitão-de-guerra Domingos Jorge Velho, esgarçando-se umasérie de confrontos que culmina com a morte de Zumbi em 1695e a derrota dos palmarinos, encerrando um período de revoltasde escravos no Nordeste que dura desde 1597.

Os quilombos e as missões jesuíticas são contrapontos aomodelo de sociedade que Portugal institui na Colônia, as missõesjesuíticas desde seus começos de implantação e os quilombosquando o modelo já é uma forma de sociedade consolidada.São, ambas, modelos comunitários de sociedade que secontrapõem ao modelo escravista que se implanta na AméricaPortuguesa (CARNEIRO, 1966; e LUGON, 1968). Dado essa estruturae organização por isso mesmo resistem longamente às investidasde sua extinção, Palmares durando 98 anos (1597-1695) e asmissões 158 anos (1610-1768), só desaparecendo no correr dasegunda fase da formação espacial brasileira, quase ao mesmotempo e pelas mesmas mãos. Mas esta é uma fase pontilhadatambém de inúmeras rebeliões indígenas, algumas com estruturasde organização que lembram as missões e os quilombos, como aConfederação dos Tamoios, entre 1554 e 1567, no litoral do Estadodo Rio de Janeiro (QUINTILIANO, s/d) e a revolta de Ajuricaba,entre 1723 e 1727, na Amazônia (BRUNO, 1961).

As trilhas do gado seguem em sentido contrário ao vetorbandeirante. Seu ponto de origem é a região açucareira da Zonada Mata, com ponto de referência em Pernambuco, de onde, naforma de ondas, a pecuária bovina avança rumo aos limitesocidentais do sertão nordestino no Piauí e Ceará, na direçãooeste, e aos limites do planalto central, através da calha do rioSão Francisco, na direção sul. Tal como no caminho dosbandeirantes, uma diversidade de pontos de parada vai dandoorigem a manchas de cultivos e de vilas de onde irão brotandoos centros de referência da ocupação e formação do território.

Neste mister, o movimento bandeirante e o movimento deexpansão do gado forçam o deslocamento das fronteiras formais do

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Tratado de Tordesilhas, empurrando os limites legais crescentementepara os confins do hinterland, forjando o domínio que o Tratadode Madrid, de l730, irá consagrar como o novo recorte de fronteiradas colônias de Portugal e Espanha, praticamente riscando o desenhodo território brasileiro de hoje (PEREGALLI, 1997).

OS CICLOS DE ASSENTAMENTO

O desenho combinado das trilhas bandeirante e pastoriltraça os grandes riscos de linha da tela em cujos interstícios opincel discreto da história se incumbirá de desenhar em grandesmanchas de tinta as paisagens com que a sociedade brasileirainscreverá o seu espaço. As grandes paisagens, que a discriçãoda história paciente e incansavelmente desde então vaidesenhando, são os frutos de nossa evolução em seis grandesciclos de espaço-tempo: pau-brasil, cana-de-açúcar, mineração,gado, borracha e café (NORMANO, 1975 [1938]; DIEGUES, 1960).

Ponto essencial desse processo, esse plano geral de linhase cores das paisagens é o plano-guia de ocupação efetiva, oroteiro dos assentamentos que os ciclos vão aqui e ali plantandono espaço. As trilhas dos bandeirantes e do gado, ora dos rios eora dos interflúvios – para o gado também as grandes superfíciesplanas do planalto, onde avança como uma mancha de óleo –,orientam a pontuação dos assentamentos da população e dasatividades econômicas, no correr dos ciclos. Os vales dos riosmerecem o privilégio.

Primeiro momento dos ciclos da ocupação do território,o ciclo do pau-brasil inicia a história da formação espacialbrasileira. Vigora no correr dos séculos XVI e XVII e tem pordomínio de abrangência a estreita faixa da franja costeira damata atlântica, do Rio Grande do Norte ao norte do Rio deJaneiro. A extração do pau-brasil, cuja madeira, de seivavermelha, será enviada à Europa para a produção de corante,

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dá origem às primeiras áreas de ocupação da Colônia. Instaladascomo feitorias, essas áreas fundam a toponímia e antecipam adepredação do meio ambiente como política colonial, deixandoatrás de si terra arrasada como herança para a história dasrelações da sociedade com o seu espaço no Brasil.

Entretanto, é com o ciclo da cana-de-açúcar que começaefetivamente o processo da ocupação e formação espacial daColônia. Sua área de localização privilegiada é a zona da matanordestina, onde se instala em 1532, com o tempo se multiplicandopor novas áreas da mata atlântica, particularmente no norte doEstado do Rio de Janeiro e em São Vicente, o pólo de irradiaçãodo bandeirantismo, em São Paulo. O ciclo da cana institui asociedade agrária como modelo de sociedade no Brasil,diferentemente da política de ocupação espanhola, que, porencontrar de imediato as minas de ouro e prata querepresentavam a ambição colonial das metrópoles, institui comomodelo uma sociedade mineradora e urbana nas terras daespanoamérica. O caráter agrário e mercantil substanciará oconteúdo social da formação espacial brasileira desde o começo,num contraste com a essência mineiro-urbana da formaçãoespacial da América hispânica.

No século XVIII, finalmente encontrado o ouro e osdiamantes que desde o início o projeto colonial intentara, aformação espacial colonial experimenta uma ligeira massubstantiva mudança. Inicia-se o ciclo da mineração, que transfereo centro de gravidade da ocupação do litoral para o interior,instalando-o nas áreas ricas de mineração que se multiplicampelos planaltos central e mineiro, e troca o caráter agrário pelomineiro-urbano da formação colonial, encerrando a fase dobandeirantismo e de expansão do gado. Esse deslocamento deconteúdo e localização do centro de gravidade dura apenas atéo final do século, quando se encerra o ciclo, restando a culturade uma vida urbana que doravante terá efeitos profundos e dealta importância nas relações da Colônia.

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O encerramento precoce do ciclo da mineração – duramenos de um século – devolve o centro de referência da vida devolta aos núcleos açucareiros do litoral, ao tempo que inicia nasantigas áreas mineiras o ciclo do gado. O ciclo do gado é aculminância das ondas de deslocamento de rebanhos provenientesde duas áreas extremas da Colônia: o sertão do Nordeste e oscampos do Sul, atraídos para o planalto central-mineiro pelademanda de alimentos criada pelo ciclo da mineração. É doscentros açucareiros que sai inicialmente o rebanho nordestinoque, subindo o vale do São Francisco, chega e se espalha pelasáreas de vegetação de cerrado, em busca dos mercados formadospelos núcleos urbanos da mineração. Aí, se encontra com orebanho sulino vindo da região do pampa, atraído pela mesmademanda. Estes deslocamentos, um vindo do Nordeste e outrodo Sul, colmatam e povoam no seu caminho a enorme diversidadede sertões que forma o então hinterland, desde o pampa, aocerrado e à caatinga, de modo que, centrado no planalto central-mineiro, o ciclo do gado terá por real abrangência toda aimensidão do sertão brasileiro formado pelas áreas de vegetaçãocampestre do pampa, do planalto central e do planalto nordestino,numa faixa quase contínua e alongada do hinterland no sentido dalatitude. E com isso sedimenta e consolida como espaço o territórioda Colônia estabelecido pelo Tratado de Madrid de 1730.

O final do século XVIII é fase também do ciclo daborracha, que vai ocorrer na região de florestas do valedo Amazonas. Até este final de século, e em paralelo aosciclos do pau-brasil, da cana e dos metais preciosos, vigeno Norte o ciclo das drogas do sertão. A instituição dealdeamentos indígenas, pelo trabalho de aculturação dosjesuítas, instaura a atividade do extrativismo como modode vida dominante ao longo de todo o vale. Este ciclo seesgota nos finais do século XVIII, quando é substituído peloda extração da borracha, o novo ciclo reorganizando aeconomia regional como um todo. O ciclo da borracha cria

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um novo modo de vida, atraindo imigrantes do sertãonordestino, assolados pelas secas do final do século, alterandoas relações existentes e formatando a relação de exploraçãoda floresta em função do novo empreendimento.

O café, o último dos ciclos, domina o século XIX e asprimeiras décadas do século XX, com epicentro no planalto deSão Paulo. Instaurado inicialmente nas matas dos maciçosinteriores da cidade do Rio de Janeiro, daí se expande para seinstalar nas áreas florestadas da serra do Mar e do vale do Paraíba,nos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, para,por fim, chegar ao planalto paulista, quando então atinge seuclímax. O ciclo do café sustenta e faz inúmeras transições, dacolônia para a independência, da escravidão para o capitalismoe da monarquia para a república, assim antecipando o momentoinstaurador da grande transformação que ocorrerá na formaçãoespacial brasileira com o advento da industrialização eurbanização do agora país.

Essa seqüência de ciclos implanta pois o formato de ocupaçãoe assentamento econômico e demográfico da formação espacialbrasileira. E cria o padrão do arranjo espacial que irá vigorar atémeados do século XX, em que a lavoura ocupa as áreas de florestae a pecuária as de vegetação aberta, num arranjo diferenciadoem três grandes faixas de sentido latitudinal, dispostas no sentidodo litoral para o norte amazônico: a de lavouras e ocupações urbanasda região de mata atlântica, disposta ao longo e em paralelo aolitoral; a de pecuária das áreas dos sertões, dispostas em faixalatitudinal quase contínua da caatinga nordestina ao pampariograndense, com a imensidão do sertão dos cerrados no meio; ea do extrativismo vegetal da Amazônia, fechando o mapa no sentidodo extremo oeste-norte. A ocupação demográfica reproduz essaocupação sócio-econômica em três grandes faixas, também variandodo atlântico ao vale do Amazonas, com maior densidade na faixaatlântica e intensidade sucessivamente menor até minguar e mostrar-se rala na faixa extrativista do extremo norte.

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É nesse longo período dos ciclos que se implanta o modelode sociedade brasileira como uma sociedade concentradora eexcludente, levantando uma seqüência de movimentosinsurrecionais, voltados para o propósito de experimentar ummodelo comunitário de sociedade, em contraposição ao modeloescravista, latifundiário e monocultor dominante: o modelo dosquilombos, localizado em vários lugares, com núcleo maior nasáreas montanhosas do agreste alagoano-pernambucano, entre1597 e 1695 (CARNEIRO, 1966; e REIS e GOMES, 1996), no períododo ciclo da cana; o modelo dos cabanos, entre 1835 e 1840,localizado na Amazônia (ROCQUE, 1984; e DI PAOLO, 1985), noperíodo de transição do ciclo das drogas para o ciclo da borracha;e o modelo de Canudos, entre 1893 e 1897, localizado no sertãonorte da Bahia, na transição da monarquia para a república(CUNHA, 1995 [1901]; e MONIZ, 1978), além do modelo doContestado, entre 1912 e 1916, localizado no oeste de SantaCatarina (GALLO, 1999; e DERENGOSKI, 2000), em pleno períododo ciclo cafeeiro. Todos reprimidos e dissolvidos pelo sistemadominante, à semelhança da experiência comunitária das missõesjesuíticas, na fase do ciclo do bandeirantismo.

De um modo geral, são experiências de constituição de umoutro modelo de sociedade que vicejam na fímbria da instituiçãodo modelo hegemônico da formação espacial brasileira e por issomesmo se multiplicam, principalmente, na transição do regimeescravista para o capitalista, que domina o transcorrer do séculoXIX. A estrutura binomial latifúndio-minifúndio, existente desde otempo colonial, e que se institui como base organizativa do períododa transição, período que se estende dos anos 1850 aos anos 1950,por cem anos, e assemelhar-se-ía a uma fase de acumulação primitivano Brasil, parece vir no sentido de neutralizá-las e arrefecê-las.

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A DIVISÃO TERRITORIAL INDUSTRIAL DO TRABALHO

O século XX encontra a matriz da formação espacialbrasileira fundamentalmente completada e consolidada em seuprocesso de constituição territorial e cartográfica. E será essamatriz a base de que o Estado nacional, doravante o reguladordo desenvolvimento, partirá para esgotar e ultrapassar a fasedos ciclos, no rumo da industrialização. Caracteriza-a adiferenciação de áreas, seja por sua arrumação em faixas e sejapela arrumação nas diferentes regiões originadas ciclo a ciclo. Adiferenciação regional, em particular, terá fundamentalimportância para o desenvolvimento da indústria, dado o caráterde uma divisão territorial de trabalho em que ela é transformadapelo Estado, com o fim de dela extrair as divisas de exportaçãonecessárias ao desenvolvimento industrial.

Distinguem-se a fase pré e a fase industrial da formaçãoespacial brasileira agora em construção. A década de 1950 é omarco temporal de passagem.

A industrialização tem seu fomento na passagem do modelode economia “para fora” para o de uma economia “para dentro”(TAVARES, 1972). Até os anos 50 a indústria utiliza em seu crescimentoa economia de produção regional para fora, legada dos cicloscoloniais, crescendo com o consumo de suas divisas, que usa parafinanciar a formação do capital inicial das indústrias, na forma daimportação de matérias-primas e equipamentos. Após os anos 50,encontra-se já desenvolvida e centrando a formação espacialbrasileira, no âmbito de uma organização espacial por elainteiramente produzida e transformada, e obediente à sua lógicaintrínseca de mercado. Oliveira designa transformação de “umaeconomia regional nacionalmente organizada”, a da formaçãoespacial herdada do período dos ciclos de espaço-tempo, parauma “economia nacional, regionalmente organizada”, nome daformação espacial do presente, a essa passagem referenciadano antes e depois dos anos 50 (OLIVEIRA, 1984, 1987 e 1988).

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A lei do desenvolvimento desigual e combinado passaentão a reger a nova formação, progressivamente desigualandoe invertendo a forma das relações espaciais até então existente.O campo passa o comando para a cidade, as regiões passam ocomando para o Sudeste e as indústrias regionais passam ocomando para a concentração em São Paulo, assim se reorientandoa regulação e o ordenamento espacial no interior da formação.Essa metamorfose, acontecida na formação espacial brasileirajá dentro de sua fase industrial, segue, todavia, dois distintosmomentos. Primeiramente, a industrialização arranca e ultrapassanessa arrancada a economia regional herdada da matriz dos ciclos,a seguir dissolvendo-a, ao atingir o seu auge, para reorganizar oespaço numa nova divisão de trabalho de tipo avançado. Istosignifica dois distintos momentos de divisão territorial do trabalhoindustrial: aquele da conversão pura e simples que responderápor sua arrancada e aquele seguinte da redivisão que irácaracterizar a organização espacial do seu auge. A primeira divisãoterritorial do trabalho faz a dissolução da fase da formação espacialonde o campo comanda ainda a cidade, as indústrias são ainda debens de consumo e por isso encontram-se instaladas em praticamentetodas regiões (coladas em suas respectivas economias agrárias), e aconcentração industrial em São Paulo não é um traço distintivoainda. A segunda divisão territorial do trabalho é a da consolidaçãodo arranjo do campo comandado pela cidade e da indústria e doespaço nacional comandado por São Paulo (MOREIRA, 2004).

Uma ampla base de infraestrutura para tanto deve serinstalada, que traga os meios de transporte, de comunicação e detransmissão de energia, organizados numa vasta rede de circulação,visando a que tudo convirja para a instauração do comando da cidadesobre o campo e da indústria paulista sobre o espaço nacional total.

No geral, a rede que a urbano-industrialização promove éa mesma das trilhas do bandeirantismo e da expansão do gado,porém orientada agora para outra direção de relações epropósito, com impacto em geral negativo para os núcleos iniciais

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de assentamento e suas localizações. Ali por onde passa o eixomodernizante da urbano-industrialização, os velhos núcleos deassentamento são encarados como de efeito inercial, não raro aindustrialização dissolvendo-os, desalojando seus habitantes oumesmo extinguindo seus espaços.

De modo que esse é um período dominado por grandes conflitos,não mais do tipo dos confrontamentos de modelos comunitário-latifundiário do passado, mas aqueles advindos dos reordenamentos,tendo lugar conflitos de ordem rural, urbana e regional.

Nos conflitos rurais opõem-se grandes proprietários ecamponeses ao redor da questão da reforma agrária. A forteconcentração da propriedade rural herdada do período colonial,e que atravessa sem mudança as transformações fundamentaisdo século XIX – a independência, a abolição da escravatura e arepública – agora é questionada por um campesinato que começaa ser expulso do campo por conta das mudanças com que aagropecuária responde às demandas urbanas e da industrialização,reagindo o campesinato com a pressão pela partilha eredistribuição mais equânime da propriedade rural, que equilibreas relações no campo e modernize socialmente as relaçõesagrárias. O apoio dos segmentos sociais da cidade que vêem umrebatimento positivo da reivindicação dos camponeses no seumodo de vida urbano – caso dos trabalhadores, com sua pautade emprego, salários e moradia – e no alargamento do mercado– caso dos industriais, preocupados com os limites do mercadointerno para seus produtos –, nacionaliza o movimento docampesinato por reforma agrária e faz dele uma bandeira deconfrontos das mais fortes.

Nos conflitos urbanos opõem-se capital e trabalho, compano de fundo no mundo da indústria, numa pauta dereivindicações do operariado em que predomina o pleitoigualmente de mudança estrutural: reforma urbana, queredistribua a terra e garanta o direito à moradia na cidade;redistribuição da renda, que reduza a desigualdade da riqueza;

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e estabilidade no emprego e ampliação da seguridade social,que estabeleça um modo de vida mais apropriado. Demandasque o patronato industrial ambiguamente vê como pressãocontra o capital e ao mesmo tempo favorável, na medida quefortaleça o mercado sem o qual o desenvolvimento daeconomia fica obstaculizado. São pontos que se somam àgrande reivindicação da reforma agrária. Todos pleitos queremetem a uma radical reformulação dos privilégios da formaçãoespacial passada e antepostos à formação do presente,considerado o interesse da urbanização e da indústria.

Nos conflitos inter-regionais, por fim, pontuam asdissonâncias entre as velhas oligarquias rurais regionais e as novasnascidas da urbano-industrialização, acentuada pela passagemda velha para a nova divisão inter-regional do trabalho,ressaltando em particular o contraste que então se estabeleceentre Sudeste e Nordeste.

Todos esses conflitos expressam a passagem de uma formaçãopara outra e a necessidade de sedimentar-se a regulação correspondente.A forte concentração da economia industrial no pólo paulista, asubordinação das atividades regionais à performance econômica daindústria concentrada em São Paulo, a canalização e transferência demeios de uma região para outra e a disparidade do desenvolvimentoentre o campo e a cidade, são todos conflitos referidos à forma deregulação espacial, conflitos que ocorrem praticamente nas linhas declivagem dos recortes territoriais que demarcam a relação cidade-campo, região-região e cidade-espaço. E são as políticas territoriais doEstado, via ação superestrutural e políticas de infra-estrutura, que regulamesses conflitos, canalizando-lhes as energias para a integração edesenvolvimento da formação espacial no seu todo.

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A PRIVATIZAÇÃO DA GESTÃO DO ESPAÇO EDESINTEGRAÇÃO DO PROJETO NACIONAL

A resposta desses confrontos não vem, no entanto, peloviés das reformas, mas de uma reordenação espacial, que orientao desenvolvimento na linha de uma modernização conservadora.Estratégia de ação que usa da rearrumação do espaço no lugarda transformação estrutural da sociedade demandada pelosmovimentos pró-reformas de base do período da industrialização,a modernização conservadora afeta e altera de modo ainda maisradical o mapa dos assentamentos, introduzindo na formaçãoespacial brasileira um período de desarrumação demográfica esócio-ambiental anteriormente nunca vistos (GUSMÃO, 1990).

É a reestruturação do espaço brasileiro (MOREIRA, 2003).De que a década de 1970 é o marco temporal.

Três eixos seguem esta reestruturação: a modernização daagricultura, a redistribuição territorial da indústria e adespatrimonialização-desestatização que privatiza a gestão do espaço.

A reestruturação começa pela modernização daagropecuária, que tem na expansão da sojicultura para as áreasdo cerrado o seu carro-chefe. Esta expansão, todavia, é anterioraos anos 70, relacionando-se à migração de pequenos produtoresdas regiões de colonização alemã e italiana do Sul para a calhado rio Paraná, buscando reassentar-se no noroeste do Rio Grandedo Sul, oeste de Santa Catarina e oeste do Paraná, afetados emsuas propriedades pelo desenvolvimento da agricultura gaúcha,motivada pela industrialização de São Paulo, e pela acentuadafragmentação da propriedade relacionada às seguidas transmissõesde heranças. Premidos por essas dificuldades, esses pequenosprodutores empreendem um movimento de migração, que nosanos 60-70 chega ao Mato Grosso, e que os governos militaresaproveitam para orientar no sentido da política de colonização dafronteira amazônica. É o Estado que está por trás da geração deuma técnica agronômica de uso dos solos dos cerrados pela EMBRAPA,

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que estimula o movimento migratório e abre esta área para aimplementação agrícola em grande escala. E, ainda, da estratégiade desenvolvimento do setor de indústria para a agricultura, queleva a mecanização da agricultura a acelerar-se em toda a região.Em poucas décadas, a soja toma conta do cerrado.

A política dos grandes projetos, estratégia dedesconcentração industrial, coincide com essa fase de aceleraçãoda modernização agrícola. Consiste essa política em transferirpara o arco de periferia do país as indústrias de bensintermediários, implementando-as na forma de grandes pólosmínero-industriais, muitos dos quais vão instalar-se nas áreas dafronteira agrícola, a exemplo do pólo Grande Carajás, um enormecentro mínero-florestal-siderúrgico instalado na provínciaferrífera de Carajás, no Sudeste do Pará, voltado para a produçãode lingotes de ferro para exportação, apoiado em alto consumode lenha extraída da floresta amazônica. O suporte dessaimplementação combinada de modernização agrícola edesconcentração industrial é uma política de ampliação para asáreas do Centro-Oeste e da Amazônia da implantação de meiosde transporte, comunicação e transmissão de energia elétricaque vinha sendo implementada no Sudeste desde os anos 50-60.Um número crescente de grandes usinas hidrelétricas, torres detransmissão de energia e longos eixos de transporte por rodoviascobre e integra em rede essas áreas aos centros de comando doSudeste, articulando e unificando todo o território nacional comreferência nesses centros. A origem da desconcentração industrialé, entretanto, a deseconomia de aglomeração, que afeta aconcentração urbana e industrial da grande São Paulo nos anos70, provocada pelo acúmulo de um conjunto de conflitos – dosconflitos do trabalho aos conflitos ambientais –, que pressionapela desconcentração da indústria, que irá ocorrer, em São Paulo,via interiorização, e em nível nacional, pela política dos pólos.

Nas décadas de 80-90 o espaço brasileiro assim seredesenha e se descomprime. As atividades agrícolas, pecuárias

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e industriais estão agora mais disseminadas. A rede de transporte,comunicação e linhas de transmissão de energia mais difundidas.E, como efeito, a população, as cidades e as trocas comerciaisamplamente redistribuídas por todo o território.

Assim, a matriz segundo a qual a formação espacial brasileiraaté então se organizara ganha novo formato. Já não mais são asfaixas de sentido litoral-interior e as regiões oriundas dos ciclos asformas da diferenciação de áreas. As paisagens se dissolvem e semisturam: a lavoura passa a ser feita nas áreas de vegetaçãocampestre e o gado nas antigas áreas de matas. E a forma deregulação desfaz-se, num movimento institucional de desmonte eremonte, com duas principais conseqüências: 1) a desarrumaçãosocioambiental do país em ampla escala; e 2) o desalojamento,expulsão e desterritorialização da população dos velhos nichos deassentamento. Ambos com ocorrência no campo e na cidade.

Os efeitos socioambientais são conhecidos (MOREIRA,2003b). Peguemos três exemplos. A combinação de modernizaçãomonoagrícola, grandes usinas hidrelétricas e grandes pólos deprodução mínero-industrial, validada como política territorialpara todo o país, nacionaliza o problema ambiental antesconcentrado nas grandes regiões industriais do Sudeste. Apropagação da soja pelo topo dos chapadões do planalto centralsobre a base da mecanização e consumação de água parairrigação tirada dos lençóis subterrâneos a grandesprofundidades e em grande escala, esgota as reservas hídricas,submete os solos a intensos desgastes, assoreia e altera a redede drenagem, desorganizando o ecossistema do cerrado. E,por fim, a opção pelo transporte rodoviário, destinado afavorecer o escoamento dos grãos e da madeira, intensamenteexplorada junto à ocupação predatória do cerrado e dafloresta, reforça a desarrumação socioambiental que já vemna esteira da ocupação rodoviária do Centro e do Norte desdea abertura da Belém-Brasília, ainda na década de 60 (VALVERDEe DIAS, 1967; e VALVERDE, 1979).

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Bem como são conhecidos os efeitos sociais. Nas áreasrurais, o melhor exemplo é o desalojamento dos assentamentosonde as populações se localizavam desde os pontos de trilhas dobandeirantismo e da expansão do gado, com seus embriões devilas e comunidades rurais localizadas no fundo dos vales dos rios,pelos lagos de barragem das usinas. Os lagos inundam as áreasjustamente desses antigos assentamentos, expulsam as comunidadesindígenas e camponesas de seus lugares históricos e forçam-nas ater de reinventar seus modos de vida em ambientes totalmentedistintos aos seus, multiplicando a população dos camponeses sem-terra, indígenas, barrageiros e desempregados do campo. Nas áreasurbanas, os desalojados são os trabalhadores despedidos de suasocupações e empregos pela chamada flexibilização do trabalho,dividindo a população trabalhadora urbana em população do trabalhoformal e informal quase simetricamente, num volume detrabalhadores informais até então desconhecido na realidade socialbrasileira (KRAYCHETE, 2000).

Essa combinação de efeitos no campo e na cidadedesterritorializa e torna flutuante grande massa depopulação, que no campo vai alimentar a pressão dos sem-terra por novos assentamentos e na cidade a pressão porempregos urbanos para onde migra em levas sucessivas.Uma população flutuante para a qual reinventar os modosde vida torna-se uma imperiosa necessidade.

Há, assim, um movimento de (des)regulação em marcha,e que a política de privatização das empresas estatais dos anos80-90 transforma na instituição da gestão privada do território.Responsável pelas empresas atuantes nos ramos estratégicos dainfra-estrutura e de bens intermediários, chaves no comando daeconomia, a exemplo das empresas estatais organizadoras egestoras do pólos mínero-industriais implantados no correr dosanos 80-90, a privatização dessas empresas privatiza a gestãodas suas respectivas áreas. Quando somados seus espaços aos dacultura da soja, centrados no poder das grandes propriedades, a

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escala da privatização da gestão do espaço se torna um fato deabrangência nacional. O poder dessas empresas fatia o controledo território, desvincula sua administração do Estado, definepor sua lógica de mercado a lógica da regulação do espaço, e,por essa via, dissocia a formação espacial brasileira do projetonacional que até determinara o seu conteúdo.

A ARTICULAÇÃO DAS SOCIABILIDADES E AS TENDÊNCIASDE UMA FORMAÇÃO ESPACIAL COMPLEXA

A privatização da gestão do território desmonta a formahistórica de regulação do espaço até então associada à açãopública do Estado e institui como nova forma uma combinaçãoprivado-pública e setorial-global de gestão, em que a faceprivada e setorial se expressa na intervenção simbiótica dasempresas e das Agências de Regulação e a face pública e globalna intervenção paralela do Estado e dessas mesmas Agências.

As Agências Reguladoras são o dado novo do esquemade gestão da formação espacial brasileira. Criadas uma paracada setor chave da economia (as primeiras das quais foram aANP, a ANATEL, a ANEEL e a ANTT, reguladoras, respectivamente,do setor do petróleo, das telecomunicações, da energiaelétrica e dos transportes terrestres, os setores estratégicosda regulação do espaço), fazem elas um arremedo de gestãopúblico-privado com o Estado.

Assim, uma vez que o planejamento global com que o Estadointervinha desde os anos 40-50 é substituído pela ação fragmentadapor setores, a ação passando a ser levada por esta combinação depúblico-privado com conveniente aparência de sociedade civil, oEstado recua para a função de gestão e levantamento dos recursosfinanceiros, em parceria com o capital privado (estratégia das PPPs- Parcerias Público-Privadas), deixando para as Agências a funçãoda execução e fiscalização das políticas territoriais, num mix de

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representações ao qual cabe por hipótese a tarefa de pensar egerir o todo da nova formação espacial assim criada.

Todo um momento se abre nessa conjuminação de novaregra de regulação e flutuação em escala crescente de umapopulação desalojada dos assentamentos de onde tirava umaestabilidade relativa de modo de vida. De um lado, ummecanismo novo de regulação que só assegura estabilidade parao capital em sua busca de novos nichos de lucro. De outro, umquadro de institucionalidade do qual parte em restrição crescenteda sociedade compartilha. São os dois modos como o novoformato da formação espacial brasileira chega aos seus diferentessegmentos de população. Como num momento novo, essa(des)regulação entra na vida do capital tal qual um bicho vorazque sacode suas teias, oferecendo-lhe o espaço-tempo dereorganização institucional de suas estruturas. Assim, descarta ascomponentes que pesam nos seus custos, realinha os vetores desua política e traça o momento novo de sua cartografia. Mascomo num processo de brecha, todavia, solta ela as amarras queprendiam a criatividade do trabalho, liberando as energias dagestão popular para a emergência de formas espontâneas deauto-regulação, dando asas ao desenvolvimento de formascoletivas e individuais de organização da produção e de vidaantes amortecidas ou presas no âmbito da regulação antiga, decapacidade de intervenção insuspeitadas.

Tudo indica tratar-se de uma nova fase de contraponto,cujos personagens são melhor exemplificados, de um lado, comos complexos agro-industriais (ARAÚJO, WEDEKIN e PINAZZA, s/d; PINAZZA e ARAÚJO, 1993; LOPES, 1996; e BELIK, 2001), quesão a nova face dos monopólios, e, de outro lado, com as formasurbanas de economia popular (REIJNTJES, HAVERKORT e WATERS-BAYER (orgs), 1999; KREYCHETE, LARA e COSTA (orgs.), 2000;GAIGER, 2004; e PACHECO, 2004), a face das experiênciascomunitárias que reemergem. Contraponto que encaminha aformação espacial brasileira rumo ao formato de um complexo

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de sociabilidades, em que, de modo claramente explícito,coexistem a sociabilidade capitalista e as formas de sociabilidadenão-capitalista, num quadro indicativo da entrada da formaçãoespacial brasileira num momento de perfil societário ainda incerto,mas que sugere a possibilidade de caminhos e sujeitos novos de suaorganização (MOREIRA, 2005). São novos o paradigma do trabalhoe da política, novos em face da regulação do espaço.

O complexo agro-industrial é sem dúvida a expressão maisevidente do novo rumo da organização da formação espacialbrasileira pelo lado das classes hegemônicas. É uma economiaindicativa da organização da sociedade e do espaço segundopadrões de regulação marcados pela ausência da divisão territorialdo trabalho, de um lado, e do Estado, de outro lado, ilustrandoo desaparecimento justamente das estruturas reguladoras dasações e dos ordenamentos do recente passado. E, assim, a formaque melhor encarna os efeitos da nova base material trazida àorganização da produção e do trabalho no modo de produçãocapitalista pela era técnica da terceira revolução industrial, cujoepicentro são a microeletrônica e a engenharia genética, e seuacontecimento num momento de hegemonia do capital decaráter eminentemente rentista, tal como previsto por Bukarinem sua teoria da economia mundial capitalista nos começos doséculo XX (BUKARIN, s/d). Para além da fusão da agricultura e daindústria, no complexo agro-industrial fundem-se, numa únicaestrutura de produção e trabalho, os setores da agricultura, dasindústrias, dos serviços e da pesquisa-tecnologia, eliminando asseparações setoriais (em setores primário, secundário, terciárioe quaternário) e espaciais (em cidade e campo; e cidade eregião), e introduzindo um novo modo de organização espacialdas sociedades, novo porque sem as separações que segmentavamterritorialmente as formações espaciais capitalistas. Então, assegmentações territoriais formam-se, agora, no plano da relaçãoentre os corpos globais das empresas, não mais entre os setoresde especialização da economia, todos os setores juntando-se,

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fundidos, numa só empresa e numa mesma estrutura em rede deespaço. O equivalente na “ponta urbana” do complexo agro-industrial é o complexo empresarial que junta a produtora, arevendedora e a financiadora como um só domínio de empresa,socializando o modelo de realização do valor do ramo dasmontadoras de automóveis para todos os ramos de indústria, elevando esta a se estruturar nesse molde em que produção, vendae financiamento se ligam numa só unidade corporativa,eliminando as fronteiras e demarcações que separavam esseselos numa geografia segmentada de gestão e do trabalho, eentregando a gestão do negócio inteiramente ao capital rentista,representado na agência de financiamento do grupo. Daí dizer-se que o espaço tornou-se uma rede de redes. Um nomeapropriado para o espaço dos complexos.

Assim também, a economia em comum é a expressão maisevidente do lado popular. Daí a liberação, tanto no campo quantona cidade, das formas de sociabilidade até então ocultadas nosvelhos nichos de assentamento. No campo, elas aparecem naevidenciação dos conhecimentos populares há séculos centradosna relação de biodiversidade, e, nas cidades, sob o termogenérico de trabalho informal. E, daí, a multiplicação, na cidadee no campo, das formas de economia popular, ora designadas deeconomia dos setores populares e ora de economia solidária(KREYCHETE, 2000; E CORAGGIO, 2000), que despontam dareestruturação capitalista, e cuja natureza é o antigo modo deprodução mercantil simples (SINGER, 2000), supostamente extintona história. São formas de produção e trabalho que tomam porbraço de apoio, nessa reemergência e caminhada paraconsolidação, movimentos sociais organizados como o MST(FERNANDES, 2000) e a CUT (NETO e GIANNOTI, 1993), estes doisparticularmente, para estabelecer seu confronto com a sociedademodelada nos complexos (SOUZA, CUNHA e DAKUZAKU, 2003).

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CONCLUSÃO

Ao fazer desaparecer as divisões que distinguiam eseparavam cidade e campo, região e região, e cidade e região,e justificavam a necessidade da regulação que as unificasse porbaixo do Estado, ou, dizendo de outro modo, ao dissolver afronteira das relações cidade e campo, região-região e cidade-região, superando a divisão territorial do trabalho criada pelaindústria nos anos 50-60 para ser o padrão de organização espacialda formação capitalista, naquilo que a nova base material docapitalismo lhe traz de apoio, a regulação privada do espaçoabre para virem à tona sujeitos novos e formas novas dos antigossujeitos da história, e essas emergências trazem um modo novode contraponto e embaralham a formação espacial brasileira.

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TEORIAS E CONCEITOS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O DEBATE

CRÍTICO EM GEOGAFIA

Paulo Roberto Teixeira de Godoy1

RESUMO

Este pequeno ensaio consiste em um diálogo com as atuaistendências da Geografia brasileira contemporânea e com as noçõese conceitos de Crítica. O objetivo é trazer para o debate teóricoas questões referentes ao conteúdo do pensamento geográfico e osconceitos que sustentam as análises sobre a produção do espaçosocial. Sem a pretensão de esgotar a problemática aqui apresentada,procurou-se ressaltar algumas questões relevantes para repensarcriticamente o pensamento crítico na Geografia. A preocupaçãonão é, necessariamente, com as proposições de uma GeografiaCrítica, mas com as possibilidades de redefinir o debate sobreoutras bases teóricas e conceituais.Palavras-chave: teoria, crítica, produção do espaço

RÉSUMÉ

Ce petit essai se compose d’un dialogue avec les tendancescourantes de la Géographie brésilienne contemporaine et desnotions et concepts de la Critique. L’objectif est d’apporterpour la discussion théorique les questions la référence à la teneurde la pensée géographique et des concepts cet appui les analysessur la production de l’espace social. Sans la prétension épuiser

1 Professor Assistente Doutor da Universidade Estadual Paulista - Rio Claro.

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PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOY

le problématique a présenté ici, il a été regardé quelquesquestions importants pour repensez, de manière critique, lapensée critique dans la Géographie. Le souci n’est pas,nécessairement, avec les propositions d’une Géographie Critique,mais avec les possibilités pour redéfinir la discussion sur autresappuis théoriques et conceptuelles.Mots clés: théorie, critique, production de l’espace

1. INTRODUÇÃO

O saber, cuja essência é crítica, não pode reduzir-seao conhecimento objectivo; conduz para Outrem.

Acolher Outrem é pôr a minha liberdade em questão (LEVINAS, 1980)

A “crença” de que o conceito de Tempo possui umafundamentação teórica mais profunda do que o de Espaço tornou-se ‘lugar comum’, não somente entre os geógrafos, mas, demodo geral, entre os cientistas sociais (Harvey, 2005; Santos,2002). Existem, evidentemente, razões para que esse ‘lugarcomum’ permaneça ora como uma constatação, ora como umrefúgio para os que rejeitam a teoria como uma condição parase pensar as questões do espaço. Mas, deve-se ressaltar que estanão é uma verdade total ou absoluta. O que é factível, nestecaso, é a consideração de que a análise do espaço enquantomaterialidade dada coloca-se como uma “complicaçãodesnecessária”, e isto é válido não só para a tradição marxistacomo para todo o pensamento positivista (Harvey, 2005, p. 142).Talvez, o que pode haver de fato é uma rejeição teórica peloespaço e não a sua ausência. Para adentrarmos nesta seara, deve-se reconhecer o alcance e as possibilidades de rupturas de umaconcepção crítica acerca das questões teóricas e conceituais daprodução do espaço social.

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Neste sentido, é crucial compreender, primeiramente, quea crítica, como argumenta Lebrun (2002), não nos traz umaverdade maior, mas apenas uma outra forma de pensar. Emsegundo lugar, acredito haver a necessidade de reflexão sobre aprópria negatividade possível do conceito de crítica e,posteriormente, elucidar as diferentes orientações e sentidos queela poderá seguir. Vale dizer que, seja qual for a orientação ousentido, o problema da objetividade das conexões lógicas quesustentam as categorias de análise crítica poderão se apresentarcomo negação da sua própria fundamentação teórica, pois contémcomo princípio interno a sua própria negatividade. Assim, é imanenteà construção de um discurso crítico a destruição sistemática daaparência lógica do conhecimento científico.

Numa primeira aproximação, a suposição possível é a deque a idéia de uma Geografia Crítica é diametralmente opostaa de uma Geografia Científica. Certamente, a afirmativa nãoseria inteiramente correta. O certo é que nem todos osfundamentos da crítica são, necessariamente, científicos oupossuem esta pretensão. Embora o conhecimento científico nãoseja sinônimo de empirismo, os fundamentos da crítica não estãovinculados diretamente à experiência empírica. Pelo contrário,são os fundamentos teóricos que estruturam as experiênciasempíricas. Estas, por sua vez, redimensionam a complexidadedos conceitos de modo a recompor seus conteúdos e, portanto,enriquecer os fundamentos teóricos.

Sabe-se, entretanto, que a experiência não consiste na únicafonte do saber. Neste sentido, a negação da experiência pela críticacomo fonte única do saber deve-se ao fato de que a experiênciatambém é, em grande parte, uma dissimulação do real e poderá,portanto, falsear o conteúdo dos fundamentos que a sustenta.

Para Adorno (1978) nenhuma teoria consegue escapar dalógica mercantil; elas são expostas como algo funcional a serconsumido. A presunção de que a teoria esquiva-se de talsimulacro degenera-se no seu auto-elogio. Nem tampouco a

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dialética necessita emudecer-se frente a tal conseqüência. Adialética indica que os objetos superam seu conceito, quecontradizem a norma tradicional da adequação lógica eracionalizante. “A dialética quer encontrar o cientificismo emseu próprio campo, ao pretender conhecer melhor a realidadesocial contemporânea. Procura traspassar o véu que a ciênciaajuda a tecer” (ADORNO, 1989, p. 118).

“A contradição não é uma essencialidadeheraclítica (doutrina de Heráclito de Éfeso, segundoa qual a luta é o princípio de todas as coisas e de queo universo está em constante devenir) por mais que oidealismo absoluto hegeliano tenha inevitavelmenteque transfigurar-se nesse sentido. É índice da falsidadeda identidade, de que o concebido absorve-se noconceito. E, no entanto, a aparência da identidadereside intrinsecamente no próprio pensamento, emsua forma pura” (ADORNO, 1978, p. 119).

Neste sentido, pensar implica identificar uma ordemconceitual que se interpõe como elo entre o pensamento e apossibilidade de compreensão. Aparência e verdade tornam-secruzamentos superpostos de modo que a primeira – a aparência– não sucumbe por decreto uma verdade autocrática.

Assim, a dialética não comporta previamente um ponto de vistaou um mirante analítico privilegiado, mas impele ao pensamento suainsuficiência em relação aquilo que é pensado. É assim que se transferea impossibilidade de conhecimento do objeto ao método.

Segundo Adorno (op. cit., p. 141)“O que a dialética tem de dolorido é a dor

desse mundo elevada a conceito. A este mundo, adialética tem que se submeter se deseja evitar que aconcreção novamente se degrade em ideologia emque começa, de fato, a se converter (...) A dialéticadesenvolve a diferença, ditada pelo universal, entre

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o universal e o particular. Como a diferença, a rupturaentre sujeito e objeto que penetrou em toda aconsciência, integra necessariamente o sujeito e rompetudo que ele pensa, até o que pensa de objetivo, sópode encontrar seu fim na reconciliação”.

2. ORDEM E (DES)ORDEM

Em A Crítica da Razão Indolente, Sousa Santos (2001, p.26-28) identifica algumas possíveis causas das dificuldades de seconstruir uma teoria crítica. Segundo este autor,

“A teoria crítica moderna concebe a sociedadecomo uma totalidade e, como tal, propõe umaalternativa total à sociedade que existe. A teoriamarxista é exemplar a este respeito. A concepção dasociedade como totalidade é uma construção socialcomo qualquer outra. O que a distingue das construçõesrivais são os pressupostos em que assenta. Taispressupostos são os seguintes: uma forma deconhecimento ele próprio total como condição deabarcar credivelmente a totalidade social; umprincípio único de transformação social, e um agentecolectivo, igualmente único, capaz de a levar a cabo;um contexto político institucional bem definido quetorne possível formular lutas credíveis à luz dosobjetivos que se propõem (...) O conhecimentototalizante é um conhecimento da ordem sobre o caos.O que distingue neste domínio a sociologiafuncionalista da sociologia crítica é o facto de aprimeira pretender a ordem da regulação social e asegunda pretender a ordem da emancipação social.

Em segundo lugar, a industrialização não énecessariamente o motor do progresso nem a parteira

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do desenvolvimento. Por um lado, ela assenta numaconcepção retrógrada da natureza, incapaz de ver arelação entre a degradação desta e a degradação dasociedade que ela sustenta. Por outro lado, para doisterços da humanidade a industrialização não trouxedesenvolvimento”.

Para Morin (1987), a ordem é a palavra-chave da ciênciaclássica. Não sem motivos Humboldt intitulou sua grande obrade Cosmos. A concepção de ordem universal reinou absoluta esoberanamente escorada na crença da imutabilidade das leis danatureza. Foi necessário esperar, entretanto, pela idéia dedegradação energética - entropia - colocada por Carnot, Clausiuse Boltzmann para que a noção de ordem comportasse também oseu avesso, isto é, a desordem.

O desmoronamento da ordem suscitou, por sua vez, umareconstrução teórica do conceito de modo a problematizar suasevidências ontológicas. Neste sentido, ‘regular’ ou ‘superar’ aordem, como argumenta Sousa Santos (2001), possui apenas umcaráter tautológico, pois tanto uma como a outra não implicaem determinação de um estado de equilíbrio, constância,regularidade e permanência. Ordem e Desordem estãomutuamente imbricadas e indissoluvelmente unidas, sãomutuamente constitutiva da organização e da desorganização.Se se entende a superação como o estabelecimento de uma“nova ordem”, pode-se indagar sobre a natureza da superação esuas formas de re-organização.

Por outro lado, torna-se impraticável associar a noção dedesenvolvimento com a noção de ordem sob a lógica docrescimento econômico capitalista, porque o primeiro não temno segundo a sua condição essencial, a não ser que consideremoso segundo como a glorificação das regras da acumulaçãocapitalista. Assim, ordem significaria o cumprimento sistemáticode etapas evolutivas do capital urbano-industrial.

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A distinção básica entre a visão dialética da totalidade, ea positivista, se evidencia porque o conceito dialético detotalidade pretende ser ‘objetivo’, enquanto o positivismopreocupa-se somente com a escolha de categorias as mais geraispossíveis, reunir constatações sem contradição em um contínuológico. Ao distorcer o conceito de totalidade produz uma espéciede teologia da ciência. Sua orientação tende ao primado demétodos disponíveis, em vez de do objeto real. Desta forma, opositivismo amputa as contradições que afetam o procedimentocientífico e o seu objeto particular.

Segundo Adorno (1989, p. 117) “o cerne da crítica aopositivismo consiste em que este se fecha à experiência datotalidade cegamente dominante, tanto quanto à estimulanteesperança de que finalmente haverá uma mudança, satisfazendo-se com os destroços desprovidos de sentido que restaram após aliquidação do idealismo, sem interpretar e descobrir a verdade,por sua vez, da liquidação e do liquidado”.

Para a concepção marxista, o real pode ser capturadomediante a articulação de categorias, portanto de uma lógica, dasrelações internas necessárias desta realidade, isto é, as relaçõescapitalistas historicamente reais, ou seja, o movimentointernamente contraditório destas relações, o movimentosistemático pelo qual o capital se constitui como processo deautovalorização do valor; trata-se de expor o desenvolvimentoconceitual do capital a partir de sua forma elementar, a mercadoria.Sem esta exposição categorial, seria impossível explicar o carátere a natureza do capitalismo; a dialética emerge, portanto, comoa estruturação lógica necessária enquanto condição adequada paraconceituar a realidade histórica factual do capitalismo. Por estarazão, os conceitos de O Capital têm, no sentido mais estritopossível, uma pretensão de objetividade, isto é, eles não constituemsimplesmente uma construção conceitual a partir da qual o objetopoderia ser apreendido. Eles reproduzem ou pretendem reproduziro real que é movimento em sua configuração específica.

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A conseqüência primeira disto é, entre outras coisas, asuspensão de qualquer verdade eterna, imutável, situada numcampo fora da experiência. Tanto a filosofia como as ciênciasda natureza e da sociedade levantaram pretensões de tematizarverdades eternas, no caso da ciência, através da tematizaçãode leis que teriam validade eterna. Assim, por exemplo, na ciênciaeconômica moderna as categorias econômicas são entendidascomo idéias eternas e não como a expressão teórica das relaçõeshistóricas de produção que correspondem a um grau determinadode desenvolvimento material.

3. CATEGORIAS E CONCEITOS

O debate sobre a possibilidade de uma teoria crítica emGeografia deve, portanto, centrar-se, inicialmente, sobre osfundamentos teóricos que sustentam as análises sobre a produçãodo espaço social sob a égide do capitalismo e os desdobramentosdas categorias e conceitos. Epistemologicamente, isto significaa busca de um modo de apresentação que revele o processocontraditório efetivo e, portanto o nexo interno por trás de suasformas de ocultamento e, com efeito, explique a relaçãonecessária entre o nexo e a aparência invertida dele nas suasmanifestações visíveis, pois os fenômenos do cotidianoeconômico são exatamente o inverso de seu nexo internocontraditório. Isto é feito por um desenvolvimento categorialque tenta explicitar a articulação entre vários aspectos doconceito de capital enquanto um desdobramento de seusmomentos, o que faz com que a exposição categorial signifiqueum enriquecimento semântico na medida que as categorias sereferem a funções cada vez mais complexas até atingir oconteúdo ‘concreto’, a unidade das múltiplas determinações: háassim na exposição uma primazia das formas mais ricas e maiscomplexas em que as formas iniciais mais abstratas não são

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eliminadas, mas redefinidas em seu papel, como é o caso porexemplo da circulação simples, que não é anulada no capitalismo,mas existe subordinada à circulação e produção capitalista, emque cada uma delas é uma forma específica de manifestação dacontradição que tudo abrange.

Este aspecto apresenta a diferença crucial entre Hegel eMarx. Para Hegel o conteúdo é uno. Em Marx, a formadeterminada de efetivação do capital processual não é denecessidade absoluta. Há, portanto, uma indeterminação quantoà forma que não provém do fato de que as formas de existência,que são exteriores, não correspondem ao conteúdo essencialque é interior, mas é o conteúdo mesmo que é cindido emaspectos opostos, contraditórios, abrindo assim a partir de simesmo o núcleo para a indeterminação e a contigência na decisãosobre as formas de efetivação do movimento do capital.

Para R. Fausto (1987), o que caracteriza a dialéticahegeliana é o ocultamento do discurso científico e positivoenvolto em uma ciência filosófica real, isto é, a ausência de umquestionamento sobre a legitimidade do discurso do entendimentocomo forma de desviar a dialética idealista do dogmatismo. Adialética de Marx se apresenta, num primeiro momento, como umadialética dogmática no sentido da transgressão do entendimento.Marx produz um discurso que pretende apresentar um paradigmanovo em relação ao pensamento de Smith e Ricardo. Neste sentido,O Capital pretende substituir a lógica categorial da análiseeconômica convertendo-se, desse modo, em antidogmatismo.

De acordo com R. Fausto (1987), existe em Marx umaespécie de ‘metalógica’ do conceito que retoma tanto a lógicado ser como a lógica da essência. Isto significa que o conceito éfinito e está sujeito a corrosões provocadas pelo própriomovimento do objeto. No plano da apresentação, há uma certadescontinuidade objetiva na sucessão temporal das formas, ouseja, a dialética torna-se impensável sem o entendimento. Entrerazão e entendimento existe um equilíbrio instável, o que

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permite a simultaneidade da análise e da crítica do sistema. Emboraa negação da negação em Marx não restabelece a positividadecomo em Hegel, mas faz com que a versão metalógica de Marx sejageradora de uma nova versão da dialética.

Diante do exposto acima, algumas questões podem sercolocadas: em que ângulos e profundidade a crítica pretende rompercom o caráter cientificista e, portanto positivo, do conhecimentogeográfico? O problema da objetividade das conexões lógicas quesustentam as categorias de análise será tratado em quais aspectos?A base de fundamentação teórica da crítica carregará, como princípiointerno, a sua própria negação? A construção do discurso críticoterá, como pressuposto último, a (des)construção estética daaparência lógica do conhecimento científico?

Para Lebrun (2002, p. 74)“Os conceitos, tomados enquanto atos formais,

não permitem ainda decidir quanto à possibilidadede sua utilização teórica (...) Os conceitos sãointeiramente impossíveis e não podem ter nenhumasignificação ali onde nenhum objeto é dado”.

A ausência da preocupação em examinar as condiçõessob as quais os conceitos adquirem sentido delimita ainda maiso seu campo de identificação; deste modo, contenta-se com‘puras categorias’, quer dizer, com conceitos que podem servirpara o conhecimento daquilo que é transcendental.

O conceito de espaço, por exemplo, é diferente do conceitode região, pois aquele contém este, mas ainda outra coisa; mas, naprópria coisa, existe, entretanto, identidade entre os dois, pois adivisibilidade reside realmente na necessidade de síntese. Mas,neste caso corre-se o risco tomar o real por uma proposição.

Não se trata, desde então, de uma “ilusão inextirpável”.Esta surge quando o entendimento, orientado pela razão, nãopode realizar mais que uma totalidade absoluta sem significação.O erro não consiste, então, em pôr o mundo como totalidade,

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mas em efetuar essa posição de modo desastrado, por não terdado ao sensível e ao inteligível aquilo que lhes pertence.

Vale ressaltar que as semelhanças e as diferenças entre osconceitos de espaço, região, lugar e território não devem dissi-mular a diferença das problemáticas. Pois, se se considera quetodas as coisas são condicionadas no (no interior do) espaço etempo, nenhum Todo é possível. Entretanto, os que admitemum Todo Absoluto de simples condições condicionadas con-tradizem a si mesmos, quer eles considerem esse Todo comolimitado (finito), quer eles o considerem como ilimitado (in-finito) e, portanto, o espaço deve ser visto como um tal Todo,assim como o tempo passado.

A possível arbitrariedade da idéia de totalidade absolutapode-se apresentar como uma idéia paradoxal, pois se o espaçofor dado como infinito, dado pode significar aqui, limitado. Deacordo com Lebrun (2002), “Não é um milagre que em nós, seresfinitos, o espaço e o tempo infinitos residam como formasacabadas? Como essas formas estáveis nasceram?” Com efeito,o espaço torna-se apenas uma condição da razão formal e nãorecupera o seu sentido de condição material de um sistema deações. Isto é, torna-se apenas uma idéia que deve servir deregra para considerar todo movimento situado no seu interior.

Ora, as posições das partes do espaço, umas em relação àsoutras, supõem que elas possam ser ordenadas em uma tal relação- e, no sentido mais estrito, a região não consiste na relação queuma coisa no espaço entretém com outra (o que é, propriamente,o conceito de lugar), mas na relação do sistema desses lugarescom o espaço total do mundo. Assim, ao contrário de afirmar,dogmaticamente, que o lugar é um princípio da diferenciação,deve-se procurar portanto salientar uma diferença interna própriaao espaço e, através disso, provar a existência de uma totalidadeconcreta. Mas, se o espaço é sempre finito, pois ele só é dadona medida em que produzido, pode-se interrogar: sem os objetosjá dispostos no espaço, como determinar a sua concretude?

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Acredito que as questões acima podem nos conduzir auma espécie de prolegômenos das antinomias dos conceitosgeográficos e, certamente, aos interstícios da base teórica quearticulam as categorias de análise do que atualmentedenominamos de Geografia Crítica.

4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITODE ESPAÇO

No final dos anos 70, a imunização contra o pragmatismodescritivo da Geografia assume a forma de uma concepção estruturalde sociedade e de espaço cujo foco das análises dirigia-se para ascontradições, os conflitos e os antagonismos inerentes aosmovimentos da estrutura social. Logo, o espaço revelava no conteúdode suas formas as mesmas contradições que o produziram. Essas,por sua vez, geravam também as condições de reprodução dasrelações sociais. Nesse sentido, o espaço aparecia como resultadoe, ao mesmo tempo, condição da reprodução social. Em outraspalavras, o espaço consistia em um “efeito” que se transformavaem “causa”, ou, um resultado que se transformava em processo.

Para Santos (1991, p. 38), a idéia central da interpretaçãoda produção do espaço situa-se na combinação simultânea entrea forma, a estrutura e a função. Isso porque “os movimentos datotalidade social modificando as relações entre os componentesda sociedade alteram processos e incitam funções”. Essatotalidade social, crê o autor, pressupõe a existência de ummovimento dialético da estrutura que opera sobre as formas efunções, fazendo com que os lugares tornem-se combinações devariáveis que diferenciam-se ao longo do tempo.

A diferenciação entre as variáveis resulta tanto da periodizaçãohistórica, pois atravessam épocas posteriores ao seu surgimento econvivem com variáveis novas, quanto de suas formas de espacialização,isto é, do seu lugar de origem e de sua difusão territorial.

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Nesse sentido, é a idéia de movimento da totalidade notempo e no espaço que fundamenta a concepção de que o espaçoé produzido no e pelo movimento da totalidade social. Consiste,portanto, em uma “geografização” do movimento estrutural dasociedade que se traduz espacialmente em novas formas efunções e estas, ao se combinarem para atender as necessidadesgeradas pelos “efeitos” de reestruturação dos processos deorganização das relações sociais, produzem o espaço. Neste caso,a idéia de produção do espaço torna-se prisioneira de suaconotação técnica e econômica e adquire a noção de fabricaçãorepetitiva de formas e geração de movimentos.

A produção do espaço consiste, então, na realizaçãoprática de produção de objetos “geograficizados” segundo umadada lógica econômica, e destinam-se a cumprir funçõesdiferenciadas em sintonia com as necessidades de reproduçãodas relações sociais de produção e da divisão social do trabalho.

Em A Natureza do Espaço, Santos (1996, p. 21) tem com oponto de partida a definição de espaço como um “conjuntoindissociável de sistemas de objetos e sistema de ações”. Estanoção permite, segundo o autor, reconhecer, entre outrosconceitos, o de produção do espaço e de rugosidades.

Sem estender-se em detalhes referente à fundamentaçãoteórica da concepção do autor acima, seguiremos a direção deanálise cujo ponto de partida é o entendimento de que a produçãodo espaço insere-se em um sistema de pensamento que assenta-seem uma dada lógica interpretativa visando revelar o movimentode transformação de determinadas partes da totalidade.

A idéia de sistema retroativo permite-nos repensar, emsíntese, a relação dialética entre o conceito e a fundamentaçãológica da teoria que o sustenta. O sistema de pensamento,construído enquanto um método de pensar, de analisar e deinterpretar um determinado objeto, organiza a relação entre osujeito e o objeto de diferentes modos: separando-os, e assimconstruindo um conhecimento reducionista dado o caráter

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sistêmico de sua organização; ou, unindo-os e os integrando emuma organização que se reorganiza dialeticamente, produzindoum conhecimento complexo e crítico. Trata-se de imunizar oconceito de produção do espaço contra o simplismo mecanicistada “geografização das variáveis”.

Assim, quando fala-se em produção do espaço deve-se,primeiramente, entender que os conceitos que procuram explicá-la se organizam a partir de uma lógica interpretativacorrespondente aos objetivos traçados pelo sujeito. Paraesclarecer essa questão, vamos partir do conceito de produção.Na análise da produção do espaço, a idéia de produção estáligada ao conceito marxista de trabalho e às noções detransformação e mudança. A “produção” implica também emorganização do trabalho e dos meios necessários para a sua realizaçãoenquanto produção de valor. Vale lembrar que os meios necessáriosao trabalho constituem-se, também, em trabalho. Pode-se pensarque o espaço produzido é produto do trabalho, isto é, de umaorganização do trabalho que materializa-se em formas espaciais. A“produção” significa, então, “trabalho morto” e organização.

Para Marx, o conceito de trabalho pode ser entendidocomo atividade teleológica de transformação da Natureza e comosíntese inseparável da natureza objetiva, circundante, e anatureza subjetiva do homem. O ‘trabalho’ constitui o “princípiogerador” do homem e não apenas uma atividade produtiva, masenquanto constituição de uma natureza objetiva e de umhorizonte de apreensão e transformação da realidade. Nestesentido, o conceito contém uma dupla dimensão: a detransformação da natureza e de constituição de objetos, quetrazem o momento da objetividade constituída (MÜLLER, 1978).

Vale ressaltar que os conceitos de trabalho e produção sealteram ao longo da obra de Marx. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844), o conceito de trabalho funciona como equivalentedo conceito de ‘práxis revolucionária’ (primeira tese contraFeuerbach), envolvendo todas as objetivações da essência humana.

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Essa concepção torna-se, no entanto, alvo de uma críticaenfática de Habermas (1987): se a práxis é considerada comoum dos aspectos do trabalho, está incluída no agir instrumental;assim, a práxis tende a ser reduzida ao trabalho, a ‘síntesematerialista’ tende a tornar-se unidimensional e as relações deprodução são apenas um momento da produção material.

Em uma passagem dos Grundrisse, Marx diz: “odesenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o sabersocial universal, knowledge, tornou-se força produtiva imediata,e portanto, até que ponto as condições do processo de vidasocial foram submetidas ao controle do general intellect”(MÜLLER, 1978, p. 24). Ao apontar as contradições imanentes docapital, Marx mostra que as relações sociais de produção e oquadro institucional em que se realiza a integração social nãosão meras especificações ou efeitos do processo de trabalho.

O conceito de espaço, por sua vez, apresenta múltiplasfaces de interpretação. Mas, a junção estabelecida entre os doisconceitos – produção/espaço – elucida a matriz teórica do sistemade pensamento que o sustenta. Percebe-se que as categoriasque executam uma operação de análise fundamentam-se noconceito de trabalho, enquanto objetivação da síntese homem-natureza através das correlações entre a estrutura normativados intercâmbios sociais com as rugosidades exteriorizadas do capitalfixo no interior do processo de desenvolvimento das forçasprodutivas. A variável espacial pode, então, ser explicitada pelaverificação de caráter empírico da divisão social do trabalho.

Assim, a produção do espaço é produção de objetos quearticulam e organizam, em suas funções específicas, intercâmbiossociais que envolvem o trabalho e a produção. O espaço seria,neste caso, a materialidade e a mediação entre os sistemasde produção, de controle e reprodução do trabalho em suadimensão técnica e material. Em poucas palavras, o espaçoseria um sistema de sistemas ou, como quer Santos (1996),“sistemas de objetos” e “sistemas de ações”.

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Por outro lado, vale argumentar que o espaço como umsistema não define-se como um conjunto serial, mas, como diriaKant, um quantum composto de partes. Mas só com isso o espaçopermanece como conceito inconsistente. Somente na síntese,que não é uma mera somatória equacionada das partes, vaiexpressamente de um espaço limitado ao espaço que o contéme permite, para o sujeito, tomar consciência de ir docondicionado à condição, de progredir na ruptura das partes.Neste caso, o espaço surge como uma seqüência de limitações,não mais como uma soma de partes constituintes. Assim,considerava-se o espaço como um agregado, quando ele só podeser vivido de fato como uma seqüência de rupturas do contínuo.

Pode-se pensar, então, que o espaço não é um objeto deanálise, mas um sistema de objetos. Interpretá-lo, portanto, naótica de sua produção, faz com que o espaço torne-se a dimensãoempírica da organização das ações que o produz. A organizaçãodas ações emerge, por sua vez, de uma estrutura normativa ereguladora cujo movimento é dado pelos processos detransformações resultantes das relações entre trabalho e capital.Isto significa que as formas espaciais produzidas contêm elementosdas partes e do todo, como também elementos novos surgidosda (des)construção espacial dessas relações. A natureza mutantedas relações sociais traz, por sua vez, mudanças na organizaçãodos “sistemas de ações” e, portanto, na eficácia da funcionalidadedas formas – nos “sistemas de objetos”.

5. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOÇÃO DE(DES)CONSTRUÇÃO

A noção de (des)construção do espaço baseia-se na concepçãode que a sociedade pós-moderna, ao mesmo tempo em que produzformas espaciais correspondentes, em um dado momento histórico,às necessidades de produção, circulação, consumo e informação,

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também as dissolvem e as redefinem em sintonia com as novasnecessidades sociais que emergem, por sua vez, em um dadomomento para, em seguida, serem diluídas e transformadas.

Para Dosse (2001), o conceito de (des)construção possui suasraízes mais profundas em uma reflexão epistemológica de denúnciaao historicismo, em que a história não coloca-se em situação deexterioridade em relação à estrutura mas é “desconstruída” pordentro. Essa reflexão assumiu duas formas: a nietzschiana, comMichel Foucault, e a heideggeriana, com Jacques Derrida.

Na primeira abordagem o conceito de (des)construçãocoloca-se essencialmente relativista: “já não há continuidadepor apreender nem racionalidade a atuar no pensamento e naação do homem, e como o sujeito se encontra preso nas malhasdo objeto, num laço indissolúvel e imutável, nenhum modo dever é estável”. A visão heideggeriana traduz-se pela “busca daverdade, da gênese do sentido”, a história “é uma históriapluralizada, fundamentalmente heterogênea” (DOSSE, 2001, p. 219).

A visão de Derrida sobre a (des)construção provémdas análises sobre os pensamentos de Rousseau, Saussure eLévi-Strauss. A (des)construção para o filósofo francêstornou-se uma “modalidade de pesquisa filosófica” e umaforma de “diálogo crítico que usa os exemplos de casosparticulares (...) como sintomas de uma configuração ouestrutura mais geral”. Além disso, coloca-se como umapossibilidade de ampliação dos quadros de referências ede ‘desvelamento’ dos “sistemas rígidos de oposições, quehabitualmente moldam e restringem nossa compreensão domundo” (JOHNSON, 2001, p. 38).

Entende-se a (des)construção do espaço como um processode supressão e emergência de formas e funções que atendem àsnecessidades, em um dado momento, da divisão social dotrabalho, da acumulação capitalista e do poder estatal. Asupressão de formas espaciais significa, em outras palavras, asupressão de ‘rugosidades espaciais’ (SANTOS, 1980).

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A idéia de ‘rugosidades espaciais’, expressada de diferentesmodos desde o século XIX por Marx, Cavaillès, Bachelard,Canguilhem, Hegel, Engels e outros autores, foi revisada por MiltonSantos (1980) com o objetivo de fundamentar o importante papeldas paisagens técnicas herdadas nos diferentes períodos da história.

A noção de ‘rugosidades’ complementa a concepção deque a produção do espaço é, ao mesmo tempo, construção edestruição de formas e funções sociais dos lugares. Ou seja, a(des)construção do espaço não refere-se apenas à destruição e àconstrução de objetos fixos, mas também às relações que osunem em combinações distintas ao longo do tempo.

As ‘rugosidades’ são, nesse sentido, as formas espaciais dopassado produzidas em momentos distintos do modo de produçãoe, portanto, com características sócio-culturais específicas. Nessalinha de interpretação, as ‘rugosidades’ constituem-se em paisagenstécnicas que podem ser periodizadas segundo o desenvolvimentodo modo de produção ao longo do tempo histórico.

A emergência de novos arranjos espaciais, no entanto,não suprime integralmente as formas do passado, mas as renovamatravés das funções que adquirem na articulação do território e,ao mesmo tempo, fazem-nas objetos de um sistema de açõeseconômicas, políticas e sociais que visam produzir as condiçõesmateriais de produção, a capacidade de “controle” sobre oterritório e de regulação do processo de acumulação capitalista.No entanto, o “controle” não se faz cumprir somente no sentidopolítico e ideológico da ação social, mas no sentido econômicoe técnico-informacional dos mecanismos de acumulação do capitale de organização das forças produtivas. A centralização dasinformações e das decisões em escala planetária atua, de modorelativo, na tentativa de restringir as ‘rugosidades espaciais’,como argumenta Santos (1980); ou de suprimir, na acepção deHarvey (1993), o espaço através do tempo produtivista.

A capacidade de fluidez e articulação das novas relaçõesde produção, acumulação e consumo no processo de

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(des)construção de ‘rugosidades’ espaciais são possíveis emvirtude da redução temporal entre os lugares através da difusãomomentânea das mudanças manifestas nos centros informacionaisde decisões, como também pela aceleração da circulação demercadorias e fragmentos sócio-culturais em escala mundial.

Em relação ao argumento citado acima, referente aoestudo da paisagem como escavação arqueológica, poder-se-iadizer que as camadas produzidas nos últimos 50 anos seriamextremamente compactas, porém, numerosas. A deposiçãoacelerada das sucessivas camadas caracterizaria, deste modo, oprocesso de (des)construção do espaço.

Outro argumento na mesma direção explicativa procuroumostrar que, com a atual racionalidade tecno-científica einformacional, o capital mundial seria levado a adaptar-se aoespaço e não mais o contrário. Passa-se, por um lado, para o processode (des)construção de formas espaciais vinculadas à intensidade eà multiplicidade de funções atribuídas em períodos de tempo cadavez mais restritos, e, por outro, em virtude do aumento navelocidade de giro do capital e da expansão do “império do consumoefêmero” e massificado, os lugares tornar-se-iam a condição e oresultado da mundialização da economia e da cultura técnica.

Contudo, devem-se apontar dois aspectos merecedoresde maior atenção e que conduzirão a uma melhor compreensãoda noção de ‘rugosidades’ e, em contrapartida, de(des)construção do espaço. O primeiro refere-se à seletividadedo capital. Se o capital visa à obtenção de altos lucros a baixocusto, isso por si só bastaria para imprimir-lhe o caráter deseletivo. Desse modo, poder-se-ia afirmar que, desde a expansãomarítima no século XVI, o capital mostrou-se seletivo na escolhados lugares para sua reprodução e acumulação. Neste caso, aalteração se deu em relação à capacidade de seletividade dadapelos meios técnicos de investigação e de reconhecimento deum número crescente de lugares e condições materiais e imateriaispara a acumulação capitalista.

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O segundo aspecto trata-se do papel do Estado naprodução das condições de reprodução do capital e do trabalho.Durante todo o século XX, em grande parte dos países capitalistase, particularmente no Brasil, as condições objetivas dereprodução social do capital foram produzidas através do Estado.A produção dessas condições resultou, para os fins que pretendeu-se nesta reflexão, em supressão das ‘rugosidades’ através da(des)construção das paisagens herdadas e da reorganização dosfluxos de bens, de capitais e de pessoas.

De acordo com Carlos (1996, p. 129), “a construção de umespaço novo a partir de um preexistente (ora integrando, ora destruindo)inclui a articulação da técnica e do saber à gestão onde o Estado, ao lheatribuir funções, constitui-se em um espaço de dominação”.

O fato, entretanto, da seletividade do capital não serespontânea e sim planejada, contando com meios eficazes depesquisa e de avaliação das condições materiais e depossibilidades de investimentos, faz com que o processo de(des)construção do espaço apresente-se como apropriação doespaço público pelas funções e necessidades do capital privado.

A seletividade do capital recoloca, em outros termos,a relação entre mercado e planejamento. De acordo comIanni (1995, p. 151),

“a globalização do capitalismo reaviva acontrovérsia mercado ou planejamento ao nível dossetores produtivos, das economias nacionais, dosblocos regionais e, obviamente, da economia mundialcomo um todo”. O planejamento apresenta-se, dessemodo, como uma “técnica de organização edinamização das forças de mercado (...) uma técnicaversátil, podendo influenciar a racionalização dasforças produtivas, inclusive funcionando como técnicaanti-cíclica. Na medida em que se traduz emdiretrizes, normas de ação e instituições, envolvendopadrões e valores sócio-culturais e jurídico-políticos,

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influencia as relações de produção também em termosde racionalização, sempre em conformidade com asexigências da reprodução ampliada do capital”.

Esses dois aspectos permitem avaliar a dimensão econômica danoção de ‘rugosidades’, notando que se constituem em espaços derigidez a partir da perspectiva do capital, como também a significaçãopolítica da relação entre o espaço público e privado no processo deemergência e supressão de formas e funções espaciais.

Nesse sentido, a introdução de novos capitais em uma dadaregião ou, como quer Harvey (1993), de modalidades flexíveis deacumulação e gerenciamento, supõe a busca de vantagenscomparativas que se materializam em formas espaciais novas ou nareutilização de formas preexistentes, proporcionando, em escalalocal-global, a intensificação dos fluxos de bens e informações. Asvantagens comparativas podem apresentar-se momentâneas outransitórias e gerar formas espaciais cujas funções serão dissolvidasna medida em que as vantagens localizacionais tornarem-se‘rugosidades’ para a reprodução do capital.

A retomada desse conceito, portanto, possui razõeshistóricas que o tornam, às vezes, uma expressão do “modismo”acadêmico ou de um “debate surdo” entre as concepções demodernidade e pós-modernidade, em que o nome da coisamostra-se mais importante que a própria coisa.

Entre os principais motivos que levaram alguns autores aoresgate do conceito de (des)construção estão os que serelacionam, por um lado, às transformações históricas docapitalismo entre as décadas de 1960 e 1990 e, por outro, aoesgotamento teórico de paradigmas científicos sustentados pelasvisões generalizantes de totalidade.

Os efeitos espaciais mais explícitos dessas transformaçõesderam-se com o processo de urbanização da sociedade. As cidades,sobretudo as metrópoles, tornaram-se os lugares de experimentaçãode um novo urbanismo e de uma nova estética arquitetônica.

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Em suma, a concepção de (des)construção do espaço deveconsiderar que a compreensão da realidade em escala local supõeo envolvimento, a interação e a articulação combinada comoutras escalas de tempo e de espaço. De acordo com Randolph(1992, p. 379), “esta dialética vai além de uma simples articulaçãode escalas; tem sua origem na própria concretude do processohistórico. Pois mesmo em períodos de ordenamentos, integração,generalização e articulação, mormente através do Estado nahistória mais recente, identificam-se momentos dedesintegração, fragmentação e desordem que fazem parte domesmo processo histórico”.

A (des)construção do espaço expressa-se na vaga domovimento dialético da totalidade com as partes, de modoque a emergência de uma nova forma espacial traduzafragmentos da totalidade e combinações específicas emdiferentes escalas de tempo e de espaço. Assim, a formaespacial torna-se um fator social não apenas pela suadurabilidade no tempo, mas pelo conteúdo técnico, cultural eideológico de atribuir “valores sociais ao espaço”.

O conceito de (des)construção do espaço apresenta-se, nessemomento, como um instrumento de análise do processo de formaçãosócio-espacial que busca, através da periodização das paisagenstécnicas e do processo de supressão das ‘rugosidades’, compreendera produção do espaço mediante a combinação entre as formas e asfunções espaciais, em um dado momento da divisão do trabalho edo desenvolvimento do modo de produção. Vale dizer, de passagem,que consiste em uma via conceitual a ser explorada teoricamentena perspectiva da análise espacial.

Os problemas teóricos levantados neste ensaio sãoingredientes fundamentais de uma reflexão mais aguda sobre opensamento crítico da geografia. A reflexão crítica deve, entretanto,nutrir-se da auto-crítica de seus instrumentos de análise e nosconduzir a uma reavaliação do método e da relação sujeito-objetona construção de um conhecimento complexo do espaço social.

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A GEOGRAFIA QUE DESEJAMOS1

Amélia Luisa Damiani2

“Eu aprendo a querer tudo e a nãoalcançar nada, guiado pela únicaconstância de ser humano e aconsciência de não sê-lo jamais obastante.” (Raoul Vaneigem)

Tem-se, praticamente como verdade inquestionável, que aconstituição da geografia, enquanto geografia humana, de tradiçãofrancesa, apresenta como fundamento o positivismo, o que equivalea pensar este momento da geografia como uma aproximaçãocientífica empirista, pois se devota ao fenômeno como ele é,como ele aparece regular e constantemente, sendo que o apareceré o instrumento do conhecimento o mais importante e não nega ahistória desse fenômeno, ao contrário, a contém. E por que a contém?Porque não há descontinuidade: os elementos constitutivos dofenômeno sempre estiveram presentes e a história é a longa relaçãoentre eles. Considerando o fenômeno humano como o fundamental,para essa geografia, os elementos que o constituem são o meionatural e a habilidade do homem, exercida socialmente. Hoje, seessa geografia nos parece uma geografia especialmente descritiva,portanto insuficiente e pouco científica, ela se propunha como

1 A primeira versão deste texto, no seu primeiro fragmento, foi apresentadano V Encontro Estadual de Geografia de Minas Gerais - A Geografia naModernização do Mundo, realizado pela AGB/BH, em 2005.

2 Profa. Dra. do Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letrase Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

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ciência, que não se confundia com as técnicas; assim, de umlado haveria a aplicação de técnicas e a prática, e, de outro, oconhecimento e a própria ciência geográfica.

Henri Lefebvre, de modo diferente, identifica, no finaldo século XIX, uma negação do positivismo, na sua própriaconstituição, no sentido de que ele representava pouco osavanços científicos de seu tempo, avanços que punham apossibilidade do desenvolvimento da ciência teórica, movidapor hipóteses teóricas, de caráter relativo:

“A hipótese teórica apóia-se numa realidade (portantocomporta a determinação da coisa, na sua essência,seu conceito, sua qualidade) [...] expressa apossibilidade de uma revisão e de umaprofundamento dos conceitos.”3

Trata-se, também, do reconhecimento do “descontínuo,do acaso, do cálculo das probabilidades.”4

“As ciências se encontram religadas ou, como se diz emanatomia, ‘anastomoseadas’ por uma rede cada vez maiscomplexa de relações. A matemática sob sua formaestatística se introduz não somente em física e química,mas em biologia (ecologia), em sociologia [...].A biologia comporta uma bioquímica, uma químicabiológica. Entre a sociologia e as ciências da natureza,intercalam-se a geografia humana, a antropologia, apré-história, etc.”5

Não haveria fronteiras estanques e rígidas entre as ciências,como advogava o positivismo, mas linhas de demarcaçãoflexíveis. “Portanto, as ciências tenderiam à unidade.”6

3 LEFEBVRE, Henri. Méthodologie des sciences. Paris : Anthropos, 2002, p. 47.4 Op. cit. p. 48.5 Op. cit. p. 48.6 Op. cit. p. 48.

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Essa perspectiva histórica do desenvolvimento dasciências, no período de desenvolvimento de uma geografiahumana, propõe repensar os elos estreitos entre ela e opositivismo e encarar a geografia humana como de carátercientificamente mais complexo e numa relação com a práticatambém mais complexa. No momento do desenvolvimento dasciências, quando as ciências naturais absorvem o acaso, definemleis estatísticas, se aproximam das leis históricas e sociais,“reciprocamente, o estudo da realidade humana se aproximadas condições nas quais nós descobrimos as leis da natureza.”7

“Entre as ciências do homem e aquelas da naturezase intercala a geografia humana”, [entre outras] [...]8

O homem age sobre a natureza; não se separa delametafisicamente [...] Sua ação, sua potência sobre anatureza, é ainda uma relação com a natureza. Aorganização (prática) desta relação é então um fatoobjetivo fundamental [...] A história humana e asociedade podem, portanto, ser estudadas a partirda natureza e como um processo objetivo e natural.”9

Os elos práticos entre o homem e a natureza, propostosnesse momento histórico e completamente potencializados,considerando os avanços das ciências e das técnicas e suaaplicação prática na indústria, unem, através da geografia, entreoutras ciências, as ciências da natureza e as do homem.

Os limites históricos dessa geografia, que ainda são osnossos, não são estritamente limites metodológicos, mas limitesde fundamentos da sociedade que se desenvolvia: a sociedadeque se realiza e se nega pelo desenvolvimento das trocas e dodinheiro; a sociedade cujo processo de identificação é abstrato,

7 LEFEBVRE, Henri, 2002, p. 118.8 LEFEBVRE, Henri, 2002, p. 51.9 LEFEBVRE, Henri, 2002, p. 122-123.

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através do desenvolvimento do Estado; a sociedade que sepropõe acumulativa - de capitais; técnicas; experiências,civilizações -, mas cuja causa acumulativa maior é de cunhoeconômico e em que a proletarização de milhões de sereshumanos também é acumulativa, pois leva de roldão, nestaeconomia, mais e mais homens, mulheres e crianças, inseridosprecariamente nesta história moderna. Guy Debord avalia que essesseres não têm o controle da história; eles vivem, de alguma forma,o tempo cíclico, sob o alvoroço da história que paira acima, históriasempre apropriada pelos poderosos: os que produzem as estratégias,os que mantêm o controle econômico e político.10

O que a geografia, nesse final do século XIX, na Françaespecialmente, busca é encontrar a identidade da humanidadedo homem, produzida na relação homem-natureza. O que adevastação dessa economia acumulativa capitalista nos asseguratentar decifrar, hoje, é um enorme processo de desumanização.Raoul Vaneigem fala de economia de exploração, “economiaempobrecida por ter consumido a terra e o homem”, em que “arelação mercantil substitui a relação humana.”11

A geografia definida como clássica acreditava na forma doEstado, como civilizatória. O desenvolvimento da geopolítica,especialmente, tinha este caráter, o que, inclusive, incluía umaanálise positiva do moderno processo de colonização. Então, arelação da geografia com a prática passava pela mediação do Estado.

Uma geografia contemporânea, que atualiza uma geografiacrítica - de presença anarquista e subversiva, portanto, não estatista- questiona a economia e o Estado. Esta é a grande aquisição destesnovos tempos: generalizar a crítica do processo de desumanização,inerente às ações econômicas e estatistas. Portanto, a relação coma prática já não é, necessariamente, sob a mediação do Estado.

10 DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992.11 VANEIGEM, Raoul. Nous qui désirons sans fin. Paris: Gallimard, 1996. p.

18 e 20, respectivamente.

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Cedo, a geografia reconheceu o plano das estratégias.Ele era combinado com o tratamento do objeto no interior deuma lógica formal. O que é próprio desta lógica e difícil deromper é a separação entre os elementos de uma relação e oestabelecimento da exterioridade recíproca destes elementosno seu desenvolvimento. É possível reconhecer certas relaçõesde causalidade, mas não a relação constitutiva interna doselementos entre si, nos termos da compreensão da dupla e internadeterminação entre eles e de um processo negativo implicado.E, por isto, se torna mais complicado encontrar um tratamentodo objeto em movimento, uma noção de processo. Pode serelucidativo verificar, por exemplo, o tratamento dos elementosconstitutivos da mercadoria - valor de uso e valor de troca -,como um conceito básico e presente numa geografia mais crítica;entretanto, é comum manter esses elementos autônomos, comose fosse possível falar de um ou de outro separadamente. Talcoisa tem valor de uso; tal outra, valor de troca... A relaçãointerna e negativa entre esses elementos, na definição damercadoria, ainda é de difícil discernimento.

“Esclarecendo, nenhum desses caracteres se manifestaem estado puro com suas particularidades definidasuma vez por todas, mas cada um entre eles se une, aocontrário, submetido a leis de interdependência, nummovimento, numa progressão em que um só setransforma modificando o outro.”12

Uma geografia que inclua a dialética e, ainda, a relação entreestratégia e dialética pode nos ajudar a compreender os termos damodernização do mundo. É necessário examinar o processo demodernização extensiva e intensivamente. E, neste duplo, os termosda deterioração da vida social e humana e da própria economia.

12 VANEIGEM, Raoul. Isidore Ducasse et le Comte de Lautréamont dans lesPoésies (veiculado por internet, 2005).

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- Extensivamente, trata-se da incorporação de todos osespaços e tempos no universo dessa economia; e é uma extensãoparadoxal, pois envolvida pelo universo concentracionista, doabsolutismo financeiro, em que “o espaço se contrai a dimensãode uma cotação de bolsa de valores”, um ponto concêntrico deonde se regula à distância “todos os lugares”, que interessam;cada vez mais, a curto termo.13

Um núcleo de compreensão necessário é considerar afinanceirização. “O absolutismo financeiro engendra umempobrecimento absoluto.”14

O capital não se resolve em simples entesouramento. Aidéia popular de quem guarda dinheiro no colchão e ele perdevalor é própria de uma percepção popular de que o dinheiro nocapitalismo tem que se manter no mercado, circulando.

Uma outra consideração importante é aquela de que odinheiro como meio de circulação no comércio e serviços avarejo e populares é um meio de circulação “subsidiário” e nãoexatamente o meio de circulação dominante. Vamos pensar emreais, nossa moeda corrente: as moedas propriamente e as notasde pequeno valor, que circulam na vida cotidiana da maioria dapopulação, são apenas signos de partes alíquotas do meio decirculação dominante, que são as notas de maior valor, queestipulam os preços das mercadorias que definem a qualidadedos mercados, neste caso nacionais. Então, os preços dos carros,das televisões, das mercadorias de consumo duráveis, própriosde nosso mercado, neste momento de nossa história - o recortehistórico da presença dessas mercadorias, como determinantes,costuma-se localizar na segunda metade do século XX -, realizamos preços e não são meios de circulação evanescentes, quefacilmente desaparecem, como as moedas e notas de baixo valor.

13 VANEIGEM, Raoul, 1996, p. 67. “A realidade econômica é a realidadeeconomizada. O universo aí se reduz à dimensão do dinheiro.” (p. 72)

14 VANEIGEM, Raoul, 1996, p. 75.

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Entesourar moedas de pequeno valor parece equivocadoexatamente porque o tesouro se produz com notas mais valorosas.Imaginem quantas moedas de R$ 0,25 centavos seriam necessáriaspara guardar R$ 100,00 reais: 400 moedas; um cofre cheio e aomesmo tempo de baixo valor. São cofres infantis. Em resumo, odinheiro da maioria da população, da população mais pobre, odinheiro que ela pode ter na mão todo dia, só reunido em grandesquantidades, e traduzido em notas mais valiosas, define odinheiro dos negócios.15 Ao mesmo tempo, esta parte alíquotaínfima demonstra a abstração própria do preço e do dinheiro,que chega na vida humana.

É eloqüente o tratamento da questão por Vaneigem, queutilizo para considerar o movimento da modernização do mundo:

“O sacrifício da vida humana à necessidade detrabalhar inaugurou uma lógica de morte que leva asuas conseqüências extremas o sacrifício dasobrevivência aos imperativos monetários.”16

- Então, intensivamente, trata-se de decifrar ametamorfose dos modos de vida, a constituição e a reproduçãoda cotidianidade; em suma, a alienação cotidiana, sintetizadoradas várias formas de alienação: política, econômica, cultural,etc. No lugar da vida, toda ordem de sobrevivência e morte. E,paradoxalmente, a sociedade se culturaliza, isto é, mercantiliza-se tudo como tal; o que autonomiza os elementos do que seconvencionaria como cultura, numa generalização de produtossimbólicos ou simbolizados para consumo.

15 MARX, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economia política(Grundrisse) 1857-1858. Argentina: Siglo Veintiuno, 1977, volume 2, p. 364(em alemão, 695). Este parágrafo faz parte de contribuição pessoal numtrabalho coletivo, realizado no Laboratório de Geografia Urbana - LABUR -sobre a crise do trabalho.

16 VANEIGEM, Raoul, 1996, p. 77.

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O que seria próprio dessa alienação cotidiana?- a consciência ambígua das contradições; as contradiçõesabafadas, atenuadas no cotidiano. Somente, em certosmomentos, vividas de forma crítica. Daí, talvez, a apatia, quepersiste até em momentos de crise.- a completa identificação entre o homem e o que Lefebvrechama de a ordem distante - um âmbito do econômico e dopolítico, que entra na vida das pessoas, sem que tenham delediscernimento -, numa relação constituída como esquizofrênica,isto é, o homem se perde na absoluta identificação com o outrodele, sem consciência desta relação de identificação doentia,quando o outro, no qual se reflete, é sua negação. De todomodo, é preciso fazer a pergunta: como são vividas as abstrações?As relações não são exatamente imediatas. Do concreto da vida,fazem parte abstrações poderosas, como o dinheiro, amercadoria, o Estado... Abstrações concretas. Há uma “regressãodo concreto, diante do abstrato.”

“Sem cessar a tomada de consciência se despoja doselementos intuitivos, espontâneos para se elevar auma autonomia discursiva, absoluta ao ponto deignorar o recurso a uma experiência concreta da qualela era, entretanto, solidária nos seus inícios.”17

Neste momento de deterioração da experiência humanapossível, os termos ideológicos de sua aparição, entre outros,são, de modo invertido, através da contraposição entre qualidadeambiental e núcleos socialmente pobres: o controle daurbanização indesejada, por exemplo, definida como de “baixaqualidade ambiental e social” ou enquanto “ocupação informal”,“assentamentos irregulares” e “espontâneos”.

17 VANEIGEM, Raoul. Isidore Ducasse et le Comte de Lautréamont dans lesPoésies. (veiculado por internet, 2005).

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A natureza humana e a natureza natural aparecem cindidas,nesta economia de exploração que inclui a ambas.

...

Num processo de, através de um conceito e de sua negação,superação, encontrar a formação de outro conceito, tem-se odeciframento de seus elementos comuns, que tenderam a sersuperados, e de suas diferenças, tornadas contradições. Um conviteinteressante é ensaiar o esboço de um movimento de dialetizaçãodos conceitos de meio geográfico e espaço geográfico.

A concepção de meio geográfico exaltava a atividadehumana, na relação do homem com a natureza. Definiu-se comopossibilista, inclusive, nesta medida: sob a determinação danatureza, o homem apresenta-se como um elemento ativo doprocesso civilizatório. A atividade humana era definida comotransformadora. Ao mesmo tempo, singular e universal. Definiaas especificidades de cada meio - especialmente considerandoque o homem, envolvido em certas condições naturais, eradiferente de outros, que viviam outras condições naturais, e àbase dessa diferença se constituía outra diferença, que era acapacidade humana diferenciada de transformar as condiçõesnaturais - e a universalidade do processo civilizatório em curso.

Em síntese, mais de uma civilização tendia a se realizar etodo o processo sintetizava a formação do homem e de umanatureza transformada. O plano era o dos fenômenos de longaduração. As cidades, na sua identidade com qualquer outra cidade,era uma mudança de processo que assustava. Ela alteraria acompreensão clássica posta pelo pensamento geográfico. O quefoi se constituindo - aqui imobilizando, por análise, as influênciasfora da geografia - foi o deciframento da natureza dessa atividadehumana: ela não era sempre a mesma. Havia uma particularidade- dos tempos modernos - que, como mediação, precipitaria umatransformação radical da compreensão da geografia como ciência

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humana: a atividade humana, no capitalismo, concebida comotrabalho, sugeria a metamorfose do trabalho útil, concreto, que,sem deixar de sê-lo, se realizaria como trabalho abstrato.

Nesse momento, o atributo do homem, o trabalho, secolocaria, ao mesmo tempo, como realização do ser humano ecomo perda de sua humanidade, como negação do homem. Ageografia passa a absorver a crítica da economia política, paramuitos, numa versão marxista estrutural.

Esta passagem é um exemplo, aqui reduzido, dedialetização de um conceito da geografia, para demonstrar omovimento de superação da geografia clássica e sua produçãocomo geografia contemporânea, mais propriamente comogeografia crítica. Se o meio, humanizado, seria a tradução dahumanidade do homem e da natureza humanizada; o espaçogeográfico seria a contradição entre o homem e a natureza; oembate entre os homens, o domínio da natureza não coincidindocom a apropriação da natureza.

O meio, tornado espaço, pela particularidade posta, seresolve numa universalidade abstrata, que determina a negação desua singularidade: o espaço como mercadoria, o espaço sehomogeneizando, tornando-se apropriado para uma finalidade decompra e venda e não de satisfação de necessidades cada vez maishumanas. A satisfação das necessidades torna-se um meio, submetidaa uma finalidade, que, por sua vez, a transforma radicalmente.

...

Considero a Geografia uma das ciências do espaço e,considero, também, que, por esta via, há um tratamentoparticular do objeto de estudo, que inclui a problemáticatemporal, mas de modo diferenciado. Simultaneamente, asdiversas temporalidades históricas se realizam no espaço e odefinem. Para nós, trabalhar com determinações históricas,próprias de uma formação econômico-social - como a capitalista

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– e com determinações gerais, referentes à história de longaduração, define uma questão central.

A racionalidade do espaço implica ou não,necessariamente, fatos de longa duração?

Haveria uma questão espacial própria da formação econômico-social atual? Ela se sobrepõe às demais questões? Ela as elimina?

O que é da ordem do espacial é cumulativo no tempo. Oque é da ordem do espacial é mais diretamente ligado à estruturae à forma. O que é da ordem do espacial inclui a relação entreelementos ecológicos e sociais. Sendo que os primeiros envolvemum tratamento, que pode, e não necessariamente, traduzir-secomo próprio a fenômenos de longa duração; com relaçãoconstitutiva com a natureza; na verdade, propondo uma lógicade interação e organização envolvendo o homem e a natureza,portanto, tendendo à sistêmica. Os elementos sociais, estes sãomais permeáveis a um tempo de curta duração, metamorfoseiam-se segundo impulsos econômicos e políticos mais precisoshistoricamente; remetem à relação homem-homem; tendendoa se adequar a uma lógica dialética.

A Geografia, o tempo todo, está incluída neste possível-impossível de relacionar fenômenos de natureza tão diversa.Ora, tendemos a discernir a questão ecológica com acuidadepormenorizada de tratamento físico-ambiental e, num salto noabismo, escolhemos estratégias políticas para administrá-la,passando por cima da natureza intrínseca do que é o institucionalnuma época como a nossa: aquela do atrelamento do políticocom o econômico, nos termos de um Estado de urgência, coladona economia e, portanto, servindo-a. Por outro lado, meio semjeito, tratamos a questão social, de um ângulo complicado que éa ótica do espacial. Dizia-se num determinado momento dahistória das ciências, nesta própria Universidade, que a Geografiaera uma ciência que identificava ocupação e uso no e do espaço,incapaz de decifrar a abstração concreta do valor de troca e dovalor, francamente a imperar na modernização da sociedade.

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Uma Geografia sistêmica conduziu os estudos de GeografiaFísica e uma Geografia Crítica refletiu a Geografia Humana queestudava os fenômenos modernos e sociais. Este partilhamentojamais o superamos. A crise ecológica atual, os instrumentostécnicos à disposição do geógrafo, as formas de profissionalizaçãopropostas por nossa época definem praticamente um segmentoda Geografia, cindido do outro, aquele que ensaia ler adeterminação da crise econômico-social.

O “ambiente urbano”, que vivenciamos, quer em SãoPaulo, quer, possivelmente, em outras grandes metrópoles, põeambas determinações em embate - a determinação ecológica ea determinação social. As áreas de proteção ambiental; as áreasde conservação não se realizam plenamente como tais, sãoassuntadas pela crise social, que reflete a gravidade da criseeconômica. É só examinar os milhões de moradores ao redordas represas Billings e Guarapiranga, em São Paulo. Pesquisasrecentes sugerem, a propósito dos loteamentos da RepresaGuarapiranga, um mercado informal de terras muito lucrativo,impulsionado pela própria legislação ambiental. O mesmo serepete na Billings.18 Também importante considerar que, noPrograma Estratégico do Rodoanel, que chega a se pretenderenquanto uma estratégia de controle de espaços deteriorados esocialmente degradados, pela “valorização” dos espaçosimplicados, a idéia de qualidade ambiental se contrapõe a taisespaços deteriorados. E o Programa apareceria como “inibidorda ocupação irregular”.19

18 MARTINS, Sérgio Manuel Merêncio. Nos confins da metrópole: o urbano àsmargens da represa Guarapiranga, em São Paulo. Tese de doutorado. SãoPaulo: Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas, Universidade de São Paulo, 1999. E BUENO, Ana Karina S. e REYDON,Bastiann P. O mercado de terras informal nas áreas de mananciais. SãoPaulo: UNICAMP (manuscrito); entre outras pesquisas.

19 Avaliação Ambiental Estratégica do Programa Rodoanel. Governo do Estadode São Paulo, 2004.

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Outras pesquisas apontam a relação entre novosempreendimentos imobiliários e a absorção não só discursiva doambientalismo, mas a utilização da legislação em benefício daformatação dos novos negócios urbanos; um exemplo importanteé a recuperação da RPPN - reserva particular de patrimônionatural - como parte constitutiva dos núcleos de condomíniosfechados.20 Ainda a acrescentar, as compensações, constantes daLei nº 11.216, de 2002, alterando a lei de proteção dos mananciaisde 1976, do estado de São Paulo, que remetem à vinculação aomesmo empreendimento de áreas de terreno ou gleba nãocontíguas. A partir dessa nova legislação compensatória, é possívela anexação, a um loteamento irregular, para regularizá-lo, deuma área que passa a constituir uma reserva particular dopatrimônio natural (RPPN), protegida não pelo poder público,mas pelos particulares. Com o tempo, pode vir a significar umavalorização potencial futura, com a possibilidade de expulsãoda população do loteamento popular assim regularizado.

A compreensão sobre a metrópole de São Paulo, com aqual venho trabalhando, pretende sintetizar, nesse sentido, aconcepção de urbanização crítica.

Do que precede: seria possível escolher entre os problemasambientais e sociais? Seria possível administrá-los?

Ambos imbricados estão a ressaltar a crise dos fundamentosdessa economia de exploração, cuja solução aparece como oimpossível-possível, isto é, aponta para sua superação a necessáriacrítica radical desses fundamentos, na teoria e na prática.

20 FREITAS, Eliano de Souza Martins. A reprodução social da metrópole emBelo Horizonte: APA Sul RMBH, mapeando novas raridades. Tese de doutorado.Belo Horizonte: Programa de Pós-graduação em Geografia, Instituto deGeociências, Universidade de Minas Gerais, 2004. Entre os exemplos,destaca-se o “do empreendimento imobiliário ‘Vale dos Cristais’ (localizadoàs margens da rodovia MG-030), resultado da articulação entre a Anglo-Gold e a Odebrecht Engenharia e Construções.”(p. 246)

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Voltando à concepção, acima levantada, a do cerne doespacial e a Geografia, é inegável, desde meados do século XX,no mundo inteiro, o sentido abrangente da urbanização; partesignificativa da população mundial vive nas cidades. É tambémsignificativo o processo de homogeneização e fragmentação davida social e urbana. A este propósito, a noção de cotidianidadetraz à luz os termos da reprodução social atual. E há hierarquiassociais, que se inscrevem no espaço dolorosamente. Em nossasperiferias, abrigando mais da metade da população da cidade,se vive a distância física e social da cidade propriamente. Odesemprego e, no mundo do dinheiro, esses sem dinheirosobrevivem nesses guetos, confinados, tornados territórios, que,abrigando políticas clientelistas, abrigam tambémsimultaneamente territórios religiosos vários, de fundamentoapocalíptico. A extensão do tecido urbano, por si só, define umaquestão ecológica importante: a extensão dos espaços deconcreto. “É exato afirmar que o quadro de vida e a qualidadedo ambiente passam ao grau das urgências e da problemáticapolítica.”21 A presença possível de adensamentos populacionais,através de novos loteamentos clandestinos e conjuntoshabitacionais, nas áreas periféricas já densamente ocupadas,destrói a possibilidade de vida urbana. Portanto, observa-se umadeterioração urbana, intensiva e extensiva, posta.

Vende-se qualidade de vida, vende-se “natureza”, ademonstrar não o que temos, mas uma presença-ausência: o quenecessitamos e somente negando radicalmente essa forma dereprodução social alcançaremos. Portanto, em síntese, aproblemática do cotidiano põe simultaneamente as questõessociais e ambientais, sem resolvê-las institucionalmente; embora,sejam invadidas pelas institucionalidades várias.

21 LEFEBVRE, Henri. Quand la ville se perd dans la métamorphose planétaire.IN : La Somme et le Reste, nº 3, fevereiro de 2004, p. 24.

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“O urbano concebido e vivido como prática social estáem vias de deterioração e talvez de desaparição... Aíse produz uma dialetização específica das relaçõessociais, e é um segundo paradoxo: centros e periferiasse supõem e se opõem.”22

Na cidade, o citadino está em movimento perpétuo, no sentidode que há um processo de transformação da situação geográfica dacidade, própria do urbano como negócio, que, considerando avalorização e capitalização do espaço urbano, impõe essa itinerânciaurbana. Os mais pobres a vivem na pele e a aceitam como destino.

Impõe-se a necessidade da vida associativa eautogestionária, que rompe com as instituições e não a alimentam.

“É preciso restituir o lugar eminente de formas bemconhecidas mas um pouco negligenciadas, tais comoa vida associativa ou a autogestão, que adquirem umoutro conteúdo quando elas se aplicam ao urbano. Aquestão é então de saber se o movimento social epolítico pode se formular e se articular em torno dosproblemas pontuais mas entretanto concretos,concernindo todas as dimensões da vida cotidiana.”23

O “ambiente urbano” se define como o lócus dessa síntesede natureza espacial, com conteúdos sócio-ecológicos a resgatar.E não poderia fazê-lo sob o modelo formal, sistêmico, pois estácravado nas contradições desta sociedade.

...

O sentido do processo mercantil moderno é a economiafinanceirizada extremamente volátil, gastando vorazmente

22 LEFEBVRE, Henri, fevereiro de 2004, p. 21.23 Op. Cit. p. 22.

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recursos humanos e recursos naturais e migrandoincessantemente.24 “A economia faz o homem à imagem damercadoria”25. Raoul Vaneigem chega a situar um estado de delírioesquizofrênico: a estrita identificação entre o homemdesumanizado e a coisa que o desumaniza, ele se gasta comohumano. E esse universo de economia dilapidadora é um universoconcentracionário.26 Luta-se por inclusão não residual.

Verifica-se a intensificação de assimetrias entrepaíses que centralizam essa economia, que se financeiriza,e aqueles que, de modo precário, dela fazem parte, sendoque a Amér ica Lat ina e a Áfr ica compõempreferencialmente esses grupos de países - lembrando queesta economia tem circuito mundial, mas seleciona espaçosde mercado privilegiados o tempo todo -, portanto há umacrescente desigualdade, considerando a globalização e aintegração produtiva, comercial e financeira.27

Nas questões sociais e econômicas a cidade personificaesses processos: adotando-se estratégias de competitividade naatração de investimentos e os poderes locais devendo promoveressas possibilidades de inserção nos espaços econômicos globais,completamente envolvidos pelas agendas e organismosinternacionais de financiamento. A gestão, as ações deliberadasdas estratégias se tornam cada vez mais dominantes.

“Se se quer atrair os investimentos do setor privadoem lugares precisos, é preciso sem dúvida melhorar ainfra-estrutura, mas é preciso antes melhorar ascapacidades de gestão das autoridades locais. É uma

24 VANEIGEM, Raoul, 1996 e outros textos do autor.25 Op. cit., p. 54.26 VANEIGEM, Raoul,1996, p. 66.27 BARRETO, Maria Inês. Inserção internacional de governos locais. Revista

Teoria e Debate. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, ano 17, nº 59, agosto/setembro de 2004, p. 12-16, p. 12.

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transformação em profundidade das modalidades dagestão urbana local [...] Ela é legitimada pela buscade uma melhor rentabilidade dos investimentospúblicos e privados.”28

Entre os itens de inserção: a promoção econômica para oexterior e a concepção e implementação de projetos urbanísticos.29

No mundo dessa economia, que inclui a cidade assimfrancamente, a cidade se eleva a sujeito. Inclusive, cidadespopulares, especialmente as pequenas, de inserção mais residual,passam a se tornar cidades econômicas - verdadeiros complexosprodutivos -, o que pode substituir o grupo dominante local;cidades culturais - envolvendo aí a presença do turismo, quetambém altera substancialmente a inserção econômica e culturalde sua população; etc. É uma transformação social: a cidade seculturaliza, se economiza...30 Para a compreensão dessapossibilidade de interpretação da cidade, aqui apenas anunciada,observe-se o tratamento do processo do capital como sujeito:

“A força coletiva do trabalho, sua condição de trabalhosocial, é por fim a força coletiva do capital. Outrotanto ocorre com a ciência. Outro tanto com a divisãodo trabalho, tal qual aparece enquanto divisão dosempregos e da troca resultante. Todos os poderessociais da produção são forças produtivas do capital,e este mesmo se apresenta, pois, como o sujeito(grifo nosso) destas forças. Ante o trabalhadorindividual esta associação aparece como acidental.Aquele se vincula à sua própria associação com os

28 OSMONT, Annik. La banque mondiale et les villes – du développement àl’ajustement. Paris: Karthala, 1995, p. 145.

29 BARRETO, Maria Inês, agosto/setembro de 2004, p. 15.30 A partir de diálogo com Henri Lefebvre, publicado na revista M, de fevereiro

de 1988.

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demais trabalhadores e à sua cooperação com eles comoalgo alheio, como um modo de operar do capital.”31

Num plano abstrato de tratamento desses processos, quantoao espaço, eis um ensaio de movimento possível de uma crítica,pretendendo-se de algum modo dialética: do espaço livre damercadoria - o espaço em si - à ocupação do espaço ou realidadedo espaço - o espaço diferencial.

Como termos do espaço livre da mercadoria32:a) Enquanto pressuposto: um pensamento que põe o espaço

como a priori. Ao mesmo tempo neutro e dando universalidade“fictícia” aos conteúdos reais. O espaço como continente. Re-visitado, numa outra abordagem, o espaço, assim configurado,seria a produção do vazio.

O espaço geométrico e vazio aparece como varredura oua “telescopagem”33 entre a geometria do espaço e a história doespaço (uma oscilação entre ambas, como indústria da herança;

31 MARX, Karl, 1977, volume 2, p. 86.

“O capital [...] supõe já em certa escala, maior ou (p. 86) menor, umaconcentração; por um lado em forma objetiva, ou seja, como concentração[...] de meios de subsistência, matéria-prima e instrumentos ou, para dizê-lo em uma palavra, de dinheiro como forma geral da riqueza; e por outrolado na forma subjetiva, a acumulação de forças de trabalho e concentraçãodas mesmas em um ponto, sob o comando do capital.” (p. 87)

“[...] quando se fala unicamente do capital, a concentração coincide com aacumulação ou com o conceito do capital. Isto é, que ainda não constituiuma determinação especial. Certamente, não obstante, o capital se enfrentadesde o começo na qualidade de um ou de unidade frente aos trabalhadoresenquanto pluralidade. Desta sorte e frente ao trabalho aparece como aconcentração dos trabalhadores, como uma unidade externa a estes. Nestesentido, a concentração está compreendida no conceito do capital [...] unidadeà margem dos mesmos.” (p. 92)

32 DEBORD, Guy, 1992.33 O termo foi utilizado por Henri Lefebvre, em La production de l’espace. A

télescopage está no plano de uma ilusão, de uma confusão, de um misto derealidade e representação, potencializado, por transferência e redefiniçãode conteúdos, terrivelmente ativas.

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reinvenção das tradições). Henri Lefebvre fala, assim, emacumulação primitiva do espaço.34

b) Como condição de existência: o espaço como ponto dereunião de conjuntos de produtos específicos. Como conjunto quenão supera a exterioridade recíproca desses objetos. Socialmenteé a fragmentação-unificação dos conteúdos da vida individual esocial. Os limites de subjetivação que implica: a totalização pelaeconomia, a produção capitalista unificando o espaço nafragmentação. Chega-se ao espaço enquanto espaço produtivo.35

Em direção à realidade do espaço:a) Espaço geométrico como presença real, não só

existência lógica, mas sua “vivência” em estado de ambigüidade(quando as contradições se deterioram, a oposição estagna, háconfusão, mistura dos termos em oposição). Que se leve, no planodo conhecimento, a hipótese até o limite: vislumbrando da extensãodo mundo da mercadoria e do mercado ao deciframento das formasinsurgentes. Que se questione o equilíbrio espacial, e se ponha nolugar uma geografia do movimento.

b) Decifrar os objetos em diferentes escalas ésuficiente? Somente se se reconhecer a sobreposição de escalas,os entrecruzamentos, os imbricamentos: o local realizando omundial e incluindo, ao mesmo tempo, o subterrâneo.

c) Desdobramentos em dimensões: a trama, a rede ésuficiente? Sim, caso se realize a metamorfose: no lugar do espaçoem si, a ocupação do espaço (práticas espaciais) ou a realidadedo espaço, como negação da seleção dos espaços, negação deum processo extensivo e intensivo de banalização posto pelaunificação (igualizando as diferenças: mercadorias produzidas

34 LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 2000, 4ª edição.35 A noção de supostos históricos e de a condição de existência são argumentos

decisivos sobre o movimento da acumulação originária do capital. MARX, Karl.Elementos fundamentales para la crítica de la economia política (Grundrisse)1857-1858. Argentina: Siglo Veintiuno, 1977, volume 1.

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em série para o espaço abstrato do mercado). Põem-se as qualidadesdos lugares, as diferenças: o espaço diferencial, vivido, a históriacomo ativa, como referência de acontecimentos, a implicação dosespaços sociais, a deriva. A deriva tornando-se um procedimentode conhecimento, de trabalho de campo, ainda potente.36

...

Dessa forma, é possível contrapor duas leituras de processos,sendo que ambas ativas na produção das ações populares e estatistas:

1. Um empirismo a guiar o conhecimento, tendo aexperiência como seu fundamento, a determinação do particular edo finito. Empirismo que rondou a geografia clássica, mas, na verdade,mantém sua atualidade. É uma hipótese. Diante desse método, emboraele contenha certa universalidade de tratamento do objeto e certaunidade, o acento estaria na determinação do objeto como situaçãoconjuntural, a dos processos quando experienciados de modo que,mesmo levando em conta a história - e ela aparece como sedimentode um presente -, é o presente o que conta. A noção de processoinclui aqui a de rupturas, sem sobras. Esse empirismo é combinadocom uma compreensão de separação nítida do objeto e do sujeito.E o sujeito, livre da objetividade, pratica o mundo. É umpensamento tecnocrático, muito atuante, movido por umaracionalidade que pode se definir como técnico-burocrática. Quantoao urbano, guarda nessa concepção a definição de urbanizaçãodesordenada, entre outras, que sugere a possibilidade de projetosde planificação, fundados em uma “racionalidade técnicacompetente”. Esse caos espacial, que, inversamente, pode ser umsintoma complexo das circunstâncias próprias à deterioração das

36 A deriva se define como um “comportamento ‘lúdico-construtivo’; ligada auma percepção-concepção do espaço urbano enquanto labirinto: espaço a‘decifrar’ (como decifrando um texto com características secretas) e adescobrir pela experiência direta” (New Babylon, Constant - Art et Utopie –textes situationnistes. Paris: Cercle d’Art, 1997, p. 14).

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contradições; assim, da incapacidade de se vislumbrar sua superação enão de correção.37 Enquanto caos espacial, pode-se conceber, ao invésda urbanização desordenada, a urbanização crítica.

2. Uma outra leitura de processo ensaia superar a separaçãosujeito-objeto; e definir o sujeito não por sua particularidade, maspela relação do particular e subjetivo com o que é universal e definidocomo objetividade: as situações conjunturais estão envolvidas, ao mesmotempo, num processo histórico e num complexo estrutural.

Na primeira concepção, o conhecimento e a ação, quesugere, são positivos.38 No segundo caso, inclui-se uma razãodefinida pelo trabalho do negativo.39 Em direção à prática,incluindo o trabalho do negativo.

37 LEFEBVRE fala em oposição estagnante: “em que os termos se afrontam ‘face aface’, significativamente, depois se separam, se misturam na confusão” (LEFEBVRE,Henri. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 2000, 4ª edição, p. 257).

38 “[...] é preciso em geral compreender por esta palavra o entendimento abstraindoe por isto dividindo, que persevera em suas divisões. Voltado contra a razão ele secomporta como senso comum, e faz valer suas visões segundo as quais a verdaderepousa sobre a realidade sensível e os pensamentos são somente pensamentos, nosentido que é somente a percepção sensível que lhe dá conteúdo e realidade, e quea razão, na medida em que ela permanece em e para si dá vida a quimeras... oconceito de verdade se restringe ao conhecimento da verdade subjetiva, aofenômeno, alguma coisa que não corresponde à natureza da própria coisa, osaber cai ao nível da opinião subjetiva.” [HEGEL, Morceaux choisis. Paris:Gallimard, 1995 (1ª edição 1939), tradução de Henri Lefebvre e NorbertGuterman, p. 77 (Ciência da Lógica ou Grande Lógica)].

39 “É preciso procurar o fundamento desta idéia tornada geral na descoberta do conflitonecessário das determinações do entendimento. A reflexão já mencionada consisteem ir além do dado imediato concreto, de o determinar e de o dividir; mas ela deveir igualmente além de suas determinações fragmentadoras, e antes de tudo ascolocar em relação. No estágio desta relação seu conflito aparece; esteprocedimento de relação operada pela reflexão pertence implicitamente àRazão... chegar à descoberta do conflito é o grande passo negativo em direçãoao conceito verdadeiro da razão... a contradição é precisamente o ato peloqual a razão se eleva acima das limitações do entendimento e as dissolve” [Op.cit. p. 78 (Ciência da Lógica ou Grande Lógica)].

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Antonio Negri e Giuseppe Cocco falam que, do ponto devista de classe, a relação de exploração mexe diretamente coma multidão. Dizem:

“Com certeza, a multidão se apresenta como forçaprodutiva, seu conceito integra (e não exclui) oconceito de classe operária.”40

A categoria de multidão, que hoje se atualiza, fez partede um confronto de concepções, no século XVII, entre Spinoza eHobbes; sendo a primeira definidora de “uma pluralidade quepersiste como tal na cena pública [...] sem convergir no Uno”41,próprio, por sua vez, de uma concepção de Hobbes, sobre opovo, estreitamente ligado à existência do Estado: “depois dainstauração do Estado advém o povo-Uno, dotado de uma vontadeúnica”42; assim, a multidão, refrátária à obediência, é um conceitoanti-estatal. Neste momento, é a confirmação de que a ação estatistanão realiza a sociedade civil. A multidão apareceria como umconceito negativo, ativo e potente: “a forma de existência sociale política dos muitos enquanto muitos... Para Spinoza, a multidão éa base, o fundamento das liberdades civis.”43

O sítio dessa presença massificada é a cidade, maisparticularmente a metrópole. Para se realizar como multidão asclasses sociais, em particular a classe trabalhadora, se reproduzemde modo concentrado. Trata-se de uma exigência do processode circulação do capital, mesmo com os avanços da divisão dotrabalho no processo produtivo, avanços que propõem a

40 NEGRI, Antonio e COCCO, Giuseppe. Novidades na América do Sul. Teoria eDebate. São Paulo: FPABRAMO, abril/maio de 2005, ano 18, nº 62, p. 40/42.

41 VIRNO, Paolo. Gramática de la multitud – para un análisis de las formas devida contemporáneas. Madri: Traficantes de Sueños, 2003, p. 21. (baseadoem Spinoza)

42 VIRNO, Paolo, 2003, p. 23.43 VIRNO, Paolo, 2003, p. 22. (citando Spinoza em Tratado Político)

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desconcentração; o processo do capital é concentrador: detrabalhadores, de mercados, de mercadorias, de dinheiro, definanças, de fluxos do capital, de signos; da força de trabalhocomo potência. Mas a particularidade do processo concentradore massificador é também política: é possível identificar aprodução política da massa, em detrimento da identidade daclasse trabalhadora. Esta contradição histórica a pelo menos meioséculo se põe. Corroboram com esta situação particular asestratégias de organização, controle, regulação das populaçõese de sua mobilidade, na condição de trabalhadora, de moradora,de visitante, que acabam por estender esse processoconcentrador, econômico e político, enquanto processo deredução da vida cotidiana, então concentrador dos restos devida social e individual. Essa base particular do processoconcentrador, localizada na metrópole, é, ao mesmo tempo, auniversalidade do tempo e do espaço como valores de troca e aluta mundial pelo seu emprego: o do tempo e do espaço: “umaforma moderna de luta de classes”, imprevista por Marx, nostermos de Henri Lefebvre”44.

Paolo Virno discorda do sinônimo massa-multidão; aocontrário, trata-se para ele da subjetividade possível, nestemomento de negação da subjetividade das classes populares:“os muitos devem ser pensados como individuação do universal,do genérico, do comum compartido.”45

Mas os atos de revolta e revolução são artes e nãociência positiva e dogmática, que reverbera através daspolíticas estatistas.

44 LEFEBVRE, Henri. A propos du centenaire de la mort de Marx. Revue LaSomme et le Reste – études lefebvriennes – réseau mundial, nº 1, 2002, p.20-26. São fragmentos de respostas de Henri Lefebvre a uma revista deBelgrado, a propósito de um questionário sobre o socialismo no mundo.Escritos referentes aos anos de 1983-84.

45 VIRNO, Paolo, 2003, p. 26.

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“Mas as teorias não são feitas senão para morrer na guerrado tempo: são unidades mais ou menos fortes que sedeve empregar no combate no momento justo; e sejamquais forem seus méritos ou suas deficiências, certamentenão se pode empregar mais que aquelas que estão aí noseu devido tempo. Assim como as teorias se devemsubstituir porque se desgastam com as vitórias decisivas,mais ainda que com as derrotas parciais, assim nenhumaépoca viva saiu de uma teoria: no princípio estava umjogo, um conflito, uma viagem.”46

...

A partir da urbanização crítica, supõem-se como premissas:- a compreensão da miserabilidade potencializada neste

momento da história da formação econômico-social capitalista:definida como processo de proletarização (destituição do lugarprodutivo do trabalhador). Sequer a funcionalidade de ummercado informal de trabalho é suficiente para explicar o queas crises social e econômica atuais apontam, nos termos de seusentido histórico mais amplo.

- a riqueza tornada processo expressivo de financeirizaçãoimplicada nesta economia.

- o envolvimento da urbanização neste processo de modonuclear: então se trata de urbanização crítica e não desordenada.Há, inclusive, concentração de novos migrantes - dos últimosdez anos - na fronteira periurbana da metrópole de São Paulo.Os dois fundamentos anteriores são incluídos no sentido de vinculá-los à urbanização crítica e permitir a superação do limite daurbanização ser compreendido como “urbanização desordenada”.

46 DEBORD, Guy. In girum imus nocte et consumimur igni e basuras y escombros.Barcelona: Anagrama, 2000, p. 27-28.

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Falar nestes termos implica muita coisa, não se resolvefacilmente. São sedimentos analíticos implicados, mutuamenterelacionados. As relações definem contradições externas einternas e a metamorfose de uma na outra, isto é, a internalizaçãosubseqüente, do que aparece em princípio comocondicionamento externo.

1. Que o processo urbano se realiza também como umprocesso econômico da urbanização, que pode ser definido comoprodução do espaço urbano.

2. Enquanto produção do espaço urbano, os elementosmateriais envolvidos nesta produção - edifícios (para todas asformas de usos: comercial, serviços, industrial, doméstico...),pontes, viadutos, produção dos subterrâneos adequados, estradas,sistema viário de modo geral, canalizações - constituem formasautônomas do capital ou condição tecnológica para o efetuar-sedo processo produtivo imediato (os lugares em que ocorre aprodução, a distribuição, a comercialização...). Esses elementosmateriais se realizam, enquanto determinação formal do capital,como capital fixo, cuja realização do valor, e do mais-valorenvolvido, aparece sob formas financeiras cada vez maisinternacionalizadas, abstratas - envolvendo títulos,endividamentos, consórcio entre o Estado e empresas, ações,rendimentos balizados por juros, de remuneração mundial -, paraassegurar um retorno paulatino do valor adiantado - dada anatureza desses elementos. Em síntese, o urbano de per si sempreenvolveu uma economia, enquanto determinação formal docapital, de complexa realização; portanto, logo potencialmentefinanceira, com todas as regulações implicadas enquantoadiantamentos, para realizar como circulante um capital denatureza fixo. Um momento dessa contabilidade financeiracomplexa é a realização da moderna propriedade da terra urbana:que tem buscado formas hiper-financeirizadas de realização e,portanto, mobilização. Assim, muito cedo, a economia urbanareal incluiu uma economia fictícia. A relação entre a

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materialidade dos elementos e sua constituição enquantodeterminação formal do capital vai se redefinindo para suarealização enquanto tal (determinação formal do capital, tendopor finalidade realizar a mais-valia). A magnitude da parte fixado capital aumenta, o que lhe é próprio, o define - inclusivecriticamente - e, ao mesmo tempo, produzem-se modos renovadosde lhe determinar como circulante: a verticalização é um grandemomento de tradução da materialidade em capital fixado enquantocirculante. São os apartamentos, depois as cotas de grandes negóciosimobiliários. As Operações Urbanas também aperfeiçoam as formasde realização de um corpo maior de edificações, definidas, tambéme não só, como unidade e totalidade. Os Planos Estratégicos sepõem neste sentido também. Mas a possibilidade de realização docapital assim fixado e fixado localmente - configurando a idéia deambiente construído: o capital fixado, inserido espacialmente adeterminar a consideração do sentido ativo dessa qualidadeespacial47 - depende da possibilidade de valorização e/oucapitalização do entorno implicado. A valorização do entorno realiza- como renda da terra, como remunerações possíveis - as massasfixadas, mesmo assim com o concurso de dotações do Estado,consorciadas com capitais e fundos internacionais.

A considerar também aqui que tudo isso é processo,movimento: altera-se o tempo todo o estado geral do urbanoeconomizado.

3. É necessário, na imagem dos sedimentos, neste momento,incluir: um sedimento que é essa economia na sua particularidadee, ao mesmo tempo, universalidade: considerando que asituamos no processo do capital, implicado na urbanização.Acompanhem, neste sentido, o trabalho de pesquisa em Geografiasobre a reprodução crítica da economia urbana, envolvendo aprodução do espaço; a considerar as teses trabalhadas pela profa.

47 Para maior aprofundamento, HARVEY, David. Los límites del capitalismo y la teoríamarxista. México: Fondo de Cultura Económica, 1990, capítulo VIII, p. 210-243.

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Ana Fani Alessandri Carlos48, sobre o capital imobiliário e as deoutros pesquisadores, cujos trabalhos são tão necessários paratal desvendamento, pois têm que ser, por sua natureza complexa,um trabalho coletivo. Outro sedimento é a populaçãotrabalhadora atraída, para seus negócios (incluindo a produçãodo espaço) e aqueles que os mesmos viabilizam - os própriosprocessos produtivos imediatos -, com todas as derivações históricasdo processo de exploração. Nesse sentido, não só atrai, mas o fazperversamente, pois, o tempo todo, é posta também uma populaçãosuperficial ao processo. Classicamente, o lumpen-proletariado. E,hoje, este excedente é rigorosamente o proletariado sem apossibilidade de inserção na produção, senão de modo contingente.Quiçá nossa sociedade - a brasileira; assim como outras similares -tenha posto cedo a impossibilidade da absorção produtiva dotrabalho potencial; não estando aquém do moderno sistemaprodutivo, mas anunciando sua própria natureza crítica: asobrevivência instaurada no lugar da vida. Um terceiro sedimentoé aquele da espoliação urbana, para usar um termo já consolidadode Lúcio Kowarick.49 Pois o espaço de localização dessa populaçãoestá implicado economicamente e, portanto, potencialmentenão serve às suas necessidades e vai ganhando preços cada vezmais substanciosos - aqueles de denotam o processo de valorizaçãoreal e fictício. A finalidade não são as suas necessidades, mas tornarcapital: a terra, o edifício, o urbano... Até rentismos, mercado delotes e casas precário, sendo esses lotes periféricos de grandepotencial de absorção de rendimentos com formas creditíciaspopularizadas para viabilizá-lo (aos preços dos aluguéis).50

48 CARLOS, Ana Fani Alessandri. A reprodução da cidade como “negócio”. IN: CARLOS,Ana Fani Alessandri e CARRERAS, Carles (orgs.) Urbanização e mundialização –estudos sobre a metrópole. São Paulo: Contexto, 2005, p. 29-37.

49 KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.50 BUENO, Ana Karina S. e REYDON, Bastiann P. O mercado de terras informal

nas áreas de mananciais. São Paulo: UNICAMP, manuscrito.

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4. Houve uma literatura que concebia a necessária presençadessa população trabalhadora potencial nas cidades, queconcentrava o substancial do moderno processo de produção.Dela derivou um lugar à política habitacional governamental,inclusive, com seu sentido político integrador. Mas logo sereconheceu o outro da cidade preparada como condição docapital: a “cidade” dos pobres urbanos, produzidos por esseduplo processo de capitalização. Eram os cortiços, as favelas, oaluguel e a casa própria auto-construída. Agora, também, osconjuntos habitacionais, os loteamentos clandestinos, osmutirões, as estratégias de mercantilização popular e clandestinados espaços de moradia popular; estes últimos inclusive definidoscomo negócios lucrativos (especialmente quanto aos lotesproduzidos nas fronteiras urbanas, especialmente considerandoas estratégias de manutenção de parte do loteamento em esperapara valorizações potenciais).

A partir deste segmento é possível falar de segregaçãosócio-espacial e centralidade como opostos e compostos.

5. Mas a cidade é real, com seus limites, e ela propõetrajetórias. Não é possível resolver os espaços centrais comoespaços vazios para essa população proletarizada. As fronteirasestão e, ao mesmo tempo, não estão estritamente delimitadas.Lembro-me do prof. Pedro Vasconcelos a esse propósito notratamento da segregação espacial, no VIII SIMPURB - SimpósioNacional de Geografia Urbana51. Ele advogava a dificuldade defalar em segregação espacial. É uma problemática, não um fatoempírico decisiva e facilmente constatado. Vera da Silva Tellesfala de trajetórias urbanas, enquanto “mobilidades urbanas:trajetórias habitacionais, percursos ocupacionais, deslocamentoscotidianos, que articulam trabalho, moradia e serviços urbanos.

51 VIII Simpósio de Geografia Urbana - Cidade, Espaço, Tempo, Civilização: por“uma transformação radical da sociedade como sociedade política”, realizadono Recife, em Pernambuco, no período de 10 a 14 de novembro de 2003.

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Três dimensões entrelaçadas nas trajetórias individuais efamiliares.”52 Então, há segregação espacial, ela é recorrente e setorna aguda hoje: são milhões de moradores nas franjas dos espaçosurbanos. Muda a medida do fenômeno periférico, com suasconseqüências a enfrentar. Aqui se localiza o tratamento necessárioda multidão e essas multidões tendem a ser verdadeiras muralhas dehabitação popular, localizadas, que do ponto de vista da mobilidade docapital são também mobilidades espaciais53. E, de alguma forma, torna-se impossível não se relacionar com o outro da segregação: ascentralidades, inclusive, como bem lembradas pela profa. OdetteCarvalho de Lima Seabra, as centralidades das periferias.

Assim teríamos, espacialmente falando, do ponto de vistada lógica do espaço e da realidade do espaço, a necessidade depensar na existência de redes, numa sociedade que, mesmo demodo irrisório, põe o relacional.

Pierre George em Sociologia e Geografia avalia que écomum a possibilidade de uma concepção da importância dascomunicações e das técnicas de informação enquanto elos decada lugar com o mundo; contudo, como são tecidas essas relaçõesno espaço vivido é mais complicado de considerar. A relação entreo fenômeno urbano e o cotidiano na geografia urbana tornou-setemática importante. Trata-se de uma temática aberta.

52 TELLES, Vera da Silva. Trajetórias urbanas: fios de uma descrição da cidade,(no prelo), manuscrito p. 7.

53 Sobre este assunto é importante considerar as aquisições de outros trabalhosenvolvendo a alteração da natureza do fenômeno, de acordo com a diferençade magnitude expressa. Trabalho com a noção de medida e sua importânciana compreensão das periferias metropolitanas. Um texto, sob o título“Urbanización Crítica: Periferias Urbanas – Elementos a considerar en el caminode la comprensión de la ciudad como sujeto”, contém uma análise nessa direção.Texto que poderá ser publicado em livro, em Barcelona, ainda em 2006, referenteao projeto “Globalización y Transformaciones Socio-Espaciales en las Metrópolisdel Siglo XXI: Barcelona y São Paulo”, coordenado pelos professores Ana FaniAlessandri Carlos e Carles Carreras. Outros momentos da argumentação aquiexposta compõem esse texto de modo mais analítico.

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Com toda a necessidade de reconsideração, inclusiveproposta pelo próprio autor, em livros posteriores, é precisolocalizar o sentido da “grade de práticas espaciais”, intentadapor David Harvey em Condição Pós-moderna.54 Nos termos deRoncayolo “a cidade é um campo de práticas”.55 Isto é, existemníveis e dimensões de espaços a decifrar. Com toda a turbulênciaimplicada. Não existem só formas de combinação, mas rupturaspostas nessas implicações.

6. A noção de situação geográfica é de grande valia parainterpretar a materialidade do processo urbano e suas derivaçõesenquanto determinações formais do processo do capital. Desdeo início, a geografia concebeu essa necessidade de pôr a relaçãodo núcleo urbano com seu entorno e a concepção vem semobilizando desde então, para constituir a possibilidade de umageografia do movimento, sintonizada com os fundamentos dasociedade contemporânea.

Deste ponto de vista, há uma metamorfose dafuncionalidade da presença do trabalhador potencial na domorador temporário. A valorização e capitalização das periferias,inclusive reproduzindo formas de especulação financeira efundiária, constitutivas de centralidades potenciais, acabam porlevar a uma acumulação primitiva desses espaços; isto é, umavarredura dos seus usos e moradores existentes, em prol de novasestratégias e empreendimentos. Considerando a imensidão dasperiferias, as estratégias de expropriação devem ser gigantescas,a exemplo do Rodoanel Mario Covas, em São Paulo, que envolvepotencialmente a metrópole inteira.

54 HARVEY. David. Condição Pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992, p. 203.55 RONCAYOLO, Marcel. La ville et ses territoires. Paris: Gallimard, 1978,

citado por TELLES, Vera da Silva. Trajetórias urbanas: fios de uma descriçãoda cidade (no prelo).

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Exatamente tendo em vista esse processo de produção decentralidades, envolvendo as periferias, pode-se pensar na presençade equipamentos, como os shoppings centers, os hipermercados...,que alteram as trajetórias e a dinâmica das periferias,significativamente. E definem o sentido do processo de expropriaçãopotencial. Em São Paulo, um exemplo interessante é o do ShoppingCenter Tatuapé, onde existe uma circulação de pobres urbanos daregião, que acaba por se tornar incômoda aos desígnios da promoçãoespacial, surgida com a capitalização do “bairro” do Tatuapé.

7. A sobrevivência e a vida como contradições no planodo possível-impossível, eis a conclusão. Os moradores vivendoesse sentido de perda: os adensamentos habitacionais; a extensãoprecária do tecido urbano; os territórios estritamente demarcados- como o do tráfico de drogas. Sendo que a grande droga é essaeconomia, que situa a destituição produtiva como incluída e anecessidade e a atração sedutora de consumos diversos, quealçam a presença do intermediário possível nesta situação limite:os negócios ilegais e a proletarização e morte, que envolvem. Otráfico de drogas faz parte das seduções dos consumos vários,pois facilita o caminho a percorrer para realizar os desejos deconsumo administrados, próprios a essa economia.

Considerando essa base, toda ordem de institucionalidadesse põe como anteparo e solução; institucionalidades que tambémperfazem as trajetórias mencionadas: descentralização dospoderes políticos, clientelismos políticos e institucionais,organizações não governamentais, igrejas, associações demoradores nominais. Mas põem-se também ações insurgentes epotenciais que buscam a vida, no interior da sobrevivênciareiterada todo dia. Elas são menos econômicas e mais diversas -pois há limites de tratamento econômico dos seus fundamentos.Diversas, diferentes, insurgentes, negando explicitamente os limitesde sobrevivência, localizando a possibilidade de vida: seu traço écultural e ambiental. Dando identidade irreverente a espaçosde sobrevivência, amontoados de gente sem infra-estruturas

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urbanas. É a tentativa de buscar espaços qualitativos56, daí seuperfil cultural e ambiental, diferente, neste último caso, das formasinstitucionais dos ambientalismos.57 Espaços como diz um militanteamigo, Aldo: de busca da “extrema beleza como direito”.

...

BIBLIOGRAFIA

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56 Ver o tratamento substancioso do tema em: SEABRA, Odette Carvalho deLima. Urbanização e fragmentação: cotidiano e vida de bairro na metamorfoseda cidade em metrópole. Tese de livre-docência. São Paulo: DG, FFLCH,USP, 2003.

57 Sobre o significado do ambientalismo, ver: MARTINS, Sérgio ManuelMerêncio, 1999.

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PROBLEMÁTICA AMBIENTAL = AGENDA POLÍTICAESPAÇO, TERRITÓRIO, CLASSES SOCIAIS

Arlete Moysés Rodrigues1

RESUMO

Este ensaio apresenta, com uma perspectiva crítica,ponderações sobre o ideário do “desenvolvimento sustentável”.Tenta mostrar que os problemas ambientais são utilizados, nodiscurso oficial sobre desenvolvimento sustentável, como formade ocultar contradições de classe, de apropriação das riquezasnaturais, do território, através da construção do ideário dasriquezas naturais como bem comum e da necessidade de supriras necessidades da geração atual e da futura. Destaca aimportância da Geografia e dos Geógrafos para colocar emdestaque a complexidade do território, do espaço, das relaçõessociais, que não existem sem expressão espacial.Palavras-chaves: ambiente, espaço, território, classes sociais,conflitos sociais, desenvolvimento sustentável.

INTRODUÇÃO

Este texto tem o objetivo de apresentar algumas análisessobre a construção do ideário de desenvolvimento sustentável.2

1 Profa. Livre Docente da UNICAMP – [email protected] A pesquisa científica tem um tempo longo de maturação. Este texto foi

escrito especialmente para o Boletim Paulista de Geografia, mas as idéiasaqui contidas foram apresentadas em debates, simpósios, encontros, emespecial, na Semana de Meio Ambiente de Geografia da AGB-SP, em 2005.

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Partimos do pressuposto de que o uso do termo provocoudeslocamentos de análises em relação ao território, às causas econseqüências da dilapidação das riquezas naturais, aprofundouas formas de ocultar os conflitos entre classes sociais, transformoua questão ambiental em agenda política de países e entre países.

Apresentamos algumas inquietações com a intenção depropiciar debates sobre o tema que virou “moda” nas agendaspolíticas, em programas, pesquisas, projetos. O desenvolvimentosustentável é apresentado como “conceito”3, como um“objetivo” a ser alcançado num futuro, visando “garantir asnecessidades do presente sem comprometer a capacidade de asgerações futuras atenderem também as suas”. Afirma-se que o“conceito” tem limites (Nosso Futuro Comum, 1991) que deverãoser superados com o avanço da tecnologia e da organizaçãosocial. Indagamos se o limite é conceitual ou se diz respeito aosobjetivos que se pretende obter.

Um conceito exprime uma noção abstrata que se referea um objeto suposto único, ou a uma classe de objetos. Écaracterizado por sua extensão e compreensão. Extensão significa“o conjunto particular dos seres aos quais se estende esteconceito”, enquanto a compreensão refere-se ao “conjunto doscaracteres, que constituem sua definição” (Japiassu, 1989:53).Qual é a extensão que se pretende com o “conceito” dedesenvolvimento sustentável? Parece que é o planeta Terra. Quaisseriam os conjuntos de caracteres? Parece que tudo e nada aomesmo tempo, sem nenhuma contradição, conflito, sem análiseda complexidade da configuração do mundo real.

De acordo com Deleuze & Guattari (1991), conceito énecessariamente complexo: “conceito é um todo, porque totaliza

3 Documentos oficiais da ONU, em especial o Relatório “Nosso Futuro Comum”,afirmam que desenvolvimento sustentável é um conceito. Veja-se, emespecial “Nosso Futuro Comum/Comissão Mundial sobre Meio Ambiente eDesenvolvimento” (1991- 2a edição).

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seus componentes, mas um todo fragmentado... Todo conceitoremete a um problema e os problemas exigem ‘soluções’ pois sãodecorrentes da pluralidade dos sujeitos, sua relação, de suaapresentação recíproca” (Guattari, F, Deleuze, G. 1991:27-28).

O termo “desenvolvimento sustentável” não é umconceito, mas uma idéia que pretende encontrar soluções paraproblemas de esgotamento, poluição das riquezas naturais4, numfuturo... Idéia genérica que abstrai a realidade, oculta acomplexidade, a reflexividade5 do modo de produção demercadorias, cria uma espessa cortina de fumaça sobre aapropriação dos territórios, a existência de classes sociais,dificulta a análise crítica6.

A junção das duas palavras – “desenvolvimento” e“sustentável” – tornou-se “senso comum”, moda, consenso paraa formulação de políticas para utilizar as riquezas naturais (osrecursos) de modo a não destruí-las e, ao mesmo tempo,continuar com o desenvolvimento, promover a “diminuiçãoda pobreza”. Tornou senso comum a preocupação com abiosfera, o “bem comum”. Criou um ideário de que todos sãoigualmente responsáveis pela depredação das riquezas e pelapreservação para as gerações futuras. Transformou a questãoambiental em agenda política.

Como se contrapor à manutenção das condições de vidapara as gerações futuras? Como colocar a idéia dos bens vitaiscomo bens comuns? As idéias do meio ambiente “bem comum”da humanidade, de preservar riquezas para as gerações futurassão tão fortes que viram palavras mágicas?

4 Utilizamos “riqueza natural” como contraponto de “recursos naturais”, oúltimo caracterizando os elementos da natureza como mercadoria.

5 Sobre complexidade, veja-se Morin, E. e Moigne, 2000; sobre reflexividade,veja-se Giddens, A.; Beck, U.; Lasch S. (1997).

6 O debate sobre se o termo é um conceito, uma noção, uma proposta éimportante para aprofundar o conhecimento de categorias analíticas.

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Desenvolvimento sustentável passou a ser uma idéiamágica (não um conceito) para a resolução de problemas domeio-ambiente, do desenvolvimento e das “gerações futuras”.Tornou senso comum a simplificação, a falta de análise decomplexidade. Aparece como um “conceito” sem instrumentaisteóricos analíticos que exprimam porque é tido como conceito.

Em vez de “ambiente” – que exprime a totalidade, acomplexidade –, a ênfase é dada ao “meio ambiente”, que parecereferir-se principalmente ao meio externo à sociedade, emborapudesse, na sua origem, referir-se à totalidade do meio físico esocial.7 A sociedade é uma abstração nos documentos oficiais,projetos, programas, pesquisas que utilizam o termo“desenvolvimento sustentável”.8

Os problemas ambientais, do meio ambiente, são reais edebatidos desde o século XVIII. Tornam-se mais conhecidos nasegunda metade do século XX. Não há neste texto negação daproblemática. As questões apresentadas dizem respeito à formacomo se traduzem problemas, contradições, conflitos,problemáticas ambientais, sem considerar a realidade concreta.

A sociedade é dividida em classes sociais, em frações eextratos de classes – que aparecem como classes de rendas, ricose os pobres. Simplificadamente, as classes sociais podem serdiferenciadas entre, de um lado, aqueles que detêm o poder, odinheiro, o conhecimento e o domínio das técnicas e, de outrolado, os que possuem a força de trabalho e que vivem, emgeral, no limite da sobrevivência. Todos têm como atributofundamental a capacidade de pensar. Mas a capacidade humanade pensar, para os segundos, tem sido “reduzida” a “recursos

7 O meio ambiente entendido como externo à sociedade é visível quando seanalisam, por exemplo, os EIA-RIMAS e as propostas de mitigação de efeitosdos empreendimentos ao meio físico. Não há idéias de compensação pelasperdas imprimidas aos indivíduos.

8 Veja-se Relatório Nosso Futuro Comum, Agenda 21 (e as Agendas 21 locais).

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humanos”, força de trabalho. São tidos como responsáveis porsuas mazelas e pelas da humanidade.9

Embora todos os componentes da sociedade sejampromotores do desenvolvimento, o progresso é atribuído aosdetentores de capital, que criam empregos, recebem os “frutosbons” do progresso. O trabalho não é considerado. Assim, os pobres– a maioria – só recebem os “frutos podres”, não têm acesso aeducação, saúde, moradia, equipamentos, informação. São tidoscomo os maiores responsáveis pela poluição, depredação dasriquezas naturais. Em 1962, a ONU, ao apontar que os recursosnaturais eram vitais para o desenvolvimento econômico, destacavaque o desenvolvimento econômico nos países menos desenvolvidospoderia pôr em risco os recursos naturais (McCormick, 1992). Assim,os pobres, os países pobres poderiam pôr em risco as riquezas,embora já fosse conhecido que o maior uso e abuso das riquezasnaturais ocorria nos países do centro do sistema.

A proposta de crescimento zero do Clube de Roma, naConferência do Meio Ambiente, em 1972, está alicerçada nosdocumentos anteriores da ONU e na idéia de que a preservaçãodos recursos naturais só poderia ser obtida com o uso de altatecnologia sob a proteção dos países ricos.

Os problemas de esgotamento de riquezas naturais, apoluição, o “medo” de destruição, o receio de perda de qualidadede vida etc. são debatidos desde o início do processo deindustrialização, mas a preocupação se torna mais explícita após asegunda metade do século XX. Como diz Baudrillard: “novos medos,novos temores, recriam, várias pequenas lendas, religiosas, étnicas,políticas ou a grande e falsa lenda planetária da informação, domundo conhecido, das técnicas e de seus usos futuros”.Consideramos que entre as novas lendas está a do DesenvolvimentoSustentável. Uma lenda, um mito, uma idéia para o futuro.

9 Atribui-se a pobreza aos pobres, a falta de empregos à falta de iniciativa da força detrabalho, a dilapidação do meio ambiente aos países pobres e aos pobres, no geral.

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DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Para tornar explícita a idéia de que desenvolvimentosustentável é um ideário construído que oculta as causas e asconseqüências da problemática ambiental, que torna obscurocompreender a existência de classes sociais, a importância doterritório, as formas de apropriação das riquezas, apresentamosuma breve síntese sobre os debates oficiais internacionais.

A 1a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente, emEstocolmo, em 1972, apontava a preocupação internacional como desenvolvimento e o esgotamento de recursos. Os conflitosentre o norte “desenvolvido” e o sul “subdesenvolvido”expressavam também os interesses das corporações internacionaisna implantação de indústrias poluentes e na exploração de recursosnaturais dos países da periferia do sistema, porém apareciamcomo conflitos entre países.

Na 2a Conferência sobre Meio Ambiente eDesenvolvimento (CNUMAD), em 1992, no Rio de Janeiro,referenciada na publicação do Relatório Nosso Futuro Comum,que resultou na assinatura, pelos representantes dos países, daAgenda 21, coloca-se o desenvolvimento sustentável como metaa ser atingida, no futuro. Não se explicita quando será o futuro,e para quem haverá futuro. A afirmação de que em 1962 osinteresses das corporações internacionais ficaram ocultos épassível de ser observada quando se analisa que as propostas dospaíses da periferia do sistema capitalista não foram contempladasno ideário do desenvolvimento sustentável.

Desde a assinatura da Agenda 21, “desenvolvimentosustentável” torna-se expressão “usual”, sem que se saiba quema utilizou pela primeira vez.10 Incorporar a palavra “sustentável”a “desenvolvimento” foi um ajuste na terminologia, mantendo-se o modo de produção de mercadorias e atribuindo os problemas

10 Nobre, Marcos e Amazonas, Maurício, 2002.

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aos desvios do “modelo” de cada país, e não ao modo de produçãodominante. Também representou um ajuste das“responsabilidades”, pois todos passaram a ser responsáveis pelosproblemas de esgotamento e poluição dos recursos.

É um princípio discursivo para tratar dos problemasambientais que ocultam a complexidade da problemática ambiental.Desloca os conflitos de classes para a idéia abstrata de gerações.Desloca as formas de apropriação das riquezas territoriais,apropriadas privadamente, para a “natureza”, “a biosfera”, o “meioambiente” como bem comum. Obscurece, esconde a importânciado território. Deslocam-se, também, algumas análises da produçãopara o consumo, que passa a ser objeto de programas da Agenda 21e das Agendas 21 locais. A solução para os problemas do meioambiente advirá do uso de tecnologia “apropriada”.

A Agenda 21 local, em princípio, deveria ser a agenda decada um dos países que assinaram o documento da CNUMAD,mas, em especial no Brasil, denomina-se de Agenda 21 local aque se refere a projetos, propostas municipais.

A técnica parece neutra, para o bem e para o mal. Mas “Se atécnica tomou a aparência de um potencia independente frente àsociedade, é porque ela foi primeira utilizada para dominar otrabalhador independente frente à sociedade” (Chesnais, F.,Serfati, C. 2003:60). A aparência de neutralidade da técnica mostraa importância que os países “desenvolvidos” e as corporaçõesinternacionais têm no meio técnico-científico-informacional. Sãoos “zeladores” do meio ambiente para as gerações futuras.

Implanta-se a idéia, nas Agendas 21 locais, de que a“preservação, conservação” dos recursos naturais poderáprovocar a “inclusão” social, em especial, com a coleta, separaçãodos resíduos sólidos recicláveis. Teoricamente, vivendo de“restos” da produção os excluídos seriam incluídos no sistema,mas não no meio técnico-científico-informacional. Esse exemploda chamada “inclusão” nos mostra que a técnica não é neutra eque serve como uma alavanca para dominar o trabalhador.

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As abstrações em relação ao espaço, ao território, àsclasses sociais iludem cientistas, técnicos, políticos. A ilusão fazcom que a expressão mais utilizada seja a de que “todos” devemcontribuir para o futuro da humanidade, para as gerações futuras.É fundamental a contribuição de todos, mas não basta repetirpalavras vazias de conteúdo. É preciso analisar a realidade paracompreender o significado da “contribuição” de todos que estáexpressa nos documentos oficiais.

Também é importante compreender a dinâmica danatureza, que não obedece a fronteiras administrativas oupolíticas. Mas como compreender a dinâmica, o tempo geológico,as diferentes escalas, se aparentemente as problemáticas podemser resolvidas com a tecnologia de ponta? Como “cuidar” dasriquezas naturais se o território parece não ter importância?Onde estão as riquezas naturais? Qual a importância do território,espaço, lugar, paisagem? Preservar áreas “reservadas” para aperpetuação do capital e do modo capitalista de produzir maise mais mercadorias ou da sociedade? Como evitar a sociedadedo descartável e a sociedade descartável?

A questão ambiental, com o mito do desenvolvimentosustentável, é elevada ao primeiro plano da agenda política etodas as questões e problemas referem-se ao meio ambientecomo bem comum e as necessidades das gerações futuras.

Para alguns estudiosos, a aceitação de desenvolvimentosustentável relacionado ao meio ambiente fornece um amplo lequede alternativas decorrente da própria imprecisão do termo.Consideram possível construir uma agenda política para mudançassocietárias. Busca-se legitimar o desenvolvimento sustentável comdefinições sobre sustentabilidade social, política, econômica,territorial, ecológica, espacial. Porém cada uma dessas definições écontraditória em relação à outra, por exemplo, a sustentabilidadeeconômica é contraditória com a idéia de sustentabilidade social.

A busca de legitimação científica com definições desustentabilidade aponta que o desenvolvimento sustentável

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realizou a façanha de reunir visões antagônicas, mesmo sem nenhumaformulação sobre quais os limites na utilização de recursos, sobreos limites das ciências para compreender a biosfera.

O termo “sustentabilidade” foi utilizado inicialmente comomediador, para lançar uma ponte entre os “desenvolvimentistas” e os“ambientalistas” com um “conceito vago e inerentementecontraditório, de modo que as correntes sem fim, de acadêmicos ediplomatas, podiam passar muitas horas confortáveis tentando defini-lo sem sucesso” (O’Riordan 1993:27 in Nobre, M. e Amazonas M.,2000:42). Num grande número de pesquisas, projetos, “sustentabilidade”e/ou “sustentável” aparecem como eixo norteador.

O ideário do desenvolvimento sustentável, dasustentabilidade é uma espécie de resposta ao que era consideradona década de 60 como limites do “desenvolvimento” (entendidocomo crescimento econômico) e o meio ambiente (no sentido deestoque de recursos naturais). O meio ambiente passa, assim, a ser otema mais importante do final do século XX e início do século XXI.

É preocupante verificar que a maioria dos que utilizam“desenvolvimento sustentável”, “sustentabilidade”, parece aceitara questão ambiental como moda, agenda política, sem analisar comose oculta a realidade. A construção discursiva do desenvolvimentosustentável parece limitar também o desenvolvimento do principalatributo do homem, ou seja, a capacidade de pensar.

Os deslocamentos discursivos impedem que se compreendaque os conflitos de classe passaram, na agenda políticainternacional, para os conflitos de gerações? Impede que se analisea importância do território para a reprodução ampliada docapital? Dificulta a análise do espaço, da produção do espaço,do poder dos detentores do conhecimento, da tecnologia naapropriação das riquezas naturais?11

11 Há também os oportunistas que buscam conseguir recursos para implantarprojetos, programas, empregos, trabalhos etc. Porém o que nos preocupa éa forma como se ocultam as contradições e os conflitos.

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É evidente que, para os capitalistas (chamados de eco-capitalistas), a aceitação do desenvolvimento sustentável implicaimpor regras de controle, usar novas tecnologias, obtercertificados de uso racional de recursos (ISOS), de controle deresíduos e, sobretudo, permitir a continuidade de reproduçãoampliada do capital, conferindo-lhes legitimidade para aconcorrência com outras empresas “que não contribuem para apreservação do meio ambiente”, não têm o certificado ambiental.

A institucionalização do termo “desenvolvimentosustentável” está ligada à hegemonia da economia neoclássicapredominante no Banco Mundial quando da assinatura da Agenda21, em 1992. A agenda política passa a ser construída tendo, comometa, atingir o desenvolvimento sustentável e, como referencial,o neoliberalismo. São os Estados que assinam a Agenda 21, no entantosão as corporações multinacionais que detêm o poder da tecnologia.Os Estados são responsáveis pela implementação, porém, para oneoliberalismo, o Estado tem de ser “mínimo”. São formas de ocultara realidade através dos discursos.

ESPAÇO, TERRITÓRIO, CLASSES SOCIAIS

Os elementos da natureza, as riquezas naturais, as matérias-primas passaram a ser “recursos naturais” que devem ser utilizadospara a reprodução ampliada do capital, mas, ao mesmo tempo,têm de ser preservadas, sem contradições e conflitos, pois tudo seresolverá no futuro. As riquezas naturais são mercadorias desde oadvento do capitalismo, porém a mercadificação atinge novasdimensões, em especial com a hegemonia do pensamento neoliberal,a financeirização da economia.

Até a primeira metade do século XX, falava-se emmatérias-primas e/ou fontes de energia para os elementos danatureza como o ferro, o carvão, o betume, os vegetais, a hulha,o carvão de pedra, a madeira, a água, entre outros. Embora

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mercadorias e tidas como capitais naturais, a concepção eradiversa da atual. Observa-se inclusive que o valor não foi incluídonas contabilidades. Exemplo: o guano (Peru), o ouro e a prata(Américas), o diamante (África), o pau-brasil, o ferro, o carvão,o petróleo eram riquezas naturais, compradas e vendidas nomercado, mas o valor para a vida não era contabilizado.Consideradas como riquezas “naturais” à disposição paraapropriação, uso e propriedade dos que as estavam explorando.Dádiva divina para quem as explorava. O preço era estabelecidopela raridade e pela exploração, não pelo seu valor.

Cabe lembrar que neste período – colonialismo e imperialismo– o domínio do território era demarcado por posse, apropriaçãodireta ou indireta de territórios, e que essa característica altera-secom o novo imperialismo. Além dessas riquezas naturais, desde ofinal do século XX, são também mercadorias: a água, o ar puro, aatmosfera, a biosfera em sua totalidade. Há a mercadificação dapaisagem, do ambiente e até mesmo sua financeirização, compapéis que garantem a posse/propriedade das mercadorias noterritório – a propriedade intelectual.

Vandana Shiva (Shiva, 1991) aponta que o fato de asriquezas naturais não serem contabilizadas gera problema para aeconomia. Repercutem no computo econômico mas, ao seremomitidos nas contas, esquece-se de que o esgotamento ou alimitação da exploração pode ser, por exemplo, fator de inflação.A autora lembra que o valor em si não é computado. O que seconsidera é o preço, o valor de mercado. Para se considerar ovalor, ter-se-ia de analisar o ambiente (incluída a sociedade, oespaço etc.), debater o valor da vida, da água, do ar, doselementos e riquezas naturais. A financeirização da economiaretirou o lastro da produção e também a possibilidade deincorporar o ambiente, desterritorializando o território, aomesmo tempo em que o tema “meio ambiente” é incorporadona agenda política. Um exemplo: na exportação de madeira,hoje incluída no “agronegócio” computa-se nos “custos” a mão-

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de-obra barata e superexplorada, as máquinas utilizadas, otransporte etc., mas não a árvore da qual foi retirada a madeira.Ou seja, a madeira como mercadoria aparece no mercado, temum preço, mas não se analisa o seu valor, o tempo de formaçãoda vegetação, a retirada de água e de nutrientes do solo, etc.

A força de trabalho transformou-se em “recursos humanos”,devendo ser treinada (ou adestrada) para não provocaresgotamento dos “recursos naturais”. O deslocamento discursivode “ambiente” para “meio ambiente”, de “desenvolvimento” para“desenvolvimento sustentável”, de “matérias-primas e energia”para “recursos naturais”, da “força de trabalho” para “recursoshumanos” oculta a existência das classes sociais e a importância doterritório, desloca conflitos de classes para o um suposto conflitode gerações, e os conflitos de apropriação dos territórios para a“natureza, ambiente”, o bem comum da humanidade.

O desenvolvimento sustentável busca o equilíbrio num futuro,sem considerar o presente e o passado. Oculta o lugar, o espaço onde asrelações sociais concretas se constituem, existem, têm contradições econflitos. Assim, no futuro (sempre enunciado, mas nunca atingido),utilizando-se alta tecnologia, grande volume de capitais, construir-se-iam possibilidades de preservação dos “recursos naturais”.

Embora a problemática ambiental coloque em destaquea importância do espaço12, a agenda política construída com osproblemas ambientais oculta o espaço, o território, transformao meio ambiente em bem comum, esconde as relações sociais.

De modo geral, a categoria de análise “espaço” permanece“oculta”, com o pressuposto de que os problemas espaciais esociais seriam resolvidos no futuro, com o uso adequado das“novas” tecnologias. Parece que o tempo futuro é o século XXI,pois a Agenda é Agenda 21, as metas do milênio devem seratingidas no século XXI. Já estamos no século XXI, e os discursoscontinuam a referir-se ao futuro.

12 Rodrigues, Arlete Moysés, 1998.

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Se a tecnologia acelerou a degradação do ambiente, comoesperar que essa mesma tecnologia promova a sustentação domodo de produção? Se as formas de produzir comprometem areprodução da vida presente, então como acreditar que suacontinuidade resolverá os problemas para as gerações futuras?

Nega-se e reafirma-se, ao mesmo tempo, a fé na ciência/tecnologia. Nega-se na medida em que as tecnologias do passadoprovocaram os problemas ambientais e precisa-se de tecnologiasadequadas. Reafirma-se na medida em que serão as novastecnologias que irão proporcionar o desenvolvimento sustentável.Nega-se também a capacidade de “pensar” das gerações futuraspara encontrar outras formas de sobrevivência que não as atuais.

Oculta-se a importância do território, as contradições, osconflitos da apropriação, propriedade dos meios de produção ea existência de classes sociais. Ao ocultar as classes sociais edeslocar os conflitos entre a geração presente e a futura, arealidade transforma-se em abstração. Constrói-se o mito doconceito de desenvolvimento sustentável.

O tempo curto de transformações sociais, desde a revoluçãoindustrial até nossos dias, comparado com o tempo longo danatureza, parece não ser obstáculo para o desenvolvimentosustentável. O tempo de que se fala nunca existiu e parece que nãoserá alcançado nem nas gerações futuras. Sabemos que do séculoXVIII ao XX as transformações provocaram a compressão do tempo/espaço13, utilizando-se dos motores da história e suas poderosasmáquinas14, em especial o motor da informática, que provocamutação nas formas de produzir, comunicação instantânea, alteraçõesno ciclo da vida, decifração do código genético, que é guardadoem bancos de germoplasma (para o futuro), os avanços dabiotecnologia com a produção de transgênicos etc., reordenam oprocesso de trabalho em todos os setores.

13 Veja-se Harvey, David, 1992.14 Sobre a designação motores da história, veja-se Virilio, Paul.

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É importante considerar que há um desafio para analisaro espaço com mudanças substanciais no que se consideravaseparação entre campo e cidade, entre urbano e rural. Juntocom as mercadorias, matérias-primas, produtos agrícolas,exportam-se também elementos da natureza que se esgotam(solo, água, energia da força de trabalho, dos lugares, riquezasesgotáveis como o petróleo, carvão, utilizados como fonte deenergia diretamente ou indiretamente para as máquinas, osmotores utilizados para produzi-los) e a força de trabalho utilizadatanto na produção direta como na indireta.

Como já dito, a apropriação das riquezas do ambiente,do território, da força de trabalho não é considerada na agendapolítica ambiental. Para destacar a importância do espaço, éfundamental que analisemos a complexidade da produção,reprodução, consumo. Trata-se de compreender como as idéiasde busca do futuro “esquecem” o passado e o presente, a do“bem comum” “esquece” a importância do território e dasriquezas naturais, e como a preocupação com a geração futura“esquece” as contradições e conflitos de classes.

A “nova” divisão territorial do trabalho, que Harvey (2005)denomina apropriadamente de novo imperialismo, impõe odomínio político e econômico com a financeirização, atecnologia, o poder das corporações multinacionais. No novoimperialismo, as riquezas naturais, os “recursos” podem serpatenteados, independentemente do local onde se encontram.Um “papel”, o registro da patente, garante a “propriedadeintelectual” aos que detêm as técnicas. Os bancos de germoplasmaguardam o poder do conhecimento para o futuro. Guardar parao futuro, em especial para as gerações futuras, é tido como umaforma de garantir o meio ambiente – um bem comum dahumanidade. O Estado-Nação é subjugado pelas normas do capitalfinanceiro, do neoliberalismo.

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CONSIDERAÇÕES GERAIS

O espaço, objeto de estudo da Geografia, é mais poderosodo que a capacidade que temos de o analisar e das formasretóricas e discursivas que tentam ocultá-lo, pois o poder deintervenção ou atuação no espaço depende da apropriação epropriedade (terra, capital, meios e força de produção) quegarantem o poder em seus vários matizes. O poder do espaço eda Geografia que o analisa são demonstráveis pela tentativa deocultar a importância do espaço e dos Geógrafos.15

As contradições e conflitos de classe não aparecem,“transformam-se” em direitos individuais, como mostra Harvey (op.cit)ao analisar o processo de construção da hegemonia norte-americana.As contradições e conflitos de classes são novamente transmutadas como ideário de preservação do meio ambiente para as gerações futuras.Os conflitos de apropriação das riquezas naturais são transformadoscom a tecnologia informacional, com o poder de conhecimento técnico,com a agenda ambiental transformando-se em agenda política,especialmente a agenda política do meio ambiente onde não há classessociais, território, conflitos, contradições.

O desenvolvimento como progresso produz sempre novasmercadorias, consome força de trabalho, matérias-primas,energia, compromete o ambiente, dilapida os elementos danatureza, provoca poluição, altera o uso do solo, insere o mundono fetiche das contas, com a tentativa de ocultar o espaço ediminuir a importância dos Geógrafos.16 Para mostrar a importânciado espaço, da Geografia é necessário compreender acomplexidade do mundo atual, o que não é uma tarefa fácil.

15 Veja-se Rodrigues, Arlete Moysés, 2004.16 A Geografia ficou “subalterna” das ciências dominantes. Além da divisão social

e territorial do trabalho, é importante também considerar a divisão técnica dotrabalho entre as diferentes categorias profissionais. A problemática ambientalmostra a importância da Geografia, e cabe aos Geógrafos não se intimidarpelas tentativas discursivas e não aceitar a subalternidade.

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Os deslocamentos dos discursos dificultam a análise dasrelações entre sociedade e natureza. Coloca, em primeiro plano,o desenvolvimento sustentável como meta para um futuro.

Um outro ideário para o desenvolvimento é apontado porAmartya Sen (2002) que afirma que o desenvolvimento pode servisto como um processo de expansão das liberdades reais que aspessoas desfrutam. A sociedade sustentável é um lema propostopelas ONGs e movimentos sociais em 1992. Pensar não ocupaespaço, não polui a natureza, utiliza energia dos alimentos etc.,mas não necessariamente com tantas máquinas, motores emercadorias. Sem pensar não há liberdade.

Segundo Amartya Sen, há diversos condicionantes para pensaresse desenvolvimento como liberdade: acesso à saúde, à educação, aolazer, à cultura, à informação, ao conhecimento. Significa a remoçãodas fontes de privação: remover a pobreza econômica, que rouba daspessoas a liberdade de saciar a fome, de vestir-se, de morar. A remoçãodas fontes de privação implica, necessariamente, a retomada daimportância do espaço, do território.

A liberdade, para o autor citado, envolve tanto osprocessos que permitem a liberdade de ações e decisões comoas oportunidades reais que as pessoas têm, dadas as suascircunstâncias pessoais, sociais, locais, regionais, nacionais. Essesprocessos não ocorrem no espaço sideral, mas no território, noespaço produto e condição da ação societária transformadora elibertadora que tem como meta o desenvolvimento comoliberdade, a sociedade sustentável.

Parafraseando Neil Smith17, que aponta as dificuldades parase contrapor aos discursos do “século americano”, no períodode construção da hegemonia norte-americana, indagamos se seriapossível negar a importância de pensar nas gerações futuras. Masao mesmo tempo como pensar nas gerações futuras, se a geração

17 Smith, Neil in Harvey, David, 2005.

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presente não tem participação na apropriação das riquezas? Emque lugar, em que território, em que espaço, em que paisagem,estará a geração futura? Esta é uma questão vital para quepossamos debater o espaço, o território, sua fundamentalimportância para compreender o mundo presente.

Pensar o espaço com categorias de análise que mostrem ascontradições e conflitos permite considerar as liberdades dos indivíduoscomo aspectos constitutivos básicos para compreender a construção damatriz discursiva que responsabiliza todas as classes sociais peladilapidação das riquezas naturais, que torna o território ainda maisabstrato na idéia da biosfera como bem comum, que oculta a importânciado espaço para a reprodução ampliada do capital.

Como tornar o espaço produto – o espaço segregado – emespaço condição de mudança? Pensar no ambiente, nodesenvolvimento, significa, a meu ver, analisar o espaço produto,o espaço segregado (lugares, locais, regiões, onde se concentramos que não têm acesso ao conhecimento, à liberdade, à reproduçãoadequada da vida), interferir neles, como condição de superação enão apenas como condição de permanência da pobreza e exclusão.

Enfim, compreender o ambiente em seu significado esignificância é tentar compreender as relações societárias, asrelações da sociedade com a natureza, desenvolver a capacidadede pensar, o desenvolvimento como liberdade, pode trazer àtona, com sua plenitude, a importância do espaço, do território,do lugar e outras categorias analíticas da Geografia.

Pensamos que os desafios de compreender como se tornasenso comum falar em desenvolvimento sustentável,sustentabilidade, na garantia de vida das gerações futuras, nabiosfera como bem comum só poderão ser transpostos se nós,Geógrafos, nos propusermos a debater algumas questõesfundamentais do mundo contemporâneo. Este é o objetivo dasquestões apresentadas neste texto.

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O ORDENAMENTO TERRITORIAL CAPITALISTA E AESPACIALIDADE BRASILEIRA ATUAL: UMAINTRODUÇÃO AO DEBATE DA RELAÇÃO ENTREFORMAÇÃO SOCIOESPACIAL E BLOCO HISTÓRICO

THE CAPITALIST TERRITORIAL ARRANGEMENT AND THECONTEMPORARY BRAZILIAN SPATIALITY: AN INTRODUCTIONTO THE DEBATE CONCERNING THE RELATION BETWEENSOCIOSPATIAL FORMATION AND HISTORICAL BLOCK

William Rosa Alves1

RESUMO

Parte-se da hipótese de que, desde as mudanças parciaisno modo de regulação da formação socioespacial brasileira (coma eleição de Collor de Mello para Presidente), forma-se um blocohistórico (no sentido gramsciano) que avançou para uma quase-hegemonia no Brasil. Considerando-se que as repercussões detal processo na dimensão espacial-territorial ainda não têm sidoanalisadas e refletidas o suficiente pela Geografia Brasileira aonível do entendimento, pretende-se demonstrar, por ocasião dagovernança conseguida por Luís Inácio Lula da Silva, aspermanências e mudanças recentes na espacialidade brasileira.

Palavras-chave: Brasil: espacialidades; Brasil: formaçãosocioespacial; Brasil: hegemonia; Brasil: movimentos sociais.

1 Professor de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG;Estudante de doutorado em Geografia da Universidade Federal Fluminense– UFF; Coordenador de Assuntos Urbanos e Meio Ambiente da Associaçãodos Geógrafos Brasileiros – Seção Local de Belo Horizonte – AGB-SLBH.

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ABSTRACTThis paper starts from the hypothesis that, since some partial

changes occurred in the way of regulation of the Brazilian sociospatialformation (with the election of Collor de Mello for President), ahistorical block was formed (in the gramscian sense), which attaineda quasi hegemony in Brazil. Considering that the repercussions ofsuch process in the spatial-territorial dimension havent yet beensufficiently analysed and reflected upon by Brazilian Geography, atthe level of its understanding, this paper intends to show, in theoccasion of the govern of Luís Inácio Lula da Silva, what remainedthe same and what was recently changed in Brazilian spatiality.

Keywords: Brazil: spatialities; Brazil: sociospatialformation; Brazil: hegemony; Brazil: social movements.

Ao Thiers e à Ruth, geógrafos em formação sublimada em 2006

“O que é o que é?São sete mortos esticados

E cinco vivos passandoOs vivos estão calados

E os mortos estão cantando...”(Adivinha cantada em moda de viola no interior de

Minas Gerais desde as calendas do século XX)

PRÓLOGO E INTRODUÇÃO

A título de provocação, relato mui brevemente um episódioque nos chama a pensar sobre o que se vive como geógrafas(os) eprofessora(e)s de Geografia: uma amiga professora, enquantogestante, instintivamente rumava às geladeiras em busca de algoque nunca descobriu por si própria. Olhava o aparelho com a porta

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aberta por vários minutos e, com a consciência de tal perplexidade,irritava-se e chorava. Foi assim até que uma amiga comentou que,quando grávida, chupava gelo compulsivamente. Foi o suficientepara a professora acorrer com freqüência aos refrigeradores para“descontar o tempo perdido” sem o seu “delicioso” gelo. Superouassim alguns dos vários períodos de depressão emocional.

A provocação acima nos serve para iniciar ou continuar apensar sobre os desencontros entre a Geografia e as contradiçõesentre a potência do mundo contemporâneo – fase que chamamosde “urbanização crítica”2– e a mundialização da miséria como relaçãosocioespacial3 fundamental e extensiva. Diante de um objetomoderno – a geladeira –, alguém de nós – chamadas/os pela“Geografia Crítica” a contribuir para a compreensão da realidadepor meio da categoria espaço – já não percebe – e assim muitomenos pensa e entende – sua própria amplitude humana por meiodo sensório. É uma evidência da ausência do sensível – no sentidodinâmico e projetivo, utópico, enfim. Propomos à Geografia umaanálise das lacunas e opacidades que impedem um conhecimento

2 Expressão construída por Henri Lefebvre (1999, em esp. cap. 1) para exprimira idéia de que quanto mais esta sociedade produzir – coisas – mais ela segregaráas possibilidades de apropriação. Amélia Luisa Damiani (2000, em esp. p. 28)explica-a como “pura negatividade: o trabalho como miséria absoluta”.

3 Na Geografia Brasileira, até onde chegamos, mais contribuíram para a elaboraçãoda idéia de formação socioespacial Milton Santos (1977), Ariovaldo Umbelino deOliveira (1988) e Ruy Moreira (1994); esses tensionaram o binômio Tempo x Espaçonos termos positivista kantiano e buscaram desenvolver referentes teórico-conceituais mais íntegros a fim de corresponder à inteireza e sincronicidade domundo contemporâneo. Quanto ao primeiro geógrafo, entre os muitos comentáriosencontra-se no exame de Anselmo Alfredo (2005) uma análise mais próxima daidéia de movimento – íntegro nalgum sentido, embora não o realize em absoluto, enão somente como soma dos fluxos mostrados pelas digressões parciais. Aconcretização de abstração da formação socioespacial é, grosso modo, aespacialidade, temporal, histórica, correspondente aos conteúdos presentessomados aos virtuais da formação social, ou seja, um projeto que nega o presente– não para eliminá-lo, mas selecionar dele elementos que reafirmem tática eestrategicamente um projeto, mesmo que não-esclarecido (Milton Santos, 1978).

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efetivo do(s) movimento(s) que nos atingem, impelem e aprisionamrumo a uma unidimensionalidade alienada e alienante como produtoresde saberes e fazeres a fim de superação dos limites por ora apresentados.

Do debate da Geografia na formação socioespacial francesaque viu e sentiu as “barricadas do desejo” no maio de 1968, até os diasde hoje considera-se como contribuição fundamental a discussão teóricada totalidade como categoria a ser explorada e desvendada em prolda compreensão do “mundo moderno”. Quanto aos desdobramentosde tal episódio, Ruy Moreira (1992) relata o período de 1978 a 1988como o de maior transformação – chamada desde então de “renovação”– da Geografia Brasileira (a irrupção dos presentes ao 3º Encontro Nacionalde Geógrafos em Fortaleza), e indica as fases e os seus respectivoselementos temáticos que questionaram efusivamente o compromissoda institucionalidade da Geografia por aqui praticada. Selecionamosentre as idéias de tal artigo a perspectiva de desenvolvimento deconceitos que propiciassem diálogos e práticas que relacionassem, comoespacialidade e territorialidade, a formação socioespacial brasileiracom a formação mundial(izada). O autor já empunhava a necessáriaconsideração da escala a partir dos escritos de Yves Lacoste e doespaço como Henri Lefebvre e Milton Santos – cada qual à sua maneira– analisavam, e sua gana por uma “teoria transparente” permanececomo requisito a uma possibilidade de intervenção, por meio deuma – agora – Geografia Brasileira, a fim de emancipação semconstrangimentos de qualquer ordem.

Naquele momento, parte das elaborações da Geografia por aquidesenvolvida contrapunha-se às representações da formaçãosocioespacial da integração passiva à ordem mundial mercantil pormeio do crescimento econômico sem a contrapartida do“desenvolvimento social” – como alertava desde a crise do imperialismocapitalista – revelada com a Segunda Guerra Mundial – umaintelectualidade significada com Caio Prado Júnior, Celso Furtado,Florestan Fernandes e tantas e tantos com gana de brasilidade autônoma,soberana e emancipatória. Comparando-se com a plêiade que seapresenta atualmente como “Geografia Brasileira”, a primeira impressão

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é que há um crescimento e diversificação notáveis da disciplina, tantoem termos das temáticas assumidamente “internas”, como as interfaces– ditas multi, inter e transdisciplinares – nos envolvimentos com osdemais campos disciplinares científicos institucionalizados, iniciativase projetos dos chamados “movimentos sociais”4e mesmo a coalizão degovernança autodita “democrático-popular” que se apresenta nas váriasesferas da atuação do Estado no sentido estrito – as instituiçõesoficiais – e amplo – a sociedade civil organizada5. Este texto

4 Considera-se que aí cabem movimentos que na sua origem empunharam perspectivadistinta do sentido geral de docilidade frente às contradições geradas pelo própriodesenvolvimento do capital na formação socioespacial brasileira, mesmo que deforma relativa em razão de suas particularidades – como os populares, os sindicaisde trabalhadores, os de “minorias” etc. A expressão, a nosso ver, carece ainda hojede densidade conceitual, pois que o adjetivo “social” a qualquer movimento emgeral pressupõe uma perspectiva teleológica ampla e profunda de transformaçãosocial, que quase sempre não se encontra na própria fala dos protagonistas. Assim,acompanhamos a vertente teórica de Eder Sader ([1988] 1995), que se não antecipaconteúdo às práticas dos agentes investigados e as exacerba em nome de umahistória heróica, não as reduz às contingências de sua fundação. A partir da idéia de“configurações sociais”, o autor reconhece em seus fazeres um “sentido novo”reconhecido pelos próprios em razão das pequenas mas valiosas conquistasnum cotidiano amesquinhado por uma urbanização-metropolização voltadospara a apropriação privada dos meios de vida. Foi concreta a articulação daslutas, a confluência das reivindicações e a integração das formas e conteúdosde cidade e urbano – por vezes imaginada até como país e nação – que, aí sim,os consistiram como movimentos sociais.

5 “Tanto em Marx como em Gramsci a sociedade civil – e não mais o Estado, como emHegel – representa o momento ativo e positivo do desenvolvimento histórico... [eem Marx] esse momento ativo é estrutural, enquanto em Gramsci é superestrutura”(Norberto Bobbio, O conceito de sociedade civil, Trad. Carlos Nelson Coutinho, Riode Janeiro, Graal, 1982, p. 33, citado em Marco Aurélio Nogueira, 2000/2001, nota5, p. 121). Mas o próprio Nogueira alerta para uma relação dialética em que aformação da sociedade civil pode tanto contribuir para a organização do povo a fimde protegê-lo da negação de sua superação como explorado-dominado, como favorecea pretensão de uma classe em converter-se no próprio Estado (p. 121). MiguelAbensour (1998) avança quando acompanha o alerta marxiano para o risco de asociedade civil aproximar-se da anatomia da ação cilvilizatória da burguesia, queinstitui a simbiose entre Estado e mercado e, no limite, um totalitarismo comfachada de “democracia”, a “democracia burguesa”.

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pretende indicar alguns eixos de reflexão sobre osfundamentos da espacialidade-territorialidade que no Brasildesafiam a perspectiva de contribuição ao entendimentodo(s) sentido(s) da reprodução social – e socioespacial –por ora mais próxima da hegemonia, a reiterar a permanenteseparação entre a potência de produzir objetos-mercadoriase as possibilidades de apropriação e produção de humanidade.Mais precisamente, prioriza a reflexão sobre o ordenamentoterritorial a que estamos submetidos na espacialidadecontemporânea brasileira, considerando a hipótese de queum campo de mobilização oriundo e insistente das lutaspor uma territorialidade livre, ruma para a colaboração coma aceleração, reverberando assim uma perspectiva redentorada classe-que-vive-da-venda-do-próprio-trabalho6 pormeios das formas e do sentido próprio da modernizaçãocapitalista: o crescimento – cada vez mais centrado nacirculação – do próprio capital, como se somente através deuma distribuição das estreitas formas vigentes da riqueza sepossa ampliar as possibilidades de humanidade entre nós.Trata-se da constituição e instituição contemporânea de

6 A partir e com Ricardo Antunes (2000, p. 101 e ss.), propõe-se o conceito de“classe-que-vive-da-venda-do-próprio-trabalho”, pois que a totalização ehipostasia do trabalho no contexto da mundialização do capital implica emexpansão e heterogeneização das subsunções formal e real à totalidade dasuperfície do planeta e todos os momentos e tempos da vida dos sereshumanos, fato que até aprofunda, através da mercantilização das dimensõesda vida – nunca absolutamente – o domínio do trabalho-do-outro por parcelarestrita da humanidade – a classe proprietária. O autor indica que a expressãoé mais abrangente que a “classe trabalhadora” (de Karl Marx) e assim tentaatualizá-la. A nosso ver é deveras mais consistente para o período atual damodernização crítica, não só porque contempla as formas que não seapresentam como trabalho manual direto, operário fabril ou agrícola, maspor que se afirma numa locução verbal (“que-vive-da-venda-...”) e não deem uma adjetivação (“trabalhadora”), que no chamado “mundo ocidental”,se instituiu como senso comum moral, de “trabalhador(a) assíduo e honesto”.

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um bloco histórico7, algo inédito na formação socioespacialbrasileira e que requer, por parte da Geografia, atenção que podecontribuir para o entendimento do sentido – significado e tendênciascom potências e limites – que a espacialidade brasileira atual assumeou pode assumir nas querências de uma efetiva transformação social.

EXPRESSÕES ATUAIS E FUNDAMENTOS HISTÓRICOSDA FORMAÇÃO SOCIOESPACIAL BRASILEIRA

A formação socioespacial brasileira vive o aprofundamentogradativo – cuja exposição midiática é extremamente seletiva –das contradições que constituem o momento em que a produçãode mercadorias amplia-se sem aparentemente comprometer suascondições de permanência ou crescimento. Ao mesmo tempoem que o crescimento dos volumes e valores monetários daprodução e da reprodução do dinheiro aparecem,respectivamente, como recordes das exportações sem diminuiçãodo consumo pelo mercado interno, e como crescimentosignificativo da rentabilidade das maiores instituições financeiras– em especial os bancos de varejo –, é notória a precarização

7 A expressão é elaborada de forma mais conceitual por Gramsci ([1955] 1981,p. 31-63), que ao discutir os traços mais permanentes da Filosofia e daHistória presentes no debate do campo do Materialismo Histórico-Dialético,infere seu descolamento com o mundo real e assim tornarem-se justificaçãoda exploração-dominação. Na perspectiva de construir um conhecimentopopular – e suas ações genuínas correspondentes – rumo à superação dosenso comum pragmático, Gramsci explora questões particulares transversais– religião, individualismo, ciência etc. – para encontrar, via concretude dascontradições vigentes nas formações econômico-sociais debatidas pelos“filósofos materialistas”, um fundamento real que dá coerência – ordem eeficácia – ao modo de produção capitalista: o bloco histórico. Assim, a expressãosignifica uma integridade e dialética entre a “infra-estrutura” e a “super-estrutura” a ponto da “inversão da práxis” (p.52), o que para nós pode significaruma chave para reflexão sobre as contradições teoria-práxis do campo“democrático-popular” expressas mais amplamente no governo Lula.

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das condições de trabalho e intertrabalho8 para a maioria dequem vive por aqui como semiproprietário ou não-proprietáriodo além de si mesmo – sua força de trabalho. Se pululam falas dainstabilidade e fraqueza do crescimento econômico medido peloProduto Interno Bruto (PIB), por outro lado observamos que nãose interrompeu um modelo de reprodução social que acirra adesigualdade em quaisquer termos que se considere9. Os debatesatuais quanto às orientações do governo de Luis Inácio Lula da

8 Acompanhando Ricardo Antunes (2000), o intertrabalho é a articulação entreo trabalho concreto (produtor dos objetos de valor de uso) e o trabalhoabstrato (produtor dos objetos de valor de troca, as mercadorias). Se hácomo distingui-los, tampouco há como separá-los, pois como atividadepropriamente humana o trabalho traz ao mundo conteúdo que interfere navida humana. Com a modernização, cada vez mais as atividades repercutem-se tendentes a um sistema, a totalidade, que não se completa nunca. Aapropriação do trabalho – sentido genérico – é também cada vez maiscomplexa, porque suas formas se multiplicam e assim geram e desenvolvemníveis cuja realização mercantil varia, mas sempre com algum grau decomposição pró-capital: a mesma atividade pode, no decorrer de um período,assumir uma forma tipicamente capitalista e em outro momento não. Umexemplo singelo é a sazonalidade do trabalho agrícola de semicamponeses,que podem ser requisitados por empresas da agroindústria a qualquermomento do ano, dependendo da demanda do mercado capitalista de gênerosagrícolas. Assim, em alguns anos na mesma estação climática ocorre evasãorelativa de homens jovens trabalhando, pois como mais produtivos erentáveis, e assim considerados mais competitivos no trabalho abstrato,deixam as lavouras rústicas das suas propriedades familiares para asmulheres, as/os sexagenárias/os e até as crianças e adolescentes.

9 A partir da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD) da FundaçãoInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pesquisadoras/esconfluem para a revelação de um ciclo de acirramento da desigualdadesocioeconômica no Brasil até 2002, seguido de algum arrefecimento desde2003. Porém, a forma predominante de tal reversão relativa não tem sido oemprego formal, mas os programas governamentais como o Bolsa-Família,o que é visto por quase todas/os as/os analistas como forma insuficiente parauma reversão da concentração das riquezas nas suas diversas formas de efetivaapropriação. (Cf. “Pobres se distanciam de ricos e dependem mais do governo”,Folha de São Paulo. Brasil. São Paulo, 25 de dezembro de 2005).

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Silva (desde 2003 e com a possibilidade de reeleição neste 2006)pouco colocam em questão mais do que o próprio sentidocapitalista de uma via brasileira: mesmo os “desenvolvimentistas”,entre os quais alguns arautos de uma “soberania nacional” nãotrazem à baila as contradições permanentes de tal formação.Assim – e sobretudo na mass media, a “grande imprensa” – sãoapresentados de um lado ou de outro quaisquer indicadores querevelem “teses” quanto ao desempenho e projeto econômico-social. Em tal contexto, é relevante “Geografizar” o que estáoculto no debate: a dimensão espacial do sentido que temreiterado os fundamentos dessa modernização, que a nosso verinstituiu a “cidadania competitiva”.

Por isto que a referência conceitual da formaçãosocioespacial e da espacialidade é a que nos embasa a fim deuma chegada a uma problematização atual da GeografiaBrasileira, pois que se constituem em expressões contínuas do(s)movimento(s) do mundo; são unidade na diversidade e unidadeda diversidade; constituem particularidade(s) e não singularidadeversus absoluto em separado, pois que são mediação(ões) entreo singular – quase sempre apresentado pela Geografia como“local” – e o total – “global” ou “mundial”, a depender do fenômenoobjetivado. A formação socioespacial e a espacialidade não sãotransparentes quanto ao movimento, pois que sendo este complexoe contraditório, sua representação jamais é instantânea. Daí seobservar o tempo como mediação do próprio espaço, constituindoenfim a formação socioespacial – sentido geral – e espacialidade –momentos e fases não-etapistas, pois o processo não é linear.

No caso do Brasil, a sucessão das espacialidades foi impostacomo território colonial virtualmente desde antes do dito“descobrimento” – pois que o arranjo da propriedade conseguidopela Monarquia Portuguesa em seu expansionismo preemptivo(preventivo) evitou uma disputa antagônica entre burguesiamercantil nascente e proprietários fundiários, destrutiva daformação nacional como vivido na França, Inglaterra, Itália,

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Estados Unidos da América e outros exemplos de revoluçãoburguesa (Luiz Felipe de Alencastro, 1998, p. 7). Daquelaformação da propriedade dos meios de produção e suasdecorrentes formas da apropriação dos meios de vida – entreeles a terra no sentido territorial –, não se alterou a formação deprevalência do trabalho manual por meio da escravidão e deuma industrialização que aprisionou, ideológica e praticamente,o trabalho à propriedade no nível do território: Colônia e “PeríodoIndependente” – Império e “Repúblicas” – mantiveram o domínioda propriedade no nível do constrangimento das formas modernasde socialização, até das relações tipicamente capitalistas quemantém o mando sobre o outro – considerado humano só nos discursosda figuração formal “republicana” e não no centro e/ou conjuntodas práticas sociais (José de Souza Martins, 2000).

Para as pretensões deste texto, consideraremos a partirmais estritamente a espacialidade da mudança parcial do modode regulação da sociedade brasileira para o modelo comumentechamado de “neoliberal”10, período inaugurado pelo governoCollor de Mello-Itamar Franco (1990-1993) como presidentes doBrasil – o primeiro renunciou em razão da sua própria consciênciaquanto ao forte risco de impedimento constitucional. Antes detal recorte se restringir a um evento de Estado-Nação, advémde uma acepção em que a idéia de “regulação” não se restringeà administração econômico-política das atividades em umaparcela da sociedade, ao gosto da “Escola Regulacionista”francesa. Acompanhamos, então, Francisco de Oliveira (1998)quando afirma que “Em 1989, todo o arcabouço da ‘revolução

10 Marilena Chauí (1999) apresenta um histórico do imaginário chamado de“neoliberalismo” e Perry Anderson (1995) discute seus efeitos nasespacialidades continentais e no mundo com um todo, com descompassos eriscos de totalização de uma imagem de mundo que se realiza porque selegitima como a única possibilidade; trata-se de mais uma ideologia nonível da mimésis – uma mediação condutora –, que corrói as práxisintencionadas na poiésis, uma relação livre entre seres humanos e natureza(Lefebvre, ([1965] 1967).

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passiva’ e das contradições não resolvidas quase foi abaixo: umdevastador terremoto... aparecia na expressão dos 45% de votosconquistados por Luís Inácio Lula da Silva na eleição de 89...Aprendida a lição [pelas classes dominantes], o amálgama deinteresses divergentes no bloco dominante e a fusão entreeconomia e política, voltou a funcionar com a eleição deFernando Henrique Cardoso [1994]... A situação sugere, pois,hegemonia.” Porém, para além da constatação de continuidade,o autor chama a atenção para o “desmantelamento do campo designificados” no Brasil, em que o “neoliberalismo”, por meio dadestruição dos direitos, agora contabilizados como “custo Brasil”,nega a presença minimamente subjetiva, participante das classessubalternas, e assim realiza o “apartheid total” (p. 200 e ss.,grifos do autor, apontamentos meus).

Consideramos, portanto, que dois fluxos se polarizaramdesde as impossibilidades do pacto político estatista-desenvolvimentista desde o advento da república – o Golpe queinstituiu a Ditadura de Execução Policial-Militar de 1964: 1) àdireita, as organizações mercantis insistiram na “aliança doatraso”, em que os proprietários fundiários chamados de“fazendeiros” alcançaram legitimidade e cumplicidade com asclasses médias urbanas11 a ponto de evitar a distribuição dapropriedade da terra por meio da Reforma Agrária (José de SouzaMartins, 1994); 2) à esquerda, parte significativa da “oposição”as organizações de inspiração política variada – desde as“comunitaristas cristãs” até as reverberantes de versões domaterialismo histórico-dialético (chamadas comumente de“marxistas”), todas as críticas do capitalismo em razão da

11 Compõe-se majoritariamente dos funcionários públicos civis e militares,comerciantes, profissionais liberais etc., uma acepção mais enquantomediação sociopolítica que estritamente socioeconômica, medida peloschamados “rendimentos monetários”: trata-se de capacidade de fazer valerseus interesses na intervenção do Estado federativo brasileiro. Como agentesda dimensão sociopolítica.

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individualização prevalecente nas relações sociais –reivindicavam desde os meios institucionais uma cotidianidadeidentificada com a democracia12, o que implicava na mudançanas normas de decisão a partir do Estado, portanto, comeleições dos representantes legislativos e agentes decisóriosmores do Poder Executivo.

Se a unidade político-eleitoral se manteve enquanto talconfluência não alcançou a Presidência da República, a partir de2003, o desempenho efetivo e a captura ideológica dodesenvolvimentismo para os axiomas da doutrina “crescimentoeconômico” de uma coalizão liderada por Luís Inácio Lula daSilva eleito para o maior posto de comando formal do país,implicou na aparição de falas descontentes e atédesqualificatórias, mesmo dos agentes reconhecidos como“esquerda”. A fim de iniciar uma reflexão mais ampla sobre adimensão mais ampla do ordenamento territorial nadeterminação – não-determininista – da vida de quem poraqui habita, selecionamos as posições mais contundentes sobrea espacialidade brasileira por ora existente, considerando doismomentos: o das expectativas quanto às mudançaspreconizadas pela coalizão eleitoral identificada à “esquerda”– as candidaturas de Luís Inácio Lula da Silva à presidência daRepública – e colaboradores acadêmicos da GeografiaBrasileira, antes das eleições de 2002; e o segundo momentocom a perspectiva mais nítida da eleição de Lula e assimdesde a “Carta aos brasileiros” até alguns resultados vistos nadinâmica da formação socioespacial em estudo.

12 A democracia, como mo(vi)mento, é o desaparecimento do Estado, não nosentido da sua substituição por uma aristocracia, mas rumo a um êxtase decontínua (re)criação das possibilidades da vida, pois que as condiçõesproduzidas pelos seres humanos podem ser apropriadas por quaisquer sereshumanos, sem hierarquias, sem seletividade, sem competição (MiguelAbensour, [1997] 1998, p. 20 e ss.). Significa liberdade (ibid., p. 71 e ss.).

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ALGUNS ELEMENTOS DO DEBATE OCULTO SOBRE AESPACIALIDADE BRASILEIRA ATUAL

Dentre as diversas posições que consideram a espacialidadebrasileira – mesmo que esta apresentada em outros termos –,iniciamos pela coordenada por César Benjamin et al. (1998),que envolve várias autoras/es significativos nas análises,proposições e mesmo em atuação concreta na história dasposições à esquerda entre nós13 . A principal característica daespacialidade brasileira desde 1990 é a fragmentação, iniciadadesde a fundação da colônia, mas recrudescida com atransnacionalização da indústria maquinofatureira com sede nospaíses “centrais” do mundo capitalista: Estados Unidos da Américaou nos países da Europa Ocidental. Tal “configuração espacial”carece de “reatualização da questão agrária” e da “imperfeitaconstelação de cidades”, e assim padece da “concentração derenda e riqueza” e do “envelhecimento da estrutura”. Os autoresidentificam alguma potência de crescimento econômico acontribuir para a superação da problemática da “exclusão” –dita, em genérico na Introdução do livro, como o maior problemanacional, porque contagiante de todo o país. Coerentes comuma visão periodizada em que sempre o cume das ações dasociedade resultou na negação de um “povo de cidadãos”, os

13 Além do próprio coordenador, figuram entre os autores do livro Ari JoséAlberti, Emir Sader, João Pedro Stédile, José Albino, Lúcia Camini, LuisBassegio, Luís Eduardo Greenhalgh, Plínio de Arruda Sampaio, ReinaldoGonçalves, Tânia Bacelar de Araújo. Alguns/mas desses/as foramparlamentares estaduais e federais e depois – o livro foi escrito no calor dacampanha eleitoral de 1998 que legou a Fernando Henrique Cardoso umsegundo consecutivo mandato presidencial – até ocuparam cargos em equipesde trabalhos de programa de governo Lula ou foram consultores ou próceresde agências de desenvolvimento regional ou ministérios do mesmo. NaApresentação do livro há referência à origem do livro em encontrospreparatórios estaduais e uma reunião nacional da “Consulta Popular” –movimento criado em 1997 e que existe até os dias de hoje.

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autores cobram um Estado “que expresse uma ordenação jurídico-política legítima e eficaz”. A sempre possível vantagem do enormeterritório unificado foi prejudicada pela “difícil e tardia construção daidentidade nacional”, o que nos legou enfim uma unidade somenteformal e a “ausência de um projeto popular para o Brasil”. Naquele“momento crítico” (1998), ainda assim os autores diziam das vantagens– em especial a “população jovem, com presença marcante de pessoashabituadas à produção moderna... vasto espaço geográfico, recheadode recursos... centros internos geradores de dinamismo... ”, enfim, “Aestrutura econômica que emergiu das transformações operadas no ciclolongo de 1930-80 permite... a abertura de caminhos novos... não setrata de retornar à trajetória anterior, nem de, no outro extremo,negá-la – mas sim de desdobrá-la, de acordo com novas condiçõeslocais e internacionais”. A continuidade da crítica às elites chega a umasíntese sobre a espacialidade requerida para a “opção brasileira”proposta: “só retomaremos um crescimento acelerado se adotarmosuma estratégia que seja homogeneizadora dos níveis de produtividadee de renda presentes em nossa sociedade” [grifos dos autores]. Apartir de tal corolário, o livro achega até a algumas consideraçõeseconômicas de talhe setorial, o que revela sua limitação na perspectivade um entendimento da relação entre a espacialidade e a formaçãosocioespacial como um todo, uma vez que as considerações sobre osfundamentos políticos para uma sociedade autônoma, uma naçãosoberana e uma realização socialista – nos termos apresentados no livro– não vislumbraram claramente a amplitude e a profundidade doordenamento territorial contínuo.

Uma segunda posição, vista a partir de Milton Santos & MaríaLaura Silveira (2001), pode até ser vista como em parte contínua àvista acima – até porque os autores agradecem ao geógrafo agora emfoco –, se considerarmos a dimensão técnica do trabalho como centraldo sentido da formação socioespacial. Mais preciso do que o anteriorem termos teórico-metodológicos – já inicia assumindo um “caminhode método” para discorrer sobre um objeto tão amplo como o Brasil –os autores se centram na “constituição do território, a partir dos seus

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usos, do seu movimento conjunto e do de suas partes, reconhecendo asrespectivas peculiaridades”; desdobram o “esforço central deoperacionalizar geograficamente a idéia de sistemas técnicos,entendidos como objetos e também como formas de fazer e de regular”,a fim de encontrar os sentidos da sociedade a cada momento, emsuma, para elaborar uma teoria do Brasil a partir do território – utilizando-se da categoria formação socioespacial. A espacialidade começa aaparecer na idéia de uso do território, definido desde a “implantaçãoda infra-estrutura... [os] sistemas de engenharia, mas também pelodinamismo da economia e da sociedade”. Nesse nível do discurso, oselementos indicados para a espacialidade – como conceito – sãoapresentados como didaticamente separados, mas a idéia de “novomeio geográfico” aparece logo em seguida para observar o fenômenoda “fluidez do território, hoje balizada por um processo de aceleração”.Tal assertiva nos é importante para considerarmos a espacialidade atual– pós-1990, correspondente ao período comumente chamado de“neoliberal” – constitui não somente um suporte, mas um veículo daspossibilidades de transformação do sentido da formação socioespacialcomo um todo – o que não iguala suas partes entre si e forma umahomogeneidade como desejado na obra anteriormente analisada.Provoca à reflexão também quando afirma que “cada momento dahistória tende a produzir sua ordem espacial” – considerando o espaçocomo “um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas deações” e procura sintetizá-los para compor uma síntese que observe adinâmica da formação socioespacial: ao dizer do “uso competitivo doterritório” e da “guerra global entre lugares”, os autores demonstramalgo das contradições do espaço14, como a “circulação

14 A expressão foi cunhada e desenvolvida por Henri Lefebvre ([1972], inéd.),ao discutir exemplos em que a própria rentabilidade das atividadescapitalistas decaem conforme o desenvolvimento da complexidade do espaçocomo totalidade; o que serve para demonstrar que o capitalismo não é umsistema, pois que não se realiza segundo um plano, uma lógica, mas nodesenvolver de estratégias em escalas virtuais e materiais crescentes, atéa mundialização do próprio capital.

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desnecessária”, a “instabilidade do território”, as“especializações alienígenas alienadas”; chegam até “àsdesarticulações resultantes” e às “desvalorizações erevalorizações do território”. Neste ponto, é interessanteconsiderar o território como “uno”, pois que o “seu movimentoé solidário” a algum nível de capital e por isso mesmo “menosvalioso para os homens”. Tal elaboração parece coincidirterritório com a noção “espacialidade” conforme indicamosanteriormente, além de poder significar a polaridade entre as“práticas do neoliberalismo, com sua seletividade maior nadistribuição geográfica dos provedores de bens e serviços,levados pela competitividade... [sua] solidariedadeorganizacional”, e as práticas de “solidariedade orgânica... [que]resulta de uma interdependência entre ações e atores que emanade sua existência no lugar”.

Se por um lado, na obra em foco, Santos & Silveira jáachegam a uma análise da dinâmica concentradora e até podemrevelar elementos da dimensão social da divisão do trabalho –mais complexa, embora não mais importante que a dimensãotécnica –, os interesses concretos na reprodução do espaço naformação socioespacial brasileira são mais explicitados por MiltonSantos (2000, p. 134 e ss.) ao considerar a “metamorfose dasclasses médias”. Se essas se expandem quase ininterruptamentedesde as intervenções estatistas mais contundentes – com o“Estado Novo” de Getúlio Vargas (1937-1945), os “50 anos em 5”de Juscelino Kubitschek de Oliveira, o “JK” (1955-1960) e o“milagre econômico” do “regime militar” (1968-1973) –, vivemuma crise de base econômica que se generaliza para a própriaidentidade nacional (im)posta sempre pelas elites. O “ocaso doprojeto nacional” implicou em limites para a “nação ativa” – asfrações reconhecidas pelo senso comum como produtivas e nãoclassificadas como estorvo ao crescimento econômico – e a“dissolução das ideologias e utopias” deixou a formaçãosocioespacial brasileira à mercê da “aceleração” da história –

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numa concepção cronológica do tempo –, mas a própriacontradição de ter formado uma massa urbano-industrial – nãoestritamente fabril – no contexto de uma “involuçãometropolitana”15 implicou em recusa dos pobres quanto àtendência de apartação quanto aos benefícios mínimos do seupróprio trabalho. Conformou-se assim uma espacialidade em quepraticamente todos – classes médias e pobres – são “deficientescívicos” (Milton Santos, 1999), mas para o autor os “pobres”, atépor sua “integração orgânica com o território” (Milton Santos, 2000;Milton Santos, Odette Seabra, Mônica Carvalho & José Leite, 2000),são sujeitos em potência que já constituem uma base que, se quaseinvisível por agora – e a Geografia, cobra o mesmo, deve não sóconferir visibilidade ao que quase não aparece, mas cumpliciar-secom formas já existentes, visíveis portanto –, força o todo à ruptura– contra o totalitarismo da globalização, o globaritarismo.

Pelo exposto, encontramos algumas condições teóricaspara introduzir o debate sobre o momento atual – lembramos ahipótese central deste trabalho –, em que a “esperança” – anseioslegítimos porque relativos à própria sobrevivência, nos níveisindividual, familiar e territorial mais estrito – da maioria dopovo brasileiro conseguiu que sua representação político-eleitoralmais direta, o ícone do “campo democrático-popular”, alçasse,para o período 2003-2006, à Presidência da República e o GovernoFederal. O brilho de tal feito pode ter diluído o debate – maisconvicto para as posições à esquerda em tempos de oposiçãopolítica do que situação eleitoral – sobre o próprio projeto denação, uma vez que a aparente centralidade do governo maisreforçou a imagem fetichista do Estado como provedor-mor daformação social do que esclareceu o desafio de diminuí-lo frentea uma poiésis – e não à mimésis da mercadoria.

15 A expressão tem origens em estudos – sistematizados em Milton Santos (1994)– que revelaram índices de crescimento regional e nacional maiores nos interiorese nas cidades pequenas e de porte médio do que nas metrópoles.

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O TENSIONAMENTO DA ESPACIALIDADE BRASILEIRAATUAL: QUASE-HEGEMONIA?

Chegando à principal questão suscitada na hipótese destetexto – a formação quase-hegemônica de um bloco históricoque congrega bases do projeto da “utopia democrática”confluentes com a vertente tecnoburocrática da “sociedadepolítica” brasileira –, há que se refletir sobre algumascontribuições clássicas do Materialismo Histórico Dialético,considerando-o o terreno e o meio de superação da dicotomiakantiana Tempo x Espaço e assim entender como a formaçãosocioespacial “se movimenta”: qual a (in)suficiência daespacialidade perante a disputa das correntes político-eleitorais– que rumam para constituir e instituir-se como blocos históricosno Brasil pós-1990 – pela hegemonia inédita no país?

Com tais achegas conceituais – ver nota 6 –, podemosentender a “Carta ao Povo Brasileiro”, documento da candidaturade Luís Inácio Lula da Silva em 22 de junho de 2002. Anuncia-seque “o sentimento predominante em todas as classes e em todasas regiões é o de que o atual modelo esgotou-se”, o que revelaa ausência de uma hegemonia política como problema geral dopaís. Daí a candidatura presidencial em foco conclamou uma“vasta coalizão” e uma “ampla negociação nacional” centradasna objetividade de um “crescimento econômico comestabilidade e responsabilidade social”, para o que deveconcorrer uma espacialidade com rigidez interna em termosda gestão da atividade econômica – chamada no texto de“equilíbrio fiscal” e superadora da “vulnerabilidade externa”.Sugere ainda que já se encontravam ali – ao menospotencialmente – as condições para uma competitividade queresgatasse o papel soberano do povo brasileiro. É coerente oapelo ideológico-moral a concluir tal manifesto, chamando“todos que querem o bem do Brasil a se unirem em torno deum programa de mudanças corajosas e responsáveis”.

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Desde então, vê-se um aparente paradoxo nodesenvolvimento da formação socioespacial brasileira: se osimpactos da desconfiança quanto ao governo Lula foram intensose freqüentes nas mass media – chegando ao ponto de pedido doimpedimento presidencial constitucional –, o desempenho daeconomia – medido quase exclusivamente pelo crescimento doPIB – não teve significativa alteração, o que demonstra emprincípio a heteronomia da espacialidade brasileira considerandoos elementos sociopolíticos constituintes – sociedade política esociedade civil. Para os propósitos deste debate, considera-seque ainda vige entre nós, a contraponto da história da coalizãoque se insinuou “democrático-popular” – desde a “Frente BrasilPopular” com Lula candidato a Presidente da República naseleições gerais diretas de 1989, primeiras desde 1960 –, inferimosa instituição da espacialidade do “totalitarismo neoliberal” (Chicode Oliveira, 1999). Assim, nos dias de hoje, os resultadoseconômicos não são de se estranhar quando se investigam comoos fundamentos da espacialidade participam da fase atual daformação socioespacial brasileira; se é consenso a continuidadeda insuficiência do Governo Federal na expansão, atualizaçãoe/ou sofisticação da “infra-estrutura” – a base de espacialidadepara as atividades produtivas –, os exemplos mais contundentessão aqueles referidos à apropriação do nível concreto dadimensão espacial, as territorialidades com seus domínios mais“puros”, privados, ou mediadores, ou os mais complexos eparticipativos dos diversos “públicos” constituintes da formaçãosocial. A classificação básica – sem o arrogo de estabelecer maisuma tipologia – é, por enquanto, crivada entre campo e cidade.16

A conseqüência lógica do paradoxo entre o crescimentodas exportações de gêneros agrícolas in natura ou usinados e a

16 Acompanhamos Marx e Engels ([1845-1846] s.d., p. 20 e ss.) em A ideologiaalemã, quando afirmam a anterioridade e a primazia da “separação” – emverdade, trata-se de uma distinção didática de um conteúdo integrado –entre campo e cidade, entre “trabalho agrícola” e o “industrial e comercial”.

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permanência da carência de alimentos para a maioria doshabitantes do campo brasileiro é a insistência na “Reforma Agrária”como expediente de apropriação da terra como meio de trabalhoe de vida anteposto ao negócio fundiário como componente davalorização capitalista da terra17.

Considerando os questionamentos e elaborações degeógrafos (Ariovaldo Umbelino de Oliveira, 2006; BernardoMançano Fernandes apud in Dafne Melo, 2006), vê-se que a somaentre formação de propriedade por troca mercantil, somada àexpulsão de viventes do campo, a promoção de loteamentoscom fins de produção agrícola – a colonização – e à regularizaçãofundiária institucional superam a distribuição da terra porreconhecimento da necessidade de assentar, em propriedadesque não cumprem sua “função social”, quem está disposto aotrabalho agrícola em terra própria sem depender exclusivamentedas formas pré-capitalistas ou tipicamente capitalistas de empregono campo. Em não havendo apropriação positiva – por meio dadesapropriação de terras “improdutivas” de produzir gênerosagrícolas no patamar do fator produtivo, cuja definição data de1976 – assumida pelo próprio Governo Federal de plantão – o 2ºPlano Nacional de Reforma Agrária –, acrescido do crescimentosignificativo da atividade agrícola puramente mercantil – o“agronegócio” – podemos dizer que a espacialidade brasileira,na particularidade do campo, acompanha o sentido geral deconformação capitalista da formação socioespacial brasileira aonão fazer avançar a Reforma Agrária conforme uma concepção

17 Várias formações socioespaciais já realizaram, mormente na EuropaOcidental – numa forma mais próxima da realização burguesa da expropriaçãodo campesinato, chamada por Marx ([1890] 1996) de “acumulação primitiva”– e na América – em que os Estados Unidos da América tiveram um processode formação mercantil burguesa com a anteposição policial do Estado,enquanto no México houve intervenção estatal iniciada em 1920 já na própriadistribuição de terras. Uma classificação simplificada se encontra em JoãoPedro Stédile & Bernardo Mançano Fernandes (1999, p. 157-163).

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mais afeita aos que ela reivindicam, sobretudo no aspecto daprodutividade social da terra (João Pedro Stédile & BernardoMançano Fernandes, 1999, p. 157 e ss.). Para além deste âmbitotécnico de tal problemática, Carlos Walter Porto Gonçalves (2006,nota 16, p. 12) considera que “todo o latifúndio contribui para aprodução de uma estrutura social injusta”, e assim rechaça aidéia de “latifúndio improdutivo x produtivo” por isto já seencontra na circunscrição ideológica da produção capitalista.Tal posição destoa daquela apresentada por lideranças doMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terras – MST. Ele éexplícito ao defender que a desapropriação de terrasimprodutivas deve contribuir para que “o camponês assentadotenha acesso a capital” (João Pedro Stédile & Bernardo MançanoFernandes, 1999, p. 161), e assim contribui para avaliarmos emparâmetros e termos mais profundos os limites da produtividadecapitalista de uma espacialidade, principalmente quando se pensanuma superação no nível do modo de produção e não só naregulação da formação socioespacial, embora esta implique emfase imprescindível da análise da Geografia.

Tais percalços não demovem o reconhecimento doscontrapontos à valorização do espaço – e da terra – no campobrasileiro, pois observamos que o MST insiste na prevalência dovalor de uso sobre o de troca, algo pouco estudado na própriaGeografia Brasileira18. Considerando a própria consciência da

18 A priorização das práticas de prevalência do valor de uso sobre o de troca équestão por demais polêmica na história das elaborações intelectuais e daspráticas pela socialização dos meios de produção e de vida. A fim da discussãosobre a qualidade da espacialidade brasileira na perspectiva de análise daformação de uma hegemonia, interessa-nos aqui observar a dimensão deapropriação concreta transformadora da propriedade privada rumo a umatotalidade com a redistribuição dos meios de vida, inclusive a terra. Se talfato implica em outra forma que não a da competição capitalista no campo,é importante observar os fundamentos e resultados da “cooperaçãoprodutiva” que o MST desenvolve sistematicamente (João Pedro Stédile &Bernardo Mançano Fernandes 1999, p. 95-121).

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limitação da luta pela terra no campo, o MST sugere a princípios eobjetivos similares de luta pelos meios de vida na cidade (JoãoPedro Stédile & Bernardo Mançano Fernandes, 1999, p. 126 e ss.),fato que nos impele a considerar que a perspectiva da hegemoniaaí já se encontra, ao mesmo tempo que é fundamental perquirir talquestão na dimensão da espacialidade da(s) cidade(s).

Também contra uma concepção de espacialidade – nocontexto da(s) cidade(s) – como “máquina produtiva” do capital,os movimentos sociais “urbanos”19 já pautavam por ocasião daeleição presidencial de 2002 questões e propostas no sentido da(re)distribuição dos meios de vida, traduzidos como elementosconstitutivos de uma presença democrática. Um elementoimportante para pensarmos a regulação específica dasespacialidades “urbanas” brasileiras é o Estatuto da Cidade20,que “estabelece normas de ordem pública e interesse social queregulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo,da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como doequilíbrio ambiental” (Cap. I, Artigo 1º). Mais preciso que o artigo

19 V1 Com relação à concepção de movimentos sociais por aqui burilada, vernota 3. Quanto ao adjetivo “urbano”, o uso mecanicamente associado àespacialidade conhecida como “cidade” – aglomerado de seres humanos densode ocupação e atividades, qualquer que seja o seu tamanho – não deveencobrir que ele se realiza como qualidade das práticas que (des)envolvemas obras sem o destino alienado como produto e mercadoria; ou seja, aprodução está voltada para a humanidade do homem no sentido genérico,sem os constrangimentos da propriedade e suas conseqüências: a escassez,a desigualdade e a competição. “Enfim, o urbano tornar-se-ia o lugar deuma democracia cada vez mais direta, o cidadão-citadino-usuário participandode maneira cada vez mais próxima de todos os momentos da realização. Doque? De uma vida social diferente: de uma sociedade civil fundada não emabstrações, mas no espaço e no tempo tais como ‘vividos’” (Henri Lefebvre,1986, p. 10). Podemos dizer que o verdadeiro urbano é a poiésis (HenriLefebvre, [1965] 1967), a liberdade.

20 Lei Federal – Ordinária, ou seja, de regulamentação e normatização dosartigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 e logo abaixo desta naresolução dos conflitos aí prescritos – nº 10.257, de julho de 2001.

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mencionado, o 2º (Cap. I) aponta o objetivo da lei em “ordenaro pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e dapropriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais...” Éimportante observar aí a escala genérica de consideração do urbano,embora alguns elementos concretos – fundamentalmente apropriedade – podem contribuir para, via precisão das atribuições(Cap. I, Art. 3º), instrumentos (Caps. II e III, Arts. 4º ao 42º), princípiosde gestão (Cap. IV, Arts. 43º ao 45º) e “disposições gerais” (Cap. V,Arts. 46º ao 58º), as ações no campo da sociedade política – cidadaniarepresentada ou delegada aos governantes dos “poderesrepublicanos” – que correspondam aos anseios das frações dasociedade civil reivindicativa de condições concretas para umavida até então representada como mera reprodução da sua forçade trabalho. De fato, nas cartilhas e folhetos do Fórum Nacional daReforma Urbana (FNRU)21, nos anos de 1990 observa-se a transiçãodas reivindicações particularizadas pela “infra-estrutura urbana”– asfalto, saneamento, transporte coletivo, equipamentos desaúde e educação e similares – para uma perspectiva políticasintética, por vezes expressa como “cidadania”22. Numa primeira

21 O FRNU surgiu em 1987 em razão mesma de aprovar uma “plataforma daReforma Urbana” na Constituinte que definiria a Constituição Federal (CF)a ser promulgada – como de fato o foi – em 1988. Como não alcançou nem alegitimidade da Reforma Agrária, ficou para os Projetos de Lei de IniciativaPopular – que devem ter assinatura de ao menos 1% do eleitorado nacional –e para a regulamentação do Cap. II (Da Política Urbana) do Título VII (daOrdem Econômica e Financeira, sic!) da CF, a depender de aprovação pormaioria simples do Congresso Nacional. Os quase 13 anos de demora nadefinição do Estatuto da Cidade – de outubro de 1988 a julho de 2001 –demonstra a insuficiência do processo legislativo para a superação dosinteresses privatistas – mesmo que minoritários no quantitativo eleitoralda formação social brasileira – em torno da terra urbana.

22 Para Jean Rossiaud e Ilse Sheren-Warren (2000, p. 28-9), a cidadania évista na dinâmica desde a crítica refratária à ordem até algum acordo como Estado; sua construção “inclui um processo contínuo de mobilização sociale de busca de ampliação de direitos que se realiza através de momentos dedenúncia, de resistência, de proposta e de negociação”.

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mirada, as experiências e resultados dos movimentos sociais“urbanos” se expressam de forma íntegra no Estatuto da Cidade esugerem, por meio da crítica à(s) espacialidade(s) capitalista – mercantil–, não só alguns avanços rumo a condições mais profícuas à socializaçãodos meios de vida, mas a constituição – por enquanto como potênciano nível da participação e representação, ou seja, dalguma presençadas frações da sociedade civil no Estado – mesma do Direito à Cidadeconforme a publicidade do FNRU (FASE & Fórum Nacional da ReformaUrbana, s.d.). Sem a pretensão de esgotar a complexidade da questãourbana e das suas relações vistas como espacialidade específica –mas não setorial ou sistêmica, pois que particular na unidade daformação socioespacial brasileira –, recorremos à provocação deHenri Lefebvre (1991) quanto à cara expressão grifada acima:

O direito à cidade não pode ser concebido com um simplesdireito de visita ou retorno às cidades tradicionais. Sópode ser concebido como formulado como direito à vidaurbana, transformada, renovada. Pouco importa que otecido urbano encerre em si o campo e aquilo quesobrevive da vida camponesa conquanto que o ‘urbano’,lugar de encontro, prioridade do valor de uso, inscriçãono espaço de um tempo promovido à posição de supremobem entre os bens, encontre sua fase morfológica, suarealização prático-sensível (p. 116-117, grifos do autor).

Acompanhando a ênfase quanto ao valor de uso como critériode uma espacialidade mais avançada rumo à emancipação – comorealização semelhante à Comuna de Paris –, até então não há notíciade apropriação mais ampla e íntegra do Estatuto da Cidade comonível de colaboração tática – muito menos estratégica – entre asfrações demandantes do urbano – na concepção lefèbvrianaco(r)tejada na nota 17 – e o Estado já demonstrado suficientementecomo simbiótico aos interesses privatistas, a compor um sentidomercantil da urbanização-metropolização que se totaliza naformação socioespacial em questão.

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À guisa de concluir este tópico, deixamos a pergunta sobrequal o grau da crítica dos movimentos sociais no campo e nacidade brasileiros quanto à espacialidade existente e a possível,uma vez que os termos da transformação social – sobretudo nochamado “campo democrático-popular” – já carregamconsiderações quanto às qualidades requeridas a uma vidamoderna democrática – ver nota 11. Mas o que dizer daspossibilidades de superação da tendência capitalista – por meioda produtividade crescente do trabalho social – da formaçãosocial, agora acrescida por uma fração significativa do que foiparte crítica da sociedade civil?

GEOGRAFIA E LIBERDADE

Se de um lado já se consideram as elaborações reveladorasda aceleração e transformação do mundo (David Harvey, [1989]1999; Milton Santos, 2000), a teoria crítica deve explicar ainstrumentalização e conseqüente despolitização da(s)espacialidade(s) ao acompanhar o aprofundamento da divisãodo trabalho a fim da expansão capitalista. Entre as(os)pensadoras(es) do Brasil, tem sido consenso que a espacialidadesem hegemonia corresponde a uma formação socioespacial semsoberania, o que não quer dizer que um projeto de hegemoniaheterônoma implica em soberania nacional – pró-Estados Unidosda América, como se iniciou a partir do governo de JK (1955-1960) e parece avançar com os governantes de turno. Ainda nãohá expressões de forças sociopolíticas que alterem os rumosapontados pela reestruturação parcial do modo de regulação apartir de 1990, e assim a análise da constituição e instituição dobloco histórico por ora em consolidação é um enfoque necessárioao entendimento da qualidade e papel da espacialidade brasileiraatual, e assim à disputa do sentido desta formação socioespacialque não seja o da inércia dos “ventos reinantes”.

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Contra a perspectiva da simbiose capitalista – Estado +mercado –, em verdade a destituição da fala autêntica daterritorialidade que ainda não acompanha sincronicamente areprodução mercantil, à Geografia requer-se o dissenso internoe externo, mesmo – e sobretudo se – visto como anti-eficiênciaeconômica. Se o nível do território continua como ameaçaquando seus agentes propensos a sujeito insistem na sua dimensãopolítica última, a soberania popular, que comecemos por umaanálise refinada – sem perder a escala – do ordenamento territorialque até então conforma as espacialidades onde vivemos. Que osesforços até então faiscados no chão desse “mundinho” chamado“Brasil” não sejam engolidos pela quimera da via única. Que adança dos vivos também cante no passeio sobre as cordas daviola, que o gosto desta jornada não seja o gelo de uma Geografiainsípida encerrada na visão de uma geladeira aberta.

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GEOGRAFIA: CIÊNCIA DA COMPLEXIDADE (OU DARECONCILIAÇÃO ENTRE NATUREZA E CULTURA)

Marcos Bernardino de Carvalho

“Mas quando a abstração começa a matar-nos,é necessário que nos ocupemos da abstração...”

(A. Camus)

Ciência do espaço, dos lugares, das relações homem-meio,das territorialidades, das paisagens, dos estados, da guerra....Muitas são, enfim, as definições que já “colaram” na Geografia,graças aos contextos em que foram produzidas ou aos pensadores- de Kant a Lacoste - que as adotaram e as divulgaram.

Aqui, retomando um tema que vimos desenvolvendo emoutros trabalhos1 , pretendemos chamar a atenção para uma outrapossível definição da Geografia: ciência da complexidade. Ou, casose prefira, uma das ciências da complexidade, como seria maisadequado dizer nestes tempos excessivamente corretos (plurais) etambém para dar uma medida mais justa dos objetivos deste artigo.

Pioneirismos produzidos por diversos geógrafos, a manutençãode certas características e potencialidades do saber que produziram,além dos reconhecimentos divulgados por pensadores de outras áreas,nos autorizam a sugerir e a fundamentar tal definição.

A complexidade, enquanto horizonte epistemológico,como se sabe, devemos aos progressos e formulaçõesdesenvolvidos sobretudo pelos físicos e biólogos quepraticamente repartiram o século XX entre si. Com a mecânicaquântica, a dupla hélice do DNA, por exemplo, as formulaçõesdesses pensadores nos aproximaram (e seguem nos aproximando)

1 Nos referimos, entre outros, a Carvalho (2004). Este trabalho também foipublicado em http://www.ub.es/geocrit/sn-34.htm.

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MARCOS BERNARDINO DE CARVALHO

de uma possibilidade maior de compreensão da vida e da matéria,demonstrando quão simplificadoras e, portanto, afastadoras doreal eram algumas de nossas mais caras e antigas certezas. Portabela, enriqueceram nosso vocabulário que a partir de entãopassou a conviver com inúmeras expressões derivadas das novasformulações, ou por elas recuperadas: espaço-tempo, quanta,incerteza, relatividade, caos, fractais, estruturas dissipativas,macromoléculas, genômica, etc.

Às ciências humanas ou sociais esse novo “horizonte” revelou-se mais tardiamente. Após longo período de afirmação análítico-corporativa e após os abalos desferidos pela realidade dos fatosproduzidos no “curto século XX”, as sociologias, histórias, antropologias,geografias e demais “humanas científicas” também se renderam e foraminstadas a rever alguns dos caminhos simplificadores ou reducionistas aque invariavelmente se entregavam.

Seja pelo velho hábito de macaquear os caminhosindicados pelas chamadas ciências duras, típico de quem viveem permanente “obsessão do descompasso”2 , seja pela imposiçãodas novas necessidades cognitivas, algumas das humanas tambémimpuseram a si próprias uma revisão dos estatutos que asobrigavam a identificar os fragmentos de cultura, de história,de espacialidade, de economia e de política, que acreditavampresentes em cada situação investigada. A difusão de tal crença,diga-se de passagem, prende-se muito mais ao propósito dejustificar a existência de quem investiga do que o de entender(dialogar com) as realidades multidimensionais perscrutadas.

Nessas revisões não são poucos os atalhos e caminhosinéditos, principalmente inconclusos ou pouco explorados, esistematicamente recusados pelas histórias de cada especialidade

2 Expressão utilizada por Alfredo Bosi (Dialética da Colonização, São Paulo:Cia. das Letras, 1993) e recuperada por Laymert Garcia dos Santos (2003)para expressar a condição daquelas mentes obcecadas (colonizadas, emverdade) por alguma condição, de modernidade ou desenvolvimento, quepor ser a do “outro” (o colonizador) é eleita como a ideal.

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disciplinar, que de pronto chamam a atenção pelaspotencialidades de diálogo com as tais necessidades cognitivascontemporâneas, principalmente aquelas estimuladoras dareconciliação entre os fragmentos-objetos mencionados.

É nesse sentido que pensadores como Edgar Morin e BoaventuraSouza Santos, por exemplo, em algumas de suas produções recentes3 ,nos chamam a atenção para as contribuições que a Geografia poderiaoferecer ao debate. Para Boaventura, essa contribuição viria graças àscaracterísticas de ambigüidade e indefinição de uma ciência que aomesmo tempo se manteve interessada pelos fenômenos da natureza eda sociedade. Para Morin, por sua vez, isso seria proporcionadodiretamente pelo fato da Geografia revelar-se como saber complexo,que não cedeu à pressão analítica, não abandonou esse seu arco ampliadode interesses e, portanto, pode se oferecer como exemplo deinstrumento cognitivo e facilitador para reconciliar grande parte dosobjetos (divididos entre naturais e sociais) que as ciências pautadasapenas pela disjunção e/ou redução multiplicaram.

Ambos os pensadores mencionados não se referem apenas àGeografia como sendo portadora dessas características de um sabercomplexo (ou de indicadora de caminhos para orientar o “paradigmaemergente”, como prefere Boaventura S. Santos). À antropologiatambém é sugerida essa mesma condição, pois aquela também terialidado mal com as separações exigidas entre as “naturais” e as “sociais”,tanto que, tal qual a Geografia (física e humana), cindiu-se internamenteentre uma antropologia que é cultural e uma que é físico-biológica4 .

Mas aqui, para os propósitos deste artigo, nos restringiremosà Geografia e ao exame de como aprofundar esse potencial quepermitiria de fato defini-la como uma ciência da complexidade.

3 Ver especialmente Morin (2001) e Souza Santos (1995).4 A essa cisão o mencionado texto de Boaventura S. Santos (op. cit.: 40) faz

menção explícita. Edgar Morin, em uma outra obra sua (Morin & Kern, 1993:50) a esse propósito afirma o seguinte: “A antropologia, ciência multidimensional(articulando nela o biológico, o sociológico, o econômico, o histórico, opsicológico) que revelaria a unidade/diversidade complexa do homem...”

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MARCOS BERNARDINO DE CARVALHO

Antes, no entanto, convém estabelecer que apesar daspossibilidades indicadas pelas formulações dos pensadores queexemplificamos, as condições de ambigüidade, as cisões internas e osduplos estatutos verificados em algumas disciplinas, que bravamenteresistiram às pressões analíticas, podem ser apenas um bom ponto departida para o estabelecimento das reconciliações (ou separações)cognitivas necessárias, mas estas terão que ser construídas, redefinidase mais bem aproveitadas, pois, do contrário, permanecerão apenassendo o que são: potencialidades..., mesmo que dignas de nota.

VOCAÇÃO DE ABRAÇAR O MUNDO

A condição de saber complexo, indicada para a Geografia,invariavelmente nos remete para a história dessa disciplina, sobretudoa partir do seu reconhecimento acadêmico-institucional. As característicasrealçadas em favor dessa condição também remontam às muitasexortações conectivas, que ainda sob inspiração do chamado romantismoalemão levaram figuras como Ritter, Humboldt e posteriormente Ratzela formular instrumentos cognitivos que pretensiosamente noscapacitariam a “abraçar o mundo com as próprias mãos”.

As propostas ratzelianas, como já tivemos a oportunidadede demonstrar em outros trabalhos5 , apoiavam-se em suaconcepção hologeica, que o próprio pensador alemão definiacomo uma perspectiva de observação “abraçadora de toda aTerra” (Ratzel, 1914: 91)6 . Assim, de uma Antropogeografia,

5 Aqui nos referimos ao trabalho já indicado na nota 1 e também aos seguintes:Carvalho, 1997a e Carvalho, 1997b.

6 A expressão aparece na obra mencionada, no seguinte contexto (traduçãonossa): “Se é verdade que a geografia investiga os mesmos fenômenos quesão estudados também por outras ciências, todavia o seu método se distinguepor causa de sua tendência natural a ultrapassar seus próprios muros,realizando uma observação que eu denominarei hologeica, ou seja,abraçadora de toda a Terra.” (Ratzel, 1914: 91). No original alemão:“hologäische Erdansicht” (Ratzel, 1882).

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incapaz de conceber investigações geográficas desvinculadas dosestudos históricos ou antropológicos, a uma BiogeografiaUniversal que se propunha abarcar estudos de todos os seresvivos sobre a superfície da terra (fito, zoo e antropogeografia),o critério hologeico oferecia-se como suporte para, diríamos,complexizar (na etimologia latina, complexus refere-se ao atode abraçar, entrelaçar, compreender) o instrumento cognitivoproposto e para resistir à excessiva desconexão entre os saberes:

“Nós não desconhecemos a grande ajuda que o critériohologeico traz ao estudo de cada um dos problemasantropogeográficos. Em uma época como a nossa, na qual,por efeito da especialização, cada uma das ciências édividida em um grande número de pequenos estudosparticulares, é uma verdadeira felicidade que na ciênciageográfica tal fracionamento não seja ainda muitoacentuado, de forma que a investigação possa ser dirigidae conduzida sobre uma base ampla, possibilitando adescoberta de campos investigativos completamentenovos” (Ratzel, 1914: 92).

A partir disso poderíamos até parafrasear uma famosaafirmação de Tricart e conferir também à (Antropo)Geografiade Ratzel a mesma condição de precocidade que o geógrafofrancês atribuiu à Ecologia. Sugerida em meados do século XIXpor Ernst Haeckel (que, diga-se de passagem, foi professor deRatzel), a Ecologia, segundo Tricart, nasceu prematuramente umavez que se propôs a estudar as relações dos seres vivos com seushabitats, exatamente em um momento de grande privilégio àsformulações analíticas em detrimento das visões de conjunto:

“O meio natural foi deixando de ser tomado em consideraçãoà medida em que as disciplinas que o tinham como objetode estudo foram se subdividindo: climatología, hidrología,geomorfología, biogeografía, edafología, que por sua vezse fragmentaram em inúmeros pontos de vista setoriais cada

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vez mais limitados e parciais, com tendência a se tornaremincompatíveis entre si, e impróprios para se integrarem em unavisão de conjunto” (Tricart, 1988: 470).7

Neste tipo de contexto, a perspectiva hologeica de Ratzelsofreu duro combate. E uma volumosa obra, cujos marcos iniciale final podem ser considerados, respectivamente, aAntropogeografía (1882-91; Anthropogeographie) e A Terra e avida (1901-02; Die Erde und das Leben), foi alvo de uma ricapolêmica, com destaque para a reação daqueles que viam entreas principais idéias presentes nesse conjunto um grande potencialde diluição dos objetos e dos territórios pretendidos pelasciências sociais que, na virada do século XIX para o XX, tambémbuscavam se estabelecer como disciplinas analíticas, lastreadasem corporações e associações científico-profissionais.8

Um artigo de Émile Durkheim (fundador do L’AnnéeSociologique) - La Sociogeographie - e um livro de Lucien Febvre(um dos fundadores dos Annales d’Histoire) - La terre etevolution humaine -, podem ser considerados igualmente comomarcos, inicial e final9, dessa reação cujo conteúdo pode sermuito bem ilustrado por esse trecho extraído do texto de Febvre:

“Agora compreendemos melhor o que querem dizer ospartidários da morfologia social quando denunciam ‘esta

7 O texto de Jean Tricart foi publicado originalmente nos Annales de Géographie,1979, LXXXVIII, p. 705-714, compilado e traduzido por Mendoza, 1988, doqual extraímos essa citação (tradução nossa).

8 Nos limitamos a lembrar alguns dos principais fatos e episódios de umahistória, como já indicamos nas notas 1 e 5, que tratamos maisextensamente em outras oportunidades. Os aspectos a que estamos nosreportando, e que logo mais concluiremos, são fundamentais para acompreensão dessa nossa abordagem e por isso voltamos a essa história,mas com certa brevidade, pois envolvem desenvolvimentos conhecidos pormuitos dos que agora nos lêem.

9 Estamos nos referindo, respectivamente, aos seguintes textos: DURKHEIM, E.La Sociogéographie. L’Année Sociologique, 1897, vol. I, p. 533-539; FEBVRE,L. La Terre et l’évolution humaine. Paris: La Renaissance du Livre, 1922.

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disciplina de grandes ambições que denomina a si mesmageografia humana’. Os geógrafos querem explicar pelaGeografia, ou ao menos reivindicam como objeto de estudo,as sociedades humanas, das menores às maiores, das maisrudimentares às mais complicadas... Abusos flagrantes quenão cometeria, por sua vez, uma ciência sociológica deobjetivos modestos e marcha prudente, por ter um objetivolimitado e fixado de antemão...” (Febvre, 1925: 65).10

De fato, se dependesse das exortações de Ratzel, aprudência, a modéstia e a reclusão disciplinada às fronteirasdemarcadas pelos Estados, inclusive para o conhecimento, nãoteriam lugar. Um exemplo desse inconformismo poderia sercolhido nas páginas finais daquela que é considerada sua últimagrande obra, Die Erde und das Leben:

“É próprio do nosso tempo! Fala-se de ciência universal, decomércio mundial, de política mundial, e se busca ao mesmotempo ansiosamente evitar cada sinal que possa revelar queas barreiras nacionais existem para estreitar o olhar queaspira a abraçar o mundo inteiro. Mas é evidente que noprogresso da civilização, no incremento da cultura, dascomunicações, dos Estados se inscreve uma tendência emdireção a uma cidadania universal” (Ratzel, 1907: 817).11

Como sabemos, no entanto, prevaleceu adisciplinarização, a prudência e a modéstia, como queria Febvreque, para tal, forjou até mesmo uma falsa oposição entre LaBlache e Ratzel, atribuindo ao primeiro a condição de verdadeira“tábua de salvação”, que com sua “geografia, ciência doslugares”, produziria os antídotos necessários para o combate à“rapinagem” pretendida pela “antropogeografia Ratzeliana”12.

10 Esse trecho, com nossa tradução, extraímos da versão espanhola do livrode Febvre. Essa versão preservou o texto integral do original francês e foipublicada apenas três anos depois da primeira edição francesa de 1922.

11 Extraído da versão italiana do mencionado livro (tradução nossa).12 Todas as expressões entre aspas foram colhidas na citada obra de Febvre.

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GEOGRAFIA: SABER INDISCIPLINADO

Essa disciplinarização, no entanto, logrou mais sucesso entre asoutras ciências sociais emergentes, garantido-lhes a posse territorialdas fatias de conhecimento reivindicadas. A Geografia mal se conteve(no lugar que lhe fora determinado por Febvre) e a despeito da exortaçãoàs produções especializadas, das discussões e das tentativas deenquadramento, seguiu vivendo seu estatuto de ambigüidade, orbitandoentre as preocupações com o mundo natural, o social e particularmentecom os resultados produzidos pelas relações entre os dois. Mas, o abraçoque originalmente se propunha a dar no conjunto das dimensões doplaneta intimidou-se diante da vitória corporativa e, em vez de serassumido como uma vantagem comparativa diante das outras disciplinas,passou a ser (auto)criticado como sintoma da ausência de cientificidade,da indefinição de objetos e da vaguidão. Ou seja, mesmo onde opotencial de desenvolvimento de um saber complexo já estava presente,isso não foi além dessa condição potencial e jamais se configurou coma mesma ousadia dos pioneiros desse processo de institucionalização.

Em favor do desenvolvimento desse potencial é que DavidR. Stoddart lançou seu repto, ao homenagear Carl Sauer, emuma importante conferência proferida na Universidade deBerkeley no início dos anos 1980. Para amparar esse desafio,que a citação abaixo sintetiza, além de Sauer, Stoddart relembraa ousadia de várias personalidades da Geografia, com destaquepara Forster, Humboldt, Ratzel, Kropotkin que, entre outros:

“Se atreveram a fazer algo que nós, com nossa sofisticação,raramente fazemos: formularam as grandes perguntas sobreo homem, sobre o território, sobre os recursos, sobre opotencial humano. Não há melhor exemplo disto que Sauercom suas intrépidas especulações acerca do fogo, da funçãoda costa, da origem da agricultura. Necessitamos recordarque a ciência tem que fazer-se perguntas atrevidas comoessas” (Stoddart, 1988: 544).

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Lamentando os “muros edificados” entre os especialistasdedicados aos estudos físicos e os da chamada Geografia humana,o biogeógrafo (e geomorfólogo) Stoddart, em sua homenagem aogeógrafo cultural (e histórico) Sauer, demonstra, inclusive, osprejuízos práticos que investigações conduzidas em estrita e cegaobediência às fronteiras disciplinares (sobretudo as que rigidamentedividem fatos físico-ambientais dos humano-sociais) podemacarretar. Para tanto, sugere o exame do caso de Bangladesh noqual uma intervenção, com vistas a conter os constantes processos deinundação ali verificados, que optou pela construção de Polders(chamada por Stoddart de “solução holandesa”), em detrimento darecuperação dos mangues, revelou-se profundamente desastrada: nãosó destruiu meios de vida de enormes contingentes populacionais,dependentes do fluxo interrompido das águas e da ecologia dosmanguezais, como sucumbiu tecnicamente diante de novas inundaçõesque, diga-se de passagem, apenas acrescentaram números às vítimasdos “acidentes naturais”. A opção holandesa, segundo Stoddart, teriaresultado de uma incorreta percepção do nível de interdependênciaque os fatos das geografias humana e física de Bangladesh apresentam.Mas que outra solução se poderia esperar daqueles que estão aprisionadosem um dos lados daqueles rígidos “muros edificados”?

Segundo Stoddart, o malogro resultou, portanto, de umasolução técnico-especializada que se recusa ou tem dificuldadeem ver o seguinte, conforme conclui em sua conferência:

“Não existe uma Geografia física de Bangladesh separadade sua Geografia humana, sendo a recíproca ainda mais certa.Uma Geografia humana divorciada do meio físico constituipura e simplesmente algo carente de sentido” (Ibid.: 542).Com certeza a conclusão de Stoddart é absolutamente

generalizável para quaisquer outros lugares. E hoje nãoprecisaríamos nem argumentar longamente em favor disso.Bastaria mencionar fatos recentes como as tragédias provocadaspelo Tsunami asiático de 2004 (mais de 300 mil mortes) ou peloepisódio do furacão Katrina e a devastação de Nova Orleans

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(EUA) em 2005 (obrigando a evacuação de mais de um milhão depessoas) para não termos sequer que lembrar da condição que achamada questão físico-ambiental tem assumido na determinaçãoda “Geografia humana” (política, econômica, social...) doplaneta. E, evidentemente, também não precisaríamos chamara atenção para o fato do vice-versa dessa determinação ser,como afirmaria Stoddart, ainda mais certo.

Os números de vítimas e as catástrofes colhidas graças àvoracidade do reducionismo analítico que dificulta a percepçãodesta interdeterminação alerta-nos para outra reciprocidade: aquelaexistente entre prática e teoria, que invariavelmente são colocadasem oposição, ou como tópicos de identificação dos diversos saberesespecializados. Quantos, por exemplo, já não caíram na tentaçãode associar geografias humanas à teoria e, em contrapartida,geografias físicas à prática? Ou quantos jovens incautos edesinformados já não foram (auto)convencidos a optar por essa oupor aquela especialidade, em função de maior afinidade com aprática do que com a teoria, ou vice-versa?

Mas o reducionismo analítico, mesmo que de fato seja,antes de mais nada, uma opção teórica, não traz comoconseqüência apenas problemas teóricos, como podemos muitobem demonstrar somente com os fatos e exemplos mencionados,pois contam-se aos milhões os números de vítimas decorrentesdesses “problemas teóricos”.

Enrique Leff (Coordenador da Rede de FormaçãoAmbiental para América Latina e Caribe - PNUMA) é hoje um dosque melhor consegue traduzir essa relação teoria/prática para oâmbito das idéias que aqui desenvolvemos. Ao propor suasformulações voltadas para a construção do que ele denomina deuma “pedagogia da complexidade ambiental” (Leff, 2003),demonstra que nossos chamados problemas ambientais são emgrande parte decorrentes da forma como temos produzido econduzido nosso conhecimento do mundo. Segundo ele,abandonamos a perspectiva de um entendimento das coisas para

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uma “intervenção sobre o real que culminou na tecnologizaçãoe na economização do mundo” (Ibid.: 39). A primazia conferidaa esse processo de “objetivação e coisificação do mundo”, noentanto, “desterrou a natureza e a cultura da produção, dandolugar a um desenvolvimento das forças produtivas fundadas nodomínio da ciência e da tecnologia” (Ibid.: 43).Conseqüentemente, conclui Leff:

“A crise ambiental não é crise ecológica, mas crise darazão. Os problemas ambientais são, fundamentalmente,problemas do conhecimento. Isto tem fortes implicaçõespara toda a política ambiental - que deve passar por umapolítica do conhecimento -, e para a educação. Aprendera aprender a complexidade ambiental não é um problemade aprendizagem do meio, mas de compreensão doconhecimento sobre o mundo” (Ibid.: 55).Sendo assim, a denominada crise ambiental deveria ser

vista, antes de mais nada, como um chamado à revisão dosprocessos cognitivos e de produção dos discursos que conduzema nossa apropriação do mundo. Nas palavras de Leff, “umchamado à reconstrução social do mundo: a aprender acomplexidade ambiental.” (Ibid.: 57).

Mas isso é o equivalente a sugerir que os processos, tidoscomo irreversíveis, de economização ou tecnologização, cedampasso para as perspectivas de complexização, com todas asimplicações daí decorrentes: reconhecer os defeitos da razãoprevalecente; recusar a pecha de irracionalismo para asformulações divergentes dessa razão prevalecente; admitir afalibilidade e também o poder destrutivo da ciência e datecnologia, e de qualquer outra construção humana; investir nosesforços para reconciliar saberes e disciplinas que tenham sidovítimas de separações ou agrupamentos artificiais ou simplistas;sacrificar interesses corporativos em nome do privilégio aoconhecimento; recusar a subordinação permanente do logos emrelação ao nomos (para pensar a relação entre ecologia e

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economia, p.e.)13 ; considerar todos os saberes produzidos elastreados por tradições coletivas, como legítimos promotoresde conhecimentos, sem hierarquização entre eles; promoverdiálogos sinceros entres esses saberes; estimular abordagensintegradas das naturezas e das culturas (em nosso caso: dasgeografias físicas e das humanas); e assim por diante...

Para contribuir com o equacionamento de várias dessasimplicações, entre muitas mais que poderíamos enumerar, é queacreditamos ser possível convocar o saber geográfico, e seus praticantes,a desenvolverem aquele potencial de instrumento cognitivo dacomplexidade que nas origens de seu processo de institucionalização jáhavia sido indicado. Como buscamos demonstrar, nos sentimosautorizados a fazer tal convocação, sobretudo quando consideramos opeso de uma tradição histórica ainda pouco difundida e as característicasde resistente epistemológica cultivada por inúmeras geografias quenão sucumbiram totalmente diante da rendição generalizada à ordemdisciplinar (ou departamental), ditada por aquilo quecontemporaneamente poderia se sintetizar na expressão “mundocorporativo”, mesmo que na sua versão acadêmico-burocrática.

IDENTIDADE ENTRE SABERES COMPLEXOS ECERTAS GEOGRAFIAS

A recuperação (ou revisitação) das formulações originaisdos conteúdos preconizados pelas idéias de uma biogeografiauniversal, de uma antropogeografia ou do critério hologeico,devidamente recontextualizadas, é claro, podem ser muito

13 Segundo Susan George: “O logos é a palavra, mas é também o princípiodiretor. Em uma sociedade normal o princípio diretor do domínio ou da casa[oikos] deveria ser mais importante que as regras, que o nomos. Mas, emrealidade no mundo moderno atuamos como se nomos prevalecesse sobre ologos, e isto se traduz pela supremacia outorgada à economia sobre aecologia.” (George, 1996:41)

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férteis, portanto, no sentido de contribuir para a afirmação deum horizonte epistemológico da complexidade. Assim como podeser igualmente fértil a consideração das formulações e produçõesmais recentes que continuaram a assumir o duplo estatuto deuma Geografia que é 100% física e 100% humana, ao mesmotempo, como os fatos e fenômenos que nos rodeiam.

Em todos esses casos encontraremos grandes sintonias comos princípios que podem caracterizar saberes que se pretendamtributários do pensamento complexo.

Segundo Morin, os saberes que podem assim ser identificadosmanifestam algumas características comuns e de fácil percepção.

Em primeiro lugar, e como princípio geral, esses saberesnão são pautados pela rigidez canônica das categorias conceituaisclássicas, mas são dependentes de macro-conceitos, isto é, deum “pensar por constelação e solidariedade de conceitos” (Morin,1991), abrangentes e abertos à imprecisão. Sujeitos, portanto, àinterpretação, aos contextos e diálogos de quem os adota.

Tal princípio geral tende a desviar-nos de uma preocupaçãoobsessiva com as fronteiras, ou seja, com o estabelecimento delimites rígidos e artificiais entre fenômenos, apenas por causados interesses analíticos em sua volúpia classificatória, e a buscaro significado, as interferências e flexibilidades recorrentes queos objetos investigados sempre apresentam.

As dificuldades que historicamente o conhecimento geográficoencontra, seja para definir a própria Geografia, seja para fixar osignificado de algumas de suas mais caras categorias conceituais, taiscomo paisagem, espaço, território, entre outras, nos dão vivas indicaçõesde que estamos diante de um conjunto de macro-conceitos. E comesse espírito eles deveriam ser tratados, pois, em outras palavras, tais“dificuldades” sugerem estarmos diante de um saber que se movemuito mais inspirado pela abrangência, ambigüidade e contingênciasmutantes, típicas dos fenômenos reais, do que pelas clarezas, distinçõese iterações inexistentes, a não ser nos ambientes controlados e criadosno interior de assépticos laboratórios.

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Desse princípio geral é que decorrem, segundo Morin, ostrês princípios básicos da complexidade - o dialógico, o darecursão organizacional e o hologramático - que nos permitemidentificar os saberes que lhes são tributários.

Caso cotejássemos o significado de cada um deles comcaracterísticas das formulações, desenvolvimentos de análises eproduções de certas geografias, não teríamos muita dificuldadepara identificar tal filiação epistemológica.

O princípio dialógico se nutre da associação entrecomplementares e antagônicos, concomitantes. Sobrevive dadualidade, da ambigüidade e das dicotomias assumidas (geografiasfísicas e humanas, determinismos e possibilismos, p.e). Não buscasuperar contradições, nem forçar sínteses artificiais. Pelo contrário,mantém a unidade graças à diversidade das lógicas assumidas.Lógicas ecossistêmicas, portanto. Com espaço para as duplas (dúbias)existências - em uma palavra, ambi-entes -, dos objetos de interessedas geografias que são físicas e humanas, ao mesmo tempo, e pararealidades que não se explicam sem a consideração de que todosos fatores, dos físico-naturais aos humano-sociais, são determinantespara a produção das espacialidades.

O segundo princípio básico, da recursão organizacional,caracteriza aqueles saberes que não buscam estabelecerhierarquizações lineares entre causas e efeitos, mas que sepautam pelo reconhecimento das recorrências circularesexistentes entre esses pólos. Nesse caso, reconhecem ‘causas’em todos os ‘efeitos’, produtores em todos os produzidos,submissão em todos os que submetem e assim por diante.

Naquelas formulações geográficas em que as realidades espaciaissão configuradas como produtos - seja de injunções histórico-sociais,seja das físico-naturais ou de uma combinação entre todas elas -, queao mesmo tempo produzem as novas (ou reproduzem as mesmas)condições, esse princípio de recursão sempre esteve presente.

Por último, segundo o chamado princípio hologramático,emprestado da idéia de holograma físico (que preserva as mesmas

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dimensões constituintes da totalidade da imagem em quaisquerde suas partes), a caracterização de saber complexo só deve serreconhecida naquelas formulações avessas a qualquer tipo dereducionismo, resulte este do modismo holista, que só realça aimportância do todo, ou da cegueira analítica que investe apenasna investigação da parte.

A Geografia, como sabemos, resulta, em certo sentido,de uma recusa a adotar os caminhos que os diversos reducionismosbuscaram lhe impor. Ademais, há inúmeras formulações naGeografia em que se podem observar claramente tentativas derechaçar, tanto o analitismo negligente com a percepção do todo,como as abordagens abrangentes e descuidadas das partes. Taisgeografias se poderiam inserir entre aquelas que mesmo sem osaber já aderiram a esse “princípio hologramático” de que nosfala Morin. Apenas para lembrar alguns, mencionaríamos: o“hologeismo” de Ratzel, a “célula de paisagem” de Troll; a“ecogeografia” de Tricart, a “ciência diagonal” de Bertrand, o“sistema-mundo” de Dollfus14 , etc.

É importante dizer que os princípios mencionados não sedesenvolvem isoladamente, nem tampouco podem ocorrer demaneira opcional, entre os saberes identificados por sua filiação(mesmo que potencial) à complexidade, pois cada um delesevidentemente revela a existência dos demais, já que há ummovimento de recursão e de dialógica na relação que seestabelece, por exemplo, entre a parte e o todo, ou seja: “aidéia hologramática está ligada à idéia recursiva, que por suavez está ligada à idéia dialógica...” (Morin, 1991: 90).

No entanto, da mesma forma como há geografias que desdeas formulações pioneiras estão claramente pautadas por essas

14 Para uma maior familiarização com algumas dessas idéias e também comas de outros autores, sugerimos a coletânea organizada por Josefina GomezMendoza, Julio M. Jiménez e Nicolás Cantero (Mendoza, 1988). Ver também:Santos, M e Souza, M.A. et alii (Orgs.). Col. O Novo Mapa do Mundo (3vols.). São Paulo: Hucitec-Anpur, 1993.

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características aproximativas de saberes complexos, há as quese pautam pela simplificação e afastamento desse mesmohorizonte epistemológico. E as indicações desse afastamentotambém não são difíceis de serem percebidas, pois estasgeografias da simplificação costumam deixar muitos vestígios.Entre outros15: pautam-se por abordagens monodimensionais emonocausais, aferrando-se às determinações quase exclusivas deuma dimensão ou uma explicação (como costuma-se fazer com adimensão econômica, p.e.); operam separações simplistas entre oschamados fatores endógenos e exógenos, sejam estes identificadoscomo externos e internos à economia-política de um país, ou comas forças, igualmente externas e internas, que atuam nas estruturasgeomorfológicas dos lugares; costumam ser adeptas também deformulações monoescalares ou fracamente multiescalares, quedificultam a percepção do conjunto de dimensões - das físicas àshumanas -, presentes nas geografias de todos os lugares; além domais, negligenciam o papel do espaço, reduzindo e simplificandosuas componentes naturais e sociais, produzindo enfoquesbanalizadores, seja porque naturalizam os problemas sociais, sejaporque sociologizam as causas dos naturais.

Por fim, o “caráter fechado, absolutizante, etnocêntricoe teleológico das teorias”, acrescenta Marcelo L. de Souza (op.cit.), costuma ser também uma característica importante ecomum para identificar essa “inclinação obsessiva para asimplificação” que certas formulações apresentam. Estas, alémde se pautarem pela adesão exclusiva aos modelos ocidentais(eurocêntricos, quase sempre), com suas perspectivas deprogresso, suas “etapas de desenvolvimento” e seus mecanismos

15 A relação das características que reunimos a seguir inspira-se em listasugerida por Marcelo L. de Souza para detectar o conjunto “dos principaissintomas dessa inclinação obsessiva para a simplificação” (Souza, 1997:48), que algumas formulações geográficas apresentam. Não se trata de umacitação literal, pois os acréscimos e ampliações para inclusão dos chamadosaspectos físico-ambientais são de nossa inteira responsabilidade.

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de conhecimento, pouco investem nos diálogos transculturais,pouco estimulam as posturas transdisciplinares16 .

Diante disso, como se vê, fica estabelecido que, paradesenvolver o potencial de uma abordagem sintonizada com asexigências da complexidade, não basta apenas elogiar asresistências epistemológicas, nem tampouco recompor certositinerários abandonados pela “inovação” ou pela obsessãoanalítico-corporativa da Geografia. Há também que se produzirescolhas, investir nas opções e vencer pressões. É isso que decerta forma nos indicam, conforme apontam os autores queexaminamos, tanto aquelas características que aproximam comoaquelas que afastam as formulações geográficas de abordagenssintonizadas ou não com a complexidade.

Inegável, no entanto - insistimos -, o potencial para aafirmação e desenvolvimento dessa sintonia que estáreconhecidamente (por geógrafos e não geógrafos) presente nasmuitas formulações, desenvolvimentos e histórias da ciênciageográfica, sobretudo dentre as que não receiam a manutençãodas dualidades, dicotomias e contradições que tem caracterizadoessa área do conhecimento.

16 Aqui nos referimos às concepções de transdisciplinaridade, que não seconfundem apenas com aquela justaposição de disciplinas que é adotadapelos mecanismos interdisciplinares ou multidisciplinares, mas que se abrempara além do campo disciplinado pelos saberes científicos einstitucionalizados, exortando por diálogos com a arte e outros saberestradicionais. Tais concepções foram expressas nos seguintes documentos:

UNESCO (Diversos autores). Ciência e as fronteiras do conhecimento: o prólogode nosso passado cultural. Veneza: Unesco, março de 1986;

UNESCO (Diversos autores). Ciência e Tradição: perspectivastransdisciplinares, aberturas para o XXIº Século. Paris: Unesco, 2-6 Dezembrode 1991.

As concepções de transdisciplinaridade presentes nesses documentos tambémforam trabalhadas e desenvolvidas em: NICOLESCU, B. O Manifesto daTransdisciplinaridade. Lisboa: Hugin, 2000.

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Pressões simplificadoras que atuam no sentido da superaçãodas contradições e incertezas, ou na eliminação das dicotomiase ambigüidades, investindo obsessivamente na precisão dosobjetos, no fraco envolvimento dos sujeitos e na filiaçãoespecializada, invariavelmente têm contribuído apenas paratornar mais rígidas e impenetráveis as diversas fronteirascognitivas, criando, assim, uma grande confusão entre osterritórios corporativos e as fatias do conhecimento.

Tais pressões, antes de mais nada, estimulam odesenvolvimento de (defi)Ciências que conseguem falar do temposem falar do espaço, ou da cultura sem falar da natureza, daseconomias sem as políticas, das histórias sem geografias, semantropologias... Ou seja, desenvolvem-se saberes que às vezeschamam muito mais atenção por causa de suas omissões do que porseus aportes. E a necessidade contemporânea, que praticamentetodos eles demonstram, de agregação de qualificativos ecológico-ambientais (em suas diversas variações), ou dos prefixos bios eetnos, ou simplesmente dos nomes de outras disciplinas, com asquais estabelecem nova expressão composta, é confissão dessa culpa.Dito de maneira menos simbólica, e reconduzindo a discussão parao campo em que a desenvolvemos, tais agregações,independentemente dos seus oportunismos ou de suas sinceridades,são um reconhecimento de que é preciso em parte reverter oprocesso que ao transformar algumas das ciências sociais (incluindoa Geografia que aí se aninha) nessas espécies de antropogeografiasreduzidas, impôs às geografias abordagens onde invariavelmentepredominam reduções sociológicas, historiográficas, antropológicasetc. Nas primeiras é comum deparar-se com análises políticas ousociológicas que desprezam o componente territorial e osfundamentos biogeográficos. E nas segundas é possível deparar-se com análises ambientais, ou territoriais, que simplesmentedesprezam a dimensão da política, da cultura ou da economia.

A todas essas reduções se pode indicar o horizonte dacomplexidade. É o que acreditamos estar fazendo com os

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destaques oferecidos, entre outras, a uma certa e originalGeografia17 realçada neste artigo. Para esta, o território e aterritorialidade, aos quais os geógrafos historicamente têmdedicado grande parte de seus esforços de investigação, de fatosó podem ser compreendidos com o auxílio de instrumentoscognitivos que estejam abertos a algum nível de reconciliaçãodisciplinar entre os saberes apartados e, ao mesmo tempo, sejamsuficientemente sensíveis à percepção das lógicas recursivas(entre fatos da natureza e da cultura) que identificam e presidemqualquer processo de territorialização.

Angelo Turco, em seu Verso una teoria geografica dellacomplessitá, ao caracterizar seu entendimento desse processo,sintetiza em grande parte os elementos concretos queacreditamos devam ser considerados, tanto para alimentar essaperspectiva de retomada do diálogo entre os saberes, comopara sugerir as múltiplas lógicas recorrentes que igualmentedevem ser consideradas, para que se perceba as regras dessejogo complexo que tem promovido todos os espaços do mundoem territórios da nossa atenção. No pequeno trecho quereproduzimos abaixo, o conjunto desses elementos podem serdivisados. Com ele, que claramente nos indica a necessidade deuma ciência (uma Geografia?) que seja capaz de captar acomplexidade descrita, terminamos essa nossa reflexão:

“A territorialização é, portanto, um grande processo, emvirtude do qual o espaço incorpora valor antropológico;esse último não se agrega às propriedades físicas, mas asabsorve e as remodela, recompondo-as em associaçõescom formas e funções culturalmente diversificadas,irreconhecíveis para uma análise exclusivamentenaturalista do ambiente geográfico. Por outro lado, o

17 Aqui rendemos homenagem ao sentido que o grande arquiteto catalãoconferiu ao conceito de originalidade, e o adotamos: “La originalidadconsiste em volver al origen”.

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processo de territorialização não se confunde com oacúmulo de artifícios sobre a superfície terrestre, comum crescimento linear e genérico do valor antropológicode um espaço; pelo contrário, devemos ter presente queele se dissolve em contínuas reconfigurações dacomplexidade a partir da qual, definitivamente, o homogeographicus extrai situações, normas ou ao menosindicações para a sua ação” (Turco, 1988: 76).

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UNESCO (Diversos autores). Ciência e as fronteiras doconhecimento: o prólogo de nosso passado cultural. Veneza:Unesco, março de 1986;

UNESCO (Diversos autores). Ciência e Tradição: perspectivastransdisciplinares, aberturas para o XXIº Século. Paris: Unesco,2-6 Dezembro de 1991.

As concepções de transdisciplinaridade presentes nessesdocumentos também foram trabalhadas e desenvolvidas em:NICOLESCU, B. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Lisboa:Hugin, 2000.

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ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS

A AGB tem por objetivo:· Promover o desenvolvimento da Geografia, pesquisando e divulgando

assuntos geográficos, principalmente brasileiros;· Estimular o estudo e o ensino da Geografia, propondo medidas para o seu

aperfeiçoamento;· Promover e manter publicações de interesse geográfico, periódicas ou não;· Manter intercâmbio e colaboração com outras entidades dedicadas à

pesquisa geográfica ou de interesse correlato, ou ainda à sua aplicação,visando ao conhecimento da realidade brasileira;

· Organizar e manter atualizado um cadastro de seus associados, com seuscurrículos e realizações no âmbito da ciência geográfica;

· Propugnar pela maior compreensão e mais estrita colaboração com osprofissionais e estudantes de disciplinas afins;

· Analisar atos dos setores públicos ou privados que interessam e envolvama ciência geográfica, os geógrafos e as instituições de ensino e pesquisade Geografia, e manifestar-se a respeito;

· Congregar os geógrafos, professores, estudantes de Geografia e demaisinteressados, para defesa e prestígio da classe e da profissão;

· Promover encontros, congressos, exposições, conferências, simpósios,cursos e debates, bem como o intercâmbio profissional, mantendo contatocom entidades congêneres e afins, no Brasil e no exterior, de modo afavorecer a troca de observações e experiências entre seus associados;

· Representar o pensamento de seus sócios junto aos poderes públicos e àsentidades de classe, culturais ou técnicas.

ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS

Sede da Seção Local São PauloAv. Prof. Lineu Prestes, 338 - Prédio da História/Geografia

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ARTIGOS

RUY MOREIRASOCIEDADE E ESPAÇO NO BRASIL (AS FASES DA FORMAÇÃOESPACIAL BRASILEIRA: HEGEMONIAS E CONFLITOS)

PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOYTEORIAS E CONCEITOS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O DEBATECRÍTICO EM GEOGAFIA

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