11
Jean-Claude BONNE, “Pensar em cores: a propósito de uma imagem apocalíptica do século X”, em Andrea von HÜLSEN-ESCH e Jean-Claude SCHMITT, Die Methodik der Bildinterpretation/Les méthodes de l’interprétation de l’image: deutsch- französische Kolloquien 1998-2000, Göttingen, Wallstein, 2002, v. 2, p. 355-379. Tradução: Eduardo Henrik Aubert [357] Tome-se uma iluminura de um “Beatus” espanhol (o manuscrito 644 da Pierpont Morgan Library de Nova Iorque, fol. 27, imagem 1). Chama-se tradicionalmente de “Beatus” um comentário do Apocalipse de João escrito na Espanha, no século VIII, por um monge com esse nome. Essa obra se beneficiou de imagens pelo menos desde o século IX. 1 Essas imagens, cujo número pode ser considerável, referem-se essencialmente ao sentido literal do texto do Apocalipse (secionado em curtas unidades chamadas storia) mais do que ao comentário (chamado explanatio). A imagem se insere entre a storia e a explanatio, e ela ocupa freqüentemente uma página inteira, como no exemplo em questão. Os mais numerosos – e, entre eles, alguns dos mais belos – “Beatus” foram produzidos na Espanha, nos séculos X e XI. O manuscrito de Nova Iorque é um dos mais antigos conservados: ele foi realizado em um mosteiro do Norte da Espanha, no Reino de Leão, fora do domínio árabe que se exercia mais ao Sul. Ele é datado dos meados do século X (cerca de 940-945) e se destinava ao mosteiro de San Miguel de Escalada. 2 É um manuscrito de [358] grande formato, cujas páginas medem 387 X 285mm. O nome do iluminador – Maius – é conhecido graças ao cólofon (fol. 293). A storia figurada pela imagem é o texto do Apocalipse, 1, 10-20, que convém relembrar: 10.No dia do Senhor fui movido pelo Espírito, e ouvi atrás de mim uma voz forte, como de trombeta, ordenando:11.Escreve o que vês, num livro, e envia-o às sete Igrejas: a Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia".12.Voltei-me para ver a voz que me falava; ao voltar-me, vi sete candelabros de ouro13.e, no meio dos candelabros, alguém semelhante a um filho de Homem, vestido com uma túnica longa e cingido à altura do peito com um cinto de ouro.14.Os cabelos de sua cabeça eram brancos como lã branca, como neve; e seus olhos pareciam uma chama de fogo.15.Os pés tinham o aspecto do bronze quando está incandescente no forno, e sua voz era como o estrondo de águas torrenciais.16.Na mão direita ele tinha sete estrelas, e de sua boca saía uma espada afiada, com dois gumes. Sua face era como o sol, quando brilha com todo seu esplendor.17.Ao vê-lo, caí como morto a seus pés. Ele, porém, colocou a mão direita sobre mim assegurando: "Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último,18.o Vivente; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da Morte e do Hades.19.Escreve, pois, o que viste: tanto as coisas presentes como as que deverão acontecer depois destas. 20.Quanto ao mistério das sete estrelas que viste em minha mão direita e aos sete candelabros de ouro: as sete estrelas são os Anjos das sete Igrejas, e os sete candelabros as sete Igrejas. 3 1 John Williams, The Illustrated Beatus, vol. 1, Introduction, Londres, 1994. 2 A Spanish Apocalypse. The Morgan Beatus manuscript, introdução e comentário por John Williams, análise codicológica por Barbara A. Shailor, reprodução das iluminuras, Nova Iorque, 1991. 3 Tradução da Bíblia de Jerusalém.

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Jean-Claude BONNE, “Pensar em cores: a propósito de uma imagem apocalíptica do século X”, em Andrea von HÜLSEN-ESCH e Jean-Claude SCHMITT, Die Methodik

der Bildinterpretation/Les méthodes de l’interprétation de l’image: deutsch-französische Kolloquien 1998-2000, Göttingen, Wallstein, 2002, v. 2, p. 355-379.

Tradução: Eduardo Henrik Aubert

[357] Tome-se uma iluminura de um “Beatus” espanhol (o manuscrito 644 da Pierpont Morgan Library de Nova Iorque, fol. 27, imagem 1). Chama-se tradicionalmente de “Beatus” um comentário do Apocalipse de João escrito na Espanha, no século VIII, por um monge com esse nome. Essa obra se beneficiou de imagens pelo menos desde o século IX.1 Essas imagens, cujo número pode ser considerável, referem-se essencialmente ao sentido literal do texto do Apocalipse (secionado em curtas unidades chamadas storia) mais do que ao comentário (chamado explanatio). A imagem se insere entre a storia e a explanatio, e ela ocupa freqüentemente uma página inteira, como no exemplo em questão. Os mais numerosos – e, entre eles, alguns dos mais belos – “Beatus” foram produzidos na Espanha, nos séculos X e XI. O manuscrito de Nova Iorque é um dos mais antigos conservados: ele foi realizado em um mosteiro do Norte da Espanha, no Reino de Leão, fora do domínio árabe que se exercia mais ao Sul. Ele é datado dos meados do século X (cerca de 940-945) e se destinava ao mosteiro de San Miguel de Escalada.2 É um manuscrito de [358] grande formato, cujas páginas medem 387 X 285mm. O nome do iluminador – Maius – é conhecido graças ao cólofon (fol. 293). A storia figurada pela imagem é o texto do Apocalipse, 1, 10-20, que convém relembrar:

10.No dia do Senhor fui movido pelo Espírito, e ouvi atrás de mim uma voz forte, como de trombeta, ordenando:11.Escreve o que vês, num livro, e envia-o às sete Igrejas: a Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia".12.Voltei-me para ver a voz que me falava; ao voltar-me, vi sete candelabros de ouro13.e, no meio dos candelabros, alguém semelhante a um filho de Homem, vestido com uma túnica longa e cingido à altura do peito com um cinto de ouro.14.Os cabelos de sua cabeça eram brancos como lã branca, como neve; e seus olhos pareciam uma chama de fogo.15.Os pés tinham o aspecto do bronze quando está incandescente no forno, e sua voz era como o estrondo de águas torrenciais.16.Na mão direita ele tinha sete estrelas, e de sua boca saía uma espada afiada, com dois gumes. Sua face era como o sol, quando brilha com todo seu esplendor.17.Ao vê-lo, caí como morto a seus pés. Ele, porém, colocou a mão direita sobre mim assegurando: "Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último,18.o Vivente; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da Morte e do Hades.19.Escreve, pois, o que viste: tanto as coisas presentes como as que deverão acontecer depois destas. 20.Quanto ao mistério das sete estrelas que viste em minha mão direita e aos sete candelabros de ouro: as sete estrelas são os Anjos das sete Igrejas, e os sete candelabros as sete Igrejas.3

1 John Williams, The Illustrated Beatus, vol. 1, Introduction, Londres, 1994. 2 A Spanish Apocalypse. The Morgan Beatus manuscript, introdução e comentário por John Williams, análise codicológica por Barbara A. Shailor, reprodução das iluminuras, Nova Iorque, 1991. 3 Tradução da Bíblia de Jerusalém.

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[359] A imagem reteve apenas alguns dos principais elementos do texto, organizados de uma maneira que não é de modo algum ditada por ele. Assim, a composição de uma imagem em dois registros ligados pelo sentido e articulados de tal modo que a dupla seqüência de arcadas que designam as Igrejas forma uma espécie de sede (assise) para o trono do Cristo é uma engenhosa fórmula iconográfica.4 O registro de baixo, em que João apresenta um livro-cápsula às sete Igrejas pode figurar tanto aquilo que o Senhor ordena a João fazer quanto esse registro pode antecipar sinteticamente sua ação, que será detalhada mais adiante com sete imagens com as passagens correspondentes do Apocalipse (as storiae). Do mesmo modo, as cores evocadas pelo texto – brancura dos cabelos, cor de bronze dos pés, chama dos olhos – não são respeitadas pela imagem, apenas o ouro sendo referido pelo amarelo; uma tal discordância é freqüente nos “Beatus” e já sugere que a imagem usa as cores de um modo que lhe é próprio sem se reger necessariamente pelo texto e sua simbólica das cores. O iluminador também faz escolhas iconográficas: a mão direita do Senhor é colocada sobre a cabeça de João e não pode, assim, segurar as sete estrelas; mais surpreendentemente, a imagem não mostra a espada saindo da boca do Senhor. Sobretudo as cores são ao mesmo tempo muito marcantes e destituídas de justificativa iconográfica evidente, seja ela figurativa ou sim- [360] -bólica.5 Trata-se de uma situação bastante geral na arte medieval, e as imagens do “Beatus” são apenas um exemplo privilegiado devido ao forte impacto de suas cores. As figuras e as ações são de fácil identificação, mas nada, de um ponto de vista iconográfico, exige aqui que o Cristo seja verde e João seja roxo violeta, nem que as bandas do fundo exibam tal variedade de cores. Por outro lado, se a imagem medieval pratica freqüentemente a divisão sintática, e, portanto, significante, em dois, e mesmo em três registros, a multiplicação das bandas de cor nesta imagem (não há menos do que nove, de altura bastante variável) excede a divisão tradicional. A mais estreita das bandas forma uma barra entre os dois registros, mas relativamente débil, pois ela não é delimitada (bordée) por um traço negro que a reforçaria como nas outras imagens desse manuscrito ou nos outros “Beatus” que adotam essa fórmula para essa imagem. As cores apenas localmente têm um valor mimético ou simbólico: os candelabros (aqui, luminárias suspensas) são amarelos para evocar o ouro, como o cinturão alto do Cristo, e sua chama é vermelha. Para o resto, coloca-se o problema de saber como funciona a cor em tal imagem e qual função ela desempenha. Trata-se de um colorido arbitrário, a ponto de dar a impressão de uma mistura um pouco crua? Um fator estético parece estar em questão, mas se trata de uma questão de gosto puramente contingente?

[361] De fato, podemos facilmente pressentir – e a análise deverá confirmar – que a cor não é um ornamento adicionado à imagem a partir do exterior, ela desempenha um papel manifestamente rítmico e construtivo, notadamente nas bandas do fundo, ela comanda a articulação geral do campo, sua divisão em níveis. Assim, nós já podemos observar grosseiramente que as duas cores mais escuras se encontram nas bandas mais alta e mais baixa, que o vermelho, a cor mais viva, está no centro e está enquadrada por duas bandas amarelas. A cor permite, ademais, valorizar as figuras: assim, não é um acidente se os dois atores principais – o Cristo, ao alto, e João embaixo – são mais escuros que as outras figuras de seus registros e se destacam sobre um fundo claro. Esse último ponto está de acordo com a grande importância dos valores – os contrastes e os

4 Talvez se trate de uma invenção de Maius. A fórmula de dois registros e sobreposição das arcadas se reencontra nos manuscritos ulteriores do mesmo ramo dos “Beatus” ilustrados (recensão IIa; cf. William, The Illustrated Beatus (cf. nota 1), stemma das p. 22 e 23), mas não necessariamente com a idéia de sede tão marcada. 5 Para considerações gerais sobre as cores nos “Beatus”, cf. Elisabeth S. Bolman, “De coloribus: The Meanings of Color in Beatus Manuscripts”, Gesta, vol. XXXVIII-1, 1999, p. 22-34.

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graus do escuro e do claro – na organização pictural das imagens medievais.6 Nós avançaremos assim a hipótese de que o emprego da cor deve responder a uma lógica ou a um jogo da diferença interna da imagem e da série de imagens, já que um só pintor é responsável pelo conjunto. Não poderemos tratar de verdade do segundo ponto, que demandaria o exame de um número demasiado grande de imagens.7

O propósito não é, a bem dizer, de buscar pensar a cor, coisa vã, mas de mostrar como a imagem pensa em cores; a cor se vê e se experimenta, e se alguma coisa nela é pensável, não é o [362] que ela é, mas o que ela faz; e ela pode sem dúvida fazer sentido, mas ela está longe de se reduzir a essa função.

Para entender o tratamento cromático ao qual a imagem é sujeita, é necessário colocá-la em relação com um fenômeno mais geral e de grande amplitude, de que ele é um dos principais aspectos, isto é, o estatuto ornamental da imagem. Textos medievais evocam o poder ornamental da cor e mesmo a inteligência de que esse uso parte. Assim, em seu tratado De diversis artibus (cerca de 1125), Teófilo declara, a propósito do vitral, que ele se aplicou a compreender “por que arte engenhosa a variedade das cores decora a obra (artis ingenio et colorum varietasopus decoraret)”.8

Falar de um tratamento ornamental da imagem, como no exemplo do “Beatus”, implica que a questão da ornamentalidade diz respeito à arte muito além do que se chama habitualmente de ornamentação. O ornamental não é apenas uma questão local, limitada a composições repetitivas e relativa a motivos essencialmente formais, como um friso de folhas de palmeira ou uma bordura de folhagens, em oposição a uma composição centrada tematicamente em um assunto. A ornamentalidade não está estreitamente confinada em um gênero particular e em uma posição marginal, ela pode ser um verdadeiro gênero de construção da arte e afetar em graus variáveis suas formas as mais diversas, inclusive figurativas. A ornamentalidade pode, assim, constituir uma dimensão constitutiva da imagem como outras. Assim, Teófilo, ainda, fala em detalhe do ornatus picturae não apenas [363] em termos de motivos como as folhagens (circulos et ramos), mas também a propósito da disposição das cores (de sua varietas) nas imagens (imagines), por exemplo sobre as vestimentas (in vestimentis) e mesmo sobre os membros nus do corpo (in nudis membris) ou nas oposições ou nos quiasmas do claro e do escuro entre as figuras e os campos (campos), estes sendo entendidos como as superfícies entre as figuras. Figuras e campos, é toda a imagem, na qualidade de pintura (pictura), e não apenas suas borduras (in limbis) que é explicitamente reconhecida como podendo ser afetada pelo ornatu.9

A ornamentalidade em sentido alargado que se acaba de enunciar se identifica sob três condições principais às quais uma obra, no caso uma imagem, pode atribuir um papel variável. É preciso lembrá-las ao menos esquematicamente, associando-as à questão da cor. Na Idade Média, a imagem é sempre carregada por um objeto, como o mobiliário ou o livro litúrgico. Ornar um objeto ou um lugar é, em primeiro lugar, para uma imagem, mostrar que, em sua estética, ela respeita a natureza desse objeto ou desse lugar, levando em consideração as propriedades plásticas do suporte, como, por exemplo, a planeidade da página do livro ou a da parede, ou seu volume, no caso da escultura de um elemento arquitetônico. Na nossa iluminura, a pintura do fundo em

6 Id., p. 24; não se deve, contudo, subestimar a importância das tonalidades nos “Beatus” iluminados. 7 Nós empreenderemos em outro lugar uma análise detalhada da cor no “Beatus” da Pierpont Morgan Library. 8 Theophilus, De diversis artibus, prólogo do livro II, ed. Charles R. Dodwell, Oxford, 1986 [1961, p. 37.] 9 Theophilus, De diversis artibus (cf. nota 8), livro II, capítulos XX e XXI. p 50 e ss.

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placas de cor não busca fazer a imagem escapar do espaço da página; ela se harmoniza com sua planeidade. E o formato da imagem se harmoniza com o da página, como sublinha a bordura ornamental (no sentido tradicional dessa palavra) que faz transição [364] entre o espaço da página e o espaço da imagem com a qual essa bordura pode também às vezes se articular fortemente (o que não é o caso aqui). Mas a ornamentalidade que nos interessa tem por função fazer valer esteticamente, ao mesmo tempo que o objeto suporte – a saber, o livro que ele enriquece – a imagem que nele se inscreve. Ademais, essa estetização ornamental deve convir simbolicamente também ao valor do objeto e da imagem, como sugere a palavra latina decet, da mesma família que as palavras decor (a beleza que dispõe (pare) e decus (aquilo que convém e honra). Ornar é, portanto, conferir a uma coisa – o objeto e a imagem que ele porta – a beleza de que ela é digna. Como diz Otto Pächt, “a ornamentação” é um “enobrecimento.”10 Assim, fazer valer esteticamente um elemento relativamente a outro, dando-lhe diferente magnitude pela cor, por exemplo, é também avaliar seus respectivos valores. Graduando seus efeitos estéticos, a ornamentalidade modula suas avaliações e lhe confere um modo ou uma tonalidade particulares.

No que concerne as figuras na imagem, as marcas gráficas e cromáticas de tipo ornamental que as afetam interferem ou coincidem com aquelas que asseguram sua construção (figurativa) e, consequentemente, sua identificação iconográfica. Assim, depreende-se do texto de Teófilo que a justaposição de traços (tractus) de cores (colores appositi) escuras e claras sobre as vestimentas (umbras et lumina vestimentorum) ou sobre os membros pode servir a definir uma modelagem (rotunditas) ou, sem dúvida, pregas, mas também (e talvez mesmo principalmente) a modular ritmicamente as superfícies em um [365] modo ornamental.11 A arte medieval busca, portanto, uma concordância tensa, mas variável segundo as épocas e os meios entre a ornamentalidade e a figuratividade da imagem. A ornamentalidade medieval mantém largamente sensível a literalidade dos esquemas gráficos ou cromáticos e aquela do campo ou do fundo, sobretudo quando ele é colorido. Nesse sentido, a ornamentalidade requer a irredutibilidade dos traços, das cores e dos fundos a sua condição eventual de signo figurativo, semântico e mesmo espacial, - condição que instaura neles um “valer para outra coisa” que não eles mesmos. Em nossa imagem, as cores devem primeiramente ser tomadas tais quais elas se mostram. Mesmo se seu desenho serve à identificação das figuras, elas não descrevem por elas mesmas; elas qualificam. Trata-se de intensivos. Os contornos das figuras não mostram nenhuma preocupação com a precisão da forma (du rendu), elas são sinaléticas, suas formas-cores são energéticas.

Uma das consequências das duas primeiras condições é que a ornamentalidade implica a recusa (ou a restrição severa) do ilusionismo tridimensional. Isso não quer dizer que, na imagem, as figuras e o fundo devam necessariamente ocupar um mesmo e único plano. A planeidade na imagem não é a platitude da imagem. Em nossa imagem, por exemplo, o braço oblíquo do assento do Cristo, a figura do Cristo, o dossel do assento atrás dele, sua auréola e o fundo formam pelo menos quatro [366] ou cinco planos diferentes que parecem nitidamente superpostos. Isso não implica absolutamente a planeidade de permanecer dominante e de subordinar a ela o que parece contradizê-la, como o marca suficientemente o rebatimento rigoroso em um plano frontal da base lateral do assento

10 Otto Pächt, L’enluminure médiévale, Paris, 1997, p. 175. 11 Theophilus, De diversis artibus (cf. nota 8), livro II, capítulos XX e XXI, p. 50 e ss e livro I, capítulos III e V, p. 6 e 7 para a noção de rotunditas. Nós analisaremos em outro lugar todas as passagens do livro de Teófilo relativamente ao ornamental e a sua teoria do ornatus. Reencontramos na fórmula de Teófilo a importância já sublinhada dos valores.

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do Cristo. Aliás, a oblíqua do braço, significativamente rebatida no sentido do gesto do Cristo, assinala tanto o avanço do assento (sem construir esse avanço) quanto ele aponta para o João prosternado e para aquele que está em pé no registro inferior. O braço do assento funciona, portanto, ao mesmo tempo e sem contradição, obliquamente e frontalmente. Dito de outra maneira, a planeidade se articula, em um tal sistema, com aquilo que se diferencia ou se distancia dela. É um fenômeno recorrente na arte medieval.

Uma terceira condição é necessária para que a ornamentalidade desenvolva toda a sua potência estruturante. Ela diz respeito, desta vez, ao modo de composição da obra. A ornamentalidade requer um investimento ao menos tendencialmente sistemático do conjunto do campo ou de uma parte sua por estruturas rítmicas, lineares ou cromáticas que implicam tanto as figuras quanto o fundo. Esse efeito, que podemos qualificar de all-over, tece a imagem em um contínuo que tende a desindividualizar os elementos em proveito de uma ordem que os atravessa. É nesse ponto que a ornamentalidade entra em tensão, senão em conflito, com a figuratividade, na medida em que ela tende a individualizar os elementos. Na Idade Média, para dizer as coisas rapidamente, a representação pode ser ao mesmo tempo altamente hierarquizada, por razões simbólicas evidentes, o que requer uma diferenciação das figuras, e fortemente ornamentalizada, mas são precisamente as modalidades e os graus diferenciados de ornamentalização [367] das figuras que servem para hierarquizá-las e distribuí-las no campo segundo uma ordem que as engloba e as ultrapassa porque ela é simbolicamente sagrada. Nós avançaremos a hipótese de que é na medida em que a imagem reivindica uma dimensão sagrada, uma sacralidade irredutível apenas à figura antropomórfica do Deus encarnado, e irredutível a fortiori, à figura puramente sensível da natureza, que a imagem, ao menos até a época românica, requer ornamentalidade. Participa dessa questão uma certa idéia do homem e da maneira como ele se inscreve, ou melhor, encontra-se inscrito em uma história (uma storia) de que ele não é o mestre e que responde a um projeto providencial.

Todo o gênio estético da imagem medieval consiste em articular e, se possível, sobrepor estruturação figurativa e estruturação ornamental, cujas exigências têm algo de divergente, ou, em termos simbólicos, fazer coincidir a história e o sagrado. É essa articulação do ornamental e do figurativo pela e na cor que gostaríamos de mostrar a respeito da imagem do “Beatus”.

O fol. 27 do Beatus da Pierpont Morgan Library

Alguns traços gerais em relação com a planeidade se acordam com uma concepção ornamental da imagem. São a justaposição de placas de cor (aplats de couleur) saturadas, sem sobra, nem modelagem nem gradação, a repartição geométrica do fundo em um sistema de bandas que investem ritmicamente toda a superfície, e enfim a linearidade do desenho cujos traços coloridos desenvolvem seus jogos formais nos contornos das figuras como nas marcas gráficas (graphes) em forma de bandas que desenham as pregas das vestimentas ou as asas dos anjos.

[368] É preciso agora detalhar a organização da quantidade e da qualidade das cores. Partiremos das bandas do fundo para articular suas combinações com aquelas das figuras. Essas bandas são de dois tipos: elas formam seja zonas de uma certa altura (há sete desse tipo), seja divisórias mais estreitas (há duas desse tipo: a banda verde intensa ao alto e a vara amarela que delimita os dois registros da imagem). Cada registro

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compreende, assim, diversas zonas sobrepostas que formam a mesma quantidade de níveis na imagem.

A zona superior azul escura contrasta fortemente com a dupla zona luminosa amarela e vermelha (ligeiramente alaranjada) de que ela se separa pela banda verde, como se esse registro da imagem admitisse dois sub-registros. A zona azul escura evoca, por sua cor e por seu posicionamento, uma região superior, se não celeste, ao menos da aparição celeste. Por sua associação com as seções de ouro (um amarelo dourado) em forma de ferradura em que brilha uma chama vermelha, ela sugere uma zona noturna e reservada, em que nenhuma personagem figura, mas cujas luminárias testemunham que ela é habitada por uma presença que vela (como devia fazer a luz das luminárias na penumbra do santuário hispânico). Nenhuma transição luminosa entre o brilho das luminárias e o fundo escuro. Por oposição a essa zona retirada e quase que secreta, a zona amarela e vermelha funciona como um lugar de revelação onde o Cristo se manifesta no ardor de uma plena luz. A oposição assim exposta entre zona reservada do sagrado e zona de sua manifestação não é absolutamente inerente ao par contrastado do azul escuro e do amarelo associado ao vermelho. É evidentemente um sentido que ele apenas adquire pela associação com as figuras e com os seus lugares. Em outro contexto, esse contraste assumirá significações completamente diferentes.

[369] As sete pesadas luminárias pendem de suas correntes sobre toda a altura de sua zona, o que acentua a verticalidade dessa zona e a chama para baixo, para a zona do Cristo. As chamas, ao contrário, elevam-se como um dardo, e sua extremidade estirada se prolonga em um pontilhado vermelho entre os finos braços em V das correntes (de um azul não saturado), elas mesma suspensas a pequenos dados (dés) planos e amarelo dourado que pontuam a linha superior. Essa dupla orientação dá à altura dessa zona sua tensão e um peso específico da imagem. O desenho em corte das luminárias sublinha a planeidade. De um ponto de vista iconográfico, as sete luminárias são símbolos, ou os correspondentes, na esfera reservada do sagrado, das sete igrejas de baixo. Elas mantêm com estas relações numéricas (4 a 3) e um parentesco formal caracterizado pelo arco de ferradura (podendo denotar a arquitetura hispânica tanto da época visigótica quanto mozárabe).12 As realidades eclesiásticas da Espanha contemporânea (face aos árabes e ao Islã de que não se trata no “Beatus”) encontravam assim uma forma de garantia celeste e de correspondente no Apocalipse (com suas cartas às Igrejas pela defesa da ortodoxia).13 Entre as luminárias, está escrito septem candelabra.

[370] A cabeça do Cristo está atravessada sobre a banda verde, e sua auréola amarela penetra até a zona azul escura. A separação das luminárias em dois grupos cria uma abertura e uma espécie de passagem para o Cristo entre o alto, ao qual ele está associado pela cabeça, e a zona em que ele se manifesta a João. Assim se precisa o estatuto recíproco de cada uma dessas zonas. Há, assim, um eco formal e cromático entre a auréola do Cristo e o corte das luminárias.

No sistema cromático da imagem, que joga de maneira privilegiada com os contrastes, a traversa de separação entre as duas zonas, para se fazer bem nítida, deveria ser de uma

12 Sobre as diferenças entre os traçados do arco em ferradura nas arquiteturas visigóticas e mozárabes, cf. Jacques Fontaine, L’art mozarabe, La Pierre-qui-vire, segunda edição, 1995, p. 53 e ss. 13 Sobre as formas e os motivos da arte islâmica nos manuscritos espanhóis iluminados, cf. Otto Karl Werckmeister, “Islamische Formen in spanischen Miniaturen des 10. Jahrhunderts und das Problem der mozarabischen Buchmalerei”, Settimane di Studi del Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, XII, Spoleto, 1965, p. 399-423, e uma reatualização pelo mesmo autor: “Art of the Frontier: Mozarabic Monasticism”, em The Art of Medieval Spain, a.d. 500-1200, The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, 1993, p. 121 e ss.

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cor que se distingue do azul escuro e do amarelo brilhante e cuja claridade é intermediária entre elas. É um verde intenso que foi escolhido com muita propriedade. Ele não puxa nem para o escuro, como a azul, nem para o amarelo. Que ele foi provavelmente escolhido por essas propriedades é o que confirma o fato de que ele praticamente não é reempregado para outras imagens. A confrontação com o conjunto do manuscrito mostra que o verde (sob diferentes tonalidades) é uma das quatro cores fundamentais, com o azul (escuro), o vermelho e o amarelo, notadamente nas bandas do fundo.14 Que a configuração (réglage) do verde tenha sido controlada com precisão é o que confirma, à direita, atrás do Cristo, a asa do anjo que cobre largamente o último segmento da traversa (o que a asso- [371] -cia a essa fronteira). O azul meio escuro dessa asa atenua fortemente o contraste desse segmento com a zona superior azul escura. Em outros termos, a asa azul diafragma o brilho do verde nessa região e, por contraste, desloca o seu acento para a esquerda, quer dizer, no sentido da ação, especialmente no sentido do olhar do Cristo.

As quatro cores de base – azul, verde, amarelo, vermelho – são empregadas com saturação forte, se não for máxima, quer dizer, de um grau bem alto de força cromática, e elas estão concentradas em bandas de fundo, e não nas figuras. Enquanto cada uma das bandas é uma grande placa monocromática, as figuras apresentam, ao contrário, texturas policromáticas e um desenho linear colorido que quebra as cores (nós voltaremos a isso). Tudo isso dá às cores do campo uma força capaz de equilibrar ou de compensar a imponência (prégnance) formal e iconográfica das figuras e de desempenhar um papel de um ator por si só na imagem. Um fundo pálido ou da cor do pergaminho teria isolado as figuras e interdito a ativação rítmico-cromática e sintática daquilo que é preferível chamar campo ou entorno do que fundo (inerte) da imagem. Um indício notável da importância dessas bandas coloridas é o esvaziamento do trono do Cristo que foi reduzido a uma pura armadura, o que torna a continuidade do campo mais sensível.

O centro da zona amarela luminosa, reservado à revelação, é ocupado pela parte superior do corpo do Cristo em semi-majestade. Ele é enquadrado por sete estrelas (dispostas de uma maneira ornamental) e pelo anjo. Essas duas figuras diafragmam o amarelo dos dois lados do Cristo e destacam, por contraste, a região central que vai do Cristo ao João prosternado. Em função do princípio do contraste que desempenha um papel construtivo permanente nessas [372] imagens, a cor dominante sobre o Cristo apenas podia ser muito mais escura do que aquela do campo. A regulagem da cor é novamente mais precisa. O azul escuro estava excluído, pois ele teria escurecido demasiadamente a imagem, mas ele foi retomado para a armadura do assento que se destaca nitidamente sobre o amarelo (e como um fator de associação com o alto?). Restava um verde, mas um pouco mais escuro do que aquele da linha atravessada de separação. O verde escolhido é cáqui; e, portanto, ao menos para nossos olhos modernos, ele leva para o amarelo – há, aliás, filetes de cor amarela na túnica do Cristo. Esse verde foi escolhido pelo parentesco com o amarelo do campo? É o que eu sou levado a crer, pois certamente essa cor não é uma cor pura, mas resulta provavelmente de uma mistura do verde e do amarelo. (Em todo caso, na época, o verde não se obtém misturando o azul com o amarelo, e não devemos fazer entrar essa propriedade das cores no sistema cromático da imagem.)

14 Cores fundamentais para a pintura dita mozárabe, cf. Werckmeister, “Art of the Frontier: Mozarabic Monasticism” (cf. nota 13), p. 127.

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A prosternação de João se mantém na zona baixa vermelha, correspondente às pernas do Cristo. A distinção das zonas corresponde, assim, claramente a uma articulação funcional da imagem em níveis. Por sua cor de malva, meio clara e meio escura, João se destaca fracamente sobre o fundo. Ele está, assim, colocado em posição subordinada relativamente ao Cristo que se recorta mais nitidamente no centro. Sua auréola, que isola um pouco sua cabeça, é vermelho-tijolo. A cor de malva de sua túnica encontra um eco cromático vertical naquela do anjo e um eco horizontal na banda superior do registro de baixo. Essa disposição permite ao mesmo tempo enquadrar o episódio central e sublinhar a prosternação de João. No que concerne a quantidade das cores, a diminuição da altura das bandas do [373] alto em direção ao baixo acentua o movimento descendente e, assim, a prosternação. O Cristo está apenas ligeiramente inclinado, mas ele estende o braço direito em direção ao apóstolo, enquanto a mão esquerda segura a chave da Morte e do Hades (que tem a mesma angularidade que o assento). Sua mão direita, colocada sobre a cabeça de João, está bem no limite da zona amarela com a vermelha. Cada um está bem no seu lugar, mas a proximidade do Cristo com João é finamente marcada pela elisão da linha montante vertical do assento desde o antebraço do Cristo até embaixo (seria impróprio falar de um esquecimento). Aqui, como no caso do rebatimento do braço oblíquo do assento (cf. supra), a estrutura do objeto secundário está subordinada à exposição da ação principal.

Na banda amarela, entre o Cristo e as estrelas, está escrito ubi similem filium hominis vestitum phodere et precinctum ad mamillas zona aurea. Visualmente, o bloco de linhas da inscrição parece um discurso que daria suporte ao Cristo e que pesa sobre o corpo prosternado de João.

A magra banda amarela colocada como que na base desse primeiro conjunto é a única a não ser atravessada por uma figura. Ela separa, portanto, os registros principais da imagem, mas ela faz apenas um corte discreto entre eles (nós já notamos que ela não é marcada por nenhum traço).

A zona cor de malva, a primeira e a mais estreita do registro inferior, desempenha diversas funções entre o alto e o baixo. Ela reforça sua separação, ela assenta melhor horizontalmente o registro de cima, ao mesmo tempo em que ela cumpre o papel de zona superior do registro de baixo. Sua altura reduzida continua o diminuendo das bandas do alto e, diafragmando, por sua cor meio escura, o amarelo ligeiramente alaranjado de baixo, ela impede que a superfície deste entre em concorrência com a superfície do amarelo superior. As três bandas [374] seguintes fazem eco às do alto: elas retomam em [modo] menor as três cores e os valores do alto e comportam um novo diminuendo, mas com uma altura menor. Assim, o amarelo alaranjado marca um retorno ao amarelo, mas ligeiramente escurecido; o rosa salmão corresponde ao vermelho, mas dessaturado por clareamento; o verde escuro – talvez uma cor terrestre aqui – faz eco ao azul escuro da zona mais celeste. Essa correspondência forte entre as duas zonas escuras extremas favorece a declinação vertical dos níveis da página; temos talvez o direito de falar de um peso gravitacional do verde escuro que puxa a imagem para baixo (é um efeito que aparece em outras imagens). Enfim, o número de bandas que definem zonas, e não separações, 7 no total (3+4), talvez deva ser relacionado com a importância simbólica do 7 nesta página (as estrelas), e mesmo com a repartição 3+4 dos candelabros e das arcadas que figuram as igrejas.

Embaixo, João, menor que o Cristo central, devia estar em cores bem escuras para se destacar no campo e ter um impacto cromático em relação com seu papel ativo, pois ele leva a mensagem do Cristo às sete igrejas. Ele comporta duas cores: um azul escuro que faz eco à zona superior e um púrpura escuro que é o equivalente de um vermelho

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escuro. Sua auréola, laranja escuro, está descentrada para trás, o que reforça a orientação da personagem para a esquerda. A forma do objeto que ele segura na mão, e que encontramos em numerosas imagens, evoca um livro aberto e frontalizado (as oblíquas permitindo distinguir as duas páginas) e talvez o corte de uma cápsula.

As arcadas em forma de ferradura figurando as sete igrejas são coloridas de modo a contrastar com seu campo local [375]: nas zonas claras, os pórticos são escuros; na zona verde escura embaixo, as colunas são mais claras. O verde cáqui das arcadas superiores faz eco à cor da túnica do Cristo.

Atrás de João, lê-se a inscrição: ubi ihoannes ephesum redit, e sob as arcadas estão escritos os nomes respectivos das sete Igrejas da Ásia.

A estrutura, ou, melhor dizendo, a textura linear e cromática das personagens contrasta, como dissemos, com as placas das bandas do campo. No que diz respeito às linhas coloridas que estriam ou articulam essas figuras (mas não as arcadas, por exemplo), elas não têm apenas por função evocar a rigor pregas ou vestimentas, mas sobretudo escandir ritmicamente e fazer vibrar as superfícies fracionando sua continuidade. Assim, as linhas podem desenhar tramas escuras ou luminosas, ou bandas paralelas formando espécies de unidades de construção das figuras (como nas asas do anjo e seu manto amarelo). Mesmo sendo aparentadas por esse sistema (muito freqüentes em numerosas artes da Alta Idade Média), as figuras têm um peso e uma densidade cromática específicas. A linha pode também se tornar muito dinâmica. É assim que, sobre o João prosternado, um traço branco contínuo articula, em uma grande curva em S, as costas, a coxa, o joelho, a perna, ou antes, nenhum de seus membros é propriamente desenhado por si mesmo sob as vestimentas; é o élan da prosternação, a flexão do corpo de uma só vez que são expressos mais do que detalhados. É o gesto do pintor, sua essência pictural, que faz a gestualidade do corpo. Esse tipo de procedimento se encontra em diversas outras imagens, e ele é mesmo às vezes entendido à definição de toda a [376] figura. Isso dá novamente testemunho do extraordinário temperamento de pintor do iluminador Maius.

Não podendo mostrar aqui outras imagens, especialmente em seqüência, não exporemos os princípios teóricos e metodológicos sobre os quais se apóia – ou justifica – a análise precedente. Conviria determinar com precisão quais propriedades e qualidades combinatórias das cores são colocadas em jogo nas imagens (saturação, contrastees, energia...) e quais fatores conexos (quantitativos, localizadores, sintáticos, figurativos, simbólicos...) intervêm em seu funcionamento ou significação. Talvez seja possível igualmente, em uma obra tão elaborada quanto o “Beatus” da Pierpont Morgan Library, tentar uma cartografia das cores, depois inventário, isto é, fazer uma tabela de sua distribuição (de seu parentesco e de seu distanciamento, de sua repartição em torno de certos pólos, em cores de base e em cores secundárias...).

Parece tão-somente estabelecido que a desordem (bariolage) da página é apenas uma falsa aparência devida ao distanciamento histórico que nos separa do mundo hispânico do século X e à dificuldade, mas não à impossibilidade (pensamos tê-lo mostrado) que existe de entrar no funcionamento interno da cor. Essa distância é, contudo, muito relativa, e essa pintura pode, em sua própria picturalidade, tornar novamente contemporânea para nós. A pintura do século XX, como aquela de Matisse, revela, na confrontação, interessantes paralelos com as iluminuras dos “Beatus.”15 [377] A época 15 Jean-Claude Bonne, “Une certaine couleur des idées. Matisse und die mittelalterliche Kunst”, em Chroma Drama. Widerstrand der Farbe, ed. Eric Alliez e Elisabeth von Samsonow, Viena, 2001, p. 177-217.

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moderna reatualizou uma problemática da cor que já conhecera um desenvolvimento espetacular na Idade Média, mas naturalmente com soluções e sob formas que lhe foram próprias. Na imagem estudada, os valores coloridos servem diretamente para construir a imagem, eles não servem de complemento secundário (uma coloração), eles lhe conferem um ritmo e uma organização sintática em relação com os valores figurativos e simbólicos. A divisão do campo em bandas coloridas corresponde também, para além da determinação possível de lugares (celeste, intermediário, terrestre), a níveis ou modalidades diferenciadas, ou mesmo graduadas, da ação (nível da manifestação do Cristo e nível da prosternação de João). Sua altura se articula com a das figuras.

A ornamentalidade cromática das figuras e do campo produz uma desnaturalização tanto do lugar (locus) quanto da ação (storia). As figuras são como que possuídas pela marca gráfica que as articula e as faz vibrar. Elas parecem habitadas por sua energia cromática mais do que parecem ser sua fonte. O campo, naquilo que faz sua continuidade (e seu efeito ornamental de all-over), mergulha as figuras individuais, e portanto descontínuas, em um meio que as engloba, que as articula e que constitui como o meio através do qual a ação se exerce. A cor do campo situa a storia em uma dimensão extra-natural, simbolicamente sagrada, correspondendo nesse manuscrito à revelação apocalíptica; mas, em outros manuscritos, são as cenas bíblicas que podem se beneficiar da mesma aura colorida. Não há nada de intrinsecamente sagrado nas cores; é em sua associação com as figuras e com os seus campos que elas podem assumir essa dimensão e [378 ] no contexto do livro santo que elas decoram. Nessa imagem, funções estruturantes e efeitos estéticos da cor se esposam estreitamente: trata-se de produzir uma cena submetida àquilo que em latim se chama ornatus, quer dizer, ao mesmo tempo da ordem e da beleza (ordo e decor, dizia Teófilo) encarregados igualmente de dar uma vida – uma autêntica existência pictural – para o sagrado.

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