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Reitora Vice-reitor Diretor-presidente Presidente Vice-presidente UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Suely Vilela Franco Maria Lajolo EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Plinio Martins Filho COMISSÃO EDITORIAL José Mindlin Carlos Alberto Barbosa Dantas Benjamin Abdala Júnior Carlos Augusto Monteiro Maria Arminda do Nascimento Arruda Nélio Marco Vincenzo Bizzo Ricardo Toledo Silva Pierre Bourdieu e Alain Darbel com a colaboração de Dominique Schnapper o amorpela arle os museus de arle na europa e seu púb//co Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira 2aedição Diretora Editorial Diretora Comercial Diretora Administrativa Diretor de Livrarias Editoras-assistentes Silvana Biral Ivete Silva Gina de Oliveira Santos Paulinho Mota Marilena Vizentin Carla Femanda Fontana Mônica Cristina Guimarães dos Santos zçrUl(

Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

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Page 1: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

ReitoraVice-reitor

Diretor-presidente

Presidente

Vice-presidente

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Suely VilelaFranco Maria Lajolo

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Plinio Martins Filho

COMISSÃO EDITORIAL

José MindlinCarlos Alberto Barbosa Dantas

Benjamin Abdala JúniorCarlos Augusto MonteiroMaria Arminda do Nascimento ArrudaNélio Marco Vincenzo BizzoRicardo Toledo Silva

Pierre Bourdieu e Alain Darbel

com a colaboração de Dominique Schnapper

o amorpela arleos museus de arle na europa e seu

púb//co

Tradução

Guilherme João de Freitas Teixeira

2aedição

Diretora EditorialDiretora Comercial

Diretora AdministrativaDiretor de LivrariasEditoras-assistentes

Silvana BiralIvete SilvaGina de Oliveira SantosPaulinho MotaMarilena VizentinCarla Femanda FontanaMônica Cristina Guimarães dos Santos zçrUl(

Page 2: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

copyright © 2003 editora zouk (edição brasileira)copyright © 1969 les editions de minuit

título original: l'amour de l'art - les musées d'art européens et leur publicparis, col. "le sens commun"

isbn do original francês: 2-7073-0028-4

projeto gráfico: alexandre dias & rogério de almeidaeditoração: william c. amaral

tradução: guilherme joão de freitas teixeirarevisão: rogério de almeida

.I

SUmar10

Printed in Brazil 2007

D729

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Departamento Nacional do Livro, Brasil)

Bourdieu, Pierre.O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu

público / Pierre Bourdieu, Alain Darbel; tradução GuilhermeJoão de Freitas Teixeira.- 2. ed. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo;Porto Alegre: Zouk, 2007.

ISBN 978-85-88840-64-5ISBN 978-85-314-1001-7

1. Cultura. 2. Museus. L Darbel, Alain. lI. Título.

CDD - 306.4

2a edÍção

direitos reservados à

EDITORA ZOUK

r. garibaldi, 132990035-052 - bom fim - porto alegre - rs - brasil

f. 51 3024-7554 e [email protected] - www.editorazouk.com.br

EDUSP

avoprof. luciano gualberto, travessa j, 374, 6° andared. da antiga reitoria - cidade universitária

05508-900 - são paulo - sp - brasilf. 11 3091-4150/4008. sac. 11 3091-2911. fax. 11 3091-4151

[email protected] - www.edusp.com.br

A caosp d!'Hooo: à

apresentação

· preâmbulo

· o ar do tempo

· procedimentos da pesquisa

· primeira parte - condições sociais da prática cultural

· segunda parte - obras culturais e disposição culta

· terceira parte - leis da difusão cultural

· conclusão

· cronologia das pesquisas efetuadas

· apêndices

n° 1 - questionários utilizados e método de sondagem

n° 2 - o público de museus franceses, segundo a amostra

nacional

n° 3 - pesquisas de verificação

n° 4 - análise de 250 entrevistas semi-estruturadas

n° 5 - o público de museus na europa

· elementos de bibliografia

· notas e referências bibliográficas

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230

Foi feito o depósito legal..A..:ESI> ~MSCÇ'N;AO ij!l"':iileflt, tif.1Wtil0:; ",P;WG91<HCU

AUTÜRiZADA. E

Page 3: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

apresenlação

a cu/luFa não é ULl2?FfOfÚYfOnaluFa/

Transcorridos mais de 35 anos desde sua aparição original, oque leva a Editora Zouk e a EDUSP a publicarem o presente livro? É

preciso reconhecer inicialmente que Pierre Bourdieu (1930-2002), aolongo de quatro décadas e meia, produziu sólida obra, abarcando osmais variados domínios da realidade social. Ele procurou entener eexplicar a sociedade francesa de seu tempo (sendo possível estendermuitas de suas conclusões a outras realidades geográficas) comoespaço(s) de dominação cujos mecanismos são dissimulados - por issovai se valer em seus escritos de termos como "violência simbólica"

(dominação suave) ou revelação dos "fundamentos ocultos adominação". Como diz MariaD. Vasconcellos (2002), "para ele, o papeldo sociólogo é o de desvendar o que se passa 'por detrás do pano'''.

Sua análise envolve a educação, a cultura, a indústria cultural,os domínios científico, político, religioso, as esferas do gosto e dastomadas de posição (políticas) dos agentes, bem como a utilizaçãode conceitos e de esquemas analíticos tomados (e recriados) de váriasdisciplinas: sociologia, antropologia, etnologia, filosofia, matemática,história, economia, artes, lingüística ... Além disso, a partir do inícioda década passada, com maior intensidade ampliou seu trabalhointelectual de intervenção política junto aos trabalhadores esindicatos europeus contra os princípios da política neoliberal," ... empenhada em precarizar as condições de trabalho, em restringire desgastar os níveis de renda dos trabalhadores, em colocar sobameaça uma história sofrida de lutas e conquistas sociais" (Miceli,2002). Convém igualmente ressaltar, pensando ainda em Bourdieu,que não se conhece, na história intelectual contemporânea, "qualquercientista social importante que não tenha, ao mesmo tempo,

apresentação 7

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8

assumido uma postura combativa, quase sempre buscando atuarnos planos da vida intelectual e do sistema político. Isso ocorreutanto lá fora como aqui: basta invocar os nomes de Caio Prado,Florestan Fernandes ou Antonio Candido. No Brasil, tambémpossuímos a tradição de combater nessas duas frentescomplementares" (Miceli, 2002; ver, também, Said, 2003).

Em segundo lugar - e esta se constitui, creio, a razão

fundamental para a edição brasileira deste livro -, percebe-se que aproblemática central explorada na pesquisa desenvolvida em meadosdos anos 60 permanece atual. É a essa questão que irei me dedicar apartir de agora.

O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu públicosaiu originalmente em 1966, baseando-se a presente tradução na ediçãorevista e ampliada, de 1969. Bourdieu dirigiu o conjunto da pesquisacom a colaboração de Dominique Schnapper, enquanto Alain Darbelconstruiu o plano de sondagem e elaborou o modelo matemáticodestinado à análise da freqüência das visitas a museus. O trabalho,envolvendo uma grande equipe de pesquisadores e auxiliares(destaquem-se Francine Dreyfus, Yvette Delsaut, Claude Grignon eFrançois Bonvin, que irão colaborar durante anos com Bourdieu) efinanciado parcialmente pelo Serviço de Estudos e Pesquisas doMinistério das Questões Culturais francês, consistiu na aplicação dequestionários em amostras selecionadas de museus na França,Espanha, Grécia, Itália, Holanda e Polônia em 1964 e 1965.

Com preâmbulo, introduções ~ conclusões, além de detalhados

apêndices, O amor pela arte organiza-se em três grandes partes:"Condições sociais da prática cultural", "Obras culturais e disposiçãoculta" e "Leis da difusão' cultural". Quando de sua publicação,Bourdieu era uma estrela em ascensão: contava com 36 anos,

estudara na ÉeoIe Normal Supérieure (ENS), graduara-se em filosofia(agrégê}, era diretor de estudos em Paris (ÉeoIe des Hautes Études

em Sdenees Sodales) e diretor do Centre de SodoIogie de FÉdueadonet de Ia CuIture. Havia feito seu serviço militar na Argélia (onderealiza seus primeiros trabalhos de campo), trabalhado no Liceu deMoulins e nas Faculdades de Letras de Argel, de Paris (Sorbonne) ede Lille, além de já ter publicado artigos e os seguintes livros:SodoIogie de I'AIgérie (1958); 1i'avaiIet travailleurs em AIgérie (1963,

o aIllorpela arle

com A. Darbel, J. P. Rivet e C. Seibel); Le déraCÍnemen0Ia crise de

FagricuIture traditionnelle em AIgérie (1964, com A. Sayad); Lesétudiants et Ieur études (1964, comJ .c.Passeron); Les hérÍtiers, Ies

étudiants et Ia euIture (1964, comJ. C. Passeron); Un art moyenessai sur Ies usages soCÍaux de Ia photographie (1965, comL.Boltanski, R. Castel e J. C. Chamboredon) e Rapport pédagogiqueeteommunication (1965, comJ. C. Passeron e M. de Saint-Martin).

Em O amor pela arte, Bourdieu pondera que os museusabrigam tesouros artísticos que se encontram, ao mesmo tempo (eparadoxalmente), abertos a todos e interditados à maioria daspessoas. Indivíduos pertencentes a qualquer classe social e comdistintos graus de escolaridarização freqüentam museus, certo? Bem,em termos: para viver a plenitude desse amor, livre decondicionamentos e limitações, é necessário que os amantes possuamalgumas disposições, adquiridas lentamente, envolvendo dedicação,afinco e o cumprimento de obrigações. Não existe nem pecado nemperdão, esse amor é uma graça ou um mimo que surge

"naturalmente", após a assimilação do princípio do praze~ (culto),produto artificial da arte e do artifício - "a verdade ocultado gosto culto". Bourdieu pergunta se "a prática obrigatória podeconduzir ao verdadeiro deleite ou se o prazer cultivado éirremediavelmente marcado pela impureza de suas origens".

Ao longo de O amor pela arte, mostra-se como o coraçãoobedece à razão, pois desvendam-se as condições sociais de acessoàs práticas cultivadas, fazendo ver que "a cultura não é um privilégionatural, mas que seria necessário e bastaria que todos possuíssemos meios para dela tomarem posse para que pertencesse a todos".

A freqüência dos museus em todos os países pesquisadosaumenta consideravelmente à medida que se eleva o nível de instrução,correspondendo quase que exclusivamente a um modo de ser dasclasses cultas. A "necessidade cultural" é, em seu entender, produtoda educação, da ação da escola. Acho que não é por outra razão que aepígrafe da parte 3 do livro, "Leis da difusão cultural", seja emprestadado filósofo e matemático alemão Leibniz: "a educação consegue tudo;faz dançar os ursos" . A ação escolar, bastante desigual - porque atuasobre indivíduos previamente dotados, pela ação familiar, comdistintos níveis de competência artística -, envolve jovens já

apresenlação l)

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"iniciados" nesse domínio cultural. A escola, ao inculcar disposiçõesduradouras à prática culta, auxiliando decisivamente na transmissãodo código das obras de cultura erudita, transforma as desigualdadesdiante da cultura em desigualdades de sucesso. Fecha-se o círculoque faz com que capital cultural leve a capital cultural.

A categoria mais respeitada nos museus é a dos detentoresde um diploma de final de estudos secundários, ou seja, indivíduosque assimilaram parte das disposições cultas, produto de umaeducação distribuída de forma desigual, tratando "as aptidõesherdadas como se fossem virtudes próprias das pessoas ['dons'], aomesmo tempo naturais e meritórias".

Os questionários aplicados correlacionam, detalhadamente,uma série de variáveis, tais como categoria sócio-profissional, nívelde escolaridade, profissão, renda, sexo, local de residência, faixaetária, museu(s) visitado(s), dia(s) e horário(s) em que ocorreu (ram)a(s) visitas(s), tempo médio da(s) visita(s) à exposição(ões)temporária(s), correlação entre visita(s) a museu(s), cinemas eteatros, influência familiar e de amigos para a(s) visita(s) segundo onível cultural, juízos sobre os museus e as exposições, tipo de artepreferido, motivo(s) declarado(s) da visita, nome(s) de pintor (es) ede escola(s), etc.

A minuciosa pesquisa desenvolvida por Bourdieu e sua equipepossui um caráter pioneiro, qual seja, o de colocar em evidência adimensão eminentemente social dos meios de apropriação dos bensculturais existentes em museus - dimensão ~ssa que se constituiem privilégio apenas daqueles dotados da faculdade de se apropriaremdas obras. Entretanto, tenho dúvidas se ainda é possível concordarcom o autor em uma série de considerações que realiza, envolvendoo turismo cultural e a visita a museus (essa modalidade, segundoele, continua a atrair apenas categorias sócio-profissionais munidasde diplomas, isto é, o público já tradicional dos museus). O mesmopode-se dizer quando fala do estágio relativamente amador emque se encontrava a "museologia" - hoje consideravelmentetransformada -, ou ainda quando fala dos conservadores de museus,pertencentes aos extratos superiores, pouco afeitos a questões queenvolviam uma gama relativamente ampla de papéis (homem deciência, comerciante, diretor administrativo, educador): hoje equipes

com quadros diversificados participam desse circuito, encarregando­se de projetos referentes a ações educativas, à busca de patrocínios,à utilização de leis de incentivos fiscais, à edição de catálogos, àmaior divulgação em geral, etc.

Em 1969, cético com relação aos limites que a ação do

conservador impunha a qualquer tipo de incitação direta à práticacultural, Bourdieu escrevia: "quem acredita na eficácia milagrosa deuma política de incitação para visitar museus e, em particular, deuma ação publicitária pela imprensa, rádio ou televisão - sem se darconta de que ela se limitaria a acrescentar, de forma redundante,informações já fornecidas em abundância pelos guias, postos deturismo ou cartazes afixados à entrada das cidades turísticas ­

assemelha-se às pessoas que imaginam que, para serem mais bemcompreendidas por um estrangeiro, basta falar mais alto" .

Parte do contido em O amor pela arte já aparecia em Un Art

Moyen, surgiria posteriormente em artigos na revista Actes de Iarecherche em sdences sociales e, também, em ao menos dois outros

livros de Bourdieu: LaDistinction. Critique sociale dujugement(1979)

eLes Regles de Fart. Genese et structure du champ littéraire (1992).Em suma, pela leitura de vários textos de Bourdieu - O amor

pela arte dentre eles - é possível compreender os mecanismos atravésdos quais apenas parte dos indivíduos consegue obter as chavespara a plena fruição das obras de arte (ou, para falar como MaxWeber, gozam "do monopólio da manipulação dos bens de cultura edos signos institucionais da salvação cultural").

Afrânio Mendes Catani

Referências Bibliográficas

MlCELI, Sergio. "Depoimento a Maria Andréa Loyola." ln: pjerre BourdieuEntrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2002.

SAlD, Edward W. "Um acadêmico comprometido: Pierre Bourdieu (1930­2002)." ln: Cultura e política. Trad. Luiz Bernardo Pericás. São Paulo, Boitempo,Editorial, 2003.

VASCONCELLOS, Maria Drosila. "Pierre Bourdieu: a herança sociológica."Educação e Sociedade, Campinas, ano XXIII, n. 78, abril, 2002.

lO o amor pela arle apresenlação 1 1

Page 6: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

preâm6uk

Os resultados apresentados neste livro foram obtidos graças

ao trabalho de uma equipe que se encarregou da aplicação de um

grande número de pesquisas; neste caso, somente uma verdadeiralista de "créditos" permitiria prestar homenagem a todos aqueles

que forneceram contribuições igualmente indispensáveis - embora

desiguais, do ponto de vista quantitativo e qualitativo.

O professor Pierre Bourdieu dirigiu o conjunto da pesquisacom a colaboração da professora Dominique Schnapper; por sua vez,

o professor Alain Darbel construiu o plano de sondagem e elaborouo modelo matemático destinado à análise da freqüência das visitas amuseus.

Francine Dreyfus participou de todas as fases da pesquisa,

desde a realização das sondagens em diferentes museus e a formação

dos entrevistadores, até a organização da codificação e apuração dosresultados; além disso, com a colaboração do Centro de Ciências

Sociais de Atenas, organizou a pesquisa na Grécia.

Yvette Delsaut e Madeleine Lemaire, assessoradas por uma

equipe de estudantes da cidade de Ulle (F. Bonvin, D. Chave, M.Davaine, P. Dubois, M. EI Bahi, J.-P. Hautecoeur, M. Pinçon),

organizaram as pré-sondagens e as sondagens realizadas nos Museusde Ulle, Arras e Douai, tendo obtido observações sutis e precisas

sobre o comportamento dos visitantes. Por sua vez, Pierre Riviere,

responsável pela área de cálculo matemático no InstÍtut Blaíse-Pascal,

elaborou o programa de tratamento mecanográfico; Wenceslas

preâmbuh 1 3

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14

Fernandez Della Vega, integrante do Centro de Cálculo da Maison

des sdences de l'homme, garantiu a aplicação do programa de análisefatoria!.

Eric Walter realizou a sondagem, por correspondência, juntoaos membros da Sodété des Amis du Louvre; as senhoritas

Loubinoux e Vidal, assim como os senhores Darmon e Grignon,empreenderam sondagens sobre o ensino artístico nos

estabelecimentos secundários (liceus parisienses e de província,colégios de ensino geral e de ensino técnico).

As senhoras e senhoritas Barrat, Bacabeille, Carrera, de

Catheu, Chocat, Constans, Couland, Cron, Devaulx de Chambord,

Hippula, Lefevre, Marcadon, Maréchal, Massoutier, Rouquette, de

Thézy, assim como os senhores Fontaine, Sempere, Van Loyen,administraram os questionários aplicados nos diferentes museusda amostra;

As senhoritas Moreno, Sastre e os senhores Abbas, Benyahia,Benyacoub, Bouhedja, Maillet, Mindja, Saghi, Settoui, colaboradores

da área técnica no Centre de sodologie européenne, realizaram as

operações - quase sempre complexas - de codificação dos resultados;

finalmente, o senhor Salah Bouhedja garantiu o controle dasapurações mecanográficas.

O senhor Villaverde, sob a direção do professor Aranguren daUniversidade de Madri, organizou a sondagem no Museu do Prado,

enquanto as senhoritas Sastre e Moreno exerceram a mesma função

nos Museus de Barcelona; Hélene Argyriades, integrante do Centro

de Ciências Sociais de Atenas, dirigido pelo professor Peristiany,efetuou a sondagem na Grécia; Angela Cacciari orientou e realizou asondagem nos três Museus de Milão e em Bolonha; Gilbert Kirscher

organizou a pesquisa na Holanda; finalmente, com a colaboração da

Academia das Ciências da Polônia, Nina Lagneau-Markiewicz

encarregou-se da sondagem efetuada nos museus desse país.

Todas essas pesquisas não poderiam ter sido levadas a bom

termo sem a compreensão dos Conservadores dos Museus de Agen,

o amor pela arle

Arles, Arras, Autun, Bourg-en-Bresse, Colmar, Dieppe, Dijon, Douai,

Dreux, Laon, Ulle, Louviers, Lyon, Marselha, Moulins, Pau, Rouen,

Tours, além do Musée desArts décorati/Se Musée duJeu de Paume,

em Paris; tampouco, sem a colaboração prestada por alguns deles.

Aqui, desejamos manifestar-Ihes nosso agradecimento, assim comoao Diretor e integrantes da diretoria dos Musées de France que

garantiram um incessante apoio a nosso empreendimento;

igualmente, ao Inspecteur général des musées de provincee a seuscolaboradores de quem recebemos conselhos preciosos; por último,

à Superintendência do Musée des Arts décorati/S que achou porbem nos confiar a análise de 4.000 questionários, coletados por

ocasião da exposição "Antagonismes".

Queremos agradecer, também, aos Conservadores do Museudo Prado, em Madri, e dos Museus do Povo Espanhol, de ArteModerna e de Picasso, em Barcelona; do Museu Arqueológico

Nacional e de Benald, em Atenas, e, ainda na Grécia, do Museu de

Delfos e de Náuplia; do Rijksmuseum de Amsterdã, doGemeentemuseum de Haia, do Museu de Groningen e de Utrecht,

na Holanda; do Castello Sforzesco e da Pinacoteca de La Brera de

Milão; do Museu de Poznan, de Lublin, de Varsóvia, de Cracóvia e

de Lodz, na Polônia. A colaboração de todos eles é que, no plano

europeu, nos permitiu realizar a pesquisa.

preâmbU/c;1 5

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o ar ck lempo

"Deixem que as obras de arte manifestem sua eloqüência natural e elas serãocompreendidas por um número crescente de pessoas; este método será mais

eficaz do que a influência exercida por todos os guias, conferências e discursos."

F. SCHMIDT-DEGENER,

"Musées" in Les Cahiers de Ia république des Iettres, dessdences et des arts, XIII.

"O que era, essencialmente, um bastião aristocrático tornou-se, em nossos dias,um espaço de encontro para as pessoas da rua."

"Le musée en tant que centre culturel, son rôle dans ledéveloppement de Ia collectivité", UNESCO.

Além de seus integristas, a religião da arte conta com seus

modernistas; no entanto, uns e outros estão de acordo para formular

a questão da salvação cultural, utilizando a linguagem da graça.

"De maneira geral, escreve Pierre Francastel, convém registrar que

se a existência de homens com falta de audição é, geralmente,

reconhecida, todos imaginam veras formas de modo espontâneo e

correto. Não é isso, porém, o que se passa; aliás, é surpreendente o

número de homens inteligentes que não vêemas formas, nem as

cores - enquanto outros, pouco cultos, têm uma visão perfeita."!

Não será esse o tom da mística da salvação? "O coração tem seu

funcionamento próprio; a mente, também, baseada em princípios e

na demonstração." E a lógica que impele a outorgar, somente a

alguns, os signos e os meios da eleição é a mesma que elogia asanta

simplicidade dos ignorantes e das crianças: "Asabedoria nos envia à

infância: nÍSj effJdamjnj skut parvuJj". "Não se admirem que

pessoas simples acreditem sem proceder a qualquer raciocínio."2

Da mesma forma, a representação mística da experiência estética

pode fazer com que a graça da visão artística, designada por "olho",

seja reservada aristocraticamente, por alguns, a determinados eleitos,

enquanto outros a outorgam, com liberalidade, aos "pobres de

espírito".

Daí, segue-se que a oposição entre os tradicionalistas e os

modernistas é mais aparente do que real: os primeiros nada exigem

do espaço e dos instrumentos do culto artístico senão colocar os

oardo/empo 17

Page 9: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

1918

fiéis em estado de receber a graça. O despojamento e o

desnudamento servem de estímulo à ascese que conduz à visão

beatífica: "Apesar de ser bom que uma certa agitação venha bater à

porta do museu, o visitante, mal a transpõe, deve encontrar o

elemento sem o qual não poderá ocorrer o encontro profundo com

a obra plástica: o silêncio". 3 Quando tudo é questão de disposição

e de predisposições - já que não existe nenhum ensino racional

para o que não se pode aprender -, será possível fazer outra coisa

senão criar as condições favoráveis para que despertem as

virtualidades adormecidas em algumas pessoas? A inquietaçãorelativa às características sociais ou culturais dos visitantes não

seria uma forma de pressupor que estes possam estar separados

por diferenças que nada têm a ver com aquelas criadas pela

distribuição imprevisível dos dons? "O discernimento dos

visitantes, de sua classe social e de sua nacionalidade, aparece,

por um lado, como bastante complicado e, por outro, considerado

por muitos sem interesse, nem utilidade. Alguns museus chegaram

mesmo a julgar que esta questão era inatual, inclusive,

inconveniente (...). Um grande número de museus reconhece que,

além de não terem feito nenhuma tentativa, nem possuírem

nenhuma experiência nesse sentido, declaram que tal operação éimpossível. "4

"Enquanto São Bernardo, diz-nos Erwin Pano fsky, (... )

grita com indignação: 'De que serve o ouro no santuário?', Suger

pede que todos os esplêndidos paramentos e objetos sagrados,

adquiridos durante sua administração, sejam levados para a igreja

(... ). Nada estava mais afastado da mente de Suger do que a

idéia de manter os seculares fora da Casa de Deus: ele pretendia

acolher uma multidão tão grande quanto possível, contanto quefosse evitada a desordem - assim, tinha necessidade de uma

igreja mais espaçosa. Nada lhe parecia mais injustificado do

que impedir os curiosos de terem acesso aos objetos sagrados:

ele pretendia expor suas relíquias de forma tão 'nobre' quanto

o amorpela arfe

possível e colocá-Ias bem em evidência; sua única preocupação

consistia em evitar a bagunça e o alarido."5 Assim, quem defende

que, atualmente, a ascese ritual e o despojamento cisterciensenão são os únicos meios de ter acesso à comunhão com a obra,

pretendendo propor determinadas vias menos abruptas aos fiéis,

pode invocar o patrocínio daquele que, através da compra de

pedras preciosas, cerâmicas raras, vitrais, esmaltes e tecidos,

"anunciava a rapacidade desinteressada do diretor de museu

moderno". Mas, à semelhança deste, não será que ele se inspira

na convicção de que a obra contenha suficiente persuasão

milagrosa para converter ou impregnar, unicamente por sua

eficácia, as almas bem-nascidas? Não será partidário do

anagogkus mos, do método de elevação que, à harmonia e

irradiação (compactÍo e clarÍtas) das obras materiais, confere o

poder de conduzir à iluminação, "transferindo das coisas

materiais para as coisas imateriais" (de materÍaiÍbus adÍmmaterÍaiÍa transferendo)?

"Quando determinados objetos possuem um valor plástico,

eles detêm tal força sugestiva que é mais fácil torná-l o perceptível

do que evitar prestar atenção a ele (...). Para existir, o objeto deve

deixar-se saborear."6 "Um museu deveria ser um espaço em que o

visitante sonolento fosse intimado a reagir em contato com obrassublimes."? "O verdadeiro ímã* do turismo é a curiosidade histórica

e artística."8 "Em vez de tirar partido da possibilidade única e

incomparável de ensinar pela impressão obtida diretamente dos

objetos, a pessoa se perde na série de outros procedimentos

educativos que pretendem transmitir conhecimentos, mais ou

menos superficiais, por meio de conceitos puramente intelectuais.

Aliás, esses métodos didáticos nunca conseguirão atingir as

camadas profundas do público."g E, a partir do espaço reservado

* No original, aimant; este termo tem um adjetivo homônimo que deriva do verboaimer [amar], cujo significado é "amante". (N.T.)

oarrkfempo

Page 10: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

20

por nossa civilização à imagem, as testemunhas mais líricas tiram

um argumento para se convencerem de que, atualmente,

reduplicou a força de atração da obra pictural: "Aarte, escreve René

Huyghe, nunca foi tão importante e obsedante, a não ser em nosso

tempo; nunca foi tão difundida, saboreada e, concomitantemente,

nunca tão analisada e explicada. Ela tira partido (e, sobretudo, a

pintura) do papel primordial conquistado em nossa civilização pelas

imagens".1OO homem da cultura da imagem não será imediatamente

dotado da cultura necessária para decifrar a obra pictural, ou seja,

a imagem entre as imagens? "O museu tem o privilégio de falar a

linguagem da época, a Hnguagem da imagem, linguagem inteligível

para todos e a mesma em todos os países (...). O museu faz parte

integrante de nossos costumes; em breve, será o complementonecessário, o substrato de todas as nossas atividades."ll E, em

todo caso, não será possível colocar a força das imagens a serviço

do culto da imagem? "Apublicidade inteligentemente organizada

é que pode encaminhar de forma exclusiva uma nova corte, de

extensão insuspeita, para nossas coleções de arte."12

Os tempos já chegaram e o advento do Reino da Arte deixa­

se entrever na Terra: "De forma premente e grave, parece necessário

chamar a atenção dos Estados para este aspecto, a fim de que eles

dêem satisfação às necessidades novas e imperativas das populações

modernas que estão sendo como que atingidas por uma nova fome

- desta vez, espiritual- e exigem um novo alimento terrestre".13 A

profecia escatológica é o coroamento natural dessa mística da

salvação.

Em definitivo, os antigos e os modernos estão de acordo para

abandonar, completamente, as possibilidades de salvação cultural

aos acasos insondáveis da graça ou, melhor ainda, ao arbítrio dos

"dons". Como se aqueles que falam de cultura, para si mesmos e

para os outros, ou seja, os homens cultos, só pudessem pensar a

salvação cultural segundo a lógica da predestinação; como se, por

terem sido adquiridas, suas virtudes se encontrassem desvalorizadas;

o amorpela arle

como se toda a sua representação da cultura tivesse a finalidade deautorizá-Ios a convencer-se de que, segundo a expressão de um idoso

bastante culto, "a educação é algo de inato".

oardolempo 21

Page 11: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

procedimenlos da pesruisa

Antes de iniciarmos a análise e a interpretação dos resultados das

diferentes sondagens que forneceram a matéria para este livro, vamos

descrever, de forma tão precisa quanto possível, as condições em queforam obtidos.

Tendo à nossa disposição um conjunto de hipóteses - já

comprovadas, anteriormente, pela aplicação de numerosas

pesquisas sobre os processos de difusão cultural -, a sondagemsistemática sobre o público de museus, na Europa, suascaracterísticas sociais e escolares, suas atitudes em relação ao

museu e suas preferências artísticas, poderia ser concebida como

umprocedimento de verificação destinado a confrontar um sistema

coerente de proposições teóricas com um sistema coerente de fatos

produzidos pelas - e não em favor das - hipóteses que deveriamser validadas.

oquestionário

A utilização de um questionário muito simples (d.Apêndice 1) impunha-se, particularmente, em um domínio em

que os sujeitos investem valores e, portanto, são levados, atémesmo inconscientemente, à autovalorização, fornecendo a

resposta que consideram mais nobre. Se, no caso da questão (III)sobre as razões da ida ao museu, houve a recusa deliberada de

procedimentos da pesruisa23

Page 12: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

24

prever as respostas "nobres" - tais como: "porque gosto de arte" -,

tal postura não ocorreu em nome de uma espécie de agnosticismo

estético, mas porque a pré-sondagem realizada no Museu de Lille

e as entrevistas semi-estruturadas haviam mostrado que tais

respostas eram mais atraentes para os sujeitos que, na realidade,

tinham ido ao museu por outras razões. Preocupações semelhantes

dominaram a elaboração das questões de opinião: a intenção do

questionário não consistia em colocar em votação a introdução

de flechas e de fichas explicativas (questões V e VI) nos museus,

mas avaliar Índiretamenteas expectativas pedagógicas do público,

identificadas a partir das pré-sondagens e das entrevistas livres.

As condições de sua aplicação impunham, por outro lado, que o

texto fosse bastante claro, muito breve (para não demorar mais

do que quinze minutos) e, sobretudo, que não incluísse nada

que pudesse chocar os visitantes dos diferentes meios sociais;

aliás, não foi fácil respeitar esta última condição, já que as

questões que poderiam parecer simplistas a alguns poderiam dar

a impressão a outros de serem difíceis (d. Ínfra, a análise das

"não-respostas") .

A amostra e a sondagem

Para garantir toda a eficácia ao método de amostragem

adotado, era necessário tirar partido do que já era conhecido a

respeito dos museus e de seu público. De fato, as estatísticas

disponíveis em relação aos diferentes países europeus

apresentavam um grande número de incertezas em razão da

heterogeneidade dos procedimentos de comabilização dos

visitantes segundo os países e, até mesmo, segundo os museus

(em particular, por não ter sido efetuada a contagem separada

dos diferentes tipos de visitas, principalmente, visitas gratuitas),e em razão, também, da ausência de estatística mensal relativa às

visitas. Todavia, o cálculo das médias diárias das visitas, a partir

o amor pela arle

dos dados da sondagem, permitiu verificar que as ordens de

grandeza fornecidas pela estatística oficial poderiam serconsideradas como válidas.l4

Se as flutuações constatadas de um para outro ano, no mesmo

museu, sob o efeito da atração exerci da por uma exposição ou por

uma manifestação local, impedem que a pesquisa obtenha uma

maior precisão, pode-se considerar, no entanto, que o número anualde visitas define, de maneira satisfatória, a hierarquia dos museus.

Assim, em relação à França, o sorteio de uma amostra

representativa de vinte e um museus pôde apoiar-se na análisemultivariada das relações entre as diferentes características dos

museus, incluindo o número anual de visitas. Com essa finalidade,

um júri composto por cinco conservadores e especialistas de arteselecionou, no território francês, cento e vinte e três museus de

arte (cujo acervo era constituído por pinturas e esculturas);lS e,

para cada museu, avaliou a facilidade do acesso, o dinamismo doconservador, o número de obras expostas, o número de obras do

acervo, o tipo de obras (pinturas, esculturas, souvenirs históricos,

objetos de folclore, etc.), a qualidade global das obras (notada de Oa 5), assim como o tipo de apresentação. Além disso, tendo comoindicador o número de estrelas atribuídas pelo i'Guide Vert" * à cidade,

ao próprio museu e às obras exibidas, foi determinada a atraçãoturística de cada museu, obtendo-se a seguinte classificação: uma

estrela - Arras, Douai, Dreux, Laon, Louviers, Moulins; três estrelas

_ Agen, Dieppe, Ulle, Lyon; quatro estrelas - Arles, Bourg-en-Bresse,Marselha, Pau, Tours; sete estrelas - Autun; oito estrelas - Dijon;

dez estrelas - Colmar, Rouen. Por último, foi considerada a atração

turística (avaliada a partir dos mesmos índices aplicados à avaliação

do museu), a situação econômica e o equipamento universitário da

cidade ou da região onde se situa o museu.

* Esta publicação - lançada, pela primeira vez, em 1900. com uma capa "rouge",pelos irmãos Michelin, inventores do pneumático desmontável - destinava-se aajudar os veranistas a preparar suas viagens com informações de caráter turístico,controladas antecipadamente pela equipe de redação. (N.T.)

procechmenlos dapesruisa25

Page 13: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

26

Foi apurado, na análise, que a maior parte das características

dos museus estavam estreitamente ligadas entre si: se excetuarmos

os museus que recebem menos de 2.000 visitantes por ano (ou seja,

6 museus com acesso bastante difícil, oferecendo poucas obras que

são apresentadas de forma medíocre), constatamos que o número

de obras expostas está grandemente associado ao número de

visitantes (com exceção de alguns grandes museus que expõem

relativamente poucas obras, embora de grande qualidade ou bastantecélebres). O mesmo acontece com a notoriedade das obras e de sua

qualidade (avaliada pelo júri de especialistas), o que tende a mostrar

que, nesta matéria, a hierarquia "oficial" dos museus, tal como é

Estrato MuseusFluxo *EstrelasQualidade

luais de 30000

Col1uar18000024

Bourg-en-Br.

85000O2

Dieppe

70000O2

Lyon

3500025

20000 - 30000

Toulouse2500025

Dijon

3000025

Lille

2600025

Rouen

2500025

10000- 20000

Tours 19300024

Autun

11700O3

Marseille

11000I4

Arles

14000O2

5000 - 10000

Arras 8900O4

Moulins

6500I2

Douai

7800O3

Pau

5500I2

1000- 5000

Laon 3300O2

Agen

2500I3

Dreux

1650OILouviers

3000OI

* Números fornecidos pelo senhor Delesalle, membro da diretoria de Musées de France.

o amor jJe/a arle

fornecida pelos guias turísticos, coincide com a hierarquia"vivenciada", expressa pelo número de visitas, e com a hierarquia

"legítima", definida pelas "autoridades culturais".

Assim, pelo fato de estar em correlação coma maior parte dascaracterísticas dos museus, o número anual de visitantes pode ser

considerado um critério estratificador (o que garante a precisão dos

resultados): basta, portanto, constituir alguns grandes estratos,tomando como critério o fluxo anual de visitas e, a fim de garantir a

comparabilidade entre os estratos, escolher aleatoriamente um

número igual de museus em cada um deles, salvo para o estratosuperior que tem o fluxo mais elevado de visitas e comporta o menornúmero de museus (o que permite obter a mesma precisão com uma

amostra ligeiramente mais reduzida) .16 Para os museus parisienses,

que são outros tantos casos particulares em uma cidade incomparávelàs outras, dois museus de arte de tipos diferentes - o Musée duJeude Paume e o Musée des Arts décoratilS - foram escolhidos fora do

plano da sondagem.

Os mesmos métodos de amostragem conduziram a adotar, em

relação à Grécia, o Museu Arqueológico Nacional e o Museu Benaldde Atenas, assim como os Museus de Delfos e de Náuplia; em relação

à Holanda, o Rijksmuseum de Amsterdã, o Gemeentemuseum deHaia e os Museus de Groningen e de Utrecht; e, em relação à Polônia,os Museus de Poznan, de Lublin, de Varsóvia, de Cracóvia e de Lodz.

No que diz respeito à Espanha, por falta de informações estatísticassobre os fluxos de visitantes, não foi possível proceder a uma

amostragem metódica, nem considerar o Museu do Prado de Madri, eo Museu Picasso, do Povo Espanhol e de Arte Moderna de Barcelona,

como representativos do conjunto dos museus espanhóis, embora

seu público apresente características totalmente conformes às leisestabelecidas a propósito dos outros países. I?

Realizada a seleção dos museus, tratava-se de proceder a uma

escolha aleatória das pessoas a serem entrevistadas; era importante

que todos os visitantes do museu, durante o desenrolar da sondagem,fossem integrados na amostra. Com essa finalidade, os entrevistadores

proced.imenlos dajJesf(wsa27

Page 14: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

28

(uns enviados pelo Centredesodologieeuropéenne; outros recrutados

na própria cidade, quase sempre, com a colaboração do conservador, e

formados por pesquisadores do Centre) receberam o encargo de

apresentar o questionário aos visitantes, segundo instruções bem

definidas e aperfeiçoadas no decorrer da pré-sondagem. A unidadeestatística selecionada foi a visita e não o visitante; deste modo,

teoricamente, o mesmo indivíduo poderia figurar mais de uma vez na

amostra (ocorrência que, considerando a duração da sondagem,

apareceriaapenas de forma excepcional),recebendo um peso proporcional

à freqüência média de suas visitas ao museu. As visitas de grupos

escolares ou turísticos levantavam um problema: deveria ser conferido

a cada membro do grupo um peso semelhante ao visitante individual?

Afinal de contas, a mesma indagação era válidapara as visitas familiares.

A solução menos imperfeita consistia em atribuir o mesmo peso a cada

indivíduo adulto, correndo o risco de isolar os grupos na análise; assim,

em dois terços dos museus, pôde ser obtida uma taxa de respostas

igual ou superior a 75% (levando em consideração os grupos).

Apesar de terem aceitado submeter-se à sondagem, alguns

visitantes não responderam a determinadas questões; a proporção dos

"sem-resposta" (SR) varia de maneira significativa segundo o tipo de

questões e segundo as categorias sociais ou, mais exatamente, segundo

a significaçãoque as diferentes categorias sociaisconferiram às diferentes

questões. Assim, as perguntas sobre as razões e as condições da visita

(III e IV) aparecem, para a maioria do público, como questões de fato,

mas a parcela mais elevadadas classes superiores pode suspeitar, nessas

perguntas, uma intenção: para justificar a visita, algumas razões seriam

nobres, enquanto outras seriam menos nobres, e o indivíduo

demonstraria maior seriedade ao visitar um museu com a ajuda de um

guia ou de um catálogo; em relação aos outros grupos sociais, verifica­

se uma abstenção maior por parte dos professores e dos especialistas

de arte como se, através dessa atitude, eles pretendessem testemunhar

que contestam a pertinência das questões e das respostas previstas

pelo questionário (na medida em que as respostas "nobres" foram

voluntariamente omitidas) [cf.Apêndice 2, Tabela 3].

o amor pek arle

Do mesmo modo, o sentido das questões sobre a freqüência dos

museus (VIII e IX) não é o mesmo para todos os sujeitos: 25% dos

visitantes das classes populares não conseguem citar sequer um museu

e, como foi demonstrado pela sondagem de verificação, sua abstençãolimita-se a exprimir a ignorância, enquanto, entre os visitantes dasclasses cultas, ela denuncia a impaciência diante de uma questão

"ingênua". Assim também, a questão sobre os pintores preferidos (XI)

é percebida pelos visitantes das classes populares como uma perguntade erudição, enquanto é considerada como primária pelos sujeitos das

classes superiores.

Considerando as flutuações do número dos visitantes e da

estrutura do público no decorrer do tempo, conviria ainda escolher,metodicamente, os momentos da sondagem. Como a pré-sondagem,

realizada no Museu de Ulle, demonstrou que a estrutura social do

público varia segundo os dias da semana, poderíamos pressupor

que as férias determinassem também algumas variações; para

apreender as flutuações sazonais, sem prolongar a duração da

sondagem, as férias de Páscoa foram incluídas no período da

sondagem. No entanto, levantou-se a dúvida de que esse período

pudesse ser representativo das férias em seu conjunto, na medidaem que os turistas de Páscoa tenderiam a pertencer,

preferencialmente, às classes favorecidas. A fim de testar o valor dosresultados obtidos, uma sondagem complementar desenrolou-se,

no mês de julho, em cinco museus franceses: uns situados em uma

região pouco freqüentada pelos turistas (Arras, Laon, Ulle); enquantoos outros se encontravam em regiões turísticas (Arles, Autun) [d.Apêndke 3, Tabela 1]. Ficou evidente que, nas regiões situadas noSul do rio Loire, * a estrutura do público no verão é idêntica à da

Páscoa, de modo que o efeito do turismo é praticamente o mesmo

* O rio Loire é o mais longo da França (1.020 km); sua bacia estende-se desde suanascente no Maciço Central até desaguar no Atlântico, depois de atravessar a cidadede Nantes. Segundo a tradição, seu trajeto divide o território francês: assim, a

margem direita corresponde ao Norte, enquanto a esquerda, ao Sul. (N.T.)

procedimenfos da pes7uisa29

Page 15: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

30

durante os dois períodos; no Norte, que atrai poucos turistas, a

estrutura do público, quase idêntico no verão e no período dos dias

úteis, é diferente na Páscoa, pelo fato de que, nesta época do ano, a

prática do turismo é mais freqüente entre as classes favorecidas quese encontram, então, ligeiramente sub-representadas.

Para definir o peso que seria importante conferir às sondagensefetuadas em cada um dos dois períodos, bastaria determinar o

número relativo das visitas correspondente a cada período; por falta

de estatísticas mensais precisas, tivemos de recorrer ao cálculo paraestimar que, na França, perto da metade (45%) das visitas efetuam­

se durante as férias (ou seja, no período de cerca de quatro meses) .18

Realizada em dois planos (em primeiro lugar, os museus;em seguida, as visitas), a pesquisa talvez tenha sido assimilada a

uma sondagem em um só plano; neste caso, o número de museus

escolhidos foi responsável, essencialmente, pelo erro de

amostragem. Além disso, uma amostra aleatória refere-se, em geral,a uma população-mãe bem definida e de dimensão bem delimitada,

enquanto o público virtual dos museus não tem limites precisos,

nem espaciais, nem temporais; aliás, teoricamente, um museu poderecrutar seus visitantes na escala do universo. Daí, resultam riscos

de distorção - de resto, mínimos - e uma certa limitação intrínseca

da precisão de qualquer pesquisa relativa ao público dos museus.

A codi/icação e a análise dos resultados

Sabendo que não basta apurar a análise lógica das respostas

e de suas combinações possíveis para se conformar às articulações

do real, cada uma das grades de análise foi estabelecida a partir de

um exame parcial dos resultados e foi definida com precisão sempreque tal postura era exigida pelos casos encontrados. A mesma

preocupação de rigor levou a elaborar o programa de tratamentomecanográfico somente depois da análise de uma amostra de 1.000

questionários, assim como a aplicar um programa de análise fatorial

o amor pela arle

somente depois de terem sido identificadas, por outros métodos,

as relações entre as principais variáveis explicativas. Para realizaresta análise fatorial, os 9.226 questionários coletados nos museus

franceses foram separados em duas subpopulações: a dos indivíduosde nível inferior ao baccalauréat" (M1) e a dos indivíduos de nível

igualou superior ao vestibular (M2) .19 Contrariamente ao que foifeito no estudo principal, cada questionário recebeu um peso igual;

entre os 53 itens do questionário, apenas catorze foram adotados

por terem sido considerados mais significativos. Em Apêndice, serãoencontradas as matrizes de correlação para M1 e M2, assim como

as médias e os desvios padrão para cada uma das variáveis em cada

uma dessas subpopulações; no entanto, pelo fato de ter confirmado

o que já era conhecido, o cálculo dos "valores próprios" e dos"vetores próprios" aferentes a cada uma delas não será reproduzido.

Como a principal sondagem permitiu estabelecer, a

propósito de uma amostra bastante ampla, as estruturasfundamentais do público dos museus e as relações significativas

e significantes entre as características sociais dos visitantes esuas atitudes ou opiniões, tornava-se possível e necessárioverificar ou analisar de forma mais sutil, em determinados pontos,

os conhecimentos adquiridos. Eis a razão pela qual foram

empreendidas várias sondagens sucessivas, incidindo sobreamostras relativamente restritas (entre 300 e 1.000 visitantes)

do público de um ou de vários museus, cujas características eramconhecidas. Tais sondagens forneceram informações sobre a

relação entre o tempo de visita declarado pelos visitantes e o

tempo de visita real, avaliado por observadores; sobre os ritmos

da freqüência dos museus e suas variações, segundo as diferentescaracterísticas sociais dos visitantes; e sobre a relação entre a

freqüência dos museus e outras práticas culturais. Todos estes

* O termo baccaIauréatdesigna, ao mesmo tempo, os exames e o diploma conferidoao final do 2° ciclo do ensino de 2° grau (no Brasil, Ensino Médio); daqui em diante,será traduzido por vestÍbular. (N.T.)

proceelimenlos elapesruisa31

Page 16: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

32

resultados foram submetidos a uma última verificação por meio

de uma pesquisa que, em 1965, foi administrada a 2.000 visitantes

de diferentes museus franceses. O método das sondagens

sucessivas permitiu não só preencher as lacunas da informação

prodigalizada pela sondagem inicial, mas também e, sobretudo,

testar pelo menor custo as hipóteses que foram colocadas em

evidência pela análise e interpretação dos dados fornecidos pela

primeira experimentação.

A tentativa de formalização

Diante das páginas de matemática deste livro, nosso

primeiro leitor confessava considerar-se como a personagem de

Christophe* que, ao assistir a uma longa demonstração do

professor Cosinus levando à fórmula U = O, achava que tal

operação exigia muito sofrimento por um, resultado bem precário;

pelo contrário, outros leitores, mais sensíveis ao rigor fecundodo raciocínio matemático, ficarão limitados a ver, talvez, as análises

"compreensivas" como aproximações impressionistas. Após a

tentativa de tantos outros estudos, convirá empreender a

justificação metodológica do esforço de formalização, correndo o

risco de suscitar a crença de que o método de uma ciência é uma

técnica abstrata e formal que deveria simplesmente ser "aplicada"

ao conteúdo empírico? "As ciências naturais, afirmava Henri

Poincaré, falam de seus resultados; por sua vez, as ciências sociais

falam de seus métodos." Para desmentir - pelo menos, uma vez­

este dito espirituoso, ficaremos satisfeitos em remeter aos

resultados, com a certeza de que estes não poderiam ser obtidos

* ChrÍstophe (referência ao navegador Cristóvão Colombo) é o nome artístico deGeorges Colomb (1856-1945). Tendo sido partidário de uma pedagogia fundadano desenho, é considerado pelos franceses como o criador da "história emquadrinhos"; entre suas obras, conta-se J:ldée fixe du savant CosÍnus, (N,T.)

sem a aliança mais estreita de dois métodos, igualmente,

rigorosos.20

oestudo comparativo

Para garantirmos a comparabilidade dos resultados, ficamosatentos à utilização de procedimentos idênticos, em todas as fases

da pesquisa, nos cinco países estudados, ou seja, Espanha, França,Grécia, Holanda e Polônia. O mesmo questionário (salvo algumas

adaptações indispensáveis para levar em consideração as situaçõesnacionais) foi administrado, nas mesmas condições, ao público

dos diferentes países. As mesmas grades de análise foram aplicadas

ao material coletado, em particular, para tudo o que diz respeito àscaracterísticas sociais e escolares dos visitantes. A pretensão de

buscar a homogeneidade formal dos códigos - aliás, não seria

possível ignorar tal eventualidade - incorria no perigo, inerente a

qualquer comparação de índices abstratos e falsamenteintermutáveis, de comparar fatos formalmente comparáveis, embora

realmente incomparáveis e, inversamente, omitir a comparação defatos formalmente incomparáveis, apesar de serem realmente

comparáveis. No entanto, ao adotarmos categorias de análise mais

bem ajustadas às particularidades das diferentes condições

nacionais, por exemplo, no que diz respeito aos níveis de instrução,coibimo-nos, de saída, de proceder a qualquer possibilidade de

comparação quando, afinal, uma interpretação estrutural pode

sempre recolocar fatos conscientemente construidos por meio de

operações formalmente idênticas no sistema completo das relações

que lhes fornecem seu sentido e seu valor.

Aos problemas encontrados por qualquer pesquisa

comparativa, tal como o estabelecimento de relações entre fatosou sistemas de fatos inseridos em sistemas de relações que lhes

fornecem as propriedades específicas, acrescentavam-se todas as

procedimenlos dapesruisa33

Page 17: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

.14

dificuldades resultantes das incertezas ou lacunas das fontes

estatísticas. Com efeito, escapar à armadilha das semelhanças oudessemelhanças aparentes, diretamente reveladas pelaexperimentação, só seria possível com a condição de levar emconsideração, em uma comparação sistemática, as diferençassistemáticas ou, melhor ainda, os diferentes sistemas de fatores

que exercem o que pode ser designado por efeito de estruturasobre cada um dos fatos empiricamente constatados. Um perfeitoacionamento desses princípios de método teria exigido que, alémdos dados fornecidospela sondagem sobre as características sociaise escolares dos visitantes de museu, fosse possível mobilizarinformações estatísticas precisas e construídas segundo categoriasidênticas sobre a estrutura das diferentes populações-mães,segundo o sexo, a idade, as classes sociais e os níveis de instrução,sobre os fluxos de turistas e de visitantes nos diferentes museus,

assim como sobre o número e a qualidade das obras expostas emcada um dos museus, etc. Considerando que era praticamenteimpossível obter todas estas informações sobre todos os paísesestudados e que as informações obtidas nem sempre eramdiretamente comparáveis em razão das divergências entre ossistemas de classificação utilizados pelos diferentes países, acomparação propriamente estrutural que pôde ser realizadaapresenta um grande número de incertezas. Se as conclusõesprudentes - e, muitas vezes, mais negativas do que positivas ­extraídas destas análises vierem a decepcionar quem desejassereceber respostas simples e categóricas para determinadasquestões, tais como a problemática sobre a eficácia relativa daspolíticas culturais elaboradas por regimes políticos diferentes, ométodo proposto tem, pelo menos, o seguinte mérito: por umlado, tornar possível, desde que isso seja permitido pelasinformações obtidas, uma comparação rigorosa; e, por outro,sobretudo, advertir contra as comparações imprudentes einconsideradas que, apesar de não se apoiarem em númerosfantasistas, permanecem fictícias e falaciosas, por pressuporem a

o amor pela arfe

colocação entre parênteses do verdadeiro objeto da comparação,ou seja, dos sistemas de relações de que são retirados os fatoscomparados.

procedimenfos da pesruisa 35

Page 18: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

primeira parle

condições sociais da prálicacuRural

"Quem cultiva as ciências exatas - cuja independência e generalidade são, aliás,tão apropriadas para engrandecer o espírito e elevá-Ia acima da esfera comum ­

não prestou à filosofia racional os serviços que ela teria direito de esperar eexigir. Ao utilizar o método claro, preciso e seguro de tais ciências, para tratar

algumas questões delicadas, ainda não abordadas por falta de ousadia (...), essapessoa teria evitado um grande número de disputas, encontrando solução para

dificuldades bastante espinhosas e destruindo preconceitos bem enraizados eantigos; além disso, duas ou três páginas de análise, ou até mesmo se

quisermos, uma simples fórmula exposta em duas linhas, teriam demonstrado ­com rigor e com a evidência que não admite nenhuma dúvida e que, inutilmente,

os sofistas tentariam menosprezar com todas as suas sutilezas e chicanas -determinadas verdades já descobertas também pelos filósofos, embora com a

ajuda de instrumentos menos aperfeiçoados."

NAIGEON

Encydopédje méthodjque, t. III

Se a análise das relações empiricamente constatadas entre a

freqüência dos museus e diferentes características econômicas,sociais e escolares dos visitantes deve permitir, por um lado,

apreender o conjunto dos fatores que determinam ou favorecem a

freqüência dos museus e, por outro, estabelecer o peso relativo decada um deles e a estrutura das relações que os unem (Primeira

Parte), não se pode explicar a eficácia de tais fatores explicativos a

não ser identificando a gênese e a estrutura da disposição em relaçãoa obras culturais, tornada manifesta pela freqüência dos museus

(Segunda Parte). Finalmente, é importante que o sistema de causas

e de razões - permitindo compreender e explicar a freqüência de ummuseu, através da análise das condições mais gerais da recepção

adequada de uma obra de cultura erudita, ou seja, peça de teatro,romance, concerto ou quadro - seja submetido à prova da

generalização (Terceira Parte).

A freqüência dos museus - que aumenta consideravelmente

à medida que o nível de instrução é mais elevado - corresponde a

um modo de ser, quase exclusivo, das classes cultas.21 Verifica-se

que, em relação ao público que freqüenta os museus franceses, a

parcela das diferentes categorias sócio-profissionais corresponde

quase exatamente à razão inversa de sua parcela na população global.

Sabendo que o visitante modal dos museus franceses é bacheJjer"

* Trata-se do estudante que concluiu com sucesso seus estudos secundários e, porconseguinte, tornou-se portador do baccalauréat. (N.T.)

conchções sociais da prdlica cu/iura/ 37

Page 19: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

(55% dos visitantes são, no mínimo, titulares do vestibular), não

será surpreendente que a estrutura do público, distribuído segundo

a categoria social, seja bastante próxima da estrutura da populaçãodos estudantes das faculdades francesas, distribuídos segundo sua

origem social: em relação ao público dos museus de arte franceses,

a parcela dos agricultores corresponde a 1%, a dos operários a 4%, a

dos artesãos e comerciantes a 5%, a dos empregados e quadros médiosa 23% (dos quais 5% de professores primários) e a das classes

superiores a 45%. A distribuição dos visitantes, segundo seu nívelde instrução, ainda é mais expressiva: 9% somente dos visitantes _

entre os quais 75% de escolares - estão desprovidos de qualquer

diploma, 11% são titulares do diploma de final de estudos primários

(C. E. R), 17% de um diploma de ensino técnico ou de um diplomade ensino geral do segundo grau (B. E. R C.), 31 % têm o vestibular

e 24% possuem um diploma equivalente ou superior à lkence. *

Neste caso, compreende-se que a parcela dos visitantes que estudaram

latim (índice bastante revelador do pertencimento a um meio culto)

atinge 40% - dos quais 4% são oriundos das classes populares, 24%das classes médias e 75% das classes superiores.

A constatação de que os visitantes das classes médias se

distinguem do conjunto de sua categoria por um nível de instrução

ligeiramente mais elevado se deve (como ficou demonstrado pelasondagem de verificação) ao fato de que, às vezes, eles se atribuem

um nível cultural superior ao que indicam seus diplomas, exprimindodessa forma, à semelhança de muitas outras condutas, sua boa

vontade cultural; no entanto, tal fenômeno se verifica também porqueo diploma nem sempre serve de indicador irrepreensível do nível

cultural, no sentido em que não leva em consideração determinados

conhecimentos, no caso, por exemplo, dos sujeitos que completaram

sua formação como autodidatas (e que são, particularmente,

numerosos nas classes médias) ou daqueles que freqüentaram vários

* Diploma universitário, título intermediário entre o 10 e o 3° ciclos do ensinosuperior. (N.T.)

anos de estudos secundários sem terem obtido um diploma. Por

conseguinte, o nível de instrução avaliado pelo diploma é, talvez,

menos significativo (pelo menos, em matéria de práticas e atitudes

culturais) do que o nível cultural de aspjração. o visitante que se

atribui o nível de vestibular - quando, na realidade, tem apenas a 4a

série ou interrompeu os estudos no 2° ano do 2° grau - iria a um

museu se não se atribuísse o nível cultural que o legitima a visitar

os museus? Sabendo que o visitante modal dos museus possui o

vestibular, não teremos bons motivos para supor que a pretensão a

esse nível de instrução contribui, em parte, para suscitar naqueles

que não o têm uma "prática de quem possui tal diploma"?

Em seu conjunto, o público dos museus é relativamente

jovem, já que a parcela dos visitantes com idade compreendida entre

quinze e vinte e quatro anos corresponde, na França, a 37% contra

18% relativamente à população total e essa super-representação é

particularmente marcante nas classes populares e médias (aliás, 13%

dos visitantes oriundos das classes populares e médias declaram ter

descoberto o museu no decorrer de sua adolescência, em companhiade colegas). Além disso, a idade média dos visitantes aumenta

continuamente à medida que se sobe na hierarquia social, o que

parece indicar que o efeito da ação escolar é tanto mais duradouro

quanto mais elevado é o nível escolar atingido: portanto, essa ação

ter-se-ia exercido de forma mais prolongada; todo aquele que a

suportou disporia previamente de uma maior competência adquirida

pelo contato precoce e direto com as obras (sabe-se que tal contato

é sempre mais freqüente à medida que se sobe na hierarquia social);e uma atmosfera cultural favorável viria alavancar e intermediar sua

eficácia. Considerando, por um lado, que os escolares e os estudantes

constituem 78% dos visitantes com idade compreendida entre quinze

e vinte e quatro anos quando, em relação às faixas etárias

correspondentes, a parcela dos sujeitos escolarizados na população

francesa é de apenas 24,5%; e, por outro, que a taxa de freqüência

indica uma queda brutal (de 37 para 16%) quando se sai da faixa

etáriamais fortemente escolarizada (de quinze a vinte e quatro anos),

38o amor pela arle condições sociais daprálica cu/iural 39

Page 20: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

40

para diminuir, em seguida, de forma regular e tanto mais rapidamente

que se avança em direção às categorias mais idosas (ou seja, 15, 10,

8 e 4% relativamente às faixas etárias de trinta e três a quarenta e

quatro anos, quarenta e cinco a cinqüenta e quatro anos, cinqüentae cinco a sessenta e quatro anos e acima de sessenta e cinco anos),

podemos nos interrogar se a relação que une a idade e a freqüência

de um museu não traduz simplesmente o efeito da instrução. As

relações entre tal freqüência e a categoria sócio-profissional ou a

residência formulam, de fato, a mesma questão, tornando necessário,

por meio de outras técnicas, tentar determinar a influência respectiva

dos diferentes critérios que, à primeira vista, parecem igualmenteassociados à visita assídua de museus.

A busca da explicação exige, portanto, que as taxas de

representação das diferentes categorias de visitantes no conjunto

do público dos museus sejam substituídas pela probabilidadereconhecida a cada sujeito de entrar em um museu, durante

determinado tempo, segundo as diferentes características que o

definem. Como a população potencial de um museu é mal delimitada

ou ilimitada (pelo menos, virtualmente), a avaliação da população

total das categorias às quais se deve relacionar o efetivo dos visitantes

de cada categoria é necessariamente imprecisa, mas o é tanto menos

quanto maior for a unidade espacial e temporal selecionada: apesarde ser absurdo relacionar o número dos visitantes do Museu de

Lille com a população da cidade, é razoável calcular a relação entre o

número anual de visitantes de cada categoria e o efetivo global dessa

categoria ou, ainda, entre o número total de originários de

determinado país que visitaram um dos museus nacionais e a

população global desse país, o que eqüivale a admitir que, entre os

diferentes países, se verifique uma compensação aproximativa dosmovimentos de turismo cultural.

Como cada visitante é definido por um conjunto de critérios

(idade, diplomas, profissão, simbolicamente designados por A,

B, C), pode-se calcular, portanto, as probabilidades P (Ai, Bj,

Ck), ou seja, a probabilidade que uma pessoa de idade Ai, diploma

o amor pela arfe

Bj e profissão Ck, venha a visitar um museu de arte. No entanto,como as diferentes variáveis estão em co-variância e constituem

um complexo que pode ser identificado, graças a um númeromais restrito delas, encontramo-nos diante do problema clássico

da colinearidade. Todavia, se P (Ai, Bj) = P (Ai, Bj, Ck), ou dito

por outras palavras, se a idade e o nível de instrução sãoconhecidos, o conhecimento da profissão não fornece informação

suplementar, esse critério pode ser considerado independente da

freqüência de um museu (sem que a recíproca seja verdadeira, já

que, conhecendo unicamente a profissão, associada ao nível deinstrução, possuímos uma informação sobre a freqüentação) e

podemos concluir que a profissão não exerce uma influência

específica, na medida em que a relação que a une à visita assíduaa museus não passa de uma outra expressão da relação entre o

nível de instrução e tal freqüência.

Este método sofre os limites que lhe são impostos pelas condições

de experimentação estatística: em virtude da associação entre os

diferentes critérios e do reduzido tamanho da amostra, é

inevitável que, além da sub-representação de algumas categorias,

seja restrito o número de probabilidades Pi, j, k, ... cujo cálculo

seja significativo. Apesar de ser fácil isolar o efeito da idade, do

sexo, do diploma ou da profissão, a identificação da influência

simultânea do diploma e da profissão ou do diploma e do habitat

é mais difícil porque tais critérios estão ligados de forma bastante

forte.

De fato (ver Tabela 1), com a fixação do nível de instrução,o conhecimento do sexo ou da categoria sócio-profissional dos

visitantes fornece, em geral, poucas informações suplementares.

Sem dúvida, a assiduidade dos professores e especialistas de arte

é, em nível igual, nitidamente superior à das outras categorias

sócio-profissionais; sem dúvida, as mulheres oriundas da classealta visitam os museus com maior freqüência do que os homens.22

Sem dúvida, para justificar a precária representação dos

agricultores (que se encontra no limite da significação estatística

condições sociais elaprática cullural41

Page 21: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

•..

42

em razão da reduzida importância numérica dessa categoria de

visitantes), é necessário invocar, além do afastamento espacial, ainfluência desfavorável da atmosfera cultural, própria ao meio

rural. No entanto, o fato de que a taxa de prática dos quadrossuperiores, com um nível de instrução (C. E. P. ou B. E. P. C.)inferior ao nível modal de sua categoria, seja inferior às outras

categorias sociais, leva a concluir, ainda aqui, que a instrução

tem uma influência específica e determinante que não pode sercompensada unicamente pelo pertencimento às classes sociais

mais elevadas, nem pela influência difusa dos grupos de referência.Se os sujeitos classificados na categoria dos artesãos e

comerciantes têm, em todos os níveis, uma taxa de freqüência de

museus mais elevada do que as outras categorias é porque

pertencem, em grande parte, a uma subcategoria completamenteatípica, tanto por um nível de instrução superior à média da

categoria,23 quanto por opiniões mais próximas das opiniões dasclasses superiores do que das opiniões das outras classes médias

(em particular, sobre a utilização de flechas e o tipo de visitaspreferido [cf. Apêndice 2, Tabela 2]): de fato, 15% exercem uma

profissão relacionada com a moda, 8% são livreiros ou

proprietários de gráfica e 36% (quase todos, em Paris)

desempenham uma atividade relativa à arte (antiquário e decorador,ceramista, oleiro, desenhista de jóias e de cartazes).

Embora a maioria dos visitantes estejam de acordo ao julgarque os preços de ingresso são bastante baratos [cf. Apêndice 3,Tabela 3], podemos nos interrogar se, apesar de tudo, a renda

familiar não exerce uma influência específica sobre os ritmos de

freqüência, já que o custo de uma visita inclui outras despesas, no

mínimo tão importantes, tais como as despesas com transporte ouos custos implicados em qualquer saída familiar, e se um freio

orçamentário não continuaria a agir, até mesmo, na hipótese da

gratuidade dos ingressos. A distribuição da renda segundo acategoria sócio-profissional dos visitantes concorda, sem dúvida,

com a distribuição da renda dessas categorias, tal como aparece

o amor pela arfe

Tabela 1

TAXA DE FREQÜÊNCIA DE MUSEUS, POR ANO,

SEGUNDO AS CATEGORIAS*

(expectativa matemática de visita, durante um ano, em porcentagem)

SemC.E.P.B.E.P.C.vestibular

Licence

conjuntodiplomae acima

Agricultores

0,20,420,4 0,5

Operários

0,31,321,3 1

Artesãos e

1,92,830,759,4 4,9comerciantes

Empregados,

2,819,973,6 9,8

quadros médiosQuadros

2,012,364,477,643,3

superioresProfessores,

(68,1)153,7(163,8)151,5

especialistas dearteConjunto

12,32470,180,16,2

Sexo masculino

12,324,464,565,16,1

Sexo feminino

1,12,323,287,9122,86,3

15 a 24 anos

7,55,86028625821,3

25 a 44 anos

11,114,740,670,55,7

45 a 64 anos

0,71,515,342,569,83,8

acima de 65 anos

0,41,65,324,633,21,6

* Em relação aos outros países, ver o Apêndice 5.

condições sociais elaprdfica cuRural 43

Page 22: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

44

nas estatísticas do L N. S.E. E. * [cf. Apêndice 3, Tabelas 4 e 5]; no

entanto, por impossibilidade de calcular as taxas de freqüência em

função, ao mesmo tempo, da renda e do nível de instrução (por ser

desconhecida ainda a distribuição da renda dos franceses, segundo

seu diploma), não foi possível tirar qualquer conclusão a esse

respeito. Em todo caso, nada seria mais ingênuo do que esperar

que a simples queda do preço dos ingressos viesse a suscitar o

aumento da freqüência de museus por parte das classes populares.

Se a parcela dos sujeitos que visitam os museus ao domingo - e

mesmo quando, nesse dia, a entrada não é franca - em família,

quase sempre para acompanhar os filhos, decresce regularmente à

medida que se sobe na hierarquia social, é porque, antes de tudo,

o lazer das classes populares encontra-se submetido, maisestreitamente, aos ritmos coletivos [cf. Apêndice 2, Tabela 16].

Quanto à influência específica do habÍtat, ela não pôde ser

isolada (salvo para os rurais) em razão dos vínculos muito estreitos

que unem esta variável à categoria sócio-profissional e ao nível de

instrução. Tudo parece indicar, de fato, que as desigualdades culturais

associadas à residência estão ligadas às desigualdades de nível de

instrução e de situação social. Se, excetuando os pequenos museus,

aos quais o "Guide Vert" não atribui nenhuma estrela, os museus

recebem quase exclusivamente visitantes que habitam as cidades

universitárias, é porque as possibilidades de residir em uma grande

cidade aumentam à medida que se sobe na hierarquia social e também

porque as pequenas cidades limitam-se a oferecer poucasmanifestações e incitações culturais.

O fato de que as faixas etárias mais jovens sejam mais

fortemente representadas nos museus - a taxa de freqüência

permanece estável até a idade de sessenta e cinco anos, após uma

primeira ruptura em torno dos vinte e cinco anos -, explica-se

* Sigla de Institut national de la statistique et des études économiques, organismopúblico francês, encarregado da publicação de estatísticas, pesquisas e estudos, emparticular, sobre a conjuntura econômica. (N.T.)

o amor pela arle

manifestamente pela influência da Escola. De todos os fatores, o

nível de instrução é, de fato, o mais determinante. Uma pessoa donível do C. E. P. tem, durante o ano, 2,3 possibilidades em cem de

visitar um museu, o que eqüivale a afirmar que será necessário

esperar quarenta e seis anos para que se realize a expectativamatemática de vê-Ia entrar em um museu:24 excetuando as visitas

efetuadas sob a influência direta da Escola, a maior parte dos

indivíduos dessa categoria nunca visitarão um museu. No nível do

B. E. P. c., é necessário esperar quase cinco anos, mas passada a

idade escolar, as visitas acontecerão somente de seis em seis ou de

sete em sete anos. Para os detentores de vestibular, o ritmo das

visitas será de três por ano, durante a idade escolar e, em seguida,de uma visita de dois em dois anos. Em níveis superiores, a taxa de

visita é idêntica ao que era, para os níveis precedentes, a taxa na

idade escolar, o que é compreensível, já que neste caso a influênciada Escola é comparável, ou seja, o ritmo estabiliza-se, nas idades

pós-universitárias, por volta de duas visitas de três em três anos.

Como o diploma é um indicador bastante grosseiro do nível

cultural, pode-se pressupor que determinadas diferenças ainda

separam os visitantes do mesmo nível escolar, segundo diferentescaracterísticas secundárias. E de fato, em nível igual, aqueles que

receberam uma formação clássica são sempre mais representados

no público dos museus do que aqueles que não estudaram latim etêm sempre ritmos de prática (declarados) mais intensos. Paraevitar atribuir, como se faz freqüentemente, uma eficácia cultural

misteriosa, sobretudo, no caso particular, aos estudos clássicos, énecessário evidentemente ver nessa variável, não um fator

determinante, mas um índice de pertencimento a um meio culto,

já que se sabe que a orientação para tais estudos é cada vez maisfreqüente, mantendo-se iguais todas as outras variáveis, à medida

que se sobe na hierarquia social. O tipo de estudos secundáriosnão é, certamente, a única nem a mais determinante dascaracterísticas secundárias que explicam que, entre os indivíduos

dotados de determinado nível de instrução - por exemplo, o nível

condições sociais da prálica cuRural45

Page 23: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

46

do vestibular, que pode ser considerado como a condição necessária,

embora não suficiente, de uma freqüência assídua dos museus -,

ainda se possa distinguir diferentes graus de devoção cultural.

Sabe-se que é possível constatar fortes variações nas práticas

culturais, assim como nas preferências artísticas de indivíduos do

mesmo nível escolar ou social, segundo o nível cultural de sua

família de origem (avaliado pelo nível de instrução e pela profissão

de seus ascendentes em linha paterna e materna). Em razão da

lentidão do processo de aculturação, sobretudo, em matéria decultura artística, determinadas diferenças sutis, associadas à

antigüidade do acesso à cultura, continuam, portanto, separando

indivíduos aparentemente iguais no que diz respeito à situação

social e, até mesmo, ao nível escolar. A nobreza cultural possui,

igualmente, seus redutos.

Para estabelecer se, à semelhança da taxa de praticantes, a

intensidade da prática (avaliada a partir de sua freqüência no

decorrer do tempo) aumenta à medida que o nível de instrução se

eleva, é necessário verificar se os praticantes têm uma prática

tanto mais intensa na medida em que representem uma proporção

mais importante de sua categoria ou, ainda, se as diferentes

categorias separadas, segundo o grau de instrução, são

homogêneas relativamente à freqüência de sua prática. Pode-se

ver uma prova disso no fato de que as classes sociais, mais

representadas no público dos museus, são também as que declaram

uma freqüência anterior mais intensa; eis o que ocorre, até mesmo,

na Polônia, país em que o público é mais jovem e menos

competente em matéria de pintura do que o público francês ou

holandês.25 Além disso, a comparação da taxa teórica de primeiras

visitas ao museu (calculada na hipótese em que cada categoria

seria homogênea relativamente aos ritmos da prática) com a taxa

das primeiras visitas efetivamente constatadas permite estabelecer

que essa taxa é tanto mais elevada em determinada categoria,

quanto mais baixa for a taxa de freqüência de museus por parte

dessa categoria, e inversamente.

o amor pela arle

Sepressupomosque a populaçãoé homogêneae que designamospor

p a taxade freqüênciaanualmédia,o número de pessoasque visitam,

pelaprimeiravez um museu, entre a idade t e a idadet + dt, é dado

pela expressão (1 - p)t-I pdt; neste caso, a proporção total das

"primeiras visitas" escreve-se em primeira aproximação:

PI = _1_ tT(1- p)t-IpdtpT

em que T é da ordem de grandeza do período da vida (digamos50 ou 60 anos), durante o qual podem ser efetuadas visitas. Assim,

temos:

PI = -1 (1_qT)

Tq log q

com q = 1 - p. Para p muito baixo, temos:

(PI tende para a unidade quando p tende a zero).

Pelo contrário, se p é suficientemente grande, PI está próximo de

zero. Observemos que basta que p esteja próximo de 20% para

que PI esteja próximo de um. Concebe-se que, se a taxa defreqüência é bastante reduzida, a proporção das primeiras visitasserá bastante elevada e, no oposto, que se a taxa de freqüência é

importante, a maior parte dos visitantes serão freqüentadoresassíduos. Em resumo, PIé uma função decrescente de p.

Sabendo pela observação que, no nível do C. E. P.,P = 2,3% comT = 60, tem-se, por conseqüência, PI = 55%, número igual à

proporção experimental, o que permite tirar a conclusão de que a

população dos visitantes desse nível é homogênea, tanto mais queos mesmos resultados podem ser obtidos escrevendo que a

distribuição das visitas a um museu segue uma lei de Poisson de

parâmetro À = Tp, em que T e p têm a mesma significação,indicada mais acima.

condições sociais da prática cullural47

Page 24: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

48

A título de verificação, aventemos a hipótese de heretogeneidade

e admitamos que p corresponda à forma a PI em que PI é a taxa

de freqüência de uma subpopulação de importância relativa (e

relativamente reduzida), enquanto à subpopulação complementar

(de peso 1 - a) está associada uma taxa Pl nula de freqüência.Temos, então:

P= I.aJT(I_p)t-Ipctt= -1 [I-qTJI ----- o 1 1 1

a PI T ql T log ql

Encontra-se uma relação semelhante a (1); no entanto, desta vez,

ela diz respeito à taxa de freqüência PI da subpopulação dos

"devotos". PI revela-se próximo de zero, embora se presuma que

p esteja, igualmente, próximo de zero.

De forma mais geral, mostra-se que se P2 não é rigorosamentenulo, tem-se:

PI # - ..]22- 1 [1 - TpJ

P P2T log q2

que está próximo de zero se P2 é insignificante diante de p, o que

foi admitido como hipótese.16 Como o resultado teórico diverge,

realmente, do resultado experimental, a hipótese de

heterogeneidade pode ser rejeitada.

Pode-se, portanto, considerar como comprovado que as

diferentes categorias de visitantes, distintas segundo o grau deinstrução, são homogêneas relativamente à intensidade de sua

prática, que varia como a taxa de freqüência que as caracteriza, de

modo que a prática se intensifica à medida que se eleva o nível deinstrução.

Se a freqüência dos museus é, em seus ritmos, quaseindependente das regularidades que definem o calendário social,

nem por isso deixa de estar integrada nele, pelo viés do turismo,

que favorece uma intensificação da prática cultural, da oposição

sazonal entre os períodos de dias úteis e as férias. Será que issosignifica que, conforme afirmação corrente, o turismo exerce,

o amor pela arle

enquanto tal, uma influência determinante sobre a prática?

Considerando que a taxa experimental de primeiras visitas a um museu

nunca excede, até mesmo nas categorias mais favorecidas, a taxa teórica

de primeiras visitas calculada na hipótese em que cada uma das

categorias consideradas fosse perfeitamente homogênea, no que diz

respeito aos ritmos da prática, nada permite inferir que a taxa de

freqüência do conjunto da população francesa (e, por conseguinte, o

público de museus) esteja, atualmente, em via de aumentar de forma

bastante sensível quando se sabe, por outros estudos, que a taxa

global dos franceses com direito a férias está aumentandoconsideravelmente. Isso bastaria para nos levar a duvidar da eficácia

específica do turismo se não soubéssemos, por outro lado, que a

parcela dos que visitam museus apenas durante as férias (excetuando

os professores primários) é sempre bastante reduzida e que a proporção

das primeiras visitas (indicador dos ritmos de freqüência) decresce,em cada categoria, à medida que a taxa de freqüência aumenta: isso

significa que o turismo só pode exercer um efeito diferencial segundo

as categorias sociais, já que - se ele pode incitar os sujeitos menos

cultos a visitar pela primeira vez um museu - é, por si só, incapaz de

determinar "conversões" duradouras [cf.Apêndice2, Tabela 6].

De fato, sabe-se que, em primeiro lugar, o turismo não é

independente da instrução já que a amplitude, a duração e a

freqüência dos deslocamentos turísticos estão, de uma forma bastanteestreita, associadas à profissão e à renda, portanto, à instrução:

23% das famílias, cujos recursos são inferiores ou iguais a 600 Fmensais, tiram férias, contra 93% das famílias, cujos recursos

superam 2.000 F; do mesmo modo, a parcela dos "veranistas" variade forma considerável segundo a categoria profissional, ou seja, 18,5%

dos agricultores, 55% dos operários, 60% dos artesãos e comerciantes,

81 % dos quadros médios e 93% dos quadros superiores e

representantes das profissões liberaisY

Além disso, o próprio estilo do turismo e o lugar reservado

nele para as atividades culturais não dependem somente da estância

ou da duração das férias. Enquanto oportunidade, entre outras, de

condições sociais da prálica cuflural 49

Page 25: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

i:lrüi

50

atualizar uma atitude culta, o turismo cultural, ou seja, o turismo

que reserva um tempo para as visitas a museus, depende do nível

de instrução ainda mais fortemente do que o turismo comum

[d. Apêndice 2, Tabela 11]. A parcela dos sujeitos que, a pretexto

do turismo, visitam museus cresce à medida que se sobe na

hierarquia social: passa de 45% relativamente às classes populares

para 61 % das classes médias e 63% das classes superiores [d.

Apêndice2, Tabela 17].28Inversamente, 56% dos visitantes das classes

desfavorecidas visitam o museu de sua própria cidade contra 52%dos membros das classes médias e 33% dos membros das classes

superiores [cf. Apêndice 2, Tabela 10]. Do mesmo modo, 75% dos

visitantes que habitam em municípios cuja população é inferior a

30.000 habitantes freqüentam o museu de sua cidade, o que, entre

outras coisas, pode significar que os visitantes originários das

pequenas cidades ou das aldeias vizinhas sentem-se menos deslocados

no museu local - habitualmente, menos solene - do que em um

grande museu turístico; ou, então, relativamente aos menos cultos,

pode significar que eles entraram no museu por acaso e com o objetivode passar o tempo, por ocasião de uma de suas idas à cidade. De

fato, raros no conjunto do público de museus (8%), os visitantes

que afirmam explicitamente ter entrado no museu por acaso

recrutam-se, sobretudo, entre os representantes das classes mais

desfavorecidas (ou seja, 36% dos agricultores e 27% dos operários)

e, à semelhança do que ocorre com a parcela dos visitantes por acaso,

a proporção daqueles que afirmam ter vindo para acompanhar os

filhos não cessa de decrescer, à medida que se sobe na hierarquia

social ou à medida que cresce a atração turística do museu visitado

[cf. Apêndice 2, Tabela I 7]. Segue-se de tudo isso que até mesmo na

hipótese de que as oportunidades turísticas viessem a tornar-se iguais,

as diferentes categorias sociais continuariam a conformar-se, de

forma desigual, com o turismo cultural.

Ainda, por um grande número de índices, vê-se que a ação

específica do turismo se reduz a quase nada. Assim, a parcela dos

visitantes que pela primeira vez entraram em um museu a pretexto

o amor pela arfe

do turismo é extremamente reduzida (8%) [d. Apêndice 2, Tabelas

5 e 6]. Sem dúvida, mais de 25% dos sujeitos (28%) que entraramem um museu, na idade compreendida entre quinze e vinte e quatro

anos, fizeram tal visita a pretexto do turismo, mas constituem apenas

25% do público de museus; sem dúvida, metade daqueles que odescobriram depois de terem completado vinte e quatro anos foram

induzidos a tal visita pelo turismo, mas representam apenas 3% do

conjunto dos visitantes. Em suma, as possibilidades de descobrir o

museu pelo turismo aumentam à medida que se avança em idade,

ou seja, à medida que decrescem as possibilidades de descobri-Io;assim, bastaria dar a incitação inicial, uma vez que o turismo não

pode compensar a ausência de formação artística ou intelectual.

Como o turismo está associado ao nível de instrução por

intermédio da renda, os visitantes que têm as oportunidades mais

freqüentes de visitar os museus identificam-se com os que sentemmaior inclinação em proceder a tal visita. Trata-se aí de uma das

conjunções que fazem com que, em matéria de cultura, tanto as

vantagens como as desvantagens sejam cumulativas. Portanto, ainfluência exercida pelo turismo sobre a freqüência dos museus é

limitada, antes de mais nada, em sua duração, já que se trata de umfenômeno sazonal; mas sobretudo, em seu alcance, já que aparece

como condição permissiva e não como causa necessitante: ele pode

facilitar a prática cultural ampliando o campo das ocasiões de visita,

embora, por si só, não seja suficiente para determinar umaintensificação da prática. Em outra linguagem, se é demasiado

evidente que o turismo cultural pressupõe o turismo (na qualidade

de condição necessária), nem por isso deixa de variar nos limitesassim definidos, como o nível de instrução e não como o turismo.

À maneira da exposição, o turismo reativa os sentimentos de

obrigação que são constitutivos do sentimento de fazer parte domundo culto; quando a visita habitual a um museu sempre acessível

a todos escapa aos ritmos e controles coletivos e nada fica devendo

às pressões difusas que impõem a participação (enquanto presença

e representação) nas cerimônias coletivas, é um verdadeiro programa

condições sociais da práfica cu/iural 5 1

Page 26: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

5352

de práticas obrigatórias que, por ocasião dos deslocamentos

turísticos, é invocada por aqueles que têm ambições culturais mais

consistentes, ou seja, aqueles que pertencem ou aspiram a fazer

parte do mundo culto: este programa recebe sua força de coerção _pelo menos, em parte - das normas difusas, definidas e evocadas

pelos grupos de referência, amigos ou companheiros de trabalho

aos quais serão relatadas as férias e, também, pelos manuais turísticos

da arte de viver - "Guide Bleu" utilizado, sobretudo, pelas classessuperiores; "Guide Vert", mais comum entre as classes médias _

que ditam o que deve ser feito para poder falar aos outros e dizer a si

mesmo que já se "conhece" a Grécia ou a Itália. "Não poderia deixar

Lille sem visitar seu museu - diz um quadro superior; já tinha ouvidofalar de seus belos quadros." Por conseguinte, o crescimento

(correlato de um aumento do volume global dos visitantes) darepresentação das classes favorecidas, do ponto de vista social e

cultural, observado em alguns museus por ocasião das férias, é tanto

mais marcante quanto maior for sua força de atração turística

(definida pela notoriedade da cidade em que se encontram e,

sobretudo, pela celebridade das obras do seu acervo) e,

correlativamente, quanto mais elevado for o nível de informaçãoque eles propõem [d. Apêndke2, Tabela 9].29

Assim, o Museu de Autun, grande museu turístico (pelas célebres

obras de seu acervoe pela qualidade excepcionalda apresentação),

recebe quase exclusivamente um público de turistas cultos (75%

são detentores do vestibular), diferentemente das cidades de

importância equivalente, tais comoMoulins (uma estrela) ou Agen(três estrelas), em que o público localrepresenta, respectivamente,

21 % e 14% dos visitantes. No conjunto dos museus que receberam

de uma a quatro estrelas, a parcela relativa dos operários chega a14% do público, limitada a 4% no conjunto dos outros museus e

nula nos dois Museus de Paris Ueu de Paume e Arts décoratÍfs),

cujo público é particularmente aristocrático. Em compensação, aproporção dos quadros superiores passa de 41,5% nos museus

com uma estrela para 71,3% no Musée duJeu de Paume.

o amor pela arle

Como os imperativos culturais só podem constranger aqueles

que entendem manifestar seu pertencimento ao mundo culto, ao

obedecerem às regras que definem precisamente tal pertencimento,

a intensificação da prática favorecida pelo turismo é tanto mais forte

quanto mais se avança em direção às classes mais cultas (definidas

por um nível de recepção mais elevado); além disso, os deslocamentos

turísticos podem oferecer, no máximo, algumas possibilidades

suplementares de visitas aos sujeitos das classes populares que, na

maior parte do tempo, não passam de visitantes por acaso. Enquanto

os membros das classes cultas sentem-se convocados a respeitar

determinadas obrigações culturais que lhes são impostas na qualidadedo dever-ser constitutivo de seu ser social, os membros das classes

populares que, em sua prática, rompessem com as normas estéticas

e culturais respeitadas pelas pessoas à sua volta (procedendo à

decoração de suas casas com reproduções de quadros, em vez de

qualquer outra imagem, ou escutando música clássica, em vez de

canções) seriam chamados à ordem por seu grupo, pronto a perceber

o esforço para "se cultivar" como uma tentativa para "se aburguesar";e, de fato, a boa vontade cultural das classes médias é um efeito da

ascensão social, ao mesmo tempo que uma dimensão essencial da

aspiração aos direitos (e aos deveres) da burguesia. Na medida em

que as aspirações são sempre avaliadas de acordo com as possibilidades

objetivas, o acesso à cultura erudita, assim como a ambição de ter

acesso a ela, não pode ser o produto milagroso de uma conversão

cultural, mas, no estado atual, pressupõe uma mudança de condiçãoeconômica e social.

Assim, as relações observadas entre a freqüência assídua de

museus e determinadas variáveis, tais como a categoria sócio­

profissional, a idade ou o habitat, reduzem-se quase totalmente à

relação entre o nível de instrução e tal freqüência. Uma prova

suplementar pode ser encontrada no fato de que a análise fatorial

aplicada, separadamente, a duas subpopulações (o que tende a

neutralizara influência do nível de instrução) - ou seja, a dos

visitantes de nível inferior ao vestibular e a dos visitantes que, no

condições sociais da prálica cufiural

Page 27: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

* Em francês, âge

Os diferentes tipos de relações entre as diferentes variáveis

que foram descritos mais acima podem ser resumidos sob a forma

do seguinte esquema lógico.

Os dados da experiência podem ser indicados da seguinte maneira:

Variáveis Operadores

E

Escola X--7Yé, em probabilidade, causa de Y

A

Idade* X=YXeYestãoassociados

S

Sexoestocasticamente

C

Categoria profissionalX--7Y

implica evidentemente X = Y,mas não o contrárioR

Renda X;tYX e Y são independentes

I

Nível de Instrução estocasticamente, o que implica

(familiar e escolar)

que X não é causa de Y,ou Y de X

T

Turismo XxY --7ZX aplicado sobre Y implica Z; X é

P Campo das ocasiões da

causa de Z; Y é uma variável

permissiva,masnãovisita

necessariamente causa de X.

F Freqüência dos museus

X-YFinalmente, se X = Y, será

definirdo o símbolo X - Y como avariável residual obtida,neutralizando em X a ligaçãoempírica constatada entre X e Y;seria possível definir uma variáveldiferente Y - X.

SIMBOLISMO UTILIZADO

F = I

F=C

F=R

F=A

F;tS

F - I ;t C (em primeira aproximação)

F-I;tRF-I'= A

(1)

(2)

(3)

(4)

(5)

e (6)

(7)

mas (8)

mlmmo, são titulares desse diploma - não identifica correlações

significativas entre as diferentes variáveis selecionadas (seja em

relação a características sociais e culturais ou a atitudes e opiniões)

quando, relativamente ao conjunto da população, relações bastante

fortes unem cada uma dessas variáveis no nível de instrução.30

A população dos visitantes, cujo diploma é inferior ao vestibular,

é ligeiramente menos homogênea, de modo que aparecem

correlações inferiores ao patamar de significação, embora

ligeiramente mais fortes do que na outra categoria. Isso explica-se

pelo fato de que, abaixo do nível que define o visitante moda!, o

"rendimento" do ensino é fortemente crescente, de modo que

pequenas diferenças de nível cultural implicam fortes diferenças

de comportamento; no entanto, o inverso é verdadeiro para a

população de nível superior ao vestibular [d. Apêndice 2, Tabelas

22 e 23]. Daí, como veremos, segue-se que um ano de ensino

suplementar pode levar ao museu um número mais elevado de

visitantes suplementares entre as classes menos cultas do que entre

os detentores de um diploma igualou superior ao vestibular.

A existência de uma relação tão forte entre o nível de instrução

e a prática cultural não deve dissimular que, considerando os

pressupostos implícitos que a comandam, a ação educativa do sistema

escolar tradicional só pode alcançar toda a sua eficácia enquanto se

exercer sobre indivíduos previamente dotados, pela educação familiar,

de uma certa familiaridade com o mundo da arte: daí, segue-se que a

ação da Escola - exercida de forma bastante desigual (nem que fosse no

que diz respeito à duração) sobre as crianças oriundas das diferentes

classes sociais e que não é bem-sucedida senão de forma bastante

desigual junto àqueles que ela atinge - tende, pelo menos, em países

como a França ou a Holanda,31 a reduplicar e consagrar, por suas sanções,

as desigualdades iniciais diante da cultura. Assim, considerando que a

parcela daqueles que receberam da família uma iniciação precoce cresce

consideravelmente com o nível de instrução, o que é possível identificar

através do nível de instrução limita-se a ser o acúmulo dos efeitos da

formação adquirida no seio da família com as aprendizagens escolares,

por sua vez, pressupostas por tal formação.

54 o amor pela ar/e condições sociais da prálica culfural55

Page 28: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

56

Esta última relação (8) traduz, de fato, a relação causal (9)E -7 F (ação direta da Escola).

Pode-se, portanto, induzir a relação causal fundamental:

(10) 1-7 F

É fácil dar conta, então, de todas as relações empíricas porque

I -7 R o que implica I = R

I -7 C o que implica I = C

Se as relações (1) a (7) tivessem um caráter absoluto e não empírico,

estaria se tratando de uma verdadeira demonstração. Nada impede,

portanto, de determinar F - C ou F - R e estabelecer relações:

F-C=I e F-C;tR

F-R=I e F-R=C

Daí, resulta que I possui a maior "virtude" explicativa. Em

compensação, o procedimento estatístico encontra, aqui, seu

limite; e, ainda, convirá estabelecer a lógica das relações causais.

Falta reintroduzir o turismo. A relação (10) deve ser completadapela relação evidente:

(11) IxP-7F

o nível de instrução age sobre um campo de ocasiões de visita P

[correspondente, na Terceira Parte, à soma ill(x)].

Se este campo está vazio (igual a zero),

I x (P = O) -7 O

T faz parte de P, portanto;

(12) I x T -7 F

Em compensação, se T = O, tem-se sempre I x (T = O) -7 F e arelação T -7 F só é verdadeira se existir L

Por último, podemos nos interrogar se a relação F -7 F é

comprovada, ou seja, se a freqüência pode, por si só, implicar uma

intensificação da freqüência. De fato, verificam-se todas as

possibilidades de que, em relação aos sujeitos poucos cultos, a

o amor pek ar/e

primeira visita não tenha continuidade; no entanto, ocorre que,

além de um certo número de visitas, a familiarização resultante

da freqüência repetida deve reforçar a disposição para talassiduidade.

Daí, o gráfico:

Finalmente, se este esquema é válido, I desempenha o papel de

uma variável latente no sentido de Lazarsfeld, ou seja, de tal modo

que todas as correlações parciais, tais como r (i, j, 1) sejam nulas;

neste caso, i e j designam a variável que se quiser e, em particular,

uma das numerosas variáveis de atitude que se pode imaginar.

Em compensação, cada uma dessas variáveis pode depender de L

O cálculo da matriz [rjj] para a subpopulação inferior ao nível do

vestibular e à população superior a esse nível [ver supra, p. 54 e

Apêndíce 2] coloca em evidência, além disso, a existência de

"classes latentes", ou seja, de classes em que cada uma se reagrupa,

praticamente, em determinado ponto do campo da variável latente,

isto é, uma classe além do vestibular - que poderia corresponder

rigorosamente ao que se chama comumente o público culto - e,

no mínimo, duas aquém do vestibular.

Por se estabelecer no intermédio de diferenres variáveis, em

si mesmas independentes, a relação entre a variável explicativa e a

variável explicada apresenta uma grande estabilidade, manifestada

pela análise comparativa da estrutura social do público dos museus

de países tão diferentes, em diferentes aspectos, tais como a Espanha,

condições sociais da prática cufiural 57

Page 29: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

58

a França, a Grécia, a Holanda e a Polônia. Todas as diferenças que

incidam apenas sobre uma das variáveis intermediárias - por exemplo,

o turismo ou a distribuição por categoria sócio-profissional - não

são acompanhadas por nenhuma modificação importante relativa à

freqüência, como mostra o caso da Polônia que recebe um número

bastante reduzido de turistas estrangeiros ou a constância das

estruturas dos públicos de países dotados de estruturas sociaisbastante diferentes. Tudo acontece como se a eficácia de cada um

dos fatores secundários estivesse subordinada à estrutura do

conjunto dos fatores, de modo que a modificação de um deles pode

sempre ser compensada, enquanto a estrutura do conjunto não sofrer

a transformação sistemática que, segundo parece, seria a única capazde afetar, de maneira sensível, a relação fundamental entre a instrução

e a freqüência.

O público de museus, analisado segundo as principais

variáveis sócio-demográficas, apresenta características sensivelmente

comparáveis nos diferentes países estudados: assim, a proporção

dos visitantes que receberam uma educação secundária ou superior

atinge 89% na Grécia, 78% na França, 63,3% na Holanda (e 90,4%

se for incluído o primário superior), contra 60% somente na Polônia

[cf. Apêndke 5, Tabela 1]. Os jovens de idade compreendida entre

quinze a vinte e cinco anos constituem sempre uma importante

parcela do público, ou seja, 41 % dos visitantes gregos, 39% dosvisitantes franceses e holandeses, além de 47% dos visitantes

poloneses [d. Apêndke 5, Tabela 2]. Por toda parte, as taxas de

freqüência decrescem com a idade, sensivelmente segundo a mesma

lei. Nesses diferentes países, é mínima a diferença de estrutura social

do público: os operários representam 2% dos visitantes gregos eholandeses, 4% dos visitantes franceses e 10% dos visitantes

poloneses; por sua vez, a proporção dos agricultores é sempre inferior

(ou seja, entre 1 e 3%). As proporções dos quadros médios, quadros

superiores e professores ou especialistas de arte são notavelmente

constantes já que se situam, respectivamente, em torno de 17%

(13% na Grécia), 15% e 8 a 10% [d. Apêndke5, Tabela 3]. A parcela

o amor pela arle

do público, cuja freqüência está associada de forma mais estreita àinfluência direta ou indireta da escola, é também bastante estável,

já que os estudantes e os escolares representam 31 a 32% dos

públicos francês, grego e holandês, além de 39% do público polonês.A distribuição por sexo é também bastante semelhante nos diferentes

países; por toda parte, os homens são mais representados do que asmulheres. Se, diferentemente da França, a proporção das mulheres

permanece inferior à dos homens, até mesmo nos níveis de instruçãomais elevados, é porque a parcela das mulheres que terminam os

estudos superiores é inferior à dos homens; assim, pelo menos, à

primeira abordagem, somente a Polônia distingue-se dos outros

países por um conjunto de diferenças do mesmo sentido que, segundo

parece, traduzem o efeito de uma ação escolar mais intensa.32

Todavia, por não termos relacionado a distribuição do públicode museus de arte dos diferentes países, segundo as diferentes

variáveis, com a distribuição da população global segundo as mesmas

variáveis, expomo-nos a considerar disparidades ou similitudes que

podem referir-se a simples diferenças morfológicas como se fossemtributárias de diferenças institucionais ou culturais. É evidente,

por exemplo, que a comparação direta entre duas populações devisitantes só tem sentido se as populações globais correspondentes

apresentarem composições semelhantes, pelo menos, no que diz

respeito à idade e ao nível de instrução, assim como ao conjuntodos fatores associados à freqüência. Quando não existem tais

condições, só é possível comparar as características de categorias

dotadas de propriedades idênticas. Por sua vez, esta comparação sóencontra seu fundamento na hipótese em que a estrutura global

das características inerentes às diferéntes categorias, ou dos fatores

que as comandam, não possa ser considerada, em si mesma, comoum fator determinante dos diferentes tipos da prática: assim, uma

prática determinada, em sua totalidade ou em parte, pela busca da"distinção" que se designa comum ente pelo nome de esnobismo

depende da importância numérica relativa do grupo ou da classesocial implicados em tal busca e, sobretudo, de sua posição na

condições sociais da prdlica cu/iural59

Page 30: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

60

estrutura social, de modo que toda modificação de uma parte dosistema das relações entre os grupos envolvidos implicaria na

modificação das características do conjunto dos grupos. A questão

é particularmente importante por se tratar de práticas culturais que,como se sabe, obedecem, em geral, à dialética da divulgação e dadistinção.

Com todo o rigor, a comparação metodologicamente

irrepreensível das características dos diferentes públicos pressupõeque se possa construir o sistema das co-variâncias pelas quais a

estrutura do sistema de relações entre diferentes variáveis, quedefinem o público de cada país, se transforme em uma outra, demodo que, a cada um dos sistemas estudados, seja possível conferir

sua posição no âmbito do conjunto dos casos possíveis, incluindo

os que foram realmente observados. Isso significa que, estabelecida

pela sondagem a estrutura dos públicos dos diferentes museus da

Europa, ou seja, o sistema das relações diretas ou mediatas entre

variáveis dependentes ou independentes - tais como sexo, idade,nível de instrução, categorias sócio-profissionais, preferências em

matéria de pintura, expectativas relacionadas com a organização dosmuseus e com a apresentação das obras, etc. -, pretenderíamos levar

em consideração os valores de posÍção que cada uma dessas relaçõesdeve a seu pertencimento a um sistema particular de relações: no

entanto, semelhante comparação sistemática teria pressuposto umainformação sistemática sobre o conjunto das características dos

diferentes subsistemas de cada nação e, em particular, um

conhecimento aprofundado de cada um dos sistemas de ensino, com

suas tradições pedagógicas próprias, as diferentes políticas culturais,etc. Para evitar, em todo caso, comparar o incomparável e omitir de

comparar o comparável, era importante controlar a ação sistemática

exercida pelo sistema das características demográficas e sociais

inerentes a cada país - ou seja, a estrutura da população segundo osexo, a idade, o emprego e o nível de instrução - sobre cada uma das

relações, determinando as leis de transformação que,sistematicamente aplicadas a um dos sistemas de relações

o amor pela arle

estatísticas, ou mais exatamente ao princípio dessas relações,

permitem reencontrar as estruturas de todos os outros sistemas de

relações, com exceção de algumas variáveis independentes,

relativamente pouco numerosas e secundárias, cujas variações são

independentes das variáveis associadas.

Em um primeiro momento, pode-se relacionar a distribuição

do público segundo a idade ou o nível de instrução, com a

distribuição da população nacional segundo as mesmas relações, a

fim de determinar se as diferenças constatadas na composição dos

diferentes públicos são o efeito de diferenças na estrutura demo gráfica

e escolar da população global. Observa-se então que, como sugeria a

leitura direta das distribuições por idade, a parcela relativa dos jovens

no público é maior na Polônia. Neste caso, a relação entre a

população dos visitantes com idade compreendida entre quinze e

vinte e cinco anos no público de museus de arte e a proporção

correspondente na população nacional passa de 3 na Polônia, para2,8 na França, 2,15 na Grécia, 2 na Holanda; além disso, o decréscimo

da freqüência com a idade é tanto mais forte quanto maior é a parcela

dos jovens no público de cada país [d. Apêndice 5, Tabela 3]. É

difícil estabelecer a separação entre o que deve ser imputado à idade

e o que deve ser imputado à geração, já que, sobretudo no caso da

Polônia, as diferentes gerações foram submetidas a sistemas de

ensino profundamente diferentes; além disso, tudo leva a pressupor

que, ao democratizar-se - por conseguinte, atingindo classes sociais

dotadas de um capital cultural menos importante - qualquer sistema

de ensino perde sua eficácia para essas novas categorias.

Muito mais difícil é proceder a uma comparação metódica das

relações entre a proporção dos visitantes dotados dos diferentes níveis

de instrução e a proporção das populações correspondentes no

conjunto da população. De alguma forma, todas as diferençassistemáticas entre os diferentes sistemas escolares acabam ficando

inscritas em cada uma das relações comparadas: pelo fato de que os

conhecimentos adquiridos na escola, correspondentes a um mesmo

número de anos de estudos ou a um diploma "equivalente", podem

condições sociais daprálica cuJiural 61

Page 31: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

62

variar consideravelmente - segundo o conteúdo do ensino e, em

particular, do ensino de cultura; segundo os métodos pedagógicos

utilizados e os valores que, implícita ou explicitamente, regem a

transmissão da cultura e, em particular, da cultura artística; segundo

o recrutamento social dos docentes e discentes; e segundo o modo

de atribuição dos diplomas escolares (concurso, exame ou simples

certificado de escolaridade), etc. -, assim também as categorias

definidas pela posse de diplomas, formalmente equivalentes, podem

diferir profundamente em sua aptidão para a prática cultural e em

suas atitudes em relação à cultura. A despeito de tais reservas,

observa-se que, em todos os países, a distribuição dos ratios de

freqüência obedece à mesma lei: os ratios entre a proporção de

visitantes de museus dotados de um nível de instrução superior e a

proporção correspondente da população são de 17,3 na Holanda,

12,5 na França, 11,7 na Polônia e 11,5 na Grécia, contra 20 na

Holanda, 10,5 na Grécia, 10 na França e 1 na Polônia, no nível

secundário; por sua vez, no nível primário, situam-se em torno

de 0,5 em todos os países, com exceção daPolônia (1,5) [cf.ApêndÍce5,Tabela 4].33

Para avançar além de uma simples comparação das estruturas

do público ou, até mesmo, das estruturas corrigidas pela ponderação

das categorias consideradas na população global, seria necessário,

com todo o rigor, calcular, como se fez em relação à França, as

expectativas de freqüência associadas a cada uma das categorias

reputadas como homogêneas no que diz respeito a tal assiduidade;

mas, de fato, os diferentes censos nem sempre fornecem as

distribuições da população segundo a idade e o nível de instrução.

Ainda outro aspecto, além de nunca isolarem o público nacional, asestimativas oficiais dos fluxos anuais de visitantes limitam-se a

apoiar-se em estatísticas das entradas nos museus, estabelecidas

sem a preocupação de garantir a comparabilidade entre os diferentes

países ou, até mesmo, entre os diferentes museus de determinado

país: a contagem das visitas gratuitas ou as visitas coletivas obedece

a métodos diferentes e, às vezes, é descurada; em alguns museus, as

o amor pela arle

entradas não são levadas em consideração; qualquer procedimento

utilizado para contar o número de visitantes - seja pela estimativa

dos guardas, por catraca ou célula foto elétrica - acaba apresentandodiversos inconvenientes que só poderiam ser evitados pela contagem

dos ingressos individuais ou coletivos. Ainda mesmo nestas

condições, é possível tentar determinar os fluxos teóricos devisitantes nos diversos países estudados ao lhes atribuir as

expectativas de freqüência do público de museus franceses, ou seja,na hipótese em que os comportamentos das diferentes categorias

dos países estrangeiros fossem idênticos aos das categorias homólogas

da população francesa; assim, a comparação de tais fluxos teóricoscom os fluxos declarados deveriam permitir que nos interrogássemos

sobre os fatores explicativos que, depois da exclusão dos fatores

demográficos, pudessem justificar desvios superiores aos erros de

avaliação.

Quando - por exemplo, no caso da Grécia - dispomos da

distribuição da população segundo o sexo, a idade e o nível de

instrução, basta aplicar as expectativas matemáticas de visita dasdiferentes categorias da população francesa [d. acima, Tabela 1] para

determinar o que seria o fluxo teórico anual de visitantes gregos, na

hipótese em que as diferentes categorias da população grega tivessem

expectativas de visita semelhantes às das categorias correspondentes

da população francesa: como este fluxo teórico pode ser estimadoem cerca de 640.000 visitantes, vemos que os gregos têm uma prática

que, segundo parece, é nitidamente mais reduzida do que a dosfranceses, já que, segundo é demonstrado pela sondagem junto ao

público de museus gregos, em 1.300.000 visitas registradas no

conjunto dos museus helênicos, 10% somente dizem respeito ao

público nacional. Em relação à Polônia, o fluxo teórico calculado

segundo o mesmo método atinge o número de 1.850.000 visitas,

enquanto o número total dos visitantes dos cinco maiores museus

poloneses (Varsóvia, Cracóvia, Lodz, Lublin e Wroclaw) se eleva, em1963, a cerca de 2.300.000 (este número inclui as visitas gratuitas

contadas por meio de uma célula foto elétrica no Museu de Varsóvia,

condições sociais da prática cuDural63

Page 32: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

64

o que implica, sem dúvida, uma superestimação): daí, podemos

concluir que a freqüência dos poloneses é, mantendo-se iguais todas

as outras variáveis, ligeiramente superior à dos franceses. Em relação

à Holanda, a falta de informações sobre a distribuição da população

por idade e por nível de instrução obriga a proceder a uma estimativa

a partir de dados existentes, portanto, a introduzir um elemento

suplementar de incerteza: por exemplo, foi necessário admitir que

os efetivos de diplomados do ensino secundário e do ensino superior

eram proporcionais, em cada faixa etária, ao número de diplomados

de cada uma dessas ordens de ensino na época em que a categoria

considerada se encontrava em idade de obter diplomas (ou seja, por

exemplo, que o número de indivíduos de quarenta a cinqüenta anos

com um nível de instrução superior era proporcional ao número de

diplomas atribuídos entre os anos de 1940 e 1950). Seja qual for o

grau de aproximação desse cálculo, parece possível dizer que a

freqüência dos holandeses é praticamente igual à dos franceses, já

que o fluxo teórico de 2.300.000 visitantes é inferior ao fluxo

oficialmente declarado para o público de museus holandeses

(3.500.000), embora igual ao fluxo nacional tal como ele pode ser

calculado por subtração dos visitantes estrangeiros (ou seja, segundo

a sondagem junto ao público, 42% dos visitantes).

Assim, no que diz respeito às taxas de freqüência, a Polônia,

a Holanda e a França opõem-se nitidamente à Grécia: como se sabe,

este país tem taxas de escolarização bastante inferiores às dos outros

três países, além de reservar um espaço reduzidíssimo ao desenho e

à história da arte em um sistema de ensino primordialmente

consagrado à língua e à literatura antigas. A elevada taxa que se

verifica na Polônia deve ser imputada, segundo parece, não tanto a

uma ação direta que tivesse sido exercida sobre o público adulto

(como é testemunhado pela taxa bastante reduzida de visitantes

que afirmam ter entrado, pela primeira vez, em um museu, na idade

adulta, por ocasião de visitas promovidas por associações ou

organismos de ação cultural), mas a uma transformação da

significação social do museu e, sobretudo, a uma ação direta da

o amor pela arle

Escola, particularmente, intensa, cujos efeitos podem ser avaliados

pela taxa bastante elevada de escolares e estudantes entre os visitantes(e, correlativamente, pela elevada taxa de jovens), assim como pelaelevada taxa de visitantes que devem sua primeira visita à Escola.

De fato, tudo parece indicar que o público polonês que, em relação

à freqüência, se situa no mesmo plano do público holandês oufrancês, distingue-se muito mais nitidamente desses dois públicos

por suas atitudes e opiniões que parecem revelar um nível de

competência artística mais próximo do nível do público grego do

que do nível dos outros dois públicos. Quando se considera, defato, indicadores de atitude ou de competência tão diferentes quanto

o tipo de visita desejado [cf.Apêndice 5, Tabela 5], as opiniões sobreos subsídios desejados [cf.ApêndiceS, Tabela 6], as preferências em

matéria de pintura [cf. Apêndice 5, Tabela 7], ou de gênero artístico

[cf. Apêndice 5, Tabela 8], o tipo da primeira visita [cf. Apêndice 5,Tabela 9] ou o número de museus precedentemente visitados [cf.

Apêndice 5, Tabela 10], etc., observa-se que a Grécia, a Polônia, a

França e a Holanda se classificam regularmente na mesma ordem;

assim, a probabilidade de aparição de atitudes e de opiniões que, em

determinado país, estão associadas a um elevado nível de instrução

(e, por conseguinte, a uma posição elevada na sociedade), é tantomais forte para o conjunto das categorias de determinado país quantomais elevada for sua posição na hierarquia dos países estudados. É,

sem dúvida, na distribuição dos públicos dos diferentes países

segundo o tipo da primeira visita ao museu que, mais claramente,se revela o modo privilegiado de transmissão da cultura artística

(que é o princípio da relação privilegiada com essa cultura) e, por

conseguinte, a antigüidade e a força da tradição cultural: as primeirasvisitas são suscitadas pela família, de forma mais freqüente, na

Holanda e na França (e, com maior freqüência na Holanda do que

na França); pela Escola, com uma freqüência muito maior, na Polônia;

e pelo acaso ou pela recomendação de um amigo, muito mais

freqüentemente, na Grécia [cf. Apêndice 5, Tabela 9]. Assim, comomostra também a comparação dos números médios de pintores ou

condições soáais da prálica cuBura!65

Page 33: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

66

de escolas de pintura citados, em nível de instrução equivalente,

pelos visitantes dos diferentes países [d. Apêndice 5, Tabela 7], a

Holanda e, em menor grau, a França - país em que a tradição artística,

ao mesmo tempo antiga e sempre viva, portanto profundamente

inscrita nos costumes das classes privilegiadas - opõem-se a países,

tais como a Grécia, país em que a freqüência de museus e o gosto

pela arte estão reservados a uma minoria de amadores apaixonados,

ou a Polônia que, à escala da sociedade, tende a compensar a

fragilidade relativa de seu capital cultural por uma espécie de boa

vontade cultural.34 Tudo parece indicar que as diferentes estruturas

das distribuições das atitudes, segundo os níveis de instrução ou as

classes sociais, podem ser obtidas por translação a partir de uma

dessas variáveis, como se o princípio de todas as diferenças

sistemáticas em matéria de competência artística e, sobretudo, talvez,

de atitude em relação à cultura, que separam os visitantes dos

diferentes países, não fosse outra coisa senão o que poderia ser

designado por capital cultural nadonal; este seria avaliado pelo grau

de desenvolvimento do sistema de ensino (e pela antigüidade desse

desenvolvimento), assim como pela importância do capital artístico

que, por sua vez, depende da antigüidade e da vitalidade das tradições

artísticas (cujos índices seriam encontrados na existência de escolas

de pintura, de coleções particulares, etc.).35 A dupla posição da

Polônia se explicaria, então, pelo fato de que o efeito de aceleração

do processo de aculturação, em decorrência da intensificação da açãodireta da Escola, manifesta-se de uma forma mais diretamente

observável nas práticas do que nas atitudes e aptidões: o decréscimo

particularmente rápido, com a idade, das taxas de freqüência do

público polonês dá testemunho, com efeito, de que uma disposição

à prática que seja inculcada principalmente pela Escola está votada

a enfraquecer-se mais rapidamente do que a disposição produzidapela ação escolar quando exerci da sobre indivíduos dotados, tais

como as crianças oriundas das classes privilegiadas dos países da

"velha cultura", da familiaridade adquirida pelas experiências

precoces. Considerando a parte que pode caber à família na

o amor pela arle

transmissão da cultura artística, compreende-se que a prática cultural

e, mais ainda, a competência artística e as atitudes em relação às

obras culturais estejam estreitamente associadas ao capital cultural

nacional: toda a tradição cultural dos países de velha tradição exprime­

se, de fato, em uma relação tradicional com a cultura que não pode

ser constituída em sua modalidade própria, com a cumplicidade das

instituições encarregadas de organizar o culto da cultura, a não ser

no caso em que o princípio da devoção cultural foi inculcado, desde

a primeira infância, pelas incitações e sanções da tradição familiar.

condições sociais da prdlica cufiural 67

Page 34: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

seyunda parle

obras cuRurais

e dispOS1ÇãocuRa

SerpentÍn: "Ao dirigir-lhe meu pensamento, este reflete-se em sua mente namedida em que encontra aí idéias correspondentes e palavras convenientes. Aliás,

ele formula-se aí por meio de palavras que, segundo parece, o senhor entende; ereveste-se de sua própria língua, de suas frases habituais. Provavelmente, seus

acompanhantes entendem o que lhe digo, mas, cada um conservando suasdiferenças individuais de vocabulário e de elocução."

Barnstaple: "E eis a razão pela qual, uma vez por outra - por exemplo (...)quando o senhor se eleva até idéias, de cuja existência nossas mentes nem

suspeitam -, não entendemos nada."

H. G. WELLS,

MonsÍeur Barnstaple chez les Hommes-DÍeux.

A estatística revela que o acesso às obras culturais é privilégioda classe culta; no entanto, tal privilégio exibe a aparência da

legitimidade. Com efeito, neste aspecto, são excluídos apenas aqueles

que se excluem. Considerando que nada é mais acessível do que os

museus e que os obstáculos econômicos - cuja ação é evidente em

outras áreas - têm, aqui, pouca importância, parece que há motivos

para invocar a desigualdade natural das "necessidades culturais".Contudo, o caráter autodestrutivo dessa ideologia salta aos olhos:

se é incontestável que nossa sociedade oferece a todos a possibilidade

pura de tirar proveito das obras expostas nos museus, ocorre que

somente alguns têm a possibilidade real de concretizá-Ia.

Considerando que a aspiração à prática cultural varia como a prática

cultural e que a "necessidade cultural" reduplica à medida que esta

é satisfeita, a falta de prática é acompanhada pela ausência do

sentimento dessa privação; considerando também que, nesta matéria,

a concretização da intenção depende de sua existência, temos o

direito de concluir que ela só existe se vier a se concretizar. O que é

raro não são os objetos, mas a propensão em consumi-Ios, ou seja,a "necessidade cultural" que, diferentemente das "necessidades

básicas", é produto da educação: daí, segue-se que as desigualdadesdiante das obras de cultura não passam de um aspecto das

desigualdades diante da Escola que cria a "necessidade cultural" e,

ao mesmo tempo, oferece os meios para satisfazê-Ia.

Além da prática e de seus ritmos, todas as condutas dosvisitantes e todas as suas atitudes em relação às obras expostas

obras cuiíurais e disposição cuiía 69

Page 35: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

70

estão associadas, direta e quase exclusivamente, à instrução avaliada,

seja pelos diplomas obtidos, seja pela duração da escolaridade. Assim,

ao ser considerado um bom indicador do valor objetivamente atribuído

às obras apresentadas - seja qual for a experiência subjetiva

correspondente, prazer estético, boa vontade cultural, sentimento

de obrigação ou uma miscelânea de tudo isso' -, o tempo médio

efetivamente dedicado à visita cresce regularmente com a instrução

recebida, passando de vinte e dois minutos em relação aos visitantes

das classes populares para trinta e cinco minutos utilizados pelos

representantes das classes médias e quarenta e sete minutos

relativamente aos visitantes das classes superiores. Sabendo-se, por

outro lado, que o tempo que os visitantes declaram ter passado no

museu permanece constante, seja qual for seu nível de instrução,

pode-se supor que a sobreavaliação (tanto mais forte quanto mais

baixo for o nível de instrução do visitante) do tempo efetivamente

passado no museu denuncia (à semelhança do que ocorre com outros

índices) o esforço dos sujeitos menos cultos para se adaptarem ao

que consideram como a norma da prática legítima - norma que

permanece praticamente invariável, em determinado museu, para os

visitantes das diferentes categorias.

Os tempos médios declarados pelos visitantes de cada museu

podem ser considerados como indicadores da norma social do

tempo de visita que merece cada museu. A hierarquia dos museus,

segundo a parcela dos visitantes que declaram ter dedicado mais

de uma hora à visita, corresponde, grosso modo, àquela que

poderia ser estabelecida com a ajuda de indicadores, tais como o

número de estrelas que os guias atribuem aos museus: Rouen ­

59,5%; jeu de Paume - 58,5%; Lyon - 55,5%; Dijon - 51%; Lille ­

47%; Colmar - 46%; Douai - 43%; Tours - 42%; Laon - 40%; Bourg­

en-Bresse - 37%; Agen - 35%.36

A mesma lógica explica que os visitantes, por um lado,

sobreavaliem tanto mais o ritmo de sua prática, quanto mais reduzida

é sua freqüência e mais baixo é seu nível de instrução, e, por outro,

manifestem a tendência em estar de acordo para se atribuírem um

o amor pela arle

ritmo de três ou quatro visitas anuais que, segundo parece, define a

imagem feita pela maioria a respeito do que seria a práticaconveniente [d. Apêndice 3, Tabela 2].

O tempo dedicado pelo visitante à contemplação das obras

apresentadas, ou seja, o tempo de que tem necessidade para "esgotar"

as significações que lhe são propostas, constitui, sem dúvida, umbom indicador de sua aptidão em decifrar e saborear tais

significações:37 a inexauribilidade da "mensagem" faz com que a

riqueza da "recepção" (avaliada, grosseiramente, por sua duração)

dependa, antes de tudo, da competência do "receptor", ou seja, do

grau de seu controle relativamente ao código da "mensagem". Cadaindivíduo possui uma capacidade definida e limitada de apreensãoda "informação" proposta pela obra, capacidade que depende de seu

conhecimento global (por sua vez, dependente de sua educação e deseu meio) em relação ao código genérico do tipo de mensagem

considerado, seja a pintura em seu conjunto, seja a pintura de tal

época, escola ou autor. Quando a mensagem excede as possibilidades

de apreensão do espectador, este não apreende sua "intenção" edesinteressa-se do que lhe parece ser uma confusão sem o menor

sentido, ou um jogo de manchas de cores sem qualquer utilidade.

Ou, dito por outras palavras, colocado diante de uma mensagem

rica demais para ele - ou, como diz a teoria da informação,"acabrunhante" (overwhelmíng) -, o visitante sente-se "asfixiado"e abrevia a visita.

A obra de arte considerada enquanto bem simbólico não existe

como tal a não ser para quem detenha os meios de apropriar-se dela,

ou seja, de decifrá-Ia. O grau de competência artística de um agenteé avaliado pelo grau de seu controle relativo ao conjunto dosinstrumentos da apropriação da obra de arte, disponíveis emdeterminado momento do tempo, ou seja, os esquemas de

interpretação que são a condição da apropriação do capital artístico,ou, em outros termos, a condição da decifração das obras de arteoferecidas a determinada sociedade, em determinado momento do

tempo. A competência artística pode ser definida, provisoriamente,

obras cuRurais e disposição cuRa71

Page 36: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

72

como o conhecimento prévio das divisões possíveis em classes

complementares de um universo de representações: o controle dessa

espécie de sistema de classificação permite situar cada elemento douniverso em uma classe necessariamente definida em relação a outra

classe, constituída por todas as representações artísticas levadas

em consideração, de forma consciente ou inconsciente, que não

pertencem à classe em questão. O estilo próprio a uma época e a um

grupo social não é outra coisa senão tal classe definida em relação à

classe das obras do mesmo universo que ela exclui e que constituem

seu complemento. O reconhecimento (ou a atribuição, conforme o

termo utilizado pelos historiadores da arte, aliás, extraído do próprio

vocabulário da lógica) procede pela eliminação sucessiva das

possibilidades às quais se refere (negativamente) a classe da qual

faz parte a possibilidade efetivamente realizada na obra considerada.

Vê-se imediatamente que a incerteza diante das diferentescaracterísticas suscetíveis de serem atribuídas à obra considerada

(autores, escolas, épocas, estilos, temas, etc. ) pode ser suprimida

pela instalação de códigos diferentes que funcionem como sistemas

de classificação: seja um código propriamente artístico que, ao

autorizar a decifração das características especificamente estilísticas,

permite incluir a obra considerada na classe constituída pelo

conjunto das obras de uma época, de uma sociedade, de uma escola

ou de um autor ("trata-se de um Cézanne"); seja o código da vida

cotidiana que, enquanto conhecimento prévio das divisões possíveis

em classes complementares do universo dos significantes e do

universo dos significados, além das correlações entre as divisões de

cada um deles, permite incluir a representação particular, tratada

como signo, em uma classe de significantes e, por conseguinte,

saber, graças às correlações com o universo dos significados, que o

significado correspondente faz parte de tal classe de significados

("trata-se de uma floresta"). No primeiro caso, o espectador

interessa-se pela maneÍra de trataras folhas ou as nuvens, ou seja,pelas indicações estilísticas, situando a possibilidade realizada,

característica de uma classe de obras, por oposição ao universo das

o amorpela arle

possibilidades estilísticas; no outro caso, ele trata as folhas e asnuvens como indicações ou sinais, associados, segundo a lógica

definida acima, a significações transcendentes à própria representação

("trata-se de um choupo, de uma tempestade"), ignorando

completamente tanto o que define a representação como tal, quanto

o que lhe confere sua especificidade, a saber, seu estilo como método

particular de representação.

A competência artística define-se, portanto, como oconhecimento prévio dos princípios de divisão, propriamente

artísticos, que permitem situar uma representação, pela classificação

das indicações estiJísticas que ela contém, entre as possibilidades

de representação que constituem o universo artístico. Esse modode classificação opõe-se ao modo que consistiria em classificar uma

obra entre as possibilidades de representação que constituem o

universo dos objetos cotidianos (ou, mais precisamente, dosutensílios) ou o universo dos signos, o que eqüivaleria a tratá-Ia

como um simples monumento, ou seja, como um simples meio de

comunicação, encarregado de transmitir uma significaçãotranscendente. Perceber a obra de arte de maneira propriamente

estética, ou seja, enquanto significante que nada significa além

dele próprio, consiste em evitar considerá-Ia, como se diz às vezes,

"desligada de tudo, do ponto de vista emocional ou intelectual,salvo dela mesma", em suma, abandonar-se à obra apreendida em

sua singularidade irredutível, e, em vez disso, identificar seus

traços estiJísticos distintivos, colocando-a em relação exclusivacom o conjunto das obras que constituem a classe da qual faz

parte. No lado oposto, o gosto das classes populares define-se, àmaneira do que Kant descreve na CrÍtica da /àculdade do juÍzo,

sob o nome de "gosto bárbaro", pela recusa ou pela impossibilidade

(conviria dizer a recusa-impossibilidade) de operar a distinção

entre "o que agrada" e "o que dá prazer" e, de forma mais geral,entre o "desinteresse", única garantia da qualidade estética da

contemplação, e "o interesse dos sentidos" que define "o agradável"ou "o interesse da Razão": ele exige que toda imagem desempenhe

oeras cuRurais e disposição cuRa73

Page 37: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

74

uma função, nem que fosse a de signo; ora, essa representação

"funcionalista" da obra de arte pode basear-se na recusa da gratuidade,

no culto do trabalho ou na valorização do "instrutivo" (por oposição

ao "interessante") e, também, na impossibilidade de situar cada obra

particular no universo das representações, por falta de princípios de

classificação propriamente estilísticos.38 Daí, segue-se que uma obra

de arte que, segundo a expectativa de tais princípios, deverá exprimir

sem equívocos uma significação transcendente ao significante torna­

se tanto mais confusa para os mais desprovidos, quanto mais

completamente vier a abolir (à semelhança do que ocorre com as

artes não figurativas) sua função narrativa e designativa.

O grau de competência artística depende não só do grau de

controle do sistema de classificação disponível, mas ainda do grau

de complexidade ou de requinte desse sistema; portanto, avalia-se

através da aptidão para operar um maior ou menor número de divisões

sucessivas no universo das representações e, por conseguinte, para

determinar classes mais ou menos apuradas. Para quem disponha

apenas do princípio de divisão em arte romana e em arte gótica,

todas as catedrais góticas encontram-se alinhadas na mesma classe

e, desta forma, permanecem ÍndÍstÍntas, enquanto uma maior

competência permite identificar as diferenças entre os estilos próprios

às épocas "primitiva", "clássica" e "tardia", ou ainda reconhecer asobras de determinada escola no âmbito de cada um desses estilos.

Assim, a apreensão dos traços que definem a odgÍnajjdadedas obras

de uma época em relação às obras de outra época, ou, no âmago

dessa classe, as obras de uma escola ou de um agrupamento artístico

em relação a um outro, ou ainda, as obras de um autor em relação às

outras obras de sua escola ou de sua época, ou, até mesmo, de uma

obra particular de um autor em relação ao conjunto de sua obra, é

indissociável da apreensão das redundândas, ou seja, da identificação

dos tratamentos típicos da matéria pictural que definem um estilo:

em suma, a identificação das semelhanças pressupõe areferência

implícita ou explícita às diferenças, e inversamente.39

o amor pela arle

O código artístico, como sistema dos princípios de divisões

possíveis em classes complementares do universo das representaçõesoferecidas a determinada sociedade em determinado momento do

tempo, assume o caráter de uma instituição social. Sistemahistoricamente constituído e baseado na realidade social, este

conjunto de instrumentos de percepção que constitui o modo de

apropriação dos bens artísticos (e, de forma mais geral, dos bensculturais) em determinada sociedade, em determinado momento do

tempo, não depende das vontades, nem das consciências individuais,além de impor-se aos indivíduos singulares, quase sempre sem seuconhecimento, definindo as distinções que eles podem operar e as

que lhes escapam. Cada época organiza o conjunto das representaçõesartísticas segundo um sistema institucional de classificação que

lhe é próprio, encontrando analogias ou distinções entre obras que,em outras épocas, eram consideradas distintas ou semelhantes; alémdisso, os indivíduos sentem dificuldade para pensar em outras

diferenças que não sejam aquelas que o sistema de classificação

disponívellhes permite pensar. "Suponhamos, escreve Longhi, queos naturalistas e impressionistas franceses, entre 1680 e 1880, nãotivessem assinado suas obras, nem tivessem a seu lado, como arautos,

determinados críticos e jornalistas com a inteligência de um Geffroy

ou de um Duret. Imaginemo-Ios esquecidos, em decorrência de uma

reviravolta do gosto e de uma longa decadência da investigação

erudita, esquecidos durante cem ou cento e cinqüenta anos. O queaconteceria, imediatamente, com o retorno da atenção a seu respeito?

É fácil prever que, em uma primeira fase, a análise começaria por

distinguir, entre esses materiais silenciosos, várias entidades maissimbólicas do que históricas. A primeira usaria, como símbolo, o

nome de Manet que absorveria uma parte da produção juvenil de

Renoir e, até mesmo, receio, alguns Gervex, sem contar com toda aobra de Gonzales e de Morizat, além de toda a obra de juventude de

Monet: quanto ao Monet mais tardio, que também se tornousímbolo, incluiria quase toda a obra de Sisley, uma boa parte da obra

de Renoir e, o que é pior, algumas dezenas de obras de Boudin, além

obras cu/iurais e disposição cu/ia75

Page 38: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

76

de vários quadros de Lebour e de Lépine. Não está excluído, de

modo algum, que alguns quadros de Pissarro - e, até mesmo,

reparação pouco lisonjeira, mais de um quadro de Guillaumin ­

sejam, em semelhante caso, atribuídos a Cézanne."4o Ainda mais

convincente do que essa espécie de diversão imaginária, o estudo

histórico de Berne]offroy sobre as representações sucessivas da obra

de Caravaggio mostra que a imagem pública de uma obra, concebidapelos indivíduos de determinada época, é, propriamente falando, o

produto dos instrumentos de percepção, historicamente

constituídos, portamo, historicamente mutáveis, que lhes são

fornecidos pela sociedade de que fazem parte: "Sei muitíssimo bem

o que se diz a respeito das querelas relativas à atribuição; elas nada

têm a ver com a arte, são mesquinhas e a arte é grande (...). Nossa

idéia a respeito de um artista depende das obras que lhe são atribuídas

e, queiramos ou não, essa nossa idéia global a seu respeito acabacolorindo nosso olhar sobre cada uma de suas obras"Y Assim, a

história dos instrumentos de percepção da obra é o complemento

indispensável da história dos instrumentos de produção da obra, na

medida em que toda obra é, de alguma forma, elaborada duas vezes:

pelo criador e pelo espectador, ou melhor ainda, pela sociedade a

que pertence o espectador.

A legibilidade modal de uma obra de arte (para determinada

sociedade de determinada época) depende da diferença entre o código

exigido objetivamente pela obra considerada e o código como

instituição historicamente constituída: a legibilidade de uma obra

de arte para um indivíduo particular depende da diferença entre o

código, mais ou menos complexo e requintado, exigido pela obra e

a competência individual, definida pelo grau de controle atingido

por cada sujeito relativamente ao código social que, por sua vez, é

mais ou menos complexo e requintado. Pelo fato de que as obras

que constituem o capital artístico de determinada sociedade, em

determinado momento do tempo, exigem códigos desigualmente

complexos e requintados, portanto, suscetíveis de serem adquiridos,

com maior ou menor facilidade e rapidez, por uma aprendizagem

o amor pela arle

institucionalizada ou não, elas caracterizam-se por diferentes níveis

de emissão, de modo que a legibilidade de uma obra de arte para um

indivíduo particular depende da djférença entre o nível de emissão,42definido como o grau de complexidade e de sutileza intrínsecas do

código exigido pela obra, e o nível de recepção, definido como o

grau de controle atingido por esse indivíduo relativamente ao códigosocial que pode ser mais ou menos adequado ao código exigido pelaobra. Ao ser superado em sutileza e em complexidade pelo código da

obra, o código do espectador já não consegue controlar uma

mensagem que lhe parece desprovida de qualquer utilidade.

Como aplicação particular da lei geral da legibilidade, as regras

que, em cada época, definem a legibilidade da arte contemporâneavariam, em primeiro lugar, segundo a relação que os criadoresalimentam, em determinada época, em determinada sociedade, com

o código da época precedente: assim, de forma bastante grosseira,

pode-se estabelecer a distinção entre períodos clássÍCosem que umestilo alcança sua perfeição própria e em que os criadores exploramaté consumar e, talvez, esgotar, as possibilidades fornecidas por uma

arte de inventar herdada, e períodos de ruptura em que se inventa

uma nova arte de inventar, em que se engendra uma nova gramática

gerativa de formas, em ruptura com as tradições estéticas de umtempo e de um meio. A defasagem entre o código social e o código

exigido pelas obras apresenta, evidentemente, todas as condiçõesde ser mais reduzida nos períodos clássicos do que nos períodos de

ruptura, infinitamente mais reduzida, sobretudo, do que nos períodos

de ruptura continuada, tal como aquele em que nos encontramos

hoje. A transformação dos instrumentos de produção artística precedenecessariamente a transformação dos instrumentos de percepção

artística; ora, a transformação dos modos de percepção só pode ser

operada de forma lenta, já que se trata de desenraizar um tipo de

competência artística (produto da interiorização de um código social,

tão profundamente inscrito nos hábitos e memórias que funciona

no plano inconsciente) para ser substituído por outro, por um novo

processo de interiorização, necessariamente, longo e difíci1.43A

obras cu/iurais e disposição cu/ia77

Page 39: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

inércia própria das competências artísticas (ou, se quisermos, do

habitus) faz com que, nos períodos de ruptura, as obras produzidas

por meio de instrumentos de produção artísticos de um novo tipo

sejam percebidas, durante um certo tempo, por meio de antigos

instrumentos de percepção, ou seja, aqueles mesmo contra os quaiselas foram constituídas.

De qualquer modo, a falta de competência artística não é uma

condição necessária, nem suficiente, da percepção adequada das obras

inovadoras ou, a fortiori, da produção de tais obras. Aqui, aingenuidade do olhar não seria mais do que a forma suprema do

requinte do olho. O fato de ser desprovido de chaves não predispõe,

de modo algum, a compreender obras que exigem somente a rejeição

de todas as chaves antigas, na expectativa de que a obra forneça a

chave de sua própria decifração. Como se vê, trata-se da atitude que

os mais desprovidos diante da arte erudita estão menos dispostos atomar: a ideologia segundo a qual as mais modernas formas da arte

não figurativa seriam mais diretamente acessíveis à inocência da

infância ou da ignorância do que à competência adquirida por umaformação considerada deformante, tal como a da Escola, não é somente

refutada pelos fatos. Se as mais inovadoras formas de arte se oferecem,

inicialmente, apenas a alguns virtuoses (cujas posições de vanguarda

explicam-se sempre, em parte, pela posição que ocupam no campo

intelectual e, de forma mais geral, na estrutura social) é porque elas

exigem a aptidão para romper com todos os códigos, a começar

evidentemente pelo código da existência cotidiana; e porque essa

aptidão se adquire não só através da visita assídua a obras que exigemcódigos diferentes, mas também através da experiência da história

da arte, como sucessão de rupturas com os códigos estabelecidos.

Em suma, a aptidão do indivíduo para suspender todos os códigosdisponíveis a fim de se confiar à própria obra - no que esta possui,à primeira vista, de mais insólito - pressupõe o perfeito controle do

código dos códigos que regula a aplicação adequada dos diferentes

códigos sociais objetivamente exigidos pelo conjunto das obrasdisponíveis em determinado momento do tempo.44

Quem não recebeu da família ou da Escola os instrumentos,

que somente a familiaridade pode proporcionar, está condenado a uma

percepção da obra de arte que toma de empréstimo suas categorias à

experiência cotidiana e termina no simples reconhecimento do objeto

representado: com efeito, o espectador desarmado não pode ver outra

coisa senão as significações primárias que não caracterizam em nadao estilo da obra de arte, além de estar condenado a recorrer, na melhor

das hipóteses, a "conceitos demonstrativos" que, de acordo com a

observação de Panofsky, limitam-se a apreender e a designar as

propriedades sensíveis da obra (por exemplo, quando se descreve uma

pele como aveludada ou um bordado como delicado) ou a experiência

emocional (quando alguém falade cores austeras ou alegres), suscitada

por essas propriedades.45

"Aodesignar o conjunto de cores claras que se encontram no

centro do quadro da 'Ressurreição' de Grünewald como 'um homem

com as mãos e os pés transpassados que se eleva nos ares', transgrido

(...) os limites de uma pura descrição formal, mas ainda permaneço

em uma esfera de representações de sentido que são familiares e

acessíveis ao espectador com base em sua intuição óptica e em sua

percepção tátil e dinâmica, em suma, com base em sua experiência

exi~tencialimediata. Se, pelo contrário, considero esse conjunto de

cores claras como 'um Cristo que se eleva nos ares', pressuponho

algo que é culturalmente estabelecido" .46Em poucas palavras, para

passar da "camada primária dos sentidos que podemos penetrar com

base em nossa experiência existencial", ou, em outros termos, do

"sentido fenomenal que pode se subdividir em sentido das coisas e

em sentido das expressões", para a "camada do sentido - por sua

vez, secundária - que não pode ser decifrada senão a partir de um

saber transmitido de maneira literária" e pode ser chamada "esfera

do sentido do significado",47 devemos dispor de "conceitos

propriamente caracterizantes" (em oposição aos "conceitos

demonstrativos") que superem a simples designação das propriedades

sensíveis e, apreendendo as características propriamente estilísticas

da obra de arte (tais como "pictural" ou "plástica"), constituam

78o amor peh arle obras culiurais e disposição culia 79

Page 40: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

uma verdadeira "interpretação" da obra.48"O princípio da interpretação

(...) é sempre constituído pela faculdade cognoscitiva e pelopatrimônio cognoscitivo do sujeito que executa a interpretação, ouseja, por nossa experiência existencial, quando se trata de descobrir

somente o sentido do fenomenal, e por nosso saber literário quandose trata do sentido do significado".49 Privados do "conhecimento do

estilo" e da "teoria dos tipos" - únicos procedimentos capazes decorrigir, respectivamente, a decifração do sentido fenomenal e do

sentido do significado -, os sujeitos menos cultos estão condenados

a apreender as obras de arte em sua pura materialidade fenomenal,ou seja, à maneira de simples objetos do mundo; e se eles se sentem

tão fortemente inclinados a procurar e exigir o realismo da

representação é porque, entre outras razões, desprovidos de categoriasespecíficas de percepção, não podem aplicar às obras senão a "cifra"

que lhes permite apreender os objetos de seu meio ambiente cotidianocomo dotados de sentido.

À semelhança de qualquer objeto cultural, a obra de arte pode

fornecer significações de nível diferente segundo a grade deinterpretação que lhe é aplicada; além disso, as significações de nível

inferior, ou seja, as mais superficiais, permanecem parciais emutiladas - por conseguinte, errôneas -, enquanto não forem

adotadas as significações de nível superior que as englobam e as

transfiguram. A "compreensão" das qualidades "expressivas" - e, seé que se pode dizer, "fisionômicas" - da obra não é senão uma forma

inferior da experiência estética porque, por não ser amparada,controlada nem corrigi da pelo conhecimento propriamente

iconológico, ela se arma de uma cifra que não é adequada, nem

específica. Sem dúvida, pode-se admitir que a experiência interna,

como capacidade de resposta emocional à conotação da obra de arte,

seja uma das chaves da experiência artística; no entanto, a sensaçãoou a afeição suscitadas pela obra modificam seu valor conforme elas

constituam o todo de uma experiência da obra de arte reduzida à

identificação do que se pode chamar sua expressividade, ou conforme

se integrem na unidade de uma experiência adequada.

Portanto, a observação sociológica permite descobrir as formas

de percepção, efetivamente realizadas, correspondentes aos diferentes

níveis constituídos pelas análises teóricas como uma distinção da

razão. Qualquer bem cultural, desde a cozinha até a música serial,

passando pelos filmes de faroeste, pode ser objeto de apreensões

que vão da simples sensação atual até o deleite erudito, armado com

o conhecimento·· das tradições e das regras do gênero. Se, por

abstração, é possível estabelecer a distinção entre duas formas opostas

e extremas do prazer estético, separadas por todas as gradações

intermediárias, ou seja, entre a fruição que acompanha a percepção

estética reduzida à simples aisthesise o deleite proporcionado pela

degustação erudita e que pressupõe, a título de condição necessária,

embora não suficiente, a decifração adequada, ocorre que a percepção

mais desarmada tende sempre a superar o nível das sensações e das

afeições, ou seja, a pura e simples aisthesis: a interpretação

assimiladora que leva a aplicar, a um universo desconhecido e

estranho, os esquemas de interpretação disponíveis, ou seja, aqueles

que permitem apreender o universo familiar como dotado de sentido,

impõe-se como meio de restaurar a unidade de uma percepção

integrada. Os lingüistas conhecem os fenômenos de falso

reconhecimento ou de falsa apreciação que resultam da aplicação de

categorias inadequadas e do que se pode chamar a "cegueira cultural"

por analogia com o que eles designam por "surdez cultural": "A

métrica russa, observa N. S. Troubetzkoy, é construída a partir da

alternância regular entre sílabas acentuadas e sílabas inacentuadas ­

aquelas são longas, enquanto estas são breves. O fim das palavras

pode ocorrer em qualquer lugar do verso e o agrupamento sempre

irregular desses fins de palavras serve para animar e variar as

estruturas do verso. O verso tcheco assenta em uma distribuição

irregular do fim das palavras, de modo que cada início de palavra é

sublinhado por um reforço da voz: pelo contrário, as sílabas breves

e as sílabas longas estão distribuídas de forma irregular no verso e

seu agrupamento livre serve para animá-Io. Ao ouvir um poema

russo, um tcheco considera sua métrica como quantitativa e todo o

80o amor peb arle obras cuRurais e ch:SposiçãocuRa 81

Page 41: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

82

poema como bastante monótono; pelo contrário, ao ouvir um poema

tcheco, pela primeira vez, um russo fica, em geral, completamente

desorientado e desprovido de condições para identificar a métrica a

partir da qual o poema foi composto" .50Aqueles para quem as obras

de cultura erudita falam uma língua estrangeira estão condenados a

importar, em seu exercício de percepção e apreciação da obra de arte,

categorias e valores extrínsecos, ou seja, precisamente as categorias

e valores que organizam sua percepção cotidiana e orientam seus

juízos práticos. Por não terem condições de apreender a representação

segundo uma intenção propriamente estética, eles não conseguem

captar a cor de um rosto como um elemento de um sistema de relações

entre cores (as do paletó, do chapéu ou da parede situada no segundo

plano) mas, "situando-se imediatamente em seu sentido", para falar

como Husserl, lêem em tal cor, diretamente, uma significação

psicológica ou fisiológica, à semelhança do que ocorre na experiência

cotidiana. A apreensão do quadro como sistema de relações de

oposição e de complementaridade entre cores pressupõe não só a

ruptura com a percepção primeira que é a condição da constituição

da obra de arte como obra de arte, ou seja, da apreensão dessa obra

segundo uma intenção em conformidade com sua intenção objetiva

(irredutível à intenção do artista), mas ainda a posse da grade de

análise indispensável para apreender as diferenças sutis que, por

exemplo, separam uma gama de tons ordenados segundo as leis de

uma modulação requintada em tal quadro de Turner ou de Bonnard.51

Compreende-se, portanto, que a estética limita-se a ser, salvo

exceção, uma dimensão da ética (ou, melhor ainda, do ethos) de

classe. Para "saborear", ou seja, "apreender as diferenças e apreciar"52

as obras apresentadas, e para justificar o valor que lhes atribui, o

visitante pouco culto só pode invocar a qualidade e a quantidade do

trabalho; neste caso, o respeito moral toma o lugar da admiração

estética. "Conviria mostrar o valor de tudo o que há aqui, que

representa um trabalho com vários séculos, entende ... Se tudo isso

foi conservado é para mostrar o trabalho executado há séculos e que

tudo o que se faz tem alguma utilidade." "Aprecio muito a dificuldade

o amor pela arle

do trabalho." "Para avaliar um quadro, baseio-me na data indicada e

fico embasbacado quando me dou conta de que já passou tanto tempo

e que, nessa época, trabalhavam tão bem." Entre as razõesmanifestadas para atribuir uma admiração decisória, a mais segura einfalível é, sem dúvida, a antigüidade das coisas apresentadas. "Êmuito lindo ... É antigo. Talvez fosse necessário ter museus para as

obras modernas, mas isso deixaria de ser um museu. Aqui, tudo é

realmente antigo, entende?!" O valor das coisas antigas não será

comprovada simplesmente pelo fato de terem sido conservadas e a

antigüidade das coisas conservadas não será uma justificaçãosuficiente para sua conservação? Neste aspecto, a única função dodiscurso consiste em fornecer a quem o profere as razões de uma

adesão incondicional a uma obra, cuja razão lhe escapa. Não será

significativo que, convidados a dar sua opinião sobre as obras e sua

apresentação, os visitantes menos cultos manifestem uma aprovaçãototal e maciça que se limita a exprimir, sob uma outra forma, umaconfusão à medida de sua reverência? "É muito lindo. Não se pode

apresentá-Ias melhor do que estão expostas." '~chei que tudo émuito lindo." Do mesmo modo, como se quisessem exprimir desta

forma que eles sabem apreciar, em seu justo valor, o que lhes é

oferecido pelo museu, os visitantes são tanto mais numerosos a

julgar barato o preço do ingresso quanto menor é seu nível deinstrução [d. Apêndke 3, Tabela 3].

De que maneira uma percepção tão desprovida de princípios

organizadores poderia apreender as significações organizadas queentrariam em um conjunto de saberes acumulados? "Para me

lembrar, é outra história. Não compreendi nada de Picasso; no meu

caso, não consigo me lembrar dos nomes" (mulher comerciante,

Lens). "Gosto de todos os quadros onde aparece o Cristo" (operária,

Ulle). Dois terços dos visitantes, oriundos das classes populares,

não conseguem citar, no termo de sua visita, o nome de uma obraou de um autor que lhes tivesse agradado, do mesmo modo que, deuma visita anterior, não retiram saberes que pudessem ajudá-Ias em

sua visita presente: assim, compreende-se que uma visita, muitas

obras cuBurais e disposição cuBa83

Page 42: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

••

84

vezes determinada por razões do acaso, não é suficiente para incitá­

Ias ou prepará-Ias para empreender outra visita. Totalmente tributários

do museu e dos subsídios que este lhes oferece, eles se sentem

particularmente desnorteados em museus que, por vocação, se

destinam ao público culto: 77% desejariam receber ajuda de um

conferencista ou de um amigo [ef. Apêndice 2, Tabela 2], 67%

gostariam que a visita fosse orientada com flechas e 89% que as

obras estivessem acompanhadas por tabuletas explicativas [ef.

Apêndice 2, Tabela 3]. Mais da metade das opiniões declaradas contêm

esta expectativa: "Para alguém que queira se interessar, é difícil.Limita-se a ver pintura, datas. Para poder discernir diferenças, é

necessário um guia. Caso contrário, é tudo igual" (operário, Lille).

"Prefiro visitar o museu ao lado de um guia que me explique e me

faça compreender os pontos obscuros para o comum dos mortais"

(empregado, Pau).

A ausência de qualquer indicação capaz de facilitar a visita é

considerada pelos visitantes oriundos das classes populares, às vezes,

como a expressão de uma vontade de excluir pelo esoterismo ou, nomínimo, como afirmam naturalmente os visitantes mais cultos, uma

intenção comercial (a saber, favorecer a venda dos catálogos). De

fato, flechas, tabuletas, guias, conferencistas ou recepcionistas não

conseguiriam substituir verdadeiramente a falta de formação escolar,

mas proclamariam, por sua simples existência, o direito de ignorar,

o direito de estar presente como ignorante, o direito dos ignorantes

de estarem presentes; contribuiriam para minimizar o sentimentode inacessibilidade da obra e de indignidade do espectador,

manifestada perfeitamente nesta reflexão ouvida no Palácio de

Versalhes: "Este Palácio não foi feito para o povo e isso não mudou ..."

Todas as condutas dos visitantes oriundos das classes popularesdão testemunho do efeito de distanciamento sacralizante exercido

pelo museu. Essa é a perturbação respeitosa de todos os visitantes

ocasionais, impelidos pela exaltação de um dia de festa ou pela

ociosidade de um domingo chuvoso, e votados a provocar, à sua

passagem, as reflexões maldosas dos freqüentadores assíduos, a

o amor pela arle

chacota dos borra-tintas e as advertências dos guardas. Aliás, tal

situação é evocada por Zola ao descrever as deambulações das

núpcias de Gervaise com Coupeau, através das salas do Museu doLouvre: "A nudez severa da escadaria tornou-os sisudos. Sua

emoção reduplicou-se à vista de um soberbo bedel, usando colete

vermelho e libré ornado com galões dourados, que parecia estar à

sua espera no patamar. Foi com respeito, avançando o mais

lentamente possível, que eles penetraram na galeria de arte

francesa."

o melhor revelador da significação objetiva do museu tradicional

é a mudança de atitude que, entre os visitantes do museu de Lille,

determinou a passagem da exposição dinamarquesa para as salas

do museu:, "Na sala de exposição dinamarquesa, entrou um casalbastante idoso; além de botinas grosseiras, a mulher usa um manto

um tanto deformado, caído na parte da frente; por sua vez, o

homem continua sentindo arrepios em seu sobretudo, comprido

demais, que chega até a altura da barriga das pernas; eles

deambulam ao acaso, apontam com o dedo, ao longe, o que lhes

agradaria ver de mais perto, falando em voz alta. Passam

rapidamente diante de alguns estandes, sem se deterem. Ao acasode suas deambulações, acabam entrando na sala de cerâmicas do

museu. Avançam bem devagar à volta e, escrupulosamente,

inspecionam cada vitrine, uma após outra; agora, o homem tem asmãos nos bolsos e mal se ouve a voz deles; no entanto, aqui, o

casal está só." Igualmente, é bastante diferente a atmosfera nas

duas partes do museu: ''Aqui, é o silêncio recolhido e a calma

ordem dos lentos movimentos ao longo das paredes; lá, na

afluência da tarde, fica-se um pouco atordoado pelas conversações

barulhentas, os objetos que são removidos e fazem ruído ao serem

arrastados pelo chão, os guris que correm de um lado para o outro,

enquanto ós pais procuram, com veemência, chamá-Ios à ordem.

Aliás, há um grande número de crianças o que é motivo de

admiração para o guarda: 'Afinal, há muitas famílias numerosas,

hein!' Os visitantes tocam em tudo, sentam-se nas poltronas,

o6ras cuflurais e disposição cufla85

Page 43: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

8786

levantam as almofadasdos canapés, abaixam-separa olhar debaixo

das mesas. Batem com o dedo na madeira ou no metal para teruma idéia do valor da matéria e estimam o peso dos talheres. Um

casal inclina-se para observar melhor os talheres de prata: 'Você

está vendo, diza mulher, se eu tivesse de escolher a minha primeirabaixela, eu compraria uma como esta.' Ela pega uma faca e um

garfo, finge cortar alguma coisa em um prato imaginário e leva o

garfo à boca". E os comportamentos dos visitantes diferem tão

profundamente que o observador - condenado, em um primeiro

momento, à sociologia espontânea - imputa, a uma diferença norecrutamento social do público (desmentida pela análise

estatística), as diferenças que, antes de tudo, se referem à

significação social do museu e de uma exposição que introduz

nele, por exceção, a atmosfera de uma loja de departamentos,

museu do pobre; aliás, tal ocorrêncianão deixa de suscitar algumaindignação entre os visitantes habituais do museu tradicional. A

conversão de toda a atitude operada pelos visitantes pode resumir­se nas seguintes oposições, aquelas mesmas que estabelecem a

distinção entre o universo sagrado e o universo profano: intocável­

tocável; ruído - silêncio recolhido; exploração rápida e semordem - procissão lenta e regulada;apreciaçãointeressada de obrasvenais - apreciaçãopura de obras "sem preço".

Tendo de enfrentar a prova (no sentido escolar do termo) queo museu representa para eles, os visitantes menos cultos sentem-se

pouco inclinados, de fato, a recorrer ao guia ou ao conferencista

(quando estes existem) por terem receio de revelar sua

incompetência. "Para uma pessoa que vem pela primeira vez, em

minha opinião, ela se sente um tanto perdida ... Na verdade, as

flechas, antes de tudo, poderiam servir de guia; não é nada agradávelpedir informações" (faxineira, Ulle). Ignorando a conduta conveniente

e, antes de tudo, preocupados em não se denunciarem por

comportamentos contrários ao que julgam ser a conveniência, elescontentam-se em ler, tão discretamente quanto possível, as tabuletas­

quando estas existem. Em suma, sentem-se "deslocados" e exercem

o amor pela arfe

a autovigilância com receio de chamarem a atenção por alguma

incongruência. "Temos receio de encontrar um conhecedor (...). Para

conseguir uma boa preparação antes, é necessário ser um profissional

ou especialista do assunto. Não, um cara como eu entra e sai

anonimamente" (operário, Ulle). Se os agricultores e os operários

são, ligeiramente, mais favoráveis às flechas do que às tabuletas

com inscrições é talvez porque, por falta de um mínimo de cultura,

sentem de maneira menos urgente a necessidade de esclarecimentos;

é talvez, também, porque exprimem dessa forma o sentimento ­

suscitado neles pelo espaço do museu - de estarem perdidos (àsvezes, no sentido primeiro do termo); é, sem dúvida,

fundamentalmente, porque encontrariam nesse "caminho a seguir"

a primeira resposta à sua preocupação em passar despercebidosatravés da adoção de uma conduta conveniente. "As flechas são

necessárias; na primeira vez, a gente se sente em um nevoeiro"

(operário, Ulle). "O que faz falta são as flechas! Para indicar

determinados lugares ... Há um instante em que a gente vê todas as

peças e não sabe para onde ir" (operária, Ulle). E se os visitantes

oriundos das classes populares preferem visitar o museu, seja com

parentes ou com colegas, é porque, sem dúvida, encontram no grupo

um meio de conjurar seu sentimento de mal-estar; pelo contrário, o

desejo de fazer sozinho tal visita exprime-se com uma freqüência

cada vez maior à medida que é mais elevada a posição na hierarquia

social (ou seja, na França, em 16% dos agricultores e operários, em

30% dos membros das classes médias e 40% das classes superiores)

[d. Apêndice 2, Tabela 1].

A parcela dos visitantes que declaram preferir a visita solitária do

museu cresce, em todos os países, à medida que se elevao nível de

instrução ou a posição na hierarquia social, passando, na Grécia,

de 17% nas classes populares para 20% nas classes superiores

(com uma taxa de 13% para as classes médias); na Polônia, de

28% nas classes populares para 42% e 44% nas classes médias e

superiores, respectivamente; e, na Holanda, de 33% para 51% e

59%, nas categorias correspondentes. A hierarquia que se

obras cuilurais e disposição cuila

Page 44: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

estabelece entre os diferentes países parece, portanto, indicar quea taxa de visitantes que desejam fazeruma visita solitária ao museu

é tanto mais elevada quanto mais elevado for o capital culturalnacional [ct Apêndke 5, Tabela 5].

Enquanto os membros das classes cultas sentem repugnância

pelas formas mais escolares de ajuda, preferindo o amigo competente

ao conferencista e o conferencista ao guia que se ri da ironia distinta,

os visitantes oriundos das classes populares não têm receio do aspecto,

evidentemente escolar, de um eventual enquadramento: "No que diz

respeito a explicações, quanto mais houver, melhor ... É sempre bom

ter explicações seja lá para o que for (...). O mais importante é o guiaque nos orienta e nos fornece explicações" (operário, Ulle). "Em vez

de ficar só, gostaria de estar com alguém qualificado; caso contrário,a gente passa ao lado e não vê nada" (operário, Lille). Por não terem

condições de definir, com clareza, os meios de preencher as lacunas

de sua informação, eles invocam, de maneira quase mágica, a

intervenção dos mais consagrados intercessores e mediadores, capazes

de tornar mais próximas as obras inacessíveis; deste modo, a parcelados visitantes que desejam a ajuda de um conferencista (em vez de

um amigo competente) passa, na França, de 57,5% relativamente às

classes populares para 36,5% em relação às classes médias e para 29%

dos representantes das classes superiores [cf.Apêndke 2, Tabela 2] :53

"Na verdade, um conferencista nos instrui ... Os conferencistas são

quase sempre acadêmicos que conhecem as coisas na ponta da língua,

são professores, o que dizem é útil para nós". Vê-se que aqueles queinvocam a repugnância das classes populares em relação à ação escolar

limitam-se a atribuir-Ihes, segundo o etnocentrismo de classe quecaracteriza a ideologia populista, sua própria atitude em relação àcultura e à Escola.54 A questão não é tanto de saber se todos os

esclarecimentos fornecerão "olhos" a quem não "vê", tampouco se as

tabuletas explicativas serão lidas e lidas corretamente; mesmo quenão fossem lidas ou, como é provável, somente por quem sente menosnecessidade de tais esclarecimentos, nem por isso deixariam dedesempenhar sua função simbólica.

Não é, sem dúvida, exagerado pensar que o sentimento

profundo da indignidade (e da incompetência) que assombra os

visitantes menos cultos, como que esmagados pelo respeito diante

do universo sagrado da cultura legítima, contribui consideravelmente

para mantê-Ios afastados dos museus. Não será significativo que a

parcela dos visitantes que têm a atitude mais sacralizante em relação

ao museu decresce muito fortemente quando a posição social se

eleva (79% dos membros das classes populares associam o museu à

imagem de uma igreja, contra 49% nas classes médias e 35% nas

classes superiores), enquanto cresce a proporção dos sujeitos que

desejam que os visitantes sejam pouco numerosos (ou seja, 39%

nas classes populares, 67% nas classes médias e 70% nas classes

superiores), preferindo a intimidade selecionada da capela à afluência

da igreja [cf. Apêndke4, Tabelas 7 e 8]?

Não será significativo também que a hostilidade em relação

aos esforços despendidos para tornar as obras mais acessíveis seencontre, sobretudo, entre os membros da classe culta? Por um

paradoxo aparente, as classes mais bem providas em subsídios

pessoais, tais como guias ou catálogos (aliás, o conhecimento desses

instrumentos e a arte de utilizá-Ios pressupõem cultura), é que

recusam com maior frequência os subsídios institucionalizados e

coletivos: "Penso que é inútil pretender impor um caminho a seguir

na visita do museu, diz um estudante. Pessoalmente, gosto de ser

livre, estar só em minha escolha e inspiração. Sem ir longe demais,

comparo a visita de um museu a uma viagem, porém, à maneira de

Montaigne, avançando até o fim do atalho, impelido pelo ar e pelo

vento, saboreando o tempo presente, sem pressa nem guia, sonhando

com o passado" (Louviers). "Sinto saudades, diz um professor, do

antigo Salon Carré do Louvre, no qual havia tantas coisas para

descobrir. Agora, somos privados do intenso prazer da descoberta,

já que os quadros nos são impostos em salas separadas. Obrigam­

nos a olhar exclusivamente tais quadros. Deixou de ser uma festa

para se transformar em uma escola primária. Ver, compreender e

saber tudo: que trindade pedante! Assim, não há mais alegria" (Lille).

88o amor pela arle obras cuRurais e disposição cuRa 89

Page 45: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

As atitudes dos diferentes públicos nacionais em relação aos

subsídios pedagógicos exprimem, uma vez mais, a hierarquia dos

diferentes países, classificadossegundo a importância de seu capitalcultural, de modo que a explicação invocada para justificar asdiferenças constatadas' nas atitudes das diferentes classes sociais

de determinado país aplica-se também às diferenças entre osdiferentes países: de fato, os visitantes holandeses manifestam

uma hostilidade nitidamente mais marcante do que os franceses

em relação às flechas e tabuletas explicativas; os poloneses, cujaprática é mais imediatamente tributária da ação direta da Escola,

ocupam uma posição intermediária entre a da França e a da Grécia,se excetuarmos os estudantes e os professores que, ainda mais

nitidamente do que seus homólogos franceses, manifestam sua

reserva em relação a todas as formas de ajuda, talvez porque se

encontram em melhores condições para avaliar o custo que essasdisciplinas podem implicar para eles. Dotados de um nível de

competência pouco elevado,os visitantes gregosnão podem deixar

de sentir, com um vigorparticular, a necessidadede serem ajudados

na visita de museus que apresentam, sobretudo, vestígiosarqueológicos [d. Apêndice 5, Gráfico 6].

Será motivo de espanto o fato de que a ideologia do domnatural e do olho novo esteja tão disseminada entre os visitantes

mais cultos e em tantos conservadores de museu, e de que osprofissionais da análise erudita das obras de arte sintam,freqüentemente, repugnância em proporcionar aos não-iniciados o

equivalente ou o substituto do programa de percepção armada de

que são detentores e constituintes de sua cultura?55 Se a ideologiacarismática que transforma o encontro com a obra na ocasião de

uma descida da graça (charÍsma) proporciona aos privilegiados amais "indiscutível" justificação de seu privilégio cultural, fazendo

esquecer que a percepção da obra é necessariamente erudita _ porconseguinte, aprendida -, os visitantes oriundos das classes

populares estão bem posicionados para saber que o amor pela arte

nasce de um convívio bem prolongado e não de um golpe repentino:

"Com certeza, é possível amar de paixão, à primeira vista; mas, issosó acóntece depois de ter lido muito, sobretudo, em relação à pintura

moderna" (operário, Ulle).

A confusão vivenciada diante das obras expostas decresce

desde que a percepção possa se armar de saberes típicos, por mais

imprecisos que sejam. O primeiro grau da competência propriamenteestética define-se pelo controle de um arsenal de palavras que

permitem dar nome às diferenças e constituí-Ias ao nomeá-Ias: trata­

se dos nomes de pintores célebres - Da Vinci, Picasso, Van Gogh ­

que funcionam enquanto categorias genéricas, já que se pode dizerdiante de toda pintura (ou qualquer objeto) de inspiração não realista

"Isto é um Picasso" ou diante de qualquer obra que evoque, de

perto ou de longe, a maneira de pintar do artista florentino: "Pareceum Da Vinci"; trata-se também de categorias bem amplas, tais como

os "impressionistas" (cuja definição, análoga à adotada pelo Musée

du Jeu de Paume, estende-se comumente a Gauguin, Cézanne e

Degas) ou "os holandeses" ou, ainda, "o Renascimento". Assim,

para nos limitarmos a um indicador extremamente grosseiro, a parcela

dos sujeitos que, ao responder à pergunta sobre suas preferências

picturais, citam uma ou várias escolas cresce de forma bastante

significativa à medida que se eleva o nível cultural (ou seja, 5% para

os detentores do C. E. P., 13% para os titulares do B. E. P.C., 25%

para os estudantes que passaram no vestibular, 27% para os que

obtiveram a IÍcence, e 37% para os detentores de um diploma superiorà Ikence). Do mesmo modo, entre os visitantes oriundos das classes

populares, 55% não citam nenhum nome de pintor; por sua vez, os

restantes nomeiam, quase sempre, os mesmos autores, consagrados

pela tradição escolar e pelas reproduções dos livros de história e das

enciclopédias, ou seja, Leonardo Da Vinci ou Rembrandt.

A parcela dos visitantes que citam escolas cresce, em todos os

países, à medida que se eleva o nível de instrução. Sempre

bastante reduzida, essa taxa corresponde, na Polónia, a 2% para

as classes médias e a 5% para as classes superiores, enquanto aparcela dos visitantes que citam, exclusivamente, pintores

90o amor pela arle obras cuRurais e disposição cuRa 91

Page 46: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

92

bastante célebres passa de 39% relativamente às classes populares

para 24% das classes médias e para 15,5% das classes superiores.

Na Grécia, a taxa dos visitantes que citam pelo menos uma escola

de pintura é nula em relação àqueles que possuem apenas o

ensino primário, correspondendo a 6% relativamente àqueles

que freqüentaram o ensino técnico, 24% em relação àqueles que

têm o nível de vestibular e 19% para aqueles que atingiram o

nível universitário. Entre o público holandês, a hierarquia é a

mesma, embora as taxas de citações de escolas sejam globalmente

mais elevadas, o que se compreende facilmente, considerando

que a escolaridade secundária e superior é nitidamente mais

disseminada e que a riqueza e a diversidade das coleções

holandesas de pintura conferem a seus museus um nível de oferta

sem qualquer proporção com o dos museus poloneses nem com

o dos museus de arte gregos, pelo menos no que diz respeito à

pintura. Assim, 14% dos holandeses do nível primário, 25% do

nível técnico, 66% do nível do vestibular e 43% do nível

universitário, citam, no mínimo, uma escola de pintura [d.Apêndke 5, Tabela 7]. Na França, país em que as taxas são

ligeiramente inferiores, observa-se que 22% dos agricultores

citam, pelo menos, um pintor não representado no museu, contra

39% dos operários, 54% dos artesãos e comerciantes, 63% dos

empregados e quadros médios, 70% dos quadros superiores,

77% dos professores primários e 78% de outros professores,especialistas de arte e estudantes.

Do mesmo modo, os visitantes oriundos das classes populares

se interessam, preferencialmente, pelas obras "menores" que lhes

são mais acessíveis, como os móveis ou as cerâmicas, os objetos

históricos ou do folclore, seja porque conhecem seu uso, dispondode elementos de comparação e de critérios de avaliação (ou, ainda

melhor, de apreciação em seu verdadeiro sentido), ou porque a culturaexigida para a compreensão de tais objetos, a saber, a culturahistórica, é mais comum; por sua vez, os membros das classes

superiores prestam maior atenção às obras de arte mais nobres

o amor pela arle

(pinturas ou esculturas) [d. Apêndice 2, Tabelas 14 e 15].56 Domesmo modo, finalmente, a taxa dos visitantes que conhecem já as

obras que vinham ver no museu cresce fortemente à medida que se

sobe na hierarquia social (ou seja, 13% nas classes populares, 25,5%nas classes médias e 54,5% nas classes superiores); uma parcela

desses visitantes (26% nas classes populares, 45% nas classes médias

e 26% nas classes superiores) já conhecia as obras através de

reproduções [cf.Apêndice 4, Tabela 4]. Em suma, os saberes genéricos

- ou seja, a condição da percepção das diferenças e da fixação das

lembranças, nomes próprios, conceitos históricos, técnicos ouestéticos - são cada vez mais numerosos e mais específicos à medida

que se avança em direção às classes mais cultas.

O oposto de um desmentido de tais proposições é o quedeve ser observado no fato de que os visitantes orientam sua escolha

para os pintores mais célebres e mais consagrados pela Escola comuma freqüência tanto maior quanto menor é seu nível de instrução;

pelo contrário, os visitantes mais cultos, residentes nas grandescidades, são os únicos a citar pintores modernos que têm menos

possibilidades de encontrar lugar no ensino [d. Apêndice 2, Tabela20]. O acesso aos juízos de gosto, classificados como "pessoais",é ainda um efeito da instrução recebida: a liberdade de se libertar

das restrições escolares pertence apenas àqueles que assimilaramsuficientemente a cultura escolar para interiorizar a atitude

autonomizada em relação a essa cultura, ensinada por uma Escola

tão profundamente impregnada pelos valores das classes

dominantes que ela retoma, por sua conta, a desvalorização mundana

das práticas escolares. A oposição escolar entre a cultura canônica,

estereotipada e, como diria Marx Weber, "rotinizada", por um lado,

e, por outro, a cultura autêntica, libertada dos discursos escolares,

só tem sentido para uma ínfima minoria de homens cultos, porque

a plena posse da cultura escolar é a condição da superação da culturada Escola em direção à cultura livre - ou seja, libertada de suas

origens escolares - considerada pela classe burguesa e sua Escolacomo o valor dos valores.

obras cuRurais e dispoÚção cuRa 93

Page 47: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

94

Na França, os visitantes de nível inferior ao vestibular orientam-se,

quase exclusivamente, em direção aos pintores mais renomados

(como Van Gogh ou Renoir, que foram objeto de filmes, ou Picasso

e Buffet, que fazem parte da atualidade) e mais consagrados pela

tradição escolar (tais como Da Vinci, Rembrandt ou Michelangelo)

ou por reproduções de manuais (como Le Nain, David, La Tour,

Greuze ou Rafael); os visitantes detentores do vestibular cedem

menos às solicitações da atualidade (Van Gogh cai do primeiro

para o segundo lugar; Picasso do terceiro para o sexto; e Buffet do

quinto para o décimo-sexto) e citam com menor freqüência os

pintores mais "escolares" que cedem o lugar a Gauguin, Braque,Cézanne, Dufy, Fra Angelica, El Greco e Velásquez. Além de terem

um leque de escolhas nitidamente mais aberto (como é

testemunhado pelo fato de que os vinte pintores mencionados com

maior freqüência não constituem senão 44% dos pintores citados,

contra 56% nas classes médias e 65% nas classes populares), os

visitantes de nível superior ao vestibular propõem uma classificação

que se distingue, tanto pela originalidade dos nomes citados Gáque

se vê aparecer Botticelli, Klee, Poussin, Vermeer, Bosch, Ticiano),

quanto pela hierarquia das preferências (Van Gogh cai para o sexto

lugar, Da Vinci para o oitavo, Rafael para o décimo-quinto): sem

dúvida, o mais importante é que, ao lado dos pintores

impressionistas, citados com menor freqüência, e dos grandes

clássicos, comuns a todas as listas (Da Vinci, Rembrandt, Delacroix,

etc.), aparecem, com boa classificação, pintores modernos, tais

como Klee (7) e Braque (8), assim como clássicos menos renomados,

tais como Poussin (8), Vermeer (8), Velásquez (8) ou Ticiano (15)[cf. ApêndÍce 2, Tabela 21].

Apesar de ser possível verificar o crescimento da parcela das

citações originais à medida que se sobe na hierarquia social, os

visitantes de museus na Europa estão de acordo, com pequenas

variantes de caráter nacional, em relação a uma hierarquia comum

das notoriedades da qual fazem parte, em proporções praticamente

iguais, os valores mais clássicos e os revolucionários da geração

.o amor pela arle

precedente, ou seja, Van Gogh, Rembrandt, Picasso, Goya, Cézanne,

Renoir e Da Vinci. O fato de que o público de cada um dos países

manifeste a tendência para colocar pintores nacionais nos

primeiros lugares explica-se, sem dúvida, pelo apego aos valores

pátrias, estimulado pelas tradições escolares (em particular,

veiculadas pelos livros adotados na escola) e, ao mesmo tempo,

pelo conteúdo das coleções nacionais. É assim que os poloneses

atribuem uma preferência bastante marcante a pintores (uma dúzia,

entre os vinte nomes citados), cuja obra está estreitamente

associada à história nacional; por sua vez, além de colocarem El

Greco em primeiro lugar, os gregos citam outros pintores nacionais,

embora em menor proporção do que os poloneses, sem dúvida,

porque o ensino não reconhece à pintura grega da época moderna

um lugar e sentido análogos aos que lhe são conferidos na Polônia,

e também porque, sendo seus gostos e preferências menos

tributários diretamente de um ensino que reserva um lugar

extremamente reduzido à história da arte, eles atribuem uma

importância maior aos pintores estrangeiros. O fato de que os

vinte pintores citados com maior freqüência representem 94,1%

das menções na Grécia, 81,1 % na Polônia, 60,9% na Holanda e

50,8% na França, e de que, também, os dois primeiros pintores

citados representem, por si só, quase metade das menções na Grécia

e na Polônia (54,2% e 46,3%, contra 37,3% na Holanda e 16,3%

na França), dá testemunho de que o campo dos pintores conhecidos

(e amados) tende a aumentar à medida que cresce o capital cultural

nacional. As diferenças entre as preferências do público francês e

do público holandês explicam-se, sem dúvida, por um lado, pelo

conteúdo das coleções artísticas dos dois países; além disso, é

notável que pintores, tais como Klee (que, na França, só aparece

na classificação das classes superiores) ou Mondrian e Kandinsky,

apareçam em lugar bastante bom entre os pintores citados pelo

conjunto do público holandês [cf. Apêndice 5, Tabela 11]. Bastante

apegados a suas tradições nacionais e, sobretudo, regionais, os

italianos colocam nos primeiros lugares os pintores locais,

obras cuRurais e chsposição cuRa 95

11\"

Page 48: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

contas, bastante ortodoxos e que, segundo observava Boas, "o

pensamento do que chamamos de classes cultas seja controlado,

principalmente, pelos ideais que foram transmitidos pelas gerações

passadas"?57 Se, com maior freqüência do que os outros, os mais

deserdados em matéria de cultura detêm e exprimem o que aparece

ao observador como a verdade objetiva da experiência culta é pela

seguinte razão: do mesmo modo que a ilusão da compreensão

imediata do meio ambiente cultural não é possível senão no âmbito

do mundo natal, em que os comportamentos e os objetos culturais

são moldados segundo determinados modelos imediatamentecontrolados, assim também a ilusão carísmática, advinda da

familiaridade, só pode desenvolver-se naqueles para quem o mundo

da cultura erudita é também o mundo natal. Ou, dito por outras

palavras, o desnorteamento e a confusão daqueles que estão

desprovidos da "cifra" cultural lembram que a compreensão de uma

conduta ou de uma obra cultural é sempre dedfTação mediata, até

mesmo no caso particular em que a cultura objetiva e objetivada

tornou-se, no termo de um longo e lento processo de interiorização,cultura no sentido subjetivo.

Eis o motivo pelo qual afirmar que os homens cultos são os

possuidores de cultura é mais do que uma simples tautologia. Ao

aplicarem - por exemplo, às obras de sua época - determinadas

categorias herdadas e, ao mesmo tempo, ignorarem a novidade

irredutível de obras que trazem em seu bojo as próprias categorias

de sua própria percepção, os homens cultos - que fazem parte da

cultura tanto quanto a cultura lhes pertence -limitam-se a exprimir

a verdade da experiência culta que é, por definição, tradicional. Como

se vê, os devotos da cultura, votados ao culto das obras consagradas

dos profetas defuntos, assim como os sacerdotes da cultura,

dedicados à organização desse culto, encontram-se do lado

completamente oposto aos profetas culturais que transtornam a

rotina do fervor ritualizado, enquanto não tiver passado o tempo

necessário para que, por sua vez, sejam "rotinizados" por novossacerdotes e novos cl,evotos.

96

ao lado das glórias mais reconhecidas, Botticelli ou Da Vinci,

enquanto Rembrandt, Goya e os impressionsitas só aparecemmencionados pelo público culto de Milão.

Os visitantes mais cultos manifestam, muitas vezes, osentimento de participar de uma cultura livre, fazendo incidir suas

escolhas, por um lado, nos pintores revolucionários das gerações

precedentes, em vez dos pintores mais antigos, desvalorizados pelohábito e pela falsa famílíaridade, ou, por outro, nos mais inovadoresdos criadores contemporâneos.

Uma pesquisa anterior sobre as opiniões e as práticas dos

estudantes em matéria de pintura mostrou que, apesar de sua

aspiração à originalidade, os estudantes franceses davam,

maciçamente, sua preferência aos pintores mais consagrados entre

os que eram propostos à sua seleção.O apego aos valores seguros

observa-se, tanto à escalada história geralda pintura - osprimeiros

lugares são atribuídos a Da Vinci,Poussin,Chardin, Légere Dali _,

quanto em relaçãoà pintura francesaposterior ao impressionismo.

No entanto, do mesmo modo que os visitantes estão tanto mais

inclinados ao conformismo, quanto mais baixa é sua posição nahierarquia social e cultural, assim também a escolha dos clássicos

mais notórios é mais freqüente entre os filhos de camponeses e deoperários. Uma análise mais minuciosa permitiria até mesmo

estabelecer uma distinção entre pintores apreciados,

indiferentemente da classe social de origem dos visitantes (Van

Gogh, Gauguin, Monet, Buffet); pintores cujo prestígio cresce à

medida que essa origem social é mais elevada (Degas, Sisley,

Modigliani);pintores mais apreciadospelos estudantes originários

das classes populares (Renoir, Cézanne); e alguns pintores que,segundo parece, correspondem às preferências próprias às classesmédias (Utrillo, Toulouse-Lautrec).

Será surpreendente que os gostos e o bom gosto que ossujeitos mais cultos devem à ação homogênea e homogeneizante,

"rotinizada" e "rotinizante" da instituição escolar, sejam, afinal de

o amor pekz arle obras cu/iurais e disposição cu/ia 97

Page 49: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

98

Mas será que temos o direito de tirar a conclusão de que, das

relações estabeleci das entre o nível de instrução e todos os caracteres

da prática cultural, a influência da Escola é determinante, sabendo

que, pelo menos na França, por falta dos mais indispensáveis meios

materiais e institucionais, a ação direta da Escola (educação artística,

ensino da história da arte, visitas guiadas de museus, etc.) é

extremamente precária? Ora, esta carência é particularmente grave,

já que somente 3% dos visitantes atuais de museus entraram pela

primeira vez em um museu depois de terem completado vinte e quatro

anos (o que significa que o destino é definido bem precocemente) e

já que as crianças originárias dos meios desfavorecidos não visitam

museus a não ser por intermédio da Escola [cf. Apêndke2, Tabela

5]. Por falta de uma organização específica, diretamente orientada

para a inculcação da cultura artística e encarregada de sancionar

sua assimilação, as operações escolares de difusão cultural são

abandonadas à iniciativa dos professores, de modo que a influênciadireta da Escola é bastante reduzida: 7% somente dos visitantes

franceses afirmam ter descoberto o museu pela Escola e aqueles que

devem seu interesse pela pintura à influência direta de um professor

são relativamente pouco numerosos [cf. Apêndke 2, Tabela 6].

Não se pode compreender que o ensino do desenho ocupe, na

França, um espaço tão restrito nos programas educacionais e que

os professores encarregados de tal ensino sejam tradicionalmente

considerados, tanto pela administração quanto por seus colegas e

pelos alunos, como docentes de segunda ordem, votados aos

ensinos secundários, com todas as conseqüências pedagógicas e

materiais daí decorrentes (falta de locais especializados e de

material, falta de apoios institucionais); tampouco se pode

compreender o fato de que a história da arte seja confiada, não aos

professores de desenho, exclusivamente votados ao ensino das

técnicas, mas aos professores de história que, subjugados à tirania

dos programas, consagram à arte, como afirma um deles, "uma

aula por século", se este estado de coisas não for visto como a

expressão da hierarquia dos valores que domina todo o sistema

o amor pela arle

de ensino e, talvez, todo o sistema socia].58A desvalorização do

ensino artístico participa da desvalorização de todo ensino técnico,

ou seja, de todo ensino das "artes mecânicas" que exige, sobretudo,o trabalho manual; ora, é significativo que o professor de desenho

encontre algum prestígio somente no universo, globalmente

desvalorizado, do ensino técnico. Além disso, o fato de que o

ensino da história da arte esteja dissociado do ensino das técnicas

artísticas e tenha sido confiado aos professores de história,

disciplina canônica, manifesta a tendência de todo sistema de ensino

francês em subordinar a produção de obras ao discurso sobre as

obras. Mas, por outro lado, o ensino do desenho ou da música

deve também sua situação subalterna ao fato de que a sociedade

burguesa que exalta o consumo das obras atribua pouco valor à

prátÍca das artes recreativas e aos produtores profissionais de obrasde arte. Convém citar as KreislerÍana de Hoffman: "É evidente

que, ao crescerem, as crianças devem renunciar à prática da arte;

com efeito, tais coisas não podem convir a homens sérios e, muitas

vezes, levam as damas a negligenciar os deveres superiores do

mundo. Desde então, limitam-se a ter uma fruição passiva da

música e fazem com que, em seu lugar, esta seja tocada pelos

filhos ou artistas profissionais. Desta adequada definição da arte,

conclui-se que os artistas - ou seja, pessoas que dedicam (na verdade,

de forma bem absurda!) sua vida inteira a uma ocupação que

serve apenas para sua recreação e distração - devem serconsiderados como ralé e só devem ser tolerados por colocarem

em prática o miscereutili du1ce. Nunca um homem de bom senso

e de mente madura irá atribuir ao mais excelente artista uma

estima semelhante àquela que dedica a um laborioso escrivão ou,

até mesmo, ao artesão que confeccionou a almofada em cima da

qual está sentado o conselheiro em seu gabinete ou o comerciantediante do caixa: com efeito, uns têm em vista o útil, enquanto os

outros ligam somente para o agradável. Portanto, o fato de nos

mostrarmos delicados e amáveis para com o artista só pode ser a

conseqüência de nossa civilização e de nossa bonomia que nos

obras cuHurais e disposição cuHa99

Page 50: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

100

levam exatamente a sermos gentis e frívolos com as crianças ecom as outras pessoas menos sérias".

Mesmo que a instituição escolar reserve apenas um espaçorestrito para o ensino propriamente artístico, mesmo que, portanto,não forneça nem uma incitação específica à prática cultural, nem

um corpo de conceitos especificamente adequados às obras de arteplástica, ela tende, por um lado, a inspirar uma certa famiJjaridade

- constitutiva do sentimento de pertencer ao mundo culto - com

o universo da arte em que nos sentimos perfeitamente à vontade e

em perfeita harmonia com o autor na qualidade de destinatários

titulares de obras que não se revelam a qualquer pessoa. Assim,

por exemplo, se o acesso à faculdade desencadeia na maior partedos estudantes uma espécie de bulimia cultural, é porque marca

(entre outras coisas) a entrada no mundo culto, ou seja, o acesso

ao direito e, o que dá no mesmo, ao dever de se apropriar da cultura;

é, também, porque a incitação à prática cultural exercida pelosgrupos de referência torna-se, neste caso, particularmente forte.Do mesmo modo, a diferença bastante marcante entre as taxas dos

visitantes dotados de instrução primária e as taxas daqueles quefreqüentaram estudos secundários dá testemunho de que o ensino

secundário - pelo menos, nos países e períodos em que a quasetotalidade das classes populares e uma forte proporção das classesmédias continuavam excluídas dele - está associado, tanto em sua

significação social quanto em sua significação vivenciada, a um

certo tipo de relação com a cultura que implica a possibilidade defreqüentar museus.

A Escola tende, além disso, a inculcar (em graus diferentes,

nos diferentes países europeus) uma disposição erudita ou escolar,definida pelo reconhecimento do valor das obras de arte, assim

como pela aptidão duradoura e generalizada, a se apropriar dos

meios destinados à sua apropriação. 59 Apesar de ser orientada quaseexclusivamente para as obras literárias, a aprendizagem escolar

tende a criar, por um lado, uma disposição transponível para admirar

obras consagradas no âmbito escolar, de modo que o dever de

o amor peh arle

admirar e amar certas obras ou classes de obras acaba aparecendo,

aos poucos, como ligado a um certo estatuto escolar e social; por

outro lado, uma aptidão, igualmente generalizada e transponível

para a classificação por autores, gêneros, escolas ou épocas: o

remanejamento das categorias escolares da análise literária e o hábito

de adotar uma postura crítica predispõem a adquirir, pelo menos,

as categorias equivalentes em outras áreas e a entesourar os saberes

típicos que, até mesmo extrínsecos e acessórios, tornam possível

uma forma elementar de apreensão específica da representação,

baseada no recurso à metáfora literária ou na invocação de analogias

tomadas de empréstimo à experiência visual. Assim, pelo fato de

que a compra de um guia ou de um catálogo pressupõe umaverdadeira atitude em relação à obra de arte, atitude constituída

pela educação, a utilização dessas espécies de manuais que fornecem

um programa de percepção armada restringem-se, quase

exclusivamente, aos visitantes mais cultos, de modo que sua função

se limita a iniciar quem já é iniciado.

Na França, a taxa de possuidores de "Guides Verts" (que propõem

programas leves e realizáveis) corresponde a 2% nas classes

populares, 7% dos membros das classes médias e dos quadros

superiores, além de 8% dos professores e especialistas de arte

que procuram no "Guide Bleu", mais difícil e mais completo

(adquirido por 5% e 8% destes últimos, contra 3% das classes

médias), uma informação exaustiva, cuja utilização pressupõe a

dissociação entre a simples percepção e o conhecimento erudito.

Na Polônia, os utilizadores do catálogo limitam-se aos

professores, incluindo os do ensino primário (14%), aos artistas

e escritores (7%) ou aos estudantes (6%). A utilização de um

guia "erudito" ("Guide Bleu" ou equivalente) e, até mesmo, de

um guia turístico simplificado ("Guide Vert" ou equivalente) é

ainda mais reduzida na Grécia, país em que a menção aos guias

só aparece no nível dos titulares do vestibular (3,5% e 1,5%,

respectivamente) e de um diploma universitário (5% e 1%). Domesmo modo, na Holanda, 4% dos titulares do vestibular

obras cuRurais e disposição cuRa 101

Page 51: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

102

utilizam o "Guide Vert" e 6% o "Guide Bleu"; no entanto, a

proporção dos utilizadores de guias cai para 2% entre aquelesque fizeram estudos superiores.6o

A melhor prova de que os princípios gerais da transferênciadas aprendizagens são válidos, também, relativamente às

aprendizagens escolares reside no fato de que as práticas dedeterminado indivíduo ou, pelo menos, dos indivíduos de uma

categoria social ou de determinado nível de instrução, tendem a

constituir um sistema, de modo que um certo tipo de prática emum domínio qualquer da cultura está associado, com uma

probabilidade bastante forte, a um tipo de prática equivalente emtodos os outros domínios. É assim que a freqüência assídua demuseus está, mais ou menos necessariamente, associada a uma

freqüência equivalente do teatro e, em menor grau, do concerto. Da

mesma forma, tudo parece indicar que os conhecimentos e os gostostendem a se constituir em constelações (estritamente associadas ao

nível de instrução), de modo que a estrutura típica das preferênciase saberes em pintura apresenta todas as condições de ser associada

à estrutura do mesmo tipo de conhecimentos e gostos em músicaou, até mesmo, em jazz ou em cinema. 61

Os visitantes de museus declaram ritmos de freqüência do

concerto, no conjunto, nitidamente inferiores a seus ritmos de

visita a um museu: todos os visitantes oriundos das classes

populares, salvo um, 51% dos visitantes das classes médias e 26,6%

dos visitantes das classes superiores afirmam que nunca foram a

um concerto; além disso, o ritmo modal é, em relação ao museu,

de uma visita de três em três ou de quatro em quatro meses. Por

sua vez, a distribuição dos visitantes segundo o ritmo de sua

freqüência do concerto apresenta dois modos: o mais elevado na

rubrica "nunca"; enquanto o segundo em "três ou quatro vezes

por ano". À semelhança da visita assídua a um museu, a freqüência

do concerto cresce fortemente à medida que se sobe na hierarquia

social; neste caso, a correlação entre os ritmos de freqüência

aumenta concomitantemente quando se passa das classes médias

o aIllorpela arle

para as classes superiores (r = 0,39 e r = 0,50), o que tende a

mostrar que a disposição culta como atitude generalizada é cada

vez mais freqüente à medida que se sobe na hierarquia social. A

freqüência do teatro, mais intensa do que a assistência ao concerto

(já que o ritmo modal corresponde a uma representação de três

em três ou de quatro em quatro meses), está também

estreitamente associada à freqüência do museu (r = 0,31 nas

classes médi~s e r = 0,33 nas classes superiores) e varia, portanto,

em função da posição na hierarquia social e do nível de instrução.

O fato de que os visitantes oriundos das classes populares tenham

uma prática do teatro e do concerto extremamente reduzida tende

a confirmar que sua visita assídua a um museu não exprime uma

verdadeira disposição culta. Pelo contrário, a freqüência das salas

de cinema, muito mais intensa do que as outras práticas culturais

(já que o ritmo modal corresponde a uma sessão por semana),

não está, de modo algum, associada à freqüência dos museus

(r = 0,11 para as classes médias e r = 0,07 para as classes

superiores) e depende, de forma reduzida, do nível de instrução,

de modo que, se excetuarmos uma minoria de estetas que mantêm

uma atitude semelhante diante do cinema, do teatro ou do museu,

podemos considerar que a freqüência das salas de cinema obedece

a uma lógica que já nada tem a ver com a das práticas nobres

[d. Apêndice 3, Tabela 7].62

Podemos ver uma outra prova da transferabilidade das

aprendizagens escolares no fato de que, contrariamente a certas

representações da sociologia espontânea, um elevado grau de

competência em domínios da cultura estrangeiros ao ensino, tais

como o jazz ou o cinema, tem fortes possibilidades de ser associado

a um elevado grau de competência nos domínios diretamente

ensinados e consagrados pela Escola, tais como o teatro, e, por

conseguinte, encontrar-se entre os estudantes colocados nas mais

elevadas posições da hierarquia escolar, portanto, mais aptos a

aplicar ao cinema uma atitude erudita e a memorizar saberes, taiscomo os nomes dos diretores dos filmes.

obras cu/iurais e disposição cu/ia 103

Page 52: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

104

Será possível objetar que a pior maneira de abordar as obrasde arte consiste em aplicar-Ihes categorias e conceitos tão pouco

específicos, quanto os da história literária. E a oposição entre "as

impressões ingênuas de um olhar novo" e os discursos escolares

sobre a pintura já se tornou um lugar comum da conversação culta.

De fato, antes de tudo, tal postura esquece que o "rendimento social"

da cultura artística depende, no mínimo, tanto da aptidão para

exprimir as experiências artísticas, quanto da qualidade intrínseca

e inverificável de tais experiências. Além disso, a representação que

opõe a atitude autenticamente culta à pura fruição passiva e, ao

mesmo tempo, à disposição escolar - sobre a qual recai a suspeita

de confinar a virtualidade da perversão ascética que leva a privilegiar

os acompanhamentos rituais da fruição em detrimento da própria

fruição -, desempenha uma função ideológica ao descrever

determinada maneÍra de abordar as obras, produto de um tipo

particular de aprendizagem, como a única legítima. De fato,

privilegiar, entre todos os tipos de disposição, aquele que carrega

menos vestígios de sua gênese, isto é, a facilidade ou o "natural", é

uma forma de estabelecer a separação intransponível entre os

detentores da maneira correta de consumir os bens culturais que

faz a qualidade do consumidor (e, em certos casos, o valor do bem

consumido), e os novos-ricos da cultura que denunciam, nos mais

insignificantes detalhes de sua prática, as carências sutis de uma

cultura adquirida em más condições - ou seja, autodidatas, cujos

saberes discordantes permanecerão sempre distintos dos

conhecimentos bem comedidos do homem que freqüentou a Escola

pelo simples fato de que tais saberes não foram adquiridos segundo

as regras e na ordem correta, "pedantes" e "primários" que, atravésde conhecimentos e interesses exclusivamente escolares, revelam

ser tributários da Escola em relação a todas as suas aquisições deordem cultural. Se "a arte infinitamente variada de marcar as

distâncias", da qual falava Proust, encontra seu terreno prediletona maneira de usar sistemas simbólicos - adereços e automóvel,

indumentária e mobília, linguagem e atitude, e, sobretudo, na relação

o amor pela arle

com as obras de arte, com reduplicações e requintes indefinidos,

autorizados por tal relação - é porque, neste domínio em que tudo

é questão de maneira de ser, a maneira correta não se adquire senãoatravés das aprendizagens imperceptíveis e inconscientes de uma

primeira educação, ao mesmo tempo, difusa e total: em suma, osmatizes ínfimos e infinitos de uma disposição autenticamente culta

em que nada deve evocar o trabalho de aquisição remetem, em últimaanálise, a um modo particular de aquisição.

Pelo fato de que a obra de arte apresenta-se como uma

individualidade concreta que nunca se deixa deduzir dos princípios e

regras que definem um estilo, a aquisição dos instrumentos que tornam

possível a familiaridade com as obras de arte não pode operar senão

por uma lenta familiarização. A competência do conhecedor não podeser transmitida, exclusivamente, por preceitos ou prescrições. E a

aprendizagem artística pressupõe o equivalente do contato prolongadoentre o discípulo e o mestre em um ensino tradicional, ou seja, o

contato repetido com a obra (ou com obras da mesma classe): assim,

por exemplo, a visita assídua a obras apresentadas segundo umaclassificação metódica, por escolas, épocas ou autores, tende a produzir

a espécie de familiaridade global e inconsciente com seus princípios,

permitindo que o espectador culto atribua, imediatamente, uma obrasingular à uma classe, seja relativa à maneira de pintar de um autor,ao estilo de uma época ou de uma escola. Do mesmo modo que o

aprendiz ou o discípulo pode adquirir ÍnconscÍentementeas regras daarte, incluindo as que não são explicitamente conhecidas pelo próprio

mestre, mediante uma verdadeira renúncia de si que exclui a análise

e a seleçãodos elementos da conduta exemplar, assim também o amador

de arte pode, ao abandonar-se de alguma forma à obra, interiorizar

seus princípios e regras de construção sem que, em momento algum,

estes sejam trazidos à consciência e formulados enquanto tais, o quefaz toda a diferença entre o teórico da arte e o conhecedor, quase

sempre incapaz de explicitar os princípios de seus juízos. Nestedomínio, como em outros (por exemplo, a aprendizagem da gramática

da língua materna), a educação escolar tende a favorecer a retomada

obras cu/iurais e disposição cu/ia105

Page 53: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

106

consciente de esquemas de pensamento, de percepção ou de expressão,já controlados inconscientemente, por um lado, ao formular

explicitamente os princípios da gramática criadora, por exemplo, as

leis da harmonia e do contraponto, ou as regras da composiçãopictural, e, por outro, ao fornecer o material verbal e conceitual

indispensável para dar nome às diferenças, antes de tudo, percebidas

de maneira puramente intuitiva. Um ensino artístico que se reduza aum discurso (histórico, estético ou outro) sobre as obras é

necessariamente um ensino de segundo plano: à semelhança do queocorre com o ensino da língua materna, a educação literária ou artística

(ou seja, "as humanidades" do ensino tradicional) pressupõe

necessariamente - sem nunca, ou quase, se organizar em função dessa

condição prévia - indivíduos dotados de uma competência previamenteadquirida e de um verdadeiro capital de experiências (visitas de museus

ou de monumentos, audições de concertos, leituras, etc.) que seencontram distribuídas, de forma bastante desigual, entre os diferentesmeios sociais.

A parcela dos visitantes que afirmam ter vindo a um museu pela

primeira vez com a família cresce fortemente à medida que se

sobe na hierarquia social (ou seja, 6% dos agricultores, 18% dos

operários e as classes médias e 30% dos quadros superiores).Nota-se que estas diferenças ainda se encontram minimizadas

porque a parcela dos visitantes que afirmam ter feito sozinhos a

primeira visita (com ou sem razão e, em todo caso, sem que isso

signifique que eles não tivessem recebido a influência difusa ou as

incitações formais de sua família) cresce à medida que se avança

em direção às classes mais favorecidas [cf. Apêndke 2, Tabela 6].

A primeira visita é sempre tanto mais precoce quanto mais elevado

for o nível de instrução; neste caso, a parcela dos visitantes que

entraram em um museu antes de completarem quinze anos, passa

de 26% entre os 'visitantes oriundos das classes populares (cuja

primeira visita está, muitas vezes, associada ao turismo) para

37,5% nas classes médias, mais fortemente tributárias da Escola,

para atingir 56% nas classes superiores [d. Apêndke 2, Tabela 5].

o amor pela arle

Quanto mais a tarefa de transmissão cultural for abandonada

pela Escola à família e tanto mais a ação escolar tenderá a consagrar

e legitimar as desigualdades prévias, já que seu rendimento depende

da competência - prévia e distribuída de forma desigual - dos

indivíduos sobre os quais ela se exerce.63 Além disso, mesmo que,

parcialmente, a instituição escolar chegasse a tomar o lugar dasinstâncias tradicionais de transmissão ao trabalhar diretamente para

proporcionar a familiaridade com as obras, pressuposta por qualquer

tipo de educação artística, o produto de sua ação correria sempre o

risco de aparecer como o substituto desvalorizado da disposição

conveniente, enquanto a representação predominante da disposição

culta continuar a se impor como a única legítima, e enquanto a

ação escolar coexistir com os modos de transmissão que estão emharmonia com essa representação ideológica por lhe servirem de

fundamento e a justificarem. De fato, uma incitação que não tenhanecessidade de ser deliberada e metódica para ser eficaz, e cuja

afirmação é tão imperceptível que, muitas vezes, age sem ser sentida,

só pode reforçar a ilusão carismática; neste caso, para fornecer osentimento da familiaridade com as obras culturais, nada melhor do

que promover, precocemente, a visita assídua - e inserida nos ritmosfamiliares da vida familiar - de tais obras.

Ao se eximir de trabalhar de forma metódica e sistemática,

através da mobilização de todos os meios disponíveis, desde os

primeiros anos da escolaridade, em proporcionar a todos, na situaçãoescolar, o contato direto com as obras ou, pelo menos, um substituto

aproximativo dessa experiência, a instituição escolar abdica do poder,

que lhe incumbe diretamente, de exercer a ação continuada e

prolongada, metódica e uniforme, em suma, universal ou tendendoà universalidade; ora, tal ação é a única capaz de produzir em série,

provocando grande escândalo entre os detentores do monopólio dadistinção culta, indivíduos competentes, providos dos esquemas de

percepção, de pensamento e de expressão que são a condição da

apropriação dos bens culturais, e dotados da disposição generalizada

e permanente para se apropriar de tais bens. A Escola, cuja função

obras cuRurais e disposição cuRa 107

Page 54: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

108

específica consiste em desenvolver ou criar as disposições que fazemo homem culto e constituem o suporte de uma prática duradoura

e intensa, ao mesmo tempo, de forma qualitativa e quantitativa,

poderia compensar (pelo menos, parcialmente) a desvantageminicial daqueles que, em seu meio familiar, não encontram a

incitação à prática cultural, nem a familiaridade com as obras,pressuposta por todo discurso pedagógico sobre as obras, com a

condição somente de que ela utilize todos os meios disponíveispara quebrar o encadeamento circular de processos cumulativos

ao qual está condenada qualquer ação de educação cultural. Quem

ridiculariza, considerando-o primário, o ensino que, por técnicas

simples (por exemplo, pela apresentação de reproduções e pelotreino relativo à atribuição), entendesse transmitir saberes

rudimentares, tais como datas, escolas ou épocas, esquece queesses métodos, por mais grosseiros que possam parecer,

transmitiriam, pelo menos, um conhecimento mínimo que,legitimamente, não pode ser desdenhado senão por referência atécnicas de transmissão mais exigentes. Ao proceder como se as

desigualdades em matéria de cultura não pudessem se referir senão

a desigualdades de natureza, ou seja, desigualdades de dom, e ao

omitir de fornecer a todos o que alguns recebem da família, osistema escolar perpetua e sanciona as desigualdades iniciais.

Se as vantagens ou desvantagens sociais pesam tãoconsideravelmente sobre as carreiras escolares e, de forma mais

geral, sobre toda a vida cultural, é porque, percebidas ou

despercebidas, elas são sempre cumulativas. Sabendo que, de umlado, os níveis culturais dos diferentes membros de determinada

família estão fortemente associados entre si, que as possibilidades

de prosseguir os estoudos em uma grande ou pequena cidade, emum liceu ou em um colégio de ensino geral, de ter acesso a estudos

clássicos ou ser condenado ao "moderno", dependem estreitamente

da posição social da família; e sabendo que, por outro lado, aatmosfera cultural da infância e o passado escolar estão

estreitamente associados, até mesmo no nível mais elevado do

o amor pela arle

cursus* escolar, em graus desiguais de conhecimento e de prática

artística, compreende-se que o sistema escolar, ao se ocupar apenas

de discentes iguais em direitos e em deveres, se limite na maior

parte das vezes a reduplicar e sancionar as desigualdades iniciais

diante da cultura. E se as desigualdades diante do museu são ainda

mais brutais do que as desigualdades diante da Escola (como mostra

a comparação da estrutura do público de museus com a estrutura

do público do ensino superior) é porque a influência do privilégio

cultural nunca é tão grande a não ser no domínio da cultura "livre",

ou seja, a menos escolar: assim, por exemplo, embora os estudantestenham um conhecimento do teatro tanto mais extenso quanto

mais elevado for o meio social do qual fazem parte, a inferioridade

dos estudantes oriundos das classes populares, que se atenua nos

mais consagrados domínios da cultura teatral, ou seja, em relação

às obras "clássicas", é particularmente marcante em matéria de

teatro de vanguarda ou de bulevar; do mesmo modo, em pintura,

as diferenças que tendem a se anular no que diz respeito aos

pintores mais consagrados (Renoir, Van Gogh, Cézanne) reaparecem

em toda a sua brutalidade desde que se avance em direção a

conhecimentos menos diretamente veiculados pelo ensino e, no

caso concreto, pelo ensino secundário, quando se trata, por

exemplo, de pintores menos célebres, tais como Cranach,

Chassériau, Moreaux, ou, ainda mais nitidamente, de pintores

modernos, tais como Klee, Mondrian, Dubuffet.64 Assim, quem

recebe da família as mais fortes incitações explícitas ou difusas

para a prática cultural conserva também o máximo de possibilidades,

não só de se manter por mais tempo na instituição escolar porque

traz para esta a "cultura livre", pressuposta e exigida por ela, semnunca a revelar de forma metódica; mas também, de assistir à

transformação das predisposições moldadas pelas aprendizagens

inconscientes da primeira educação em disposição culta.

* Termo que designa o percurso (mais ou menos longo, nesse ou naquele ramo deensino ou estabelecimento) efetuado pelo aluno no decorrer de sua escolaridade. (N.T.)

obras cuBurais e disposição cuBa 109

Page 55: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

Contra a ideologia carismática que instala a oposição entre a

experiência autêntica da obra de arte como "afeição" do coração ou

compreensão imediata da intuição, por um lado, e, por outro, os

procedimentos laboriosos e os frios comentários da inteligência,

passando sob silêncio as condições sociais e culturais que tornam

possível tal experiência e tratando, concomitantemente, como graça

de nascimento a virtuosidade adquirida por uma longa familiarização

ou pelos exercícios de uma aprendizagem metódica, a sociologia

estabelece, do ponto de vista lógico e, ao mesmo tempo, experimental,

que a apreensão adequada da obra cultural e, em particular, da obra

de cultura erudita, pressupõe, a título de ato de decifração, a posse

da cifra que serviu para codificá-Ia. No sentido objetivo de cifra (ou

de código), a cultura é a condição da inteligibilidade dos sistemas

concretos de significação, organizados por ela e aos quais permanece

irredutÍvel, à semelhança da língua em relação à palavra; enquanto a

cultura, no sentido de competência, não é outra coisa senão a cultura

(no sentido objetivo) interiorizada e tornada disposição permanente

e generalizada para decifrar os objetos e os comportamentos culturais,

utilizando o código que serviu para sua codificação. No caso

particular das obras de cultura erudita, o controle do código não

pode ser adquirido completamente pelas simples aprendizagens

difusas da experiência cotidiana e pressupõe um treino metódico,

organizado por uma instituição especialmente preparada para tal

fim: Daí, segue-se que a apreensão da obra de arte depende em sua

intensidade, modalidade e própria existência do controle que o

espectador detém do código genérico e específico da obra (ou seja,

de sua competência artística) e é tributário, em parte, do treinorecebido na escola; ora, o valor, a intensidade e a modalidade da

comunicação pedagógica, encarregada, entre outras funções, de

transmitir o código das obras de cultura erudita (ao mesmo tempo

que o código segundo o qual se efetua tal transmissão) dependem,

por sua vez, da cultura (como sistema de esquemas de percepção, de

apreciação, de pensamento e de ação, historicamente constituído e

socialmente condicionado) recebida do meio familiar pelo receptor e

110 o amor pela arle

que está mais ou menos próxima - tanto em seu conteúdo, quantoem relação à atitude relativamente às obras de cultura erudita ou à

aprendizagem cultural que ela implica - da cultura eruditatransmitida pela Escala e dos modelos lingüísticas e culturais

segundo os quais a Escola efetua tal transmissão. Considerando

que a experiência direta das obras de cultura erudita e a aquisiçãoinstitucionalmente organizada da cultura que é a condição da

experiência adequada dessas obras estão submetidas às mesmas leis,compreende-se como é difícil quebrar o círculo que faz com que o

capital cultural leve ao capital cultural: de fato, basta que ainstituição escolar permita o funcionamento dos mecanismos

objetivos da difusão cultural e se exima de trabalhar,sistematicamente, para fornecer a todos, na e pela própria mensagem

pedagógica, os instrumentos que condicionam a recepção adequadada mensagem escolar para que a Escola reduplique as desigualdades

iniciais e, por suas sanções, legitime a transmissão do capital cultural.

obras cuBurais e dispos.ição cuBa111

Page 56: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

lerceira parle

leis da difusão cu/iural

"A Educação consegue tudo: faz dançar os ursos."

LEIBNIZ

Por oposição à visita ocasional- muitas vezes, simples efeito

do acaso -, a prática regular exprime e pressupõe uma adequação,

mais ou menos completa, entre as obras oferecidas e o grau de

competência pictural dos visitantes, entendido como capacidade para

apreender as informações propostas e decifrá-Ias, vislumbrá-Ias como

significações ou, melhor ainda, formas significantes.

Ou dito por outras palavras, a freqüência de museus obedece

a uma lógica bem conhecida da teoria da comunicação, já que, à

maneira de um emissor de rádio ou televisão, o museu propõe uma

informação que pode se dirigir a qualquer sujeito possível sem

implicar em um custo maior e só adquire sentiro e valor para umsujeito capaz de decifrá-Ia e saboreá-Ia. Daí, segue-se que o público

adequado da mensagem é definido, do ponto de vista lógico e, ao

mesmo tempo, experimental, pelo "apelo" exercido sobre ele pelos

museus ou, melhor ainda, pela aptidão para receber a informação

que propõem: de fato, embora essa informação única possa ser

desigual e diferentemente decifrada por sujeitos diferentes, ocorre

que se pode pressupor que a freqüência assídua implica o controle

do código da mensagem proposta e a adesão a um sistema de valores

que serve de fundamento à outorga de valor às significações

decifradas, à decifração dessas significações e ao deleite proporcionado

por tal decifração. Daí, segue-se que a estrutura (no que diz respeito

à competência escolar) do público assíduo dos museus (e de todo

público de determinada mensagem) pode ser considerada como um

indicador aproximativo do nível da informação proposta pelos

kis da chfusãocufiura/ 113

Page 57: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

114

l1ic

museus. Assim, pelo fato de que a categoria mais representada, de

longe, entre o público de museus seja a dos detentores de um

diploma de final de estudos secundários; pelo fato também de que

os visitantes que não atingiram esse nível manifestem sua confusão

através de um grande número de índices, pode-se concluir que a

informação oferecida pelos museus franceses corresponde ­

permitamo-nos a expressão - "ao nível do vestibular".

De fato, apesar de possuir um grande valor operatório no

sentido em que permite justificar a estrutura do público de museus,

a informação globalmente oferecida pelos museus permanece uma

abstração e, concomitantemente, o nível dessa informação. Além de

que cada um dos museus oferece necessariamente uma informação

global- cujo nível particular é definido, grosseiramente, pelo tipo,

qualidade e quantidade das obras apresentadas -, esse nível em si

mesmo não pode ser definido pontualmente porque, salvo rarasexceções, o conteúdo de um museu ou, até mesmo, de uma

exposição, nunca é perfeitamente homogêneo: a maior parte dos

museus propõe vários tipos de obras, desde objetos de folclore,

lembranças históricas, mobiliário ou cerâmica, até pintura e

escultura; além disso, no âmbito de determinado tipo, justapõe obras

desigualmente legíveis - por exemplo, impressionistas e abstratas ­

para os homens "cultos" de nossas sociedades. A esse aspecto,

convém acrescentar que a mesma obra pode ser decifrada a partir de

várias grades e que, à semelhança dos filmes de faroeste que podem

ser objeto de uma aceitação ingênua ou de uma leitura erudita, a

mesma obra pictural pode ser recebida diferentemente por receptores

de níveis diferentes e, por exemplo, satisfazer o interesse em relação

a determinado detalhe ou chamar a atenção exclusivamente por suas

propriedades formais. Vê-se assim, com toda a evidência, que o nível

cultural tampouco pode ser definido pontualmente: em primeiro

lugar, porque está sempre em devir e porque cada percepção nova da

obra acaba transformando as percepções ulteriores; assim, a percepção

repetida é uma forma de reduzir a "originalidade" da obra (no sentido

da teoria da informação), ao assimilar uma parcela cada vez maior da

o amor pela arle

informação que ela contém. Em seguida, porque não pode ser definido

independentemente das aspirações que lhe fornecem sua verdadeira

significação; neste caso, a boa vontade cultural pode levar a considerarinstrutiva a contemplação de obras superiores a seu próprio nível.

Por falta de condições para criar a situação experimental que

permitiria comparar a estrutura do público que respondesse ainformações de níveis diferentes, embora estritamente homogêneos,

pode-se tentar verificar, através da análise da estrutura do públicode museus que oferecem informações de níveis diferentes, se as

variações do nível da informação oferecida são acompanhadas por

variações na estrutura do público, distribuída segundo a competência

escolar, e se o grau de homogeneidade do público, nesse mesmo

aspecto, corresponde ao grau de homogeneidade das obras oferecidas.

Considerando que os níveis de informação oferecida não podem

ser definidos pontualmente e que não seria possível classificar,

linearmente, os museus sem ignorar as sobreposições decorrentes

do fato de que cada um deles oferece um leque de obras de níveis

diferentes, pode-se, em um primeiro momento, classificar os

emissores - ou seja, os museus - e os receptores - ou seja, osvisitantes - em dois níveis e admitir que a ressonância da

mensagem será tanto maior quanto mais homogêneo for o nível

dos receptores, ou dito por outras palavras, quanto mais

adequadamente for efetuada a recepção no caso em que os níveisde emissão e de recepção forem idênticos. Se pressupomos que a

hierarquia, assim estabelecida, é contínua - como é o caso

(aproximadamente) quando se adota a escala dos níveis deinstrução -, vemos que cada população será caracterizada pelacurva de "demanda" (D) que representa a distribuição de tal

população, segundo o nível de instrução ou, se quisermos, adistribuição dos indivíduos que a compõem segundo seu nível de

recepção; do mesmo modo, cada obra (ou cada museu) será

caracterizadapor um certo nível de informação oferecida, figurada

graficamentepor uma vertical (O), cuja abscissaXo marcará o nível.

le1s da chfusão cu/iural115

Page 58: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

Freqüência

féis da difusão cu/iural117

Nível Cultural

t = L d (x) m(x)x=o

(2)

d

D(x)

A probabjHdade de ver uma pessoa de nível x entrar nO museu é,

segundo (1), t(x) = m(x); a proporção de pessoas deste nível que

entram nO museu é, portanto, d (x). m(x) e, para o conjunto do

intervalo de variação da variável, esta proporção obtém-se pela soma

de um indicador certo, mas por uma distribuição de probabilidades.

Por conseguinte, o conhecimento da oferta e da demanda não

permite prever quem irá ao museu, mas define a probabilidade

inerente a cada sujeito de visitar um museu, na hipótese, verificada

precedentemente (Primeira Parte), em que as categorias de

visitantes, caracterizadas por um certo nível de instrução, são

homogêneas no que diz respeito aos ritmos de freqüência.

Considerando que os fatores aleatórios (como o mau tempo ou os

acasos de um passeio familiar) parecem funcionar de forma

uniforme e que seus efeitos tendem a se anular; considerando, por

outro lado, que o turismo, capaz de favorecer a prática, não pode

por si (mantendo-se iguais todas as outras variáveis) criar uma

prática duradoura e modificar duravelmente as probabilidades e

as taxas de freqüência, é legítimo deixar de lado tais fenômenoS

nO modelo. '

Dx

Freqüência

Por outras palavras, a mensagem irá atingir unicamente a fração

da população de nível Xo e de efetivo D(x); a possibilidade de que

a comunicação se estabeleça nO decorrer de determinado período

de tempo é, então, independente de xo'

x Nível Culturalo

o amor peb arle

(1) t (x) = O para x:;i:xo

t(x) = t", para x = Xo

No entanto, como o nível da informação oferecida por uma obra

e, a fortÍori, por um museu, não pode ser definido pontualmente

(pelas razões já apontadas), portanto, ele não pode ser figurado

senão por uma função de densidade inerente a cada nível da escala

hierárquica, ou seja, m(x) que, na hipótese precedente, era

supostamente nulo, salvo para um certo valor de x. Ou seja, Q(x)

a distribuição da oferta, a demanda, isto é, a aptidão para a recepção

da obra, associada ao nível de instrução, deve ser objeto da mesma

generalização por todas as razões já expostas e, também, porque a

distribuição das aptidões ou das preferências, e,m um grupo

relativamente homogêneo, é de caráter probabilista; neste caso, a

distribUição das notas em um exame, por exemplo, segue, emgeral, uma lei de Laplace-Gauss.

O modelo proposto é rigorosamente probabilista no sentido em

que define o nível de recepção e o nível de emissão não por meio

116

Page 59: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

118

o valor da soma ~ d(x) representa, para cada indivíduo, umX=o

nível total de demanda e ela varia, em cada indivíduo, em razão

de seus conhecimentos culturais; assim, vamos supor que,

mantendo-se iguais todas as outras variáveis, as diferenças

individuais são insignificantes no conjunto e que

x~od(x) = kd

Se nos limitarmos a um raciocínio global, a distribuição D(x) do

público, segundo a variável x, permitirá que façamos uma idéia,

em relação a determinado país, da distribuição da demanda,

enquanto ~ w(x) atingirá valores tanto mais elevados, quantox

maior o número e mais fortemente consagradas forem as obrasapresentadas.

A taxa de prática assume a forma:

t = ko" kd' ~ D. (x). Q(x)x=o

~ ~com ~ D (x) = ~ Q(x) = 1

X=o x=o

o produto K = k",. kd pode interpretar-se como um capital cultural

nacional. As variáveis k", e kd não são, evidentemente,

independentes, já que a riqueza do tesouro artístico de um país e

a força de sua tradição cultural contribuem para determinar, em

cada instante, a intensidade da aptidão para a prática.

É evidente que, ao modificar-se a forma da função de oferta,

modifica-se a estrutura do público receptor, enquanto ao

modificar-se o nível de oferta por simples afinidade em relação

com o eixo dos x, modifica-se a taxa de freqüência em uma

relação igual à relação de afinidade; neste caso, a estrutura do

público permanece invariável. Assim, ao fortalecer a intensidade

da soma L w(x) sem modificar sua estrutura, a exposição atraix

um público mais numeroso, embora de estrutura quase idêntica.

As leis que regem a recepção das obras de arte constituem

um caso particular das leis da difusão cultural: seja qual for a natureza

o amor pela arle

da mensagem, profecia religiosa, discurso político, imagem

publicitária, objeto técnico, etc., a recepção depende dos esquemas

de percepção, de pensamento e de apreciação dos receptores, de modo

que, em uma sociedade diferenciada, uma estreita relação se

estabelece entre a natureza e a qualidade das informações fornecidas,

por um lado, e, por outro, a estrutura do público.65 Ou dito por

outras palavras, as leis da difusão diferencial da informação

constituem um caso particular da lógica dos empréstimos culturais,

no mesmo plano da difusão da mensagem profética: "Basta imaginar,

escreveJoseph Schumpeter, o que teria acontecido se ajihadtivesse

sido pregada aos 'pescadores' pacíficos da Galiléia, à 'ralé' .da

Palestina. Não é exagerado considerar como certo que eles não teriam

respondido ao apelo, não teriam conseguido dar-lhe resposta e que,se tivessem feito tal tentativa, teriam fracassado de maneira

deplorável, destruindo sua própria comunidade. E se, inversamente,Maomé tivesse pregado a humildade e a submissão a seus cavaleirosbeduínos, estes não se teriam revoltado contra ele? E se o tivessem

ouvido, sua comunidade não teria desaparecido? Um profeta não é

somente aquele que formula uma mensagem aceitável para seus

primeiros partidários; ele não é bem-sucedido, nem compreendido,

senão quando chegou a formular também uma política aceitável no

imediato. É precisamente o que distingue o profeta bem-sucedido ­

o 'verdadeiro' profeta - do profeta que fracassa - o 'falso' profeta. O

verdadeiro profeta reconhece as exigências da situação em que se

encontra - aliás, situação que existe de forma totalmente

independente dele; e, quando tais exigências sofrem mudanças, ele

acomoda-se para adotar uma nova política, evitando que os fiéis

experimentem tal transição como uma traição". 66

Assim, sempre que uma mensagem única é proposta a uma

sociedade diferenciada, ela é objeto de uma recepção quantitativa e

qualitativamente diversificada: sua legibilidade e eficácia são tanto

mais fortes, quanto mais diretamente corresponderem às

expectativas, implícitas ou explícitas, que os receptores ficam devendo

à sua educação e que a pressão difusa do grupo de referência alimenta,

Jeis da dfusão GuBural 119

Page 60: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

alavanca e fortalece por meio de invocações incessantes da norma

("Será que você já leu ...?", "Você deveria ter visto isso!"); neste

caso, as diferentes instâncias de legitimidade cultural (academias,

universidades, críticos, júris de prêmios literários e artísticos, etc.)

e, de forma mais direta, as pessoas que se encontram à volta,

investidas de autoridade em matéria de cultura, "style leaders" ou

" taste makers', desempenham, aqui, um papel, sem dúvida alguma,

ainda mais determinante do que os "opÍnÍon leaders' em matéria de

escolhas eleitorais.67 Quando a mensagem não pode ser decifrada

senão pelos detentores de um código que deve ser adquirido por

uma longa aprendizagem institucionalmente organizada, é evidente

que a recepção depende do controle que o receptor tem do código

ou, por outras palavras, depende da diferença entre o nível da

informação oferecida e o nível de competência do receptor.

fé/s da difusão cuRural121

-.Õ.E= ~Jl J DO' dx

dO) dO)

oF = r DO' dx~ o m

(0)

e O' m = O' x -dl2- (6)dO)

e

obtém-se:

Ao integrar por partes, obtém-se:

~ = -d!X-[D O( - ~_ J DO' dx

od dd dd

O primeiro termo é nulo - como condição necessária de

integrabilidade de (DO).

Se, além disso ~ = ~Üdd dO)

oF ==- J)E

õd (0)

Transferindo (6) para (5), obtém-se:

~ = ~º'_.J D'O dx e

od d~

A derivação de (3) e (4) dá:

D'd = D'x d!X- (5)dd

~=;: D'dOdxod

Ora,

d e O)são dois parâmetros - por exemplo, a média, se esta existe,

ou qualquer outro parâmetro - tais como as curvas

D (x, dj) e D (x, d) (3) por um lado, e

O (x, O)j) e O (x, 0) (4) por outro

deduzem-se, respectivamente, uma da outra por meio de

translações de amplitude a e ~.

ou seja D (x + a, d) == D (x, dj)

e O (x + ~'0)2) == O (x, O)j)

A integral (D O dx é uma função de d e 0), ou seja, F (d, 0).

Para que F seja uma função de d - 0), é necessário e suficiente que

-.Õ.E ==- oF

od (0)

De fato, admitamos que as funções de oferta e de demanda têm a

seguinte fórmula:

D = D(x, d)

0= O(x,0)

De forma mais precisa, segue-se das hipóteses precedentes que a

taxa de freqüência é uma função da diferença entre a oferta média

(ou modal) e a demanda média (ou modal). Esta propriedade,

intuitivamente admissível, não se refere à forma analítica das

funções O(x) ou D(x).

o amor pela arle

Mediante certas condições bastante gerais de integrabilidade ou

derivabilidade, mostra-se facilmente, em primeiro lugar, qúe t

pode colocar-se sob a fórmula t = t (O)- d) e, em segundo lugar,

que, se as distribuições são unimodais, a taxa de freqüência passa,

no máximo, por um valor de O)- d bastante próximo de zero, mas

que só pode ser nulo se as distribuições O e D forem simétricas;

além disso, neste último caso, intervém uma função de (O)- dF e,

então, é possível enunciar que a taxa de freqüêncÍa é uma função

decrescente do quadrado da djferença médÍa entre a oferta e a

demanda.

120

Page 61: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

A taxa de freqüência assume a fórmula

A função de oferta obtém-se da fórmula:

123

y

-ly2 = f(d)2

(8) ~

~1~ e

-v--zrr-

em que (J é o padrão desvio precedentemente definido.

Este caso é, com toda a evidência, relativamente raro e só diz

respeito, de fato, a alguns museus da amostra (Autun, Colmar,

Dijon). Em geral, conhece-se apenas o intervalo em que se situa

esse nível e, quase sempre, sabe-se que 3 < O) < 4. Segue-se que

somos obrigados a proceder um pouco diferentemente admitindo:

f (4) = fo;daí, deduzimos: f0<3), fo(2), fo(I).

Admitindo que a demanda d pode ser identificada por meio de

quatro níveis equidistantes, dá-se o valor 4 ao nível da lícence, 3

ao do vestibular, 2 ao do B. E. P. C. e 1 ao do C. E. P. Pode-se

observar que a diferença entre dois níveis consecutivos é constante,

assim como a duração média dos estudos exigidos para passar de

um nível para o outro, ou seja, em geral, da ordem de três a quatro

anos, salvo, talvez, entre os dois níveis superiores; neste caso, o

ensino entra, necessariamente, em uma fase de rendimento

decrescente (no que diz respeito ao aspecto examinado aqui). Se

conviermos em atribuir aos analfabetos um nível zero, é necessário

atribuir aos visitantes desprovidos de diplomas uma nota situada

entre zero e um, mas difícil fixá-Ia sem arbitrariedade;

suponhamos, agora, que o nível de informação oferecida (a oferta)

seja rigorosamente igual a 4, ou, de forma mais geral, que coincida

com um dos níveis inteiros precedentemente definidos. Basta,

então, para cada museu, calcular as relações:

u±.-dl = f (d)

t (4,4)

em seguida, por meio de uma tabela da lei de Laplace-Gauss,

determinar os números y tais que

Se a hipótese é válida, d e y estão linearmente associadas pela

relação

leis da rhfusão cuRural

kd(J -f2n

d

e - l _id2 admitindo: tl = O) - d2 (J2

D e - l ix:.dl2

2 (J2d

X é o nível de demanda, avaliado em anos; o desvio padrão ód

desta distribuição é, em si mesmo, independente de x; d é, então,o nível modal ou médio.

o amorpela arle

k designando o capital oferecido pelo museu, cujo tamanho é um

indicador, e (JO) o desvio padrão suposto, também, independentede x.

t = f D.Qdx =_1~ ~ e ÚQ~2an -V (J2 + (J2d Ol

Verifica-se que ela é função decrescente de (O) - d)2.

Apliquemos o modelo a um caso particular; admitamos que a

função de demanda de uma categoria de pessoas que completaram

d anos de estudos é uma lei de Laplace-Gauss correspondente àfórmula:

(7) t = ----K

-V 2 TC(J

Além disso, ela depende do parâmetro (J2 = (J2d + a2(0l) que pode

ser interpretado como a variância do conjunto museu e público.Por último:

As taxas experimentais correspondem a expressões desse tipo,

como é demonstrado pelos Gráficos (d. p. 124-128). Como a forma

analítica proposta justifica as taxas de freqüência, estabelecidas

experimentalmente, é, portanto, legítimo utilizá-Ia para apreender

as conseqüências decifráveis de determinada ação política, sem

tomar ao pé da' letra, todavia, os resultados dessa verificação, oque equivaleria a superar os limites da técnica de cálculo.

122

Page 62: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

125

L Licence

B Vestibular

b B. E. P.C.

c C. E. P.

Na coordenada: Relação da proporção de indivíduos desse nível na

amostra com a proporção na população francesa total. No ponto 100, as

duas relações são iguais.

leis da chfusão cuilural

Na abscissa:TOTAL (CONJUNTO)

o amor pela arle

~I I I Io L B b c o

TOURS

o

50

NÍVEL CULTURAL DO PÚBLICO -ARTSDÉCO

AUTUNCOLMAR

250 200250 rAGEN

ARLESARRAS•lWf\

200 I-

-100150 I- '\~ •50

100~~o

50 I- oL

~"•200 - DREUXJEUDE PAUMELAON

150

200 rDIEPPE

DIJONDOUAI•150 I- \ ~Il:t~

lOO.~

/\50 I- OL

.......•........•..•...-200 - MARSEILLE

MOULINSPAU

J50~~

200,.... LILLELOUVIERSLYON

~

100150 I-~

~

50

JOO.~ ~

O I I I IIIIIIII IIII

50 L

Bb LBbcoLBbco 1111.

Lco

O L

200

150

100

124

Page 63: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

JIII

127

1,4-.4,4

13

42

60

_I 88100

8860

1,44,413

-.4260

88

100

8860

o

1,0

0,8

PAU

o L B b

0,9

L B b

MOULlNS

f

A/UTUN 1,0 C/OLMAR 1,0 o/~,4

4,413

42

60

_ 88

_ 100

_ 88

60

JEU DE PAUME 1,5 LAON

o

0,45DREUX

MARSEILLE 1,2

ARTS DÉCO 1,35

L B b

2

o

g

3

2

o

3

2

o

3

kis da rhfusão cuJiural

As taxas de freqüência são fornecidas:

- em porcentagem e colocando o nível de licence arbitrariamente igual a

100% (Escala f).

- em transformada gaussiana (Escala g).

- A vertente da direita de freqüência é indicada no canto direito.

(1) O nível modal co é indicado por uma flecha vertical (em relação a

Agen, lê-se co = 3,7).

77

- 1,4- 4,4-13- 42

- 60

- 88100

-,88- 60

-. 1,44,4

-113- 42

- 60

88

-.10088

-. 60

100

f1,3 %

1,4-.4,4

13

- 42

- 60- 88

- 100

- 88

- 60

1,3

o amor pela arle

DOUAI

ARRAS

LYON

CONJUNTO 1,0DOS MUSEUS -I 2,5

1,0

1,25

1,25

Bimodal

(representaçãoimpossfvel)

DIJON

LOUVIERS

TOURS

NÍVEL MODAL DA OFERTA

1,1

1,2

AGEN 1 = 0,85 ARLES(j"

DIEPPE 0,7

LlLLE

ROUEN

/g

Dispersão da oferta e taxa de freqüência (com exceção de um fator) decada museu em cada nível de instrução

2

3

o

3

2

o

3

2

o

126

Page 64: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

NÍVELMODALDA OFERTA

E DISPERSÃODA OFERTADE CADAMUSEU

Modo

4T

129

Constata-se, então, que existe sempre um valor que é determinado

por abordagens sucessivas, tal que a equação (8) seja verificada e,

daí, deduz-se o nível de oferta e o desvio padrão inerentes a cada

museu. Serápossível objetar que há possibilidadede fazer aparecer

tal forma analítica proposta, antecipadamente, por transformação

das variáveisem questão; que o número dos pontos experimentais

é reduzido e que a demonstração (mas, não será isso o caráter

próprio de toda verificação experimental?) continua sendo mais

negativa do que positiva.68

* Trata-se da segunda maior cidade francesa, superada apenas pela capital, Paris. (N.T.)

Em conformidade com o princípio da equivalência entre a

informação oferecida e o grau de competência do receptor, as

diferenças que separam o nível de oferta dos diferentes museus,

avaliado pelo nível modal dos visitantes, correspondem às diferenças

na qualidade e no tipo das obras expostas. Assim, tanto o Museu de

Colmar, que apresenta um dos quadros mais célebres da França depois

da Mona Lisa, quanto os Museus de Dijon e de Autun, possuidores

de um grande número de obras farposas - o primeiro situado emuma região turística, enquant9XYs~gundo se destaca pela qualidade

excepcional da apresentação -, têm os níveis de informação mais

elevados e o público mais aristocrático, assim como o Museu de

Laon (bastante diferente dos precedentes, tanto pelo volume de seu

público, quanto pela qualidade da apresentação) que atrai um público

culto, interessado por sua coleção de cerâmicas gregas. Pelocontrário, o nível é baixo no Museu de Dreux, sobretudo, de caráter

histórico; no Museu de Douai, recentemente criado, cujo

conservador esforça-se por atrair um público de jovens; no Museu

de Belas Artes de Marselha, * cujo número de visitantes corresponde

ao reduzido público de um museu de província (as exposiçõesacontecem no Museu CantinÍ, sede da Diretoria dos Conservadores,

situado no próprio centro da cidade); no Museu de Moulins que

apresenta, sobretudo, objetos arqueológicos; por último, no Museu

de Louviers, particularmente interessante já que é o único a ter um

kis cb dtfusão cuf}uraf

+ Laon

Dijon 'Colmar+ + +

o amor pelcz arle

+ Agen

Conjunto•

I

•. Dieppe(j = 1,4

+ Arts Déco

+ leu de Paume

+Lille

+ Pau

+Moulins

+ArrasTours+ + Arles

Marseille + Rouen+

+ Douai

3

Dispersão(j

1

0,5

1,1

1,25

128

Page 65: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

130

público bimodal, com um segundo modo compreendido entre o nível

do B. E. P.C. e o nível de vestibular. As condições de experimentaçãonão permitem identificar as diferenças - sempre bastante reduzidas

- entre os bons museus de pintura, do tipo tradicional, tais como o

Musée du jeu de Paume em Paris, além dos Museus de Tours, deArras, de Arles, de Rouen ou de Ulle.

No entanto, como o valor do nível de emissão (ou de oferta)

torna-se impreciso (como é demonstrado pelo exemplo de Louviers)quando a gama das coleções se diversifica - às vezes, vários museus

coexistem, de fato, no mesmo edifício -, pode-se também levar em

consideração a dispersão do público de museus, distribuído segundo

o nível de instrução, e verificar se a reduzida dispersão do públicocorresponde a uma forte homogeneidade das obras apresentadas, einversamente. De fato, o Musée du jeu de Paume ou o Musée des

Arts décoratifs, situados ambos em Paris, que expõem obras

particularmente homogêneas, compreendem uma dispersão bastante

reduzida, assim como, em menor grau, todos os museus que expõem,sobretudo, pintura (Arras, Tours, Douai, Arles, Rouen, Marselha,

Ulle). Em compensação, a dispersão é máxima no Museu de Dieppe,

cujo público é composto por visitantes habituais dos palácioshistóricos e, ao mesmo tempo, por amadores de pintura que vêm veras obras expostas em uma dependência do palácio; no Museu de

Laon, cujo público compreende, além de visitantes mais cultos _

sobretudo, membros do ensino, atraídos pela coleção de cerâmicas

gregas -, os visitantes tradicionais de um pequeno museu local de

arqueologia e de história; no Museu de Moulins que apresenta,

sobretudo, objetos arqueológicos, mas também alguns quadrosconhecidos por amadores e especialistas; ou, ainda, no Museu de

Agen que conserva objetos pré-históricos e pinturas da EscolaEspanhola.

Assim, embora as condições de experimentação impeçam ahierarquização, com precisão, dos museus de arte segundo o nível

da informação proposta por cada um deles, parece comprovado que

se pode distinguir algumas grandes categorias de nível no próprio

o amor pekzarle

âmbito desses museus e, a fortiori, no conjunto dos museus e

monumentos, já que se sabe que um museu ou um monumento

tendem a exercer maior atração sobre as classes médias quando,

além da pintura, oferecem objetos de folclore ou lembranças

históricas. Por conseguinte, pode-se também considerar ponto

pacífico que um museu tem um público tanto mais diversificado,

quanto mais diversas são as obras expostas e quando, ao lado da

pintura, propõe objetos capazes de atrair os visitantes oriundos dasclasses médias. Pode-se ver uma última confirmação da validade do

modelo proposto no fato de que as classes populares escapam quasecompletamente à atração diferencial dos museus; assim, suas visitas

a um museu ficam devendo mais ao acaso do que a uma informação

prévia em relação às obras expostas.

A ação empreendida, em seu museu, pelo conservador só pode

exercer-se, por definição, sobre a informação oferecida e, mesmo

que seja extremamente limitada, ela não deixa de ser privilegiada: se

o encontro por acaso com as obras não pode bastar, por si só, a

formar um visitante regular de museus, compete, no mínimo, ao

museu evitar desestimular e, pelo contrário,pair a atenção da pessoaque pela primeira vez é impelida a visitá-Io pela ação publicitária,

pelo turismo ou por acaso. Um esforço para aumentar a freqüência

dos museus pode ser organizado por referência a duas finalidades

bastante diferentes: pela "escolha" em aumentar a parcela dos

praticantes entre as categorias sociais mais representadas entre o

público ou intensificar o ritmo da prática dos visitantes atuais; ou

pela tentativa de atrair para os museus aqueles visitantes que fazem

parte das classes sociais que, atualmente, não os freqüentam, ou

raramente. Em decorrência da finalidade que for visada, deverão ser

utilizados meios diferentes - alguns dos quais são mesmo exclusivos;

além disso, o crescimento global do público será mais ou menos

importante, mais ou menos rápido e mais ou menos dispendioso.

Para alavancar a prática dos sujeitos das classes cultas que já

freqüentam os museus, conviria principalmente reavivar o interesse,

muitas vezes enfraquecido e esfriado, que eles manifestam pela

Jéis da d;fusão cufiural 13 1

Page 66: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

132

pintura, procurando reinserir a visita do museu no calendário social

que, habitualmente, a ignora. Essa é, segundo parece, a significação

da atividade tradicional do conservador, tal como é definida pela

"museologia" que, apesar do nome, não é uma ciência, mas um

conjunto de receitas e preceitos empíricos, transmitidos de maneira

difusa e oficiosa. Publicar catálogos, modernizar a apresentação dasobras, animar uma associação de amigos do museu e, sobretudo,

promover exposições - em que as mais típicas são aquelas que

reagrupam em um lugar inabitual e segundo uma organização nova,

por temas ou autores, obras oferecidas com caráter permanente em

museus dispersos ou que, durante um período limitado, concentram

a atenção em uma obra, "a obra da semana", como ocorre na NatÍonal

Gaiiery de Washington -, tudo isso equivale, afinal de contas, a

amparar e despertar o interesse dos amadores por um museu familiar

demais que só é lembrado na medida em que as atividades propostasse inserem no ciclo das manifestações sociais ou, até mesmo, a

suscitar visitas especiais por meio de uma valorização excepcional,

de modo que uma manifestação artística venha a adquirir a força deatração de uma cerimônia mundana ou de um "acontecimento"

social. Como uma igreja em que alguns eleitos vêm alimentar a fé

de virtuoses - enquanto conformistas ou falsos devotos limitam-se

a cumprir, apressadamente, um ritual de classe -, o museu pode

tornar-se, durante um instante, o lugar de peregrinação diante do

qual se empurram as multidões maciças de fiéis que, em Nova York,

Washington, Tóquio ou Paris, esperam em longas filas para lançar

uma rápida piscadela - à semelhança do que ocorria outrora quando

se beijava um crucifixo ou um relicário - a uma obra-prima exposta

ao fervor coletivo; no entanto, esses encantamentos não podem

suscitar o maravilhamento a não ser entre aqueles que, nos arroubos

fugazes da exaltação popular, pretendem ver uma forma - sem dúvida,

dessacralizada - de reconhecimento do sagrado.

Seria impossível compreender o interesse apaixonado que os

intelectuais manifestam por fenômenos, tais como o sucesso da

exposição sobre Picasso ou Tutancâmon, se não fosse constatado

o amorpela arle

que a relação mantida pelo intelectual com a cultura contém averdadeira questão da relação do intelectual com a condição

intelectual que nunca é tão dramaticamente formulada a não ser na

questão da relação das classes populares com a cultura; ora, trata-seexatamente da questão que o intelectual formula relativamente às

classes populares, ou seja, em seu lugar, dissimulando a questão da

relação do intelectual com essas classes como classes desapossadasda cultura. E para mostrar que o interesse dos intelectuais por esse

problema - ou por outros análogos, relativos à eficácia dos meios decomunicação modernos, da "cultura popular", das maÍsons de iacuiture* ou do livro de bolso - é diretamente interessado, basta

observar sua precipitação apressada no sentido de tirar partido dos

mais insignificantes índices de uma democratização do acesso àcultura. "Senhoras usando vÍson branco e operários de macacão

desfilam juntos diante do quadro Les DemoÍselles d'AvÍgnon",escrevem uns, do mesmo modo que outros vêem a televisão como o

grande veículo de mensagens culturais ao alcance de todos, portanto,

igualmente acessíveis a todos, por conseguinte;idênticas para todos,logo, apropriadas para tornar idênticos todos iqueles que as recebem.A tais encantamentos, convém opor o realismo desencantador dos

números.**

A análise das estatísticas das entradas registradas nas exposições

organizadas na Holanda, entre 1950 e 1962, permite estabeleceros limites da eficácia desse tipo de atividade: durante esse período,

o número global dos visitantes dos museus e das exposições

aumentou de maneira bastante regular (passando de 2.500.000,

em 1952, para mais de 5.000.000, em 1962), se excetuarmos dois

períodos de pico correspondentes à exposição de Van Gogh (1953)

e à exposição de Rembrandt (1956). Diferentemente do fluxo

* Também conhecidas pela sigla Mje., ou seja, maÍSon des jeunes et de Ia culture.instituição pública destinada a favorecer a difusão e a prática das mais diversasatividades culturais, em particular, para os jovens. (N.T.)

** No original, chjffj-es. (N.T.)

leis da difusão cu/iural133

Ili

Page 67: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

134

global, o número das entradas, unicamente nas exposlçoes,

permanece praticamente constante (com exceção dos anos de 1953

e de 1956) e oscila entre 700.000 e 800.000 visitas, embora o

número das exposições não tenha cessado de crescer, passando de

275, em 1952, para 360, em 1961, e 460, em 1962. Esta observação,

por si só, levaria a colocar em dúvida a eficácia de uma política

tendente a intensificar o ritmo das exposições Vá que tal ação

parece obedecer a uma lei dos rendimentos fortemente

decrescentes) se, além disso, não fosse registrado o seguinte:

quando algumas exposições se beneficiam de um sucesso particular,

o fluxo total dos visitantes dos museus e das exposições não

aumenta na mesma proporção já que, nas duas exposições citadas

mais acima, os "picos" do registro das exposições não

correspondem a "picos" do cômputo do público acumulado dos

museus e das exposições; de fato, como que por um efeito de

compensação, eles coincidem com "vazios" do registro das visitas

unicamente aos museus. Temos, portanto, o direito de concluir

que, por um lado, somente as exposições excepcionais atraem um

público novo, embora ocasional; e, por outro, sendo um fenômeno

independente da política de exposições, o aumento regular do

público global dos museus explica-se somente pela elevação

geral do nível de instrução e o crescimento do turismo cultural69

[d. Apêndice 5, Gráfico 12].

A exposição atrai, pontualmente, um número acentuado

de visitantes; no entanto, tende a fortalecer, mais ou menos

nitidamente, o caráter aristocrático do público (a taxa dos sujeitosque visitaram exposições temporárias e podem citar o nome das

mesmas passa de 17,5% nas classes populares para 30% nas classes

médias e para 70% nas classes superiores) [d.Apêndke4, Tabela 5].

É assim que uma exposição histórica - por conseguinte,relativamente acessível- consagrada à "La Vie à Pau sous le Second

Empire", atraiu ao museu um numeroso público, embora a parcelarelativa e até mesmo o número absoluto dos visitantes oriundos

o amor pela arle

das classes médias e populares tenha diminuído [d.Apêndke 2,

Tabela 12]. Por ocasião da exposição do M usée des Arts décoratÍ/S,

intitulada "Antagonismes" e consagrada às mais audaciosas formas

da arte moderna, a parcela dos visitantes pertencentes às classes

superiores atingiu 90% (ou seja, 18% de quadros superiores,

33,4% de estudantes, 21,6% de professores e especialistas de arte,

além de 17% de mulheres sem profissão, casadas com quadros

superiores; contra 8,5% de empregados e quadros médios, 1,5%de artesãos e comerciantes, 0,5% de operários, e nenhum

agricultor) .

Em Ulle, uma situação experimental foi criada,

ocasionalmente, pela apresentação simultânea de três exposiçõesde "níveis" bastante diferentes, alavancadas por uma fortíssima

ação publicitária (programas de rádio e de televisão, artigos nos

jornais locais, cartazes, etc.): aléni do museu, os visitantespodiam ver uma exposição de pint~ra do século XVIII, clássica

pelas obràs expostas e pela apresentação (paredes despojadas,

simples tabuletas ao lado dos quadros); uma exposição de arte

egípcia, patrocinada pela Universidade de Lille; e, finalmente, uma

exposição consagrada à 'TArt intérieur au Danemark" que

apresentava objetos cotidianos, vidraria e cristais, cerâmicas emóveis.

Era possível prever que a simultaneidade de exposições, comestilos e "níveis" bastante diferentes, permitiria acumular públicos

socialmente diferentes; neste caso, a exposição dinamarquesa atrairia

ao museu e, talvez, às outras exposições, visitantes oriundos das

classes médias e populares. De fato, embora o número das entradas

cotidianas tenha quase duplicado, a estrutura social do público das

três exposições permaneceu semelhante à estrutura do públicohabitual desse museu; inclusive, registrou-se uma queda do número

dos representantes das classes populares (de 5,5% para 1,2% e de

1,36% visitante em média para 1,20%).70

kis elacltfusão cuBural135

Page 68: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

o amor pela arle

Média dasParcela doMédia dasParcela doentradas

públicoentradaspúblicocotidianas

total%cotidianastotal%

Agricultores

0,41,5°°Operários

1,041,21

Artesãos e1,987,27

comerciantesEmpregados e

6,42721,221,5quadros médios

Professores

0,83,55,25,5primários

Estudantes

6,42731,632

Quadros

4,01718,819superiores

Professores e2,9

121414especialistas dearte

A distribuição do público segundo o nível de instrução

confirma o seguinte: o maior proveito dessa tentativa de vulgarização

foi tirado pelas classes privilegiadas, já que a taxa de visitantes de

nível inferior ao vestibular no público das exposições é nitidamente

mais reduzido do que no público do museu em período normal de

funcionamento, enquanto a parcela de titulares de licencepassa de18,5% para 34,5% relativamente ao conjunto das exposições, e para36,5% na exposição dinamarquesa; por sua vez, a parcela dosvisitantes dotados do vestibular permanece praticamente semelhante.

Apesar de ter apresentado objetos que poderiam ter sido

oferecidos ao público por uma loja de departamentos, a exposição

dinamarquesa foi transformada, pela localização e pela própriapublicidade que precedeu sua inauguração, em um acontecimento

cultural e, nessa qualidade, dirigia-se mais diretamente ao públicoculto. O simples fato de serem consagradas por sua exposição emum lugar consagrado é suficiente, por si só, para modificar

137

profundamente a significação(e, de forma mais precisa, o nível deoferta) de obras que, apresentadas em um lugar familiar, seriammais acessíveis. Não seria isso precisamente o que foi declarado

pelo guarda da Casa de Jacques Coeur, * em Bourges, quando deu a

seguinte resposta ao conservador: "Mas, se o senhor pretendertransformá-Ia em museu, ninguém virá visitá-Ia"??! A precária

representação das classes médias e populares é tanto mais notável

que cerca de um terço (27%) dos visitantes vinham pela primeiravez ao museu (dos quais 68,5% com a intenção precisa de ver esta

exposição) e que 80% eram originários de Lille e de sua região

metropolitana. Sem dúvida, a exemplo dos monumentos e dos lugaresrecomendados pelos programas turísticos, as obras expostas adquirem

uma significação social que transforma a visita em uma verdadeira

obrigação. No entanto, o acúmulo de valor, conferido às obras porsua exibição "extra-cotidiana" e pelas manifestações públicas deI

solenização, não pode ser percebido e apre{iado a não ser por aqueles

que pertencem à sociedade para quem e~S(lsobras existem como

valor, de modo que - neste domínio mais do que alhures - as

incitações fornecidas pelos contatos sociais e pela conversa ao pé doouvido, como técnica social de influência, têm mais efeito do que as

técnicas modernas de publicidade. Além disso, a visita da exposição,

como operação obrigatória, não se impõe no mesmo grau aosvisitantes dos diferentes meios porque os representantes das classesmais favoreci das são mais numerosos a ter visitado uma outra

exposição e não apenas a que constituía o objeto inicial de suavinda; ou dito por outras palavras, a força do programa cultural

proposto é tanto mais vivamente sentida quanto maior for a adesãoaos valores de cultura e mais forte a pressão do grupo de referência.

À semelhança da pregação religiosa, a pregação cultural só

consegue reunir as condições de êxito quando se dirige a convertidos.

* Jacques Coeur (1395-1456), rico comerciante francês de pedras preciosas, foifinancista do rei Carlos VII, tendo fortalecido a moeda; sua mansão em Bourges, cidadeonde nasceu, é um monumento característico da arquitetura civil do século xv. (N.T.)

iéis da difusão cuRural

ExposiçãoMuseu no período normalde funcionamento

136

Page 69: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

138

E é natural que - por lhe faltar o espírito de missão e por estarpreocupado, antes de tudo, em comemorar imediatamente o sucesso

de seus esforços, avaliado pelo número de fiéis recenseados -, o

conservador se dirija, por privilégio, às categorias que garantam um

maior número de devotos. Compreende-se que, ao lado da exposição,

a Assodação dos Amigos do Museu seja o segundo foco da operação"museológica" .

Quem se inscreve na Assoâação dos AmÍgos do Museu pretende

garantir as vantagens proporcionadas por essa organização, assim

como - sobretudo, talvez, nas pequenas cidades - afirmar-se como

praticante fervoroso das manifestações culturais propostas por tal

agrupamento: 23% dos membros da AssoâatÍon des AmÍs du

Louvredeclaram participar em todas as visitas propostas (ou seja,

mais de vinte, por ano),72 Torna-se compreensível a intensidade,

realmente excepcional, dessa prática se soubermos que os

membros da AssoâatÍon são quase todos oriundos das classes

cultas (ou seja, 77,5% de quadros superiores e de mulheres de

quadros superiores, contra 3% somente de artesãos ou

comerciantes e 0,5% de agricultores e operários). A distribuição

dos sócios segundo o nível de instrução é também significativa:

enquanto o visitante modal do público dos museus passou ovestibular, 47% dos membros da AssoâatÍon des AmÍs du Louvre

são titulares de lÍcence (os quais representam 1,8% da população

total da França), 30% possuem o vestibular e 19% somente têm

um certificado de estudos inferior ao vestibular.

A prova de que a Assoâation reúne os devotos e não atrai tanto os

neófitos, encontra-se no fato de que, independentemente de sua

categoria social, seus membros já eram familiares do museu antes

de sua adesão. Em 90% dos casos, o primeiro contato com o museu

havia ocorrido antes da idade de dezoito anos; aliás, 55% dos

membros declaram que sua inscrição na AssocÍatÍon foi

influenciada por um amigo ou limitou-se a seguir uma tradição

familiar. Assim, a AssociatÍon oferece os meios para que seus

membros continuem a se dedicar a uma atividade cultural, cujo

o amorpela arle

hábito foi adquirido desde a infância ou no decorrer da

adolescência, no círculo familiar, e desenvolvido por uma

escolaridade prolongada. Contrariamente ao desejo manifestado

por seu presidente, a AssoâatÍon não é nada menos do que um

meio de atrair para a visita de museus aqueles que se mantinham

afastados de tal atividade em decorrência de seu meio ou de sua

falta de cultura: 2.500 novos membros se inscrevem, anualmente

(enquanto um número quase igual não renova sua cotização);

apesar disso, as características sociais dos recém-chegados são

rigorosamente as mesmas dos membros antigos. Sem dúvida,

trata-se de uma associação parisiense, cuja composição social é

particularmente aristocrática; no entanto, tudo parece indicar que

as associações de província reúnem notáveis e intelectuais (ou

seja, relativamente à AssoâatÍon de Lille, 19% dos membros são

oriundos das classes médias e 81% das classes superiores, enquanto

em relação à AssoâatÍon de Douai, 2% dos membros pertencem

às classes populares, 11% às clare~ médias e 87% às classessuperiores), cuja ambição explícita consiste em agrupar a elite do'

público em torno do museu. Mesmo que seu objetivo fosse atrair

um novo público, elas não constituiriam o meio adequado para

alcançá-Ia.

Se a única finalidade consistisse em levar ao museu o maior

número possível de visitantes, sem qualquer outro tipo de preocupação,os meios atualmente utilizados na maioria dos casos são, sem dúvida,

os mais bem adaptados e os mais conformes à "vocação" dos

freqüentadores atuais de museus. No lado completamente oposto,uma política inspirada pela vontade de fazer vir ao museu aqueles quenão sentem a necessidade de freqüentá-l o só poderia ter, a curto prazo,uma eficáciaextremamente limitada e, sem dúvida, exigiria a utilização

de outros meios e, segundo parece, de um público dotado de uma

formação e de um espírito totalmente diferentes.

Entre os elementos que contribuem para definir o nível de

oferta dos museus - o menor dos quais não é sua significaçãosocial-, o

tipo de obras apresentadas e o tipo de apresentação que lhes é

leis da dfusão cuRural 139

Page 70: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

140

prodigalizado dependem (pelo menos, parcialmente) da ação exclusiva

dos dirigentes de museus. Se é conhecido que a parcela dos visitantes

que, primordialmente, são atraídos por objetos históricos,

etnográficos ou de folclore, por cerâmicas ou móveis, aumenta de

maneira regular e rápida à medida que se desce na escala social

[d. Apêndke 2, Tabelas 14 e 15], pode-se concluir que museus,exclusivamente consagrados às obras mais nobres e mais difíceis,

poderiam chamar a atenção dos visitantes oriundos das classes médias

reservando espaço para objetos que fazem parte da experiência

estética cotidiana - tais como móveis, faianças ou porcelanas, ou

ainda objetos históricos, de folclore e, até mesmo, etnológicos - e

respondendo, assim, aos interesses estéticos desenvolvidos pelo gostovoltado para a decoração das moradias ou satisfazendo a curiosidade

a respeito de tudo o que se relaciona com a história, confirmada

tanto pelo sucesso de vendagem das revistas históricas, quanto pelotamanho (muito mais importante) e pela estrutura (muito mais

democrática) do público que freqüenta os museus instalados nospalácios e monumentos históricos.

Se parece impossível abaixar o nível de oferta modal dos museus,

presume-se que se possa modificar sua variância (a2 no modelo),

diversificando o tipo e a qualidade das obras apresentadas. A forma

analítica da taxa t de freqüência de museus mostra que,

dependendo do valor da variância ser inferior, igualou superior

ao quadrado da diferença L'12 entre a oferta e a demanda, a taxa é

uma função crescente, estacionária ou decrescente de a2• Um

aumento da dispersão do nível das obras poderia determinar uma

queda da taxa de freqüência das categorias mais cultas (cujo nível

de demanda é o mais elevado), se esse crescimento da dispersão

não se acompanhasse, de fato, de um aumento da intensidade da

oferta ou do tamanho do museu, e se a consagração que lhes confere

o museu não elevasse automaticamente o nível das obras ofertadas,

como foi possível ver no caso da exposição dinamarquesa,

apresentada no Museu de Lille. Em todo caso, este crescimento da

dispersão tenderia a determinar um ligeiro aumento da

o amor pela arfe

representação dos visitantes menos cultos, atraídos por obras mais

próximas de sua experiência e mais apropriadas a seus interesses.

Os membros das classes médias, cujas atitudes organizam-se em

torno da oposição entre o "interessante" e o "instrutivo" - oposição

que, por exemplo, eles estabelecem entre os objetos familiares da

exposição dinamarquesa, plenamente apropriados a seus

interesses, e os objetos propostos pelo museu que, pelo contrário,

exigem um interesse decisório e forçado, tão diferente do

"interesse" quanto do prazer estético -, poderiam ter acesso, na

mesma oportunidade, a obras que não eram o objeto primeiro de

sua visita e, assim, encontrar uma ocasião de exprimir sua boa

vontade cultural.

A única maneira de baixar o nível de apresentação de umaobra consiste em fornecer, SÍmultaneamente, o código segundo o

qual está codificada, por meio de um discurso (verbal ou gráfico),

cujo código já seja controlado (parcial ou totalmente) pelo receptor,

ou que revele continuamente o código de sua própria decifração, emconformidade com o modelo da comunicação pedagógica

perfeitamente racional. Sabendo que os visitantes oriundos das classes

populares que se arriscam a visitar os museus sentem-se aí, muitasvezes, como que deslocados e sempre desambientados, por não

estarem preparados para enfrentar as obras expostas e por não

encontrarem, no próprio museu, os subsídios adequados a facilitar

sua visita, pode-se pressupor que, diante de uma dificuldade igual

das obras apresentadas, seria possível reduzir a confusão dos sujeitosmenos cultos, oferecendo-Ihes a ajuda que esperam. O receio de

que as informações escritas ou faladas a respeito das obras expostasdesviem os visitantes da contemplação das próprias obras,associando-as a conteúdos extrínsecos e acessórios, é uma forma de

ignorar que o ideal da contemplação sem palavras, nem gestos, é

próprio daqueles mesmos que só conseguem realizá-Io pelafamiliaridade imediata porprocionada pelas aprendizagens

imperceptíveis de visitas assíduas a museus; é também uma forma

de ignorar que o interesse pela obra em si mesma e por ela mesma,

leis elacltfusão cuÚural141

Page 71: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

142

assim como a indiferença ao conteúdo informativo que ela pode,

como que por acréscimo, propor, definem uma atitude estética que,

no mesmo plano da experiência popular do belo, está socialmente

condicionada e que, em todos os casos, nunca é independente de

condições sociais, ou seja, aquelas que tornam possíveis as "pessoascom gosto". A significação e a função dessa definição social da atitude

estética nunca aparecem tão bem a não ser em domínios em que a

"concorrência" das classes médias e populares ameaça o "monopólio"

cultural e as certezas estéticas ou éticas das classes superiores.

Assim, através da sátira dos fotógrafos apaixonados e da mania

fotográfica que se tornou um dos lugares comuns da conversação

distinta, exprimem-se, na realidade, as regras que devem definir,

para a elite, a contemplação estética: à semelhança dos fanáticos do

pequeno formato que se conformam à ascese laboriosa do acúmulo

das lembranças, ou à semelhança dos cinéfilos capazes de recitar os

créditos de filmes que não chegaram a ver, esses visitantes de museu

que, inteiramente ocupados em entesourar saberes acessórios, ficam

menos atentos às próprias obras do que à análise proposta a seu

respeito pelo catálogo, ignoram a arte de se abandonar à emoção

imediata e fugaz que define o distanciamento distinto do esteta.

Mesmo que incentivassem uma forma de contemplação quepode ser considerada inferior, as informações históricas ou técnicas

viriam preencher, pelo menos, as expectativas dos membros das

classes médias para quem há confusão entre ver e saber, compreender

e aprender, acabando por atribuir mais importância ao interesse

educativo do que ao simples deleite; ao mesmo tempo, elas

contribuiriam para atenuar o desnorteamento daqueles que, tendo

se aventurado a entrar em um museu sem qualquer preparação prévia,

haveriam de considerar o esforço para adotar os meios de aprender e

compreender como um reconhecimento implícito do direito de não

compreender e de pedir para compreender.

Para evitar que as tabuletas com esclarecimentos relativos às obras

não deformem o julgamento dos visitantes, nem prejudiquem a

estética do museu - receio freqüentemente manifestado -, bastaria

o amor pela arle

confiar sua redação a especialistas e sua apresentação a artistas. E

sem chegar ao ponto de pretender que seja oferecida ao visitante,

no próprio museu, uma documentação científica sobre as obras

expostas, como faz a National Galleryde Washington ou que sejam

utilizados aparelhos de projeção fixa ou os meios audiovisuais

individuais que se vê, por exemplo, no Bristish Museum, não seria

possível esperar que cada museu tivesse à disposição do visitante

um catálogo, por mais sumário que fosse, ou mesmo algumas

folhas mimeografadas, indicando a planta das instalações, que o

visitante pudesse comprar por um preço módico ou consultar ou,

ainda, tomar emprestado, gratuitamente, para utilizá-Io durante

a visita? Eis a melhor ilustração do mal-entendido que estabelece

uma separação entre o conservador e os visitantes oriundos das

classes desfavorecidas: se o conservador, ocupado com outras~-~obrigações e desejoso ele' apresentar um objeto de ciência

indiscutível, atrasa, às vezes, durante muito tempo, a publicação

de um catálogo, o público se contentaria, habitualmente, com

algumas folhas, até mesmo desatuaUzadas em determinados

aspectos científicos, mas que o ajudassem a conjurar a angústia

que tem ao se sentir só diante de uma obra de arte indecifrável.

Em vários países, são utilizadas numerDsas técnicas capazes de

tornar os museus mais acessíveis: os visitantes do Rijksmuseum,

em Amsterdã, são ajudados em sua visita por meio de tabuletas

explicativas; no Pítzwíllíam Museum de cambridge, senhoras

idosas que fazem tricô em pequenos teares tomaram o lugar dos

guardas sonolentos ou severos que seguem, passo a passo, ovisitante solitário dos museus de província; os prospectos

desdobráveis fornecidos aos visitantes da National Gallery têm

também como efeito transformar a atmosfera da visita porque,

em vez do recolhimento da igreja, evocam o passeio no jardim.

Por que não prever um fundo musical que desse aos visitantes o

sentimento de que podem pronunciar algumas palavras sem

perturbar um silêncio religioso? Por que não contratar

recepcionistas que, eventualmente, pudessem aconselhar ou

leis elarhfusão GuBural143

Page 72: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

145144

fornecer informações aos visitantes pouco cultos ou àqueles que

desejassem aprofundar seus conhecimentos? Por que não reforçar

os serviços educativos (nos museus dos Estados Unidos, quase

sempre mais importantes do que o serviço de conservação) e não

dotar os museus com bibliotecas, salas de concerto, livrarias e

butiques que façam o comércio de reproduções, jóias e objetos de

folclore? Por que não tornar o espaço mais acolhedor, dotando-o

de bares, salões de recepção ou restaurantes, permitindo que os

visitantes passem o dia no museu? Por que não proporcionar aos

professores de desenho o meio de ministrar seus cursos, como

ocorre freqüentemente nos Estados Unidos, nas salas do museu?

Se, entre as duas políticas objetivamente possíveis, os

conservadores escolhem quase sempre aquela que tendeobjetivamente a aumentar o caráter aristocrático do museu e de seu

público, não é porque, com toda a certeza, tenham consciência de

que por si só a ação direta do conservador não pode contribuir, de

maneira decisiva, para a democratização da cultura da qual são osguardiães; pelo contrário, é muitas vezes em nome de uma

representação carismática da relação com a obra de arte que os

conhecedores, paradoxalmente associados ao mito do "olho novo",

denunciam e recusam, como pura profanação, todos os esforços parareduzir, através da eficácia de uma pedagogia racional, a distância

reverencial ao sagrado. De fato, as escolhas dos conservadores, assimcomo as ideologias que lhes servem de justificação, devem menos à

lógica da deliberação racional do que às condições objetivas que

definem a profissão e, ainda mais, às características sociais que atransformam em um reduto do tradicionalismo.

A corporação dos conservadores apresenta, de fato, todos os

traços considerados característicos de um grupo tradicional. NaFrança, nas cidades de província, eles eram arquivistas, bibliotecários

ou pintores locais que, até 1945 (e, ainda hoje, * em um grande

* A edição deste livro data de 1969. (N.T.)

o amor pela arle

número de cidades), desempenhavam, além disso, a função de

conservadores para a qual, salvo exceção, não tinham vocação, nem

qualificação. Em Paris, na falta de qualquer definição racional das

condições de recrutamento e de qualquer explicitação dos critérios

de seleção, os conservadores escolhidos por cooptação, segundo o

jogo das relações pessoais e das tradições familiares, eram, quase

sempre, amadores de arte afortunados aos quais o museu não garantia

carreira, nem retribuição (ou, então, somente no plano simbólico),

pelo menos, até o grau de conservador; no entanto, o encargo de

conservar e aumentar, com uma "rapacidade desinteressada", as

coleções públicas representava a consagração de uma vocação de

colecionador.73 Muito pouco inclinados a desempenhar o papel de

administradores e, ainda menos, de pedagogos, muito mal preparados

para as tarefas propriamente científicas, eles satisfaziam-se com um

status global, ambíguoe-,-por conseguinte, prestigioso, que lhespermitia aparecer, diante dàs\criadores, como guardiães da Arte e

depositários da Tradição; diante dos universitários, como homensde ação e técnicos da Arte; e diante dos marchands, como estetas

desinteressados. Assim, em vez de uma corporação profissional no

verdadeiro sentido, os conservadores parisienses e outros de grandes

cidades de província constituíam uma "sociedade" (no sentido

restrito do termo), um conjunto de personalidades unidas (e

divididas) por relações de interconhecimento bastante estreitas eintensas.

oprincípio de todas as características sociológicas desse grupo

não deve ser procurado em sua reduzida importância numérica, nem

no sistema de recrutamento que se limita a manifestar sua lógica e

a garantir, logicamente, sua perpetuação; de fato, ele reside nasucessão de acasos, iniciativas individuais e decisões administrativas

que, em vez de organizar o estado de fato, tendem a legalizá-Io. Daí,

surgiu uma instituição com funções diversas e mal definidas e,

sobretudo, com a imagem subjetiva e objetiva de uma "tarefa" que,

participando da arte e dos valores sagrados e inefáveis da salvação

cultural, sente repugnância em se deixar confinar em quadros

leis da difusão cufiural

Page 73: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

146

burocráticos de um simples ofício. Eis a razão pela qual a verdadeira

natureza dessa" sociedade" tradicional nunca apareceu tão claramente

a não ser em face da provação suscitada pelo estatuto de 1945,

tentativa tímida de racionalização. Com efeito, o estatuto dos

museus, contemporâneo da criação da Éco/e nationa/e

d'administration, * esforçava-se por impor, à corporação dos

conservadores, as regras que regem os serviços públicos, tanto em

matéria de formação e de recrutamento - pela criação de um concurso

seguido por vários anos de estudos especializados -, quanto em

matéria de carreira ou de definição das funções, estabelecendo uma

dissociação, por exemplo, entre a função administrativa e a

qualificação científica, ou criando um grupo de executivos. Nesta

sociedade tradicional, segundo um processo conhecido por

especialistas da aculturação, a prova da racionalidade desencadeou­

entre outras coisas - um conflito agudo entre as gerações que é

vivenciado pelos mais antigos como a oposição de amadoresdesinteressados contra "cientistas" ambiciosos. E, concretamente,

até o estatuto de 1964 (que está justamente começando a ser aplicado,

e cujas conseqüências ainda não são perceptíveis), o de 1945 havia

permanecido letra morta. De fato, o concurso e os estudos posterioresnão davam acesso ao exercício da função de conservador: em 1961,

37% somente dos diplomados da seção superior da Éco/e du Louvre

foram efetivados nos museus que, para assistentes dos Museus

Nacionais, continuavam a recrutar candidatos sem o diploma da

Éco/e du Louvre; além disso, o Consei/ d'État rejeitou o recurso

apresentado pela Association des é/eves-agréés de /'Éco/e du Louvre*

contra uma dessas nomeações. 74 A despeito de algumas concessões

aos novos princípios, a promoção continuava a obedecer à lógica

* Escola Nadonal de Administração: estabelecimento público - conhecido tambémpela sigla E.NA. - criado com o objetivo de recrutar, por meio de concurso, eformar os quadros superiores da administração francesa. (N.T.)

** Literalmente, A,ssodação dos alunos-diplomados da Escola do Louvre; por suavez, o Conseil d'Etat (constituído por 5 seções e formado por 200 membros) é asuprema instância, consultiva e jurisdicional, da administração pública. (N.T.)

o amor pela arle

das relações pessoais; além disso, acumulando sempre as funçõesadministrativas e científicas, os conservadores ofereciam o máximo

de resistência possível a qualquer tentativa de racionalização e, por

exemplo, recorriam aos serviços benévolos de colaboradores, oriundosde seu mundo, e não aos serviços de subordinados tecnicamente

preparados para tarefas de execução. De fato, neste universo fechadoe restrito, em que a maior parte dos encargos são estabelecidos e,muitas vezes, criados por e para determinada pessoa, qualquertentativa destinada a introduzir uma regulamentação impessoal

parece, quase necessariamente, dissimular o arbitrário do desfavorou dos favores pessoais, o que contribui bastante para suscitar

resistências profundas de ligas unidas por relações pessoais ouinteresses comuns.75

Homem de ciência, comerciante (de fato, digam o que disserem

os textos administrativos, o responsável por um museu está

encarregado de procedeLª, aquisição de obras, portanto, entrar emconcorrência com os marchinps junto aos colecionadores e eventuais

doadores, além de impedir, nas alfândegas, a saída de obras para o

exterior, etc.), diretor administrativo, educador, o conservador dos

museus franceses pode invocar a multiplicidade de suas funções ­

em outros países (Polônia ou Estados Unidos), confiadas a diferentesfuncionários e a diferentes serviços especializados - para justificar

o privilégio reconhecido àquelas que se adaptam melhor com aimagem que ele tem de sua vocação. De forma mais precisa, em cadaconservador, a preocupação com as obras entra, incessantemente,em conflito com a preocupação manifestada em relação ao público.

No entanto, a despeito de concessões, sobretudo, verbais, ao

empenho demonstrado em democratizar o acesso ao museu, um

grande número desses colecionadores, ciumentos de sua coleção,acomodam-se, de fato, com o estado atual de seu museu e de seu

público:76 a incompreensão de visitantes - pouco aptos a apreciar osesforços despendidos por ocasião das exposições ou as façanhascometidas para conseguir certas aquisições - poderia estimulá-Ios

bastante ao pessimismo aristocrático se não conhecessem, por

leis da difusão cu/iural147

Page 74: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

experiência direta ou mediata, a presunção dos esforços para atrair

um novo público. E, do mesmo modo que alguns conservadores dos

museus poloneses, ainda oriundos, quase sempre, das camadas

privilegiadas, reduzidos pelo regulamento a um papel de pedagogos,

constatam com amarga alegria a eficácia limitada de uma ação pela

qual sentem repugnância, assim também um grande número deconservadores franceses encontrarão, sem dúvida, na descrição

científica dos limites de seu poder, um estímulo para se dedicarem

unicamente à ação sobre o público que lhe parece digna de sua

vocação, ou seja, a de guias artísticos de uma elite de amadores ou,

se quisermos, de "taste makers'. 77 E não será verdade que eles

desempenham sua função própria, a saber, consagrar os valores

estabelecidos, quando organizam uma exposição sobre Chagall em

1947, Klee em 1948, Villon em 1951, Dufy em 1953, Max Ernst em1959 ou, ainda, Miró e Le Corbusier em 1963 (MuséenatÍonal d'artmoderne), ou quando criam ou recriam determinado pintor

desconhecido ou não reconhecido das épocas passadas?

Por conseguinte, são compreensíveis as contradições da

representação vivenciadas pelos conservadores em suas relações com

o público. Um pequeno lote de temas tradicionais, ritualmente

evocados nas assembléias nacionais e internacionais - gratuidade

da entrada, período de abertura mais prolongado, publicidade ­

fornece o álibi mais seguro à inquietação "democrática" já que, ao

permitir lembrar os princípios sagrados (por exemplo, a propósito

da publicidade) e reafirmar os valores comuns, ele exime de formular

interrogações capazes de ameaçar tais valores e princípios,autorizando o debate sem fim sobre a eficácia das receitas (tanto

mágicas, quanto técnicas), cuja aplicação nunca será permitida pela

situação de grande miséria dos museus. E a dualidade que se encontra

no âmago do museu, com as salas abertas para o grande público e a

reserva acessível unicamente aos especialistas, exprime, sem dúvida,

a consciência profundamente dividida e contraditória da maior parte

dos conservadores, dilacerados entre as inclinações pelo esoterismoaristocrático, tributário de seu meio ou de seu ofício, e as solicitações

148 o amorpela arle

de uma sociedade e de uma época que lhes contestam seus apegos

exclusivos.78

Mas, de fato, os limites impostos à ação do conservador

impõem-se a qualquer tipo possível de incitação direta à práticacultural. Quem acredita na eficácia milagrosa de uma política de

incitação para visitar museus e, em particular, de uma ação

publicitária pela imprensa, rádio ou televisão - sem se dar conta de

que ela se limitaria a acrescentar, de forma redundante, informações

já fornecidas em abundância pelos guias, postos de turismo oucartazes afixados à entrada das cidades turísticas - assemelha-se às

pessoas que imaginam que, para serem mais bem compreendidas

por um estrangeiro, basta falar mais alto.

Sem dúvida, os esforços de incitação direta podem derrubar

as resistências sociais e, à maneira do turismo, facilitar a primeira

visita; no entanto em razão de sua incapacidade para criar a

disposição à práti~ regular, estão condenados ao fracasso. Assim,tratando-se da açãu de informação ou de incitação exerci da pelosmeios modernos de comunicação, ou tratando-se de operações de

difusão cultural empreendidas por organismos de "cultura popular",

a ação direta só pode ser eficaz se vier a se exercer sobre sujeitos

preparados, pela ação sistemática e prolongada da Escola, para acolherseu efeito. Assim, explica-se, segundo parece, o fracasso parcial,

freqüentemente constatado, dos esforços de formação artística

direcionados para crianças. Se, tendo acabado de deixar a Escola,

um grande número de crianças renunciam a uma prática, para cuja

inculcação ela havia despendido esforços, não é, como se acreditahabitualmente, porque o único efeito dessa formação precoce limitou­se a associar a Escola ao museu, de modo que a ruptura com a

primeira implicaria a ruptura com o segundo, mas é porque aescolarização não foi suficientemente longa, nem a educação

suficientemente profunda para constituir - entre aqueles que nãorecebem de seu meio a incitação difusa a uma prática regular - a

atitude culta, da qual a freqüência dos museus é uma manifestação.

leis da cltfusão cullural149

Page 75: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

/éis da difusão cuRural

Além de que a posse de aparelhos receptores de televisão permanece

distribuída, de forma bastante desigual, entre as diferentes categorias

sociais - passando de 3,8% dos assalariados agrícolas para 5,9%

dos agricultores, 20,8% dos operários, 31% dos quadros médios e

35,5% dos quadros superiores -, a receptÍvÍdade à informação varia

consideravelmente segundo o tipo de informação recebida e segundo

as características sociais e culturais dos receptores. Sabendo que a

escuta dos programas "culturais" de rádio e televisão (peças de

teatro, concertos, etc.) depende do nível de instrução e da posição

na hierarquia social, 81 não é necessário recorrer à experiência para

ter a certeza de que as informações sobre os museus ou as exposições

apresentam todas as condições de atingir e, a fortiori, influenciar

apenas a fração mais culta dos espectadores da televisão, ou de

forma mais precisa, de atingir e influenciar unicamente os

espectadores em razão direta de seu nível de instrução. Sem dúvida,

os ouvintes mais bem preparados por sua cultura é que recebem,

em melhores condições e com maior freqüência, os programas

EstudantesProfissões liberaise professores

151

9

6

5

23

100

Público dos museusfranceses

%

18

38 = 56

2

21

4

5

100

15,5

11

43,5 = 54,5

Público do Museu deLimoges

%

f

Agricultores

Artesãos ecomerciantes

TOTAL

Operários

Outros

Empregados equadros médios

o amor pela arle

Do mesmo modo, todas as tentativas empreendidas, até hoje, no

sentido de incentivar as visitas a museus mostram que as

características sociais e culturais do público permanecem

praticamente constantes, sejam quais forem os meios diretos

utilizados para atraí-Io. Assim, por exemplo, a experiência que a

UNESCO realizou, em 1956, em Limoges, comportava, em

primeiro lugar, uma exposição de quadros no museu, com visitas

comentadas e distribuição de 3.000 catálogos; em segundo lugar,

uma exposição em painéis portáteis com reproduções,apresentadas por dois funcionários dos Museus Nacionais na sala

de espetáculos das prefeituras do departamento de Haute-Vienne,

assim como em várias fábricas e escolas de Limoges; em terceiro

lugar, duas exposições em painéis portáteis na estação ferroviária,

na agência de correios e na biblioteca municipal da mesma cidade;

em quarto lugar, a projeção de filmes "destinados a sensibilizar o

público popular à pintura moderna" e apresentados por uma

equipe da Direção Regional da Juventude e dos Esportes; por

último, a distribuição pela biblioteca municipal de livros

consagrados à arte.79 Todas essas manifestações eram alavancadas

por uma considerável publicidade, cartazes, painéis expostos no

liceu masculino e na estação ferroviária de Limoges, artigos nos

jornais cotidianos, além de programas em Rádio-Limoges.

Esta experiência permite, portanto, avaliar a eficácia da ação direta

no caso mais favorável já que os mais modernos meios de

informação - imprensa, rádio e publicidade - reduplicaram a ação

dos meios considerados como mais tradicionais, ou seja,

conferências ou livros. Ora, a estrutura do público do museu em

que estavam expostas as obras de arte, durante o período da

experiência, não sofreu qualquer tipo de mudança, o que se

compreende se soubermos que a influência dos meios diretos e,

em particular, da ação de informação pela imprensa, rádio outelevisão, exerce-se sempre de maneira diferencial. 80

Eis o momento de lembrar que a ação decorrente dos programas de

rádio e televisão não é exercida de maneira sistemática e homogênea.

-

150

Page 76: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

152

dedicados à arte e, sejam quais forem os meios que ela possa utilizar,

a ação de incitação cultural é tanto mais bem-sucedida quanto maiscultos são aqueles que ela atinge.82

Constrangidos, pelos imperativos da maior difusão possível dos

órgãos onde trabalham, a elaborar uma sociologia espontânea,

baseada no método dos acertos e dos erros, os jornalistas abstêm­

se de utilizar os poderes milagrosos que, às vezes, são atribuídos

aos meios modernos de comunicação. No decorrer dos anos de

1963 e 1964, a revista hebdomadária Elle - cuja ambição

pedagógica é, no entanto, patente - nunca chegou a recomendar a

visita a museus. Se excetuarmos um artigo dedicado à maneira de

levar as crianças a visitar um museu - e, sobretudo, dirigido às

mães que, de fato, encontram uma incitação à essa visita, muitas

vezes, ao terem o desejo de acompanhar os filhos - essa revista,

que não deixa de dedicar rubricas permanentes ao teatro, à

literatura e ao cinema, sem falar das crônicas propriamente

femininas, contentou-se, nesse período de dois anos, em fornecer

a lista dos museus da França, assinalar as exposições temporárias,

aconselhar uma espécie de excursão turística à exposição dos

artesãos do departamento de Haute-Provence e, finalmente, na

edição de Natal, oferecer uma reprodução em cores. Sem negar

que uma revista, tal como esta, possa determinar em um público,

recrutado em sua maioria nas classes populares e médias (ou seja,4% de agricultores, 22% de operários, 10% de artesãos e

comerciantes, 25% de quadros médios, 18% somente de quadros

superiores e 21 % de diversos e inativos), o aumento momentâneo

de interesse ou, até mesmo, uma expedição cultural, ela não

poderia provocar conversões duradouras e uma práticapermanente.

As limitações impostas a qualquer ação direta de incitação à prática

cultural pesam também sobre as MaÚons de ia euiture. * Seja

* Daqui em diante, MJC (N.T.)

o amorpela arle

apoiada em um museu, como na cidade de Havre, ou em um

teatro, como em Caen, a MIC atraiu e reagrupou aqueles que,

por sua formação escolar ou seu meio social, haviam sido

preparados para a prática cultural. Na MIC de Havre, entre os

anos de 1961 e 1964, o número dos sócios conheceu uma ampla

oscilação de 138 a 3.500, mas a estrutura do público, sempre

bastante próxima da estrutura do público dos museus, manteve­

se notavelmente constante: a parcela dos quadros superiores,

representantes das profissões liberais e estudantes passou por

variações no mesmo sentido do número total dos sócios (segundo

uma lógica que pôde ser observada também a propósito das

exposições), oscilando entre 57,2% e 67,2% do conjunto dos

membros. Se a MIC de Havre atraiu um público que, por sua

estrutura, se aproxima dos públicos de museus que oferecem obras

de um nível particularmente elevado, tais como o Musée des Arts

déeoratifsou o Museutd\ utun, é, sem dúvida, porque, apoiando­

se em um museu de ar uitetura audaciosa* e dedicado a obras

modernas, ela atraiu aturalmente os visitantes habituais dos

museus deste tipo.

Por sua vez, a M.j C de Caen que deu prioridade às atividades

teatrais havia recebido (em 30 de maio de 1964, ou seja, um

ano depois de sua inauguração) um público composto por 75%

de escolares e estudantes, aos quais se acrescentam 7,8% de

quadros superiores e professores, 8,5% de empregados e

comerciantes, e somente 0,7% de operários e agricultores.83 Do

mesmo modo, o público da M.jC de Bourges comportava (em

30 de junho de 1964, ou seja, nove meses depois de sua criação)

26,8% de escolares e estudantes, 52,2% de quadros superiores

e professores, 22,6% de quadros médios e empregados, 9,6%

de operários e 1,2% de agricultores.84 Se a ação de organizações

profissionais preexistentes, esportivas ou familiares, pôde

* Projeto concebido por Oscar Niemeyer. (N.T.)

/eis da dfusão cuflural 153

Page 77: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

154

incitar uma parcela das classes médias e uma minoria das classes

populares a uma prática cultural que não lhes era familiar, a

Mj C. acabou sendo investida das características das instituições,

teatros ou museus, que ela deveria ter ultrapassado ou

substituído: os representantes da classe culta sentem-se no

direito e dever de freqüentar esses santuários da cultura, dos

quais as outras pessoas, por falta de uma cultura suficiente,

sentem-se excluídos. Longe de desempenhar a função que lhe

havia sido atribuída por uma certa mística da cultura popular,

a Méson de ia cuiture continua sendo a casa dos homens cultos.

Se sabemos que o interesse do ouvinte por uma mensagem,

seja ela qual for, e, ainda mais, a compreensão que venha a conseguirde seu conteúdo, depende direta e estreitamente de sua "cultura",só nos resta duvidar da eficácia de todas as técnicas de ação cultural

direta, a começar pelas MJ. C até as operações de educação popular;com efeito, enquanto se perpetuarem as desigualdades diante daEscola, única capaz de criar a atitude culta, todas essas técnicas

limitam-se a atenuar (no sentido preciso de dissimular) asdesigualdades culturais que elas não conseguem reduzir realmente

e, menos ainda, de forma duradoura. Não existe atalho para ocaminho que leva às obras de cultura; além disso, os encontros

artificialmente programados e diretamente provocados estão votadosao fracasso.

A maior parte das iniciativas de educação popular e,

particularmente, as MJ. C, inspiram-se em uma ideologia que, alémdas variantes e das variações, organiza-se em torno de um núcleo

comum de preconceitos e que, freqüentemente, aparece como aexpressão sistemática de um certo tipo de situação social. Ao darem

a impressão de acreditar que a inacessibilidade física das obras fosse

o único empecilho para que a maioria das pessoas pudesse abordá­

Ias, contemplá-Ias e saboreá-Ias, parece que certos dirigentes e

animadores pensam que basta levar as obras até o povo por não

poderem trazer o povo até as obras. As exposições de quadros nas

fábricas Renaultou as representações teatrais destinadas aos operários

o amor pela arle

de Villeurbanne* são experiências que nada podem comprovar, já que

fazem desaparecer o próprio objeto da experiência, admitindo como

resolvido o problema para o qual pretendem encontrar uma solução,

ou seja, o das condições da prática cultural como operação deliberada

e regular; no entanto, em todo caso, seu efeito consiste em levar

aqueles que as empreendem a se convencer da legitimidade de sua

iniciativa. Mais realistas, na aparência, já que contam com a ação de

animadores para preparar e incitar os representantes das classes

culturalmente desfavorecidas às práticas culturais, as operações de

educação popular nunca estão completamente isentas da ideologia

segundo a qual o confronto com a obra basta, por si só, para determinar

uma disposição duradoura à prática cultural. Assim, convencidos de

que as classes menos cultas, portanto, as menos corrompidas pela

influência rotinizante do ensino universitário, estão predispostas ­

em razão do estado de inocência cultural em que se encontram - a

acolher sem preconceito as formás mais autênticas e mais audaciosas

da arte, os animadores das AdIC acreditam poder conciliar, semcontradição, as buscas de uma vanguarda estética com a busca de um

público popular. Eis o que contribui bastante para explicar que, de

fato, eles se limitam a encontrar os destinatários reais de sua mensagem,

a saber, os intelectuais que ficam devendo à Escola não só uma cultura

clássica, ou seja, uma cultura escolar, mas também a capacidade e o

desejo de superá-Ia.

A despeito de não lhes faltarem animadores, tais operações

de recuperação cultural situam-se objetivamente à margem da

instituição escolar que, em vez de ser objeto de concorrência, é

ultrapassada por elas; ora, essa situação de repetição inútil e de

marginalidade encontra, naturalmente, sua justificação em uma

ideologia que, partindo da crítica contra as insuficiências da

instituição escolar, culmina na contestação genérica da legitimidade

e eficácia da ação específica da instituição, a saber, a inculcação,

* Cidade industrial na região metropolitana de Lyon, um dos mais importantespólos de desenvolvimento, situada no centro da França. (N.T.)

/eis ela c1tfusãocuJiural 155

Page 78: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

* Depois da reforma administrativa de 1964, inclui Paris e os departamentoslimÍtrofes (Hauts-de-Seine, Seine-Saint-Denis e Val-de-Marne). (N.T.)

156

pelo ensino e pelo exercício, do sistema de hábitos e aptidões que

define a atitude culta. Se já se sabe que estas organizações, ameaçadas

continuamente de serem consideradas como uma Escola de segunda

ordem, oferecem - a um grande número daqueles que estãoenvolvidos em suas atividades - determinadas carreiras e tarefas

que lhes seriam recusadas pela instituição universitária, compreende­

se que muitos dos que pretendem se ocupar da difusão ou da ação

cultural transformem a contestação do papel da Escola no primeiro

artigo de seu credo.85 Se estas convicções ideológicas podem ajudar

seus defensores a segurar-se e manter-se em tal situação instável,

elas acabam por impedi-Ios, com toda a certeza, de encontrar uma

das maneiras, aparentemente razoável, de livrar-se dela. Algumas

constatações do fracasso contêm, no entanto, implicitamente, as

condições de sua superação.

Assim, depois de ter descrito a ação empreendida nas Maisons

des jeunes de Porte Brancion, de Rue Mercoeur, de Paris-Centre e

de Paris-Charonne - todas em Paris - nas quais "o resultado é

decepcionante porque os jovens freqüentadores da Maison têmum nível cultural apenas sofrível", M. Eyraut, Diretor da Seção

das Belas-Artes,Juventude e Esportes da Região da Seine,* tira a

conclusão de que: "em primeiro lugar, o público popular não

sente necessidade de visitar museus e, tampouco, se sente à

vontade nesses espaços; em segundo lugar, para despertar-lhe o

interesse, é indispensável que um animador se ocupe

particularmente dessa atividade; em terceiro lugar, a colheita

dos frutos dessa ação se faz somente depois de um certo número

de meses e, até mesmo, de anos". 86 Isso significa que a açãocultural direta - exercida, como é sabido, sobre voluntários

(verossimilmente, mais instruídos do que a média dos

representantes de sua categoria) - só obtém resultados

perceptíveis com a condição de utilizar métodos escolares e prever

o amor pela arfe

prazos que não sejam inferiores àqueles ado~ados pela Escola

para fazer homens "cultos".

Em sua forma atual, as experiências de estabelecimento de

contato direto com as obras culturais obedecem a uma lei

sobejamente conhecida pelos especialistas dos fenômenos deaculturação: uma técnica pode ser perfeitamente aprendida ou

compreendida, e depois como que esquecida, porque as condiçõesde sua atualização não são fornecidas e porque ela não se integra

no sistema total de atitudes e hábitos que, de forma exclusiva,

poderiam conferir-lhe um fundamento e uma significação. É assim

que, entre as jovens esteticistas - cujo programa de ensino previa,com a ajuda do serviço educativo do Museu do Louvre, a visita dediversos museus -, 19% somente haviam voltado a um museu no

decorrer dos quatro meses, após o final das visitas obrigatórias,

apesar da maior parte dessas jovens serem oriundas do ensinosecundário;87 da mesma forma, os primeiros professores primários

que exerceram seu ofílio na Cabília, * no final do século XIX, nãocessavam de deplorq.! que os alunos dessem a impressão de ter

esquecido, mal saíam da escola, tudo o que haviam aprendido, nãosó o tamanho das árvores, mas também a matemática, ou seja,

técnicas solidárias de uma verdadeira atitude em relação ao mundo

que, neste caso, a Escola não sabia ou não podia, por si só,transmitir.

Será que isso significa que tais iniciativas não podem esperarnenhuma eficácia a não ser que se dotem dos meios à disposição da

Escola? De fato, além de que qualquer tentativa para impor tarefas e

disciplinas escolares aos organismos marginais de difusão culturalesbarraria contra as resistências ideológicas dos responsáveis que,

freqüentemente, ficam indecisos entre as vantagens da integração àinstituição legítima de educação e as vantagens da marginalidade,

podemos nos interrogar não só sobre o custo da operação quando

* Uma das regiões montanhosas da Argélia, habitada por berberes. (N.T.)

leis da r!tfusão cuRural157

Page 79: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

158

sabemos que, no estado atual, o rendimento de tais organizações é

praticamente insignificante, mas também sobre a verdadeira função

da política que consiste em estimular e amparar organismosmarginais e pouco eficazes, enquanto não tiver sido acionado tudo

o que for necessário para constranger e autorizar a instituição escolar

a desempenhar a função que lhe incumbe de fato ede direito, asaber, desenvolver em todos os integrantes da sociedade, semqualquer distinção, a aptidão para as práticas culturais comumente

consideradas mais nobres. Não teremos o direito de formular esta

questão quando, do ponto de vista científico, podemos estabelecer

que o prolongamento da escolaridade e a ampliação do tempo

reservado, nos programas, para o ensino artístico permitiriam, porsi sós, quebrar o círculo em que se encontram confinadas todas as

técnicas da ação direta, seja em relação à animação cultural ou àpublicidade através da imprensa, rádio ou televisão?

Assim, para voltar ao caso preciso dos museus, o aumento relativo

da taxa de freqüência (ou uma "elasticidade" E) igual, segundo oque precede, a

E = L'l2 - 1

corresponderia ao aumento reJatÍvo da dispersão da informaçãooferecida.

Em relação a um museu em que o nível modal dessa informação

é o do vestibular (co= 3 níveis), com uma dispersão de um nível

(o que é o caso mais freqüentemente observado), uma ação sobre

a informação oferecida tendente a aumentar a dispersão de um

nível determinaria a triplicação do número dos visitantes do nível

do C. E. P.Gáque E = (3 -1)2 ~ 1 = 3), resultado que, evidentemente,

só poderia ser obtido mediante uma conversão profunda da política

atual dos museus, assim como mediante um fortalecimento

considerável dos meios colocados à sua disposição. Sabendo queas taxas de freqüência empiricamente constatadas aumentam de

um a dez entre os níveis do C. E. P.e do B. E. P.c., vê-se que o efeito

o amor pela arle

da Escola é, neste nível, pelo menos, três vezes mais importante

do que o de qualquer ação direta sobre a oferta e, inclusive, na

hipótese menos favorável, já que para o visitante do nível do B. E.

P. C. o efeito dessa ação direta, avaliado da mesma forma, seria

nulo (E = (3 - 1)2 - 1 = O).

Assim, a elevação geral do nível da instrução, tal como é

demonstrada na comparação dos censos de 1954 e de 1962, dá

conta, por si só, de um aumento do número anual de visitantes em

1,6%, assim como da expansão demográfica de um aumento anual

de 1,1%; deste modo, a diferença (0,3%) entre essa taxa obtida

pelo cálculo e a taxa anual de crescimento de 3% - empiricamente

constatada em relação aos Museus Nacionais88 - deve, sem dúvida,

ser imputada ao aumento do turismo cultural.

Se imaginarmos que, ao elevar em três anos (ou seja, em um

nível) o nível cultural dos franceses que atualmente se encontram

no nível do C. E. P., estes subiriam para o nível do B. E. P. C.,

enquanto (elevaríamos os detentores do B. E. P. C. para o nível de

vestibulai)\ vemos por um cálculo elementar que, em um prazo

bastante longo, ou seja, no espaço de três gerações, a taxa de

freqüência global dos franceses registraria um aumento de 150%.

Como este modelo é válido, com ligeiras diferenças, para todas as

formas de prática cultural, fica comprovado, portanto, que a

intensificação da ação da Escola é o meio mais eficaz para fazer crescer

tal prática - ou seja, a freqüência dos museus, teatros ou concertos,

assim como a leitura e a escuta dos programas culturais de rádio e

televisão -, ao mesmo tempo que ela é a condição necessária da

eficácia de qualquer outro meio; ou, por outras palavras, os

investimentos alocados aos equipamentos culturais são poucorentáveis na falta de investimentos destinados à instituição escolar,

única capaz de "produzir" os utilizadores desses equipamentos.

Mas se é verdade, como já ficou comprovado alhures, que a

Escola, em sua forma tradicional, consegue transformar aqueles que

lhe são confiados, inculcando-lhes uma disposição duradoura à

/éis da cltfusão cuRural 159

Page 80: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

160

prática culta, o grau de tal mudança depende, no estado atual, da

quantidade e da qualidade dos conhecimentos prévios que

implicitamente lhes tenham sido exigidos por ela, pode-se prever

que a extensão considerável do público escolar, resultante de uma

verdadeira democratização do ensino, seria acompanhada

necessariamente pela diminuição progressiva da eficácia de uma ação

escolar estritamente adaptada a indivíduos dotados, como que por

uma harmonia preestabelecida, das predisposições que

implicitamente ela pressupõe, a menos que seja realizada uma

transformação radical da pedagogia, ou ainda melhor, dos postulados

implícitos que servem de fundamento a todas as escolhas

pedagógicas.

A definição científica das condições sociais e culturais da

freqüência de museus e, de forma mais geral, de qualquer tipo de

lazer culto, implica a ruptura radical com a ideologia das

"necessidades culturais", que leva alguns a considerar as opiniões

ou preferências efetivamente expressas e efetivamente coletadas pelas

pesquisas de opinião ou de consumo cultural como se fossem

aspirações autênticas, esquecendo não só os condicionamentos

econômicos e sociais que determinam tais opiniões ou consumos,

mas também as condições econômicas e sociais que podem tornar

possível um outro tipo de opinião ou consumo, em suma,

sancionando, por não ter enunciado ou denunciado sua causa, a

divisão da sociedade entre aqueles que sentem "necessidades

culturais" e aqueles que estão privados dessa privação. Pelo fato de

que a obra de arte só existe, como tal, na medida em que é percebida,

ou seja, decifrada, conclui-se que as satisfações inerentes a essa

percepção - seja do deleite propriamente estético ou de gratificações

mais indiretas, como o eleito de distinção - são acessíveis apenas

àqueles que estão dispostos a se apropriar de tais satisfações por

lhes atribuírem valor, no pressuposto de que este só pode ser atribuído

se eles dispuserem dos meios de conseguir tal apropriação. Por

conseqüência, a necessidade de se apropriar dos bens que, à

semelhança dos bens culturais, só existem como tais para quem

o amor pela arle

tenha recebido, de seu círculo familiar e da Escola, os meios de se

apropriar deles, não pode se manifestar senão entre aqueles que

podem satisfazê-Ia e pode satisfazer-se desde que ela se manifeste.Segue-se, por um lado, que a "necessidad'e cultural" como necessidadeculta, diferentemente das necessidades "primárias", aumenta à

medida que é plenamente satisfeita, já que cada nova apropriaçãotende a fortalecer o controle dos instrumentos de apropriação e, por

conseguinte, as satisfações inerentes a uma nova apropriação; e,

por outro, que a consciência da privação decresce à medida que cresce

a privação, de modo que os mais completamente desapossados dosmeios de apropriação das obras de arte são os mais completamente

desapossados da consciência desse desapossamento.

leis da chfusão cuJiural161

Page 81: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

conclusão

"The laws formulated above, if they be true (...), may be truisms."

A. R. RADCLIFFE-BROWN, Structure

and FunctÍon Ín PrÍmÍtÍve SOCÍety.

"Para quem usa óculos - objeto que, segundo a distância, está tão próximo delea ponto de 'apoiar-se em seu nariz' -, esse instrumento está, no cerne do mundo

ambiente, mais afastado do portador do que o quadro dependurado na paredeoposta. A proximidade desse instrumento é tão reduzida que, habitualmente, ele

passa desapercebido."

HEIDEGGER, O Ser e o Tempo.

As pessoas que ficaram surpreendidas pelo enorme esforço

despendido, neste livro, para a enunciação de algumas verdades

evidentes, ficarão sem dúvida indignadas porque, nesses truísmos,

não reconhecem o sabor, ao mesmo tempo, evidente e indizível, de

sua experiência relativa à obra de arte. O que importa, poderá se

dizer, ficar sabendo onde e quando nasceu Van Gogh; o que importam

as peripécias de sua vida e os períodos de sua obra? Para os

verdadeiros amadores, afinal, o que conta é o prazer que sentem

diante de um ~uadro de Van Gogh. E não é que se encontra, nesteponto, o que ~ sociologia se obstina, precisamente, a ignorar, por

uma espécie de'agnosticismo reducionista e desencantador? De fato,

o sociólogo é sempre suspeito (em nome de uma lógica que não é asua, mas a do amador) de contestar a autenticidade e a sinceridade

do prazer estético pelo simples fato de que descreve suas condições

de existência. É que, à semelhança de qualquer amor, o amor pela

arte sente repugnância em reconhecer suas origens e, relativamente

às condições e condicionamentos comuns, prefere, feitas as contas,

os acasos singulares que se deixam sempre interpretar comopredestinação.

A cónsciência obscura do arbitrário dos encantamentos

assombra a experiência do prazer estético: a história do gosto,

individual ou coletivo, basta para desmentir a convicção de que

determinados objetos tão complexos quanto as obras de cultura

~rudita, produzidas segundo leis de construção que foram elaboradas

no decorrer de uma história relativamente autônoma, sejam capazes

conclusão 163

Page 82: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

de suscitar, por sua virtude própria, preferências naturais. Somente

uma autoridade pedagógica consegue quebrar o círculo da

"necessidade cultural" segundo a qual uma disposição duradoura e

assídua à prática cultural não pode se constituir senão por uma

prática assídua e prolongada: as crianças oriundas de famílias cultas

que acompanham os pais nas visitas de museus ou exposições

adotam, de alguma forma, essa disposição à prática, depois que tiver

passado o tempo necessário para adquirirem, por sua vez, a disposição

à tal prática que surgirá de uma prática arbitrária e, antes de tudo,

arbitrariamente imposta. De fato, ao designarem e consagrarem certas

obras ou determinados lugares (tanto o museu quanto a igreja)

como dignos de serem freqüentados, é que as instâncias investidas

do poder delegado de impor um arbitrário cultural - ou seja, nocaso particular, uma certa delimitação entre o que é digno ou indigno

de ser admirado, amado ou reverenciado - podem determinar a

freqüência no termo da qual essas obras aparecerão como

intrinsecamente ou, ainda melhor, naturalmente dignas de serem

admiradas ou saboreadas. Na medida em que ela produz uma cultura

(habjtus) - que não é senão a interiorização do arbitrário cultural-,

a educação familiar ou escolar tem como efeito, pela inculcação do

arbitrário, dissimular cada vez mais completamente o arbitrário da

inculcação. O mito de um gosto inato, que nada deveria às restrições

das aprendizagens nem aos acasos das influências, já que seria dado

inteiramente desde o nascimento, não é senão uma das expressões

da ilusão recorrente de uma natureza culta que preexistiria à

educação - aliás, ilusão necessariamente inscrita na educação como

imposição de um arbitrário capaz de impor o esquecimento do

arbitrário das significações impostas e da maneira de impô-Ias.

Em vez de tentar refutar a fórmula de Kant, para quem "o

belo é o que agrada sem conceito", o sociólogo procura não só definir,

por um lado, as condições sociais que tornam possível esta experiência

e, por outro, aqueles para quem ela é possível, amadores de arte ou

"homens de gosto", mas também determinar, desta forma, os limites

em que ela pode, como tal, existir. Do ponto de vista lógico e

164 o amor pela arle

experimental, o sociólogo estabelece que agrada aquilo de que setem o conceito ou, de modo mais exato, somente aquilo de que se

tem o conceito pode agradar; por conseguinte, o prazer estético, em

sua forma erudita, pressupõe a aprendizagem e, neste caso particular,

a aprendizagem pela familiaridade e pelo exercício, de modo que,

produto artificial da arte e do artifício, este prazer que se vive ou

pretende ser vivenciado como natural é, na realidade, prazer culto.

Se o que Kant designava por "gosto bárbaro", ou seja, o gosto

popular, parece contradizer a descrição kantiana do gosto culto emtodos os pontos e, em particular, no sentido em que está armado

sempre de conceitos,89 na realidade, ele limita-se a manifestar,claramente, a verdade oculta do gosto culto. Do mesmo modo que,

à moral da intenção pura, Hegel opunha o ethos como "moral

realizada", assim também é possível, à estética pura, opor a estética

realizada no gosto culto que, enquanto maneira de ser permanente,não é outra coisa senão uma "segunda natureza" enquanto primeira

natureza superada e sublimada. Por ser a "estética realizada" ou, de

formarais precisa, a cultura (de uma classe e de uma época) tornadanatur(eza, é que o julgamento do gosto (e seu acompanhamento deprazel.\estético) pode se tornar uma experiência subjetiva, vivenciadacomo livre e, até mesmo, como conquistada contra a cultura comum.

As contradições e as ambigüidades da relação alimentadas pelos

sujeitos cultos com sua cultura são, ao mesmo tempo, favorecidas eautorizadas pelo paradoxo que define a realização da cultura comotornar-se natureza: se é verdade que a cultura só se realiza ao negar­

se como tal, ou seja, como artificial e artificialmente adquirida,

compreende-se que os virtuoses do julgamento do gosto dêem a

impressão de ter acesso a uma experiência da graça estética tão

perfeitamente libertada das restrições da cultura (nunca realizada

tão perfeitamente a não ser ao superá-Ia) e tão pouco marcada pela

longa paciência das aprendizagens das quais ela é o produto, quanto

a evocação das condições e dos condicionamentos sociais que a sua

revelação tornaram possível, ao mesmo tempo, como uma evidênciae como um escândalo.

conclusão 165

Page 83: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

166

Para que a cultura desempenhe sua função de encantamento,

convém e basta que passem despercebidas as condições históricas e

sociais que tornam possíveis não só a plena posse da cultura ­segunda natureza em que a sociedade reconhece a excelência humana

e que é vivida como privilégio da natureza -, mas também o

desapossamento cultural, estado de "natureza" ameaçado de aparecercomo baseado na natureza dos homens que estão condenados a talestado.

A colocação entre parênteses das condições sociais que tornampossíveis a cultura e a cultura tornada natureza - a natureza culta,

dotada de todas as aparências da graça e da dádiva e, apesar disso,

adquirida, portanto, "merecida" - é a condição de possibilidade da

ideologia carismática que permite conferir a posição central que, na

"sociodicéia" burguesa, é reservada à cultura e, em particular, ao

"amor pela arte". Sem poder invocar o direito do sangue (recusado,historicamente, por sua classe à aristocracia), nem os direitos da

Natureza, arma outrora dirigida contra a "distinção" burguesa, nem

as virtudes ascéticas que levaram os empresários da primeira geração

a justificar o sucesso por seu mérito, o herdeiro dos privilégiosburgueses pode fazer apelo à natureza culta e à cultura tornada

natureza - ou seja, ao que se chama, às vezes, "a classe", por uma

espécie de lapso revelador; à "educação", no sentido de produto da

educação que parece nada dever à educação; e à "distinçãd', graça

que é mérito e mérito que é graça, mérito não adquirido que justifica

os conhecimentos adquiridos não merecidos, ou seja, a herança.

Para que a cultura possa desempenhar sua função de legitimaçãodos privilégios herdados, convém e basta que o vínculo - ao mesmo

tempo, patente e oculto - entre a cultura e a educação seja esquecidoou negado. A idéia contranatural de uma cultura de nascimento, de

um dom cultural, outorgado a alguns pela Natureza, pressupõe e

produz a cegueira relativamente às funções da instituição que garante

a rentabilidade da herança cultural, além de legitimar suatransmissão, dissimulando que ela desempenha tal função: a Escolaé, com efeito, a instituição que por seus veredictos formalmente

o amor pela arle

irrepreensíveis transforma as desigualdades diante da cultura,socialmente condicionadas, em desigualdades de sucesso,

interpretadas como desigualdades de dons que são, também,

desigualdades de mérito.

Ao deslocar, simbolicamente, do terreno da economia para o

da cultura, o princípio do que as distingue das outras classes - ou,

ainda melhor, ao reduplicar as diferenças propriamente econômicas,

ou seja, aquelas criadas pela pura posse de bens materiais, com asdiferenças criadas pela posse de bens simbólicos, tais como as obrasde arte, ou com a busca das distinções simbólicas na maneira de

usar tais bens (econômicos ou simbólicos), em suma, ao transformar

em dado da natureza tudo o que define seu "valor", ou seja, para

tomar a palavra no sentido dos lingüistas, sua distinção, marca de

diferença que, como afirma o Littré, * separa do comum "por um

caráter de elegância, de nobreza e de bom tom" -, as classes

privilegiadas da sociedade burguesa colocam no lugar da diferençaentre duas culturas, produtos da história reproduzidos pela educação,

a diferença de essência entre duas naturezas: uma natureza

natu~mente culta e uma natureza naturalmente natural. Assim, asacyilização da cultura e da arte, ou seja, a "moeda do absoluto"reverenciada por uma sociedade subjugada ao absoluto da moeda,

desempenha uma função vital ao contribuir para a consagração da

ordem social: para que os homens de cultura possam acreditar nabarbárie e levar os bárbaros a se convencerem interiormente de sua

própria barbárie, convém e basta que eles cheguem a se dissimular ea dissimular as condições sociais que tornam possíveis não só a

cultura como segunda natureza em que a sociedade reconhece a

excelência humana e que se vive como privilégio de nascimento,

mas ainda a dominação legitimada (ou, se preferirmos, a legitimidade)

de uma definição particular à cultura. E para que o círculo ideológico

fique perfeitamente fechado, basta que aceitem a representação

* Referência ao monumental DictÍonnaÍre de ia iangue françaÍse (4 vais. e 1 supl.,1863-1873), cujo autor foi o lexicógrafo, Émile Littré (1801-1881). (N.T.)

conclusão 167

Page 84: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

168

essencialista da bipartição de sua sociedade em bárbaros e em

civilizados, como justificação do monopólio dos instrumentos da

apropriação dos bens culturais.

Se tal é a função da cultura e se o amor pela arte é exatamente

a marca da eleição que, à semelhança de uma barreira invisível e

intransponível, estabelece a separação entre aqueles que são tocados

pela graça e aqueles que não a receberam, compreende-se que, através

dos mais insignificantes detalhes de sua morfologia e de sua

organização, os museus denunciem sua verdadeira função, queconsiste em fortalecer o sentimento, em uns, da filiação, e, nos

outros, da exclusão. Nesses lugares santos da arte em que a

sociedade burguesa deposita as relíquias herdadas de um passado

que não é o seu, palácios antigos ou grandes mansões históricas

aos quais o século XIXacrescentou edifícios imponentes, construídos

quase sempre no estilo greco-romano dos santuários cívicos, tudo

contribui para indicar que, à semelhança da oposição entre sagrado

e profano, o mundo da arte se opõe ao mundo da vida cotidiana: a

intocabilidade dos objetos, o silêncio religioso imposto aos visitantes,

o ascetismo puritano dos equipamentos, sempre raros e pouco

confortáveis, a recusa quase sistemática de toda didática, a solenidade

grandiosa da decoração e do decorei, colunatas, amplas galerias, tetos

pintados, escadarias monumentais, tudo parece feito para lembrar

que a passagem do mundo profano para o mundo sagrado pressupõe,como afirma Durkheim, "uma verdadeira metamorfose", uma

conversão radical das mentes; e que o estabelecimento de relações

entre os dois universos "é sempre, por si só, uma operação delicada

que exige precauções, assim como uma iniciação mais ou menos

complicada", além de ser "impossível sem que o profano perca seus

caracteres específicos, sem que ele próprio se torne, de alguma forma

e em certo grau, sagrado". 90 Se por seu caráter sagrado a obra de arte

exige disposições ou predisposições particulares, ela confere, em

retorno, sua consagração àqueles que satisfazem suas exigências, a

esses eleitos que, invocando a própria aptidão, se auto-elegeram

para responder ao seu apelo. Outorgar o poder à obra de arte, não só

o amor pela arle

de despertar a graça da iluminação estética em qualquer pessoa, pormais desprovida que seja do ponto de vista cultural, mas também de

produzir por si mesma as condições de sua própria difusão, emconformidade com o princípio das místicas emanatistas, omne bonum

est diffusivum sui, é autorizar-se a reconhecer que, em todos os

casos, os acasos insondáveis da graça ou o arbitrário dos "dons"constituem a manifestação de aptidões que, afinal, são sempre o

produto de uma educação distribuída de forma desigual, portanto, atratar as aptidões herdadas como se fossem virtudes próprias da

pessoa, ao mesmo tempo, naturais e meritórias.

O museu fornece a todos, como se tratasse de uma herança

pública, os monumentos de um esplendor passado, instrumentosda glorificação suntuária dos grandes de outrora: liberalidade factícia,

já que a entrada franca é também entrada facultativa, reservada àqueles

que, dotados da faculdade de se apropriarem das obras, têm o

privilégio de usar dessa liberdade e que, por conseguinte, seencontram legitimados em seu privilégio, ou seja, na propriedade

dos meios de se apropriarem dos bens culturais ou, para falar comoMax Weber, no monopólio da manipulação dos bens de cultura e

dostnos institucionais da salvação cultural.

conclusão169

Page 85: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

228

eJemenlos rk &(;Iioyrafia

Não existe uma história geral dos museus. H. Landais chegoua enviar-nos um de seus cursos inéditos, ministrados na Feole du

Louvre, do qual tiramos algumas informações. Além disso, poderíamosconsultar com proveito os resumos históricos que, habitualmente,figuram como introdução dos catálogos dos museus de província.

Para fazermos uma idéia geral sobre os museus, poderíamosconsultar as obras de LucBenoist, Musée et muséologie (col. Que sais-je?n° 204) e de Georges Poisson, Les Musées de Franee (col. Que sais-je?n°

447), assimcomo o Répertoiredesmusées deFraneeetdela CommW1auté,

por G. Barnaud (Institut pédagogique national, ed. Paris, 1959).

Não existe estudo científico de conjunto sobre o público demuseus; trabalhos particulares foram realizados, na maior parte dasvezes, por conservadores de museus.

O Centro de Documentação da UNESCO possui umaBibliographie chronologique des enquêtes sur les visiteurs des musées,

organizada por F.de Borhegyi e Irene A. Hanson do Milwaukee PublicMuseum, em 1964, que constitui uma excelente referência. Entre

todos os artigos citados, chamamos a atenção em particular para:

- Fechner, G. T., Vorsehule der /Esthetik, Leipzig, 1897.

- Coleman, L. V., "Public Relations Attendance", in American

Association of Museums, voI. 2.

- Robinson, E. S., "The Behaviour ofMuseum Visitors", in American

Association ofMuseums, n° 5, 1928.

- Melton, A. N., "Distribution of Attention in Galleries ofMúseums

ofScience and Industry", in Museums News, voI. XVII, 1° 14, 1936.

o amor pela arle

"Problems in Installation in Museums of Art", in American

AssociatÍon of Museums, n° 14, 1935; e "Experimental Studies ofthe Education of Children in a Museum of Science", in AmericanAssoCÍatÍon ofMuseums, n° 15, 1936.

_Porter, M. C. B., "Behaviour of the Average Visitor in the PeabodyMuseum of the Natural History Yale University", in AmericanAssociation ofMuseums, n° 16, 1938.

_Kearns, W E., "Studies ofVisitor Behaviour of the Peabody Museumof Natural History", in Museum News, voI. XVII, n° 14, 1940.

_UNESCO, "Records of the General Conference 9 th. Session New

Delhi", 1956, Anexo A, Paris, UNESCO, 1957.

_Monzon, A., "Bases para incrementar el publico que visita el MuseoNacional de Antropologia", in Annales deI Instituto NaCÍonal de

Antropologia y Historia, tomo VI, n° 35, 1952.

_ Van Der Hoek, G. J., "Bezoekers bekeken, Mededilingen", inGemeentemuseum Um Der Haag, voI. 2, n° 2,1956.

_ Pesquisa do I. C. O. M. (International Council of Museum),UNESCO, C. U. A., 87, abril de 1953.

Poderemos ler também:

_ Svenska Museer, n° 3, 1952; n° 3, 1953; n° 3-4, 1954; n° 1, 1955;

n° 2, 1956.

_ Bigman, S. K., "Art Exhibit Audiences", in The Museologist, 1°59-60,1956.

_Zetterberg, H. L., Social Theory and SOCÍalPraetice,The BedminsterPress ed., N. Y., 1962.

Para conhecer os problemas levantados, atualmente, pelosconservadores de museu em matéria de difusão cultural, poderemosconsultar os relatórios dos Colóquios do L C. O. M. Oapão, em

1961; México, em 1962; Essen, em 1963; Paris, em 1964), assimcomo a coleção da revista Museum e, no que diz respeito à França,a revista 1l1usées et eolleetÍons publiques de Franee.

Finalmente, encontraremos em Museum and Young People (L

C. O.M., 1952), uma bibliografia organizada porG. Cart, M. Harmisson

e C. R. Russel sobre o problema do museu como meio de educação.

elemenlos ck bibliografia229

Page 86: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

230

no/as e reftrênciasbiblio!fráficas

] P Francastel, "Problemes de Ia sociologie de l'art" , in G. Gurvitch, Traité desociologie, Paris, PU.E, 1960, t. 11,p. 279. Foi a preocupação com a autentificaçãoque, exclusivamente, nos levou a mencionar as referências dos textos que, entre ogrande número de estudos com a mesma inspiração, escolhemos comoparticularmente significativos.

2 Pascal, Pensées, passim.

3 Avant-projet de programme pour le musée du xxe sifxle, mimeog., p. 5; d.também, P. Gazzola, in Musées et collections publiques de France, abril-junho de1961, p. 84-85: "É somente na 'neutralidade' que as obras expostas podem desdobrarlivremente sua significação expressiva. E é também essa atmosfera - a qual deveser automaticamente abstrata até tornar-se impessoal, mas, ao mesmo tempo, serescrupulosamente consumada, a fim de abster-se de qualquer sugestão possível _que cria as condições psicológicas ideais para o visitante." Cf. ainda M. Nicole in"Musées", Les Càhiers de la république des lettres, des sciences et des arts, XIII, p.141: "Já assinalamos o inconveniente dos cursos públicos e das explicaçõesforneci das nas salas de exposição, assim como das visitas acompanhadas, cujoruído perturba, de forma tão desagradável, os trabalhadores pacíficos."

4 UNESCO, CUA/87, p. 4.

5 E. Panofsky, "I;abbé Suger de Saint-Denis", in Architecture gothique et penséescolastique, trad. e Posfácio de P Bourdieu, Paris, Ed. de Minuit, 1967, p. 30.

6 G. Salles, Le Regarei, 1939, citado por G. Wildenstein, in Supplément à la Gazettedes Beaux-Arts, n° 1110-1111, julho-agosto de 1965.

7 A. Lhote, in Les Cahiers de larépublique des lettres, des sciences et des atts, XIII,p. 273.

8 G. Douassain, in Les Cahiers, loc. cit., p. 368.

9 G. Swarzenski, in Les Cahiers, loc. cit., p. 153.

10 R. Huyghe, Dialogue avec le visible, Paris, Flammarion, 1955, p. 8.

11 G. Salles, in Musées et collections publiques de France, julho-setembro de 1956,p. 138 e 139.

12 G. Pascal, in Les Cahiers, loc. cit., p. 117.

13 UNESCO, CUN87, p. 16.

14 Os próprios dados da sondagem permitiram justificar aparentes exceções: por

o amor pela arle

exemplo, como a vista do Museu de Bourg-en-Bresse estava acoplada com a doclaustro contíguo da igreja de Brou, as estatísticas oficiais não levam em consideraçãoa circunstância de que somente uma reduzida parcela dos visitantes da igreja penetra,efetivamente, nas salas do museu.

15 G. Barnaud, Répertoire des musées de France et de la Communauté, Paris,lnstitut pédagogique national, ed., 1959.

16 No Apêndice 1, encontrar-se-á uma exposição mais sistemática e detalhada daconstrução da amostra.

17 Como o Castello Sforzesco e a Pinacoteca de La Brera de Milão não podem serconsiderados como representativos dos museus italianos, a análise das observaçõescoletadas nesses museus serviu apenas para identificar determinadas indicaçõessobre as atitudes e preferências do público italiano.

]8 Os mesmos procedimentos de amostragem no decorrer do tempo foram utilizadosna Grécia e na Holanda, com a diferença de que foram selecionadas as férias deverão, em vez das férias de Páscoa. Em relação à Polônia, esse problema não selevantava em virtude da reduzida importância do fluxo turístico; por sua vez, na

Espanha, como as sondagens foram efetuadas apenas durante as férias de verão, aamostra é afetada por um importante viés.

19 Cf. W. E de Ia Vega, Analyse Jactorielle des données d'enquête sur la fréquentationdes musées, Centre de calcul de Ia Maison des sciences de I'homme, nota interna de

14 de junho de 1965/ ODD, 5 p. mimeog.

20 Como as principais etapas e o coroamento dos diferentes raciocínios matemáticossão sempre retomados em linguagem comum, os leitores poderão pular essestrechos sem perderem o fio desta exposição.

2] Como todas as leis estabelecidas a propósito do público dos museus de artefranceses foram confirmadas pelas sondagens efetuadas nos outros países europeus,qualquer proposição defendida sem outra precisão ou ilustrada unicamente peloexemplo francês poderá ser considerada válida para o conjunto dos países estudados.Para evitar o acúmulo fastidioso de números, só foram consignadas, em relação aos

outros países europeus, as ilustrações particularmente significativas (assim, noApêndice 5, será possível encontrar os principais dados estatísticos que dizemrespeito aos museus europeus).

22 ° número dos visitantes masculinos que responderam ao questionário é

ligeiramente superior ao dos visitantes do sexo feminino, sem dúvida porque, emrazão da masculinidade das tradições familiares, o marido é estatutariamenteconsiderado, sobretudo, nas classes populares, como o mais digno para formular

um julgamento em matéria de estética erudita e porque, freqüentemente, as mulheresrecusaram-se a responder ao questionário quando o marido era entrevistado ("elesabe melhor do que eu"). A Exposição Dinamarquesa, exibida em Lille, constituiuma exceção: se as mulheres deixam ao marido, naturalmente, o monopólio dosjulgamentos "intelectuais", é compreensível que, na qualidade de detentorasestatutárias do exercício cotidiano do julgamento de gosto, elas forneçam de formamais natural sua opinião sobre as obras que pertencem à ordem dos objetos familiarese da decoração doméstica, tais como móveis e cerâmicas.

23 Entre eles, 41% afirmam ter estudado latim, contra 20,5% somente dos quadrosmédios e 22% dos professores primários.

no/as e rejéri?ncias biblIográficas231

Page 87: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

232

24 Com efeito, afirmar que a taxa anual de visitas é, para determinada categoriaestatística, igual a 10%, eqüivale a afirmar que será necessário dez anos, em média,para que um indivíduo dessa categoria venha a visitar um museu.

25 Para evítarmos comprometer o sucesso da sondagem principal, propondo questõesdiretas demais sobre o número de visitas anteriores a um museu, decidimos, porum lado, entrevistar os visitantes em relação ao número de visitas anteriores aomuseu em que se encontravam nesse instante, e, por outro, pedir-lhes para citar onome dos três últimos museus que tinham visitado (d. questionários I e II, questõesI e IX). Além disso, a sondagem de verificação formulava, sob três formas diferentes,a questão direta sobre o número de visitas anteriores a um museu, seja ele qual for.No entanto, a imprecisão da lembrança, particularmente forte no caso de uma

atividade libertada dos ritmos sociais, e a tendência para sobreavaliar a prática realque se observa, comumente, em toda sondagem sobre as práticas culturais, tendema comprometer a qualidade da informação coletada. O número declarado de museusprecedentemente visitados apareceu, no decorrer da análise, como o melhor indicadordo ritmo da prática [cf. Apêndic(! 2, Tabelas 7 e 8].

26 É evidente, por último, que tal cálculo não permite excluir a hipótese de quepossam existir várias subpopulações para as quais a!, a2, a3, etc., fossem distintos,embora de uma ordem de grandeza comparável, o que eqüivaleria a afirmar que _pela atuação diferenciada de diversos fatores secundários (conjuntamente com ofator principal) sobre as diferentes subpopulações - os fenômenos observadosseriam, em estrita lógica, aleatórios.

27 "Premiers résultats de l'enquête sur les vacances des Français en 1964", in Étudeset conjonctures, suplemento n° 4, 1965.

28 Em todos os países, a estrutura social do público dos visitantes estrangeiros émais elevada do que a dos visitantes nacionais. Assim, entre os visitantes franceses

entrevistados, em agosto, no Museu Picasso de Barcelona (cujo nível de oferta é,mais ou menos, elevado), conta-se 1% de visitantes das classes populares, 3,5% deartesãos e comerciantes, 18% de quadros médios, 7% de escolares, 31 % deestudantes, 23% de quadros superiores e 16,5% de professores e de especialistasde arte. Basta comparar essa distribuição com a do conjunto dos museus francesespara verificar que, por si só, o turismo não afeta as regularidades habitualmenteconstatadas entre a classe social e a prática cultural.

29 Em relação ao nível de informação (ou nível de oferta) e o nível de recepção (ounível de demanda), ver iniTa, Terceira Parte.

30 Tudo parece indicar que as leis que regem a freqüentação dos museus são válidastambém para as outras práticas culturais, embora a ação dos fatores secundários(por exemplo, a residência ou a renda) possa afetar a relação fundamental entre o

nível de instrução e cada uma das práticas consideradas. Assim, uma sondagemrealizada pelo IFOp,* em 1966-1967 (La ClienteJ(! du livre, Syndicat national deséditeurs, 1967) mostra que a compra de livros e a leitura dependem estreitamentedo nível de instrução e decrescem consideravelmente com a idade. Além disso, pelasondagem, sabe-se que a freqüentação do teatro e dos concertos está bastantefortemente associada à freqüentação do museu (d. iniTa, p. 101-102).

* Sigla de Institut iTançais d'opinion publique, organismo de sondagens criado, em1938, pelo psicossociólogo francês, Jean Stoetzel (1910-1987). (N.T.)

o amor pela arle

31 A Polônia apresenta algumas exceções às leis gerais que associam a freqüentaçãodo museu a uma familiarização precoce, aliás, garantida pela família com umafreqüência tanto maior, quanto mais se sobe na hierarquia social: a parcela dosvisitantes que devem à Escola sua primeira visita é, nesse país, praticamente igualà parcela daqueles que a ficam devendo à família [cf. Apêndice 5, Tabela 5].

32 Por insuficiência de dados estatisticos, o estudo do público espanhol deve basear­se somente na análise da composição do público de um certo número de museus,de modo que as proposições extraídas dessas observações não podem serconsideradas válidas para o público do conjunto dos museus espanhóis. É claro quea proporção de mulheres é mais reduzida no público nacional espanhol do que nopúblico nacional francês ou do que no público dos turistas (35% de mulherescontra 50% na França). Se já é conhecido que, na Espanha, a população feminina émenos escolarizada do que a população masculina e que as taxas de escolarizaçãoda Espanha são, em todos os níveis, inferiores às da França, pode-se determinar queo nível de oferta dos museus espanhóis é, na maior parte do tempo, menos elevadoe mais disperso do que o dos museus franceses. Assím, o público com nívelsuperior ou igual ao vestíbular corresponde a 57% no Museu de Arte Moderna, 56%no Museu de Picasso e do Prado, 46% no Museu do Povo Espanhol e 43% no Museude Arte Catalã, museu de folclore, enquanto a média desse público nos museusfranceses está acima de 60%.

33 Em relação a este país, o modo de atribuição dos diplomas faz com que o número deindivíduos desprovidos de certificado escolar é muito mais elevado do que alhures, oque deve implicar uma superavaliação dos radosdo nível secundário; a taxa reduzidíssimado nível secundário, na Polônia, tem a ver com uma diferença de definição.

34 O número mais elevado de visitantes gregos e poloneses que, em nível de instruçãoequivalente, citam três museus precedentemente visitados deve-se ao fato de que,segundo parece, eles são mais cuidadosos em responder com precisão a umapergunta que pode parecer ingênua ou desprovida de interesse aos visitantes dospaíses de velha cultura, e também ao fato de que, talvez, sintam o dever de afirmar,com uma prática mais assídua, um fervor que não é amparado e transmitido poruma verdadeira tradição cultural.

35 Para determinar aproximadamente os níveis relativos do capital cultural nacionaldos diferentes países estudados, poderíamos considerar, por um lado, o número, aqualidade e a diversidade das obras expostas nos museus, a antigüidade de suaaquisição, a importância do capital artístico acumulado pelas classes privilegiadassob a forma de coleções privadas, a importância relativa das doações nas coleçõespúblicas, etc., e, por outro lado, indicadores da intensidade do esforço educativo (ede sua evolução no decorrer do tempo), tais como a taxa de escolarização no ensinosecundário e superior (e sua taxa de crescimento). Aqui, bastará indicar que, avaliadapela taxa de escolarização da faixa etária de quinze a vinte e quatro anos, a hierarquiados países estudados coincide com a que é obtida dos indicadores de atitude; nestecaso, a exceção da Polônia é mais aparente do que real já que sua taxa de escolarização,praticamente equivalente à da Holanda, só foi atingida ao termo de um crescimentorápido e recente. Além disso, sabe-se que a Holanda é, de todos os países europeus,o que parece reservar um espaço mais importante para o ensino artístico. Aindaoutro aspecto: por estudo comparativo, seria necessário estabelecer as relaçõesentre o capital artístico e o capital educativo nos diferentes países, o que permitiriadar uma forma operatória a noções da sociologia espontânea, tais como as de

nolas e referências bibliográficas 233

Page 88: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

"países de velha cultura" ou de "país novo". Seria também adotar o meio de determinaras relações que, em cada pais, estabelecem-se entre a oferta e a demanda culturaise, talvez, os mecanismo de transmissão cultural (entre os quais convém contarcom as tomadas de empréstimo a outras tradições culturais) que tendem a garantir,no decorrer da história, determinado nível de equilíbrio entre oferta e demanda: domesmo modo que a constituição de um patrimônio artístico pressupõe um certograu de competência artística, assim também a aquisição de uin certo grau decompetência artística pressupõe um patrimônio prévio, de maneira que o capitalcultural nacional designa o resultado, acumulado pelas gerações sucessivas, dainteração de uma oferta com uma demanda.

36 Vimos que, no essencial, há coincidência entre as diferentes hierarquias dosmuseus: a que é sugerida pelos guias turísticos, a que é avaliada pelo número anualde visitas e a que é estabeleci da pelos Conservadores (d. p. 25-26).

37 Segue-se que a melhor avaliaçãodas preferências reais - que podem deixar de coincidircom os "gostos" declarados - seria fornecida pelo cálculo (longo e difícil, portanto,dispendioso) do tempo dedicado pelos visitantes a diferentes obras de um museu.

38 Melhor do que nas opiniões diante das obras de cultura erudita - por exemplo,pinturas e esculturas - que, por seu elevado grau de legitimidade, são capazes deimpor julgamentos inspirados pela busca da conformidade, é na produção fotográficae nos julgamentos a respeito das imagens fotográficas que se revelam os princípiosdo "gosto popular" (d. P.Bourdieu, Vn Art moyen, Essa! sur les usages sociaux dela photographie, Paris, Ed. de Minuit, 1965, p. 113-134).

39 Nesta relação, pelo menos, a decifração de uma obra pictural obedece a umalógica semelhante à da decifração de uma mensagem qualquer. Ao comentar afórmula de Saussure segundo a qual "na língua, existem apenas diferenças" (Coursde linguistique générale, Paris, Payot, 1960, p. 166), Buyssens estabelece que, tantono plano semântico quanto no plano fonológico, a identificação das diferençaspressupõe a referência implícita às semelhanças de som ou de sentido (CahiersFerdinand de Saussure, VIII, 1949, p. 37-60).

40 R. Longhi, citado por A. Berne-Joffroy, Le Dossier Caravage, Paris, Ed. de Minuit,1959, p. 100-1Ol.

41 A. Berne-Joffroy, Le Dossier Caravage, op. cit., p. 9. Conviria examinarsistematicamente a relação que se estabelece entre a transformação dos instrumentosde percepção e a transformação dos instrumentos de produção artística, sabendo-seque a evolução da imagem pública das obras passadas está indissociavelmente associadaà evolução da arte. Como observa Lionello Venturi, Vasari descobre Giotto a partir deMichelangelo; por sua vez, Belloni repensa Rafael a partir de Carracci e de Poussin.

42 É evidente que o nível de emissão não pode ser definido de maneira absoluta pelofato de que a mesma obra pode fornecer significações de níveis diferentes segundoa grade de interpretação que lhe é aplicada, além de poder satisfazer, por exemplo,o interesse por um detalhe secundário ou pelo conteúdo informativo (em particular,histórico) ou chamar a atenção unicamente por suas propriedades formais.

43 Eis o que é válido para qualquer formação cultural, forma artística, teoria científicaou teoria política, na medida em que os habitus antigos podem sobreviver, durantemuito tempo, a uma revolução dos códigos sociais e, até mesmo, das condiçõessociais de produção desses códigos.

44 Encontrar-se-á uma exposição sistemática desses princípios in P. Bourdieu,"Eléments pour une théorie sociologique de Ia perception artistique", in Revueinternationale des sciences sociales, vaI. XX (1968), n° 4.

45 E. Panofsky,"Uber das Verhiiltnisder Kunstgeschichte zur Kunsttheorie", in Zeitschriftiiir /Esthetik und allgemeine Kunstwissenschaft, XVIII, 1925, p. 129 ss.

46 E. Panofsky, "Zum Problem der Beschreibung und Inhaltsdeutung von Werkender bildenden Kunst", in Logos, XXI, 1932, p. 103 ss. É evidente que, segundo o

tipo de objeto e a situação social e cultural do sujeito perceptor, o saber cultural quecondiciona a familiaridade é mais ou menos controlado.

47 E. Panofsky, "Zum Problem der Beschreibung und Inhaltsdeutung von Werkender bildenden Kunst", loco cito

48 E. Panofsky, "Uber das Verhâltnis der Kunstgeschichte zur Kunsttheorie", loCocito

49 E. Panofsky, "Zum Problem der Beschreibung und Inhaltsdeutung von Werkender bildenden Kunst", loco cito

50 N. S. Troubetzkoy, Principes de phonologie, Paris, Klincksieck, 1957, p. 56; ver,também, p. 66-67.

51 Por uma série de experiências, Colin Thompson mostrou que, apesar de serenquadrada por uma instrução expressa, a apreensão das cores em si e por elasmesmas é extremamente rara (mesmo entre os adolescentes no final dos estudos

secumjários); com efeito, a atenção dos espectadores fixa-se, sobretudo, nos aspectosnarrativos ou acessórios da imagem (C. Thompson, Response to Coloar, Corsham,Research Center in Art Education, 1965).

52 Cf. E. Kant, Anthropologie du point de vue pragmatique, trad. M. Foucault,Paris, Vrin, 1964, p. 100.

53 Na Polônia, a parcela daqueles que escolhem o conferencista corresponde a31 % para as classes populares, 26% para as classes médias e 14% para as classessuperiores, enquanto 23%, 29% e 35,5% das mesmas classes desejam,preferencialmente, fazer a visita em companhia de um amigo competente. NaGrécia, 33% dos visitantes oriundos das classes populares, 27% das classesmédias e 31 % das classes superiores preferem uma visita guiada por umconferencista, contra 17%, 40% e 46% que preferem recorrer a um amigo.Finalmente, na Holanda, em que o capital cultural é mais elevado, todas as classesescolhem o amigo, preferencialmente, ao conferencista; essa diferença é tantomais marcante quanto mais elevado for o nível de instrução (ou seja, de 1 a 1,3para as classes populares, 1 a 6 para as classes médias e de 1 a 5 para as classessuperiores) [d. Apêndice 5, Tabela 5].

54 "O público médio, escrevem Charpentreau e Kaes, não tem nenhum desejo dereceber uma 'educação'. Com ou sem razão, desconfia de tudo o que lhe faz lembrara escola porque pretende ser tratado como adulto" (La Culture popula!re en France,Paris; Les Éditions ouvrieres, 1962, p. 122).

55 Em um artigo intitulado "Das Problem des Stils in der bildenden Kunst" (inZeÍtschrift für /Esthetik und allgemeine Kunstwissenschaft, X, 1915) e dedicado àsteorias gerais de Heinrich W61fflin sobre o estilo nas artes figurativas, Erwin Panofskycoloca em evidência a ambigüidade fundamental dos conceitos w61fflinianos de"ver", "olho" e "óptica", utilizados comumente em dois sentidos diferentes que, "na

234 o amor pela ar/e no/as e rejérências bibliográficas235

Page 89: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

lógica de uma pesquisa de ordem metodológica, devem naturalmente serrigorosamente distinguidos". No sentido estrito do termo, o olho é o órgão da visãoe, nesta qualidade, "não desempenha nenhum papel na constituição de um estilo".No sentido figurado, o "olho" (ou a "atitude óptica") só poderia ser, com todo o rigor,"uma atitude psíquica em relação a dados ópticos"; assim, "a relação do olho com omundo" é, na realidade, "uma relação da mente com o mundo do olho".

56 Em todos os países, a parcela daqueles que declaram ter vindo ao museu para veras obras de arte mais prestigiosas - pintura e escultura - aumenta na mesmaproporção em que se eleva o nível de instrução; por sua vez, a parcela daqueles quevieram ver os objetos históricos e de folclore varia em sentido oposto. Na Holanda,a parcela dos amadores de pintura e escultura passa de 59% relativamente àsclasses populares para 7l % das classes médias e para 76% das classes superiores,enquanto a parcela dos visitantes que se interessam pelos objetos históricos e defolclore passa de 19% para 12% e 9%. Do mesmo modo, na Polônia, 36%, 57%,71% dos visitantes de cada uma dessas classes mencionam pintura e escultura. NaGrécia, a parcela dos visitantes que vieram ver escultura passa de 12% relativamenteàs classes médias para 19% das classes superiores, enquanto aqueles que se interessampelo folclore constituem 48% e 39% dessas classes. Portanto, ainda aqui, observa­se uma relação entre o capital cultural dos diferentes paises e as atitudes de seupúblico [Cf. Apêndice 5, TaSela 8].

57 R Boas,Anthropologyand Modern Ük, Nova York,W W Norton and co, 1962, p. 196.

58 Na França, pelo menos, a realidade está, geralmente, muito afastada das definiçõesforneci das pelos textos oficiais. Os programas prevêem, no ensino primário, aobrigatoriedade de uma hora e meia de desenho e trabalhos manuais, garantida nasgrandes cidades por professores com formação especializada e, nas outras cidades,por professores sem qualificação específica. Os programas oficiais não indicam oespaço preciso a ser reservado à história da arte que está incluída no ensino dahistória. O desenho é ensinado à razão de uma hora por semana, durante os primeiroscinco anos do ensino secundário e, em seguida, é facultativo. Em relação aosprogramas em outros países, podemos consultar: I:Enseignement des arts plastiquesdans les écoles primaires et secondaires, publicação do Departamento Internacionalde Educação, n° 164, UNESCO.

59 A transmissão escolar desempenha sempre uma função de legitimação, nem quefosse pela consagração que confere às obras constituídas por ela, ao transmiti-Ias,como dignas de ser admiradas; por conseguinte, contribui para definir a hierarquiados bens culturais válida em determinada sociedade, em determinado momento dotempo (sobre a hierarquia dos bens culturais e os graus de legitimidade, ver P.Bourdieu et aL, Un Art moyen, op. cit., p. 134-138).

60 Sem dúvida, as diferenças seriam mais marcantes se, nos países cujo capitalcultural é mais elevado, os quadros superiores (mais do que os especialistas de arteque se servem do guia ou catálogo como instrumentos de trabalho) não estivesseminclinados a recusar a utilização do guia ou declarar que o utilizavam com receio demanifestar atitudes "escolares" ou, pior ainda, "turísticas". As condutas que, taiscomo estas, pressupõem a consideração, mais inconsciente do que consciente, dorendimento simbólico da prática e, precisamente, das distinções entre tipos oumodalidades diferentes da prática, são, se é que se pode falar assim, reservadas àsclasses privilegiadas dos países dotados de um imenso capital cultural.

61 Verificadas por diferentes observações anteriores (ver, em particular, P.Bourdieue J.-c. Passeron, Les Étudiants et leurs études, Paris, Mouton, 1964 e P.Bourdieu etal., Un Art moyen, op. cit.), estas proposições são confirmadas e bem delimitadaspelos resultados de uma pesquisa, cuja análise se encontra atualmente em curso,sobre as variações sociais do julgamento de gosto.

62 Embora os ritmos declarados sejam, evidentemente, subjetivos e superavaliados,existem condições para proceder ao cálculo dos coeficientes de correlação(fornecidos, aqui, a título indicativo),

63 O exemplo da Polônia mostra perfeitamente que o grau de sucesso de umapolítica de ação cultural não depende somente da eficácia da ação escolar, mastambém da importância do capital cultural transmitido por outras vias.

64 As mesmas observações são válidas para o conhecimento da música, do

cinema e do jazz (cf. P. Bourdieu e J.-c. Passeron, Les Héritiers, Paris, Ed. deMinuit, p. 164-170).

65 Assim, David Riesmann afirma que obras populares idênticas são utilizadas

por públicos diferentes de maneira bastante diferente e com finalidades diferentes(D. Riesmann, "Listening to Popular Music" , in IndivÍdualism Reconsidered,Glencoe, 1954).

66 J. Schumpeter, The Sociology of Imperialism, traduzido do alemão por HeintNorden, Nova York, Meridian Books, 1951, p. 39-40.

67 Os estudos de sociologia eleitoral mostraram que as "influências" pessoais

desempenham um papel bastante importante nas escolhas eleitorais e que elasmediatizam e intermedeiam a influência dos meios modernos de comunicação (cf.Bernard Berelson, Paul F. Lazarsfeld and William Me Phee, Voting, Chicago, 1954;Paul F. Lazarsfeld, Bernard Berelson and Hazel Gaudet, The People's Choice, NovaYork, 1944; Elihu Katz and Paul F. Lazarsfeld, Personal Influence, Glencoe, 1955).O papel dos "styles leaders' é indicado no estudo de Bernard Berelson e Lyle S.

-tODel, "Fashion in Women's Clothes and the American Social System", in SocialForces, vaI. 31, dez. de 1952, p. 124-131. A analogia - sugerida, aqui - entre os"opinion leaders" e os "style leaders' não deve induzir a esperar que estes últimosdesempenhem um papel de incitação semelhante àquele que se atribui comumenteaos primeiros: de fato, sua influência - mais identificada com controle, em vez deincitação _ depende, como toda informação, da receptividade de quem é atingidopor ela e, em razão da homogeneidade social das redes de relações interpessoais,tende a fortalecer as atitudes, confirmando as opiniões individuais.

68 Mais adiante (p. 159), serão apresentadas outras implicações relativas a este modelo.

69 À semelhança do que se passa com o turismo, a exposição não pode fazervisitantes assíduos. Assim, a pesquisa realizada em 1953 e 1954 noGemeentemuseum de Haia tinha mostrado que uma exposição consagrada aoVaticano havia atraído uma multidão de visitantes católicos que, posteriormente,nunca mais voltaram ao museu (G. J. Van Der Hoek, "Bezoekers Bekeken", inMedelelingen Gemeentemuseum van der Haag, vol. 2, n° 2).

70 Chegou-se mesmo a constatar, no Museu de Toronto, o seguinte: durante asexposições, a composição do público permaneceu semelhante à afluência registradano período normal de funcionamento, até mesmo por ocasião de uma exposição

236 o amor pela arfe nofas e rejérências bibliográficas237

Page 90: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

238

que foi "an important part of the program to build a new audience to the MetropolitanTotonto Area" (The Museoiogist, n° 80, set. de 61, p. 11-16).

71 Depoimento relatado pelo Conservador de Bourges, no decorrer da jornada deestudos (21 de maio de 1965) da "Association générale des conservateurs descollections publiques de France".

72 A "Société des Amis du Louvre" foi fundada em 1897; a proposta de seusfundadores consistia em "convocar o público para contribuir em prol doenriquecimento do Louvre". Em 1922, a Sociedade já contava com 3.000 membros;até essa data, havia contribuído com mais de um milhão de francos, além de umgrande número de doações de quadros.

73 Vamos limitar-nos a citar um só exemplo, tomado de empréstimo a um passadoantigo: no dia 15 de janeiro de 1856, Sauvageot (que teria servido de modelo aBalzac para o romance OprÍmo Pons) doou sua coleção ao Museu do Louvre; no dia4 de março, do mesmo ano, ele foi nomeado Conservador com o privilégio deresidir nas dependências do museu.

74 Rapport sur ies dipiômés d'Études supéâeures de l'Écoie du Louvre,mimeografado, 1961.

75 E do mesmo modo, a mais impessoal análise sociológica expõe-se a aparecercomo distribuição parcial de repreensões e de elogios.

76 Ao opor a idéia do museu moderno à coleção, Penguilly-I'Haridon sugere o quedeveria estabelecer a separação entre o conservador de museu e o colecionador: '1\idéia de um museu, tal como o 'Musée d'Artillerie', é uma idéia moderna. Afinalidade perseguida na organização de um estabelecimento desta natureza consisteem fazer sobressair um ensino de uma seqüência de objetos reunidos e agrupadossegundo uma classificação refletida e metódica, além de colocar à disposição dopúblico um meio fácil e sério de instrução. O ensino colocado, assim, ao alcance detodo o mundo encaixa-se nas idéias de nosso tempo. Convém evitar a confusãoentre uma coleção e um museu. A coleção é a reunião de um certo número de peçasinteressantes por um motivo qualquer, agrupadas, quase sempre, sem grande ordeme impressionando a vista, seja por uma especialidade curiosa, seja pelas riquezas daarte e do material utilizado. Em cada uma das séries que o compõem, um museucomo aquele que é objeto de nossa abordagem deve procurar as origens maislongínquas; estabelecer a ordem cronológica nos objetos que formam tais séries,colocando em destaque as peças interessantes pela nitidez de seu caráter e de seuvalor histórico, pela beleza de seu trabalho; e apresentar uma organização do conjuntoque possa impressionar o espírito sem grande esforço, transmitindo-lhe algunsconhecimentos novos, daí em diante, adquiridos em seu proveito." (Penguilly­I'Haridon, "Le Musée d'Artillerie", in Paris GuMe, par ies prÍnâpaux écrÍvaÍns etartistes de ia France, 1e" partie, Paris, 1867, p. 478).

77 Vamos encontrar um estudo sistemático do papel dos conservadores como" taste makers' na obra de Raymonde Moulin, Le Marché de ia peÍnture en France,essai de soâoiogie économique, Paris, Éditions de Minuit, 1967.

78 É significativo que a divisão interior dos museus seja o tema predominante dosCahiers de ia répubJique des iettres, des sâences et des arts (XIII, "Musées", Paris,s. d.). Se a decisão de expor uma parte das obras confinadas na reserva teve umagrande repercussão no público (ela é citada, freqüentemente, nas entrevistas), é

o amor pela ar/e

sem dúvida também porque, aos simples amadores, ela deu o sentimento de que

iam penetrar nos arcanos da arte.

79 Agradecemos ajo Dumazedier por nos ter comunicado a descrição da experiênciae os resultados da pesquisa.

80 Do mesmo modo, menos de 1% dos visitantes da exposição do museu deToronto afirmaram ter visto, previamente, os cartazes afixados na cidade (The

Museoiogist, Rochester, n° 80, setem))[o de 1961, p. 11-16).

81 Cf. "Une enquête par sondage sur l'écoute radiophonique en France", in Etudeset conjoncture, outubro de 1963.

82 A pesquisa de lFOP, já citada, mostra que, em cem compras de livros, três foraminspiradas por programas de televisão e uma por programas de rádio.

83 M. e R. Fichelet, Maisons de ia cuiture et déveioppement économique: Caen,

mimeografado, 1965, capo I, p. 12.

84 S. de Schonen e E. Matalon, Une Enquête par sondage sur ia Iréquentation de iaMaison de ia culture de Bourges, mimeografado (Comité national pour un

aménagement des temps de travail et des temps de loisir), 1965. Um estudoestatístico a partir de 23.715 cotistas da MJC de Grenoble mostra que, em julhode 1968 (três meses depois de sua abertura), o público incluía 38,7% de estudantese aprendizes, 10,8% de professores, 31% de empregados, quadros médios e artesãos,3,8% de representantes das profissões liberais e de quadros superiores, contra9,7% de operários e contramestres, e 0,1 % de agricultores (cf. "Nos adhérents, quisont-ils?", in Rouge et Noir, n° 1, julho de 1968, p. 1).

85 Vamos encontrar um exemplo típico de tal ideologia no livro deJacques Charpentreaue René Kaes, La Cuiture popuiaire em France (Paris, Éditions Ouvrieres, 1962).Assim, a propósito do projeto Billieres, estes autores escrevem: "O projeto Billieres

.. ~forma a escola no eixo central da obra de educação permanente; essa é uma de···suas fraquezas. Por razões psicológicas, é difícil conceber que, por um retorno à

Escola, a França inteira venha a reencontrar uma vida cultural. A cultura vive-se,

experimenta-se, cria-se; ela não 'se aprende nos bancos de uma escola'" (p. 145).

86 Relatório datilografado, fevereiro de 1965.

87 Ainda conviria pressupor que uma parcela dessas moças tenha obedecido à

preocupação de fornecer a "resposta correta" a uma pesquisa que, realizada naescola responsável pelo programa de visitas, foi percebida, por isso mesmo, comoum controle dos resultados de tal operação.

88 Cf. H. Landais, Musées et collections publiques de France, 1965, n° l.

89 Cf. P. Bourdieu et aI, Un Art moyen, primeira parte, capo II, p. 113-134.

90 E. Durkheim, Les Formes éiémentaires de ia vie reiigieuse, Paris P.U.E, 1960, 6"

ed., p. 55-56.

91 Seja um diploma de ensino geral ou de ensino técnico: por exemplo, 1" parte dovestibular, engenheiro de artes e ofícios, mestre em letras (filosofia).

no/as e referências j;bj;oc;ráficas239

Page 91: Bourdieu - o Amor Pela Arte (1)

elo fato de que a categoria mais representada, de'blico de museus seja a dos detentores de um

e estudos secundários; pelo fato também de queão atingiram esse nível manifestem sua confusão

nde número de índices, pode-se concluir que a

ecida pelos museus franceses corresponde _expressão - "ao nível do vestibular".

esar de possuir um grande valor operatório no

rmite justificar a estrutura do público de museus,

almente oferecida pelos museus permanece uma

mitantemente, o nível dessa informação. Além de

useus oferece necessariamente uma informação

particular é definido, grosseiramente, pelo tipo,idade das obras apresentadas -, esse nível em si

ser definido pontualmente porque, salvo raraseúdo de um museu ou, até mesmo, de uma

é perfeitamente homogêneo: a maior parte dos

'rios tipos de obras, desde objetos de folclore,

ricas, mobiliário ou cerâmica, até pintura e

o, no âmbito de determinado tipo, justapõe obrasveis - por exemplo, impressionistas e abstratas _

cultos" de nossas sociedades. A esse aspecto,

r que a mesma obra pode ser decifrada a partir de

, à semelhança dos filmes de faroeste que podemaceitação ingênua ou de uma leitura erudita, a

pode ser recebida diferentemente por receptores

e, por exemplo, satisfazer o interesse em relação

lhe ou chamar a atenção exclusivamente por suas

is. Vê-se assim, com toda a evidência, que o nível

pode ser definido pontualmente: em primeiro

empre em devir e porque cada percepção nova da

ando as percepções ulteriores; assim, a percepçãoa de reduzir a "originalidade" da obra (no sentido

ção) , ao assimilar uma parcela cada vez maior da

o amorpela arle

informação que ela contém. Em seguida, porqu!

independentemente das aspirações que lhe fo

significação; neste caso, a boa vontade culturalinstrutiva a contemplação de obras superior

Por falta de condições para criar a situ':

permitiria comparar a estrutura do públiq

informações de níveis diferentes, embora estril

pode-se tentar verificar, através da análise di!

de museus que oferecem informações de

variações do nível da informação oferecida SiI

variações na estrutura do público, distribuída ,I

escolar, e se o grau de homogeneidade do li

aspecto, corresponde ao grau de homogeneidal'

Considerando que os níveis de informaç

ser definidos pontualmente e que não s!I

linearmente, os museus sem ignorar as se!

do fato de que cada um deles oferece um

diferentes, pode-se, em um primeiro ri

emissores - ou seja, os museus - e os

yisitantes - em dois níveis e admitir!

mensagem será tanto maior quanto ma'

dos receptores, ou dito por outras

adequadamente for efetuada a recepção ri

de emissão e de recepção forem idêntico

hierarquia, assim estabelecida, é con

(aproximadamente) quando se adota

instrução -, vemos que cada populaçãc!

curva de "demanda" (D) que represe

população, segundo o nível de instrudistribuição dos indivíduos que a comp

recepção; do mesmo modo, cada obr

caracterizadapor um certo nível de info

graficamentepor uma vertical (O), cuja

Jéis ela chfusão cuRural