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Bourdieu pierre as_regras_da_arte_gnese_e_estrutura_do_campo_literrio

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  • 1. PIERRE BOURDIEUAS REGRAS DA ARTEGenese e estrutura do campo literdrioTradw;ao: . MARIA LUCIA MACHADOb,

2. CJest en lisant quon devient liseron. Raymond QueneauIIlf, 3. SUMARIOintrodu9 iio ..................................................................... 11Pr6logo: Flaubert ana/ista de Flaubert - Uma leitura de A edu- ca9 iio sentimental........................................................ 17Posi90es , coloca90es, deslocamentos ................................... 18A questiio da heran9a ...................................................... 24Os acidentes necessarios ................................................... 36o poder da escrita ..........................................................40A f6rmula de Flaubert.. .................................................. 44Apendice 1: Resumo de A educariio sentimental................... 51Apendice 2: Quatro leitoras de A educariio sentimental.......... 53Apendice 3: A Paris de A educariio sentimental...................56Primeira ParteTRES ESTADOS DO CAMPO1. A conquista da autonomia. A lase crftica da emergencia do campo ......................................................................63 Uma subordina9iio estrutural.............................................64 A boemia e a inven9iio de uma arte de viver ........................ 70 A ruptura com 0 "burgues" ........ ...... ...................... ......... 74 Baudelaire nom6teta ....................................... 77 As primeiras chamadas It ordem ........................................86 Uma posi9iio a ser construida............................ ................ 89 A dupla ruptura .............................................................95 Um mundo economico as avessas ...................................... 100 Posi90es e disposi90es ...................................................... 105 o ponto de vista de Flaubert.. ...........................................107tt , 4. Flaubert e 0 "realismo" ................................................... 111 "Escrever bern0 mediocre" .............................................. 114 Retorno a A educariio sentimental ..... ................................120 Formalizar ... .... .. . ... ... .... .... .. .... .... .. . .. . . .. .... .. . . .. .... .. .. .. .. .... 123 A inven9ao da estetica "pura" ..........................................125 As condkoes eticas da revolu9ao estetica .............................1292. A emergiincia de uma estrutura dualista ..............................133 As particularidades dos generos ......................................... 133 Diferencia9ao dos generos e unifica9ao do campo .,. ..... ... ......137 A arte e 0 dinheiro ......................................................... 141 A dialetica da distin9ao .................................................... 146 Revolu90es especificas e mudan9as externas .........................148 A inven9ao do intelectual ................................................. 150 As trocas entre os pintores e os escritores............................ 152 Pela forma....................................................................1593. 0 mercado dos bens simb6licos ......................................... 162 Duas logicas economicas ..................................................163 Dois modos de envelhecimento .......................................... 168 Marcar epoca................................................................. 179 A logica da mudan9a ....................................................... 184 Homologias e efeito da harmonia preestabelecida ..................186 A produ9ao da cren9a......................................................192 Segunda Parte FUNDAMENTOS DE UMA CIENCIA DAS OBRAS1 . Questiio de metodo ........................................................203Urn novo espirito cientifico ............................................... 204Doxa liteniria e resistencia 11 objetiva9ao .............................210o "projeto original", mito fundador .................................. 213o ponto de vista de Tersites e a falsa ruptura ......................218o espa90 dos pontos de vista............................................ 220A supera9ao das alternativas ............................................. 234Objetivar 0 sujeito da objetiva9ao ......................................235Apiindice: 0 intelectual total e a i1usiio da onipotiincia dopensamento ................................................................2382. 0 ponto de vista do autor. Algumas propriedades gerais dos cam-pos de produriio cultural..............................................243Ocampo literario no campo do poder ................................244 , 5. o nomos e a questao dos limites ........................................252A ii,usio e a obra de arte como fetiche ............................... 258Posieao, disposieao e tomada de posieao ............................. 261o c naco dos possiveis..................................................... 265Estl tura e mudanea: lutas internas e revolueao permanente ... 270Reflexividade e "ingenuidade" ..........................................273A oferta e a procura .......................................................281Lutas internas e saneoes externas .................... ...................285o encontro de duas hist6rias............................................. 289A trajet6ria construida.....................................................292o habitus e os possiveis ...................................................294A diaJetica das posieoes e das disposi,oes............................299Forma,ao e dissolu,ao dos grupos .....................................301Uma transcendencia por institui,ao .................................... 304"0 desmonte impio da fic,ao" .........................................308Apendice: Efeito de campo e formas de conservantismo .........312 Terceira Parte COMPREENDER 0 COMPREENDER I . A genese hist6rica da estetica pura ..................................... 319 A analise da essencia e a ilusao do absoluto ......................... 320 A anamnese hist6rica e 0 retorno do recalcado..................... 324 As categorias hist6ricas da percep,ao artistica ...................... 330 As condi,oes da leitura pura.............................................336 Miseria do anti-historismo ................................................341 A dupla historiciza,ao ..................................................... 344 2 . A genese social do olho ...................................................348 o olho do quattrocento .................... :............................... 350 o fundamento da ilusao carismMica................................... 354 3. Uma teoria em ato da leitura ............................................ 357 Um romance reflexionante ................................................359 Tempo da leitura e leitura do tempo ...................................361Da Capo. A i1ustio e a illusio ............................................ 365Post-scriptum. Por um corporativismo do universal...............369Notas ........................................................................... 379indice onomastico ........................................................... 421indice de conceitos.......................................................... 429he , 6. INTRODU9AOAnjo. Fica bem em Arnor e em Iiteratura.Gustave FlaubertTudo niio se encontra no Sottisier. Hd esperan9Q.Raymond Queneau"Deixaremos que as ciencjas socials reduzam a experiencia liteniria,a mais alta que 0 homem possa fazer, com a do amor, a pesquisas de opi-niilo sobre nossos lazeres, quando se trata do sentido de nossa vida?"!Semelhante frase, retirada de uma dessas inumeras defesas sem idade esem autor em favor da leitura, e da cultura, com certeza teria desenca-deado a furiosa alegria que inspiravam em Flaubert os lugares-comunsconservadores. E que dizer dos tapas gastos do culto escolar do Livroou das revela,5es heideggero-holderlinianas dignas de enriquecer 0 "flo-rilegio bouvardo-pecuchetiano" (a f6rmula e de Quebeau ... ): "Ler e emprimeiro lugar afastar-se de si mesmo e de seu mundo>;2 "nilo e maispassivel estar no mundo sem a ajuda dos livros";3 lena literatura, a es-sencia revela-se de uma s6 vez, e dada com sua verdade, na sua verdade,como a pr6pria verdade do ser que se desvenda"?4Se me pareceu necessario evocar, de saida, alguns desses enfadonhost6picos sobre a arte e a vida, 0 unico e 0 comum, a literatura e a ciencia,as ciencias (sociais) que bem podem elaborar leis, mas perdendo a "sin-gularidade da experiencia", e a literatura que nilo elabora leis, mas que"trata sempre do homem singular, em sua singularidade absoluta", 5 eque, indefinidamente reproduzidos par e para a liturgia escolar, eles es- ,tilo tamhem inscritos em todos os espiritos moldados pela Escola: fun-cionando como filtros ou anteparos, amea,am sempre bloquear ou con-fundir a compreensilo da analise cientifica dos livros e da leitura. 11- t , 7. A reivindica,ao da autonomia da literatura, que encontrou sua ex-pressao exemplar no Contre Sainte-Beuve [Contra Sainte-Beuve] de Proust,implica que a leitura dos textos litenlrios seja exclusivamente litenlria?Ii verdade que a analise cientifica esteja condenada a destruir 0 que cons-titui a especificidade da obra literaria e da leitura, a come,ar pelo prazerestatico? E que 0 soci610go esteja destinado ao relativismo, ao nivelamentodos valores, ao rebaixamento das grandezas, it aboli9ao das diferen,asque constituem a singularidade do "criador", sempre situado do lado doUnico? Isso porque ele teria parte com os grandes mimeros, a media, 0mediano e, por conseguinte, com 0 mediocre, 0 menor, os minores, a mas-sa dos pequenos autores obscuros, justamente ignorados, e com 0 querepugna acima de tudo aDS "criadores" deste tempo, 0 conteudo e 0 con-texto, 0 "referente" e 0 fora do texto, 0 exterior a Iiteratura? Para muitos escritores e leitores oficiais da literatura, sem falar dosfil6sofos, de maior ou menor envergadura, que, de Bergson a Heideggere mais adiante, entendem atribuir it ciencia limites a priori, a causa esta ~decidida. E sao incontaveis aqueles ,ue proibem it sociologia todo conta~!to profanador com a obra de arte. E preciso citar Gadamer, que coloc,,!no ponto de partida de sua "arte de compreender" um postulado de inicompreensibilidade ou, pelo menos, de inexplicabilidade: "0 fato de "obra de arte representar urn desafio lan,ado it nossa compreensao, por-que escapa indefinidamente a toda explicariio e opoe uma resistencia sem~pre insuperdvel a quem pretender traduzi-Ia na identidade da conceito,foi para mim precisamente 0 ponto de partida de minha teoria hermeneu-tica?".6 Nao discutirei esse postulado (alias, ele permite discussao?). Per-guntarei apenas por que tantos criticos, tantos escritores, tantos fil6sofospoem tanto empenho em professar que a experiencia da obra de arte einefavel, que escapa por defini,ao ao conhecimento racional; por que seapressam assim em afirmar sem luta a derrota do saber; de onde Ihes vemessa necessidade tao pod eros a de rebaixar 0 conhecimento racional, essefuror de afirmar a irredutibilidade da obra de arte ou, numa palavra maisapropriada, sua transcendencia. Por que se faz tanta questao de conferir it obra de arte - e ao co-nhecimento que ela reclama - essa condiriio de exceriio, senao para atingirpor urn descredito previo as tentativas (necessariamente laboriosas e im- .perfeitas) daqueles que pretendem submeter esses produtos da a,ao hu-mana ao tratamento ordinaria da ciencia ordinaria, e para afirmar a trans- Jcendencia (espiritual) daqueles que sabem reconhecer-lhe a transcendencia?Por que essa obstina,ao contra aqueles que tentam fazer avan,ar 0 co-nhecimento da obra de arte e da experiencia estetica, senao porque a am-12 , 8. bicao mesma de produzir uma analise cientifica desse individuum ineffa-bile e do individuum ineffabile que 0 produziu constitui uma amea,a mor-tal para a pretensao tao comum (pelo menos entre os amadores de arte),e no entanto tao "distinta", de se pensar como individuo inefavel e ca-paz de viver experiencias inefaveis desse inefavel? Por que, em uma pala-vra, opoe-se tal resistencia aanalise, senao porque ela dirige aos "criado-res", e aqueles que pretendem identificar-se com eles por uma leitura "cria-tiva", a ultima e talvez a pior das ofensas infligidas, segundo Freud, aonarcisismo, depois da daquelas marcadas pelos nomes de Copemico, Dar-win e do pr6prio Freud?E legitimo valer-se da experiencia do inefavel, que e sem duvida con-substancial a experiencia amorosa, para fazer do amor como abandonomaravilhado a obra apreendida em sua singularidade inexprimivel a unicaforma de conhecimento que convem a obra de arte? E para ver na analisecientifica da arte, e do amor pela arte, a forma por excelencia da arro-gancia cientificista que, sob pretexto de explicar, nao hesita em amea,aro "criador" e 0 leitor em sua liberdade e singularidade? A todos essesdefensores do incognoscivel, encarnicados em erguer as muralhas inaces-siveis da liberdade humana contra as usurpacoes da ciencia, oporei estaspalavras muito kantianas de Goethe, que todos os especialistas das cien-cias naturais e das ciencias sociais poderiam fazer suas: "Nossa opinHioe de que convem ao homem supor que M algo de incognoscivel, mas elenao deve colocar limite a sua busca" .7 E creio que Kant exprime bern arepresentacao que os cientistas tern de sua empresa quando afirma quea reconciliacao do conhecer e do ser e uma especie defocus imaginarius,de ponto de fuga imaginario, a partir do qual a cH,ncia deve regular-sesem jamais poder pretender estabelecer-se ai (isso contra a ilusao do sa-ber absoluto e do fim da hist6ria, mais comum entre os fil6sofos que en-tre os cientistas ... ). Quanto a ameaca que a ciencia faria pesar sobre aliberdade e a singularidade da experiencia literaria, basta, para fazer-Ihejusti,a, observar que a capacidade, proporcionada pela ciencia, de expli-car e de compreender essa experiencia, e de conferir-se assim a possibili-dade de uma liberdade real em relacao as suas determina,oes, e oferecidaa todos aqueles que desejarem e puderem apropriar-se dela.Mais legitimo seria talvez 0 temor de que a ciencia, colocando 0 amorpela arte sob seu escalpelo, venha a matar 0 prazer e de que, capaz defazer compreender, seja inapta para fazer sentir. E nao podemos senaoaprovar uma tentativa como a de Michel Chaillou quando, baseando-seno primado do sentir, do experimentar, da aisthesis, propoe uma evoca-cao literaria da vida literaria, estranhamente ausente das hist6rias litera-13=, 9. rrias da literatura: 8 esfor,ando-se por reintroduzir em urn espa,o litera-rio singularmente confinado 0 que se pode chamar, com Schopenhauer,os parerga e paralipomena, os entornos negligenciados do texto, tudo 0que os comentadores ordinarios deixam de lado, e evocando, pela virtu-de magica da nomea,ao, 0 que fez e foi a vida dos autores, os detalhesfamiliares, domestieos, pitorescos, ou mesmo grotescos ou degradantesde sua existencia e de seu cenario mais cotidiano, ele opera uma inversaoda hierarquia ordinaria dos interesses literarios. Arma-se de todos os re-cursos da erudi,ao, nao para contribuir com a celebra,ao sacralizante doscillssieos, com 0 culto dos ancestrais e do "dom dos mortos", mas paraconvidar e preparar 0 leitor a "brindar com os mortos", como dizia Saint-Amant: arranca ao santuario da hist6ria e do academicismo textos e au-tores fetichizados para os recolocar em liberdade.Como 0 soci610go, que deve tambem romper com 0 idealismo da ha-giografia liteniria, nao se sentiria afim com esse "alegre saber" que re-corre as associa,oes livres tornadas possiveis por urn uso liberto e iiberta-dor das referencias historieas para repudiar a pompa profetiea da grandecritiea de autor e 0 ronrom sacerdotal da tradi,ao escolar? Mas, contra-riamente ao que a representa,ao comum da sociologia poderia fazer crer,eie nao pode satisfazer -se completamente com essa evoca,ao liter aria davida literaria. Se a aten,ao ao sensivel convem perfeitamente quando seaplica ao texto, leva a deixar escapar 0 essencial quando se refere ao mundosocial no qual ele e produzido. 0 esfor,o para devolver a vida aos auto-res e ao seu meio poderia ser de urn sociologo, e nao faltam amlises daarte e da literatura que se atribuem como fim reconstruir uma "realida-de" social suscetivel de ser apreendida no visivel, no sensivel e no concre-to da existencia cotidiana. Mas, como tentarei mostrar ao longo de todoeste livro, 0 sociologo, proximo nisso do filosofo segundo Platao, opoe-se ao "amigo dos belos espetaculos e das belas vozes" que e tambem 0escritor: a "realidade" que ele busca nao se deixa reduzir aos dados ime-diatos da experiencia sensivel nos quais ela se entrega; eie nao visa daraver, ou a sentir, mas construir sistemas de rela,oes inteligiveis capazesde explicar os dados sensiveis.Signifiea dizer que se e novamente remetido a velha antinomia dointeligivel e do sensivel? De fato, cabera ao leitor julgar se, como creio(por te-Io eu proprio experimentado), a analise cientifica das condi,oessociais da produ,ao e da recep,ao da obra de arte, longe de a reduzir oude a destruir, intensifica a experiencia literaria: como se vera a propositode Flaubert, ela parece anular, de inicio, a singularidade do "criador"em proveito das rela,oes que a tornam inteligivel, apenas para melhor 14 , 10. redeseobri-Ia ao termo do trabalho de reconstrulao do espalO no qualo autor encontra-se englobado e "incluido como urn ponto". Conhecercomo tal esse ponto do espalO litenirio, que e tambem urn ponto a partirdo qual se forma urn ponto de vista singular sobre esse espalO, e estarem condilao de compreender e de sentir, pela identificalao mental comuma posilao construida, a singularidade dessa posilao e daquele que aoeupa, e 0 esforlo extraordimirio que, pelo menos no caso particular deFiaubert, foi necessario para a fazerexistir.o arnor pela arte, como 0 arnor, mesma e sobretudo 0 mais 10lleo,sente-se baseado em seu objeto. E para se conveneer de ter razao (ou ra-zoes) para amar que reeOrre com tanta freqiH:ncia ao comentario, essaespecie de discurso apologetico que 0 crente dirige a si proprio e que, setern pelo menos 0 efeito de redobrar sua crenla, po de tambem despertare chamar os outros a crenla. E pDf isso que a analise cientifica, quandoe capaz de trazer a luz 0 que toma a obra de arte necessaria, ou seja, af6rmula formadora, 0 principio gerador, a razao de ser, fomece a expe-riencia artistica, e ao prazer que a acompanha, sua melhor justificalao,seu mais rico alimento. Atraves dela, 0 amor sensivel pela obra poderealizar-se em uma especie de amor intellectualis rei, assimilalao do obje-to ao sujeito e imersao do sujeito no objeto, submissao ativa a necessida-de singular do objeto literarlo (que, em mais de urn caso, e ele proprioo produto de semelhante submissao).Mas nao e pagar muito caro essa intensificalao da experiencia terde afrontar a redulao a necessidade hist6rica do que se quer viver comouma experiencia absoluta, estranha as contingencias de uma genese? Narealidade, compreender a genese social do campo literario, da crenla queo sustenta, do jogo de linguagem que ai se joga, dos interesses e das apos-tas materiais ou simb6licas que ai Se engendram nao e oferecer sacrifi-cios ao prazer de reduzir ou de destruir (ainda que, como 0 sugere Witt-genstein nas Lir6es sobre a etica, 0 esforlo para compreender deva semdiivida alguma coisa ao "prazer de destruir as preconceitos" e a "sedu-98.0 irresistivel" que exercem as "explicac;6es do tipo ista nao e maisque aquilo ", sobretudo a titulo de antidoto contra as complacenciasfarisaicas do culto da arte). E simplesmente olhar as coisas de frente eve-Ias como sao.Procurar na 16gica do campo literario ou do campo artistico, mun-dos paradoxais capazes de inspirar au de impor as "interesses" mais de-sinteressados, 0 principio da existencia da obra de arte naquilo que elatern de hist6rico, mas tambem de trans-hist6rico, e tratar essa obra como urn signo intencional habitado e regulado por alguma outra coisa, da qual15*, 11. ela e tambem sintoma. E supor que af se enuncie urn impulso expressivoque a formaliza9ao imposta pela necessidade social do campo tende a tor-nar irreconhecfvel. A renuncia ao angelismo do interesse puro pela formapura e 0 pre90 que e preciso pagar para compreender a l6gica desses uni-versos sociais que, atraves da alquimia social de suas leis hist6ricas de fun-cionamento, chegam a extrair da defronta9iio muitas vezes implacavel daspaixoes e dos interesses particulares a essencia sublimada do universal;e oferecer uma visao mais verdadeira e, em definitivo, mais tranqiiiliza-dora, porque menos, sobre-humana, das conquistas mais altas da a9iiohumana.16 12. Pr6logo FLAUBEKT ANALISTA DE FLAUBEKT Uma leitura de~ educafiio sentimental"Niio se escreve 0 que se quer. Gustave Flaubert A educar:iio sentimental, essa obra mil vezes comentada, e sem duvi-da jamais lida realmente, fornece todos os instrumentos necessarios a suap~6pria analise socioI6gica: ocqrre que a estrutura da obra, que uma lei-tura estritamente interna traz it luz, ou seja, a estrutura do espaCo socialno qual transcorrem as aventuras de Frederic,e tambem a estrutura doespaco social no qual seu pr6prio autor estava situado. Pensar-se-a talvez que e 0 soci610go que, projetando suas pr6prias interrogacoes, faz de Flaubert um soci610go, e capaz, alem do mais, deoferecer uma sociologia de Flaubert. E a prova mesma que ele pretendedar, construindo um modelo da estrutura imanente a obra que permitereengendrar, e portanto compreender em seu principio, toda a hist6riade Frederic e de seus amigos, corre 0 risco de aparecer como 0 cumuloda falta de medida cientificista. Mas 0 mais estranho e que essa estruturaque, apenas enunciada, impoe-se como evidente escapou aos interpretesmais atentos. 2 0 que obriga a levantar em termos menos comuns do quehabitualmente 0 problema do "realismo" e do "referente" do discursoliterario. 0 que e, com efeito, esse discurso que fala do mundo (socialou psicol6gico) como se niio falasse dele; que nlio pode falar desse mun-do senlio com a condiclio de que fale dele apenas como se nlio falasse,ou seja, em uma forma que opera, para 0 autor e 0 leitor, uma denega-r:iio (no sentido freudiano de Verneinung) do que exprime? E nlio e preci-so perguntar-se se 0 trabalho sobre a forma nlio e 0 que torna possivela anamnese parcial de estruturas profundas, e recalcadas, se, em uma pa-17 , 13. -lavra, 0 escritor mais preocupado com pesquisa formal - como Flaubert (e tantos outros depois dele - nao e levado a agir como medium das es-truturas (sociais ou psicol6gicas) que chegam a objetiva,iio, atraves delee de seu trabalho sobre palavras indutoras, "corpos condutores" mas tam-bem anteparos mais ou menos opacos? Mas, alem de obrigar a suscitar e a examinar essas questiles, se assimse pode dizer, em situa,ao, a analise da obra deveria permitir tirar partido!de propriedades do discurso litenirio, tais como a capacidade de desvelarvelando ou de produzir um "efeito de real" desrealizando, para introdu-zir suavemente, com Flaubert socioanalista de Flaubert, uma socioamili-se de Flaubert, e da literatura.poslr;:6ES, COLOCAr;:6ES, DESLOCAMENTOSEsse "rapaz de dezoito anas, de cabelos longos", "recem-formadobachareI", que "sua mae, com a soma indispensavel, enviara ao Havrepara ver urn tio, do quaI esperava, para ele, a heran~a", esse adolescenteburgues que pensa "no plano de um drama, em temas de quadros, empaixoes futuras", chegou a esse ponto da carreira do qual pode abarcarcom um olhar 0 conjunto dos poderes e dos possiveis que Ihe estao aber-tos e das avenidas que levam a eles. Frederic Moreau e, no duplo sentido,um ser indeterminado ou, melhor, determinado a indetermina,ao, obje-tiva e subjetiva. Instalado na liberdade que Ihe e assegurada pela condi-,ao dos que vivem de rendas, e comandado, ate nos sentimentos de quee aparentemente 0 sujeito, pelas oscila,oes de seus investimentos finan-ceiros, que definem as orienta,aes sucessivas de suas escolhas. J A indiferen,a, que ele revela, as vezes, pelos objetos comuns da am-bi,ao burguesa, 4 e urn efeito secundario de seu amor sonhado pela sra.Arnoux, uma serie de suporte imagimirio de sua indetermina,ao. "Quetenho eu a fazer no mundo? Os outros batalham pela riqueza, a celebri-dade, 0 poder! Eu nao tenho profissao, sois minha ocupa,iio exclusiva,toda a minha fortuna, 0 fim, 0 centro de minha exisH,ncia, de meus pen-s~mentos. ,,5 Quanto aos interesses artisticos que exprime de tempos emtempos, nao tem constiincia e consistencia suficientes para oferecer umponto de apoio a uma ambi,iio mais alta, capaz de contrariar positiva-mente as ambi,oes comuns: ele que, quando de sua primeira apari,iio,"pensava no plano de urn drama e em temas de quadros" e, em outrasvezes,~ "sonhava com sinfonias", "queria pintar" e compunha versos, co-me,a um dia a "escrever um romance intitulado Savio,0 litho do pes-18 14. cador", no quaI se poe em cena, com a sra. Arnoux; depois "aluga urnpiano e compoe valsas alemas", converte-se em seguida a pintura, queo aproxima da sra. Arnoux, para voltar enfim it ambi