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Leonardo Boiko Breve história do chá no Japão São Paulo 2011

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Leonardo Boiko

Breve história do chá no Japão

São Paulo

2011

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Leonardo Boiko

Breve história do chá no Japão

Trabalho de Cultura Japonesa II

Professor: Koichi Mori 森 幸一

Universidade de São Paulo

São Paulo

2011

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Sumário

1 Introdução p. 3

1.1 As origens do chá e o chá na China . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 4

2 O chá no Japão p. 9

3 A cerimônia do chá p. 12

3.1 Raízes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 12

3.1.1 Xintoísmo e confucianismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 13

3.1.2 mono-awase e tōcha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 13

3.1.3 basara e karamono . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 14

3.1.4 dōbōshū e shōin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 15

3.1.5 renga, wabi, sōan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 16

3.2 O chanoyu de Sen no Rikyū . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 17

3.2.1 Precursores: Shukō e Jōō . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 17

3.2.2 O wabi-cha de Rikyū . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 18

3.2.3 Fatores políticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 20

3.2.4 Sucessores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 21

Referências Bibliográficas p. 23

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1 Introdução

Em português moderno, a palavra “chá” denota qualquer bebida preparada a par-tir da infusão em água quente; fala-se em “chá de hortelã”, “chá de erva-mate”, “cháde maçã” etc. Mas originalmente a palavra referia-se a uma planta específica, a plantado chá (Camellia sinensis), um arbusto ou pequena árvore da família das camélias decujas folhas se produz o chá preto da Inglaterra, o chá verde do Japão, o chá oolong(烏龍 wūlóng) da China e várias outras bebidas1. A planta possui cafeína, estimulantesuave também presente no café, guaraná e chimarrão, dentre outras. Muitas socieda-des desenvolveram estruturas sociais específicas para o consumo em grupo de bebidasderivadas de plantas cafeinadas: o chá das cinco inglês, a roda de chimarrão gaúcha, oscafés de Paris, os ritos amazônicos do guaraná… Mas provavelmente nenhuma dessasestruturas é tão sofisticada e codificada em detalhes quanto a cerimônia japonesa dochá.

Embora a expressão “cerimônia do chá” seja consagrada em língua portuguesa, elaé uma tradução bastante adaptada; o nome em japonês, cha-no-yu茶の湯, significa sim-plesmente “água quente para o chá”2. A cerimônia talvez possa ser descrita como umacombinação de encontro social, apreciação artística, e treinamento mental ou shūgyō; éimportante ressaltar que a cerimônia não possui nenhum “segredo” oculto ou esotérico,mas é um mundo completo em si mesmo. Na versão atual, um anfitrião recebe umapequena quantidade de convidados (tipicamente um a cinco) em uma cabana especial-mente construída para a prática do chá, a sala de chá ou chashitsu 茶室, situada em umjardim típico ou roji路地. Uma vez cruzado o portão do roji, os convidados deixam parafora a vida mundana e se dedicam apenas ao chá. O anfitrião prepara carvão cerimo-nialmente para os convidados, alimenta-os com uma refeição elegante e frugal (kaiseki

1Algumas delas: O chá em blocos da Ásia Central, incluindo Tibet e Mongólia, consumido com man-teiga ou leite de cavalo, e que no passado foi usado como moeda; o “chá de caravana” russo, concentradoe defumado, preparado em uma espécie de chaleira típica chamada samovar; e o chá temperado ou masalachai da Índia, acrescido de especiarias como cravo, anis ou cardomomo, atualmente em voga nos cafésdos EUA e Europa (Mair e Hoh(1))

2No período moderno, também se usa a expressão “caminho do chá”, chadō ou sadō茶道.

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懐石, de origem zen-budista), e depois prepara e serve o chá. Todos os movimentosde anfitrião e convidados são prescritos e treinados; os utensílios são cuidadosamenteescolhidos para a ocasião, bem como a decoração artística de caligrafia, pintura, flo-res. Existem algumas dezenas de estilos de chá ainda hoje; no estilo Urasenke, o maisdifundido, os praticantes aprendem mais de 130 variedades de cerimônia3. TanikawaTetsuzō descreveu o chanoyu como uma arte performática, como teatro ou dança4.

Este trabalho busca traçar uma breve história da introdução da planta do chá noJapão, do desenvolvimento da cerimônia do chá e de seu impacto cultural. Para tanto,primeiro discutiremos sua origem na China e Ásia, um contexto indispensável paracompreender as estruturas sociais que o chá erigiu em território japonês.

1.1 As origens do chá e o chá na China

A palavra “chá”, do português, possui um cognato em japonês, cha—pronunciadocom a inicial africada (caso também do português antigo). Ambas as palavras vieramda mesma fonte, o chinês médio chá. A etnolingüística da palavra é bastante interes-sante, refletindo sua história comercial e social. O grande centro de difusão do chá foi aChina, e nas regiões que viriam a desenvolver as línguas mandarim e cantonês (dentreoutras) o nome da planta era chá. Esta palavra se espalhou pelas rotas de comércio quepartiam dessas regiões: por terra, do norte ao sudoeste da China para Tibet e Mongó-lia, e em via marítima, pelos navegadores portugueses. Já na língua sinítica min dosul, a palavra contemporânea era te, e ela foi levada pelos holandeses e ingleses quese estabeleceram nos portos que falavam min, como o de Xiamen. Desta segunda rotamarinha surgiram termos como o inglês tea (originalmente pronunciado [tej], hoje [tiː])e o espanhol té. A grande maioria das línguas do mundo hoje denota o chá com umapalavra que descende de uma dessas duas fontes siníticas, ou chá ou te5.

Segundo Mair e Hoh(1), as duas fontes remontam a um ancestral comum do chinêsantigo, *dra, que por sua vez derivou de *la, cuja origem última os autores teorizamser uma raiz austro-asiática (mon-khmer) para “folha”. Isso é sustentado pelo fato deque os povos austro-asiáticos são os habitantes originais da região nativa da planta dochá, i.e. os sopés dos Himalaias (área que inclui parte do que hoje é a Índia, Burma,Tailândia, Indochina e sudoeste da China). Esses povos são provavelmente os primei-

3Sen e Sen(2).4Sen e Sen(2), p.70.5Mair e Hoh(1), p.262.

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ros a consumir o chá, introduzindo posteriormente os métodos de preparo aos povossiníticos do norte6. Os primeiros seres humanos chegaram na região há cerca de 55 milanos, e na ausência de evidência histórica, devemos supor que eles começaram a consu-mir o chá em algum momento deste período, provavelmente iniciando pela mascagemdas folhas. Ele ainda hoje possui importância cerimonial e social para povos da região,como os hani, yi, bai, wa, de’ang e outros, que mantém métodos arcaicos de preparoenvolvendo fermentação, oferendas etc. Uma carta geográfica chinesa do século IV a.C.descreve tributos de chá pagos pela etnia ba, que habitava o que hoje é a província deSichuan. No século I aparece a primeira menção ao preparo do chá fervido7.

Como é usual na pesquisa de documentos históricos da área de influência chinesa,a evidência lingüística é complicada pela natureza foneticamente complexa da escrita.Nos períodos clássicos existiam pelo menos oito caracteres que se referiam ao chá, maso mais importante viria a ser荼. Acredita-se que este caractere (antigamente como hoje)se referia a qualquer planta amarga, e era pronunciado tu. O chá foi inicialmente en-quadrado nesta categoria genérica provavelmente porque foi no começo rejeitado como“barbárico” pelas culturas de origem mongol que controlavam o norte, que preferiamseu tradicional leite de cavalo fermentado. Foi só na dinastia Táng (609–907 d.C.) queo chá se propagou por todo o império chinês, auxiliado pela difusão do budismo, cu-jos monges adotaram entusiasticamente a bebida por sua propriedade de espantar osono e ajudar na meditação8. No mesmo período surgiu um novo caractere exclusivopara a planta do chá, 茶, criado pela remoção de um traço do tu 荼, em uma espéciede “estratégia de publicidade” dos defensores do chá para dissociá-lo das conotaçõesnegativas sulinas. É possível que o criador do novo caractere tenha sido Lu Yu, au-tor de um tratado que seria posteriormente chamado O Clássico do Chá (chájīng茶 經)(ca. 760), considerado o primeiro documento que descreve em detalhes uma cultura dechá9. O texto descreve origem e variedades da planta, métodos de preparo, utensílios,e defende suas propriedades benéficas.

O chá da dinastia Táng era prensado em blocos, posteriormente raspados para fer-ver com água e sal (e às vezes especiarias). Este tipo de chá ficou conhecido mais tarde

6Mair e Hoh(1), p. 23,266. Os autores notam que existe outra palavra para chá em chinês, ming 茗(chinês antigo *miweng), também com origem provável no mon-khmer, de meng; em ambas as culturasesta palavra denota chá ritualmente especial ou de qualidade superior.

7Mair e Hoh(1), p.27–28.8Uma das lendas de criação do chá atribui a origem da planta às pálpebras de Bodhidarma, fundador

semi-mitológico do zen-budismo, que as teria arrancado em frustração por ter adormecido ao meditar.A mesma lenda deu origem aos bonecos daruma do Japão, de olhos esbugalhados.

9Mair e Hoh(1), p.capítulos 1–4.

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(entre outros nomes) como jǐnyā chá紧压茶 (jap. kin’atsu cha; também dancha 団茶). Nadinastia Sòng (960–1279) surgiu um novo método: O chá era moído em um pó fino,peneirado, e inserido diretamente na tigela de cerâmica10 onde se bebe; a água, aque-cida à parte, era misturada na tigela com um batedor de bambu, resultando em umabebida mais delicada e aerada, com uma espuma rica. Este método é chamado “chámoído”, mǒ chá抹茶 (jap. matcha). Surgiram modas e diversões como a técnica de criardesenhos na espuma11, e concursos de preparação de um chá bom e espumante (dou-cha). Tais eventos populares incentivaram a cultura dos utensílios de chá, notoriamenteas cerâmicas, e sofisticaram a produção, preparo e degustação da bebida. O chá tam-bém era considerado medicinal12, e estava associado à busca taoísta por um remédioalquímico que trouxesse a vida longa13.

Ao mesmo tempo, o chá em sua nova forma moída de Sòng continuou forte entreos budistas. Além de ser consumido em grande quantidade pelos monges (aos quaiso álcool era vedado), era oferecido ritualmente a Buda. O chá foi especialmente asso-ciado ao zen-budismo (ch. chán), seita focada na meditação e com influências taoístas.Em numerosos diálogos zen-budistas um mestre ou instrutor levanta sua tigela de chácomo forma de lembrar os discípulos do aqui-agora14. Para disciplinar a mente, osmonges zen levavam uma vida estritamente controlada, com regras de “etiqueta” oucomportamento (jap. shingi 清規) que presidiam minuciosamente todo ato do devoto,desde quando acordavam até a hora de dormir, incluindo até faxina e toalete; natural-mente o preparo e consumo do chá também foram formalizados15. No contexto do cháno zen, é famoso o koan ou anedota meditativa de Zhao Zhou (período Táng):

— Você já esteve aqui antes?— Sim, respondeu o monge.— Então tome uma xícara de chá, disse o mestre.

10Ao contrário do chá de infusão, desenvolvido posteriormente, o chá até esta época não era bebidoem copos ou xícaras; ele era servido em pequenas tigelas de cerâmica, chamadas simplesmente “tigelaspara chá” ou cháwǎn茶碗. No Japão atual essas tigelas só são usadas para tomar chá por aficcionadosdestes métodos mais antigos (inclusive praticantes da cerimônia do chá); mas elas se difundiram comorecipiente para consumo de comida em geral, e são parte básica da louça individual japonesa, chamadaschawan mesmo que não sejam usadas para chá.

11Antecipando por um milênio uma moda das cafeterias atuais: hoje, baristas treinados criam dese-nhos na espuma de cafés expresso ou latte.

12Já no século III, o Tong Jun Cai Yao Lu ou “Registros do Príncipe Tong sobre a Coleta de Remédios”descrevia suas propriedades para a saúde.

13Plutschow(4), p.36.14Mair e Hoh(1), p.46–47.15As regras de preparo do chá na vida monástica zen foram chamadas no Japão sarei 茶 礼, e como

veremos adiante, foram antecessoras da cerimônia do chá

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— Você já esteve aqui antes?— Não, disse o monge.— Então tome uma xícara de chá.Neste momento o abade perguntou ao mestre:— Por que você disse ao monge para ir tomar chá quando ele respondeuque sim, e também quando respondeu que não?— Tome uma xícara de chá, disse o mestre.

A cultura do chá na China continuaria a se desenvolver, espalhando-se para omundo em diversos períodos e enraizando-se nos mais diferentes contextos: o elegantechá preto do Império Britânico, a mercadoria de troca dos nômades centro-asiáticos, ochá com manteiga que aquece os pastores das montanhas tibetanas, o “chá de caravana”da Rússia e assim por diante. Mas estes dois momentos particulares do chá chinês—oprimeiro florescimento de Táng e a popularização do chá moído em Sòng—foram fun-damentais para a cultura japonesa do chá, estando associados tradicionalmente a mon-ges japoneses viajantes que teriam trazido os costumes continentais: no primeiro casoKūkai, Saichō e Eichū, no segundo Eisai. A etiqueta dos monges, a filosofia budista, ateoria medicional, os concursos populares, os diversos utensílios e sua apreciação, to-dos foram importações culturais tão importantes quanto a própria planta para a criaçãoda cerimônia do chá.

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Figura 1.1: Folha, flor, fruto e semente da planta do chá. Em geral a bebida é preparadaa partir das folhas, processadas por numerosos métodos distintos e que resultam emprodutos de sabor diferente(1, p. 23). Note o denso agregado de estames amarelos,comum a todo o gênero das camélias. Imagem extraída do Köhler’s Medizinal-Pflanzen,de 1897 (3).

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2 O chá no Japão

Dado o contato cultural do arquipélogo japonês com as sociedades continentais,não é surpresa que as raízes do chá sejam longas. Já no período Nara há registros deuma cerimônia chamada gyōcha 行茶, em 792, presidida pelo Imperador, e que culmi-nava com o consumo de chá pelos monges1. A tigela de chá usada na época era deporcelana verde, então favorita também na China, e ainda existe como tesouro do re-positório Shōsōin, do templo Tōdai na cidade de Nara.

Os monges japoneses Kūkai e Saichō foram à China na comitiva do embaixadorFujiwara-no-Katsumaro, e lá encontraram o monge Eichū, que vivia no país há maisde trinta anos2. Retornando ao Japão, todos os três divulgaram o consumo do cháprensado da dinastia Táng. Eichū em particular é creditado com a primeira tentativade cultivo, no monte Hiei3, e por oferecer a bebida ao Imperador Saga. Eichū afirmavaque uma dieta mais saudável traria boa sorte, conceito típico do sincretismo budista-taoísta chinês4.

Esta primeira introdução do chá obteve inicialmente certo sucesso entre os mongese cortesãos sinófilos, que consideravam a bebida como parte da cultura chinesa, entãotida como sofisticada e elegante; mas ela não se difundiu entre o povo5, e com o fim dasrelações com a China em 894 e uma sociedade crescentemente introspectiva, a culturajaponesa do chá entrou em hiato.

A reintrodução no período Kamakura teve mais sucesso, e o principal responsávelfoi o monge que trouxe o zen-budismo, Eisai (1141–1215). Eisai viveu durante as revol-tas que derrubaram o poder político da classe nobre e instituiram o primeiro governoda classe militar (bushi); acompanhadas de guerras e desastres, essas revoltas trouxe-ram ao povo japonês sentimentos apocalípticos de mappō, o fim da Era da Lei budista,

1Sen e Sen(2), p.84–85.2Plutschow(4), p.35.3Sen e Sen(2), p.85.4Plutschow(4), p.37.5Sadler(5), p.5.

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quando a sociedade seria destruída por desejos basais. O budismo Tendai de Saichōhavia sido importante fator de coesão social, mas era associado ao governo da nobrezae, com sua queda, claramente estava em declínio6. Buscando uma nova forma de cultoque ajudasse a re-unificar a nação, Eisai trouxe da China o zen-budismo, e ao mesmotempo o chá em pó da dinastia Sòng. Seus esforços doutrinários para propagar umderam-se simultaneamente ao outro, reforçando a conexão entre zen e chá que viria aser importante para a cerimônia.

Eisai trouxe sementes de chá e plantou-as no jardim medicinal de diversos templos,incluindo Senkōji e Tendaijin, que existem ainda hoje7. Ele também as presenteou paraMyōe, monge de Kōzanji em Kyōto, que as plantou nas montanhas próximas de Toga-noō e Uji; essa região revelou-se ideal para o cultivo, e o chá proveniente de lá tem adistinção de ser chamado “chá real” honcha本茶, enquanto os demais são “não-chá” hi-cha非茶.

Certa vez o shōgun Minamoto-no-Sanetomo viu-se destituído de poder políticograças às maquinações de Hōjō Masako, sua mãe, que conseguiu estabelecer o irmãoe chefe do clã, Hōjō Yoshitoki, como regente. Deprimido, Sanetomo começou a bebere sua saúde declinou. Eisai então enviou-lhe o pó do matcha, recomendando-o comoremédio para a bebedeira, e um livro que intituou Kissa Yōjō-ki喫茶養生記, “Registro doConsumo de Chá para a Saúde”, que se tornou um clássico e ajudou a divulgar a be-bida8. Defendendo-a como agente de longevidade, Eisai emprega tradições medicinaischinesas ao explicar que cada um dos “cinco órgãos internos” corresponde a um doscinco elementos e a um dos cinco sabores, que devem ser mantidos em equilíbrio. Acomida japonesa, diz Eisai, era rica em doce, pungente, azedo e salgado, mas careciado sabor amargo, do qual o chá seria fonte. Eisai também insistiu na importância dochá como oferenda, e o aniversário de sua morte é comemorado no templo que fundou,Kennin-ji, com um rito de oferecimento de chá9.

Eisai foi pivotal, mas muitos outros monges, famosos ou anônimos, ajudaram naformação da cultura do chá. Eison, monge de caráter universalista, ofereceu chá paraos doentes ao longo da grande estrada Tōkaidō, e em 1239 ofereceu para Hachiman,deidade xintoísta, ao invés do saquê normalmente utilizado para oferendas desse tipo.Dogen, fundador da seita Soto-Zen, foi um pioneiro da adaptação das regras monásti-

6Plutschow(4), p.40.7Mair e Hoh(1), p.85.8Plutschow(4), p.43.9Plutschow(4), p.44.

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cas chinesas no Japão, e seu Eihei Shingi永平清規 incluía regras de etiqueta do chá10.

Com o sucesso do zen-budismo no seio da agora importante casta guerreira, o chápropagou-se por todo o Japão e inclusive entre o povo.

10Plutschow(4), p.48.

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3 A cerimônia do chá

3.1 Raízes

As seções anteriores apresentaram algumas das correntes culturais, da pré-históriaao período Kamakura-Muromachi , que viriam desembocar na cerimônia japonesa dochá; recapitulando, algumas delas são:

• A medicina taoísta, com sua noção do chá como remédio, de interdependêniaentre saúde do corpo com virtude mental, e da necessidade de balanço dos ele-mentos alquímicos;

• A filosofia zen-budista, que enfatizava concentração, meditação e atenção ao mo-mento presente e aos atos comuns do dia-a-dia;

• As regras de etiqueta zen-budistas, shingi, e a etiqueta monástica do chá, sarei,influenciada por cerimônias de oferendas à Buda e outros numina;

• A cultura e a arte chinesas, inclusive o artesanato;

• O gosto chinês pela coleção e apreciação de objetos de arte, inclusive os utilitáriosenvolvidos no preparo do chá;

• Os concursos populares chineses que ofereciam prêmios aos mais experientes nopreparo da bebida.

A cerimônia do chá em sua forma mais celebrada seria desenvolvida por Sen-no-Rikyū no período Azuchi-Momoyama (1568–1600); mas, além das influências mais re-motas listadas acima, a cerimônia também incluiu e sintetizou diversas correntes e es-téticas presentes no período, sobretudo desenvolvimentos recentes desde o Kamakura.Algumas dessas idéias estão listadas a seguir.

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3.1.1 Xintoísmo e confucianismo

A gênese do chá no Japão em meio ao budismo não deve obscurecer a presença dasoutras formas-de-ver que estão sempre presentes na cultura japonesa. A própria noçãode etiqueta e propriedade no comportamento, embora útil como treinamento mentalno budismo, é de caráter fundalmentalmente confucianista, e é o ideal social de Con-fúcio que guiou a estrutura da nova sociedade em castas. A ênfase do confucianismona necessidade de seguir os ritos (uma das Cinco Virtudes, rei 禮) certamente foi bemacolhida no Japão, e ajudou a valorizar a mentalidade de kata ou formalismo que é umpressuposto da cerimônia do chá.

O pensamento religioso nativo japonês, chamado a posteriori e, de forma algo ge-neralizante, “xintoísmo”, não tinha uma noção de pecado ou erro; ele lidava com “pu-reza” e “impureza”, unindo em um mesmo conceito preocupações simples de higienecom conceitos éticos. Essa noção de “pureza” entrou de forma marcante na cerimôniado chá, que inclui uma limpeza simbólica dos objetos feita com um pano de seda, fukusa袱紗; a forma de manusear o pano tem origem em ritos xintoístas. Antes do princípioda cerimônia, os convidados limpam a boca e as mãos com água fria no jardim, práticaclaramente inspirada na purificação pela água ou misogi-harai do xintoísmo1.

3.1.2 mono-awase e tōcha

Uma forma de entretenimento que sempre esteve presente na cultura japonesa fo-ram as “comparações de coisas” ou mono-awase, nas quais objetos de determinado ti-po—incluindo categorias tão diversas quanto poemas, flores, raízes, perfumes, galosde briga, conchas e pinturas—eram em geral praticados com espírito lúdico (asobi nokokoro), embora algumas categorias artísticas (como as competições poéticas) viessema ter bastante importância cultural. Em uma competição de mono-awase típica, partici-pantes especialistas produziam ou julgavam objetos em dois lados ou classes.

Dentro desta tradição, e com a popularização do chá, e com influência das com-petições chinesas de preparação, surgiu uma forma de mono-awase chamada tōcha. Es-tes eventos eram competições nas quais os concorrentes tentavam diferenciar o “cháverdadeiro” de Toganoō (posteriormente, Uji) do “não-chá” de outras regiões. Taiscompetições movimentavam apostas e eram ocasiões de excessos luxuosos2.

1Parent(6).2Varley(7), p.460.

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O tipo de mono-awase que mais influenciou o tōcha foi a competição de incenso ouko-awase, que mais tarde viria a originar a arte-irmã da cerimônia do chá, o caminhodo incenso (kōdō 香道). Os shōguns Ashikaga, Yoshimitsu e Yoshimasa, eram ambosentusiastas do ko-awase, e a maioria dos primeiros mestres de chá eram também deincenso, inclusive Shukō, Jōō, Rikyū e Oribe (apresentados abaixo). Muitos detalhestécnicos da cerimônia do chá têm origem no ko-awase3.

3.1.3 basara e karamono

O tōcha era, como vimos, luxuoso; os grandes senhores feudais (daimyō) apostavamtesouros como seda, ouro, espadas ou brocados raros, mas quando ganhavam algumprêmio ele era prontamente doado para atores ou dançarinas presentes, em demons-tração de riqueza e generosidade4.

Este tipo de gosto pela ostentação dos novos chefes militares ia bem ao contrário dosideais estéticos da antiga corte, e foi severamente criticado pela intelligentsia contempo-rânea. Um termo pejorativo que surgiu nestas críticas foi basara (do sânscrito vajra), e ossenhores feudais de gosto extravagante foram denominados basara daimyō5. No Taiheikihá um relato de uma competição tipicamente basara; o escritor, crítico, descreve cadei-ras forradas com peles de leopardo ou tigre, convidados convidados vestindo damascoe ouro, comida exótica e rara servida em dez rodadas em dez mesas diferentes, e assimpor diante.

Os excessos do basara ajudaram, por negação, a definir a estética do chá, funda-mentada em ideais diametralmente opostos como wabi e sōan. Mas seria ingênuo des-considerar a importância do tōcha para a cerimônia wabi, situado como está no períodode formação desta. Em particular, os basara daimyō eram exoticistas, e grandes entusi-astas dos objetos de arte e artesatos chineses, os karamono. Itens como pinturas, rolosde caligrafia, potes de chá de cerâmica e tigelas de porcelana foram colecionados edisputados assiduamente por daimyō como Sasaki Dōyō6. Yoshimitsu e Yoshimasa,os shōgun Ashikaga já mencionados, foram também grandes colecionadores7. Maistarde, Oda Nobunaga, o primeiro grande shōgun a unificar o país, instituiu uma “caçaaos objetos de chá famosos” ou meibutsu-gari, comprando ou confiscando à força boa

3Sadler(5), p.4.4Sadler(5), p.4.5Varley(7), p.458.6Varley(7), p.460.7Plutschow(4), p.60.

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parte das melhores peças da época8.

Tal veneração das classes altas por objetos raros e importados resultou em umacultura de valorização dos especialistas e connoisseus, capazes de julgar objetos bonsou ruins, verdadeiros e falsos. Esses conselheiros foram uma espécie de protótipo dosmestres de chá, muitas vezes figuras importantes nos jogos políticos da administração.

3.1.4 dōbōshū e shōin

Ashikaga Yoshimitsu foi o primeiro a adotar os artistas e atores de classe baixaem sua companhia no papel de instrutores e administradores em matérias culturais,e seus sucessores mantiveram o costume. Esses artistas formavam um grupo cha-mado dōbōshū (“acompanhantes”). Alguns dōbōshū foram artistas e criadores famosos,como os fundadores do teatro Nō, Nōami, Geiami e Sōami; mas o principal papel dosdōbōshū foi como curadores e críticos de karamono, e como tais, os responsáveis pelodesenvolvimento de um novo ambiente arquitetônico e social que se mostrou ideal paraa criação do chanoyu—além de outras artes de grupo, como poesia renga e apreciaçãode incenso. Essas atividades aconteciam no novo tipo de interior chamado kaisho (“sa-lão de encontros”), que mais tarde se desenvolveu em shoin (“sala de estudos”); o novoestilo era mais íntimo e informal que o antigo shinden da corte, embora ainda fosseelegante e nobre, com uso de madeira laqueada e painés deslizantes decorados compinturas. Nesses ambientes foram introduzidos elementos como o chão inteiramenteforrado por tatami, alcovas (tokonoma), prateleiras assimétricas (chigaidana), e uma mesaembutida para escrita (tsuke-shoin)9. Os dōbōshū codificaram regras detalhadas para aexibição de karamono no shoin, e essas regras influenciaram diretamente os arranjos deobjetos na cerimônia do chá10.

O auge do patrocínio artístico de Yoshimitsu foi durante o retiro que fez no finalda vida à sua propriedade nas “montanhas do norte”, donde se fala em “cultura Ki-tayama”. Lá ele construiu o Pavilhão Dourado (Kinkakuji), basicamente no estilo daantiga arquitetura da corte (shinden), mas com elementos da nova arquitetura budista ecom um andar no estilo kaisho/shoin11. Sob o sexto shōgun, Yoshinori, e com sua ajuda,o dōbōshū Nōami desenvolveu significativamente as cerimônias de então, o chamadochá palacial ou denchū chanoyu殿中, associado ao shoin e à prateleira de madeira laqueda

8Varley(7), p.498.9Varley(7), p.468–.

10Plutschow(4), p.59–.11Varley(7), p.468–.

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daisu12.

O Pavilhão Dourado é inevitavelmente constrastado com o discreto Pavilhão Pra-teado (Ginkakuji) do Ashikaga Yoshimasa e sua “cultura Higashiyama”, símbolos deuma corrente cultural mais frugal e minimalista. O Kinkakuji foi modelo de referênciapara a arquitetura do chá, e a sua sala de chá estabeleceu como medida-padrão quedura até hoje o tamanho de quatro tatamis e meio13.

3.1.5 renga, wabi, sōan

Enquanto os basara daimyō exploravam excessos materiais, certas estéticas japonesasantigas e austeras continuaram se desenvolvendo quietamente, e a partir do Muroma-chi e Momoyama voltam a tomar a cena14. Alguns desses valores incluem a “belezamisteriosa” ou yūgen, a “elegância fluida” ou fūryū, e a noção de impermanência, mujō,que leva à compaixão melancólica por todas as coisas ou mono-no-aware.

O ideal de wabi, “rusticidade”, “austeridade”, foi particularmente importante paraa cerimônia do chá; o estilo de Shukō, Jōō e Rikyū, provavelmente o de maior impacto,é denominado wabi-cha, demonstrando que wabi é seu princípio-guia. Para Hirota(9),esta estética foi articulada pela primeira vez na poesia de verso ligado ou renga, especi-ficamente no pensamento de Shinkei, de onde passou diretamente para os fundadoresdo wabicha15. O renga era composto em grupo, com os poetas alternando cada estrofeou ku, respondendo cada um ao anterior e seguindo regras complexas sobre os temas etécnicas. Esta atividade se dava no mesmo ambiente shoin da prática de chá. Para Shin-kei, um poeta inexperiente se atrairia por flores e imagens vistosas, mas a verdadeirabeleza estava em temas do “gelado” hie e “seco” kare. Tal poesia avançada “é comobeber água quente pura; apesar de não ter nenhum sabor em particular, nós nunca noscansamos dela”. Porém, a verdadeira compreensão do “gelado e seco” só pode vir coma experiência; um poeta jovem que tente imitar externamente os versos “secos” não serácapaz de produzir verdadeira beleza. Todas essas idéias se refletiram na pedagogia dochá16.

Esses ideais não foram exclusivos do renga ou do chá, mas estavam “no ar” no pe-12Varley(7), p.470.13Sadler(5), p.108.14É importante ressaltar que estamos falando aqui da cultura erudita de elite; entre o povo, a estética

dominante sempre privilegiou os valores vitais, a fartura, a fertilidade. Ver Ruch(8).15Hirota(9), p.37–.16Ibid.

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ríodo17. Um desenvolvimento semelhante foi a “literatura dos retirados” ou inja bun-gaku, cujo exemplo mais famoso da época é o Hōjōki (“Registro [da Cabana] de DezPés”), de Kamo no Chōmei, obra pessimista que ressalta a impermanência do mundohumano e a importância do desapego. O autor, em treinamento budista, renuncia aomundo e retira-se para uma cabana simples de sapé, mas acaba se descobrindo de voltaao ponto de partida: ele cria apego à tranqüilidade da sua vida na cabana, e não con-segue renunciar à arte. Seu dilema espiritual foi pouco explorado posteriormente: oideal da “cabana de sapé do monge nas montanhas”, sōan, viria a ser apreciado esteti-camente sem nenhuma culpa. Note-se que o ideal tem raízes muito antigas, como sevê na lenda budista da cabana de meditação de Vimalakīrti18.

3.2 O chanoyu de Sen no Rikyū

3.2.1 Precursores: Shukō e Jōō

Embora ela tenha sido associada mais tarde aos samurai, os fundadores da cerimô-nia do chá estilo wabi foram monges ou mercadores, não guerreiros. Muraka Shukō (ouJukō) (1421?–1502), o primeiro a trabalhar filosoficamente a cerimônia, era um mongezen e discípulo do excêntrico mestre Ikkyū. Há pouca informação sobre sua vida, eo personagem pode ser parcialmente apócrifo19. Shukō buscou criar uma cerimôniaque, acima de tudo, refletisse o treinamento budista20. Entre as inovações que trouxeao chá do shoin, ele diminuiu o tamanho da sala e defendeu o uso de objetos japoneses,wamono, então considerados simples e rústicos, e não apenas os preciosos karamono daChina. Shukō não advogava o abandono dos objetos chineses, mas sim sua juxtaposi-ção com um ambiente simples: “Como é agradável a visão de um cavalo nobre atadoa uma cabana de sapé!”21.

Shukō descreveu seu ideal com as palavras “seco e gelado” (kare, hie), que empres-tou do renga de Shunkei, e a cabana de sapé budista, sōan. Ele também adaptou parao chá a “beleza profunda”, yūgen, e a filosofia do treinamento ou shūgyō, segundo aqual não adianta o discípulo inexperiente tentar cegamente imitar a estética “rústica”

17Varley(7).18Sadler(5), p.9.19Por exemplo, há tradições sobre sua relação com Ashikaga no Yoshimasa, mas ao contrário de ou-

tros dōbōshū como Noami, nenhum documento histórico registra tal posição. De toda forma há outrasevidências de sua existência e de seu trabalho com chá. Ver Varley(7), p. 65–66.

20Sen e Sen(2), p.90.21Hirota(9), p.70.

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ou “gelada”—ele precisa desenvolver esse gosto por muitos anos de prática.

Quem introduziu no chá o ideal wabi propriamente dito foi Takeno Jōō (1502–1555),nascido no ano que Shukō morreu. Na tradição do chá acredita-se que ele estudou comum discípulo de Shukō22. Jōō era de família daimyō, mas seu avô foi morto na Guerra deŌnin, e a família se estebeleceu com sucesso como comerciantes na rica e independentecidade portuária de Sakai. Assim como Shukō, Jōō também estudou o Zen e buscouintegrá-lo ao chá23.

3.2.2 O wabi-cha de Rikyū

Rikyū é considerado por muitos a figura mais importante no desenvolvimento dochanoyu; a maioria das escolas atuais são derivadas de suas idéias, e mesmo as inde-pendentes reconhecem-no como figura prominente24. Rikyū nasceu em uma família demercadores ricos de Sakai, o que lhe abriu as portas para uma excelente educação—elefoi discípulo de Jōō quando este estava no auge. Rikyū levou ao ápice as tendências deinteriorização e simplificação, culminando na sua extremamente rústica cabana de ape-nas um tatami e meio. Ele ficou famoso por sua criatividade, “transformando monta-nhas em vales, oeste em leste, quebrando livremente as regras do chanoyu” (YamanoueSōji25).

Tal como Jōō, Rikyū preferia o wabi-cha e também empregou a filosofia zen-budistapara defendê-lo26, embora também tenha sido um mestre importante do shoin-cha eprecursor não só da tradição wabi mas de sua contraparte suntuosa, o daimyō-cha27.Rikyū estudou zen-budismo no templo Nanshu-ji.

Rikyū não deixou textos, e suas idéias foram transmitidas oralmente pelas escolasestabelecidas por sua família. Posteriormente foram compilados livros de anedotas,como o Nanpōroku, que registravam de forma didática os princípios estéticos do wabi.Em uma delas, Hideyoshi fica sabendo que um jardim de Rikyū estava esplendorosocom incontáveis ipoméias28, e marcou um encontro de chá. Quando chegou para acerimônia, ficou devastado ao descobrir que todas as flores haviam sido cortadas. Sem

22Sen e Sen(2), p.93.23Hirota(9), p.81–82.24Hirota(9), p.93.25Hirota(9), p.94.26Além do zen, seu “testamento de uma página” (Rikyū ichimai kishōmon) mostra influência do budismo

terra-pura. Ver Hirota(9), p. 242–.27Plutschow(4), p.93.28asagao ou morning glory, flor roxa que abre pela manhã

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entender direito, entrou na sala com a intenção de questionar Rikyū, mas assim quepousou os olhos na alcova (tokonoma) entendeu sua intenção: Rikyū havia pendurado,em um vaso simples, uma única e perfeita ipoméia, a melhor do jardim29.

Jōō, para ilustrar o que considerava ser o espírito do wabi-cha, citou o seguinte po-ema de Lorde Teika do Shin Kokin Wakashū:

見渡せば花も紅葉もなかりけり浦の苫屋の秋の夕暮れ

miwatasebahana mo momiji monakarikeriura no tomaya noaki no yugure

Quando olhonão há folhas vermelhasnem flores:à beira do mar, uma cabanano entardecer do outono.

Em contraste, Rikyū escolheu o seguinte poema de Ietaka, publicado na mesmaantologia:

花をのみ待つらん人に山里の雪間の草の春を見せばや

hana wo nomimatsuran hito niyamazato noyukima no kusa noharu o misebaya

À quem desejaapenas a flor de cerejeira,eu mostrariaa primavera na vila montanhesa:brotos em meio à neve.

Segundo o Nampōroku, compêndio de ensinamentos de Rikyū publicado postuma-29Sen e Sen(2), p.77.

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mente, o significado dessas escolhas é que Jōō define seu wabi em termos negativos:é preciso primeiro conhecer a fundo os esplendores das flores de cerejeira e das fo-lhas coloridas do momiji (e.g. a sala elegante shoin e a cerimônia na prateleira daisu),para só então transcendê-las e enxergar a verdadeira beleza da cabana de sapé solitária(sōan/sabi). Já para Rikyū, no mesmo “reino onde não há nada” (a cabana na praia, avila na neve), o wabi aparece como ambiente austero mas no qual surge, como que es-pontaneamente, uma vida ou poder natural e autêntico, firme como as primeiras folhasque vencem a neve30.

A importância do zen-budismo na arte japonesa tem sido exagerada, sobretudo noocidente31; mas, no caso da cerimônia wabi, o lugar-comum é válido. Vimos que Shukōfoi discípulo de Ikkyū, e que conscientemente buscou um “chá originário do zen”32; eque Jōō e Rikyū ambos estudaram e aplicaram esteticamente a filosofia zen-budista.

3.2.3 Fatores políticos

Nos seus primeiros séculos a arte do chanoyu, pelo menos em suas formas principaisfoi restrita às classes de elite33. Se por um lado o ideal de Rikyū pedia por uma vidasimples e de desapego, por outro a sua posição privilegiada junto ao shōgun trouxe-lhe grande poder político, o que foi comum na relação entre daimyō e seus mestres dechá (chajin) favoritos. Rikyū serviu diretamente a dois grandes shōgun, Nobunaga eHideyoshi, e esta posição elevada terminou por custar-lhe a vida.

Um dos fatores que tornavam os chajin poderosos na “política do chanoyu” foi queum chajin respeitado era aceito pela comunidade como árbitro do gosto artístico, auto-ridade máxima no julgamento do valor de objetos. Os jesuítas que habitavam o Japãono período por vezes expressavam surpresa com o alto valor que estes objetos apa-rentemente simples podiam atingir; Valignano certa vez relatou com assombro sobrecomo um pequeno pote de barro, “que para nós não teria outro uso senão servir águapara pássaros em uma gaiola”, foi adquirido pelo “rei de Bungo” pelo equivalente a14000 ducados; “eu não daria dois farthings por ele”34. Um mestre de chá podia ins-tantaneamente transformar um objeto simples em um tesouro, e este poder monetário

30Hirota(9), p.233–234.31Varley(7), p.489.32Hirota(9), p.65.33Há alguns relatos de excêntricos “mestres wabi” que viviam em pobreza real, mas estes casos isolados

ficaram fora do mainstream da cultura do chá. Às mulheres, que hoje são maioria entre os estudantes,era vedada a participação.

34Plutschow(4), p.158.

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foi explorado para fins políticos. Nobunaga, por exemplo, com freqüência fez uso depeças de chá valiosas como presentes para daimyō que queria recompensar e subornar,evitando assim o limite imposto pela baixa disponibilidade de terras.

Nobunaga também limitava o acesso à cerimônia a apenas uns poucos escolhidos35.O motivo provável é que o chajin devia deter grande poder também como embaixador,mensageiro e coletor de informações. Dada a sua posição e a natureza íntima e social dacerimônia, um mestre de chá construiria tipicamente uma rede de contatos e informan-tes. Rikyū devia ter acesso ao governo independente de sua Sakai nativa, ao poderosoclã Miyoshi e outros. Há registros que sugerem que encontros de chá de Rikyū tam-bém serviam para fins práticos como formar alianças, discutir estratégia ou transmitirmapas 36.

Em 1592, Toyotomi Hideyoshi ordenou que Rikyū cometesse suícidio ritual (sep-puku). Os motivos da ordem são obscuros e debatidos até hoje; teorias incluem queRikyū teria recusado o casamento de Hideyoshi com sua filha, recém-viúva37; que teriadiscutido com o shōgun sobre a estética do chá, ou que seu gosto wabi teria humilhado apreferência mais luxuosa de Hideyoshi; que teria vendido objetos, lucrando sem autori-zação do shōgun; que Hideyoshi teria se irritado com a estátua que Rikyū mandou ere-gir de si mesmo no Daitoku-ji, em posição elevada, de forma que os nobres teriam quepassar debaixo de suas sandálias; e várias outras especulações. De toda forma o motivoparece ter sido alguma desavença que enfureceu Hideyoshi, possivelmente por intrigano governo; Rikyū, recebendo a notícia, comparou-se a Sugawara-no-Michizane, figurahistórica exilada por razões políticas, e lamentou que mesmo nesta época a política eramais importante que as realizações artísticas de um indivíduo38.

Após o suicídio de Rikyū, diz-se que o shōgun, quando lidava com temas do chá,por vezes lamentava em voz alta a falta que sentia da companhia de Rikyū39.

3.2.4 Sucessores

Após a morte a morte de Rikyū, sua família conseguiu eventualmente o perdão deHideyoshi, e a casa foi reestabelecida pelo neto, Sen Sōtan. Sōtan estabeleceu as “trêsescolas Sen” (sansenke), que viriam a ser as principais escolas de chá no Japão até os dias

35Bodart-Bailey(10), p.31.36Bodart-Bailey(10).37Sadler(5), p.133–.38Bodart-Bailey(10), p.32.39Hirota(9), p.260.

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de hoje: Omotesenke, Urasenke, e Mushakoji-no-Senke. A Urasenke, em particular,alcançou grande difusão internacional após o século 20.

O wabicha de Shukō, Jōō e Rikyū foi a estética mais celebrada nas escolas de chá,mas também surgiram outras tendências, tais como a elegância aristocrática do daimyō-cha de Furuta Oribe e Kobori Enshū; ou o senchadō, o chá casual de Baisaō, baseado nonovo método de preparo do chá tostado e fervido (sencha) da China—o mesmo que hojeé consumido popularmente no Japão e Inglaterra—e inspirado pelos sábios chinesestaoístas40.

Além das grandes três escolas Sen, existem atualmente mais de vinte outras escolasmenores, de orientações estéticas diversas41.

40Mair e Hoh(1), p.108–109.41Sadler(5), p.265.

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Referências Bibliográficas

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8 RUCH, B. The other side of culture in medieval Japan. In: . The CambridgeHistory of Japan. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. v. 3, cap. 11. ISBN0-521-22354-7.

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