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ResumoEsta dissertação tem como tema central a composição dos versos de Ifá escritos pelo Alapini Paulo Braz Ifamuiyde. Ifá é um sistema oracular de origem iorubana, que é baseado no manejo de dezesseis caroços de dendê, para obter uma combinação entre um conjunto de 256 signos gráficos denominados odus (destinos), cada odu contém uma quantidade de versos ou recados que compõem seus significados. Minha incursão etnográfica atenta-se sobre os modos como Pai Paulo convencionaliza sua experiência com Ifá a partir da escrita em seus cadernos dos “recados de Ifá”, a fim de ressaltar particularidades e diferenças significativas entre essa prática oracular e outras práticas conhecidas no nagô. A dissertação busca fornecer uma descrição detalhada das variações e inovações rituais do jogo de Ifá, bem como as interações do dia a dia dos seus praticantes. Para tanto, tem como escopo mapear as relações estabelecidas pelo jogo entre diferentes domínios rituais do candomblé, centrados nos vereditos de Ifá – que são dele indissociáveis, como feitura de santo, culto aos ancestrais, oferendas, sacrifícios –, suscitando questões em diálogo, com temas já consagrados pela etnologia afro-brasileira, como transformação ritual, dom e iniciação, e transmissão de conhecimento e reversibilidade. Palavras-chave: Ifá. Nagô. Diferenciação. Criatividade. Antropologia reversa. AbstractThis paper dissertation as its subject the Ifá verses’ composition written by Alipini Paulo Braz Ifamuiyde. Ifá is an oracular system of iorubana origin, which is based in the handling of sixteen caroços de dendês, to obtain a combination of 256 graphic signs called odus (destinies), each one containing a quantity of verses or messages that compose theirs significates. My ethnographic incursion attempts to the modes how Pai Paulo conventionalizes his experience with Ifá from the written in his “Recados de Ifá” notebook, in order to highlight particular and meaningful differences between this oracular practical and others practical known in nago. This work attempts to offer a detailed description of the ritual variations and innovations of the Ifa jogo, as such the interactions of the everyday life of its practitioners. For this purpose, the objective is mapping how relations established by the jogo between the different ritual domains of candomblé, centered in the Ifá’s verdicts – which are inseparable from it, as such the saint feitura, ancestral cults, offerings, sacrifices -, raising questions in dialogue to themes already consagrated in afro-brazilian ethnology, as such ritual transformation, gift and initiation, and knowledge transmission and reversibility.Keywords: Ifá. Nagô. Differentiation. Creativity. Reverse Anthropology.
Citation preview
Universidade de So Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Departamento de Antropologia
Cadernos nag. A reversibilidade do Alapini Paulo Braz Ifamuyiide.
Olavo de Souza Pinto Filho
So Paulo - SP
2015
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Cadernos nag. A reversibilidade do Alapini Paulo Braz Ifamuyiide.
(verso corrigida)
Olavo de Souza Pinto Filho
Orientador: Vagner Gonalves da Silva
v.1
So Paulo
2015
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Cadernos nag. A reversibilidade do Alapini Paulo Braz Ifamuyiide.
(verso corrigida)
Olavo de Souza Pinto Filho
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social
do Departamento de Antropologia da Universidade de So Paulo, como pr-requisito
para obteno do ttulo de Mestre em Cincia Social (Antropologia Social)
Orientador: Prof. Dr. Vagner Gonalves da Silva.
v.1
So Paulo
2015
SOUZA PINTO, Olavo Filho. Cadernos nag. A reversibilidade do Alapini
Paulo Braz Ifamuyiide. Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da Universidade de So Paulo como pr-requisito para obteno do
ttulo de Mestre em Cincia Social (Antropologia Social)
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof Dr Rachel Rua Batista
Prof Dr Dominique Tilkin Gallois
PPGAS/USP
Prof Dr Vagner Gonalves da Silva
PPGAS/USP
i
Agradecimentos
O agradecimento talvez seja a melhor parte da escrita de uma dissertao. Sem
apoio e afeto de tantas pessoas este trabalho no seria possvel. Esta dissertao deve a
muitas pessoas em trs cidades diferentes, comeo por Recife:
Meu profundo agradecimento, primeiramente aos meus anfitries em Recife. Pai
Paulo por ter a generosidade de compartilhar comigo tantas horas de seu dia, seu
profundo conhecimento sobre o mundo e o universo nag em particular, e sobre a vida
em geral. Um dos tericos mais criativos e geniais que j conheci em minha vida. No
teria palavras para expressar minha gratido e afeto, a beno Baba.
Me L, o carinho dirio, seu afeto e ateno so coisas que nunca esquecerei.
Por ser minha me em Recife, pela generosidade do tamanho do oceano, a Iemanj mais
linda que existe, esta pesquisa s foi possvel por sua vontade e dedicao. Minha vida
foi outra a partir do nosso encontro, a intensidade de minha gratido expressa pelo
amor que sinto, a beno minha me.
A Bino, Paulinho, Marcio e Junior Boto, pela amizade e fraternidade, na
companhia de vocs no s aprendi como me diverti muito, a beno meus irmos.
Barbara voc merece um agradecimento especial, se no fosse sua autorizao
junto a Pai Paulo, esta pesquisa no teria acontecido. Que possamos compartilhar
muitos caminhos ao longo de nossas vidas profissionais, porque na pessoal j estamos
unidos. Estendo a seus filhos, Thauany, Thalysson e Thalita o amor e carinho que sinto,
a beno minha irm.
A meu irmo Alexandre LOmi LOdo, jovem mestre da vida pernambucana,
meus irmos e parceiros Pedro, Layla, Robson, Thandra, Janaina, Do, Berg, Marrom,
Inaldo, Ivandelcio e tantos outros com quem convivi e tive o imenso prazer de
compartilhar da vida nesses meses, meu agradecimento e afeto. Agradeo ainda a
Arnaud Halloy, esta dissertao deve muito aos seus trabalhos.
Clarisse Kubrusly, pela amizade que levarei comigo para sempre. Voc foi
fundamental nesses meses, pelas conversas, pelo aprendizado, pelo afeto e pelas
angstias em campo compartilhadas, muito obrigado.
Em Recife, devo ainda a gratido das amizades feitas para a vida: A Fabinho,
Claudia, Breno, Claudinho, Briza, famlia Amoras, dona Tete, Patrcia, Laura, Ana,
Elias, Vitria, Sandra. Minha gratido.
ii
Em Braslia, cidade que abriu caminhos para uma outra vida, agradeo aos
amigos: Danilo, Paique, Fernanda (pela reviso atenta, que melhorou muito minha
escrita), Ranna, Gui, Mari, Lety e Fabi, Ceariba, Farage, Greg, Saulo, Dani, Z do
Bon, Chico, Maira (que cosmopolense j), Herikinha, JM, Mariana (pela reviso e
traduo do francs), Goiaba, Nando, Zio, Ester, Ju, Aline, Aline Dandara, Rafa, Rafa
Pai, Rods, Pedro, Tiago, Emily (pelo trabalho cuidadoso com as fotos) e tantos outros,
valeu demais.
Na UnB, aos professores Jos Jorge de Carvalho, sem o qual no teria trilhado
esse caminho, Antonadia Borges, e aos colegas do Gesta, professora Rita Segato e
ainda a Guilherme S e, em especial, Marcela Coelho Stockler, muito obrigado.
Em So Paulo: minha famlia da Vila Ema, minha amiga Jaque, pelo
suporte e amizade, tornando fcil aquilo que seria insustentvel sem teu apoio.
Na USP, agradeo:
Especialmente meu orientador Vagner Gonalves da Silva, pelo apoio, incentivo
e disposio, por termos compartilhado uma luta por uma Universidade menos racista.
professora Dominique Gallois, pela admirao e estimulo intelectual, tive o
prazer de ser seu aluno e contar com suas preciosas consideraes na qualificao.
Muito obrigado.
Julia Sauma, que gentilmente aceitou compor a banca de qualificao, e pude
contar com sua generosidade intelectual ao longo da escrita da dissertao. Muito
obrigado.
Rachel que gentilmente aceitou nos ltimos minutos compor a banca de
mestrado e contribuiu imensamente na avaliao deste trabalho.
A CAPES, por ter financiado meu mestrado. Agradeo igualmente ao PPGAS,
ao corpo de funcionrios pela ateno e apoio.
Aos professores do PPGAS/USP, em especial, Beatriz Perrone Moiss e
Fernanda Peixota Areas, e aos colegas do Cerne, o meu muito obrigado.
Meus amigos e amigas mais do que especiais da minha turma de mestrado,
considerada por seus participantes a melhor de todas as que j pisaram nesses
corredores uspianos. Compartilhei da alegria, irreverncia e amizade de vocs: Helena,
Alvaro, Bruno, Augusto, Yara, Camila, Renan, Antonio, Vito, Lais, Isa, Ana, Jorge,
Leticia, Luiza, Maria Isabel, Cibele e Alice. Muito obrigado.
Minha estadia na USP no teria sido a mesma sem a presena e a amizade de
vocs trs: Patrcia, Michele e minha abur Yumesita. Muito obrigado.
iii
A meu Baba Toloji e comunidade Ogun lakaye Osinmole, pelo ax que me
levaram por esses caminhos ao longo desses anos.
minha famlia: Meu pai Marcio, sem seu amor e suporte eu no teria trilhado
esse caminho. Minha me Rosngela, pelo amor e incentivo desde os primeiros anos e
por ter sido sempre meu maior exemplo. Minha irm Anglica e meu irmo Joo, pelo
amor incondicional. E meus sobrinhos Dudu e Rafinha.
Essa dissertao deve muito a meu grande amigo e parceiro Lucas Marques, pela
leitura, sugestes e, acima de tudo, amizade, pequeno Exu.
E por fim, como no poderia deixar de ser, minha namorada e companheira,
nos rumos que trilhamos, pelo perodo em campo dividido, pela dedicao, pacincia e
amor, essa dissertao para voc, Noshua Amoras.
iv
Resumo
Esta dissertao tem como tema central a composio dos versos de If escritos pelo
Alapini Paulo Braz Ifamuiyde. If um sistema oracular de origem iorubana, que
baseado no manejo de dezesseis caroos de dend, para obter uma combinao entre um
conjunto de 256 signos grficos denominados odus (destinos), cada odu contm uma
quantidade de versos ou recados que compem seus significados. Minha incurso
etnogrfica atenta-se sobre os modos como Pai Paulo convencionaliza sua experincia
com If a partir da escrita em seus cadernos dos recados de If, a fim de ressaltar
particularidades e diferenas significativas entre essa prtica oracular e outras prticas
conhecidas no nag. A dissertao busca fornecer uma descrio detalhada das
variaes e inovaes rituais do jogo de If, bem como as interaes do dia a dia dos
seus praticantes. Para tanto, tem como escopo mapear as relaes estabelecidas pelo
jogo entre diferentes domnios rituais do candombl, centrados nos vereditos de If
que so dele indissociveis, como feitura de santo, culto aos ancestrais, oferendas,
sacrifcios , suscitando questes em dilogo, com temas j consagrados pela etnologia
afro-brasileira, como transformao ritual, dom e iniciao, e transmisso de
conhecimento e reversibilidade.
Palavras-chave: If. Nag. Diferenciao. Criatividade. Antropologia reversa.
Abstract
This paper dissertation as its subject the If verses composition written by Alipini
Paulo Braz Ifamuiyde. If is an oracular system of iorubana origin, which is based in the
handling of sixteen caroos de dends, to obtain a combination of 256 graphic signs
called odus (destinies), each one containing a quantity of verses or messages that
compose theirs significates. My ethnographic incursion attempts to the modes how Pai
Paulo conventionalizes his experience with If from the written in his Recados de If
notebook, in order to highlight particular and meaningful differences between this
oracular practical and others practical known in nago. This work attempts to offer a
detailed description of the ritual variations and innovations of the Ifa jogo, as such the
interactions of the everyday life of its practitioners. For this purpose, the objective is
mapping how relations established by the jogo between the different ritual domains of
v
candombl, centered in the Ifs verdicts which are inseparable from it, as such the
saint feitura, ancestral cults, offerings, sacrifices -, raising questions in dialogue to
themes already consagrated in afro-brazilian ethnology, as such ritual transformation,
gift and initiation, and knowledge transmission and reversibility.
Keywords: If. Nag. Differentiation. Creativity. Reverse Anthropology.
Grafias e Convenes
Ao contrrio de recentes trabalhos da etnologia afro-brasileira, os quais tm
adotado o uso de convenes ortogrficas do idioma iorub na grafia de palavras
enunciadas pelas comunidades de terreiro, como, por exemplo, rs para orixs, s
para Exu, entre outras. Neste trabalho, opto por transcrev-las conforme as convenes
ortogrficas do portugus, em especial, para aquelas que j se encontram amplamente
disseminadas em nosso vocabulrio, como, por exemplo, Oxum, Iemanj, Xang.
Essa opo metodolgica visa demonstrar que o uso das convenes ortogrficas
do ioruba pelos praticantes para assinalar nomes e expresses africanos- longe de ser
uniforme-; evidencia uma multiplicidade dos usos que essa grafia vem adquirindo no
contexto afro-brasileiro. Se tomarmos como base para as transcries de tais expresses
apenas as normas de tal conveno, fatalmente teramos que ler tais usos como erros ou
equvocos nas composies empreendidas pelos praticantes do candombl. Ao invs de
corrigir, por exemplo, uma palavra escrita como sun, sun, ou sum, por sun,
para se referir ao orix Oxum, pretendo manter a transcrio nativa como tal,
explicitando as recodificaes empreendidas no uso da grafia pelos praticantes,
recusando uma correo uniformatizadora. Os termos nativos sero igualmente
grifados em itlico, buscando evitar uma dupla naturalizao de seu uso, ou seja,
demonstrando que palavras como tempo, religio, herana, natureza, intuio, entre
outras, possuem sentidos bem diferentes dos que adotamos para elas. Assim, minha
inteno destacar que apesar de ser, em certo sentido, a mesma palavra, seus
significados podem no ser os mesmos que, convencionalmente, mobilizamos para
interpret-las.
As citaes nativas sero grafadas em itlico ou com dupla aspas e itlico
quando for uma exemplificao minha de seus conceitos. As citaes antropolgicas
sero em aspas duplas quando aparecerem no interior dos pargrafos, ou seguindo as
vi
normas da ABNT. Os termos de parentesco empregados tambm sero grafados pela
letra maiscula, por exemplo: Pai Paulo, Me L, Tia Zere, Tia Ins. Do mesmo modo
que os pronomes de tratamento: Seu Malaquias, Dona Josefa e assim por diante.
vii
Muitos so os indivduos que dominam essas disciplinas
diversas, mas no os capazes de inveno e menos os
capazes de subordinar a inveno a um rigoroso plano
sistemtico. Esse plano to vasto que a contribuio de
cada escritor infinitesimal. A princpio, acreditou-se
que Tln era um mero caos, uma irresponsvel licena
da imaginao; agora se sabe que um cosmos e as
ntimas leis que o regem foram formuladas, ainda que
de modo provisrio. Basta-me recordar que as
contradies aparentes do Dcimo Primeiro Tomo so a
pedra fundamental da prova de que existem os outros:
to lcida e to justa a ordem que nele se observou. As
revistas populares divulgaram, com perdovel excesso,
a zoologia e a topografia de Tln; penso que seus tigres
transparentes e suas torres de sangue no merecem,
talvez, a contnua ateno de todos os homens. Atrevo-
me a pedir alguns minutos para seu conceito do
universo.
Tln, Uqbar, Orbis Tertius, Jorge Luis Borges, em
Fices
Coyote: Back to the very beginning, like effects causing their own causes every single time. Like
we can only know the world of perception in reverse to
ourselves, and moving forward in time is like the
illusion that memory needs in order to confront itself?
Roy: How else would the memory remember what to remember, or even how to remember? Like we
have to think ourselves up again, come out of the dream
world every time we get up in the morning, re-
anticipating the past in order to extend it into the future.
Like, Lets see; where was I yesterday so I can get on with today?
Coyote: Like I left my tricking magic back home, and now I have to go home and get it. For there
would be no today without that tricking magic. Or like what they call the bubble of reflection in Castanedas
books: the idea that that something else in- between surrounds us like an opaque bubble so that all we can
see and know of the world is our own image or imagery
reflect- ed back to us by the inside surface of the
bubble. Roy Wagner, Coyote Anthropology
viii
Sumrio
Agradecimentos .................................................................................................... i
Resumo ................................................................................................................ iv
Abstract .............................................................................................................. iv
Grafias e Convenes ......................................................................................... v
Introduo ........................................................................................................... 1
1.2 Breve panorama dos estudos sobre If na etnologia afro-brasileira ......... 7
1.3 Inspiraes tericas. ................................................................................. 10
1.4 Trabalho de campo trabalho no campo ................................................. 15
Iftgun (If foi meu remdio) ...................................................................... 28
2.1 Jogo de bzios enquanto motivao ......................................................... 31
2.2 Objetivando If ......................................................................................... 65
2.3 Recado de If hoje ..................................................................................... 73
Alapini Oman Babalaiye: individuao e convencionalizao ................. 88
3.1 Obrigao de Iemanj ............................................................................ 100
3.2Maracatu. ................................................................................................. 109
3.3 Obrigao de Orumil. ........................................................................... 114
4. Ifmuyiide.( If trouxe esse filho de volta para casa) .............................. 123
Eplogo ............................................................................................................. 147
Ps-escrito ........................................................................................................ 156
Bibliografia consultada .................................................................................. 159
1
Introduo
Orunmila tem mais poder do que Olofin e todos os
outros, porque, naquela poca, os animais, as
pessoas, naquela poca do mundo em que os
animais falavam, todo mundo ia se consultar com
Orunmila. Todos os animais falavam com ele.
Quando algum queria ver nesta vida, para ver
algo (no orculo) que estava com Orunmila. Ele
foi o Oluwo de todos, o sbio. Ele o mais
prximo de Olorun; ele a confiana de Olorun. A
confiana de Deus, a confiana dos santos.
Orunmila como Moiss. Soprou iye p no mundo. O mundo foi formado com gua; em
seguida (com iye) Terra foi formada. Ele como
Moiss, porque Moiss tinha as tbuas da lei e
introduziu ordem no mundo e Orunmila tambm
tem sua lei: If. Sentado sobre essa tabua (ifa
opon), ele lana o iye. como se o mundo estava
na mesma tabua; ele representa o mundo
Malaquias Felipe da Costa apud Jos Jorge de
Carvalho(1984)
If uma divindade fitoltrica, cujo o fetiche o
fruto do dendezeiro; mas ao mesmo tempo If o
que o mana para os melansios, uma espcie de
alma csmica, de fluido mstico espalhado pelo
universo. As ligaes estabelecidas pelos
informantes de Frikel entre Olorum e If, sua
designao como pai e rei dos eguns, so, sem dvida, um esforo de racionalizao, forado
pelas perguntas daquele estudioso, para
compreender melhor um sistema onde nosso
espirito deseja descobrir, a todo custo, uma lgica
anloga a nossa. Na verdade, me parece haver
tambm aqui dois Ifs, relacionando-se, cada um
deles, com um nvel ou uma classe de conceitos
diferentes. Em todo caso, se bem que o problema
precise ser esclarecido, tem-se a impresso de que,
na psicologia nag-jej e na sua teologia, se
encontram designaes idnticas para designar
tipos de realidades diferentes.
Roger Bastide, Estudos Afro-Brasileiros
O presente estudo lida com um dinmico universo de relaes mediadas por If,
um sistema oracular de origem africana que baseado no manejo de dezesseis nozes de
dend ou bzios, para obter uma combinao entre um conjunto de 256 signos grficos
denominados odus. If, dizem os Babalas (pais dos segredos), o jogo da fa pelo
qual fala Orumil. Segundo ouvi de um importante sacerdote de If: If significa
2
palavra forte na boca de Orumil. If explica tudo, no existe nada no mundo e na vida
que no tenha explicao em If. Para alguns em Recife, If e Orumil so o mesmo
ser, no sendo possvel diferenci-los. Outros afirmam que If o jogo criado por
Orumil e, portanto, Orumil no seria exatamente a personificao de If, mas seu
inventor. Segundo Pai Paulo, If seria Odif por onde fala Orumil
por meio dessa criao, o If, que Orumil traz as respostas para quem o
consulta por meio dos odus. Cada odu nico e seria um tipo de registro em que se
encontrariam todas as informaes que explicam os acontecimentos da vida de uma
pessoa. No Brasil, comum ouvir as pessoas ligadas ao candombl se referirem aos
odus como destinos ou caminhos que as pessoas devem percorrer quando esto sob seu
domnio. Nesse sentido, o prprio If poderia ser entendido como uma antologia de
acontecimentos.
A pesquisa aborda alguns aspectos contidos nos registros do recado de If, que
tornaram possvel refletir sobre como Pai Paulo tradicionaliza sua prpria experincia.
O que Pai Paulo nos ensina sobre If que o jogo, apesar de obedecer uma combinao
entre as cadas dos odus e os seus significados, tambm incorpora, em seu corpus, a
prpria experincia de quem o executa. O conhecimento sobre os odus , antes de tudo,
uma experimentao. Isso impele a cada pessoa, ao aprender o manejo dos odus,
compor, com sua prpria experincia, os enunciados de If.
Espera-se que a reflexo sobre esses dados etnogrficos impulsione uma
discusso mais ampla na etnologia afro-brasileira, sobre transformao ritual, inovao
e reversibilidade.
Pretendo aqui analisar a narrativa de Pai Paulo sobre os eventos de sua vida que
propiciaram sua composio com If. No se trata de um estudo de trajetria de vida
nem tampouco uma biografia, mas sim de pensar, a partir da narrativa de Pai Paulo,
determinadas relaes que ele considera como importantes em sua vida, tais como a
presena dos antepassados, as narrativas de seu pai Malaquias, seu av Ado, a feitura
dos orixs, a passagem do tempo, a leitura de determinados sinais, problemas de
sade e situaes de sua vida, que me possibilitaram explorar domnios mais amplos do
universo conceitual do nag em dilogo com temas da antropologia.
Paulo Braz Felipe da Costa, neto do famoso babalorix recifense Felippe
Sabino da Costa, mais conhecido como Pai Ado. Filho de Malaquias Felipe da Costa
com Leonidas Josefa Felipe da Costa. Alm de Pai Paulo (doravante, como irei cham-
lo), Malaquias teve mais cinco filhos: Sebastio Felipe da Costa, Maria Jos Felipe da
3
Costa, Tia Zite, Jaci Felipe da Costa, Cicinho, Maria dos Prazeres Felipe de Barros,
Tia Zeres (falecida, antiga madrinha do terreiro) e Maria Lcia Felipe da Costa, Me
L (mais conhecida como Lucinha, ou Tia L). Com esta ltima, ele dirige o terreiro
Il Iyemoja Ogunte, fundado em meados da dcada de 1970, onde zelam pelos orixs da
famlia. O terreiro uma dissidncia do Il Oba Ogunte, mais conhecido como Stio de
Pai Ado. Ambos esto localizados em gua-Fria, zona norte da cidade do Recife.
Na casa de Me L, onde tambm fica o terreiro, compartilhei do convvio dos
filhos mais velhos de Pai Paulo (ele tem ainda duas filhas que moram em Joo Pessoa),
Felippe Sabino da Costa (doravante, Bino) e Paulo Braz Felipe da Costa Filho
(Paulinho), convivi com Brbara Felipe da Costa, filha de Me L, seus trs filhos
pequenos (Thauany, Thalyson e Thalita) e seu esposo, Robson, alm de seus sobrinhos,
Marcio Felipe de Barros e Orlando Felipe Barros (doravante, Junior Boto).Essas foram
as principais pessoas com as quais aprendi muito sobre o universo do nag
pernambucano.
Escolhi usar o termo nag, ou candombl nag, ao invs de Xang
pernambucano (termo mais usual na literatura), por ser o nome pelo qual os praticantes
do nag se denominam. Xang seria o nome de branco, que pessoas no
pertencentes ao candombl utilizavam para se referir a ele, sendo censurado fortemente
pelas pessoas com as quais convivi em Recife. Em respeito a suas objees ao termo
Xang, usarei a prpria classificao utilizada por meus anfitries para me referir a
essa nao (termo utilizado para diferenciar as diversas variaes do candombl).
Em 1997, Pai Paulo teve um infarto seguido de um acidente vascular cerebral
(AVC). Seu mdico lhe disse que, para ajudar em sua recuperao, era preciso ler e
fazer anotaes em voz alta. Um amigo, ento, lhe deu um livro sobre If, no qual ele
lia os odus, anotando-os em um caderno. Segundo ele, essas coisas eu j sabia, eu j
tinha isso, mas quando eu li o livro, essas coisas se encaixaram, foi com isso que me
curei. Essa cura, por intermdio do aprendizado do jogo de If, deu-lhe um novo nome,
Ifatgn, que significa: If meu remdio. Fui curado por If.
Conheci Pai Paulo1 em Dezembro de 2012, seguindo uma recomendao do meu
orientador da graduao, Jos Jorge de Carvalho. Na poca, havia finalizado minha
1 Pai Paulo possui uma biografia que destacada e valorizada por todos os seus familiares, nascido e criado em meio a muitas dificuldades econmicas e sociais, num contexto em que o racismo cotidiano e violento, conseguiu sobrepor essa situao, profissionalmente seguiu a profisso de bancrio chegando a ocupar o posto de gerente de Banco, e se aposentou com uma renda que lhe garante relativo conforto atualmente. Seus filhos homens seguem seus passos e se consolidam como importantes
4
monografia sobre If em So Paulo e, posteriormente defesa da monografia, Jorge me
disse: Voc precisa ir para Recife e conhecer Paulo, que est reescrevendo os versos
de If.
No final daquele ano, cheguei casa da famlia, na Rua Abdon Lima, 86, no
cair da noite. O porto estava aberto. Chamo na entrada, algum diz para eu entrar,
ento entro pelo corredor da casa e encontro Pai Paulo sentado na poltrona marrom. Pai
Paulo um homem negro, de setenta e poucos anos, de estrutura forte. Quase sempre
quando est sentado fica com os ps para cima, para desinchar as pernas como ele
sempre me avisa: problemas com a circulao. Muito comunicativo, viria descobrir,
em seguida, que um excelente cantor, alm de exmio tocador de ilu (atabaque de
madeira com peles de cabrito em suas extremidades). Pode passar horas contando
histrias sobre sua juventude ou sobre seus ancestrais. considerado, entre os terreiros
da regio, um dos maiores conhecedores do nag e por ser extremamente zeloso dos
feitos de seus antepassados. s vezes, quando se empolga ao cantar uma toada2,
esquece-se das pernas inchadas, levantando-se e danando em um estilo caracterstico
o que causa grande alegria por parte dos que lhe assistem. Dano como meu pai,
ele diz, invariavelmente, com um sorriso no rosto.
Esse atributo s viria ser descoberto com o tempo. O primeiro sinal de sua
personalidade, que descobri, foi sua desconfiana. Pai Paulo bastante desconfiado,
paradoxalmente alegria que aflora quando ele conta seus feitos e de seus antepassados,
est sempre censurando aqueles que querem saber demais. Enquanto no se sente
seguro das intenes de seus interlocutores, retrai-se e observa apenas, com um olhar
intenso, por detrs das lentes de seus culos. Ao me olhar no salo aos fundos da casa,
fita-me por alguns instantes enquanto caminho em sua direo. Abaixo-me e lhe tomo a
beno, beijando o dorso de sua mo. Ele retribui gesto e me pergunta o que me levou
ao encontro dele. Respondo que sou estudante de antropologia, e estava interessado em
fazer uma pesquisa sobre If, no mestrado, e que Jorge havia me recomendado que o
procurasse.
Mas voc sabe que no poderei lhe ensinar nada sobre If?. Pai Paulo seguiu
me inquirindo sobre o que eu gostaria de saber sobre If, mas, principalmente, querendo
personalidades no universo nag, e suas filhas chegaram a ps-graduao universitria, progredindo em um ambiente de forte segregao racial como os corredores universitrios brasileiros. Sobre isso, Pai Paulo sempre diz: Sinto muito orgulho em dar condies delas estudarem e no precisarem ser empregadas domsticas de nenhum branco, porque muito sofrido.
2 Musicas para os orixs.
5
saber como surgiu meu interesse em fazer tal estudo e para qu? Respondo que j havia
acompanhado alguns jogos com nigerianos e brasileiros em So Paulo e que, alm
disso, havia pessoalmente acompanhado inmeros jogos de bzios em minha vida
pessoal, uma vez que cresci em meio ao candombl.
Pai Paulo parece ficar interessado e me questiona sobre qual era meu orix. No
que respondo, ele diz que era o mesmo Ogum da famlia dele. Nesse momento, seu
rosto se ilumina e ele comea a me contar uma longa histria sobre seu tio Jos Romo.
A essa histria ele emenda outra, e outra, e comea a cantar uma cantiga. Reconheo-a,
e antes que ele termine respondo a cantiga, cantando junto com ele. Ele diz que canto
diferente, que deve ser porque a minha nao ketu e ele nag. Por fim, avisa-me que
haveria uma obrigao naquela noite: um vereador desejava ocupar a presidncia da
cmara de alguma cidade do estado e ofereceu um carneiro como oferenda.
preciso esclarecer. Ao relatar, nessa passagem, um fato de minha biografia
individual - ser de candombl -, no o fao para defender que tal condio me
proporcionou um meio de acesso privilegiado ao campo, ou como um determinado
mtodo de pesquisa. Muita tinta j foi gasta na etnologia afro-brasileira para discorrer
sobre o lugar de iniciados ou no iniciados dentro de estratgias de pesquisa no universo
das religies afro-brasileiras. No pretendo ignorar esse debate, mas considero que os
moldes como ele se apresenta3 , em grande parte, infrutfero, especialmente no tipo de
rendimento terico que promove para antropologia. Para efeito de sntese, basicamente
esse debate diz respeito ao posicionamento do pesquisador em relao ao candombl, ou
seja, instaura uma dicotomia de vises desde dentro e desde fora.
Segundo os partidrios de tal debate, o antroplogo-iniciado levaria uma
vantagem epistemolgica sobre um antroplogo no iniciado, ao promover uma
representao desde dentro, conforme advogou Juana Elbein dos Santos (1977).
Segundo a proposta metodolgica da autora, as pesquisas do antroplogo-iniciado
teriam resultados mais confiveis por conterem mais propriedade, este capaz de
represent-las, etnograficamente, com maior veracidade.
Por outro lado, o efeito reativo dos que advogam a viso do desde fora foi a
defesa do ideal de neutralidade, do distanciamento e pensamento crtico, em que cabia
ao antroplogo o domnio do sentido que daria ao discurso/realidade do nativo. Para
isso, necessrio que se tenha um distanciamento entre o sujeito pesquisador e o objeto
3 Para uma viso elaborada sobre a questo e seus desdobramentos na produo etnogrfica, ver O Antroplogo e sua magia (SILVA, 2000).
6
pesquisado. O discurso do pesquisador - sob pena de morte - jamais deveria ser o do
pesquisado, somente assim poder-se-ia ser reflexivo. Seria preciso, ento, que, como
pesquisadores, no deixssemos que nossas subjetividades se confundissem com as
daqueles que estudamos, evitando sermos devorados pelos nossos objetos. Ao ser de
fora, os antroplogos no iniciados possuiriam ingenuidade de uma criana, para
dizer que o rei est nu, o que consistiria, para alguns, na nica possibilidade efetiva de
se fazer uma pesquisa (BRUMANA, 2007).
Entretanto, ao se insistir nessa viso dicotomizada entre pesquisadores desde
dentro e desde fora, entra-se em um perigoso caminho, a saber: aquele de impor uma
das posies em relao outra, em que uma seria necessariamente mais confivel e
legtima que a outra. Como nos lembram Goldman e Lima (1999), a prpria questo
sobre o que, em geral, nos aproxima e/ou distingue dos outros inadequada e no
deveria ser formulada.
Portanto, essa dicotomia to somente naturaliza a oposio como uma fatalidade da lei da perspectiva de maneira tal que os opostos se acomodam e
canonizam sua divergncia, abenoando-se finalmente uns aos outros, com
doce ironia. A viso de dentro e a viso de fora se justificam e se repelem, resumindo o debate sobre os ritos afro-brasileiros a um eterno jogo
de solteiros e casados j previamente empatado, de comum acordo (SERRA, 1995, p.7-28).
Para evitar esse caminho e escapar dessa oposio, procuro imaginar a
antropologia como uma atividade criativa, isto , para usar os termos de Wagner, uma
atividade mediadora. Entender a antropologia pelo termo mediador, em certo sentido,
uma maneira de descrevermos os outros como descreveramos a ns mesmos
(WAGNER, 2010a). A experincia sempre mediada pelo pensamento do antroplogo
atualizando-se em campo. Da a importncia da etnografia para o autor. Desse modo,
entendo ser mais fecundo experimentar formas de interao para alm da dicotomia
dentro e fora.
A partir disso, indago-me: da perspectiva do trabalho de campo, quais seriam as
implicaes que surgem no fazer antropolgico, dada minha condio de iniciado, que
refletiriam em meus estudos sobre o candombl?
Acredito que o caminho mais fecundo para isso o de potencializar minha
vivncia dentro do candombl, isto , no sendo neutralizada enquanto crena, mas
potencializando-a enquanto experincia. Acima de tudo, essa condio no foi
utilizada, por mim, como acesso privilegiado ao campo, mas sim mobilizada tanto por
mim quanto por parte de meus anfitries, os quais, constantemente, elaboravam
7
criativas comparaes, que iluminaram, em muito, as minhas percepes sobre as
significativas diferenas existentes entre as naes do candombl.
Entendo, ainda, que evitar essa dicotomia implica, tambm, na recusa em
assumir como termo marcado o rtulo de antroplogo nativo, ou seja, implica em
evitar uma dupla naturalizao da ideia de nativo, o que tornaria, ingenuamente, a
categoria de nativo como um dado, e no como efeito da criao etnogrfica a partir do
trabalho de campo. Como efeito de tal naturalizao, o aspirante a nativo s
conseguiria ingressar num mundo criado por ele mesmo, como faria um esquizofrnico
ou aquele apcrifo pintor chins que, perseguido por credores, pintou um ganso na
parede, montou nele e fugiu voando! (WAGNER, 2010a, p. 37).
1.2 Breve panorama dos estudos sobre If na etnologia afro-brasileira
No desenvolvimento da etnologia afro-brasileira, nota-se certa ausncia de
estudos mais profundos sobre os orculos de If. Contudo, na literatura antropolgica,
existem importantes trabalhos que destacam a relevncia desse orculo, seja em seu
modelo africano (ABIMBOLA, 1977; BASCOM, 1969; APTER, 1992; BARBER,
1989; entre outros), ou de suas variaes diaspricas em Cuba, Porto Rico e, mais
recentemente, nos EUA (HOLBRAAD, 2004; CAPONE, 1998).
No Brasil, a presena de If aparece, de maneira tangencial, nas monografias
sobre as religies de matriz africana. Evidencia-se o estudo pioneiro "Contribuio ao
estudo de adivinhao em Salvador, de Bastide e Verger ([1953]2003), que retrata as
duas modalidades do orculo de If em Salvador: o jogo com opel (corrente
divinatria), utilizado somente por sacerdotes masculinos especializados, denominados
babalas; e o jogo de dezesseis bzios, outro jogo aludido a If, que conta com uma
quantidade reduzida de odus. Esta modalidade seria mais comum no Brasil, j que
prescinde do babala e possibilita que tanto homens quanto mulheres o consultem.
Sobre o jogo de bzios, encontramos quantidade maior de trabalhos (BRAGA, 1988;
RIBEIRO, 1987; PRANDI, 2003), entretanto, ainda que disponham de relativa
cobertura sobre as variaes regionais de suas modalidades, os estudos sobre o jogo de
bzios se contentam em listar os odus, apresentando tipologias de suas configuraes,
sem aprofundar nas interaes suscitadas desses odus com as pessoas, orixs, entre
outros.
8
Em Recife, onde se desenvolveu nossa pesquisa etnogrfica, a tendncia
tipolgica nos estudos sobre os odus se mantm desde os estudos de Ren Ribeiro
(1978) e Motta (1995), nos quais so apresentados quadros sinpticos sobre os odus,
ainda que no detalhem etnograficamente as elaboraes nativas sobre o mesmo. Nas
teses de doutorado de Rita Segato (1995) e Jos Jorge de Carvalho (1984), encontra-se
uma descrio detalhada dos rituais envolvidos no culto de Orumil (uma especificidade
do nag pernambucano), sem, contudo, avanar em um estudo sobre o jogo de If.
Recentemente, a etnografia de Arnaud Halloy (2005) nos oferece uma descrio, em
maior profundidade, sobre a relao dos odus e os membros do nag, e sobre as
inovaes feitas no mbito da leitura dos vereditos oraculares, empreendida pelos
sacerdotes.
De maneira geral, nos ltimos anos, a presena de If no Brasil ressurge nos
estudos sobre a chamada reafricanizao do candombl ou transnacionalismo
religioso. Para alguns autores, isso constituiria um movimento de religiosos
brasileiros em uma busca incessante por fundamentos religiosos perdidos na
experincia da escravido, em que eles voltariam frica para recuperar ou
atualizar seus conhecimentos rituais. o que denominou-se como o movimento de
(re) ou africanizao do candombl (PRANDI, 1999; LPINE, 2005, 2009; SILVA,
1995; entre outros). Esse movimento contribuiria para a formao de comunidades
religiosas transnacionais, fortemente marcadas pelas trajetrias de vida de seus lderes,
construindo uma religio mundial de culto aos orixs (sobre essa globalizao da
religio de culto aos orixs, cf: PALMIE,1995).
Embora no seja o objetivo principal, as narrativas de Pai Paulo propiciaram
explorar outra possibilidade para pensar no florescimento do culto de If no Brasil.
Diferentemente dos trabalhos elencados, no pretendo ressaltar apenas sua dimenso
poltica, nas chamadas disputas por legitimidade e prestgio, ou, ainda, como efeito
de uma situao histrica especfica, a globalizao. Imagino ser possvel pensar
essas novas experincias do culto de If, vividas por parte dos praticantes do
candombl, sem reduzi-los aos pressupostos desta abordagem antropolgica.
Meu projeto de pesquisa de mestrado objetivava, inicialmente, mapear e
aprofundar o florescimento do culto de If no Brasil, em especial, as viagens de retorno
ao solo africano, dando continuidade experincia anterior, que resultou em minha
monografia de graduao. Entretanto, estando em campo, o interesse por esse
movimento de retorno foi desfocado, devido a centralidade que os membros do nag
9
pernambucano devotam ao culto de Orumil, e ainda nas mediaes operadas por Paulo
Braz, em sua atualizao4 do jogo de If.
A partir disso, a principal pergunta dessa pesquisa : de que modo as dinmicas
envolvidas nos recados de If podem ser pensadas enquanto uma extenso analgica
de outros rituais do nag? E de que maneira se relacionam os modos de conveno e
inveno implicados nas diferentes tcnicas que propiciam os recados, e de que forma
esses recados se alternam e se afetam mutuamente?
Os recados do jogo, como procuro demonstrar, exibem uma relativa
continuidade em seu modo de apresentao, com pouca variao atravs dos autores
(conforme veremos pelas etnografias) ao contrrio do jogo de If com ikins e opel,
cujos os odus diferem radicalmente. Seria possvel, ento, pensar em uma
diferenciao e conveno dos recados de If se o relacionarmos a uma
diferenciao e conveno no jogo em si? E ainda, essa relao se estende em um
contexto mais amplo para alm dos contextos divinatrios?
Nesse sentido, destacamos a atualizao do jogo de If, baseada na experincia
de Pai Paulo, recriando-se intermitentemente. Nos estudos anteriores, percebe-se que os
autores consideram o jogo enquanto um conjunto de informaes determinadas sobre os
odus (cf. Braga, 1988; Prandi, 1994; entre outros), ou seja, seus contedos j eram
fechados ou, utilizando uma expresso de Goldman (2012), pensados como dados. O
que pretendo demonstrar que, ao contrrio do que afirmam outros autores, o jogo
para usar uma terminologia nativa feito, passvel de ser aprendido e transformado ao
longo da experincia vivida pelo adepto. O jogo no seria uma forma dotada de um
contedo, mas, antes, comporia algo anlogo a uma teoria nativa da criao
(GOLDMAN, 2008), em que o jogo recriado na prpria individuao da pessoa que
acorre ao jogo.
4 Os usos da palavra atualizao nesse texto merecem ateno. Enquanto categoria nativa ela utilizada por Pai Paulo para descrever sua escrita dos recados de If, que segundo ele j tinha isso antigamente no nag e ele atualiza de acordo com suas heranas como veremos em mais detalhe ao longo da dissertao. Outro uso possvel advm da minha interpretao sobre seu conceito aliando-o a discusses ligadas a relao entre virtual e real buscando um rendimento etnogrfico sobre essa discusso (Nunes, 2012; Opipari, 2010; Anjos e Oro,2009; Barbosa, 2013 entre outros). Esse trabalhos so inspirados pela discusso (em inmeros trabalhos) de Gilles Deleuze e Flix Guattari entre o virtual e o real, como sintetiza Nunes (2012) o virtual no se oporia ao real, mas sim ao atual: seu processo a atualizao. O que se ope ao real o possvel: seu processo a realizao. O processo de atualizao do virtual, por outro lado, um processo de diferenciao: trata-se de uma nova criao, e no da limitao de uma possibilidade pr-existente. Os termos atuais no se confundem com o virtual de que so atualizao, no so uma parte (uma realidade realizada) de um todo maior (o possvel) (NUNES,2012, p.23)
10
A perspectiva deste estudo, preciso notar, tambm se direciona para uma
etnografia das aes implicadas durante o jogo de If, bem como para as interaes que
essas elicitam. Esse mtodo permite a descrio de domnios importantes para as teorias
nativas. Nesse sentido, tambm me aproximo dos trabalhos de Jos Jorge de Carvalho
(1984) e Arnaud Halloy (2005), em suas respectivas pesquisas, ao buscar descrever
minunciosamente os procedimentos rituais, bem como as explicaes nativas sobre eles,
objetivando a construo de uma teoria etnogrfica sobre os rituais do nag.
1.3 Inspiraes tericas.
Para o desenvolvimento desta dissertao, faz-se necessrio, portanto, destacar
as aproximaes tericas que proporcionaram a emergncia das questes da pesquisa.
Minha principal fonte de inspirao so os estudos que tematizam os modos indgenas
de anlise e criatividade, em especial, os diversos trabalhos de Roy Wagner (2010a).
Para Wagner (2010a), o conceito de cultura foi comumente utilizado pela
antropologia para designar o conjunto dos produtos resultantes da atividade semitica
ou simblica dos seres humanos. Trata-se, portanto, de um arcabouo de elementos
significativos compartilhados, frequentemente referidos pelo autor, por meio de termos
como: conveno, ideologia social, moralidade, cosmologia, sistema cultural,
entre outros.
No modelo de Wagner, cultura se baseia e precipitada atravs da dialtica
(sem sntese) entre inveno e conveno. Conveno o domnio considerado
como auto evidente, e inveno o uso dos elementos convencionalizados em novos
contextos, por extenso, ou melhor, analogias metafricas. Essas novas analogias ou
extenses levam a novas convenes, o que, por sua vez, podem servir como bases para
novas invenes.
Para o autor, contudo, a conveno constitui apenas a metade do mundo do
significado. A outra dimenso a ser considerada aquela pertinente inveno,
designada por ele como um conjunto de termos diversos: metfora, improvisao,
personificao, particularizao, diferenciao. Nela, o sentido alcanado pela
extenso dos contextos simblicos convencionais a novas situaes e eventos. Tem-se,
assim, que, no caso da simbolizao convencional, trata-se de relacionar contextos
simblicos, de maneira complementar e solidria; no caso da simbolizao inventiva,
trata-se de relacion-los de maneira contraditria, de modo a inovar sobre a base
11
convencional. Do ponto de vista de Wagner, esses dois modos de significao
convencionalizantes e diferenciantes esto necessariamente envolvidos em todo ato
de simbolizao, e a relao entre eles dialtica, pois eles so, ao mesmo tempo,
interdependentes e contraditrios entre si.
Um agente simbolizador, necessariamente, mobiliza, no ato de criao de
significado, esses dois modos, tendo, contudo, que concentrar sua ateno em apenas
em um deles, que se torna o controle, e passando a perceber o outro como uma
motivao ou uma compulso, que transcende e motiva sua ao. Esse ajuste de
foco tem como duplo efeito converter um dos modos em domnio do dado do inato, e
tornar o outro modo o reino do construdo, prprio para a ao e a responsabilidade
humanas. Existiria, nesse sentido, um contraste entre os modos com que as diferentes
populaes mobilizam suas convenes, enquanto algumas adotariam como dado a
conveno e como construdo a inveno, outras fariam o inverso; considerando como
inato o modo de simbolizao inventivo ou diferenciante. evidente que no se tratam
de tipos de simbolizao, mas algo como pulses que as motivam e transformam; a
diferena reside no modo como as percebemos, no foco de nossa ateno durante esse
processo.
A primeiras obras em que Wagner desenvolve sua teoria da cultura foram
Habu, the inovation of meaning in Daribi Religion (1972), aprofundando-a em A
Inveno de Cultura ([1975] 2010). A primeira tem como conceito central a noo de
metfora e se pauta em um dos trabalhos de campo realizados, pelo autor, na Melansia,
durante os anos 1960, com a populao Daribi. J a segunda constitui uma
generalizao do argumento da obra anterior, entendendo a acepo, estritamente
lingustica, de metfora como um caso particular de uma teoria de simbolizao mais
ampla, que engloba, inclusive, atos no verbais. Nos dois casos, as inovaes que
Wagner prope para o conceito corrente de cultura so semelhantes: trata-se de observ-
la a cultura -, no apenas como um corpus ideolgico ou um conjunto estruturado de
crenas e smbolos, mas tambm como um estilo inovador, uma ao improvisativa que
inova sobre essa conveno. Se as metforas do dicionrio e do museu so
representativas do conceito usual de cultura, a performance do jazz seria uma boa
imagem para o conceito wagneriano de cultura: o mais importante neste tipo de
inveno artstica seria o modo como o msico utiliza essa base para improvisar e forar
as escalas musicais dadas. A antropologia seria nessa viso sempre mediadora, e a
12
cultura como o termo da mediao seria um modo de descrever outros como
descreveramos a ns mesmos, e vice-versa.(2010a:66)
Outra proposio de Wagner, que inspira este trabalho, reside no modo como o
autor lida com a criatividade nativa, expressa no conceito de antropologia reversa. Se
a cultura como vimos seria um termo mediador das analogias precipitadas pelo
antroplogo ao se deparar com outras culturas, poderia se especular sobre a
possibilidade de uma antropologia reversa ou os modos como os povos nativos
lidaram com a presena forada de uma alteridade em situaes de colonialismo e
opresso.
preciso ressaltar que trata-se de modos distintos de convencionalizar essa
alteridade, de acordo com seus prprios pressupostos, o conceito de antropologia
reversa mobilizado para descrever como os Cargo Cults melansios engajaram-se
com as noes capitalistas por meio de suas mercadorias. Carga seria a utilizao da
riqueza europeia expressa em seus produtos. Os cultos da carga seriam movimentos
que por meio de prticas rituais tencionavam obter os bens e as tecnologias ocidentais,
uma redeno desses povos nativos a partir da riqueza europeia.
Essas palavras [cargo e cultura] so em certa medida imagens espelhadas, no sentido de que olhamos para a carga dos nativos, suas tcnicas e artefatos,
e a chamamos de cultura, ao passo que eles olham para nossa cultura e chamam de carga. Estes so usos analgicos, e dizem tanto sobre os prprios intrpretes quanto sobre as coisas interpretadas (Idem, p. 68).
Wagner argumenta que os Cargo Cults eram a contrapartida interpretativa para
o estudo da cultura e, consequentemente, uma espcie de antropologia reversa.
Cultura e carga so analogias da mesma relao intersocietria. preciso
ressaltar que essa metaforizao ocorre em direes opostas; a cultura estenderia o
significado da tcnica para o pensamento e relao humana; e a carga estenderia os
sentidos da produo mtua das relaes humanas para os artefatos. Ainda com o
autor: cada conceito usa o vis extensivo do outro como seu smbolo. (Idem, p. 68)
Pretendo expandir essa analogia, a da reversibilidade, examinando como as
anlises nativas dos estudos (acadmicos ou no) sobre If impulsionaram uma espcie
de reivindicao, por seus praticantes, e precipitaram o retorno dessas prticas
divinatrias no seio de uma das principais famlias do nag pernambucano. Como nos
exemplos dos Cargo Cults de Wagner, esses revivalismos no pretendem replicar o
passado, mas se caracterizam por uma intensificao ritual em um novo contexto, que
incorpora e transforma prticas e cerimonias anteriores.
13
As escolhas tericas que fao, aqui, refletem o meu desejo de evitar estratgias
conceituais, que tendem a relegar os entendimentos nativos a meros dados, tratando
nossos anfitries como meros informantes. Pretendo no neutralizar a alteridade desses
entendimentos ao format-los, previamente, dentro das nossas categorias analticas. Isso
implica em examinar as relaes entre antropologia e anlises nativas. Como bem
apontou Kirsch, quando os modos indgenas de anlise so eclipsados pelas aplicaes
irrestritas e naturalizadas das categorias antropolgicas, encontramo-nos
recursivamente com (nossos) problemas tericos que nos distanciam das questes e
problemas nativos, como nos debates sobre grupos e pessoas na Melansia
(WAGNER, 1981; STRATHERN apud KIRSCH, 2007). Recentemente, a noo de
reversibilidade foi estendida para a prpria criatividade antropolgica, como bem
descreveu Gabriel Banaggia:
Assim, a partir da ideia de reversibilidade, procura operar uma inverso que
possibilite que os mecanismos do pensamento antropolgico sejam afetados
por aquilo que as pessoas com quem se estuda dizem e demonstram a
respeito da empreitada e de seus pressupostos (BANAGGIA, 2013, p. 1).
Minha incurso etnogrfica possibilita destacar alguns pontos convergentes com
a atualizao do culto de If feita por Pai Paulo, em especial, sobre a escrita dos
recados de If, e ressaltar particularidades e diferenas significativas entre essa prtica
oracular e outras prticas conhecidas no nag. Espera-se ressaltar que o jogo de If,
como afirma a teoria nativa, da ordem da experincia e constitui-se como interao
pessoal entre o pai de santo ou a me de santo, o jogo e o consulente. Nessa interao,
tanto os pais de santo quanto o prprio jogo entram em um tipo de composio
especfica, fazendo-se mutuamente.
Pai Paulo atua em minha anlise como um personificador. Assim, este
trabalho no um estudo sobre ele, mas a partir dele. ele o guia dos caminhos que
essa dissertao ir trilhar. Uso o conceito de personificador para denotar as relaes
entre os seres que falam atravs dos recados de If, em sentido anlogo, mas no
exatamente igual ao conceito de impersonation de Roy Wagner.
A partir disso, divido o material desta dissertao em trs momentos, cada um
deles recebendo um dos mltiplos nomes-ttulos pelos quais Pai Paulo conhecido, e
que denotam momentos de vida e ttulos religiosos especficos; os nomes, como disse
Bastide(1973) em Le principe d'individuation (contribution une philosophie
14
africaine), relacionam-se (e so um modo de relao) de modo especifico dentro desse
universo conceitual:
Os nomes no criam, assim, a personalidade, eles so somente marcas que os
identificam a uma classe e, se eles so mltiplos, que reentramos em toda
uma srie de classes diferentes. Dessa forma, depreende-se, ao lado de uma
lgica de relao, uma lgica da atribuio, quando se passa da noo de
pessoa quela de individualidade singularizada. Nos dois casos dados, e
aquele que faz com que as solues sejam anlogas, no temos unidades
seno que estruturais; mas para aquilo que da Pessoa, trata-se de uma
estrutura de relaes entre princpios vitais exteriores e interiores e, quanto s
suas vidas internamente, de suas relaes dialticas (BASTIDE, 1973, p. 43,
traduo por Mariana Lima).
Considero no entanto que mais do que classes, os nomes indicam um potencial e
instanciaes de relaes, nesse sentido, na primeira parte, Iftoogun (If foi meu
remdio), eu tomo como ponto de partida a atualizao de If objetivada por Pai Paulo.
Essa atualizao foi motivada aps um momento crtico de sua sade, quando ele foi
vtima de um AVC. Inicio essa sesso considerando o jogo de bzios, tal qual praticado
no nag, como fundo contextual por meio do qual Pai Paulo se diferencia mediante a
adoo de uma nova tcnica de jogo, recuperada por ele aps ler um livro sobre If.
Esse capitulo contm duas partes: um sobre o jogo de bzios, em que fao uma
discusso com a literatura sobre If, em Recife, e sobre meu prprio campo nessa
cidade; j no segundo captulo, analiso a composio dos recados de If precipitados por
tal atualizao tcnica.
Como foi observada, a relao de Pai Paulo com If articula dois momentos de
inovao: ele mobiliza um conjunto de aes convencionais e cria/improvisa novas
aes contra (e por meio) esse fundo convencional. Como se pode ver na literatura
antropolgica sobre o tema, em tais casos esse tipo de atitude sempre descrito ou
entendido na chave da mudana ou da continuidade (inveno ou tradio). Meu
intento, aqui, trocar a conjuno ou pela injuno e ao analisar esses dois
momentos, no como opostos, mas como complementares.
Os aspectos mobilizados pela teoria de Pai Paulo: intuio e herana, acionados
em sua explicao sobre a criao dos recados de If, agiriam como uma antecipao
entre inveno e conveno, ressaltando o papel de mediador e obviador de Pai Paulo,
por meio dos rituais que If motiva/ope em seus mltiplos contextos.
No segundo captulo, estendo o contexto da anlise para as criaes de Pai Paulo
em outros contextos que no so exclusivos do jogo de If, mas que entendo estarem em
dilogo com ele. Esses contextos outros diferenciam, ento, o prprio jogo,
15
incorporando-se a ele e por ele sendo convencionalizados por meio das obrigaes que
o jogo precipita. Espero descrever como essas diferenciaes so coletivizadas,
ampliando seus efeitos e, no limite, passando a compor o repertrio de rituais do nag.
Por fim, no ltimo captulo, atento-me a discutir esse movimento de
diferenciao e conveno, (contidos nos recados de If e nas obrigaes) estendendo-
os para os modos como os praticantes analogamente vivenciam as experincias e as
convencionalizam nos termos do nag, considerando enquanto experincia no apenas
as situaes descritas pelos jogos, mas tambm sonhos, encontros com orixs e eventos;
meu foco se dirige para como essas correspondncias so acionadas e atualizadas em
outros contextos. Procuro analisar o rendimento terico do uso do conceito de mito
que foi mobilizado para interpretar tais experincias. Tomo como pano de fundo para
essas atualizaes a viagem frica feita por Pai Paulo e Me L e seus
desdobramentos. Os eventos descritos permitem perceber a relaes e reverses que
perpassam e englobam concepes sobre parentesco, territrios e paisagens. Essas
variaes atuariam como uma composio de foras5, como veremos, do ponto de
vista dos praticantes do nag, sua ligao com a frica parece depender mais das
noes herana e descendncia, do que da sobrevivncia de traos que se
preservaram. A viagem para frica seria convencionalizada por meio dessas
composies, ou seja, apresentando-se para eles a partir da incidncia da fora dos
ancestrais e orixs e da confirmao por sonhos, mitos e pelo prprio jogo de If.
1.4 Trabalho de campo trabalho no campo
No captulo intitulado cultura como criatividade de A Inveno da cultura
(2010a), Roy Wagner discute as contrapartidas interpretativas envolvidas durante seu
trabalho de campo junto aos Daribi. Wagner concebe o trabalho de campo enquanto
uma atividade criativa e, em nossos termos, produtiva, ainda que sua produo no
5 Nos termos de Bastide: Naturalmente, esta unidade estrutural ir variar de acordo com as pessoas, ou seja, de acordo com a correspondncia lgica entre os elementos do cosmos (ou social) e elementos humanos (ou individuais). Mas parece-me que essas variaes podem ser expressa geometricamente ou mecanicamente por um nico sistema, o que seria um sistema de composio de foras - ou mesmo filosoficamente por um nico sistema, o que seria de que o jogo dialtico, a complementaridade, o conflito, a capacidade, a excluso, entre os princpios descontnuos (1973, p. 40, traduo livre).
16
seja quantificada ou remunerada da mesma forma que outros trabalhos (Contudo, hoje
h uma crescente imposio das agncias estatais em importar do mercado a lgica de
trabalho quantificada em nossos currculos pelo volume de artigos que produzimos).
O modo como os Daribi interpelam Wagner sobre seu trabalho incorporava uma noo
de criatividade e de vida totalmente diferentes, essa diferena expressa pelos
equvocos envolvidos nesse encontro. O equvoco deles a meu respeito no era o
mesmo que meu equivoco acerca deles, de modo que a diferena entre as nossas
respectivas interpretaes no poderia ser descartada com base na dissimilaridade
lingustica ou nas dificuldades de comunicao (2010a: 53).
Ao contrrio dos amigos Daribi de Wagner, meus anfitries, em Recife, eram
mais habituados ao trabalho de campo dos antroplogos (ainda que desconhecessem,
em certa medida, seus resultados), estando habituados, de longa data, presena
incmoda de pessoas estranhas ao seu convvio, que, de uma hora para outra,
encontram-se no seio de sua famlia, acompanhando seu cotidiano e realizando (ou no)
toda sorte de perguntas e questionamentos. Minha presena entre eles no se constituiu,
necessariamente, como uma novidade.
Essa famlia, provavelmente, um dos casos mais longnquos e efetivos de
interlocuo antropolgica, abrangendo, diretamente, trs geraes de antroplogos
(Jos Jorge de Carvalho e Rita Segato, nos anos 70, Arnaud Halloy, no incio dos anos
2000 e, agora, a minha pesquisa), sem contar o auxlio indireto que prestaram maioria
dos estudiosos do xang pernambucano. De todo modo, era comum a referncia a
situaes de campo vivenciadas por eles com outros pesquisadores. Essas situaes, por
sua vez, serviam como guia de boas maneiras, que eles imputaram aos primeiros
momentos de nossa relao, bem como censuras veladas aos desdobramentos dessa
relao, precavendo-me de possveis equvocos e, principalmente, com o intuito de
evitar percorrer o caminho do esquecimento aps o perodo de campo.
Minha rotina, ali, consistiu basicamente em acompanhar, o maior tempo
possvel, a rotina de Paulo Braz, com diferentes graus de intensidade. Quando ele
permanecia em Recife, eu costumava encontr-lo de manh e compartilhar de sua
companhia at o final do dia, ou incio da madrugada, nos dias de obrigaes. Se ele se
encontrava em Joo Pessoa (onde reside com sua esposa e duas filhas), ao menos uma
vez por semana ia encontr-lo e passava o dia com ele. Nos dias em que no havia
nenhuma obrigao ou jogo, passvamos quase que todo tempo conversando. Durante o
dia, ficvamos sentados sombra do p de manga na entrada da casa; nos horrios mais
17
quentes e ao cair da noite, seguamos para o salo aos fundos da casa, em frente ao peji
(quarto de santo, local em que se encontram os assentamentos dos orixs) e ao bal
(morada dos Eguns, espritos dos mortos ou antepassados).
Nesses dias de conversa, frequentemente, ramos acompanhados por algum
parente - consanguneo e/ou de santo - de Pai Paulo; um sobrinho, ou primo de sua
extensa parentela. Era comum, tambm, a presena de algum cliente ou filho de santo,
que o procurava para solicitar um conselho ou orientao, e que, impreterivelmente,
deixava-se levar por suas interminveis histrias. Presena certa nessas conversas era a
de Marrom, o ex-marido de Me L, que mantinha sua oficina mecnica no espao
contguo casa, ocupando uma parte da rua e da calada. Sua oficina ficava na rua e,
muitas vezes, ocupava a prpria entrada da casa do Terreiro o que eventualmente lhe
gerava algum problema com um vizinho, ou constantes reclamaes das pessoas da
casa.
Mas na maioria das vezes, ramos s ns dois conversando. s vezes, a
conversa seguia o ritmo do movimento da casa, indo e vindo de acordo com os
acontecimentos dirios. Pai Paulo relembrava de fatos marcantes de sua vida, de seu dia
a dia com o Pai, meu pai, meu heri, ele dizia. Gostava de enaltecer os feitos e
lembranas do av, de quem ele tanto se orgulha, mas que no alcanou vivo. Quase
sempre, nossos dilogos comeavam pelos problemas de sade que o atormentavam, e
seguiam por uma precisa anamnese de seus efeitos e especulaes sobre suas causas.
Depois, prosseguamos por outro assunto qualquer. Havia momentos em que ele, no
meio da conversa, empolgava-se: seu tom de voz se alterava e ele gesticulava de
maneira intensa. Em outros, o assunto ia rareando, ele se perdia em longas reflexes, ou
silncios distantes, que, invariavelmente, terminavam em um cochilo.
No fiz uso de gravadores em nossas conversas. Pai Paulo sempre se retraia
diante da possibilidade de qualquer gravao. Como censura velada ao uso de tal
equipamento, ele me advertira que as invocaes e palavras possuam uma fora que
seria prejudicial para quem no soubesse manej-las; relatou-me uma situao que
exemplifica esse perigo, disse-me que muitas vezes seus filhos de santo gravavam, sem
autorizao, suas saudaes e invocaes, e depois decoravam e repetiam sem saber o
jeito certo de se fazer, como me contou com certa malcia:
Uma vez, numa obrigao de Iemanj, o nibus quebrou e foi um grande
problema. As pessoas tiveram de sair do nibus e ficaram num lugar deserto at que
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algum fosse resgat-las. Iemanj l, com a panela6 para oferecer no mar e nada de
dar certo. Sabe o que foi? Foram s invocaes que eles fizeram errado, gravaram com
o celular e no sabem como faz-las (risos). Quem bom j nasce feito e quem quer
fazer no pode!7
Tambm no tomava notas em campo. Quando retornava para minha casa, aps
o campo, redigia, no caderno, os relatos e situaes ocorridas. Essas situaes serviam
muitas vezes de mote para iniciar nossas conversas no dia seguinte. Certa vez, li que
entre os malineses a repetio no um defeito, mas uma forma esperada de se contar e
reviver histrias. Com Pai Paulo, desconfio que seja um pouco esse o esprito. No
incio, atormentava-me a ideia de no estar gravando nossos dilogos e, por ventura, no
conseguir reproduzi-los com exatido no caderno de campo, perdendo, em muito, o que
ouvia. Dada a profuso de nomes, lugares e pessoas, sempre escrevia alguma
informao errada no caderno. Com o tempo, ao escutar e escutar vrias vezes essas
histrias, fui me habituando aos nomes, j reconhecia os lugares, os pequenos detalhes
da narrativa. Podia antever certos retornos de Pai Paulo e tentava imitar seus
maneirismos. Se a repetio em si no era um defeito, cada vez que ouvia repetidamente
uma histria, sempre havia um acrscimo, um detalhe a ser acrescentado. Contudo, mais
que ao contedo, prendia-me forma como um evento se encadeava a outro, sem
qualquer possibilidade de antecipar como se daria o fim da narrativa.
Julguei ento que no avanaria muito em minha pesquisa junto a Pai Paulo se
optasse por enrevist-lo. Qualquer pergunta mais direta sobre If e seus rituais era
respondida de maneira evasiva e muitas vezes desconfiada. O que fiz foi desdobrar
questes levantadas por nossas conversas de modo a produzir mais conversas sobre os
temas retratados aqui. No final, pude organizar meu argumento em torno dos assuntos
6 Panela de Iemanj uma das obrigaes mais populares do nag. Consiste numa grande festa em que preparada uma panela de barro com comidas, flores, presentes, e carregada para ser entregue em alto mar. A Jos Jorge de Carvalho(1984) foi relatado que essa obrigao era um grande eb (oferenda); retornaremos a ela no captulo 3.
7 Essa frase muito repetida por Pai Paulo reveladora sobre a natureza do conhecimento para ele, curiosamente ela aparece em outras etnografias, como me chamou ateno Lucas Marques sobre a recorrncia dela, na excelente tese de Edgar Barbosa Neto, cito na integra: Quem bom j nasce feito no se ope ideia de que a pessoa possa aprender, mas sim ideia de que possa aprender independentemente da relao ritual com o seu orix de cabea, a qual, de um modo geral, sempre se atualiza em uma casa especfica. [...] O fato de que esse ax seja dado no exclui, como escreve Braga, o treino e a experincia com os mais velhos. pelo prprio fato de o dom ser dado que ele deve ser feito. menos uma propriedade do que uma relao, a qual, por sua vez, pode se fortalecer pela mediao do ritual apropriado, passando ento do orix geral dono de sua cabea para aquele mais especfico que comeu nela. O enunciado ningum me ensinou est no mesmo plano conceitual que a idia, continuamente repetida por Pai Mano, da raiz como algo que no foi inventado (BARBOSA NETO, 2012, 94-98).
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mais frequentes dessas conversas. Em dezembro de 2014, quando redigi a primeira
verso dessa dissertao, fui novamente a Recife e me encontrei com Pai Paulo na casa
de Me L. Por uma semana li o que havia escrito para ele. Nessa oportunidade, pude
gravar suas falas sobre os assuntos tratados aqui, e so essas falas que esto transcritas
nesta dissertao. Pai Paulo discutiu comigo ainda minha etnografia, em especial nos
momentos em que falava sobre os eguns e descrevia obrigaes, e obviou um pouco
mais seus prprios conceitos.
Nos dias de obrigao, eu costumava chegar cedo, em geral, no horrio em que
ele dizia que ela deveria comear (e que nunca comeava). Quando as obrigaes eram
na casa de Me L, eu chegava por volta das 07h30min. O primeiro terreiro que
frequentei foi a casa de me L, no incio do campo, pois era onde eu tinha mais
liberdade para acompanhar Pai Paulo. Mas medida que a pesquisa vinha se
desenvolvendo, eu comecei a acompanh-lo em outros terreiros. No comeo, eu ia de
nibus at essas casas (que quase sempre ficavam nas redondezas e bairros prximos a
gua-Fria), mas, depois, Pai Paulo passou a reservar um lugar no carro que vinha
busc-lo, para eu ir junto.
Nessas ocasies, eu ficava ao seu lado antes de comearem as obrigaes, e
ficava do lado de fora dos quartos de santo quando ele estava invocando os orixs,
antepassados. Com o tempo, acredito que, confiando mais em mim, ele me convidava a
entrar e ficar ao seu lado. Simultaneamente, conforme minha proximidade com seus
filhos aumentava, fui deixando de ficar ao lado do Pai Paulo, para ajudar seus filhos em
seus trabalhos, nas obrigaes rituais. precisamente sobre isso que gostaria de me
deter agora.
Os sentidos da palavra participao sero explorados no desenvolvimento
desta pesquisa. A maneira como nos habituamos, usualmente, a mobilizar essa palavra
na antropologia remete, sem dvida, ao clssico trabalho de Lvy-Bruhl (1910 Et al.),
em especial, ao postulado do pensamento primitivo que, diferentemente dos
ocidentais, ignoraria o princpio da contradio. Dessa forma, a mentalidade primitiva
tenderia a relacionar e conectar todos os elementos do universo por meio de um
continuum de foras espirituais, ligadas por aes e reaes msticas, que estando
preocupado sobretudo com as propriedades e foras msticas dos objetos seres,
concebe a relao entre eles sob a lei da participao, sem se inquietar com contradies
que um pensamento lgico no poderia mais tolerar (LVY-BRUHL, 1910, p. 110).
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Essa formulao, ou lei da participao, foi recuperada por Roger Bastide
(1973), para quem seria um engano supor que a lei de participao prova da no
existncia do princpio de contradio entre os primitivos. Para o autor, o que
sucederia que as contradies do pensamento primitivo so msticas e no objetivas.
(BASTIDE, 1973, p.333). Tornar-se-ia mais frutfero, ento, pensar a participao como
categorias da ao.
Para Bastide, os processos de participao tendem a ocorrer no interior de
classes, entre as quais predominam relaes de separao entre diferentes domnios:
mortos e vivos, orixs e humanos. Contudo, afirma Bastide, o pensamento africano
no poderia ser definido nem pela participao de Lvy-Bruhl, tampouco pela
classificao durkheimiana, mas sim colocados em termos complementares, a
participao obviaria a classificao: ao classificar foras e participaes, em vez
de seres. (BASTIDE, 1973, p.341)
Nesse sentido, o autor estabelece os princpios que envolveriam essas relaes
por meio de trs princpios simultneos, como bem apontou Fernanda Aras Peixoto:
So trs os princpios descritos por Bastide: o da participao, o do corte e o
das correspondncias. 1) Os africanos conhecem a participao, mas nem tudo participa de tudo: as cadeias de participao so interrompidas quando se passa de um nvel real a outro. 2) As participaes atuam no interior de um
determinado sistema classificatrio, graas ao princpio de corte. 3) No h participao de um domnio da natureza em outro, mas analogias, por
exemplo entre o plano social e o plano mstico: princpio de correspondncias. [...] As participaes se realizam no interior de certos compartimentos do real, j que cises marcam um espao intervalar entre
cada um deles. Entre um compartimento e outro, por sua vez, so
estabelecidas correspondncias. Nesse sentido, o princpio de corte seria o
operador mais importante, na medida em que funcionaria como o ele entre os
outros dois: no interior dos cortes que jogam as participaes msticas e entre esses cortes que jogam as correspondncias msticas (2000, p. 110-111).
Marcio Goldman (2012), em seu trabalho sobre dom e iniciao, retoma o tema
da participao, ao discutir as implicaes terico-metodolgicas provocadas pelo
termo. O autor, ao comentar o trabalho de Arnaud Halloy (2005), diferencia duas
acepes para o termo: a participao-sociolgica, no sentido de participar e
acompanhar os rituais; e a participao-ritual, que est envolvida em etapas de
aprendizado e iniciao. Halloy, como bem aponta Goldman, estava interessado em
compreender os processos de aprendizagem e iniciao por meio da participao.
Segundo Halloy, o termo utilizado por seus anfitries no campo, para expressar os
processos de aprendizagem, era ter convivncia em um contexto em que a
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aprendizagem seria essencialmente uma questo de iniciativa individual, em vez de
uma transmisso sistemtica (HALLOY, 2005, p. 642).
Nesse sentido, a transmisso de conhecimento seria definida por meio de dois
conceitos: passar e pegar. O primeiro refere-se ao conhecimento concedido, pelo
detentor, s pessoas de sua confiana; o segundo termo implicaria em uma disposio
ou atitude, por parte dos iniciados, em adquirir o conhecimento de quem os detm -
pegar o conhecimento ou roub-lo, como aponta Halloy. Por fim, teramos, ainda, a
transmisso de conhecimentos por meio da participao nos rituais, sem que houvesse
uma justificativa para o que estava se desenrolando ali (Idem: 644).
Essas duas modalidades de aprendizado se relacionariam, ainda, a determinadas
condies de possibilidades. Realizar-se-iam atravs do legado de sangue ou, como
Pai Paulo gosta de mencionar, por herana familiar, que seria o caso, especificamente,
dos descendentes consanguneos de Pai Ado; e por meio da "participao (retornarei a
esse ponto mais abaixo). Esses dois modos, frequentemente justapostos, so
confundidos e, s vezes, contradizem-se. Ou seja, no so bem definidos, carregam uma
ambiguidade potencial, tratando-se de duas tendncias explicativas, no de distines
marcadas:
Dois modos de transmisso religiosa so normalmente distinguidos em minha
famlia de santo. O primeiro, que seria especfico dos descendentes
biolgicos do Pai Ado, concebido sob o modo da herana: de maneira quase atvica, os saberes religiosos so transmitidos pelo sangue de uma gerao de chefes de culto seguinte. O segundo modo sublinha a
importncia da iniciao e acentua a necessidade de transmitir os saberes
(HALLOY, 2005, p. 681).
Outro fator a ser levado em conta, segundo Halloy, o tempo em que o
indivduo entra e se engaja na adorao (Ibidem, p. 681). Quanto antes a pessoa
comea a aprender, mais valorizada a capacidade pela qual os conhecimentos so
adquiridos. Nesse ponto, a ambiguidade amplificada no caso dos indivduos que j
nascem sabendo." Como Pai Paulo explicou para Halloy: Eu nasci j elevado! Temos o
conhecimento que vem de baixo para cima [...] ele deve vir a partir da essncia [...] Ns
adquirimos hbitos, conhecimento [...] A criana est descobrindo tudo isso [...]
(Ibidem).
Tendo a concordar com a ressalva feita por Marcio Goldman sobre o uso que
Halloy faz do termo participao, a saber: a de que o conceito acaba reduzido pela
anlise de Halloy em seu sentido sociolgico. Como aponta Goldman, o sentido de
participao pode ser entendido em uma acepo propriamente ritual. Participar no
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apenas conviver, mas tambm entrar em relao, material ou no, com aquilo que
constitui o ritual. (GOLDMAN, 2012a, p. 277).
Gostaria de me deter um pouco mais nessa discusso. De acordo com Goldman,
a transmisso por participao diria respeito tanto ao que se aprende quanto ao que
recebido. Nesse sentido, sangue, ritual e convivncia constituiriam, assim, os
vrtices de um modelo triangular que colocaria em xeque a concepo dualista de Boyer
[Dom e iniciao] (2012, p. 277). Assim, se os dois primeiros termos associados
(sangue e ritual) poderiam ser da ordem do dom e da iniciao, o terceiro,
participao, seria mais indefinido (Ibidem). H, nesse ponto, uma reflexo que eu
considero importante transcrever por inteiro:
Evitemos aqui, contudo, o vcio profissional que nos levaria a apenas
acrescentar uma dimenso sociolgica ao par biolgico-cultural inicial. Muito pelo contrrio, creio que o terceiro elemento permite justamente o
passo essencial: a percepo do carter em ltima instncia monista do
sistema ainda que esse monismo de base seja apenas a resultante de uma multiplicidade intensiva de linhas de foras e vetores[...] Em diversas
ocasies me vi em situaes das quais, em tese, eu no poderia participar
em virtude do fato de no ter sido iniciado. A hiptese aqui em jogo,
portanto, a de que o carter aparentemente tridico do modelo nativo no
apenas contesta o dualismo dos antroplogos, como oculta, na verdade, um
monismo de base. Isto porque o que Halloy denomina herana pelo sangue e o que eu mesmo desdobrei em participao-sociolgica e participao-ritual tm um mnimo denominador comum. Ou, para ser mais preciso, constituem atualizaes de um princpio subjacente nico.[...]Essa fora o ax, dos candombls ketu, ngunzo, dos angola, ou simplesmente fora,
energia, em inmeras outras religies deste tipo constitui tudo o que existe e pode existir no universo, seguindo um processo de diferenciao e
individuao, sua unidade garantindo que tudo participa de tudo e suas modulaes fazendo com que haja graus de participao (GOLDMAN, 2012, p. 278-279, grifo meu).
Apoiando-me no desdobramento de Goldman acerca da participao
sociolgica e participao ritual, gostaria de dar mais uma volta no parafuso, ou
seja, de objetivar, agora, uma reflexo sobre a participao dos antroplogos a partir do
ponto de vista dos nativos. Uma vez que, de acordo com meus anfitries, o termo
participao mobiliza outros sentidos que incidem em nossa prpria participao, essa
diferena coloca a seguinte questo: como a participao sociolgica seria entendida
pela participao ritual? Como uma incidiria, recursivamente, sobre a outra? Foram
Pai Paulo e Me L que me possibilitaram perceber essa diferena. Retorno a eles.
Logo no incio do meu campo, Me L telefonou para Pai Paulo, para avisar que
eu j estava em Recife e que iria trabalhar com ele agora. Pai Paulo, durante essa
ligao, avisa a ela que eu precisaria, antes de comear esta pesquisa, dar uma
obrigao para If e no Bal e que, somente assim, ele poderia me passar as coisas.
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Me L ento me avisou: Pai Paulo no pode dar nada pra voc, do que Jorge [Jos
Jorge de Carvalho] no tivesse ganhado de meu pai Malaquias. Quando Jorge foi fazer
sua pesquisa, ele teve de dar uma obrigao para Orumil e outra no Bal, e que, por
isso, voc ter de fazer o mesmo.
Dias depois, quando Pai Paulo chegou, ele me disse que no queria fazer
diferente do que seu pai fez com Jos Jorge de Carvalho, e me perguntou: Jorge no
fez uma boa pesquisa? Para voc fazer uma boa pesquisa que nem a dele, precisa
passar pelo que ele passou.
Como apontou Vagner Gonalves da Silva (2000), costuma-se pensar a
observao participante como um procedimento e uma tcnica de pesquisa que no se
constitui em uma tcnica exclusiva ao antroplogo, mas que importante, tambm, para
as pessoas com as quais ele trabalha. Segundo o autor, uma das formas de atrao das
religies afro-brasileiras seria a de propiciar canais participativos para que as pessoas
incorporem em si mesmas os valores religiosos atravs da experincia emprica nesse
universo. Nesse sentido, diz o autor, o antroplogo dever experimentar a religio
se quiser absorver os seus significados, preceitos e fundamentos. (SILVA, 2000,
p.89).
Tudo se passa como se, no conceito de observao participante, os
antroplogos se situassem ao longo de uma continuidade estabelecida entre as duas
palavras, ora tendendo mais para o polo da observao, ora para o polo participante, isso
sendo feito de acordo com os mais diversos motivos: seja de orientao terica, de
implicaes de gnero, ou professando a f no distanciamento crtico. Mas ser que do
outro lado da relao, do lado nativo, a participao se daria, necessariamente,
como uma estratgia de angariar mais adeptos? Tratar-se-ia do mesmo sentido de
participao, para ambos os lados?
Pensando em meu contexto de pesquisa, o nag pernambucano, eu gostaria de
explicitar uma diferena significativa, nesse sentido. Tomo como ponto de partida o
depoimento de Roberto Motta para Vagner Gonalves da Silva . Ao reconhecer que no
seria possvel realizar um estudo sobre sacrifcio no xang pernambucano apenas com
entrevistas e questionrios, Motta resolve tomar um papel mais participativo (ainda
que no especifique exatamente o que veio a ser isso em sua tese) e se submeter s
obrigaes que Manuel Papai (atual dirigente do Stio de Pai Ado) prescrevera.
Entretanto, Roberto Motta alude a um perigo constante em tomar um papel mais ativo
nas obrigaes que, em sua viso, poderia faz-lo perder ou sair da condio de
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pesquisador. Pesquisador, para ele, algum que apenas assiste s cerimnias, o que
serviria para demonstrar que ele no era nativo. Conforme relatado em sua tese, e
recuperado por Silva : Badia [me de santo] diz que devo entrar [no quarto de santo
onde os animais foram sacrificados para Xang]: Agora voc entre e adore; seu
santo. Recuso. Eu sou s pesquisador (MOTTA, 1991 apud SILVA, 2000, p. 92).
Durante meu campo, diversas vezes ouvi que s se pode participar de uma
obrigao quem, em certa medida, j passou por ela (a exemplo do que foi dito por Pai
Paulo para Halloy , mais acima). Note-se que passar no implica, necessariamente, em
se iniciar, no sentido mais usual do termo. Ou seja, no quer dizer que uma pessoa que
no passou, no possa assistir ou acompanhar o que acontece durante os rituais. Muitas
vezes, em Recife, as obrigaes transcorriam diante dos olhos de muitas pessoas no
iniciadas, ou tampouco pertencentes ao quadro de membros dos terreiros. No ser
iniciado no era impeditivo para se tomar parte dessas cerimnias, conforme a literatura
etnogrfica demonstra. Em algumas obrigaes, essas cerimnias ocorriam diante dos
olhos de vizinhos, amigos ou conhecidos da pessoa que patrocinava a obrigao e que
no tinham nenhum vnculo mais prximo com o nag, ou seja, no eram adeptos ou
religiosos.
Ser iniciado ou adepto no garantiria o direito para participar das
obrigaes, por exemplo, h participaes que s so permitidas para homens, como no
caso das obrigaes aos Eguns8. H outras que somente mulheres poderiam realizar. E,
ainda, aquelas nas quais as tarefas rituais deveriam ser feitas por quem tivesse um
domnio prtico dos gestuais e das etapas de sua execuo em muitos terreiros,
somente uma pessoa tinha competncia para desempenh-las.
Tratarei agora do meu caso, como me disse Pai Paulo: Se voc no fizer isso [a
obrigao], s poder ficar olhando e no vai aprender muito, no vai poder participar
tanto.... Infelizmente no pude fazer essas obrigaes, uma vez que so dispendiosas e
eu no contava com os recursos para tal incumbncia, minha participao se deu por
outros motivos, como veremos abaixo. Quero destacar, por ora, que, apesar de
familiar, o termo participao implica numa relao especfica com o contexto dos
rituais, em que as concepes de iniciado e adepto no conseguem contemplar sem
deixar de lado os significados do nag que o termo pressupe. Participar, em certo
8 Eguns so os ancestrais das casas de candombl em Recife, esse termo tambm designa morto em geral. No nag, so reverenciados tanto os antepassados da famlia estudada, enquanto personalidades do universo do nag.
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sentido, est relacionado ao trabalho durante as obrigaes, mas no somente isso,
implica em certas disposies que a pessoa possui, como gnero, orientao sexual,
orix regente, relaes de parentesco, entre outas. Pai Paulo me disse como se deu o
incio de sua participao nos rituais do nag:
Comecei a participar das obrigaes acompanhando meu Pai [Malaquias] e
meu tio [Jos Romo] por volta dos doze anos. Mas antes mesmo eu j ajudava, teve
uma obrigao para xang, eu tinha sete anos, um galo enorme, eu segurando, a meu
pai viu que eu no ia conseguir e segurou ele mesmo. No comeo, eu s machucava as
folhas para os amassis9, depois comecei a responder as cantigas e cantar para os
santos, tocar e danar. A, fui aprendendo a segurar os bichos, como segurar, limpar os
bichos e tirar o couro, os axs. Quando fiquei mais velho, meu pai sempre me esperava
para comear uma obrigao, um obori10, ou para matar os bichos enquanto ele
invocava os santos e cantava para oferecer eles, fazer as invocaes, essas coisas, foi
assim que comecei a participar mesmo. Meu Tio Z Romo, quando tinha quatorze
anos, j ajudava Joana Batista nas obrigaes que ela dava, depois de um tempo que
meu Tio foi feito por dois africanos chamados Pedro Olude e Joana Batista. Meu pai
foi feito por Martiniano11, meu av no podia ser pai de santo dele, mas com meu av
ele aprendeu tudo o que soube. Antes de morrer, meu av explicou para meu pai o que
ele deveria fazer depois que ele morresse, os fundamentos.
No meu caso, minha participao ficou condicionada a outro fator, dada a
impossibilidade de eu passar pelos rituais prescritos. Essa participao se deve, em
grande medida, ao meu trabalho com eles. Minha participao foi resultado da mais-
valia que meu trabalho propiciou: quanto maior era meu trabalho, maior era a minha
participao. Nas primeiras obrigaes, assumi o papel de espectador no desenrolar
dos rituais, porm, aos poucos, essa observao foi se alterando paulatinamente. Se
pudssemos escalonar as atividades relacionadas ao trabalho, no desenrolar dos
rituais, diria que comecei no primeiro degrau, que consiste em depenar galinhas,
passando, posteriormente, em retirar seus axs (rgos dos animais especficos que so
retirados, aps o sacrifcio, e cozidos) e cortar o eran (se refere, simultaneamente, aos
9 Banho de ervas, que sempre so realizados antes das obrigaes. 10 Obrigao em que se cultua a cabea da pessoa no nag, para uma discusso em maior
profundidade sobre o assunto cf: CARAVALHO,1984; SEGATO, 1984; HALLOY, 2005; entre outros. 11 Martiniano Eliseu do Bonfim, importante sacerdote baiano falecido nos anos 40. Foi
importante colaborador de trs geraes de antroplogos. E considerado um dos ltimos babalas brasileiros.
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animais abatidos nos rituais e carne deles) em partes especficas. Conforme a pessoa
vai desempenhando bem essa funo, ela passa aos animais de quatro patas12, retira
seu couro, depois de mortos, separa o fato (vsceras) e prepara a carne, que ser
distribuda entre os presentes.
Durante as obrigaes, h, ainda, toda a preparao de comidas servidas aos
Eguns e orixs. Seguindo uma lgica anloga descrita para os animais, o trabalho de
preparo obedece a pressupostos de aprendizado, por etapas: das primeiras vezes,
confiado aos novatos a tarefa de cortar os vegetais e os legumes, com o tempo, so
encarregados de outras tarefas, como matar e limpar os caranguejos, peixes, cozinhar e
amassar o inhame, e, por fim, fazer comidas mais elaboradas, como o acaraj -
especialmente trabalhoso, pois preciso descascar o feijo fradinho, retirar a pele dele
da gua, moer com pimenta, cebolinha e camaro seco, bater a massa e fritar (sem
queimar) uma grande quantidade de bolinhos. Ofereo, com mais detalhes, o preparo
desse prato, porque, em certa medida, foi aps executar satisfatoriamente essa tarefa que
fui integrado ao corpo dos ogans da casa, que, em Recife, so responsveis pelo preparo
e oferecimento dos ali