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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAIS Programa de Ps-Graduao em Letras
Literaturas de Lngua Portuguesa
A POESIA DE ALBERTO CAEIRO LUZ DA FILOSOFIA DE MARTIN HEIDEGGER
Gabriela Lira Carneiro
Belo Horizonte
2010
Gabriela Lira Carneiro
A POESIA DE ALBERTO CAEIRO LUZ DA FILOSOFIA DE MARTIN HEIDEGGER
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Letras.
Orientador: Audemaro Taranto Goulart
Belo Horizonte 2010
FICHA CATALOGRFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais Carneiro, Gabriela Lira C289p A poesia de Alberto Caeiro luz da filosofia de Martin Heidegger
/ Gabriela Lira Carneiro. Belo Horizonte, 2010 101f. . Orientador: Audemaro Taranto Goulart Dissertao (Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de
Minas Gerais, Programa de Ps-Graduao em Letras Bibliografia. 1. Poesia portuguesa. 2. Pessoa, Fernando, 1888-1935. 3.
Heidegger, Martin, 1889-1976. 4. Metafsica. 5. Linguagem. 6. Ser. I. Goulart, Audemaro Taranto. II. Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Programa de Ps- Graduao em Letras. III. Ttulo.
CDU: 869.0-1
Gabriela Lira Carneiro
A poesia de Alberto Caeiro luz da filosofia de Martin Heidegger
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Letras.
____________________________________________________________
Audemaro Taranto Goulart (Orientador) PUC Minas
_____________________________________________________________
ngela Vaz Leo PUC Minas
________________________________________________________________
Flvio Luiz Teixeira de Souza Boaventura IFMG
Belo Horizonte, 18 de maio de 2010.
AGRADECIMENTOS
Agradeo ao professor e orientador Audemaro pelo incentivo, compromisso e
disponibilidade desde o primeiro momento. Sua pacincia, sabedoria, amizade e
cuidadosa anlise auxiliaram-me enormemente nessa trajetria. Agradeo tambm s
professoras Mrcia, Nazareth, Llia, Melnia e Suely pelas inesquecveis aulas. Aos
meus queridos colegas do curso de Ps-Graduao pela rica troca de experincias.
Capes pela bolsa concedida. PUC pela oportunidade. minha famlia e amigos pelo
apoio e incentivo. E a todos aqueles que de alguma maneira contriburam para a
realizao desse trabalho.
Se eu pudesse trincar a terra toda E sentir-lhe um paladar, Seria mais feliz um momento... Mas eu nem sempre quero ser feliz. preciso ser de vez em quando infeliz Para se poder ser natural...
Nem tudo dias de sol, E a chuva, quando falta muito, pede-se. Por isso tomo a infelicidade com a felicidade Naturalmente, como quem no estranha Que haja montanhas e plancies E que haja rochedos e erva... O que preciso ser-se natural e calmo Na felicidade ou na infelicidade, Sentir como quem olha, pensar como quem anda, E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, E que o poente belo e bela a noite que fica... Assim e assim seja...
Alberto Caeiro
RESUMO
O presente trabalho teve por objetivo estabelecer uma aproximao entre a poesia do
heternimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, e a filosofia de Martin Heidegger. A
premissa que embasou a pesquisa foi a idia de que tanto o poeta como o filsofo
estabelecem uma ruptura com a metafsica, ao proporem o regresso s coisas
mesmas. Nesse sentido, o segundo captulo procurou evidenciar que ambos os
autores rejeitam a configurao do pensamento ocidental e propem uma nova via
para se abordar o ser. O terceiro captulo visou a analisar a poesia de Caeiro, luz da
noo heideggeriana de linguagem, buscando assinalar os elementos que
confirmariam o posicionamento filosfico do poeta. O quarto captulo procurou
evidenciar a proximidade existente entre pensamento e poesia na obra de Caeiro. Esse
captulo pretendeu, ainda, explicitar mais um ponto de afinidade entre os dois autores,
que residiria na abordagem do ser humano, encarado enquanto ser-para-a-morte. Os
resultados da pesquisa mostram, enfim, que haveria uma proximidade entre o poeta
Alberto Caeiro e o filsofo Martin Heidegger, no sentido de que ambos privilegiam a
poesia como o local mais originrio do homem.
Palavras-chave: Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. Martin Heidegger. Metafsica. Poesia. Linguagem. Ser. Coisas mesmas. Originrio.
ABSTRACT
This study aimed at establishing a connection between the poetry of Fernando Pessoas
heteronym, Alberto Caeiro, and the philosophy of Martin Heidegger. The premise that
guided the research was the idea that both the poet and the philosopher establish a
break with metaphysics, while proposing a return to the things themselves. Thus, the
second chapter tried to show that the two authors reject the configuration of the
Western thought and propose an alternative way of approaching the being. The third
chapter aimed at analyzing the poetry of Caeiro, in the light of Heidegger's notion of
language, indicating the elements that would confirm the philosophical position of the
poet. The fourth chapter tried to show the proximity between thought and poetry in the
oeuvre of Caeiro. This chapter also intended to clarify another point of affinity between
the two authors, which would be the way of approaching the human being, regarded as
being-toward-death. The results show, in short, that there would be a proximity between
the poet Alberto Caeiro and the philosopher Martin Heidegger, in the sense that both
consider the poetry as the humans most originary place.
Key-words: Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. Martin Heidegger. Metaphysics. Poetry.
Language. Being. Things themselves. Originary.
SUMRIO
1 INTRODUO..... 9
1.1 Justificativa......... 9
1.2 Objetivos...... 17
1.2.1 Objetivo Geral...... 17
1.2.2 Objetivos Especficos.... 17
2 RUPTURA COM A METAFSICA 19
2.1 Histria da Metafsica...................................................................................... 19
2.2 A noo de physis........................................................................................... 23
2.3 A virada de Heidegger..................................................................................... 27
2.4 Eu no tenho metafsica, tenho sentidos................................................... 30
2.5 A via coincidente de Caeiro e Heidegger....................................................... 47
3 A LINGUAGEM COMO MORADA DO SER.......................................................... 49
3.1 Nunca fui seno uma criana que brincava................................................. 49
3.2 O jogo com a linguagem.................................................................................... 53
4 A VIZINHANA ENTRE POESIA E PENSAMENTO............................................. 72
4.1 Despe o meu ser cansado e humano........................................................... 86
4.2 O poeta e o filsofo: vizinhos na morada da linguagem................................ 92
5 CONCLUSO.......................................................................................................... 94
REFERNCIAS........................................................................................................... 97
9
1 INTRODUO
1.1 Justificativa
A riqueza e profundidade existentes na poesia de Fernando Pessoa abrem
espao para inmeras interpretaes. O vis filosfico um dos inmeros caminhos
que se pode percorrer nessa infinita tarefa hermenutica. Como o prprio poeta afirmou
em vida, sua obra foi estimulada pela filosofia: "Eu era um poeta impulsionado pela
filosofia, no um filsofo dotado de faculdades poticas (PESSOA, 1995, p. 23)". Em
sua atividade potica, portanto, Fernando Pessoa foi incitado por essa rea do
conhecimento que investiga os porqus de todas as coisas. Considerando isso, o
presente trabalho tem por objetivo evidenciar em que sentido as idias filosficas
presentes na obra do heternimo de Pessoa, Alberto Caeiro, e a prpria configurao
da obra como tal, se aproximam da filosofia do pensador contemporneo, Martin
Heidegger.
No contexto do sculo XX, o poeta portugus Fernando Pessoa desenvolveu
uma obra de carter inovador para sua poca. Pouco depois nesse mesmo sculo, na
Alemanha, o filsofo Martin Heidegger fez uma filosofia bastante perturbadora e indita.
Ambos, frutos de uma mesma poca, realizaram suas obras, cada um em sua maneira
de expresso, revelando idias similares no que diz respeito ao modo de compreender
o mundo. Cabe aqui apresentarmos essa similaridade entre os dois diferentes autores.
Fernando Pessoa, nascido em 1888, em Lisboa, considerado um dos maiores
poetas de lngua portuguesa. Tendo perdido o pai aos cinco anos de idade, o poeta
mudou-se com a famlia, em 1896, para a frica do Sul, em ocasio do segundo
casamento de sua me. Educado na lngua inglesa, Fernando Pessoa escreve nesse
idioma seus primeiros poemas. Ao retornar para a terra natal, porm, aos 17 anos, o
poeta entra em contato com a obra de Cesrio Verde e com os sermes do Padre
Antnio Vieira, impressionando-se muito e adentrando, assim, no universo da lngua
portuguesa. A partir de ento, o poeta passa a escrever tambm nesse idioma, de
10
modo que, posteriormente, confessar, nas palavras do semi-heternimo Bernardo
Soares: "a minha ptria a lngua portuguesa" (PESSOA, 1999, p. 255).
Alguns dos nicos livros publicados por Pessoa em vida, alm dos poemas
ingleses (Antinous, 35 Sonnets e English Poems), so Interregno e Mensagem, estes no idioma portugus. Dados o considervel tom nacionalista e a valorizao das
conquistas portuguesas, essa ltima obra se assemelha a uma epopia. Assinadas por
Pessoa ele mesmo, convecionou-se chamar essa produo de ortnima, enquanto
que outras criaes so assinadas e redigidas ao estilo prprio de seus heternimos.
Alm de Mensagem, outra obra ortnima relevante Cancioneiro, composta por poemas rimados e metrificados, na qual se destaca um dos poemas mais clebres de
Pessoa, Autopsicografia:
O poeta um fingidor. Finge to completamente Que chega a fingir que dor A dor que deveras sente. E os que lem o que escreve, Na dor lida sentem bem, No as duas que ele teve, Mas s a que eles no tm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razo, Esse comboio de corda Que se chama corao. (PESSOA, 1986, p. 314)
Fazendo jus a esse fingimento, o poeta destaca-se, ainda, pela grande criao
esttica da heteronmia. Pessoa desdobra-se em outras personalidades poticas que
escrevem em um estilo prprio, alm de possuirem uma personalidade bem definida e
uma trajetria de vida. Dentre os inmeros heternimos, privilegiaremos no presente
trabalho a poesia de Alberto Caeiro, considerado o mestre de todos eles e, cuja obra
parece guardar maior afinidade com a filosofia de Martin Heidegger.
Alberto Caeiro descrito por Fernando Pessoa nas seguintes palavras: Nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. No teve profisso, nem educao quase alguma, s instruo primria; morreram-lhe cedo o pai e a me, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos
11
rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-av. Morreu tuberculoso. (PESSOA, 2006, p. 14).
Destitudo de uma educao clssica, Caeiro encara o mundo com um olhar
ingnuo e no direcionado pela tradio, proclama-se antimetafsico e contra a ao
da inteligncia sobre a realidade, uma vez que, para ele, o pensamento reduz as coisas
a meros conceitos. De acordo com essa concepo, seus poemas possuem uma
linguagem simples e um vocabulrio pouco rebuscado, prprios de um campons. Os
versos livres e sem rimas destacam-se pela espontaneidade e naturalidade com que
parecem ser tecidos:
Creio no mundo como num malmequer, Porque o vejo. Mas no penso nele Porque pensar no compreender... O mundo no se fez para pensarmos nele (Pensar estar doente dos olhos) Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo. (PESSOA, 2006, p. 34).
Os outros heternimos mais conhecidos de Pessoa, dotados tambm de
personalidades peculiares, sero aqui destacados brevemente. So eles, lvaro de
Campos e Ricardo Reis, alm do semi-heternimo Bernardo Soares, o ajudante de
guarda-livros e autor do Livro do Desassossego. lvaro de Campos, segundo Pessoa,
nasceu em Tavira, teve uma educao vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Esccia para estudar Engenharia, primeiro mecnica e depois naval. Numas frias fez viagem ao Oriente de onde resultou o Opirio. Agora est aqui em Lisboa em inatividade. (PESSOA, 2006, p. 17).
Esse heternimo destaca-se por uma produo potica caracterizada por trs
fases distintas, apresentando uma curva evolutiva (COELHO, 1975, p. 66). Da
primeira fase destaca-se o poema Opirio, no qual o poeta faz uso da mtrica e da
rima, influenciado pelo decadentismo simbolista: Eu fingi que estudei engenharia./Vivi
na Esccia. Visitei a Irlanda./Meu corao uma avozinha que anda/Pedindo esmolas
s portas da alegria. (PESSOA, 2006, p. 17). Na segunda fase, utilizando o verso livre,
o poeta parece assumir uma tendncia futurista, exaltando as conquistas tecnolgicas
12
e exibindo uma vitalidade explosiva, como em Ode Triunfal: Ah, poder exprimir-me
todo como um motor se exprime!/Ser completo como uma mquina!/Poder ir na vida
triunfante como um automvel ltimo-modelo!(PESSOA, 1986, p. 879). Na terceira
fase, enfim, o heternimo apresenta uma tendncia melanclica e pessimista, como em
Tabacaria: No sou nada. /Nunca serei nada./No posso querer ser nada./ parte
isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. (PESSOA, 1986, p. 960). Desse
modo, lvaro de Campos configura-se como o heternimo que percorre uma trajetria
curvilnea do decadentismo, para a excitao narctica e de volta ao pessimismo. E,
assim, nessa ltima fase, o heternimo parece aproximar-se de Pessoa, ele mesmo,
pela melancolia, nostalgia, ceticismo e dor de pensar. Discpulo de Caeiro, confessa
no conseguir seguir seus preceitos: Meu mestre, meu corao no aprendeu a tua
serenidade./ Meu corao no aprendeu nada. (PESSOA, 2006, p. 18).
O heternimo Ricardo Reis um erudito, que valoriza a tradio e os clssicos.
Segundo Pessoa, Ricardo Reis nasceu no Porto. Educado em colgio de jesutas, mdico e vive no Brasil desde 1919, pois expatriou-se espontaneamente por ser monrquico. latinista por educao alheia, e um semi-helenista por educao prpria (PESSOA, 2006, p. 16).
Tambm discpulo de Caeiro, Ricardo Reis se diferencia do mestre pela
trajetria seguida: parece alcanar a simplicidade de alma sugerida por Caeiro pelo
vis do pensamento, ao passo que Caeiro instintivo e espontneo. Neoclssico, esse
heternimo valoriza a natureza, busca o equilbrio e aproxima-se dos esticos, cujo
ideal de felicidade baseia-se na serenidade de alma, alcanada atravs de um viver em
coerncia consigo mesmo e de acordo com a razo (HADOT, 1999, p. 188). Ricardo
Reis parece manifestar tal postura no estilo de seus poemas, que se destacam por um
rigor formal, pelo uso de um vocabulrio rebuscado e da mtrica:
Para ser grande, s inteiro: nada Teu exagera ou exclui. S todo em cada coisa. Pe quanto s No mnimo que fazes. Assim como em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive. (PESSOA, 2006, p. 16)
13
Bernardo Soares, considerado um semi-heternimo, o menos autonomizado,
por ser o mais prximo de Fernando Pessoa, que diz do mesmo: Sou eu menos o
raciocnio e a afetividade (COELHO, 1975, p. 79). Ajudante de guarda-livros e autor do
Livro do Desassossego, Bernardo Soares assemelha-se tambm a lvaro de Campos, pela melancolia, negatividade e intelectualizao da emoo: Em mim foi
sempre menor a intensidade das sensaes que a intensidade da conscincia delas.
Sofri sempre mais com a conscincia de estar sofrendo que com o sofrimento de que
tinha conscincia. (PESSOA, 1999, p. 123).
Como podemos observar, a riqueza potica de Fernando Pessoa extravasa os
limites impostos por uma personalidade definida e nica, transbordando para outras
individualidades e estilos. O conceito tradicional de uma entidade sujeito bem
delimitada no d conta de abarcar tamanha potncia. Assim, a diviso do poeta
portugus em mltiplas personalidades j aponta por si s para uma ruptura com a
noo tradicional de sujeito, entendido como uma entidade claramente definida e
separada do mundo.
O incio do modernismo marca essa quebra com a idia cartesiana de um sujeito
separado do resto do mundo, e a se insere Fernando Pessoa como um dos
precursores do movimento em Portugal. Seria foroso, entretanto, enquadrar um poeta
de caractersticas to peculiares numa corrente especfica. Contudo, podemos destacar
alguns elementos dessa tendncia literria do incio do sculo XX que parecem estar
presentes na obra do poeta.
Uma das caractersticas da poesia moderna a ruptura com paradigmas de
rimas e de mtrica e a introduo do verso livre. Podemos dizer que a poesia de
Alberto Caeiro, marcada por uma escrita livre, por ele prprio assumida, quando diz:
No me importo com as rimas(PESSOA, 2006, p. 53), guarda algumas semelhanas
com a poesia moderna. Ricardo Reis tambm parece identificar tal caracterstica em
sua apreciao da obra do mestre: Ele escolheu, como se v, um verso que, embora
fortemente pessoal como no podia deixar de ser , ainda o verso livre dos
modernos. (PESSOA, 2006, p. 22). Podemos notar, assim, que pelo menos parte da
poesia pessoana possui alguns elementos tpicos do modernismo, isso sem
considerarmos a poesia de lvaro de Campos, que faz uso tambm de versos livres e
14
passa ainda por uma fase futurista. A prpria questo da heteronmia era algo popular
entre os escritores do incio do sculo XX, mas nenhum autor levou essa tendncia to
a srio como o fez Pessoa, que conferiu a seus heternimos uma personalidade quase
real, atribuindo a cada um deles uma biografia, religio, posio poltica e outras
caractersticas. O modernismo, assim, se faz presente na obra de Pessoa, sem que
determine o estilo do poeta em geral.
Autor inovador, transgressor e indeterminvel, Fernando Pessoa destaca-se,
assim, no contexto do sculo XX, apresentando uma obra potica singular e
oferecendo novas perspectivas para a compreenso do sujeito.
Convm agora destacarmos brevemente a produo do filsofo Martin
Heidegger. Nascido em 1889, um ano aps o poeta portugus, Martin Heidegger
considerado um dos pensadores fundamentais do sculo XX. Sua obra caracteriza-se
por um elemento principal: a apreciao de uma questo h tempos esquecida pela
tradio metafsica, a questo do sentido do ser. Ser e Tempo, sua principal obra, consiste, segundo o prprio autor, em um estranho tratado, que, inclusive, permaneceu
para sempre inacabado de certa forma, sinalizando a infinitude da questo a que ele
se propunha trabalhar.
Nessa obra, o filsofo lana a questo do sentido do ser, que viria a ser
elucidada no conjunto total da obra, originalmente prevista em duas partes. Mas, o
texto de fato publicado limitou-se a duas sees do que seria a primeira parte, que
tinham funo preparatria para a verdadeira meta da investigao. Nessa etapa
preliminar, que acabou por se consisitir em toda a obra, Heidegger tem por objeto o
homem encarado como o nico ente que se coloca a questo do ser, a quem o
filsofo chamou de Dasein, para diferenciar-se das concepes vigentes acerca do
sujeito. O homem nesse sentido considerado do ponto de vista do seu ser;
encarado, assim, como um ser-no-mundo, temporal e histrico, no mais como uma
entidade limitada, a qual convencionou-se chamar de sujeito e ao qual se contraporia o
mundo, enquanto objeto. Essa perspectiva na abordagem do homem, entendido como
Dasein, foi denominada Ontologia fundamental.
Dado o enfoque no homem, essa Ontologia fundamental de Heidegger foi bem
recebida no meio das tendncias existenciais da poca. E, por isso, Heidegger recebeu
15
o ttulo de filsofo existencialista, atribuio esta que rejeita expressamente na Carta Sobre o Humanismo, alegando que seu foco principal era de fato a questo do ser e que a etapa de apreciao do Dasein no passava de uma fase preparatria para essa
meta principal.
Justificando porque suprimira a segunda parte prevista de Ser e Tempo, na qual abordaria diretamente a questo do ser, o filsofo afirma: Esta seo no foi publicada
porque o pensamento no conseguiu exprimir, de maneira suficiente, uma tal viragem
no idioma da metafsica (HEIDEGGER apud NUNES, 1992, p. 12). Confessado isso, o
filsofo toma outro caminho, assumindo uma postura diferente, que se manifesta no
estilo e gnero de seus escritos, de cunho mais potico. Por essa razo, convencionou-
se separar em duas fases distintas seu pensamento.
Na segunda fase de sua produo, Heidegger prope uma mudana de
perspectiva na proposio da questo do ser, que deixa de ser o foco de uma
especulao terica e transforma-se no alvo de uma prtica meditante, destinada a
evidenci-lo atravs do plano da linguagem. Surgira um segundo Heidegger, portanto,
dificilmente classificvel entre poeta e mstico, a quem no mais colaria o nome de
filsofo e para quem a prpria Filosofia, identificada Metafsica, tornara-se suspeita.
(NUNES, 1992, p. 13).
A obra de Heidegger, assim, marca uma virada na tradio metafsica. O filsofo
retoma um problema h muito esquecido por essa tradio e trabalha numa
perspectiva diferente, utilizando um vocabulrio prprio e adotando, na segunda fase
de seu pensamento, um estilo que privilegia a linguagem e o dizer potico em
detrimento da especulao filosfica. Esse pensador, assim, acabou por influenciar
diversas correntes, tais como o ps-estruturalismo e o descontrutivismo de Derrida, que
privilegiam a linguagem como sendo anterior ao sujeito. Essas linhas, em posio de
destaque na teoria literria atual, caraterizam-se pela recusa em atribuir ao sujeito
qualquer privilgio anterior, priorizando, ao invs, uma anlise das formas simblicas,
da linguagem, encaradas, essas sim, como constituintes da subjetividade, e no o
contrrio.
Com essa breve apresentao dos dois autores, esperamos que j tenha sido
possvel notarmos algumas afinidades entre ambos, que no ocorrem, no entanto, a
16
partir de uma influncia direta, posto que no h indcios de que um tenha tido acesso
obra do outro. Contemporneos; porm, no conterrneos, esses dois autores
marcaram uma virada na tradio e introduziram uma nova perspectiva na abordagem
do sujeito e da linguagem, elementos esses que o presente trabalho pretende abordar.
O foco das investigaes recair sobre o conjunto potico do heternimo Alberto
Caeiro, a saber, O Guardador de Rebanhos, O Pastor Amoroso e Poemas
Inconjuntos. De Martin Heidegger, as obras principais a serem consideradas sero Ser e Tempo e A caminho da linguagem, cada uma delas produzida em uma fase diferente da trajetria do filsofo. A partir da anlise desses textos, acreditamos que
ser possvel compreender a proximidade que parece se estabelecer entre a filosofia
heideggeriana e a poesia de Alberto Caeiro.
Na anlise da obra de Caeiro sob um vis heideggeriano, pretendemos ter o cuidado de no privilegiar a teoria em detrimento do texto potico, fazendo jus idia
defendida por ambos, de que a teorizao no deve ser priorizada em detrimento do
fenmeno, que , de fato, o mais originrio, conforme ser aqui explicitado. Com essa
cautela, inclumos na base terica dessa anlise, alm de Heidegger e de intrpretes
de Fernando Pessoa, alguns nomes de destaque na teoria literria contempornea,
como Blanchot, e Agamben. As obras Passagem para o potico e Hermenutica e Poesia, do consagrado intrprete de Heidegger, Benedito Nunes, tambm constituem um dos embasamentos da presente pesquisa.
O trabalho compe-se, portanto, de cinco captulos, incluindo a presente
introduo e a concluso. O segundo captulo, Ruptura com a Metafsica, aborda um
primeiro ponto de aproximao da filosofia que permeia a obra de Caeiro com o
pensamento do filsofo Martin Heidegger: a inteno partilhada por ambos de
distanciar-se da metafsica. Procuramos mostrar nessa etapa que a posio assumida
por ambos os autores parece marcar uma virada no percurso do pensamento racional
do Ocidente.
No terceiro captulo, A linguagem como morada do ser, pretendemos mostrar
em que sentido a prpria forma da poesia do mestre parece confirmar aquilo que ele
defende, a partir da noo heideggeriana de linguagem como abrigo do ser. Nesse
17
sentido, buscamos mostrar que a obra de Alberto Caeiro guarda uma certa coerncia,
na medida em que parece configurar-se como um jogo com a linguagem.
No quarto captulo, A vizinhana entre poesia e pensamento, buscamos
evidenciar de que modo a noo heideggeriana da proximidade entre pensamento e
poesia no terreno da linguagem parece se configurar na obra de Caeiro e em que
sentido se estabelece a aproximao entre o poeta e o filsofo Martin Heidegger.
Buscamos, ainda nessa parte, trabalhar as noes de ser humano e morte em Caeiro,
as quais parecem constituir mais um ponto de afinidade de sua poesia com o
pensamento do filsofo alemo, para quem o homem entendido enquanto ser-para-a-
morte.
Na concluso, visamos refletir sobre os resultados decorrentes da pesquisa,
mostrando que o lugar de retorno para o qual ambos os autores parecem se destinar
a prpria poesia, reconhecida como o lugar mais originrio do homem.
1.2 Objetivos 1.2.1 Objetivo geral:
Investigar a proximidade existente entre a poesia do heternimo de Fernando
Pessoa, Alberto Caeiro, e a filosofia de Martin Heidegger, mostrando que ambos
propem um novo caminho para a tradio ocidental, ao posicionarem-se contra a
metafsica.
1.2.2 Objetivos Especficos:
18
- Investigar em que sentido a obra de Alberto Caeiro e a filosofia de Martin Heidegger
apresentam um ponto em comum no propsito de ruptura com a metafsica.
- Mostrar, a partir da anlise da forma de sua poesia e luz da noo heideggeriana de
linguagem como morada do ser, como ocorre a efetivao daquilo que Alberto Caeiro
prope.
- Evidenciar como se realiza na obra de Alberto Caeiro uma experincia com a
linguagem, que, por sua vez, seria o local mais originrio, numa concepo
heideggeriana.
- Mostrar em que sentido se estabelece na obra de Alberto Caeiro o dilogo da poesia
com o pensamento.
- Investigar, a partir da noo heideggeriana da vizinhana entre poesia e pensamento
na morada da linguagem, em que sentido Alberto Caeiro realiza o retorno a um local
mais originrio.
- Analisar as noes de ser humano e morte em Caeiro, mostrando sua proximidade
com a concepo heideggeriana de homem, entendido enquanto ser-para-a-morte.
- Mostrar a aproximao entre o filsofo alemo e o poeta no sentido de que ambos
parecem conceber a poesia como o local da origem.
19
2 RUPTURA COM A METAFSICA
Como j explicitado na introduo do presente trabalho, pretendemos evidenciar
nessa primeira parte como se estabelece a ruptura com a metafsica nas obras de
Martin Heidegger e Alberto Caeiro. A fim de mostrarmos essa recusa tradio por
parte de ambos, ser necessrio, primeiramente, definirmos com preciso o conceito
de metafsica e expormos como se deu a prevalncia desse tipo de pensamento na
histria do ocidente. Como a histria da metafsica se mistura com a histria da
filosofia, esta tambm ser brevemente considerada. Em seguida, trabalharemos a
noo de physis, na maneira como foi cunhada na Antiguidade e exploraremos a
mudana na abordagem desse termo, como uma conseqncia do pensamento
metafsico. Por fim, mostraremos de que maneira Alberto Caeiro e Martin Heidegger
propem uma via que se diferencia da metafsica e, conseqentemente, aproxima-se
da physis.
2.1 Histria da Metafsica
De acordo com o dicionrio de filosofia de Andr Lalande, a metafsica consiste
em uma cincia especulativa que trata das coisas imateriais, como o ser, Deus e os
seres intelectuais feitos sua imagem (LALANDE, 1996, p. 666). Palavra originria do
grego, metafsica compe-se da juno dos termos meta, que significa alm de, e
physis, que corresponde natureza. Assim, enquanto a Fsica estuda a natureza, a
metafsica aborda aquilo que est alm da natureza aquilo que no matria.
Pressupondo a existncia de uma realidade aparente oposta a uma realidade em si,
a metafsica resume-se, portanto, ao conhecimento daquilo que as coisas so em si
mesmas, por oposio s aparncias que elas apresentam (LALANDE, 1996, p. 666).
Conhecimento abstrato, proveniente da razo, fazer metafsica no outra coisa
seno sistematizar, quer dizer, organizar idias (LALANDE, 1996, p. 666).
20
Esse termo surgiu por volta de 50 a.C., quando Andrnico de Rodes (sculo I
a.C.), ao organizar a coleo da obra de Aristteles, deu o nome de ta met ta physik
(Metafsica) ao conjunto de textos que se seguiam aos da fsica (LALANDE, 1996, p.
666). Nessa obra, Aristteles conferiu a essa disciplina o mais elevado posto do
conhecimento terico, uma vez que consistia na cincia dos primeiros princpios e das
primeiras causas (NUNES, 1992, p. 35).
Na Contemporaneidade, porm, essa cincia passou a ser encarada
criticamente. Filsofos como Nietzsche e Heidegger identificaram na tradio
metafsica uma valorizao do mundo racional e o consequente desprezo do mundo
que se ope a este, aquele que se oferece aos sentidos. Observaram tambm que a
arte fora relegada a um plano inferior, em comparao com o conhecimento racional.
De acordo com Nietzsche, a metafsica teve incio com Scrates, filsofo que
primeiro instituiu a razo como forma de acesso privilegiado ao conhecimento e
estabeleceu uma separao entre corpo e alma e entre aparncia e essncia. No
tendo escrito uma linha sequer, temos acesso s obras de Scrates por meio de outros
pensadores. Os dilogos de Plato, por exemplo, retratam Scrates como um mestre
que no valorizava os prazeres dos sentidos, priorizando, entre as maiores virtudes, o
belo, o bom e o justo. Com essa concepo socrtica, portanto, tem incio uma
priorizao dos conceitos e valores transcendentais (desenvolvidos pela razo) sobre a
matria (captada pelos sentidos). O conhecimento racional passa a ter maior valor que
as impresses advindas dos sentidos, adquirindo, assim, hegemonia.
Plato desenvolve o pensamento de Scrates numa obra principalmente
composta por dilogos. O filsofo cria uma doutrina que concebe a existncia de um
mundo das idias, oposto ao mundo em que vivemos, que seria o mundo das sombras
(a realidade sensvel). Tal concepo, essencialmente metafsica, ilustrada atravs
da Alegoria da Caverna, no Livro VII da Repblica. Nessa alegoria, alguns prisioneiros vivem acorrentados em uma caverna, de onde s podem ver as sombras projetadas
por seres e objetos reais que esto do lado de fora. Um deles, porm, liberta-se dessa
caverna e comea a ver os objetos reais, tais como so. A princpio, tendo sua vista
ofuscada, esse prisioneiro no consegue enxergar de fato tais objetos, mas com o
tempo, sua viso se adapta nova realidade. Feliz com a mudana, ele se lembra de
21
seus companheiros na caverna e decide resgat-los. De volta caverna, o homem tem
seus olhos ofuscados at se adaptar novamente com a escurido. Enquanto passa por
esse perodo de adaptao, seus companheiros concluem que, aps ter de l sado,
voltara com a vista perdida e decidem que, caso ele tentasse resgat-los e tir-los dali,
o matariam.
A alegoria parece ilustrar, portanto, a concepo metafsica de Plato, segundo
a qual, a realidade aparente em que vivemos, captada pelos sentidos, no passa de
um mundo das sombras, que seria um reflexo imperfeito da verdadeira realidade, o
mundo das idias, acessvel somente atravs da razo. A alegoria platnica marca,
assim, a origem de uma viso de mundo dicotmica: mundo das essncias em
contraposio ao mundo das aparncias; alma versus corpo; e sujeito versus objeto. O
filsofo Heidegger v no mito da caverna:
a origem da concepo, central para a metafsica ocidental, de conhecimento como um processo de adequao do olhar ao objeto, sendo que a verdade se caracteriza exatamente pela correspondncia entre o intelecto e a coisa visada, como posteriormente na clebre frmula aristotlica e medieval (MARCONDES, 2004, p. 66).
Tem incio, assim, a teoria do conhecimento, fundada na premissa de uma
separao entre dois plos distintos. Originalmente destinada ao estudo de tudo aquilo
que no se apresenta aos sentidos (aquilo que se encontra alm da natureza), a
metafsica acabou por limitar-se, enfim, teorizao do conhecimento, ou
epistemologia, segundo Heidegger, na medida em que concentrou seus estudos na
representao que o homem faz da realidade, pressupondo uma separao entre
sujeito e objeto, entre homem e natureza. E a verdade passou a ser entendida to-
somente como uma adequao do objeto com o intelecto. A pergunta O que a
realidade? foi substituda pela questo O que e como podemos conhecer?. A teoria
do conhecimento tornou-se, assim, condio da metafsica.
De acordo com filsofos contemporneos, portanto, com Scrates e Plato
que tem incio a metafsica. Embora Aristteles, discpulo de Plato, tenha se
diferenciado do mestre, ao recusar a existncia de um mundo das idias, ele
permaneceu no terreno metafsico, de acordo com Heidegger, por conceber a
22
existncia de uma substncia imutvel como causa primeira, alm de introduzir o
princpio da no-contradio e por considerar a noo de verdade como
correspondncia (do objeto com a idia). O pensamento medieval tambm conservou
as bases metafsicas introduzidas pelos gregos, como veremos a seguir.
Na Idade Mdia, a configurao metafsica do pensamento se manteve na
medida em que as especulaes filosficas concebiam ainda a existncia de uma
realidade transcendente quela acessvel pelos sentidos. Realidade esta, vislumbrada
por meio da f. A diferena principal introduzida nessa poca foi, ento, a eleio da f
como caminho para o conhecimento verdadeiro.
Com o Cristianismo, assim, a metafsica assumiu uma roupagem diferente, mas
ainda se manteve presente a partir da pressuposio de um mundo alm e de uma
doutrina de valores. Os dois grandes eixos sobre os quais a filosofia medieval
desenvolveu-se foram Plato e Aristteles. Agostinho e Toms de Aquino destacaram-
se pela produo de uma filosofia que buscava coincidir as esferas f e razo, sendo
que o primeiro o fez ao estilo platnico e o segundo tomou por base os preceitos de
Aristteles.
Agostinho parece aderir ao estilo platnico, no s pela forma de dilogo de
parte de sua obra, como pela prpria maneira de conceber a realidade. O filsofo da
patrstica concebe um mundo divino que se assemelha ao mundo das idias de Plato.
Segundo essa teoria, Deus quem ilumina a razo, possibilitando ao homem o
conhecimento das verdades eternas: Compreender para crer, crer para compreender.
(COTRIM, 2002, p. 118).
J Toms de Aquino, filsofo da escolstica, elaborou os princpios da doutrina crist a partir do pensamento de Aristteles. Ele se utilizou das causas aristotlicas
para provar a existncia de Deus, entendido como o ser necessrio e como a causa
primeira eficiente (COTRIM, 2002, p. 126).
Segundo Heidegger, embora outras doutrinas tenham-se feito presentes na
Idade Mdia, todas elas tiveram em comum o pressuposto fundamental metafsico, que
compreende a realidade de forma dicotmica e privilegia a questo do conhecimento
sobre todas as outras.
23
Posteriormente, Descartes, considerado o pai da modernidade, instaurou a era
da subjetividade, com a clebre frase penso, logo existo (DESCARTES, 1999, p. 62).
Concebendo ainda corpo e alma, sujeito e objeto como esferas separadas, o filsofo
privilegiou o conhecimento racional como forma de acesso verdade, inaugurando, assim, o racionalismo da idade moderna. Ele recomendava que desconfissemos das
percepes sensoriais, responsveis pelos freqentes erros do conhecimento humano
e defendia que o verdadeiro conhecimento das coisas deveria ser advindo do trabalho
lgico da mente.
Kant destacou-se tambm no racionalismo, sendo que a questo central sobre a
qual se desenvolveu seu pensamento foi o problema do conhecimento humano, cujas
bases foram estabelecidas na Crtica da Razo Pura. Concebendo uma diferena entre fenmeno e coisa em si, Kant acredita que o homem jamais pode ter acesso
coisa em si, posto que est subordinado ao instrumental da mente que lhe permite
conhecer. O sujeito s tem acesso ao objeto por intermdio desse instrumental, que lhe
aplica noes a priori (inatas), como por exemplo, as de espao e tempo (KANT, 1999,
p.72).
Depois de Kant, filsofos como Schiller, Nietzsche e Heidegger identificaram nas
bases do pensamento ocidental uma concepo que polariza homem e natureza,
culminando na racionalizao tecnolgica do mundo moderno. Encarando criticamente
a metafsica, eles compreendem que seu surgimento coincide com a desvinculao do
homem com relao physis universal:
O ato de nascimento da Filosofia como Metafsica, firmada nos dilogos platnicos, e consolidada nos tratados aristotlicos, assinala o incio de uma descontinuidade em relao physis, que permear toda a histria do ser at nossos dias (NUNES, 1992, p. 217).
2.2 A noo de physis
Crtico da racionalidade tecnolgica e da conseqente instrumentalizao do
mundo natural, Heidegger tenta encontrar nas origens do pensamento ocidental uma
24
concepo de natureza que se diferencie da noo metafsica. Ele se atm, assim, ao
termo physis, conforme era abordado pelos filsofos pr-socrticos.
Heidegger encontra, ento, nas razes da tradio filosfica, uma compreenso
originria desse termo posteriormente traduzido por natureza. Chamados por
Aristteles de physilogos, os pr-socrticos concebiam a physis como o princpio de
constituio de toda e qualquer realidade, indicando aquilo que:
por si brota, se abre, emerge, o desabrochar que surge de si prprio e se manifesta neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Trata-se, pois, de um conceito que nada tem de esttico, que se caracteriza por uma dinamicidade profunda, gentica. (BORNHEIM, 2001, p. 12).
Diferentemente da concepo corrente de natureza, a physis abrangia toda a
realidade, sendo causa de si prpria num movimento contnuo e ininterrupto. Anterior
configurao da metafsica, assim, o pensamento dos pr-socrticos tinha por enfoque
aquilo que se mostra, sendo que toda a realidade era compreendida na noo de
physis, sem que houvesse a concepo de um mundo parte:
A physis no designa precipuamente aquilo que ns, hoje, compreendemos por natureza, estendendo-se, secundariamente ao extranatural. Para os pr-socrticos, j de sada, o conceito de physis o mais amplo e radical possvel, compreendendo em si tudo o que existe. physis pertencem o cu e a terra, a pedra e a planta, o animal e o homem, o acontecer humano como obra do homem e dos deuses, e, sobretudo, pertencem physis os prprios deuses. (BORNHEIM, 2001, p. 14)
Heidegger compreende deste modo, que antes do esvaziamento do conceito
convertido em natura, a physis coincidia com o ser. Apropriando-se dessa noo pr-
socrtica de physis, o filsofo diz que ela o prprio ser graas ao qual o ente torna-
se e permanece observvel, se afirmando como o aparecer, como a presena
manifesta (HEIDEGGER, 1987, p. 45).
Alm da coincidncia entre ser e physis, outro elemento importante encontrado
nos pr-socrticos por Heidegger foi o parentesco que a noo de physis mantinha
ainda com a noo originria de verdade. O filsofo, assim:
25
se refere ao sentido do Ser como aquilo que encoberto, inquietava os filsofos antigos e mantinha-se inquietante. O encoberto diz respeito ao Ser em seu jogo de s se dar retirando-se; jogo este que move e inquieta o pensamento grego, fazendo-o inaugurar-se. A significativa referncia mantinha-se inquietante conduz-nos a entender que, se o Ser inquieta e mantm-se inquietante, implica que no h no mbito desse pensamento uma pretenso em manipular o que inquieta para esgot-lo, determin-lo. O Ser, o que inquieta, afirmado em seu frmito, em seu mistrio. Pensar significa jogar o seu jogo. (...) Esta a experincia pr-socrtica do Ser como physis, como o vigor imperante que emerge, eclode, possibilitado pela dimenso do ocultamento. Esta dinmica de emergncia-ocultamento pensada pelos pr-socrticos como a verdade do Ser, como alethia. (RIBEIRO, 2003, p. 196)
Enquanto alethia, ento, a verdade era entendida como o prprio movimento
de desvelamento e velamento dos fenmenos. A verdade era j a prpria realidade: a
physis. Heidegger privilegia, assim, essa noo pr-socrtica como a mais originria e
autntica em comparao com a noo platnica e aristotlica, que compreende a
verdade como uma adequao da realidade com a idia.
Dessa forma, para o filsofo contemporneo, a noo de verdade instituda pela
metafsica foi a raiz da ruptura que ocorreu em relao physis e, ainda, a fonte do
desprezo pela arte, que passou a ser entendida como mera aparncia ou fingimento. A
transcendncia fundada pela metafsica, oposta forma de pensar dos pr-socrticos,
estabeleceu, assim, uma rede de inmeras dualidades, que acabou culminando na
instrumentalizao da natureza e tambm na desvalorizao da arte, entendida como
criao fantasiosa e, por isso, indigna de credibilidade.
Convm lembrarmos, porm, que Heidegger no nega a validade da noo de
verdade como adequao; ela vlida e funciona, conforme o desenvolvimento da
cincia vem ratificando. Ocorre que, para o filsofo, essa noo derivada de um
sentido mais originrio que ficou esquecido, aquele dos pr-socrticos, que
consideravam a verdade enquanto desvelamento, na medida em que se atinham ao
mostrar dos fenmenos.
Esses filsofos originrios, portanto, ainda estavam prximos da physis,
considerando-a o elemento explicativo do universo. Prximos tambm do mito, seus
fragmentos de natureza enigmtica possuam um carter potico e alheio lgica.
Porm, essa vinculao entre a filosofia e o mito, viva entre os pr-socrticos, acabou
26
por ser destruda pela lgica racional de Scrates e Plato, que impuseram a noo de
verdade enquanto adequao, segundo as leituras de Nietzsche e Heidegger.
Quando Plato acusa os poetas de falsrios e os expulsa de sua Repblica
Ideal, ele est lanando mo desse conceito derivado de verdade. Para o filsofo
grego, o discurso da poesia fantasioso, no obedece lgica do pensamento e, por
isso, est afastado da verdade, que consiste na adequao da coisa com a idia. Nada mais contrrio filosofia pr-socrtica e de Heidegger (que nela se
inspirou) do que essa noo platnica de verdade e arte. Para o filsofo alemo, a arte
o lugar privilegiado no qual o ser se desvela e vela num movimento similar ao da
physis, terreno da verdade, entendida enquanto alethia.
Na leitura heideggeriana, portanto, a mudana no conceito de verdade,
instaurada por Scrates e Plato, assinala o incio da epistemologia, alm do
conseqente esquecimento do ser e da desvinculao entre o homem e a physis. O
foco desviou-se do fenmeno e recaiu sobre o conhecimento:
Constitudo como met t phisik esse pensamento ultrapassa o horizonte de manifestao dos entes para ascender ao reino das idias e dos conceitos procura da essncia, o universal e necessrio que est fora da coisa. Met t phisik tambm o salto por cima e para alm da reunio originria da physis, onde esto tanto o imanente quanto o transcendente, o ente e o ser. o movimento que, iniciado na Grcia sob um conjunto complexo de contingncias histricas e culturais, criou uma racionalidade vigorosa que permitiria a inveno de dois modelos de pensamento baseados no conceito e na anlise: a cincia moderna e a filosofia. (ANDRADE, 2006, p. 7).
Portanto, a abordagem da physis, antes realizada pelos pr-socrticos, foi
substituda por uma abordagem do sujeito do conhecimento e a ontologia foi, assim,
substituda pela epistemologia. Desse desvio de foco que se configuraram a ruptura
com a physis, a desvalorizao da arte e o esquecimento do ser, apontados por
Heidegger. E justamente contra essa tendncia que o filsofo se posiciona, buscando
a fenomenologia como uma via de retorno s coisas mesmas, como veremos a
seguir.
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2.3 A virada de Heidegger
no livro Ser e Tempo que Heidegger lana a questo sobre o sentido do ser, a qual foi esquecida pela tradio metafsica ocidental, como o filsofo expressa na
seguinte passagem: No solo da arrancada grega para interpretar o ser, formou-se um dogma que no apenas declara suprflua a questo sobre o sentido do ser como lhe sanciona a falta. Pois se diz: ser o conceito mais universal e o mais vazio. Como tal, resiste a toda tentativa de definio. (HEIDEGGER, 2000, p. 27).
Na viso heideggeriana, essa questo permaneceu obscura na tradio
filosfica devido a uma srie de preconceitos que impediram um acesso mais radical ao
problema. Esses preconceitos, segundo o filsofo, so em nmero de trs. O primeiro
deles diz que o ser o conceito mais universal e, portanto, o mais vazio de
determinao. O segundo afirma que o ser no pode ser definido porque qualquer
definio pressupe o uso da palavra , de forma que para definir o ser seria preciso
usar o mesmo termo que se quer definir. O terceiro diz que o ser um conceito
evidente por si mesmo e, por isso, no requer nenhuma explicao. Tais preconceitos
guardam no fundo um erro metodolgico que consiste na forma de se colocar a
questo.
Essa questo no deve ser colocada em torno do conceito de ser, mas, antes,
acerca do sentido do ser. Desse modo, a questo exige uma diferente estruturao: ao
invs do formato o que o ser?, Heidegger prope o formato qual o sentido do
ser?. Assim, o filsofo prope a busca pelo sentido do ser e no pelo seu conceito.
Sentido este que no teorizvel, mas que se manifesta no prprio movimento de
velamento e desvelamento. Longe de aprisionar o ser numa teoria, ele deve ser
afirmado em seu mistrio, pois pens-lo deve significar jogar o seu jogo. O sentido do
ser para Heidegger, assim, abordado segundo uma dinmica de emergncia-
ocultamento, noo essa j pensada pelos pr-socrticos como a verdade do ser,
como alethia. (RIBEIRO, 2003, p. 196).
28
A fim de abordar o ser, portanto, o filsofo prope como mtodo a
Fenomenologia, entendida como uma cincia, cujo foco de investigao so as coisas
naquilo que elas se mostram a partir de si mesmas. Nas palavras do filsofo:
A palavra fenomenologia exprime uma mxima que se pode formular na expresso s coisas em si mesmas! por oposio s construes soltas, s descobertas acidentais, admisso de conceitos s aparentemente verificados, por oposio s pseudoquestes que se apresentam, muitas vezes, como problemas, ao longo de muitas geraes (HEIDEGGER, 2002, p. 57).
Assim, Heidegger parece propor com o mtodo fenomenolgico (herdado do
filsofo Husserl, de quem foi assistente), um retorno s coisas mesmas, retirando do
campo da reflexo filosfica as construes puramente ideolgicas e as especulaes
abstratas. Com a fenomenologia, Heidegger pretende recuperar toda a riqueza daquilo
que se oferece na experincia e na percepo. O pressuposto bsico que orienta essa
prtica a concepo de que o fenmeno no , originalmente, uma simples
aparncia, qual se contraporia uma essncia, como a metafsica tradicional
colocou. Mas, ao contrrio, fenmeno o prprio ente se mostrando como tal, a partir
de si mesmo: Deve-se manter como significado da expresso fenmeno o que se
revela, o que se mostra em si mesmo (...) os fenmenos constituem a totalidade do
que est luz do dia ou que se pode pr luz (HEIDEGGER, 2002, p. 58). E esse
mostrar dos fenmenos corresponde verdade em sua acepo mais originria,
enquanto alethia, ou seja, desvelamento.
Com essa compreenso de fenmeno, o filsofo abre um novo campo filosfico
no qual emerge uma diferente concepo sobre a relao entre sujeito e objeto
(mundo). A tradicional separao entre essas entidades superada em Heidegger, que
concebe o ser-humano como ser-no-mundo, ou seja, como um ser inserido em seu
contexto e ambiente.
Segundo Heidegger, a expresso composta ser-no-mundo, j na sua
cunhagem, mostra que pretende referir-se a um fenmeno de unidade (HEIDEGGER,
2002, p. 90). O homem no mais entendido como uma conscincia separada do
29
mundo, como no idealismo transcendental kantiano1, mas como um sujeito, cujo modo
originrio de ser a participao nesse mundo. Nas palavras do filsofo, mundo no
determinao de um ente que o ser-a2 em sua essncia no . Mundo um carter do
prprio ser-a (HEIDEGGER, 2002, p. 105). Desse modo, estar no mundo um modo
de ser do homem, do qual ele no pode jamais escapar.
Com essa chamada para a fenomenologia, portanto, Heidegger rompe com o
postulado metafsico de uma separao radical entre sujeito e objeto, propulsor de
inmeras teorizaes e abstraes. E, ainda, desvincula-se da noo de verdade
enquanto adequao, se atendo quilo que vivido na experincia, no mundo da vida,
que , de fato, o originrio, como expressa o filsofo na passagem a seguir: antes que possamos elaborar uma teoria do conhecimento e antes que constituamos algo como objeto de conhecimento, h o ser e nossa participao no ser (). Antes de qualquer investigao positiva por parte das cincias, haveria o pressuposto dessa relao originria (HEIDEGGER apud BONAMIGO, 1993, p. 113).
Com sua fenomenologia, assim, Heidegger rompe com o projeto epistemolgico
tradicional e instaura a concepo do mundo da vida como o solo originrio da
conscincia e do pensamento a vida como sendo anterior ao pensamento.
Com essa breve explicitao da filosofia de Heidegger, acreditamos que ser
possvel visualizarmos a proximidade que se estabelece entre sua concepo de
mundo e a de Alberto Caeiro, heternimo de Fernando Pessoa.
1 Na filosofia de Kant, a relao entre sujeito e objeto dicotmica, ou seja, ambos so tidos como duas entidades separadas. O sujeito projeta suas categorias do entendimento para conhecer o objeto que lhe dado na experincia. E, desse modo, o sujeito conhece o objeto em sua aparncia, mas jamais em sua essncia. A essa forma de conceber a realidade, convencionou-se chamar Idealismo Transcendental. 2 O Ser-a, na terminologia heideggeriana, pode ser entendido como o sujeito, o homem. O filsofo introduz esse novo termo de modo a fugir de conceitos sedimentados na tradio filosfica que trazem consigo uma srie de preconceitos e concepes. O filsofo cria uma linguagem prpria para evitar termos e conceitos viciados da tradio metafsica.
30
2.4 Eu no tenho metafsica, tenho sentidos
Criticando as noes de realidade transcendente, oposio entre aparncia e
essncia e de uma separao radical entre sujeito e objeto, Alberto Caeiro parece
demonstrar uma postura antimetafsica, como podemos observar na passagem a
seguir:
(...) Metafsica? Que metafsica tm aquelas rvores? A de serem verdes e copadas e de terem ramos E a de dar fruto na sua hora, o que no nos faz pensar, A ns, que no sabemos dar por elas. Mas que melhor metafsica que a delas, Que a de no saber para que vivem Nem saber o que no sabem? Constituio ntima das coisas... Sentido ntimo do universo... Tudo isto falso, tudo isto no quer dizer nada. incrvel que se possa pensar em coisas dessas. como pensar em razes e fins Quando o comeo da manh est raiando, e pelos lados das rvores Um vago ouro lustroso vai perdendo a escurido.
Pensar no sentido ntimo das coisas acrescentado, como pensar na sade Ou levar um copo gua das fontes. O nico sentido ntimo das coisas elas no terem sentido ntimo nenhum. (...) 3
Rejeitando todo tipo de especulao racional, Caeiro sugere um direcionamento
do olhar para a realidade assim como ela se mostra. Numa recusa similar de
Heidegger, Fernando Pessoa parece propor, atravs de seu poeta da natureza, a
desvinculao do pensamento metafsico, razo de sofrimento, e a conseqente nfase
naquilo que se apresenta originariamente.
De educao primria, Caeiro um pastor que encara o mundo de forma
simples e no direcionada pela tradio ocidental ele pretende ser, ele prprio, o
3 PESSOA, 2006, p. 38. Todas as citaes de Alberto Caeiro nessa dissertao sero provenientes dessa edio, indicadas apenas pelo nmero da pgina.
31
pastor de seus pensamentos. Imerso na natureza, o poeta rejeita toda forma de
apreenso da realidade pelo intelecto, pois, para ele, essa interpretao reduz as
coisas a meros conceitos, como podemos observar no excerto abaixo:
(...) O mistrio das coisas? Sei l o que mistrio! O nico mistrio haver quem pense no mistrio. Quem est ao sol e fecha os olhos, Comea a no saber o que o sol E a pensar muitas coisas cheias de calor. Mas abre os olhos e v o sol, E j no pode pensar em nada, Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos De todos os filsofos e de todos os poetas. (...) (p. 38)
Desse modo, Alberto Caeiro configura-se na obra de Fernando Pessoa como o
heternimo que pe em xeque todas as mscaras sgnicas (conceitos, ideologias,
aparatos metafsicos) para se ater ao real assim como ele se manifesta. Tal qual
Heidegger, o poeta pretende desvencilhar-se de toda a tradio metafsica, propondo
um retorno s coisas mesmas: Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam
sozinhos: /As coisas no tm significao: tm existncia./As coisas so o nico
sentido oculto das coisas. (p. 79).
Encarado pelos outros heternimos e por Pessoa-ele-mesmo como o mestre,
Caeiro , portanto, aquele que inspira e apresenta um caminho a ser seguido.
Oferecendo uma via de simplicidade, o poeta parece, assim, romper com o projeto
metafsico que impe inmeras dualidades:
O paganismo absoluto de Caeiro finca suas Razes em recusas; a busca de um caminho contra a corrente, numa direo diversa da que trouxe Fernando Pessoa, da que nos trouxe, ao que somos: ocidentais acidentados, fraturados entre o objetivismo e o subjetivismo, o intelectualismo e o sentimentalismo, a cincia e a metafsica. (PERRONE-MOISS, 1990, p. 113).
Assim, Caeiro nos abre uma via em que essas dicotomias j no so mais
entendidas como tais. Ele parece mostrar em sua poesia uma fuso entre esses pares
contrrios, sendo a sua escrita um fenmeno natural e ele prprio um animal humano
que a natureza produziu (p. 86).
32
O percurso de sua poesia , assim, natural e simples, sem muitas abstraes.
Prevalece uma linguagem fotogrfica que busca retratar a natureza tal como ela .
Alis, Caeiro no pretende que sua escrita seja um ponto mediador entre a realidade e
a percepo, mas sim o prprio mostrar que se abre percepo:
No me importo com as rimas. Raras vezes H duas rvores iguais, uma ao lado da outra. Penso e escrevo como as flores tm cor Mas com menos perfeio no meu modo de exprimir-me Porque me falta a simplicidade divina De ser todo s o meu exterior Olho e comovo-me, Comovo-me como a gua corre quando o cho inclinado, E a minha poesia natural corno o levantar-se vento... (p. 53)
A poesia de Caeiro, assim, parece ocorrer to espontaneamente quanto se do
os fenmenos da natureza. No h um rigor da forma; seus versos possuem uma
disposio aleatria e alheia lgica: (...) Quando me sento a escrever versos Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, Escrevo versos num papel que est no meu pensamento, Sinto um cajado nas mos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro, Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idias, Ou olhando para as minhas idias e vendo o meu rebanho, E sorrindo vagamente como quem no compreende o que se diz E quer fingir que compreende. (...) (p. 32)
No poema acima, Caeiro descreve a atividade da escrita como um fenmeno
natural: suas idias transitam pelo papel assim como transitam livremente por seu
pensamento. E a composio de versos no necessariamente uma atividade que
requer introspeco, subjetividade e isolamento: pode ocorrer ao sentar-se, bem como
num passeio. A atividade da escrita, portanto, no coloca Caeiro distante da natureza,
mas, antes, o aproxima, na medida em que h uma fuso entre ambos. O poeta no se
configura como um sujeito discorrendo sobre um objeto ele parte da natureza, um
ser-no-mundo, como na viso heideggeriana.
33
A linguagem, assim como a natureza, no so para Caeiro instrumentos
ambos so seu entorno, lugares nos quais ele se insere. Dessa maneira, ele transita no
ambiente que j lhe foi originariamente dado de forma natural, posto que no poderia
ser diferente: Patriota? No: s portugus./Nasci portugus como nasci louro e de
olhos azuis./Se nasci para falar, tenho que falar uma lngua. (p. 172).
Em seu poetar, assim, Caeiro diz o ser, abre o campo no qual estamos todos
inseridos originariamente: Assim tudo o que existe, simplesmente existe. / O resto
uma espcie de sono que temos, / Uma velhice que nos acompanha desde a infncia
da doena (p. 125). Desse modo, no discurso potico, a existncia parece ter
precedncia a todo o resto, como bem nos ensina Ricoeur, nas palavras da intrprete
Jeanne Marie Bons, com relao aos textos literrios:
no h sujeito algum que seja mestre de sua fala, como se possusse liberdade e soberania sobre ela, mas que o discurso do sujeito representa muito mais o veculo atravs do qual algo, muito maior que ele, se diz: a dinmica de encobrimento e de descoberta do Ser... (BONS, 1997, p. 263).
Ricoeur, filsofo herdeiro de Heidegger que combinou a fenomenologia com a
hermenutica, destaca, portanto, que a escrita no se resume a uma relao de
manipulao dos "objetos" do discurso pelo seu "sujeito", mas que h uma relao
mais originria de pertencimento desse sujeito ao mundo: Se nos tornamos cegos para essas modalidades de enraizamento e de pertencimento que precedem a relao de um sujeito com objetos porque ratificamos de maneira no-crtica um certo conceito de verdade, definido pela adequao a um real de objetos e submetido ao critrio da verificao e da falsificao empricas. O discurso potico questiona precisamente esses conceitos no criticados de adequao e de verificao. Ao fazer isso, ele questiona a reduo da funo referencial ao discurso descritivo e abre o campo de uma referncia no-descritiva do mundo. (RICOEUR apud BONS, 1997, p. 265)
Podemos dizer, assim, que h na poesia de Alberto Caeiro uma relao de
pertencimento. O poeta , antes de tudo, um ser na natureza, por ela transitando e
sobre ela escrevendo no um sobre que impe distanciamento, mas um sobre que
toca e abrange: no cimo dum outeiro (p. 32).
34
A noo tradicional de verdade como adequao, introduzida por Plato e
sistematizada por Aristteles no se aplicam aqui, posto que esse o terreno da arte.
O ser, a verdade, so o prprio mostrar e no a adequao da idia realidade. E o
discurso potico que realiza esse mostrar:
Num dia excessivamente ntido, Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito Para nele no trabalhar nada, Entrevi, como uma estrada por entre as rvores, O que talvez seja o Grande Segredo, Aquele Grande Mistrio de que os poetas falsos falam. Vi que no h Natureza, Que Natureza no existe, Que h montes, vales, plancies, Que h rvores, flores, ervas, Que h rios e pedras, Mas que no h um todo a que isso pertena, Que um conjunto real e verdadeiro uma doena das nossas idias. A Natureza partes sem um todo. Isto talvez o tal mistrio de que falam. Foi isto o que sem pensar nem parar, Acertei que devia ser a verdade Que todos andam a achar e que no acham, E que s eu, porque a no fui achar, achei. (p. 88)
A verdade para Caeiro, ento, no atingvel pelo pensamento; ela j aquilo
que se mostra, que est a. Nesse sentido, o que Caeiro parece realizar, portanto, a
inverso da metafsica.
O mundo das idias de Plato, que seria o mundo verdadeiro, acessvel pelo
pensamento, no corresponde verdade para Caeiro. Ao contrrio, o mundo sensvel
que parece compreender a verdade para o poeta. H, portanto, uma inverso na
perspectiva platnica, na medida em que o mundo das idias, e no o dos sentidos,
corresponde quele que aprisiona e impede o olhar para as coisas mesmas.
Diferentemente de Plato, portanto, o mestre dos heternimos parece associar o
mundo das idias escurido da caverna e o mundo sensvel, esse sim, luz:
35
No basta abrir a janela Para ver os campos e o rio No bastante no ser cego Para ver as rvores e as flores. preciso tambm no ter filosofia nenhuma. Com filosofia no h rvores: h idias apenas. H s cada um de ns, como uma cave. H s uma janela fechada, e todo o mundo l fora; E um sonho do que se poderia ver a janela se a janela se abrisse Que nunca o que v quando se abre a janela. (p. 99)
Podemos observar nesse poema de Caeiro a abertura de um terreno totalmente
oposto metafsica (que estabeleceria uma separao entre as coisas). A repetio de
termos como ser e haver parece apontar para a prioridade do ser com relao s
noes dicotmicas, derivadas da teorizao. Alm disso, o uso da palavra cave (que,
no portugus de Portugal, significa poro, depsito, e, em ingls, significa caverna)
parece indicar uma crtica direcionada diretamente ao pensamento metafsico de
Plato. Em um mostrar prprio, portanto, o poema se impe, abrindo um campo oposto
ao da especulao metafsica:
o resultado final da inverso do platonismo liberaria a potencialidade do mito e da poesia, ainda unidos nos fragmentos dos pr-socrticos, antes que a aliana socrtico-platnica da virtude e da razo consolidasse a autoridade do filsofo, porta-voz do mundo supra-sensvel (NUNES, 1992, p. 238).
Na medida em que Caeiro poetiza, portanto, ele no s inverte a metafsica,
como a corrompe e submete-a ao domnio da poesia. A metafsica torna-se, assim,
secundria, desprovida de seu poder de subjugao. E no mostrar do texto, a verdade
aparece em sua acepo mais originria, enquanto alethia: (...) Quando digo " evidente", quero acaso dizer "s eu que o vejo"? Quando digo " verdade", quero acaso dizer " minha opinio"? Quando digo "ali est", quero acaso dizer "no est ali"? E se isto assim na vida, por que ser diferente na filosofia? Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos, E o primeiro fato merece ao menos a precedncia e o culto. (...) (p. 135).
Em sua empreitada contra a metafsica, portanto, Caeiro parece efetuar ainda a
inverso do cogito cartesiano, penso, logo existo (DESCARTES, 1999, p. 62), quando
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diz: Sei que o mundo existe, mas no sei se existo. / Estou mais certo da existncia da
minha casa branca / Do que da existncia interior do dono da casa branca. (...) (p.
134). Assim, como bem apontou a intrprete Luzil Ferreira:
Contrariamente a Descartes, Caeiro parece afirmar: No penso, logo existo. Ou ainda: no penso porque existo. Isto : sou coisa existente, aqui e agora apenas, eu mesmo e no um depsito de relaes alheias a mim, em mim armazenadas por todo um conjunto de fatores anteriores a mim. (FERREIRA, 1989, p. 32).
Na poesia de Alberto Caeiro, portanto, parece ocorrer uma inverso total da
metafsica. E essa estrutura de pensamento figura por vezes como um recurso entre
outros para o mostrar do poeta. Por vezes, ele se utiliza de uma argumentao lgica
para mostrar sua filosofia, mas logo ele transgride essas normas, como veremos mais
detalhadamente no prximo captulo. O que prevalece, portanto, a escrita potica,
que abre o terreno da linguagem antecedente a toda cincia e metafsica que dela
dependem.
Alberto Caeiro nos surpreende a cada momento de sua obra. como se ns
leitores estivssemos de fato percorrendo um caminho no campo s vezes vemos o
sol, s vezes a chuva, por vezes tropeamos... Quando achamos que o poeta est
liberto do pensamento, ele se nos apresenta pensando e refletindo. Quando achamos
que haver uma seqncia lgica, nos surpreendemos com a falta de um
encadeamento rigoroso entre os versos e poemas, sendo que seu discurso:
... atomizado com sua mundividncia. Nele no h sistemtica, h fragmentao. Caeiro no organiza suas idias de forma lgica, reunindo todos os conceitos de tica num livro, os de teoria do conhecimento noutro. No! Seus temas so tratados ple-mle, medida que vo aflorando conscincia, lembrando a queda casual dos tomos de que nos fala a filosofia de Epicuro. Se sua viso de mundo caracteriza-se pelo fragmentarismo, sua concepo do discurso potico obedece igualmente ao mesmo princpio. (GARCEZ, 1981, p. 43).
O ato de Caeiro , portanto, transgressor. Ele corrompe as formas tradicionais
da lgica e da linguagem, confirmando a noo barthiana de que o ato de escrever
nasce de uma transgresso. Na busca pelo olhar do outro, o escritor destaca-se a partir
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da produo de sentidos novos, ou seja, foras novas, de modo a abalar e modificar
a subjugao dos sentidos (BARTHES, 2004, p. 102). a partir de sua escrita,
portanto, que Caeiro desperta no leitor o olhar, por ele to prezado.
Assim, no mostrar do texto potico, ocorre uma abertura similar do prprio ser,
que aparece e se oculta tambm no discurso. E a natureza se abre na obra do poeta
como a verdade que antecede qualquer teoria o ser, a physis, se mostram no dizer
do poema, de modo que fazer poesia significa: pr luz (NUNES, 1992, p. 259).
Na configurao total da obra de Caeiro podemos, assim, observar um
movimento que parece partir da organizao (que separa, classifica, dicotomiza) para a
desorganizao (que mistura). O Guardador de Rebanhos, como o prprio nome
indica, sugere uma organizao. J O Pastor Amoroso, representa uma fase de maior
desordem, em que o pastor perde seu cajado e as ovelhas se espalham pela encosta.
Enquanto que os Poemas Inconjuntos, como o prprio nome aponta, sugere a
desorganizao total o caos. Esse movimento da organizao para a
desorganizao, visvel na obra de Caeiro, , portanto, o percurso contrrio trajetria
da metafsica na civilizao ocidental, que parte do mito, do catico, para o
pensamento racional, que sistematiza e organiza.
Nesse percurso da poesia de Caeiro, portanto, parece haver, alm da inverso
da metafsica, a sugesto de um regresso origem, ao lugar do caos, da arte, do jogo,
da brincadeira, da infncia... Examinaremos a seguir cada uma dessas partes
isoladamente, com o intuito de mostrarmos de que forma esse movimento parece se
estabelecer na poesia de Alberto Caeiro.
Em O Guardador de Rebanhos, o poeta parece se propor a no pensar. O
pensamento e as idias so associados no luz como a tradio pregou, mas
escurido e chuva, diferentemente da concepo tradicional inaugurada pelo mito da
caverna de Plato. Apesar disso, a dificuldade em romper com esse pensamento se
apresenta tambm a Caeiro, que confessa por vezes sucumbir a essa atividade, como
na seguinte passagem: (...) Sim, mesmo a mim, que vivo s de viver, Invisveis, vm ter comigo as mentiras dos homens Perante as coisas, Perante as coisas que simplesmente existem.
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Que difcil ser prprio e no ver seno o visvel! (p. 65).
Outras vezes, o poeta confessa estar doente por ter cedido a essa atividade
desagradvel. A palavra doente, cuja etimologia remonta dor, associada atividade
de pensar, parece sugerir a dor de pensar, to sofrida pelo ortnimo Pessoa, que
acabou buscando em Caeiro um caminho de salvao:
Para Pessoa, a busca de uma sada pela via Caeiro no apenas mais uma especulao filosfica ou mera experimentao potica, mas uma questo de sobrevivncia: sade e salvao. Sofrendo agudamente da doena ocidental, debatendo-se na busca de um eu-profundo que quanto mais se busca mais se perde porquanto o pensamento se volta, afiado e aniquilador, contra o prprio ser pensante Pessoa foi ao extremo desse descaminho, at o ponto em que essa doena toma o nome de loucura, paralisa e mata. (...) A irrupo de Caeiro, como mestre de vida e de poesia, a busca de uma sada-sade. (PERRONE-MOISS, 1990, p. 113).
Assim, Caeiro abre uma via saudvel, mostrando o pensar como atividade
dolorosa e se esforando para evit-lo. O empenho em fugir das rdeas do
pensamento evidente em todo o texto, sendo que o prprio ttulo, O Guardador de
Rebanhos, parece expressar essa atividade de guardar, aprisionar esses rebanhos,
que so seus pensamentos (guard-los talvez na caverna de Plato, de onde no
deveriam ter sado).
Considerando ainda o ttulo do texto, convm destacarmos a noo de rebanho
tradicional, que aponta para a noo de um seguir automtico. Chamar de rebanho os
pensamentos parece indicar o fato de que eles no so originrios, mas antes,
resultados de uma lgica que os conduz.
Rebanho metaforiza a condio de seguir um fluxo imposto sem questionar,
sendo, portanto, o lugar do vulgar, da mediocridade. Para Nietzsche, a moral de
rebanho, herdeira da moral platnico-socrtica e crist, conduz a uma negao da vida:
O Cristianismo foi a espcie mais nefasta das presunes. Homens, no suficientemente elevados e duros, para trabalhar como artistas com o homem, homens no suficientemente fortes e previdentes e tendo a necessria abnegao para fazer triunfar a lei fundamental que milhares e milhares de abortos devem morrer, homens no suficientemente aristocrticos para ver o abismo intransponvel que separa o homem do homem tais
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homens com seu intento de igualdade diante de Deus dirigiram at agora os destinos da Europa, e at se formou uma espcie de homem diminudo, uma variedade quase ridcula, um animal de rebanho, afvel, amolecido, medocre, o moderno Europeu... (NIETZSCHE, [198-], p. 75).
Quando Caeiro fala de guardar rebanhos, assim, ele parece sugerir a idia de
interromper o fluxo de um pensamento ainda preso tradio metafsica e crist. O que
o poeta parece buscar a valorizao da vida, da experincia presente, a partir da
libertao desse pensar que direciona o olhar. Ele procura aprisionar as especulaes
metafsicas para longe dele, de modo que sua experincia no seja condicionada por
preceitos abstratos: Deito-me ao comprido na erva. E esqueo tudo quanto me ensinaram. O que me ensinaram nunca me deu mais calor nem mais frio, O que me disseram que havia nunca me alterou a forma de uma coisa. O que me aprenderam a ver nunca tocou nos meus olhos. O que me apontaram nunca estava ali: estava ali s o que ali estava. (p. 173).
Ao mesmo tempo, enquanto pastor, Caeiro pretende apresentar o caminho, ser
o mestre papel que os outros heternimos reconhecem nele. Despojado do
instrumental metafsico, ele parece viver uma experincia mais originria: (...) Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criana se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do mundo... (...) (p. 34)
A recusa de Caeiro tradio do pensamento ocidental parece se estender ao
Cristianismo, cuja doutrina guarda ntimas afinidades com a metafsica. A concepo
de um mundo transcendente, a separao entre corpo e alma e a prpria doutrina de
valores que prescrevem o comportamento dos homens, entendidos como membros de
um rebanho, so elementos do cristianismo que parecem coincidir com as
caractersticas da metafsica. por essa razo que, assim nos parece, Caeiro ope-se
tambm religio crist. O atesmo de Caeiro, desse modo, parece se configurar antes
como um anticristianismo:
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afirmar que no acredita em Deus, no , para Caeiro uma confisso de atesmo. Ao contrrio. O Deus que ele rejeita aquele Deus pequeno e limitado que as religies tm apresentado aos homens, aquele Deus que habita em templo feito por mo de homem. Caeiro poderia, se o quisesse, encontrar a Deus nas coisas da natureza e ento no o chamaria de Deus, cham-lo-ia simplesmente flores e rvores e montes e sol e luar. (FERREIRA, 1989, p. 34)
Desse modo, Caeiro no parece ser um ateu radical assim como no parece
recusar o pensar absolutamente o que ele recusa a forma ocidentalizada e
metafsica do cristianismo e do pensamento. Atravs de um jogo com a linguagem, ele
parece restituir leveza religio e ao pensamento, ao inclu-los no terreno da arte.
Contrrio ao rigor da metafsica e do pensamento racional, Caeiro defende a
liberdade das formas, a brincadeira, a arte, a infncia. Em seu poema O menino
Jesus, o deus cristo aparece como uma criana comum e brincalhona:
Num meio-dia de Primavera Tive um sonho como uma fotografia. Vi Jesus Cristo descer terra. Veio pela encosta de um monte Tornado outra vez menino, A correr e a rolar-se pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvir-se longe. Tinha fugido do cu. Era nosso demais para fingir De segunda pessoa da Trindade. No cu tudo era falso, tudo em desacordo Com flores e rvores e pedras. No cu tinha que estar sempre srio (...) (...) Esta a histria do meu Menino Jesus. Por que razo que se perceba No h-de ser ela mais verdadeira Que tudo quanto os filsofos pensam E tudo quanto as religies ensinam? (p. 43)
Narrando a vinda de Jesus Cristo, ilustrado como uma criana travessa, em
moldes totalmente distintos do que prega a tradio, Caeiro parece abrir um novo
campo de percepo do divino. O destaque para um novo aspecto do deus cristo leva
valorizao do mundo terreno e ao conseqente desprezo pelo mundo
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transcendental, to valorizado pelo cristianismo e pela metafsica. A criana levada,
que tinha fugido do cu, mostra a leveza de um deus que sorri, faz travessuras e que
no prega a moral.
A valorizao dessa outra faceta de Deus coincide com a valorizao da arte, da
imaginao e da vida, to prezada pelo poeta. Ao narrar a vinda de Jesus Cristo, o
redentor do sofrimento no mundo, ilustrado em um carter ldico, Caeiro parece sugerir
o carter redentor da prpria arte potica, que restitui a unidade perdida e estabelece a
comunho com a physis, atravs de um jogo com a linguagem: (...) E a criana to humana que divina esta minha quotidiana vida de poeta, E porque ele anda sempre comigo que sou poeta sempre, E que o meu mnimo olhar Me enche de sensao, E o mais pequeno som, seja do que for, Parece falar comigo. A Criana Nova que habita onde vivo D-me uma mo a mim E a outra a tudo que existe E assim vamos os trs pelo caminho que houver, Saltando e cantando e rindo E gozando o nosso segredo comum Que o de saber por toda a parte Que no h mistrio no mundo E que tudo vale a pena. (...) (p. 45)
O poeta, assim, parece celebrar a vida, a arte e a brincadeira, em detrimento da
seriedade do mundo racional. Ilustrado como aquele que comunica a verdade e indica
o caminho, o poeta o responsvel por conduzir os homens na terra sendo ele o
pastor e sua arte o caminho.Associando elementos contraditrios em seus poemas e na obra em geral, como
veremos no prximo captulo, Caeiro estabelece um jogo com a linguagem e tambm com o leitor, favorecendo a manifestao de uma esfera suprimida pela razo: a esfera
criativa.Assim, em O Guardador de Rebanhos, Caeiro parece deixar claro o campo
que pretende abrir: o terreno da arte, livre das abstraes que conduziram as diferentes
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pocas da histria ocidental. Ele busca afastar todo tipo de especulao para que
possa ser livre, alegre e saudvel. Ocorre, porm, que ele sucumbe ao poder desses
pensamentos em alguns momentos; mas, isso no deixa de ser natural, posto que a
doena atinge o corpo por vezes, assim como a chuva inunda as colinas.
Na segunda parte da obra potica de Caeiro, que examinaremos a seguir, a
disciplina para controlar os pensamentos parece ter faltado ao poeta. Em O Pastor
Amoroso, Caeiro descreve um momento em que se entrega a um amor, o que
intensifica sua maneira de ver as coisas:
(...) Vejo melhor os rios quando vou contigo Pelos campos at a beira dos rios; Sentado ao teu lado reparando nas nuvens Reparo nelas melhor Tu no me tiraste a natureza... Tu no me mudaste a natureza... Trouxeste-me a natureza para o p de mim. Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma, Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais, (...) (p. 91)
Por estar amando, o poeta desfruta de maior interesse na contemplao da
natureza. Ele parece se render ao pensamento, dizendo amar pensar (p. 96).
Regozijando-se com seus pensamentos, sente-se feliz mesmo na ausncia da amada:
Penso em ti e dentro de mim estou completo. (p. 92). Ele aproxima-se, assim, da
noo do ortnimo, de que "Nunca amamos algum. Amamos, to-somente, a idia
que fazemos de algum. a um conceito nosso - em suma, a ns mesmos - que
amamos. (PESSOA, 1999, p. 137). Sujeito s leis do pensar, assim, Caeiro fica submisso tambm marcao do
tempo, ao invs de viver somente o momento presente, como propunha em O
Guardador de Rebanhos. O poeta guarda lembranas da amada: Fao pensamentos
com a recordao do que ela quando me fala (p. 96) e nutre expectativas para o
prximo encontro: Amanh virs, andars comigo a colher flores pelos campos, / E eu
andarei contigo pelos campos a ver-te colher flores. (p. 92).
Enquanto em O Guardador de Rebanhos parece haver uma prevalncia do
presente do indicativo, em O Pastor Amoroso podemos notar uma maior variao no
uso dos tempos verbais, alm de uma alta freqncia de advrbios de tempo, tais
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como: dantes, outrora, amanh, agora, antes, hoje. Isso parece indicar uma abstrao
temporal, o que mostra a submisso de Caeiro aos preceitos que ele tanto rejeita.
Nessa etapa, ento, o poeta parece perder o controle sobre seus pensamentos,
entregando-se a devaneios e aproximando-se da metafsica.
Outro elemento presente em O Pastor Amoroso que indica uma possvel
recada de Caeiro na tradio metafsica a sua concepo de amor. O poeta parece
se reconhecer como um sujeito originariamente separado do resto, razo pela qual
busca uma completude no encontro amoroso: O amor uma companhia./J no sei
andar s pelos caminhos,/Porque j no posso andar s. (p. 94). Concepo
tipicamente metafsica, a busca pela outra metade aparece em O Banquete de Plato quando Aristfanes narra o mito do Andrgino, ser composto de uma metade feminina
e outra masculina. Por ter cometido transgresses contra os deuses, esse ser duplo foi
dividido ao meio e o amor surgiu ento como uma busca pela outra metade: ns
ramos um todo; portanto ao desejo do todo que se d o nome de amor. (PLATO,
1979, p. 25).
Assim, o pastor amoroso anseia tanto pelo contato com a outra pessoa que
perde o juzo: o pastor amoroso perdeu o cajado, / E as ovelhas tresmalharam-se pela
encosta, (p. 95). O universo passa a consistir simplesmente num reflexo da amada:
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio (p. 94).
Ocorre que, enquanto ser incompleto e dependente da correspondncia do ser
amado, o amante torna-se vulnervel, de modo que o sofrimento no tarda a aparecer:
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas. / Ningum o tinha amado,
afinal. (p. 95). A dor de pensar, ento, impe uma cicatriz ao amante no
correspondido, que se sente incompleto: Quem ama diferente de quem . / a
mesma pessoa sem ningum. (p. 98). E a realidade no parece se importar com o
sofrimento e a solido: Como o campo grande e o amor pequeno! (p. 97).
Por fim, no tendo sido amado, Caeiro tenta retomar sua disciplina de evitar o
pensamento. E esse intervalo parece se configurar, na verdade, como um momento de
sonolncia, ou o prprio sonho, em que faltou a disciplina:
Todos os dias agora acordo com alegria e pena. Antigamente acordava sem sensao nenhuma; acordava.
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Tenho alegria e pena porque perco o que sonho E posso estar na realidade onde est o que sonho. No sei o que hei de fazer das minhas sensaes. No sei o que hei de ser comigo sozinho. Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo. (...) (p. 98).
Como mestre, portanto, Caeiro apresenta, a partir de sua prpria experincia, o
caminho traioeiro do amor. Resultado de um pensar que seduz num primeiro
momento, esse sentimento no tarda a incutir a dor. Assim, o mestre nos leva a crer
que a simplicidade da alma, livre de toda espcie de pensamentos, , de fato, o melhor
caminho. Como um mrtir que busca mostrar o exemplo aos homens, portanto, Caeiro
sucumbe s mesmas tentaes e apresenta a melhor alternativa:
Chega mesmo a descrever-se amando, nos poemas que constituem o interldio do Pastor Amoroso, para poder ser mais cabalmente modelo para a totalidade dos homens, j que dificilmente se encontram homens que no tenham passado pela experincia do amor. Caeiro passa por tal experincia, no como algo decorrente de sua prpria inclinao natural, mas apenas para que possa analisar os efeitos do amor e concluir pela sua negao. O amor faz perder a guarda dos pensamentos, que se indisciplinam como ovelhas tresmalhadas, e por isso que, nesse interldio, Caeiro deixa de ser o guardador de rebanhos para ser apenas pastor e pastor amoroso. (GARCEZ, 1982, p. 194).
J em Poemas Inconjuntos, Caeiro parece atingir com mais sucesso seu
propsito de recusa tradio do pensamento ocidental. Avulsos e sem uma
organizao temtica e/ou progressiva, como o prprio nome indica, esses poemas
no compem de forma alguma um todo sistemtico, de modo que assim, Caeiro faz
jus sua inteno de contrariar o padro metafsico.
Utilizando por vezes, um vocabulrio e modo de expresso prprios da lgica
ocidental, o poeta tece sua trama usando um fio j familiar ao leitor:
Tambm sei fazer conjeturas. H em cada coisa aquilo que ela que a anima. Na planta est por fora e uma ninfa pequena. No animal um ser interior longnquo. No homem a alma que vive com ele e j ele. (...) (p. 149)
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O poema acima, dedicado Ricardo Reis, contm especulaes tpicas do
pensamento metafsico. H a pressuposio da existncia de algo transcendente ao
sentido da viso e que, no caso do homem, seria a alma. Caeiro parece demonstrar
essa sua proposital recada na metafsica atravs de um cuidadoso trabalho na escolha
das palavras, que, seja na etimologia ou na sonoridade, remetem para alma: anima,
ninfa, alma, animal.
Esse procedimento parece consistir numa estratgia para fisgar o leitor
habituado a tais construes, como ele declara j em O Guardador de Rebanhos:
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me s vezes/ sua estupidez de
sentidos.../ No concordo comigo mas absolvo-me, (...) (p. 70). Assim, apesar de
utilizar tais recursos metafsicos, o discurso de Caeiro abre um novo campo, no qual
ele atua como um guia, um pastor, que vivencia as experincias e prepara o terreno
para o prximo seguidor.
E o caminho que ele delineia em sua obra parece partir da organizao em
direo ao caos, conforme j mencionamos anteriormente. Contradizendo-se em vrios
momentos, ele provoca uma desorientao no leitor:
Estas verdades no so perfeitas porque so ditas, E antes de ditas pensadas. Mas no fundo o que est certo elas negarem-se a si prprias Na negao oposta de afirmarem qualquer coisa. A nica afirmao ser. E ser o oposto o que no queria de mim. (p. 127)
Assim, o terreno potico de Caeiro parece configurar-se como uma nova
possibilidade aberta para o leitor, conforme a noo defendida por Ricoeur com relao
aos textos literrios:
[...] o texto fala de um mundo possvel e de um modo possvel de algum nele se orientar. As dimenses deste mundo so propriamente abertas e descortinadas pelo texto. O discurso , para a linguagem escrita, o equivalente da referncia ostensiva para a linguagem falada. Vai alm da mera funo de apontar e mostrar o que j existe e, neste sentido, transcende a funo da referncia ostensiva, ligada linguagem falada. Aqui, mostrar ao mesmo tempo criar um novo modo de ser. (RICOEUR, 1987, p. 99).
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Considerando a noo ricoeuriana supracitada, podemos dizer que o texto
potico de Caeiro desvela um universo prprio, oferecendo uma nova alternativa de
ser-no-mundo. Dessa maneira, o poeta parece consolidar seu papel de mestre,
(des)orientando os leitores num novo caminho.
Essa trajetria tortuosa parece configurar-se, desse modo, como um retorno a
uma terra virgem, anterior s elucubraes racionais (cuja funo consiste em alterar a
configurao original, organizando o material catico). A postura de Caeiro, assim,
parece contrria a todo tipo de interferncia do pensamento que vise sistematizao:
Aceita o universo Como to deram os deuses. Se os deuses te quisessem dar outro Ter-to-iam dado. Se h outras matrias e outros mundos Haja. (p. 162)
Convm observarmos o