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roberto calasso A Folie Baudelaire Tradução Joana Angélica d’Avila Melo

Calasso, Roberto. a Folie Baudelaire

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Baudelaire.

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  • roberto calasso

    A Folie Baudelaire

    Traduo

    Joana Anglica dAvila Melo

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  • Copyright 2008 by Adelphi EdizioniQuesto libro stato pubblicato grazie ad un contributo per la traduzione da parte del Ministero degli Affari Esteri italiano.

    Obra publicada com incentivo traduo do Ministrio das Relaes Exteriores da Itlia.

    Os editores agradecem a Paulo Csar de Souza pela traduo de trechos da obra de Friedrich Nietzsche.

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Ttulo originalLa Folie Baudelaire

    CapaRita da Costa Aguiar

    PreparaoJane Pessoa

    RevisoCarmen T. S. CostaRenata Del Nero

    [2012]Todos os direi tos desta edi o reser va dos editora schwarcz s.a.Rua Ban dei ra Pau lis ta, 702, cj. 3204532-002 So Paulo spTele fo ne: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.com pa nhia das le tras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Calasso, RobertoA Folie Baudelaire / Roberto Calasso ; traduo Joana Anglica

    dAvila Melo. 1a ed. So Paulo : Compa nhia das Letras, 2012.

    Ttulo original: La Folie Baudelaire.isbn 978-85-359-2134-2

    1. Arte francesa Sculo 19 2. Baudelaire, Charles, 1821-1867 Crtica e interpretao 3. Poesia francesa i. Ttulo.

    12-07832 cdd-841.8

    ndices para catlogo sistemtico:1. Poesia : Literatura francesa : Sculo 19 841.82. Poetas franceses : Sculo 19 841.8

    Diagramao Acqua EstdioPapel Plen SoftImpresso RR Donnelley

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  • Sumrio

    1. A obscuridade natural das coisas ......................................... 11

    2. Ingres, o monomanaco ....................................................... 98

    3. Visitas a Madame Azur ........................................................ 144

    4. O sonho do bordel-museu ................................................... 160

    5. O lbil sentimento da modernidade ................................... 192

    6. A violncia da infncia ......................................................... 288

    7. Kamchatka ............................................................................ 308

    Notas ......................................................................................... 349

    Crditos fotogrficos ................................................................ 395

    ndice de nomes, lugares e obras ............................................. 397

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  • 11

    1. A obscuridade natural das coisas

    Baudelaire propunha encontros clandestinos no Louvre

    sua me Caroline: Em Paris, onde melhor se pode conversar;

    aquecido, pode-se esperar ali sem se enfadar e, por outro lado, o

    lugar de encontro mais conveniente para uma mulher.1 O medo

    do frio, o terror ao tdio, a me tratada como uma amante, a clan-

    destinidade e a decncia conjugadas no ambiente da arte: somen-

    te Baudelaire podia combinar esses elementos quase sem perceber,

    com total naturalidade. Era um convite irresistvel, que se estende

    a quem quer que o leia. E qualquer um poder aceit-lo vagando

    por Baudelaire como por um dos Salons sobre os quais ele escre-

    veu, ou mesmo por uma Exposio Universal; encontrando de

    tudo, o memorvel e o efmero, o sublime e a quinquilharia; e pas-

    sando continuamente de uma sala a outra. Mas se o fluido unifi-

    cador era ento o impuro ar do tempo, agora o ser uma nuvem

    opicea, na qual seja possvel se esconder e se fortalecer antes de

    voltar ao ar livre, s vastides letais e pululantes do sculo xxi.

    Tudo o que no imediato nulo (Cioran, certa vez, em

    conversa). Mesmo no fazendo nenhuma concesso ao culto da

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    expresso bravia, Baudelaire teve, como raros outros, o dom do

    imediatismo, a capacidade de filtrar palavras que fluem pronta-

    mente na circulao mental de quem as encontra. Ali permane-

    cem, s vezes em estado latente, at que um dia voltam a ressoar

    intactas, dolorosas e encantadas. Agora ele conversa, em voz baixa,

    com cada um de ns,2 escreveu Gide em sua introduo de 1917

    a As flores do Mal. Frase que deve ter impressionado Benjamin,

    j que a encontramos destacada entre os materiais para o li vro so-

    bre as passages. H em Baudelaire (como, depois, em Nietzsche)

    algo to ntimo a ponto de aninhar-se na floresta que a psique

    de qualquer um, e de no sair mais. uma voz surda como o

    rumor das carroas na noite dos boudoirs acolchoados,3 diz Bar-

    rs, repisando as palavras de um assoprador oculto que o pr-

    prio Baudelaire: No se escuta mais do que o rolar de alguns

    fiacres atrasados e exaustos.4 um tom que surpreende como

    uma palavra dita a um ouvido num momento em que no era es-

    perada,5 segundo Rivire. Nos anos por volta da Primeira Guer-

    ra, aquela palavra parecia ter se tornado um hspede indispen-

    svel. Repicava num crebro febril, enquanto Proust escrevia seu

    ensaio sobre Baudelaire encadeando citaes de cor, como se fos-

    sem cantilenas infantis.

    Para quem est envolto e quase amortecido pela desolao

    e pelo esgotamento, difcil encontrar algo melhor do que abrir

    uma pgina de Baudelaire. Prosa, poesia, poemetos em prosa, car-

    tas, fragmentos: tudo cai bem. Mas, se possvel, prosa. E, na prosa,

    aquela sobre os pintores. s vezes sobre pintores hoje desconhe-

    cidos, dos quais j no se conhecem seno o nome e as poucas

    pa lavras que Baudelaire lhes dedicou. Ns o observamos em sua

    flnerie, misturado a uma multido enxameante, e temos a impres-

    so de que um novo sistema nervoso est se sobrepondo ao nosso,

    submetendo-o a frequentes e mnimos choques e fisgadas. Assim,

    um sensrio entorpecido e rido obrigado a despertar.

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  • 13

    * * *

    H uma onda Baudelaire que atravessa tudo. Origina-se an-

    tes dele e se propaga alm de qualquer obstculo. Entre as cristas

    e as cavas dessa onda reconhecem-se Chateaubriand, Stendhal,

    Ingres, Delacroix, Sainte-Beuve, Nietzsche, Flaubert, Manet, De-

    gas, Rimbaud, Lautramont, Mallarm, Laforgue, Proust e ou-

    tros, como se tivessem sido acometidos pela onda e submergidos

    por alguns momentos. Ou como se tivessem sido eles a se chocar

    contra a onda. Empuxos que se cruzam, divergem, ramificam-se.

    Turbilhes, sorvedouros imprevistos. Depois o percurso recome-

    a. A onda continua a viajar, avanando sempre rumo ao fundo

    do Ignoto6 do qual provinha.

    Sentimento de gratido e de regozijo, quando se leem estas

    linhas de Baudelaire sobre Millet:

    O estilo lhe nefasto. Seus camponeses so uns pedantes que tm

    de si mesmos uma opinio alta demais. Exibem uma espcie de

    embrutecimento sombrio e fatal que me d vontade de odi-los.

    Quer se dediquem colheita ou semeadura, quer levem as vacas

    a pastar, quer tosquiem animais, parecem sempre dizer: Mas so-

    mos ns, pobres deserdados deste mundo, que o fecundamos! Ns

    cumprimos uma misso, exercemos um sacerdcio!.7

    O pblico circulava nos Salons munido de um livrinho que

    indicava o tema de cada quadro. Julgar um quadro consistia em

    avaliar a adequao da representao visual ao assunto ilustrado,

    o qual era geralmente histrico (ou mitolgico). Quanto ao res-

    to, paisagens, retratos ou pinturas de gnero. O nu se insinuava

    aproveitando qualquer oportunidade oferecida por episdios mi-

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  • 14

    tolgicos, histricos ou bblicos ( o caso da Esther de Chassriau,

    arqutipo rgio de toda pin-up). Ou ento era protegido pela eti-

    queta do gnero orientalista. Um dia Baudelaire observou dois

    sol dados que visitavam o Salon. Estavam em contemplao per-

    plexa diante de um interior de cozinha: Mas, afinal, onde est

    Napoleo?, dizia um (o catlogo trazia o nmero errado, e a co-

    zinha era assinalada pelo algarismo que correspondia legitima-

    mente a uma batalha clebre). Imbecil!, disse o outro, no v que

    esto preparando a sopa para o retorno dele? E foram embora

    contentes com o pintor e contentes consigo mesmos.8

    Os Salons de Diderot so o incio de toda crtica deambulan-

    te, caprichosa, impaciente, instvel, que se reporta aos quadros

    como a quaisquer pessoas, circula curiosa entre paisagens e figu-

    ras, usa as imagens como trampolins e pretextos para exerccios

    de metamorfose aos quais se entrega com a mesma presteza com

    que depois os descarta. Fazer um Salon pode tambm equivaler

    a deixar correr diante dos prprios olhos uma sequncia de ima-

    gens que representam, em fileiras ordenadas, os momentos mais

    dspares da vida: da mudez inacessvel da natureza-morta aos

    epi sdios solenes da Bblia e s cerimnias grandiloquentes da

    Histria. Para um homem como Diderot, de mente cambiante e

    disponvel a quase tudo, o Salon tornava-se a oportunidade mais

    adequada para revelar aquela oficina turbulenta e perenemente

    ativa que residia em sua cabea.

    Diderot no tinha propriamente um pensamento, mas a ca-

    pacidade de fazer jorrar o pensamento. Bastava dar-lhe uma frase,

    uma interrogao. A partir da, se Diderot se abandonasse ao seu

    impetuoso automatismo, podia chegar a qualquer parte. E, no

    trajeto, descobrir muitas coisas. Mas no se detinha. Quase no

    sabia o que descobria. Porque era s uma passagem, um gancho

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    entre muitos. Diderot era o contrrio de Kant, que devia legitimar todas as frases. Para ele, toda frase era infundada em si, mas acei-tvel se impelisse a seguir adiante. Seu ideal era o moto-perptuo, uma vibrao contnua que no permitia recordar de onde se ha-via partido e deixava o acaso decidir o ponto onde parar. Por isso Diderot disse dos Salons: Nenhuma das minhas obras se pare-ce tanto comigo.9 Porque os Salons so puro movimento: no s passamos incessantemente de um quadro a outro como tambm entramos nos quadros, samos e s vezes nos perdemos neles: Um mtodo razoavelmente bom para descrever os quadros, so-bretudo os campestres, o de entrar no lugar da cena a partir da direita ou da esquerda e, acompanhando ao longo do avano a borda inferior, descrever os objetos medida que se apresentam.10 O passeio de Diderot pelo Salon, com seu percurso enviesado, en-trecortado, turbulento, sujeito a contnuas distraes, digresses, divagaes, anuncia o prprio passo que ser agora assumido j no pelo pensamento, mas pela experincia inteira. A essa altura, diante do mundo, no se poder dizer mais do que isto: Dei impresso o tempo de chegar e de entrar.11

    Quando viu pela primeira vez seu nome (ento Baudelaire- -Dufas) na capa de um livro fininho o Salon de 1845 , Baude-laire esperou de imediato que algum percebesse a afinidade entre aquelas pginas e Diderot. Expediu este bilhete a Champfleury:

    Se o senhor quiser escrever a meu respeito um artigo de troa, con-

    cordo, desde que no me faa muito mal.

    Mas, se quiser me agradar, escreva algumas linhas srias, e fale

    dos Salons de Diderot.

    As duas coisas juntas, isso talvez fosse melhor.12

    Champfleury respeitou o desejo do amigo e, no Corsaire-Sa-tan, poucos dias depois, podia-se ler, num artigo annimo: M.

    Baudelaire-Dufas audaz como Diderot, mas sem o paradoxo.13

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  • 1

    Mas o que, em Diderot, atraa Baudelaire? Certamente, no

    o culto da Natureza, aquela grande religio14 que associava Di-

    derot a DHolbach e era totalmente alheia a Baudelaire. A atrao

    devia-se antes a certo passo do pensamento, a certa capacidade de

    oscilao psquica, na qual como escreveu Baudelaire sobre um

    personagem teatral de Diderot a sensibilidade est unida

    ironia e ao mais bizarro cinismo.15 E tambm: no conviria atri-

    buir s coincidncias fatais que justamente Diderot tenha sido um

    dos primeiros franceses a mencionar o spleen? Assim ele escrevera

    a Sophie Volland, em 28 de outubro de 1760: A senhora no sabe

    o que o spline ou os vapores ingleses? Eu tambm no sabia.16

    Mas seu amigo escocs Hoop iria lhe ilustrar aquele novo flagelo.

    Em todos os seus aspectos, Diderot era terreno congenial pa-

    ra Baudelaire, que por fim no conseguiu se conter e abriu o jogo

    em uma nota do Salon de 1846:

    queles que s vezes devem ter se escandalizado com minhas pie-

    dosas cleras, recomendo a leitura dos Salons de Diderot. Entre

    outros exemplos de caridade bem-feita, ali vero que o grande fi-

    lsofo, a propsito de um pintor que lhe fora recomendado, pois

    tinha muita gente para alimentar, disse que era preciso abolir os

    quadros ou a famlia.17

    Em vo procurou-se o trecho correspondente nos Salons de

    Diderot. Mas, certamente, assim Baudelaire queria que Diderot

    escrevesse.

    Na corrente de insolncia, descaramento e imediatismo que

    liga os Salons de Diderot aos de Baudelaire, h um elo interme-

    di rio: a Histoire de la peinture en Italie [Histria da pintura na

    Itlia] de Stendhal. Impresso em 1817 para um pblico quase ine-

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  • 17

    xistente, esse livro deve ter parecido ao jovem Baudelaire um in-

    centivo precioso. No tanto pela compreenso dos pintores, o que

    jamais foi o forte de Stendhal, mas por sua maneira impertinen-

    te, expedita, presunosa, como a de quem se dispe a tudo, mas

    no a se entediar enquanto escreve. Stendhal havia saqueado Lan-

    zi para se poupar de certas incumbncias cansativas (descries,

    datas, detalhes) na redao do livro. J Baudelaire se apropriou de

    duas passagens do livro de Stendhal por devoo, segundo a regra

    pela qual o verdadeiro escritor no toma de emprstimo, mas rou-

    ba. E o fez no ponto mais delicado do seu Salon de 1846, no qual

    fala de Ingres. Toda a histria da literatura aquela histria se-

    creta que ningum ser capaz de escrever jamais, a no ser parcial-

    mente, porque os escritores so muito hbeis em dissimular

    pode ser vista como uma sinuosa guirlanda de plgios. Entenda-se:

    no aqueles funcionais, devidos pressa e preguia, como os ope-

    rados por Stendhal sobre Lanzi; mas sim os outros, baseados na

    admirao e num processo de assimilao fisiolgica que um dos

    mistrios mais protegidos da literatura. Os dois trechos que Bau-

    delaire subtraiu a Stendhal so perfeitamente harmonizados com

    sua prosa e intervm num momento crucial da argumentao.

    Es crever aquilo que, como o eros, faz oscilarem e torna porosos

    os anteparos do ego. E todo estilo se forma por sucessivas campa-

    nhas com pelotes de invasores ou exrcitos inteiros em

    territrios alheios. Quem quisesse dar um exemplo do timbre in-

    confundvel do Baudelaire crtico poderia at escolher algumas de

    suas linhas que, na origem, pertenciam a Stendhal:

    M. Ingres desenha admiravelmente bem, e desenha depressa. Em

    seus esboos, naturalmente atinge o ideal; seu desenho, em geral

    pouco carregado, no contm muitos traos; mas cada um restitui

    um contorno importante. Comparem-nos aos desenhos de todos

    esses operrios da pintura com frequncia, seus alunos; primei-

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  • 18

    ro eles restituem as mincias, e justamente por isso encantam o

    homem comum, cujo olho, em todos os gneros, s se abre para o

    que pequeno.18

    H tambm outro caso: o Belo no seno a promessa da

    felicidade.19 Baudelaire devia dar muita importncia a essas pa-

    lavras, que so uma variao a partir de Stendhal, pois citou-as

    trs vezes em seus escritos. Ele as encontrara em Do amor [De

    LAmour], livro que at ento circulava no reduzido crculo dos

    happy few. Stendhal no se referia arte, mas beleza feminina.

    Que Stendhal encarava sua clebre definio da beleza sem nela

    insinuar implicaes metafsicas pode-se inferir de uma anotao

    sua em Rome, Naples et Florence. So cinco da manh e ele sai,

    ainda fascinado, de um baile da sociedade dos negociantes de Mi-

    lo. Anota: Jamais vi em minha vida uma reunio de mulheres

    to bonitas; a beleza delas faz baixar os olhos. Para um francs,

    tem um carter nobre e nebuloso que faz pensar na felicidade das

    paixes, bem mais do que nos prazeres passageiros de uma galan-

    taria vivaz e jovial. A beleza nunca , parece-me, seno uma pro-

    messa de felicidade.20 Nota-se de imediato a vivacidade infantil,

    o presto de Stendhal. Baudelaire, com base nessas palavras, per-

    correr outra estrada. Stendhal pensa na vida e sacia-se dela.

    Baudelaire no pode evitar acrescentar uma reflexo, operando

    um deslocamento decisivo: desvia as palavras de Stendhal para a

    arte e no fala de beleza, mas do Belo. Agora j no se trata da

    graa feminina, mas de uma categoria platnica. E aqui advm o

    choque com a felicidade, que a especulao esttica at mesmo

    em Kant ainda no conseguira vincular ao Belo. No s isso,

    mas tambm, com essa leve e arrebatadora toro do discurso,

    a promessa desenvolve um halo escatolgico. Qual ser, afinal, a

    felicidade que se prenuncia no Belo? Certamente, no aquela ce-

    lebrada com petulncia no sculo das Luzes. Baudelaire nunca se

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  • 1

    sentiu atrado, por constituio, a seguir esse caminho. Mas de

    que outra felicidade pode tratar-se? como se, agora, aquela pro-

    messe du bonheur se referisse vida perfeita. A algo que extrapola

    o esttico e o absorve. essa de Baudelaire, bem mais que de

    Stendhal a luz utpica na qual a promesse du bonheur ressurgi-

    r quase um sculo mais tarde: em Minima moralia de Adorno.

    No momento em que aparece a fotografia e o mundo se

    prestava a se reproduzir infinitas vezes mais que o costumeiro ,

    j estava pronta para acolh-la uma concupiscentia oculorum na

    qual alguns seres se reconheciam com a cumplicidade imediata

    dos perversos. Este pecado o nosso pecado []. Nunca um

    olho foi mais vido que o nosso,21 precisou Gautier. E a voz de

    Baudelaire se confundia com a dele: Muito jovens, meus olhos

    cheios de imagens pintadas ou gravadas jamais tinham podido

    saciar-se, e creio que os mundos poderiam acabar, impavidum

    ferient, antes que eu me tornasse iconoclasta.22 Em vez disso, for-

    mara-se uma pequena tribo de iconlatras, que exploravam os

    meandros das grandes cidades, imergindo nas delcias do caos e

    da imensido,23 transbordantes de simulacros.

    A avidez dos olhos, nutrida pelos incontveis objetos de arte

    garimpados e perscrutados, foi um poderoso estmulo para a pro-

    sa de Baudelaire. Ele adestrava sua pena para lutar contra as re-

    presentaes plsticas.24 E era uma hypnerotomachia, uma luta

    de amor em sonho, mais que uma guerra. Inventar a partir do

    nada no encantava Baudelaire. Precisava sempre elaborar um

    material preexistente, um fantasma qualquer entrevisto numa ga-

    leria, num livro ou na rua, como se a escrita fosse sobretudo uma

    obra de transposio de um registro das formas para outro. Assim

    nasceram algumas de suas frases perfeitas, que se deixam contem-

    plar longamente, e fazem esquecer de imediato que tambm po-

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  • 20

    diam ser a descrio de uma aquarela: A carruagem leva a galope, por uma alameda zebrada de sombra e luz, as beldades reclinadas como num barquinho, indolentes, escutando vagamente os ga-lanteios que lhes caem nos ouvidos e abandonando-se, preguio-sas, brisa do passeio.25 Bem pouco poder captar de Baudelaire quem no participar, em alguma medida, de sua nica devoo, que voltada para as imagens. Se uma confisso dele deve ser en-tendida literalmente, e em todas as suas consequncias, aquela declarada numa frase de Meu corao desnudado [Mon cur mis nu]: Glorificar o culto das imagens (minha grande, minha ni-ca, minha primitiva paixo).26

    Avia-se a redao de um livro quando quem escreve se des-cobre magnetizado por certa direo, rumo a certo arco da cir-cunferncia, que s vezes mnimo, delimitvel em poucos graus. Ento, tudo o que vem ao encontro disso at um manifesto, ou um emblema, ou um ttulo de jornal, ou palavras ouvidas por acaso num caf ou num sonho deposita-se numa zona protegi-da como material espera de elaborao. Assim agiam os Salons sobre Baudelaire. A cada vez, eram um pretexto para que soas sem os acordes inconfundveis de sua prosa em formao e tam-bm dos versos. Observemo-lo em movimento: Baudelaire est passando em revista os quadros no Salon de 1859 e chegou pin-tura de assunto militar. Vasta zona deprimente. Porque este g-nero de pintura, se refletirmos bem a respeito, exige a falsidade ou a nulidade.27 Mas o cronista tem seus deveres e prossegue, en-contrando ainda alguma coisa a admirar: um quadro de Tabar no qual os uniformes se destacam como papoulas sobre um vasto oceano verdejante.28 uma cena da Guerra da Crimeia.

    E aqui, repentinamente, como um cavalo extravagante, Bau-delaire desvia-se de seu percurso obrigatrio e envereda por algu-mas linhas definitivas sobre o processo imaginativo:

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  • 21

    Porque a fantasia to mais perigosa quanto mais fcil e mais aber-

    ta; perigosa como a poesia em prosa, como o romance, assemelha-

    -se ao amor que uma prostituta inspira e que cai rapidamente na

    puerilidade ou na baixeza; perigosa como toda liberdade absoluta.

    Mas a fantasia vasta como o universo multiplicado por todos os

    seres pensantes que o habitam. a primeira coisa que aparece, in-

    terpretada pelo primeiro que aparece; e, se este ltimo no tiver

    uma alma que lance uma luz mgica e sobrenatural sobre a obs-

    curidade natural das coisas, ela uma inutilidade horrvel, a pri-

    meira coisa a ser contaminada pelo primeiro a chegar. Aqui, por-

    tanto, j no existe analogia, a no ser por acaso; mas, ao contrrio,

    perturbao e contraste, um campo variegado por ausncia de uma

    cultura regular.29

    So linhas que, de repente, se projetam muito longe. uma

    mistura de autobiografia, histria literria e metafsica, como nin-

    gum havia ousado at aquele momento. E que, plausivelmente,

    ningum notaria naquela crnica de um Salon semelhante aos

    muitos que o tinham precedido e que se lhe seguiriam. Mas justa-

    mente aqui, como os uniformes-papoulas de Tabar, uma luz m-

    gica e sobrenatural avulta sobre a obscuridade natural das coi-

    sas. Nestas quatro ltimas palavras ressoa um daqueles acordes

    que so Baudelaire. Em vo iremos procur-lo sob os dedos de

    Hugo ou de Gautier. A obscuridade natural das coisas: a per-

    cepo mais comum, aquela que rene todos. Mas, para que ga-

    nhasse um nome, devia-se chegar a Baudelaire. E ele devia escon-

    der essas palavras no comentrio sobre um quadro entre os muitos

    de tema militar. Algo semelhante ocorre na maneira pela qual o

    prprio Baudelaire se deixa perceber. Com frequncia atravs de

    pedaos de versos, fragmentos de frases dispersas na prosa. Mas

    o suficiente. Baudelaire age como Chopin (o primeiro que apro-

    ximou os dois nomes foi Gide, em nota a um artigo de 1910).

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  • 22

    Pe netra aonde outros no chegam, como um sussurro insuprim-

    vel, porque sua fonte sonora indefinida e muito prxima. Reco-

    nhecemos Chopin e Baudelaire sobretudo pelo timbre, que pode

    sobrevir em lufadas vindas de um piano escondido atrs de per-

    sianas entrecerradas ou destacar-se da poeira da memria. E, mes-

    mo assim, fere.

    O que Baudelaire queria dizer ao escrever: Aqui, portanto,

    j no existe analogia, a no ser por acaso?30 Era uma concluso

    brusca, resolutiva. O subentendido? Se no h analogia, no h

    pensamento, no h modo de tratar, de elaborar a obscuridade

    natural das coisas.31 Analogia, esta palavra mal-afamada entre os

    filsofos das Luzes, pouco rigorosa, no confivel, assentada

    como a metfora no vasto territrio daquilo que imprprio,

    revelava-se agora, para Baudelaire, a nica chave capaz de alcan-

    ar aquele conhecimento que lana uma luz mgica e sobrenatu-

    ral sobre a obscuridade natural das coisas.32 E por acaso existem

    outras formas do conhecimento? Certamente, mas no aquelas

    que podem atrair Baudelaire. Para ele, a analogia uma cincia. E

    talvez at a cincia suprema, se a imaginao a rainha das facul-

    dades.33 De fato como Baudelaire explicar na memorvel

    carta a Alphonse Toussenel , a imaginao a mais cientfica

    das faculdades, visto que a nica a compreender a analogia uni-

    versal, ou aquilo que uma religio mstica denomina correspon-

    dncia.34 Da o sentimento de desconforto, de intolerabilidade,

    de repulsa, quando algum usa uma falsa analogia. como assis-

    tir a um clculo baseado num erro evidente, que repercute sobre

    todas as coisas, mas que suportado porque a maioria conside-

    ra a analogia algo de ornamental e no compromissivo. Naquelas

    linhas de uma carta ocasional a um fourierista antissemita e cul-

    tor de uma zoologia fantstica, Baudelaire havia aproveitado a oca-

    sio para evocar sua Musa, que se chamava Analogia.

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