Calíope - Resenha SATÍRICON - Petrônio

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  • 7/26/2019 Calope - Resenha SATRICON - Petrnio

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    Referncia: VIEIRA, B. V. G. PETRNIO. Satricon. Trad. e posfcio de C. Aquati.So Paulo: Cosac Naif, 2008.(Resenha). Calope (UFRJ), v. 18, p. 161-164, 2008.---------------------------------------------------------------------------------------------------------SATRICON - Petrnio

    PETRNIO. Satricon.

    Trad. e posfcio de Cludio Aquati. So Paulo: Cosac Naif,2008. 272pp. ISBN:978-85-7503-681-5

    Priapo, em meia parede recostado, equilibra na balana o membro que aponta

    um cesto de pomos bem dispostos ao rs do cho. Essa imagem na sobrecapa do

    Satricon, na traduo de Cludio Aquati, prenuncia, agourenta, um Petrnio portugus

    que soube equivaler em arquitetada espontaneidade ao picante e ordinariamente

    impertinente texto latino. O deus itiflico que na narrativa assume o papel de divindade

    opositora do protagonista Enclpio aponta na figura re-significada posto que reveste olivro o poder da nova literatura que acolhe uma lngua vulgar to humilde como o

    arranjo de frutas, que ali figura, mas de uma potencialidade estilstica nica.

    Apesar de o Satriconser uma obra afeita a controvrsias quanto sua datao,

    extenso e pervivncia, h uma forte tendncia em situ-lo na Roma de Nero (54-68 d.

    C.), sendo o nome Petrnio relacionado a um dos condenados morte pelo controverso

    prncipe, conforme apresenta Tcito no livro XVI, dos Annales, excerto que, diga-se,

    est traduzido no apndice do livro. Assim, no fatdico ano de 65 d. C., Petrnio teve de

    escolher a morte pelo suicdio na mesma devassa que condenou outros desafetos

    polticos do imperador, entre os quais os escritores Sneca e Lucano. Embora no se

    possa deixar de suspeitar da carga ficcional das execues relatadas pelo historiador

    latino, o fato que esse captulo da narrativa tacitiana une pela morte trs autores

    centrais da literatura latina, numa Roma que viu florescer um paradigmtico

    contraponto literrio idade de Augusto. O gosto pelo macabro que Sneca explora em

    suas tragdias, a reforma na dico pica implementada por Lucano e a jornada proto-

    picaresca transmitida por Petrnio revelam uma literatura que aponta para formas de

    expresso extremamente inovadoras.

    Vindo de onde veio Petrnio, no estranha que se diga, como Raymond Queneau

    o faz na apresentao da edio, que no h escritor latino mais moderno. O Satricon

    est no rol dos textos antigos fundamentais para a modernidade. Pensando na seara das

    letras, conceitos-chave de nossa metalinguagem literria como carnavalizao,

    polifonia, heterogeneidade, foram engendrados pelo influente pensador russo Mikhail

    Bakhtin a partir de uma historicizao do gnero romanesco que contou, alm da leitura

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    de Dostoivski, com a atenta anlise de textos como o Satricon. A considerar as

    autoridades de um Queneau e de um Bakhtin, no se engane o leitor: por trs do

    pndego relato envolvendo jovens libertinos, poetastros e novos-ricos, subjaz um

    trabalho singularssimo de estilizao literria dentro dos limites da Antiguidade. Duas

    ou trs linhas depois de uma construo humlima como manus manum lauat1, uma

    mo lava a outra (p. 64), vem um daqueles lances-de-dados da literatura universal

    quando o personagem se situa no discurso pelo prprio discurso non es nostrae fasciae,

    et ideo pauperorum verba derides. Scimus te prae litteras fatuum esse, Voc no do

    nosso nvel, e por isso faz pouco do jeito que o pobre fala. A gente sabe que por causa

    do estudo voc virou um idiota (p. 64). Trechos como esse abriram caminho para a

    idia, hoje atualssima, de que em literatura a fala define o sujeito: o barbarismo do

    genitivo plural pauperorum, ao invs do culto pauperum, compensado pelas

    construes de cunho coloquial em portugus faz pouco de e A gente sabe, diz por

    si s afascia, o nvel, do falante.

    Cludio Aquati enfrenta com competncia de latinista e estro potico os desafios

    dessa escritura, assumindo umapersonatradutria capaz de recriar as heterogeneidades

    discursivas que pululam no texto. O tradutor coloca em exerccio uma re-enunciao do

    estilo petroniano, procurando encontrar em vernculo um matiz estilstico capaz de

    corresponder s liberalidades de um texto latino, por vezes, vulgar, por vezes,

    provocativamente pardico. Ainda que no haja no livro uma clareira sobre a concepo

    de traduo ali exercida, possvel reconhecer o empenho por se criar equivalncias

    vernculas capazes de reenunciar as nuances de linguagem presentes na lngua de

    partida.

    Temerrio seria incorrer numa homogeneizao da coloquialidade e dos

    barbarismos que no texto concorrem com substratos lingsticos das mais variadas

    ordens. Em relao ao prprio Satricon,o poeta Paulo Leminski querendo reproduzirem portugus a linguagem usada por alguns dos personagens do romance redundou, no

    poucas vezes, em uma hiperestilizao do vernculo em que sobram palavres e grias

    amide no motivados pelo texto de partida. Cludio Aquati foge desse risco quando

    parte de um alicerce filolgico que claramente fundamenta sua traduo e lhe d apoio

    para solues lingsticas mais ousadas.

    1Todas as citaes latinas do Satriconso da edio de Ernout da coleoLes Belles Lettres.

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    A partir de cotejos fortuitos com o texto original estabelecido por Ernout, nota-

    se que a faceta vulgarizante de Petrnio traduzida com expresses de grau equivalente

    em nosso coloquial: in fornicem, para a zona (p. 18); latera commouit buliu as

    cadeiras ( p. 34); cinaedusbicha (p. 37); et mundum frigus habuimus e a gente t

    tendo um puta frio (p. 58); Trimalchio hilarius bibit et iam ebrio, Trimalquio bebeu

    alegre bea e, j quase de fogo (p. 71); primitusde cara (p. 84); paene animam

    ebulliui, quase bati as botas (p. 84);putidissimam...iactationem, presepada asquerosa

    (p. 99);purgamentum, porcariada (p 199); tamquam caballus in cliuo, feito pangar

    em ladeira (p.199).

    Tal qual Petrnio se distingue pelo uso inventivo do sermo uulgarise do sermo

    eruditus, o tradutor oscila entre as equivalncias dos coloquialismos como se apontou

    acima e a busca de uma preciso literalizante, quando se trata de expresses tcnicas

    ou bastante especficas Cultura Greco-Romana, evitando assim maiores anacronismos.

    certo que essa tendncia traduo literal no a dominante, mas deixa entrever o

    rigor filolgico do texto portugus, mesmo com a adoo de uma dico mais coloquial.

    Um bom exemplo dessa escolha tradutria a adoo de helenismos petronianos, tais

    como, embasiceta (p. 37, sc. embasicoetan), fleras (p. 43, sc.phalerae), pxide (p.

    44, sc. pyxis), moncmenon (p. 113). Mas tambm surgem aqui e ali alguns

    latinismos laserpicirio (p. 51), edis (p. 60), Orco (p. 83) sempre com a

    caracterstica de preservar um dado de cultura relevante para a fruio da narrativa, o

    que justifica o fato desses termos estarem quase sempre explicados em notas de rodap.

    Ao que toca ao universo erudito do Satricon, convm ainda ressaltar o grande

    achado de Cludio Aquati em pontuar tambm o que venho chamando de uma

    intertextualidade entre tradues vernculas. Notadamente nas aluses a Virglio usadas por

    Petrnio, observa-se a preocupao do tradutor em servir-se textualmente de verses

    virgilianas cannicas como so as de Carlos Alberto Nunes e de Manuel Odorico Mendes.Esse expediente gera uma engenhosa recuperao do molde alusivo que, segundo tem

    apontado a moderna crtica, estava na base das produes literrias da Antigidade.

    A comear pelo alvissareiro Priapo da sobrecapa, passando pelo primoroso

    trabalho de encadernao e diagramao, verifica-se a preocupao em oferecer ao

    leitor um cuidadoso projeto editorial. Nesse caso, a diviso do texto em 20 partes ou

    episdios e o criterioso emprego de notas em pontos que o distanciamento cultural

    mais acentuado, tambm do mostras de um livro que fita um pblico mais abrangente,

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    muito embora, o critrio tradutrio e o rico aparato imagtico do apndice cativaro

    tambm leitores especialistas e alunos de graduao em letras clssicas.

    Enfim, ao traduzir ao olhos e aos ouvidos a quintessncia do texto petroniano,

    este novo Satricon certamente instigar a releitura dos especialistas e as graas do

    grande pblico.