Caminhos da Mandala - Antropologia da Saúde

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  • 8/18/2019 Caminhos da Mandala - Antropologia da Saúde

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    UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

    RELATÓRIO FINAL DO ALUNO E PARECER DO ORIENTADOR 

    BOLSA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA-2014/201CNP!" # $ RUSP #%$ FFLCH # $

    1" IDENTIFICAÇÃO&

    B'()*)+& P.' B++* A(*

    O*+.'& M3*. M* M'

    D5++'& A+'5'('3*

    N' .' P'6+'& C*7') . .( 8 A C R'9 C*..

    1" I+'.9:'

    A presente iniciação científica se debruça sobre o crescente debate em toda sociedade, para além do

    terreno acadêmico: a saúde pública. Abrir os olhos e dar ouvido aos diversos conhecimentos que permeiam

    o tema da saúde é um dos pressupostos dessa pesquisa, como deve ser qualquer abordagem antropolgica.

    !rimeiramente, apresento alguns autores da antropologia rural e da antropologia da saúde. "ntrodu#

    $o também algumas leituras que se mostraram necess%rias para esclarecer alguns conceitos e noç&es de mun#do ainda pouco e'ploradas e apropriadas pela comunidade científica, como obras de autores nativos, guias,

    relatos e manuais. A import(ncia dessa revisão bibliogr%fica se d% para familiari$ar o leitor com a hiptese

    que guiou a pesquisa: ') ;'7;*+') +5

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    levando#se em conta os sistemas de cura e identificação de doenças > disposição dos su0eitos, para além do

    recorte biomédico - sem descartá-lo. Acredito que em ambas as frentes da pesquisa de campo observam#se

     pontos de encontro e de comparação por meio da perspectiva da ecologia da vida, sugerida na Antropologia

     por ?im "ngold 48999=.

    !or fim, apresento conclus&es e caminhos resultantes da pesquisa. ?ais @conclus&es são, antes de

    qualquer coisa, fundamentos claros que guiam aqueles que se interessam em aperfeiçoar o debate que com#

     partilhamos sobre saúde. 5efletindo sobre as e'periências vividas, busco analisar as e'istências e ausências

    de fronteiras da questão da saúde do ponto de vista coletivo, isto é, cultural .

    2" E>)+' +*;' +'.'(3*;'

    Antes de iniciarmos, é preciso dei'ar claro que o campesinato tem uma discussão longa sobre deno#

    minaç&es. Bas regi&es rurais de Aiuruoca, +ão Crancisco Davier e outras cidades do sul de inas erais,

    não tive contato com @informantes da roça, ou mesmo com autodenominados camponeses. Bem serão refe#

    ridos enquanto caipiras: mesmo que não tenhamos encontrado resistência quanto a essa denominação, não

    registramos nenhuma tendência a adotar esse nome, e lembramos que esse tipo de homem rural brasileiro

     pode ser entendido de maneira pe0orativa 4*EB/"/1,

    .( #+A?)B, 89

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    na cidade. A diferença entre a cura de ambos est% na ênfase das singularidades culturais dos su0eitos e das

     possibilidades disponíveis em cada paisagem 4do inglês, landscape - "B1I/, op. *it., pp. população da roça e ao seu trabalho - a produção de alimentos e outros recursos - que é

     possível o sustento da cidade. antendo a visão crítica, é importante lembrar, como fa$ oura 4

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    1 parentesco é frequentemente marcado pelo sagrado, reconhecendo#se parentelas que fogem da

    consanguinidade. 1 tradicional rito do batismo integra, por e'emplo, o processo estreitamento de laços soci#

    ais que unem diversas famílias que habitam o mesmo bairro, trecho, assentamento, vila etc 41B?)"51,

    ideia de cultivo 4 gro%th$ e :' >

    visão destrutiva e unilateral de @desenvolvimento econPmico pre#

    sente no paradigma 1cidental. )sse cultivo ocorre em direção ao

    equilíbrio, > mandala, e na roça fa$#se em morros, hortas, poma#

    res, roçados, pastos, casas, famílias, no mesmo sentido que cada

     planta é cultivada em um 0ardim. Ao entrar em contato com a roça

    adentramos um mundo em um processo permanente de cultivo. Ba

    cidade, h% a quebra desse processo, uma ve$ que a as pessoas são

    separadas fisicamente da terra, dificultando#se o plantio e os ci#

    clos de biodegradação prprios de um ambiente em equilíbrio. Bo

    ;

    P;(+ @ um ambiente

    de plantas e animais pereniais e

    autoperpetu%veis, integrados e em

    evolução com as pessoas. 1 ser

    humano é central para a constru#

    ção dessa paisagem que mimeti$a

    as relaç&es encontradas na nature#$a, a produção de comida, fibras e

    energia necess%rias para sustentar

    o grupo local que a mantém. Bo#

    vamente, relacionam#se os funda#

    mentos da permacultura com uma

    .(.41II"+?)5 Q

    U1I5)B,

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    social local 4IAB/1B, 89

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    Ambas as linhas se apro'imam muito, havendo coerência lgica na combinação desses autores. 5i#

     beiro e elvina au'iliaram principalmente nos momentos que a pesquisa se deu na roça, dando atenção > re#

    lação dos su0eitos com diversos saberes médicos, curativos, terapêuticos e >s estratégias que a população ru#

    ral utili$a para cuidar da saúde. 1s autores que tratam do uso ritual da a3ahuasca guiam a abordagem antro#

     polgica pelas vivências que e'perienciei com essa bebida e outras medicinas sagradas - o rap" e a sananga - ao longo dos últimos meses. !or meio deles, esclareceram#se alguns conceitos que ligam religião e cura,

    assim como as possibilidades terapêuticas dessas medicinas no tratamento de   perturbaç&es aliado a grupos

    religiosos e espirituais.

    " N'+) )'> ' +>(7' . ;5'

    M+*) . ;

    uiando#me pela ecologia da vida e inspirando#me na poética do morar 4 poetics of d%elling$ 4"B#

    1I/, 89992 899K= defendo que a vida se estende por veredas que se desenham como em uma mandala.

    )ssa mandala, feito uma teia de aranha, est% em constante desenho e sua harmonia é mais e mais desafiada

    conforme o tempo avança e as quest&es de saúde se manifestam com a idade. )ssa mandala estabelece rela#

    ç&es entre o tempo e espaço, os fenPmenos que a comp&em dependem do desenho feito pelo organismo e o

    ambiente em dadas aç&es e situaç&es. )sse movimento é din(mico e o ser humano passa por situaç&es limi#

    naridade que marcam momentos da vida, tal qual a menstruação e o resguardo aps o parto, manifestando

    estados de fragilidade que e'igem cautela para não causar desequilíbrios na saúde da mulher e do grupo

    4A5A671, 8998=.

    !ara cuidar da vida, as pessoas movimentam uma série de pr%ticas e saberes sobre saúde. /urante a

     pesquisa quatro matri$es distintas dessas técnicas foram identificados no decorrer da pesquisa: a biomedici#

    na, a medicina alternativa ou complementar, a medicina popular e a medicina sagrada. A >*'.*;* é ba#

    seada em procedimentos científicos de diagnstico, tratamento e cura, e frequentemente - ainda que não

    obrigatoriamente - priori$a a adoção da alopatia ao receitar medicamentos. A matri$ de pr%ticas e saberes (-

    ++*) e ;'5(+)  podem abarcar, por e'emplo, a fitoterapia, a homeopatia, acupuntura, 5eiXi,

    macrobitica e outras atividades orientadas por diversos profissionais da saúde, au'iliando as pessoas em

    contato com a prpria saúde. A terceira matri$ abarca tanto os conhecimentos que seriam considerados @lei#

    gos do ponto de vista científico, quanto os saberes e pr%ticas que a população carrega de suas aprendi$a#

    gens, e'periências e raí$es, a .*;* 5'5(. !or fim, a .*;* )3. 8 por ve$es medicina da flo-

    resta ! se refere aos conhecimentos, preparos e rituais milenares de povos tradicionais. ?ivemos foco na me#

    dicina de povos indígenas do oeste ama$Pnico, espalhados pelo rasil e América Iatina por meio do +anto

    /aime, Rnião do Jegetal, e dos prprios 'amãs nativos também presentes longe de seus povos, mas bem re#

    cebidos por uma e'tensa rede de @compadres da nova era'. uito importante lembrarmos que os povos de

    matri$es africanas também e'ercem curandeirismos sagrados nas tradiç&es da Rmbanda e do *andomblé.

    G

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    ?ratam#se de tipos ideias aos quais os interlocutores e pesquisadores se referem normalmente. A

    ideia de @pure$a original é amplamente questionada pela antropologia, uma ve$ que todos os grupos estão

    em constantes processo de transformação cultural, inclusive do ponto de vista curativo e religioso 4IAA#

    ?), A*5A) Q 1RIA5?, 89s ve$es conflituosas, >s ve#

    $es sinérgicas. +eus praticantes frequentemente dominam alguns aspectos de cada uma, que são mobili$adosde acordo com a cura que buscam para si ou para o au'ílio de outros. )ncontram#se alguns pontos de contato

    mais fortes, como entre formas populares e sagradas de cura, com tradiç&es vocais por re$as, cantos, hinos e

    outras @técnicas corporais 4AR++, 899Ob=. )ntretanto, alguns profissionais creem em pontos de isola#

    mento do conhecimento biomedicinal, restringindo a compreensão e tratamento de diversas doenças a um

    sistema.

    Celi$mente, acreditamos que a visão da integralidade est% encarando o desafio e modificando o es-

    tabilishment da medicina científica presente no +R+ e na pr%tica de diversos representantes da medicina ci#entífica e suas perspectivas sobre organismo, corpo, saúde e doença, apro'imando#a da medicina comple#

    mentar ou alternativa 4*A= 4+AII)QAY5)+, 89

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    !assando#se os anos, foram conhecendo as pessoas de seu bairro rural e, a medida que se apro'ima#

    vam, percebiam seus problemas e suas carências. 1 trecho rural tinha um posto de saúde que recebia a visita

    irregular de um médico a cada < ou 8 semanas. *omo profissionais da saúde formadas, notaram que era mui#

    to estranho encontrar na roça idosos tomando 5ivotril 4clona$epam= e crianças, 5italina 4etilfenidato=, re#

    médios usados em tratamentos psiqui%tricos e, em certos casos, para alguns tipos de depressão. @+ão remédi#os da cidade, para o estresse da cidade, disse Jioleta. !or mais que elas quisessem se afastar de suas ativi#

    dades enquanto psiclogas, ela e /%lia se indignaram com aquela triste situação.

    [uando perguntei se poderia gravar seus depoimentos e registrar o local com fotos, criou#se um cli #

    ma desconfort%vel. Acontece que elas começaram, a partir de um momento, a oferecer a0uda >s famílias da

    região. )sse au'ílio envolvia, obviamente, orientaç&es acerca de saúde embasados nos conhecimentos do

    que elas preferem chamar de medicina complementar. )u não poderia revelar seus nomes nem moradia por#

    que o *onselho 5egional de !sicologia de inas erais não admite esse modelo de pr%tica para tratar paci#entes. !ara as duas, se trata de um conflito político, nas quais a legitimidade delas enquanto psiclogas esta#

    ria em risco por conseguirem a0udar mais as pessoas por meios que não priori$avam o paradigma científico

    da psicologia.

    Acontece que suas @consultas fogem do modelo biomédico a tal ponto que dificilmente podemos

    chamar assim tais encontros. /esde a recepção das pessoas, até a relação que mantém, afastam#se comple#

    tamente da típica relação médico#paciente biomedicinal. *ada conversa dura, pelo menos, uma hora com

    cada pessoa que as procuram e, aps a primeira a0uda que reali$aram, as pessoas passaram a procur%#las commais esponteneidade. +eu o verdadeiro ob0etivo é conhecer a pessoa, entender sua perturbação e qual seria o

    melhor meio de cur%#los. As soluç&es variam muito e podem vir na forma de ch%s, banhos, emplastros,

    5eiXi, ou na maioria da ve$es, bastam simples conversas e conselhos: andar descalço na terra e tomar banho

    de cachoeira são remédios que não tem restrição de idade, e propostas de brincadeiras são especialmente efi#

    ca$es com crianças.

    +emelhantemente > situação das duas irmãs, uma família com quem convivi durante uma semana ao

    norte de inas, na +erra do )spinhaço, enfrenta os mesmos problemas com a ABJ"+A. !or dominarem sa#

     beres e técnicas fitoter%picas, homeop%ticas e florais, e serem aprendi$es de velhos rai$eiros de todo rasil,

    são conhecidos pela população local. 1ferecem a0udas eficientes contra doenças e enfermidades que variam

    de dores nas pontas dos dedos a c(nceres terminais. Rma ve$ por semana, pela manhã, a família recebe os

    interessados para ouvir e sugerir plantas que podem gui%#las a curar suas doenças. )'perientes, eles sabem

    as melhores plantas e combinaç&es para cada pessoa, sintoma e situação, prestando especial atenção > dosa#

    gem recomendada de acordo com a idade e peso dos indivíduos, os princípios ativos das plantas e seus po#

    tenciais t'icos.

    !or mais que ha0am divergências com a biomedicina, nos dois casos, esses curandeiros fa$em ques#

    F

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    tão de lembrar que e'istem procedimentos clínicos insubstituíveis pela *A. )m uma conversa que tivemos

    com os pés no riacho, Jioleta me disse que 0amais sugeriu a ninguém interromper um tratamento biomédico.

    @*omo eu posso garantir que uma planta vai substituir uma quimioterapia\ Bão tenho esse conhecimento,

    nem posso assumir essa responsabilidade. )ntretanto, não dei'a de ponderar os limites desse modelo de tra#

    tamento hegemPnico.

    E);'(7) + ') '.(')

     Ba região em que moram as irmãs e'istem cerca de ;9 famílias, das quais 0% a0udaram OK. A grande

    afinidade das pessoas pelo au'ílio que elas oferecem revela a carência da saúde pública dessa região de v%ri#

    as maneiras: na devida falta de atenção de profissionais de saúde ao acompanhar doenças e perturbaç&es da

     população2 na ausência de iniciativas que educasse a atenção delas com a prpria saúde2 na alienação dessa

    gente dos conhecimentos da prpria terra, de suas plantas medicinais2 no isolamento dos hospitais urbanos

    que imp&em a crença infalível da biomedicina.

    /%lia identifica na região a e'istência da @depressão da montanha, uma perturbação da população

    das roças da antiqueira associado > e'istência de um cio criativo. 1 distanciamento dessa gente de sua

    terra e suas capacidades criativas se mostra na carga de trabalho que boa parte da população, principalmente

    os homens, se submetem para poderem sustentar os padr&es de vida urbanos. [uando /%lia e Jioleta chega#

    ram na região, crianças e velhos passavam a maior parte do tempo em casa, assistindo televisão. !ouco ou

    nada sabiam sobre ervas medicinais. As mulheres passam a maior parte do dia ocupadas com trabalhos do#

    mésticos, e cuidando de animais e hortas. Ainda que possuam algumas lembranças de receitas de trabalhos

    domésticos das avs, dificilmente plantam ervas para usar em caso de problemas de saúde.

    Uenr3 e *ristie, amigos que vivem a questão da alimentação por meio da macrobi(tica e > pr%ticas

    corporais como o yoga e a refle)ologia. A0udaram as pessoas da região por um tempo, até serem ameaçados

    legalmente por um médico da cidade pr'ima que não simpati$a com as *A. Ba visão do casal, os conhe#

    cimentos sobre saúde que a população passou a acumular proveio da longa convivência com as irmãs Jioleta

    e /%lia na roça. As pr%ticas, saberes e consciência que tra$iam de suas vidas harmoni$aram e equilibraram a

    saúde dos moradores ao longo do tempo e das e'periências.

    )ssas duas famílias na antiqueira e família na +erra do )spinhaço, trabalham com um sistema de

    +'; que não e'ige dinheiro. 1s moradores da roça - e, ocasionalmente, da cidade - que vem em busca da

    a0uda dessas famílias para se curar oferecem diversas formas de retribuição pela a0uda recebida: vegetais da

    horta, frutas do pomar, leite, bolos e doces, serviços de construção e manutenção etc. +em imediatismos, elas

    oferecem o que podem com base no que sabem, numa relação de camaradagem que ocasionalmente cria la#

    ços fortes de ami$ade. Jemos a dádiva de auss 4899Oa $ nesse ciclo cotidiano de au'ílio e cura. Ionge de

    um pagamento contratual, h% um @sistema de honra na qual a obrigação de reciprocidade nunca é e'plicita#

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    da, ainda que esperada.

     Ba ausência de @moeda, é preciso criatividade para se acharem soluç&es: os curandeiros desdo#

     bram suas habilidades para encontrarem caminhos que a0udem as pessoas a se curarem2 aqueles buscando

    au'ílio precisam encontrar maneiras 0ustas para completar a troca. )ssas escolhas de procedimento moldam

    a maneira como esses praticantes da medicina complementar, popular e sagrada lidam com os enfermos,

    afastando a lgica @médico#paciente. *uriosamente, acontece que em outras partes da antiqueira, os mo#

    radores da roça escolhem por não se afastarem dessa lgica.

     Bo município de Aiuruoca, as pessoas valori$am e respeitam os serviços médicos oferecidos pelo

    Uospital /r. 7ulio +anderson, que é referência regional no sul de inas erais. 1s moradores do bairro da

    +erra dos arcia, perímetro rural, afirmam serem sempre bem atendidos, além de contarem com visitas fre#

    quentes de assistentes de saúde do município familiari$ados com a população. +ão oferecidos acompanha#

    mento e atenção especial >s suas quei'as, orientando adequadamente como se deve proceder ao procurar o

    atendimento clínico no hospital. Apesar de certos moradores ainda possuírem alguns conhecimentos das

     plantas medicinais da região, raramente as usam, tendo preferência pelos remédios alop%ticos oferecidos na

    farm%cia, também locali$ada no perímetro urbano. /e fato, todos os moradores da região, mesmo aqueles

    que trabalham outras matri$es medicinais, elogiaram a estrutura e serviços do hospital.

    As reclamaç&es provém, em sua maioria, >s dificuldades de mobilidade para serem de fato atendi#

    dos pelo hospital. A região é marcada pela completa ausência de transporte público e, assim como a consulta

    médica @oficial deve ser feita no consultrio hospitalar no perímetro urbano, os remédios também precisam

    ser buscado nas farm%cias, não importando a idade do paciente. /ona ariana, de GO anos - que não gosta

    de sair falando qualquer coisa por aí, porque @depois que falou, t% falado] - não dei'a de reclamar que o

    maior problema da farm%cia é chegar l%. [uando precisa buscar um medicamento, acorda cedo e caminha a

    maior parte dos K Xm de subidas e descidas da estrada de terra até o asfalto, onde consegue uma carona. "nfe#

    li$mente, nenhum profissional de saúde do hospital pode me receber nas visitas que fi$ durante a pesquisa,

     portanto faltam informaç&es sobre a relação da instituição com a *A, medicinas populares e a dimensão

    espiritual e sagrada da cura.

    O) '.(') ) integram

    As escolhas e combinaç&es possíveis entre os modelos e'plicativos que identificamos durante a

     pesquisa estão disponíveis aos curandeiros e > população a medida que passam a ter familiaridade com as di#

    ferentes técnicas e saberes de cura. Além desse arcabouço tra$ido pelas mãos dos terapeutas holísticos, vin#

    das das cidades para as roças, e'iste o interesse de %reas de conhecimento acadêmico em incrementar os sa#

     beres e poderes sobre a saúde. 1 /epartamento de Citotecnia da Rniversidade Cederal de Jiçosa 4RCJ#=,

    na reali$ação de programas de e'tensão universit%ria e em parceria com coletivos de trabalhadores agr%rios,

    co#autorou e organi$ou uma série de cadernos de distribuição gratuita em %reas rurais de inas. )sses cader#

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    nos tra$em > discussão, além de diversas técnicas comuns > *A, quest&es como o equilíbrio ambiental,

    abarcando a forma como tratamos nossas sementes, terras e %guas, e o equilíbrio e sinergia dos seres huma#

    nos e dos lugares enquanto são essenciais para a manutenção de padr&es de vida de boa qualidade. 1s cader#

    nos aos quais tive acesso estão citados abai'o, foram todos patrocinados pelo *B!q, e sua autoria e ano de

     publicação serão especificados ao lado:

    • *aderno de homeopatia # instruç&es pr%ticas geradas por agricultores sobre o uso da homeo#

     patia no meio rural - )laboração: !rodutores org(nicos da região da Jertente do *apara - - 89

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    aos conhecimentos das plantas medicinais, envolvendo os usos, identificação e plantio de mudas. +imultane#

    amente, buscou a recuperação da medicina popular das geraç&es anteriores, resgatando antigas receitas dos

    remédios das avs guardadas em anotaç&es antigas.

    ara trabalha atualmente no instituto Clor da ?erra com o +istema de Clorais de Aiuruoca. /e ma#

    neira geral, os florais atuam de maneira mais sutil no organismo das pessoas, colaborando para a estabili$a#

    ção emocional e energética das pessoas e se tradu$indo no desbloqueio e mudança de certas emoç&es e com #

     portamentos. !ara ela os conhecimentos bot(nico#medicinais são essenciais em qualquer tratamento de doen#

    ças, mesmo que tenha especiali$ado seus conhecimentos na %rea dos florais. )m seu livro  *lores para os

    meus amores, florais para os meus ais 4899F= , ara descreve diversas plantas, flores e e'periências de tra#

     balho, dando ao livro um enfoque fito#floral e oferecendo um rico guia aqueles que dese0am conhecer mais

    essa pr%tica e conhecimento.

    )ntre o modelo holístico e o científico, encontramos o caso de aria *elina, moradora do airro da

    !edra, em Aiuruoca. *línica, pediatra e homeopata pela vertente unicista, recebia na cidade de +ão Iourenço

     pessoas a procura de tratamento para os mais diversos problemas. Antes da primeira consulta, pela manhã,

    aria reali$ava uma meditação coletiva com e'ercícios de respiração para acalmar todos na fila, e por ve$es

    os orientavam com ?ai *hi *huan. *oordenou um pro0eto no +R+ de +ão Iourenço que tratava os enfermos

    com águas minerais da região, consideradas curativas no rasil e no mundo, especialmente efica$ no trata#

    mento de diverticulites, inflamação que ataca o intestino grosso.

    +ua abordagem sempre se dava prioritariamente pela homeopatia @Assim nos tratamos a pessoa por

    inteiro... quando minhas pacientes - 0% que a maioria era mulher # contavam de seus problemas emocionais,

    eu procurava a0udar também na relação delas em casa. ^Bão vai beber cerve0a de noite... bebe um suco] Jai

    meditar, caminhar, tome um banho... Ieia um livro ao invés de ver novela^. ?odas as pessoas que seguiam

    meus conselhos, 0unto do tratamento homeop%tico, apresentaram melhoras de saúde not%veis] !roblemas

    crPnicos de gastrite, dor de cabeça, dores no corpo sumiram. /e qualquer maneira, ela nunca dei'ou de re#

    ceitar uma alopatia, caso o su0eito pedisse, mesmo que não fosse sua abordagem preferencial de cura, sempre

    recomendando que os pacientes religiosos rezarem

    A ;, ' )3.' ) .*;*) . ?(')+

    A identificação de uma matri$ de cura específica sobre o  sagrado permeia frequentemente princípi#

    os espirituais que orientem outras pr%ticas de saúde. )ntretanto, apesar da import(ncia dada ao sagrado por

    diferentes curadores, a e'pressão religiosa da cura se d% quando v%rios adeptos se unem em torno de uma

    tradição, um corpo de regras sociais 4AR++, 899Oc=. 5eligi&es a3ahuasqueiras são uma influência h% mui#

    to presente no urbano, sendo que foi graças ao surgimento do +anto /aime com o !adrinho "rineu, em

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    4*)B",

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    ?ais rodas envolviam um forte imagin%rio e simbolismo 'am(nico, com a presença de instrumentos musicais

    indígenas, além de diversos sincretismos religiosos tra$idos pelos participantes que passavam pelo candom#

     blé, cristianismo, hinduísmo e muitos outros. 1  guia é o respons%vel por orientar as pessoas durante o rito,

    oferecendo as medicinas da floresta, hinos e cantos, oraç&es, danças, defumaç&es, e a0udados por aqueles

    mais e'perientes do grupo e que sentem a urgência de au'iliar. ?rabalhei com três guias em +ão !aulo: um'amã Uuni Wuin e dois discípulos de estre "rineu e fardados pelo /aime - um intimamente ligado > um#

     banda, outro > a3urveda, ambos adeptos do 'amanismo ama$Pnico.

    Além da ingestão da a3ahuasca, o guia oferece o sopro do rap" e a sananga. )ssa última se trata de

    um colírio feito da rai$ da planta que leva seu nome. 1s olhos ardem intensamente a cada gota, seguindo#se

    uma sensação de alívio e leve$a aps alguns minutos, além de sanar imediatamente dores de cabeça e con#

    gestionamentos nasais. +eu princípio ativo é a ibogaína, e é utili$ada para curar @panemas, doenças de ori#

    gem espirituais e psicossom%ticas. Alguns guias e colegas relatam conhecerem casos de curas de miopia eastigmatismo pelo uso terapêutico da sananga, acompanhado de 1ei2i.

    +ão comuns rodas de consagração que focam o trabalho apenas em torno do rap". 1 sopro é feito

     por um curandeiro por um tipi, instrumento artesanal e tubular de bambu, chifre de animal e outros materi#

    ais, ou autoaplicado por um 2uripi. A intensidade do sopro e a relação entre quem sopra e quem recebe influ#

    encia fortemente efeitos do rapé, variando da limpe$a de uma sinusite a um intenso alívio físico2 do vPmito -

    também chamado de limpeza - ao afastamento de ma$elas do espírito. Rma adepta afirmou que o rapé @pa#

    rece um aspirador de ilus&es... depois do sopro fica s a terra, s verdade se referindo ao estado meditativoque ele indu$. )ssa frase foi confirmada por outras pessoas ao longo das vivências.

    1 rapé para os Wa'inau% é uma medicina sagrada e deve ser usado com muito respeito, sendo o %l#

    cool proibido com sua aplicação. Ceito essencialmente de tabaco moído 0unto >s cin$as da casca do pau#pe#

    reira - planta conhecida tradicionalmente por combater febres - pode ser composta por outras ervas de acor#

    do com o feitor. 1 guia arron conta que todo o processo de feitura deve ser cuidadosamente e'ecutada, e

    um rapezeiro precisa manter boas intenç&es e um estado de meditação que influencia o resultado final. 1cor#

    re que a mesma receita tem efeitos e gostos diferentes se feitos com na beira-mar  ou na beira-rio. !ara so#

     pr%#lo em outros, é necess%rio passar por um período de dieta específica sem carnes, sal e açúcar, além da

    abstinência se'ual.

    1 uso do tabaco nessas rodas de cura é fundamental por ser uma das principais medicinas dos povos

    indígenas, pelo seu car%ter sagrado, se0a na forma de rapé ou queimado em um cachimbo. "sso problemati$a

    a crença de diversos grupos religiosos que consideram o tabaco um tabu e proíbem seu uso. 4IAA?) et al.

    , 89

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    A confusão entre profano e sagrado também est% presente no conte'to rural, longe dos ritos a3ahu#

    asqueiros. Até uma reza pode ser proibida por um grupo religioso se tirada do conte'to adequado. Rma se#

    nhora catlica, conhecida na antiqueira como benzedeira, teve seu filho mais novo casado com uma moça

    evangélica - não me revelaram qual igre0a. A nora passou a morar na casa da família do marido, e para ela as

    re$as eram pecado, uma heresia e proibiu a sogra de continuar a pr%tica. @+ faltava di$er que era coisa dotinhoso] $ombou /%lia, indignada.

    A senhora, então, começou a se sentir cada ve$ mais fraca e queria se encontrar com Jioleta para re#

    solver a perturbação. 7% que a nora 0amais permitiria a visita, pois @sabe, terapia holística é uma via tão here#

    ge quanto a de uma ben$edeira, uma das netas teria que acompanh%#la em um dia que a opositora estivesse

    desatenta. Aps diversos desencontros, as duas finalmente se encontraram e conversaram. A ben$edeira tinha

    um aspecto fr%gil, sua pele cin$enta e ela respirava com dificuldade - achava que estava morrendo. 5ecla#

    mava de um frio repentino e ocasional nas costas, na região dos pulm&es, sem ra$ão aparente. Jioleta estavaintrigada com aqueles @sintomas que aparentemente indicavam nada além da prpria velhice. 5efletiu sobre

    a situação da senhora e veio a seguinte solução: que a senhora pegasse um ti0olo solto e colocasse pr'imo a

    lareira2 sem a nora ver, ela deveria pegar aquele ti0olo aquecido com um pano limpo, enrol%#lo e posicion%#lo

    na região onde o frio surgia. 1 calor passaria, assim, da pedra para os pulm&es.

    1 resultado foi surpreendentemente r%pido: em duas semanas a neta voltou a procurar Jioleta para

    dar as boas novas. A senhora estava tima e a sensação gélida tinha sumido completamente. )m troca, ela

    queria passar  para Jioleta uma re$a de cura. A curandeira, maravilhada, aceitou a oferta da ben$edeira emais uma série de desencontros se seguiram até que as duas se encontraram sem que a nora soubesse. em

     bai'inho, para que apenas Jioleta pudesse ouvir, a ben$edeira repetiu a oração que estivesse memori$ada. A

     partir desse instante, Jioleta sentiu#se presenteada pela d%diva desse ben$imento. A ben$edeira teria confes#

    sado a nova amiga: @)u gosto tanto de re$ar... me fa$ tão bem, e fa$ bem pros outros] *omo pode /eus não

    gostar que eu re$e\

    esmo não sendo praticante de uma religião específica, Jioleta entendeu e respeitou o sagrado das

     palavras da comadre, e usa a re$a em suas curas. *ontraditoriamente, apesar da senhora e da nora serem cris#

    tãs, suas restriç&es incompatíveis a tal ponto que uma foi capa$ de ferir a outra. poder#se#ia levantar a hip#

    tese de que protestantes levantariam ob0eç&es > pr%tica de ben$eduras, uma ve$ que frequentemente invocam

    a mediação de santos, que são afastados do culto protestante 45")"51, op. *it.=. *ontudo esse culto, leal >s

    +agradas )scrituras, não encontraria motivos para se opor a rai$eiros, pr%tica normal no bairro rural estudado

     por 5ibeiro e com grande compatibilidade ao tipo de terapêutica e'ercida pelos interlocutores curandeiros na

    +erra da antiqueira e na +erra do )spinhaço.

    1 uso do %lcool, outro tabu por parte dos fiéis do /aime e da R/J 4IAA?) et al , 89

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    lar. 1s moradores do bairro protestante de +ão 7oão da *ristina proíbem a feitura e venda de cachaça no inte#

    rior do bairro com fortes restriç&es até para uso medicinal, apesar de serem e'ímios rai$eiros. 45")"51,

    899;= /irceu, morador da roça de Aiuruoca, menciona que h% quem curte ervas e outros @gostos na cacha#

    ça, mas não as toma enquanto remédio, desconfiando que se0a vício - apesar de se opor.

    1 pai de )va - uma amiga 'amã - é rai$eiro desde novo, seguindo uma longa linhagem de família,

    e é mestre em fa$er garrafadas e rapé. Bo entanto, esse tipo de rapé é o @caipira ', aromati$ado que vende

    normalmente em tabacarias. 1s Xa'inau% di$em que essa forma de utili$ar o tabaco é desrespeitosa, pois

    @rapé não se cheira, se sopra'. Ao mesmo tempo o pai de )va, catlico, se op&e a diversas pr%ticas fora do

    cristianismo, se afastando das curas da floresta. )ntretanto, ele pode ser considerado curandeiro pela matri$

     popular. /eve#se evitar generali$aç&es quando observamos as restriç&es de cada grupo religioso, levando#se

    em conta a potência coletiva de cada tipo de cura.

    C')*.9G) ?**)

    L grande a variedade de abordagens utili$adas nos cuidados de saúde na roça da +erra da anti#

    queira. +omando as e'periências de +ão !aulo e do norte de inas erais, foram tantos encontros que foi

     preciso uma seleção criteriosa que desse lgica > pesquisa. +eguiu#se, portanto, a hiptese inicial da sinergia

    entre os conhecimentos dos ambientes rurais e urbanos, procurando retraçar algumas trocas e caminhos mar#

    cantes.

    !ensando que os sistemas de cura foram marcados por esses dois ambientes, pode#se e'pandir a hi#

     ptese: as matrizes de cura tamb"m esto em sinergia . ?écnicas e saberes muitas ve$es se adaptam aos mais

    diferentes conte'tos e complementam o invent%rio de procedimentos dos curandeiros. +ão instrumentos de

    cura pensadas como @técnicas corporais, permitindo uma analogia entre o con0unto de técnicas medicinais e

    as religiosas, como fa$ *emin 489 harmonia de uma pessoa um

    ch% de boldo para o estPmago ou e'ercícios matinais de respiração. 1 ambiente, roça ou cidade, é determi#

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    nante nessas escolhas e nas trocas que as mediam.

    uitos caminhos permanecem abertos e muitos questionamentos podem ser aprimorados. !ela fal#

    ta de oportunidades de investigação, permanece aberta a hiptese de intercambialidade das medicinas sagra#

    das entre os centros urbanos e as regi&es e'ploradas da antiqueira. Jerifiquei diversas referências a rituais

    a3ahuasqueiros e >s medicinas da floresta, mas não tive a oportunidade de consagrar uma roda. +erei gratoquando puder. ?ambém não pretendo universali$ar algumas afirmaç&es: o aparente distanciamento entre a

    *A e a biomedicina não é v%lido em atendimentos em que a relação @paciente#médico permanece, como

    é visto em algumas políticas públicas integrativas de medicina alternativa no +R+ 4+1R+A Q J")"5A,

    899H=. uitos curandeiros questionam as contradiç&es de tratamentos em todas as matri$es que recomendam

    @remédios, mas não opinam sobre h%bitos alimentares nocivos # por e'emplo, ao se receitar um remédio ou

    erva para combater o mau colesterol e não falar da gordura e'cessiva na alimentação. )ssencialmente, o po#

    tencial de cura de cada ser humano deve ser aflorado com responsabilidade por todos envolvidos nos cuida#dos de saúde, se0a quais forem suas formaç&es.

    B*>(*'3?*

    AB/5A/), aristela de !aula. 3erra de 4ndio5 identidade "tnica e conflito em terras de uso comum . +ão Iuís:

    RCA,

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    )ditora C"1*5RS, nterface #+otucatu$, otucatu, vol.

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    +1R+A, "sal(ndia aria *. /e Q J")"5A, Ana Iui$a +tiebler. @+erviços públicos de saúde e medicina alternativa.

    i

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