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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CAMPUS DO PANTANAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
BRUNO MARINI BRUNERI
ABC DO ALFABETIZADOR: ANÁLISE DAS CONCEPÇÕES TEÓRICAS DO
MÉTODO (META)FÔNICO
Corumbá
2015
1
BRUNO MARINI BRUNERI
ABC DO ALFABETIZADOR: ANÁLISE DAS CONCEPÇÕES TEÓRICAS DO
MÉTODO (META)FÔNICO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação – Educação Social do Campus do Pantanal da UFMS, como requisito para obtenção de título de Mestre em Educação - Educação Social. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Espíndola
Corumbá
2015
2
3
Dissertação intitulada ‗ABC do Alfabetizador: análise das concepções teóricas do
método (meta)fônico‘, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação,
área de concentração em Educação Social, da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, Campus do Pantanal, como requisito para obtenção do Título de
Mestre em Educação.
Aprovada em: ___/___/____
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Profª. Drª. Ana Lúcia Espíndola (Orientadora)
(Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS)
_____________________________________________________
Profª Drª Renata Junqueira de Souza (Membro Titular)
(Universidade Estadual Paulista - UNESP)
_____________________________________________________
Profª Drª Regina Aparecida Marques de Souza (Membro Titular)
(Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS)
_______________________________________________________
Prof. Drª Anamaria Santana da Silva (Membro Suplente)
(Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS)
Corumbá-MS
2015
4
A minha doce irmã Érika, a outra metade de mim...
À amada vó Cida e a minha mãe Lourdes, minhas principais formadoras.
5
AGRADECIMENTOS
O término deste trabalho foi possível graças ao auxílio e colaboração de
muitos. Dessa forma, manifesto de forma particular os agradecimentos:
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela
assistência financeira.
À minha orientadora, Ana Lúcia, por ter me oportunizado grandes momentos
de aprendizagem e por me guiar durante a sinuosa trajetória da pesquisa.
À minha eterna professora Renata Junqueira, por ser componente das bancas
de qualificação e defesa, bem como pelas magníficas contribuições dadas a esta
pesquisa.
À professora Regina, por me apresentar diferentes enfoques da pesquisa e
novos conhecimentos sobre a infância e alfabetização.
A Tammi e a Sílvia, grandes amigas, que me apoiaram e acalentaram nas
horas mais difíceis.
Aos amigos que deixei no estado de São Paulo que, mesmo distantes,
auxiliaram-me de alguma forma, especialmente, José Ricardo, Reinaldo, Rosinha,
Fernanda, Fábio e Dona Rosy.
Aos amigos que fiz em Corumbá, que levarei pro resto de minha vida,
Alexandre, Leandro, Fabiana, Adriana, Soraia, Igor, Guilherme, Francisca, Beth,
Luciana e em especial a Simone Yara, que de muitas formas me ajudaram.
A Elisa que, por muitas vezes, ouviu-me.
Aos colegas, professores e funcionários da UFMS que dividiram momentos de
alegria e me deram suporte nos apuros do cotidiano.
Por fim, a cidade de Corumbá, que me deu mais de 1.054 motivos que me
impulsionaram a terminar esta pesquisa.
6
- O que andas a fazer com um caderno?
- Nem sei, pai. Escrevo conforme vou sonhando.
- E alguém vai ler isso?
- Talvez.
- É bom assim: ensinar alguém a sonhar.
Mia Couto
7
RESUMO
Desde os anos 2000, a organização não governamental Instituto Alfa e Beto vem desenvolvendo materiais e programas de ensino pautados na abordagem fônica para a alfabetização de crianças e adultos. Atualmente, seus produtos e serviços têm ampla repercussão no território nacional, incluindo o estado de Mato Grosso do Sul, bem como em países estrangeiros. Sendo assim, partindo de pressupostos teóricos pautados em contribuições atuais da ciência Linguística, Psicologia Cognitiva e estudos da Educação, que envolvem a alfabetização e o letramento, adotou-se como objetivo deste trabalho analisar as concepções teóricas cujo cerne é a alfabetização presente no ―ABC do Alfabetizador", livro de formação do professor, do Programa Alfa e Beto de Alfabetização, comercializado pelo instituto. Para atender os aspectos metodológicos da investigação, optou-se pela pesquisa de abordagem qualitativa cujas fontes de informação e os procedimentos de coleta são de cunho documental. Dessa maneira, para atender tais procedimentos, utilizou-se a técnica de pesquisa baseada na análise de conteúdo. Os resultados da análise levaram à afirmação de que, apesar de o método metafônico criado pelo autor do material analisado possuir novas características que o diferem do antigo método fônico, criado na Idade Média e abandonado por seus contemporâneos por sua ineficiência, entende a alfabetização como um ato que se traduz em decodificar/codificar os sons das letras. Palavras-chave: alfabetização, método metafônico, concepções teóricas.
8
ABSTRACT
Since the 2000s the NGO Alfa and Beto Institute has been developing guided teaching materials and programs in phonic approach to literacy of children and adults. Currently, its products and services have wide repercussions in the country, including the state of Mato Grosso do Sul, as well as in foreign countries. Thus, starting from theoretical assumptions guided on current contributions of linguistics science, cognitive psychology and studies of Education, involving literacy and literacy, was adopted as the objective of this work to analyze the theoretical concepts whose center is the literacy present in the "ABC of literacy "training book teacher, Alfa and Beto Literacy Program, marketed by the institute. To meet the methodological aspects of research, we chose the qualitative research whose sources of information and collection procedures are imprint documentary. Thus, to meet such procedures, we used the research technique based on content analysis. The analysis results led to claim that despite the umlaut method created by the author of the material analyzed has new features that differ from the old phonic method, created in the Middle Ages and abandoned by his contemporaries for their inefficiency, understands literacy as an act which translates to decode / encode sounds of letters. Keywords: literacy, phonics, theoretical concepts.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................. 10
1 ALFABETIZAÇÃO: TRAJETÓRIA E CONCEITUAÇÃO........................... 17
1.1 A história da escrita e sua relação com a alfabetização .......................... 18
1.2. Do ABC à Psicogênese: uma visita aos métodos ................................... 24
2 ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL: OS MÉTODOS E AS CARTILHAS ....... 32
2.1 A trajetória da alfabetização brasileira através dos métodos................... 44
2.2 A condenação das cartilhas...................................................................... 48
2.3 Alfabetização e Letramento: conceitos que se entrelaçam na formação
do leitor...........................................................................................................
48
3 MÉTODO FÔNICO: UMA SOLUÇÃO PARA O FRACASSO NA
ALFABETIZAÇÃO? ......................................................................................
54
3.1 O mal-entendido: construtivismo no Brasil.............................................. 55
3.2 A retórica fonocentrista: novos caminhos?............................................... 61
4 METODOLOGIA E ANÁLISE DO CORPUS.............................................. 68
4.1 Metodologia ............................................................................................. 68
4.2 O Instituto ALFA e BETO e o ABC do alfabetizador................................ 71
4.3 As dimensões do ABC do Alfabetizador: apresentação do corpus.......... 75
4.4 Análise do corpus..................................................................................... 76
4.4.1 Alfabetização......................................................................................... 77
4.4.2 Linguagem/Língua................................................................................. 85
4.4.3 Leitura.................................................................................................... 91
4.4.4 Escrita.................................................................................................... 101
CONSIDERAÇÕES......................................................................................... 109
REFERÊNCIAS ............................................................................................. 111
ANEXOS ........................................................................................................ 116
10
Introdução
Para chegar a esta pesquisa, passei por diferentes momentos de reflexão, de
ansiedade e de sonhos... No entanto, a temática escolhida nunca me foi novidade.
Dessa forma, julgo necessário, antes de tudo, discorrer sobre o meu envolvimento
com o objeto de estudo ao longo de minha trajetória pessoal e enquanto docente,
pois este trabalho investigativo não trata somente de uma realização profissional,
mas também pessoal.
Antes mesmo de estudar as primeiras letras na escola, elas já tinham sido
apresentadas a mim por minha irmã em nossas brincadeiras de ―escolinha‖ no
quintal de casa. A nossa escola era improvisadamente composta por uma lousa no
muro, carteiras feitas por caixas de madeiras e os materiais didáticos construídos
com alguns gibis, cartilhas usadas e revistas velhas. No início, as aulas eram apenas
de apresentação das letras do alfabeto, depois a tentativa de me alfabetizar ou de,
pelo menos, fazer com que eu escrevesse meu nome, foram os objetivos da jovem
―professora‖.
Assim, em 1991, quando adentrei as portas do primeiro ano do ciclo básico,
as letras e os livros já eram meus velhos conhecidos. Entretanto, ao invés de me
aborrecer com as primeiras aulas da professora, pois o que seria apresentado já não
era novidade, o contrário aconteceu: apaixonei-me perdidamente por suas aulas.
Contudo, o que chamou tanta atenção para que isso acontecesse? A sala da
professora Alice não era uma sala qualquer. Além de possuir cerca de 40 alunos, ou
seja, quase 40 possibilidades de fazer amizades, diferentemente da escolinha
solitária de minha irmã, ela possuía todo um cenário para apresentação da história
de cada letra e seu respectivo som. As letras já me eram comuns, mas as histórias
que justificavam seus formatos e seus ―sons‖ surpreendiam-me a cada
apresentação. Cada aula era uma surpresa!
Foi dessa forma que aprendi a ler. Gaguejando sons, juntando letra com letra,
formando sílabas, unindo sílabas para formar palavras, agrupando palavras para
formar frases e reunindo frases para compor textos (que mais pareciam
conglomerados de sentenças). Aparentemente, porém, seus formatos nos remetiam
a eles e isso me deixava feliz e também à minha mãe, que se orgulhava cada vez
que eu lia algo para ela.
11
A brincadeira durou alguns anos, o currículo da escolinha no quintal de casa
foi ganhando novas disciplinas ao passo que me alfabetizava, e minha irmã
ampliava seu repertório didático ao avançar nas séries do antigo 1º Grau. Além dos
conteúdos de Língua Portuguesa, Ciências e Matemática, foi acrescido o conteúdo
de Língua Inglesa, assim, tive o primeiro contato com a língua estrangeira.
Logo, minha irmã tornou-se adolescente e seu interesse em ser minha
professora foi diminuindo. Eu fui crescendo, fui matriculado na escola nova de inglês
da cidade, promovendo-me professor na brincadeira. Entretanto, na escola do
quintal, não havia mais ninguém para fazer o papel de aluno, e quem sentava nos
bancos dos alunos eram, ora personagens fictícios, ora alguns primos que iam a
casa para passar a tarde brincando. Criava, assim, meus métodos e pesquisava
novos exercícios, baseados nas velhas cartilhas que havia em casa e em exercícios
mecanicamente memorizados que repetia cotidianamente como aluno na escola
regular.
Quando ingressei nas séries finais do Ensino Fundamental, essa brincadeira
já não me era interessante, porém a curiosidade pelo funcionamento da língua
portuguesa e por novas línguas estrangeiras me acompanhava. Foi quando decidi
estudar a língua japonesa, na escola da Associação Cultural da Colônia Nipo-
brasileira da minha cidade, cujas aulas eram diárias e, dessa forma, eu dividia meus
horários e dedicação entre os cursos de inglês e de japonês.
A dedicação nos cursos de idiomas me oportunizou, aos 15 anos, um convite
de trabalho. Fui convidado pela diretora da escola para ser professor substituto em
aulas de inglês na pré-escola e na primeira e segunda série do Ensino Fundamental
de uma professora que fora estudar no exterior. Nesse momento, o que era dúbio se
torna uma certeza: eu queria ser professor.
Nesse período, para garantir a continuidade de minhas aulas, fiz matrícula no
curso Normal de nível médio, aprendi um pouco sobre os fundamentos da educação
e alguns métodos de alfabetização. Dentre esses, conheci um método muito similar
ao utilizado por minha professora que usava sons e histórias para apresentar as
letras do alfabeto. Naquele momento, estive certo que a melhor forma de alfabetizar
era utilizando aquela dinâmica de apresentação.
Logo, essa busca por conhecimentos pedagógicos me rendeu uma
oportunidade de ser professor auxiliar numa sala de alfabetização de uma escola
12
particular. E, para minha surpresa, a professora regente era a mesma que me
alfabetizou. Ela utilizava o mesmo método que encantava as crianças, além de obter
sucesso e prestígio como alfabetizadora.
A partir daí, intercalava meus horários entre as aulas no ensino médio, no
curso normal, e as aulas de inglês e os reforços de alfabetização.
Fiquei três anos exercendo essas atividades, quando chegou o momento de
decidir o curso universitário. Mesmo sabendo qual carreira seguir, a dúvida na
escolha do curso amargou meu último ano do ensino médio como a de qualquer
adolescente. Cursar Letras e adentrar aos conhecimentos linguísticos? Ou então
Pedagogia e conhecer mais sobre métodos e técnicas de ensino? Ou, ainda, tornar-
me um antropólogo e pesquisar as culturas estrangeiras que os cursos de idiomas
me apresentaram?
Em 2001, fui aprovado nos vestibulares de todos esses cursos em cidades
diferentes e em universidades públicas distintas, mas o destino me ajudou na
escolha: cursar Pedagogia na UNESP de Presidente Prudente seria o mais viável
para aquele momento.
Com o curso superior veio a descoberta de um mundo imensurável. As
disciplinas da Pedagogia me envolviam, as atividades de pesquisa e extensão que a
faculdade me possibilitava eram tantas que havia dificuldade em escolher qual seria
mais interessante para ampliação do que já conhecia e para meu futuro profissional.
Nesse período, fiz dezenas de amizades e, influenciado por algumas, acabei
me envolvendo com o Programa de Alfabetização Solidária que oferecia, para leigos
da região nordeste do país, formação para tornarem-se alfabetizadores de jovens e
adultos. Assim, ministrei algumas oficinas sobre alfabetização e letramento – termo
que só fui conhecer e entender na graduação.
Somente nos últimos anos do curso de graduação, tive contato com as
disciplinas de metodologia de ensino, dentre essas, a disciplina de Metodologia de
Ensino de Alfabetização, que ampliou significativamente o meu conhecimento sobre
a temática e fui ‗oficialmente‘ apresentado à Linguística – ciência que me fascinou.
No final de 2006, colei grau e comecei a lecionar, no ano seguinte, as
disciplinas de História e Psicologia no Ensino Fundamental e Médio,
respectivamente. As oportunidades que envolviam esses níveis de ensino eram
13
maiores que as séries iniciais do Ensino Fundamental, decidi, então, retomar o
antigo sonho de cursar licenciatura em Letras.
Após os três anos de graduação em Letras, fui aprovado em concurso
público, efetivando-me na carreira como professor de Educação Básica II – Língua
Portuguesa e Inglesa, no município de Álvares Machado e, quando adentro às
classes dos 7º e 8º anos do Ensino Fundamental, deparo-me com uma situação
lastimável. A maior parte dos alunos da escola em que atuava mal sabia codificar e
decodificar as letras e, a outra parte, compreendia apenas a superficialidade do
texto.
Infelizmente essa realidade não condiz apenas com a da minha escola. No
Brasil, o problema do analfabetismo ainda persiste em grande parte do território
nacional, tanto em crianças que saem das escolas quanto em adultos que não
tiveram oportunidade de aprender a ler e a escrever na idade adequada.
Ademais, é sabido que a maior parte das crianças alfabetizadas egressas das
escolas brasileiras não atende às exigências educacionais mínimas esperadas pela
sociedade letrada contemporânea, fato que agrava ainda mais a situação
educacional do país.
Essa realidade pode ser confirmada por meio do INAF – Indicador de
Analfabetismo Funcional, instrumento constituído a partir dos dados da pesquisa
nacional sobre o nível de alfabetismo do brasileiro, realizada pelo Instituto Paulo
Montenegro e a organização não governamental (ONG) Ação Educativa: ―O
percentual da população alfabetizada funcionalmente foi de 61%, em 2001, para
73%, em 2011, mas apenas um em cada quatro brasileiros domina plenamente as
habilidades de leitura, escrita e matemática‖1.
Ainda podemos evidenciar a veracidade dos baixos níveis de letramento das
crianças brasileiras através dos resultados insatisfatórios que nosso país apresenta
nos estudos de avaliação, realizados em 2009, pelo Programa Internacional de
Avaliação de Alunos (PISA) realizado pela Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) (BRASIL, 2009).
Esse cenário poderia ser irrelevante para um cidadão comum que vê apenas
a atual conjuntura da escola pública como um mero dado estatístico ou algo que
1 Disponível em: <http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.01.00.00&ver=por>. Acesso em:
27 set. 2013.
14
está longe de sua realidade. No entanto, para um docente com vistas à pesquisa na
área educacional, essa situação precária serve como um ponto de partida para a
reflexão sobre o papel que a escola exerce na inclusão/exclusão - sucesso/fracasso
social do cidadão brasileiro.
Dessa maneira, o ensino das primeiras letras, pautado na formação do sujeito
chamado letrado, adquire um papel significativamente relevante na escola atual, pois
o domínio da compreensão da língua escrita torna-se precondição para a
democratização das informações disponíveis na sociedade e, consequentemente, a
inserção plena desse indivíduo no universo das letras.
A partir desse contexto, evidencia-se a relevância e, sobretudo, a
necessidade de pesquisas e produção de conhecimento sobre a alfabetização e a
formação do aluno letrado. Segundo Espíndola (s/d, p.1):
A preocupação em relação aos primeiros anos de escolarização tem sido, nos últimos 20 anos, constante no Brasil. Isso pode ser observado nas pesquisas acadêmicas onde questões relativas à alfabetização têm estado muito presentes e, ao que tudo indica, por motivos semelhantes: a dificuldade encontrada pela escola em alfabetizar todas as crianças que chegam até ela.
Para tanto, na esperança de uma solução para o mau desempenho dos
resultados obtidos nas salas de alfabetização, atualmente, há uma crescente adoção
e procura por materiais didáticos pautados em práticas alfabetizadoras, embasadas
teoricamente em ideários tradicionais que, em um passado distante, propiciaram
sucesso em seus resultados, em uma escola pública que não tinha a configuração
de escola pública como temos hoje.
O mais preocupante é que esses materiais não se esmeram em desenvolver
a consciência crítica no educando, tampouco se baseiam em atividades reflexivas de
compreensão da realidade, tendo em vista que, como dito, no seu ultrapassado
decurso, não foram suficientes para alfabetizar as massas que ocupavam os bancos
escolares, tendo como consequência a exclusão de grande parte de seu contingente
por meio de reprovações e evasão.
Entretanto, o que alimentou a busca por uma metodologia alfabetizadora que
remediasse a agravante situação apresentada foi a forte acusação dos defensores
do método fônico que imputam o construtivismo pelo fracasso nas práticas
alfabetizadoras atuais por meio de novas teorias, pesquisas e materiais didáticos
que, ao buscarem bases nas ciências da linguagem, reformularam o método fônico
15
(ADAMS et al. 2006; CAPOVILA; CAPOVILA, 2002; 2004a; 2004b; MORAIS, 1996)
e ganharam grande número de adeptos, repercussão midiática, atraíram os olhares
dos professores e, consequentemente, de um grande mercado editorial.
Dentre esses simpatizantes, desde os anos 2000, a organização não
governamental ―Instituto Alfa e Beto‖ (doravante IAB) vem desenvolvendo materiais
e programas de ensino pautados na abordagem fônica para a alfabetização, sendo
que seus produtos tiveram ampla repercussão em mais de uma dezena de redes
estaduais de ensino – incluindo o estado de Mato Grosso do Sul –, centenas de
municípios brasileiros, bem como a entrada em países estrangeiros2.
Sendo assim, partindo desses pressupostos teóricos e de indagações acerca
do letramento e da formação do aluno leitor, adotou-se, como objetivo deste
trabalho, analisar as concepções de alfabetização presentes no ―ABC do
Alfabetizador", livro de formação do professor alfabetizador, do Programa Alfa e Beto
de Alfabetização, produzido pelo IAB.
Quanto aos aspectos metodológicos da pesquisa, com a finalidade de
examinar a proposta de alfabetização trazida pelo material didático pelo IAB, para a
realização desta investigação, optou-se pela pesquisa de abordagem qualitativa,
cujas fontes de informação e procedimentos de coleta são de cunho documental.
Dessa maneira, para atender tais procedimentos, utilizou-se a técnica de pesquisa
baseada na análise de conteúdo.
Para a construção da análise documental, inicialmente, foi realizada uma
leitura flutuante do documento para conhecimento, conexão entre o texto e o quadro
teórico da pesquisa e a reflexão do pesquisador frente ao conteúdo encontrado. O
segundo passo constitui-se pela organização e delimitação do corpus de estudo, a
fim de delinear os perímetros da pesquisa, que, posteriormente, serviram de material
para elaboração do roteiro de análise. Feito isso, selecionaram-se as categorias de
análise do documento que propiciaram a formatação do texto da pesquisa.
Consequentemente, ao se tratar do ensino das primeiras letras na escola,
nesta investigação, foi necessário, antes de tudo, definir os conceitos de
alfabetização e letramento que fora postulada ao compor este trabalho. Partiu-se do
pressuposto de que esses são dois processos distintos e, de seu entendimento,
2 Informações obtidas no histórico do IAB. Disponível em <http://www.alfaebeto.org.br/historico/>
acessado em 25 set. 2013.
16
dependerão os caminhos a serem percorridos para a formação de leitores que
compreendam os significados de textos.
Dentro dessa perspectiva, para constituir a presente pesquisa, foram
abordados, na primeira seção desta dissertação, os conceitos correntes sobre
alfabetização, presentes em produções acadêmicas atuais. Buscou-se, ainda,
evidenciar na História a trajetória percorrida pela língua escrita e pelos métodos de
alfabetização para contextualizar as relações que esses processos estabelecem com
a formação do sujeito alfabetizado.
Seguindo esse viés, na segunda seção, tenciona-se a relação entre os
métodos de alfabetização criados no Brasil e sua estreita relação com as cartilhas,
bem como a chegada de teorias baseadas na ciência da Psicologia Cognitiva que
levaram à condenação do uso desses materiais e métodos no decurso histórico da
alfabetização brasileira, concomitantemente com a chegada do termo letramento e
suas contribuições na formação de sujeitos leitores.
Em seguida, na terceira seção, intitulada ―Método fônico: uma solução para o
fracasso na alfabetização?‖, apresenta-se brevemente a introdução da teoria
construtivista no Brasil, contextualizada por meio da abordagem dos documentos
oficiais do Ministério da Educação (MEC). Essa teoria de ensino/aprendizagem é
atacada pelos defensores do método fônico que solicitaram sua substituição pela
abordagem fônica, mediante documento publicado pela Câmara dos Deputados,
considerado o estopim, no intento de acender as discussões que justificam a
legitimidade do método fônico como ―salvador‖ da alfabetização brasileira.
Na quarta seção, apresenta-se o percurso metodológico utilizado para a
realização deste trabalho investigativo, bem como o ―Programa Alfa e Beto de
Alfabetização‖ e o manual do professor ‗ABC do Alfabetizador‘, documento
selecionado como corpus. Ainda nesta seção, expõem-se os resultados da análise
do documento, comparativamente com os conceitos encontrados nos referenciais
teóricos que subsidiam a discussão desta pesquisa e apresentados ao longo do
texto.
Por fim, são apresentados apontamentos sobre os resultados da análise e as
implicações do método fônico na constituição das práticas escolares.
17
1 ALFABETIZAÇÃO: TRAJETÓRIA E CONCEITUAÇÃO
Quem inventou a escrita inventou ao mesmo tempo as regras da alfabetização, ou seja, as regras que permitem ao leitor decifrar o que está escrito entender como o sistema de escrita funciona e saber como usá-lo apropriadamente (CAGLIARI, 1998, p. 12).
A urgência em ensinar a ler e escrever é um objetivo político e social que não
é exclusivo de nossos dias, em nosso país. Embora seja visível a ampliação de
pesquisas sobre questões que buscam trazer soluções para essa problemática nas
últimas décadas, ainda são necessários estudos que procurem compreender os
obstáculos enfrentados pela escola na alfabetização de todo seu alunado
(ESPÍNDOLA, S/D).
Para tanto, buscar na História da Educação, mais especificamente no recorte
da história da alfabetização, o entendimento dessa urgência, justifica-se pelo fato de
ampliar a abordagem do tema maior proposto por esta pesquisa.
A necessidade de recorrer à História da Educação, na tentativa de encontrar
vistas para defrontar essa urgência que perdura em nossa sociedade, ou de, pelo
menos, entendê-la, reitera-se, por meio do pensamento de Nóvoa (1999, p. 13), que
compreende os estudos acerca da História da Educação como algo que
[...] amplia a memória e a experiência, o leque de escolhas e de possibilidades pedagógicas, o que permite um alargamento do repertório dos educadores e lhes fornece uma visão da extrema diversidade das instituições escolares do passado.
Dentro dessa perspectiva, por meio da reflexão dos acontecimentos
históricos, surgem possibilidades de mudanças das práticas, de políticas, de
comportamentos, da criação de novas ideias e ideais. Enfim, abrem-se
possibilidades para o novo, no presente – momento em que outra história é escrita.
Portanto, neste capítulo, tenciona-se buscar, na História, os alicerces que
fundamentam as discussões sobre alfabetização, ao traçar a trajetória da evolução
da escrita para compreender globalmente o seu sistema de representação, sem
deixar de lado a especificidade do funcionamento da língua portuguesa. São
explicitadas, ainda, as bases metodológicas que sustentaram as práticas de
alfabetização ao longo dos séculos, para chegar ao termo letramento e à ampliação
do entendimento da alfabetização, a fim de estabelecer as relações que esses
conceitos exercem na formação de sujeitos alfabetizados, na atualidade.
18
1.1 A história da escrita e sua relação com a alfabetização
A compreensão da natureza da escrita é fundamental no processo de ensino
de seu sistema. Para tanto, antes mesmo de ingressar na discussão sobre seu
funcionamento e funções, torna-se indispensável o entendimento do surgimento da
escrita e o percurso traçado nas civilizações em diferentes momentos da história,
para que ela se constituísse da maneira como a conhecemos hoje. Nas palavras de
Morais (1996, p. 50):
Para compreender a aprendizagem do sistema alfabético, é preciso saber exatamente o que é o alfabeto, como ele se tornou capaz de representar a linguagem no nível dos fonemas, de que capacidades nós precisamos para aprender essa relação, e como a representação alfabética pode ser modulada por convenções ortográficas.
Dessa forma, nos limites deste texto, o percurso histórico da escrita foi
construído considerando a sua totalidade, por meio da percepção do conjunto,
buscando linhas mais gerais e sem ater-se aos fatos delimitados por uma evolução
cronológica, elencando os conhecimentos mais pertinentes para compor os sentidos
deste estudo.
As pesquisas linguísticas que tratam sobre a escrita, produzidas por Cagliari
(2009), permitem segmentar sua história em três fases distintas: a pictórica, a
ideográfica e a alfabética.
A fase pictórica é caracterizada por desenhos denominados pictogramas, que
não estão relacionados a um som, mas à imagem do que se quer representar. Esse
tipo de escrita foi encontrado em diversas partes do mundo bem como nas regiões
dos antigos povos do norte da América, nos povos astecas e em rochas no nordeste
do Brasil. Os pictogramas procuravam representar objetos de forma bem
simplificada.
Na tentativa de ampliação do sistema de representação e na busca por uma
maior exatidão dos sentidos, sugiram os ideogramas. Esse período, fase ideográfica
da escrita, ainda é representado por desenhos, que foram perdendo alguns traços
mais representativos das figuras retratadas ao longo de sua evolução. Ademais, é
nesta fase que se determina a convenção da escrita.
Existem, atualmente, povos que utilizam essa forma de escrita, como os
chineses e os japoneses. Além de outas escritas contemporâneas, a escrita
19
hieroglífica dos egípcios, a mesopotâmica dos sumérios e as escritas da região do
mar Egeu foram as mais importantes formas ideográficas de representação inscritas
na história. Pode-se caracterizar, ainda, essa forma de escrita como baseada na
representação de ideias.
Entretanto, a escrita ideográfica de alguns povos, em sua evolução, em
direção à representação mais precisa do pensamento humano, desenvolveu um
misto de escrita representativa de ideias e de sons, atribuindo a símbolos valores
sonoros alternados com outros de valores ideológicos. De acordo com Ferreiro
(2013, p. 27),
[...] os hieróglifos egípcios mostram uma trama intricada de desenhos com valor fonético, coexistindo com marcas não figurativas de valores idênticos; os glifos maias talvez sejam o exemplo mais conclusivo da coexistência das mais variadas formas – figurativas ou não – para expressar em sílabas as palavras gravadas na pedra.
Vale acrescentar que, com o tempo, o ideograma foi perdendo o valor
ideográfico ao surgir a necessidade de simplificar o modo de representar as ideias,
na tentativa de transcrever a fala. Adentra-se, assim, à fase alfabética, que se
distingue das demais por meio do uso das letras, mediante a representação
exclusivamente fonográfica.
Considerando a eficiência do sistema alfabético, Cagliari (2009, p. 96)
apontou que ―Apenas os caracteres do sistema alfabético conseguem formar
sistemas fonográficos, representando os sons da fala em unidades menores do que
a sílaba; é, portanto, o sistema mais detalhado quanto à representação fonética‖.
Contudo, o alfabeto, da forma como se conhece hoje, passou por inúmeras
transformações para se tornar esse instrumento utilizado de maneira tão
automatizada, como: a escrita fenícia que utilizou os hieróglifos egípcios para criar
os silabários, produzindo uma quantidade muito pequena de caracteres
representativos de sons consonantais, sem se importar com as vogais, o que
possibilitou aos gregos a adaptação de seu sistema agregando vogais ao alfabeto
consonantal. Posteriormente, os romanos adaptaram essa escrita, criando, com
vogais e consoantes, o sistema alfabético greco-latino, de onde genuinamente se
originou o alfabeto conhecido.
Em suma, a escrita evolui da representação de objetos a partir de desenhos,
exprimindo apenas o valor semântico da mensagem, passando por um momento de
20
representação de ideias por meio de ideogramas para, por fim, chegar ao nível de
representação fonográfica através do alfabeto.
Isso posto, para que se compreenda sucintamente o funcionamento do
sistema de escrita, pode-se defini-lo em dois grandes grupos: o grupo baseado no
significado (escrita ideográfica) – independente de uma língua específica, pode ser
lido em várias línguas, representa os significados que querem transmitir, exigindo
grandes conhecimentos culturais em quem operam; e o grupo com base no
significante (escrita alfabética) – padronizada linearmente, dependente de elementos
sonoros de uma língua específica para ser lido e decifrado, sua escrita não tem
relação com o significado (CAGLIARI, 2009).
É interessante comentar, porém, que nenhum sistema é completamente
ideográfico ou alfabético, pois ―nenhum sistema de escrita conseguiu representar de
maneira equilibrada a natureza bifásica do signo linguístico‖ (FERREIRO, 2001, p.
14). No sistema vigente, são utilizados números, símbolos, sinais de pontuação e
abreviações como complemento a escrita alfabética.
Ampliando a explanação, precisamente discutindo o caso da língua
portuguesa na relação estabelecida entre o significado e o significante dos signos,
Oñativia (2009, p .25) complementou que:
Um exemplo disso na língua portuguesa é quando, por meio da utilização de recursos ortográficos, se estabelece uma diferença nos significados: concerto (substantivo, referente a sessão musical) e conserto (substantivo, referente a restauração de algo quebrado).
Dessa maneira, a escrita alfabética ultrapassa a ideia de um código de
transcrição de fonemas em grafemas, pois, como visto, ela não converte apenas as
unidades sonoras em unidades gráficas de uma língua, mas carrega consigo outros
elementos que não são possíveis de serem grafados. Compondo essa questão, para
Weisz (1985, p. 116):
O sistema alfabético – como outros sistemas de escrita – é o produto do esforço coletivo para representar o que se quer simbolizar: a linguagem. Como toda representação está baseada em uma construção mental que introduz suas próprias regras.
Sendo assim, em defesa da escrita alfabética como um sistema de
representação e não como um código de transcrição, em suas pesquisas sobre a
construção da escrita em classes de alfabetização, Ferreiro (2001, p. 12) apontou
que:
21
A invenção da escrita foi um processo histórico de construção de um sistema de representação, não um processo de codificação. Uma vez construído, poder-se-ia pensar que sistema de representação é aprendido pelos novos usuários como um sistema de codificação. Entretanto, não é assim. No caso dos dois sistemas envolvidos no início da escolarização (o sistema de representação dos números e o sistema de representação da linguagem), as dificuldades que as crianças enfrentam são dificuldades conceituais semelhantes às da construção do sistema, e por isso pode-se dizer, em ambos os casos, que a criança reinventa esses sistemas.
Como visto, ao ignorar tais premissas, o sistema de escrita seria reduzido a
um conjunto de correspondências grafofônicas, ou seja, consideraria a linguagem
como uma mera transcrição fonética, sem levar em conta as atitudes dos falantes, a
intencionalidade, tão pouco a forte carga semântica da palavra e entonação. Para
Cagliari (2009, p. 101), ―É uma ilusão pensar que a escrita é um espelho da fala. A
única forma de escrita que retrata a fala, de maneira a correlacionar univocamente
letra e som, é a transcrição fonética‖.
O sistema de escrita da língua portuguesa seria um exemplo do fenômeno
exposto por Cagliari (2009). Ao mesmo tempo em que utilizamos o alfabeto, outros
caracteres de natureza ideográfica (siglas, abreviatura, símbolos ideográficos, sinais
de pontuação e os números) são incorporados ao texto escrito para compor a
significação pretendida pelo escritor.
A compreensão desses conceitos é essencial no trabalho de alfabetização,
através da concepção de linguagem/língua, do conhecimento de seu sistema, que o
alfabetizador tomará posição na escolha do caminho metodológico que irá seguir, do
perfil de aluno que irá idealizar e do tipo de sujeito que estará ajudando a formar a
partir dessas concepções. Em consonância com o exposto, Ferreiro (2001, p. 16)
defendeu que,
[...] se a escrita é concebida como um código de transcrição, sua aprendizagem é concebida como a aquisição de uma técnica; se a escrita é concebida como um sistema de representação, sua aprendizagem se converte na apropriação de um novo objeto de
conhecimento, ou seja, em uma aprendizagem conceitual.
Porém, essa concepção de linguagem/língua associada ao trabalho
pedagógico das primeiras letras não permeou o seu ensino desde a invenção dos
mais diferentes modos de ensinar a ler e a escrever, ao longo do tempo. Essa, se
comparada à história da escrita, ou mesmo à escrita alfabética, é tão jovem quanto
as crianças que, hoje, estão sentadas nos bancos escolares; é uma ideia recente
22
embasada em pesquisas realizadas pelas ciências que estudam a linguagem, e que
ganharam força e espaço no século XX.
Assim, como a linguagem escrita delineou sua trajetória, as formas para
apropriação de sua tecnologia desenvolveram mudanças históricas, ao passo que
novos modelos sociais geraram a necessidade de ler e escrever, mesmo em épocas
onde a maioria da população era analfabeta (BRASLAVSKY, 1988).
Nesse contexto, diferentes discussões foram travadas durante séculos, a fim
de determinar qual método seria mais eficaz: se os baseados em marcha sintética
(parte da letra, da relação letra-som, ou da sílaba, para chegar à palavra), ou os de
marcha analítica/global (parte de unidades maiores da língua, como o conto, a
oração ou a frase). Segundo Braslavsky (1988, p. 42), essas
[...] denominações sugerem que tal classificação dos métodos se baseava nos processos psicológicos subjacentes. A experiência pedagógica e as contribuições científicas mais recentes incorporam outras caracterizações, como métodos que enfatizam a codificação e os que enfatizam a compreensão. São denominações que sugerem uma diferença fundamental entre os métodos, desconhecida por aqueles que atualmente, às vezes enfaticamente, sustentam que todos os métodos de ensino de leitura só levavam e levam em conta a percepção, enquanto desconsideram a conceitualização.
Foi a partir da defesa dessas diferentes posições, no embate entre formas de
ensinar, que, mundialmente, permaneceu acesa a discussão do melhor método de
ensino chamado ―A Querela dos Métodos‖ por Braslavsky (1971) ou também
conhecido como ―O Grande Debate‖, citado por Morais (1996), e que perdurou até
os anos de 1950 e 1960.
Nas últimas décadas, o combustível que alimentava essa chama constituiu os
resultados de pesquisas norte-americanas que defendiam o método fônico (sintético)
como o melhor para ensinar a ler, principalmente aplicado nas crianças de famílias
pobres, enquanto os analíticos ou globais foram culpabilizados pelo fracasso em
leitura e escrita das crianças daquele país (CARVALHO, 2012).
Outros métodos apareceram na discussão como caminhos alternativos, numa
fusão das duas bases metodológicas, as chamadas propostas ecléticas ou mistas
que ganharam legitimidade e muitos adeptos a sua concepção de aprendizagem.
São os chamados métodos analítico-sintéticos, que tentam combinar aspectos de ambas as abordagens teóricas, ou seja, enfatizar a compreensão do texto desde a alfabetização inicial, como é próprio dos métodos analíticos ou globais, e paralelamente identificar os
23
fonemas e explicitar sistematicamente as relações entre letras e sons, como ocorre nos métodos fônicos (CARVALHO, 2012, p. 18).
Em suma, pode-se dizer que, praticamente, todos os métodos criados na
história geral da alfabetização foram derivações dessas abordagens teóricas, sejam
eles fundamentados nas marchas das partes para o todo (soletração, silábico,
fônico) ou do todo para as partes (palavração, sentenciação, contos ou historietas).
Nessa recorrente disputa de superação do fracasso obtido por uma outra
técnica de ensino, foram gerados centenas de métodos, geralmente publicados em
formas de cartilhas, manuais ou livretos de primeira leitura.
Estudioso da leitura a partir da perspectiva psicolinguística, Smith (19993 apud
CARVALHO, 2012) defendeu que todos os métodos de ensino da leitura dão certo
com algumas crianças, mas nenhum deles é eficaz com todas, pois as condições
básicas para aprender dependem da disponibilidade de material que faça sentido
para o aluno e a orientação de um leitor mais experiente e compreensivo como guia.
Partindo desse pressuposto, cabe a prerrogativa do professor – o leitor
experiente – escolher qual caminho percorrer, qual método se encaixa em sua
concepção de linguagem escrita e que tipo de leitor e escritor pretende formar.
Assim sendo, faz-se necessário percorrer, conforme demonstrado com a
escrita no início deste estudo, a história da alfabetização, apresentando os principais
métodos que marcaram essa trajetória, por vias mais gerais, atinando os espaços de
tempo mais amplos, sem deixar de lado a descrição de suas características
principais, procurando evidenciar vantagens e desvantagens em suas técnicas, a
partir das produções científicas elaboradas por autoridades no campo do
ensino/aprendizagem da leitura e da escrita oriundos dos conhecimentos da História,
da Psicologia e da Linguística.
3 SMITH. F. Leitura Significativa. Porto Alegre: ArtMed, 1999.
24
1.2 Do ABC à Psicogênese: uma visita aos métodos
Foi nossa intenção realizar uma contextualização da história da alfabetização,
seguindo a divisão proposta por Mendonça e Mendonça (2007) em três grandes
períodos na história da humanidade: o primeiro localizado na Antiguidade e a Idade
Média, predominantemente marcado pelo método da soletração; o segundo, entre
os séculos XVI e XVIII, e que se estendeu até a década de 1960, surgido da reação
contra o método da soletração e determinado pela criação de novos métodos
sintéticos e analíticos; o terceiro e último período, que tem como marco a divulgação
da teoria da psicogênese da língua escrita, distingue-se pelos demais devido à
refutação da necessidade de associação entre grafia e som.
Nas antigas Grécia e Roma, foi criado o primeiro método de ensino da leitura:
o método alfabético, também denominado método da soletração ou ABC. Sem
sombra de dúvida, foi o método mais utilizado e difundido no curso da história da
civilização ocidental (MORAIS, 1996). Todavia, ele foi perdendo credibilidade e
caindo em desuso a partir do século XVI, ao passo que novas metodologias mais
eficazes na época prometiam melhores resultados.
Entretanto, na Idade Moderna, algumas variações do método foram
amplamente utilizadas em grandes países, como os da América do Norte,
(conhecido em inglês como spelling-method) que, entre os anos de 1783 e 1890,
vendeu 80 milhões de exemplares de cartilhas e, no Brasil, adentrou no início do
século XX, em algumas regiões do país. Em nosso país, o método foi mais
conhecido em forma de livreto chamado ‗Cartas do ABC‘, apesar de haver outras
variações (RIZZO, 1986).
Sua sistemática compreendia, primeiramente, decorar os nomes das letras
em ordem alfabética; depois, fazia-se o sentido inverso. Feito isso, seriam
apresentadas as formas gráficas do alfabeto para, então, formar combinações entre
as letras, assim como: ab e ba; ib e bi etc. Simultaneamente, deveriam ser
pronunciadas ao reconhecimento de sua forma gráfica (relação grafia e som),
distribuídas em colunas de maiúsculas e minúsculas, seguindo as letras do alfabeto,
até esgotar todas as possibilidades combinatórias. Mais tarde, as possibilidades de
combinações aumentavam em grupos de trilíteras e, assim por diante, até chegar ao
estudo das sílabas.
25
Os primeiros textos apresentados vinham segmentados em sílabas, depois textos em escrita normal, mas sem espaço entre as palavras e sem pontuação, fato que tornava a escrita mais complexa que a atual. Segundo Platão, através desse método, quatro anos não eram demais para se aprender a ler (MENDONÇA; MENDONÇA, 2007, p. 20).
O método baseia-se na repetição, valendo-se exclusivamente da
memorização; e só depois de muito trabalho se iniciava a leitura real. Sua intenção
não era voltada ao significado das palavras, tampouco o vocabulário e os assuntos
do universo infantil eram relevantes no processo, exigindo um excesso de
concentração forçada e penosa. Vale comentar que todos os textos utilizados eram
de cunho religioso, escritos em latim e a leitura era afastada dos interesses da
criança, esvaída de informação, desprazerosa, tida apenas como um exercício do
bê-á-bá.
Alguns artifícios foram criados para simplificar esse processo: alfabetos em
couro ou tecido foram confeccionados, em casos de famílias mais ricas, as letras
foram forjadas em ouro ou representadas cada uma por um escravo; blocos ou
tábulas de madeira e gesso continham o alfabeto entalhado para facilitar a
associação. Outras formas mais lúdicas de incrementar essa técnica foram
encontradas nas pesquisas sobre métodos de alfabetização de Rizzo (1986, p. 7).
Basedow, porque acreditava que a criança aprendesse melhor através do brinquedo, sugeriu a apresentação de letras como biscoitos (massa doce) para que as crianças as ―deglutissem‖ por completo. Estas depois, seriam, imediatamente, associadas à figuras de palavras que começassem pela letra comida. Estas depois, combinadas com outras (também comidas) formariam as sílabas, depois as palavras, etc. (grifos da autora).
Atualmente, ainda são percebidos alguns resquícios desses artifícios
presentes no cotidiano, como a sopa de letrinhas, biscoitos industrializados
estampados com a letra associada a um objeto ou animal, os abecedários e tabelas
contendo as sílabas nas paredes das salas de aula.
Para Morais (1996) e Rizzo (1986), esse tipo de método já está abandonado;
no entanto, segundo Carvalho (2012), ―o método continua em uso no início do
século XXI, pois o livreto Método ABC: Ensino prático para aprender a ler (sem
indicação de autor ou data) ainda pode ser encontrado em papelarias do interior do
Brasil (p. 22, grifos da autora)‖.
26
O segundo período, delimitado a partir do século XVI, ficou marcado pela
criação de inovações no ensino da leitura e escrita, a fim de superar a morosidade
do método da soletração e a dificuldade causada pela diferença entre o nome e o
som da letra. Esse período caracteriza-se pela gênese dos métodos sintéticos e
analíticos e, principalmente, pelo grande debate entre os defensores de ambas as
abordagens.
Foi na Alemanha do século XVI que o gramático Valentin Ickelsamer4
apresentou um método baseado na aprendizagem das correspondências entre as
letras e seus sons, a partir de palavras conhecidas por seus alunos. Algum tempo
depois, na França, educadores elaboraram outros métodos alicerçados na relação
de fusão de sons e letras, por meio de materiais diversificados. Dessa maneira,
surgiu, na história da alfabetização, o método fônico.
Assim como a soletração, o método fônico é sintético, entretanto, o objetivo
principal desse método é o de levar a atenção do aprendiz para a dimensão sonora
da língua, no tocante, parte do menor elemento da palavra: o som, denominado
fonema5.
Quanto à sua técnica, primeiramente apresenta-se o som das vogais,
concomitantemente à forma gráfica das letras, mediante uma insistente repetição do
som; espera-se que o aluno associe o som à letra e a pronuncie automaticamente,
ao final do processo de condicionamento. Feito isso, as consoantes são
apresentadas, em grupos de três ou quatro letras, e seus sons são combinados com
os das vogais, não necessariamente em ordem alfabética. Elas podem ser
introduzidas em determinada ordem previamente estabelecida, dependendo dos
critérios funcionais propostos pelo professor. Por fim, são feitas as combinações de
palavras com os sons conhecidos, para a formação de frases.
Em sua valiosa obra, em que compara métodos de alfabetização, Rizzo
(1986, p. 9) afirmou que são consideradas algumas vantagens na utilização do
método fônico, como:
1. Uso do som da letra no reconhecimento da palavra (diferente do alfabético).
4 Protestante, gramático alemão que viveu entre 1500 e 1541. Escreveu ―Teutsche Grammatica‖ obra
importante na linguística. http://www.neue-deutsche-biographie.de/sfz36246.html 5 Para Dubois et al. (1973), fonema ―é a menor unidade destituída de sentido passível de delimitação
na cadeia da fala‖.
27
2. Organização lógica, muito ao gosto do adulto, pois transmite uma enorme segurança quando possibilita o controle entre o que já foi ―dado‖ e o que ainda não foi. 3. Econômico, pois exige pouco material específico. 4. Facilmente graduado em etapas precisas, constantes cada qual, de séries de exercícios pré-estabelecidos. 5. Fácil de ser aplicado por qualquer pessoa, mesmo leiga, pelas suas qualidades lógicas de organização (grifos meus).
A autora apontou algumas ―vantagens‖ referentes ao método que, na
verdade, não se propõe muito a favor do aluno. O assunto será discutido com
profundidade mais adiante.
Desde a sua criação, por ser econômico e de fácil explicação, o método
fônico foi amplamente difundido e largamente utilizado em diferentes países e em
diversas partes do mundo, apesar das contraindicações referentes a determinadas
línguas.
Até os dias atuais, o método passou por evoluções, em consequência dos
avanços da Psicologia e da Linguística, com vistas ao aumento do prazer do aluno
durante o processo, como: apoio em figuras para ilustrar as sequências de letras que
representam o som emitido, utilização de onomatopeias para associar o som à letra,
realce de cores. Sobre isso, Carvalho (2012, p. 25) acrescenta que
[...] houve uma preocupação com a compreensão do sentido da leitura, o que resultou na tendência para introduzir frases em lugar de apresentar à criança apenas palavras isoladas. Assim, na atualidade, métodos fônicos tendem a ser classificados como mistos.
Ao ter sofrido acentuadas evoluções, segundo Carvalho (2012), por misturar
os passos da marcha analítica com as atividades de marcha sintética, o método
aproxima-se cada vez mais de um processo analítico-sintético. Nessa nova
roupagem, ele assumiu diferentes avatares6 para distingui-lo do fônico que o
procedeu: psicofônico, psicofonético e, mais recentemente, o metafônico.
Alguns desses métodos utilizam elementos lúdicos (fantoches, músicas,
dramatizações, desenhos, jogos etc.), outros postergam o ensino dos nomes das
letras até que o aluno domine as relações grafofônicas e, ainda, na era digital, os
que vêm acompanhados de softwares educativos com jogos e atividades podem ser
encontrados no mercado. Todavia, todos comungam da mesma base didática: o
trabalho centrado nos fonemas.
6 Termo utilizado por Élie Bajard (2006) para se referir às roupagens que o método fônico assume.
28
Regressando ao trajeto histórico proposto, devido ao exagero na pronúncia do
som das consoantes isoladas, o método tornou-se motivo de escárnio e fadou ao
fracasso ainda no século XVIII. Depois disso, outra possibilidade de superação das
dificuldades do método fônico foi criada na França: o método silábico (MENDONÇA;
MENDONÇA, 2007).
Popularmente conhecido como bá-bé-bi-bó-bu, o método silábico parte da
sílaba pronta para ensinar a ler, diferentemente da soletração e do fônico que
preconizam a letra e o som, respectivamente. Na organização dos passos do
método, primeiramente apresentam-se as cinco vogais sozinhas, formando-se com
elas as primeiras sílabas (ditongos ai, oi, ei, ui, eu, au, etc...). Em seguida, todas as
consoantes são apresentadas em ordem alfabética, uma a uma, são ligadas com as
vogais formando as sílabas e suas famílias silábicas. Por meio de ilustrações, as
sílabas destacadas são associadas a figuras para maior fixação. Por fim, formam-se
as palavras e, dependendo das possibilidades de combinação, pequenas frases.
Vale lembrar que, por se tratar de métodos de fácil aplicação (qualquer
pessoa alfabetizada é capaz de ensinar), por serem de baixíssimo custo e
relativamente eficazes na avidez de resultados, as técnicas da abordagem silábica
foram altamente utilizadas e recomendadas. Porém, várias críticas foram feitas aos
métodos de marcha sintética, como o mecanicismo e a sobrecarga à memória
infantil, sem contar a ausência de significação das palavras e, especialmente, a
produção de um grande contingente de alunos desinteressados pela leitura (RIZZO,
1986).
Para driblar essa problemática, surgiu o método analítico ou global de
alfabetização. Idealizado por pensadores da Psicologia e da Pedagogia – Adam,
Decroly, Claparède, Jacotot e outros – defendeu a criação de uma metodologia mais
significativa e que fosse próxima da realidade da criança, concebida de sistemática
inversa aos sintéticos, e que partisse da palavra como um todo, inserida dentro de
um contexto infantil.
Os fundamentos do método global, em que os autores supracitados se
alicerçavam, partiram da concepção de que
[...] o conhecimento aplicado a um objeto se desenvolve em três atos: o sincretismo (visão geral e confusa do todo), a análise (visão distinta e analítica das partes) e a síntese (recomposição do todo com o conhecimento que se tem das partes) (MENDONÇA; MENDONÇA 2007, p. 24, grifos dos autores).
29
Todavia, vale ressaltar que, Comenius, no século XVII, em seus ricos escritos
sobre a educação formal com vistas à valoração do pensamento infantil, critica o
método da soletração e cria o maior precedente do método global ao publicar sua
obra Orbis sensualium pictus. Por meio dela, o autor defendia o ensinamento de um
alfabeto vivo, associado a elementos que se correspondiam de forma
onomatopeicas, sempre relacionadas às figuras e ao universo do aluno.
Infelizmente, suas ideias não tiveram maiores efeitos, levando-o, posteriormente, a
impugnar seus ensinamentos com a publicação da Didactica Magna. Reiterando
essa assertiva, Braslavsky (1971, p. 61) completou:
É sabido que contrariamente à sua Didactica Magna, na qual seguia a rotina do ensino da leitura a partir dos elementos singulares do alfabeto, em sua Orbis pictus Comenius apresenta a palavra associada à representação gráfica do que ela significasse, para que as palavras pudessem ser aprendidas com rapidez, eliminando a ―deprimente tortura‖ da ―penosa soletração‖. Exaltando a importância do interesse e da associação do conceito para realizar a leitura, aconselha a unir o trabalho da mão à exercitação da vista e do ouvido (grifos da autora).
A partir da obra comeniana, foram criados diferentes métodos de marcha
analítica, todos partindo da leitura da frase ou da palavra, para se chegar, às vezes,
ao reconhecimento de suas partes, a sílaba ou a letra. Contudo, receberam diversos
nomes: ―global‖, ―natural‖, ―ideovisual‖ etc.; todos com suas justificativas alicerçadas
em fundamentos psicológicos.
O método global serviu aos interesses do movimento educacional renovador
denominado Escola Nova. Iniciado no final do século XIX, o movimento propagou-se
pela Europa e Estados Unidos, no século XX, e serviu de base para as novas teorias
e práticas educacionais que visavam o rompimento com as antigas práticas
escolares tradicionais, baseadas em memorizações e castigo. Em contrapartida, o
movimento apresentava uma proposta de educação a partir do respeito aos
interesses e necessidades das crianças, além de procurar estabelecer relações
entre a escola e a vida social do aprendiz.
Dentro desse movimento, o nome que se destacou mundialmente quanto ao
ensino da leitura foi do eminente médico, psicólogo e pedagogo Ovídio Decroly
(1871-1932). Seus trabalhos continham a formulação de uma série complexa de
conceitos que reuniram os princípios e as justificativas da prática da metodologia
30
analítica, fundamentadas na psicologia da Gestalt ou psicologia da forma
(CARVALHO, 2012). Posteriormente, estudiosos do ensino da leitura do mundo
todo, simpáticos ao ensino global, recorreram aos seus estudos para formular
pesquisas acerca do ensino da leitura, como, o francês Célestin Freinet e o brasileiro
Lourenço Filho7.
Como visto, ao longo dos séculos, vários foram os métodos criados centrados
no debate de qual seria o melhor caminho para ensinar a ler. No impasse entre os
defensores da marcha sintética e analítica, os métodos possuíram diversas formas e
nomenclaturas.
Isso posto, por se tratar de um período relativamente curto dentro da história
da educação, mais especificamente em seu recorte, da história da alfabetização, e
considerando o grande cabedal de técnicas de ensino elaboradas, julgou-se
pertinente a apresentação de um quadro sinóptico, contido em Mendonça;
Mendonça (2007), a fim de se recapitular a trajetória exposta:
Quadro I - Sinopse das fases dos métodos
FASES MÉTODOS
Métodos
Soletração
Fônico
Silábico
Palavração
Sentenciação
Contos e da
experiência infantil
1ª fase Alfabeto: letra, nome e forma
Letras: som e grafia
Letras: consoantes e vogais
Palavras
Sentenças
Conto ou texto
2ª fase Sílabas Sílabas Sílabas Sílabas Palavras Sentenças
3ª fase Palavras Palavras Palavras Letras Sílabas Palavras
4ª fase Sentenças Sentenças Sentenças Sentenças Letras Sílabas
5ª fase Contos ou textos
Contos ou textos
Contos ou textos
Contos ou textos
Contos ou textos
Letras
Fonte: Mendonça; Mendonça (2007, p. 25).
O terceiro e último período inicia-se a partir da década de 1970, marcado pela
contribuição da ciência, tendo como principais representantes as pesquisas das
psicolinguistas argentinas Emilia Ferreiro e Ana Teberosky. As pesquisadoras
iniciaram uma investigação baseada na teoria construtivista de Jean Piaget, partindo
do pressuposto de que ―a aquisição do conhecimento se baseia na atividade do
sujeito em interação com o objeto de conhecimento, já antes de chegar à escola,
7 Apresentaremos com maior profundidade as influências das pesquisas sobre leitura escrita
realizadas pelo autor na subseção que tratamos sobre a alfabetização no Brasil.
31
tem ideias e faz hipóteses que percorre até a aquisição da leitura e da escrita‖
(MENDONÇA; MENDONÇA, 2007, p. 41).
Essas pesquisas tiraram o foco centrado no método de ensino, levando os
olhares para a aprendizagem da criança. O marco desse período localiza-se na obra
‗Psicogênese da língua escrita‘ (1999)8, na qual Ferreiro e Teberosky descrevem
estágios linguísticos em que a criança formula hipóteses sobre a escrita, trilhando
um caminho que pode ser representado da seguinte forma:
Quando procuramos compreender o desenvolvimento da leitura e escrita, do ponto de vista dos processos de apropriação de um objeto socialmente constituído (e não do ponto de vista da aquisição de uma técnica de transcrição), buscamos ver se havia modos de organização relativamente estáveis que se sucediam em certa ordem. Agora sabemos que há uma série de modos de representação que precedem a representação alfabética da linguagem; sabemos que esses modos de representação pré-alfabéticos se sucedem em certa ordem: primeiro, vários modos de representação alheios a qualquer busca de correspondência entre a pauta sonora de uma emissão e a escrita; depois, modos de representação silábicos (com ou sem valor sonoro convencional) e modos de representação silábico-alfabéticos que precedem regularmente a aparição da escrita regida pelos princípios alfabéticos (FERREIRO, 2001, p.10)
Assim sendo, é possível perceber que, com a contribuição da Psicogênese da
língua escrita, a criança se
[...] apropria de conceitos e das habilidades de ler e escrever, mostrando que a aquisição desses atos linguísticos segue um percurso semelhante àquele que a humanidade percorreu até chegar ao sistema alfabético (MENDONÇA; MENDONÇA, 2007, p. 45).
No entanto, Ferreiro e Teberosky não criaram um método para a
alfabetização; trouxeram contribuições da ciência para a reflexão e auxílio no
entendimento da aquisição do ato de ler e escrever, pois comumente se ouve
discursos de professores ou se verificam materiais didáticos elaborados por grandes
editoras que se intitulam construtivistas, sendo que tais tentativas de metodização da
Psicogênese da língua escrita só trouxeram equívocos de interpretação que são
divulgadas até hoje.
8 A referência aqui utilizada trata-se da reedição da obra utilizada para compor este trabalho
investigativo. A data de referência, publicada pela primeira vez no Brasil, data no ano de 1984.
32
2 ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL: OS MÉTODOS E AS CARTILHAS
Como visto, a construção da história da alfabetização no mundo ocidental foi
tensionada pela criação de propostas metodológicas ditas inovadoras, a fim de
superar o fracasso ou a morosidade de ―antigas‖ práticas de ensino. Imbuído por um
discurso moderno e por descobertas científicas, o ―novo‖ surgia classificando o
―antigo‖ de arcaico e tradicional. Mantinha-se, assim, acesa a chama do grande
debate entre os defensores dos métodos analíticos e sintéticos até a chegada de
pesquisas científicas mais recentes, que colocaram a aprendizagem no centro das
atenções e, consequentemente, os métodos de ensino ocuparam o lugar periférico
nas discussões.
2.1 A trajetória da alfabetização brasileira através dos métodos
No Brasil, não ocorreu diferente, pois, segundo Mortatti (2013, p. 1):
Em nosso país, a história da alfabetização tem sua face mais visível na história dos métodos de alfabetização em torno dos quais, especialmente desde o final do século XIX, vêm-se gerando tensas disputas relacionadas com "antigas" e "novas" explicações para um mesmo problema: a dificuldade de nossas crianças em aprender a ler e a escrever, especialmente na escola pública (grifos da autora).
Tais métodos foram concretizados em livros didáticos, comumente
denominados ‗cartilhas‘, por se tratar de diminutivo de carta, que em sua gênese era
utilizada para se apresentar as primeiras letras. Cagliari (1998, p. 22) assim melhor
nos explica: ―O nome ―cartinha‖ ou ―cartilha‖ tem a ver com ―carta‖, no sentido de
esquema, mapa de orientação‖ (grifos do autor).
As cartilhas foram criadas como material para facilitar o ensino das letras, ao
passo que a invenção da imprensa redimensionava o cenário da leitura, na Europa
renascentista, tornando a leitura coletiva das grandes obras da época cada vez mais
individualizada. Novas necessidades surgiram para facilitar o ensino mútuo da leitura
e da escrita, concomitantemente com a crescente demanda por escolarização
exigida pela nova classe burguesa que então emergia.
33
Por isso, a preocupação com a alfabetização passou a ter uma importância muito grande. A primeira consequência disso foi o aparecimento das primeiras ―cartilhas‖. Nessa época, surgem as primeiras gramáticas das línguas neolatinas, e esse foi o outro motivo que levou os gramáticos a se dedicarem também à alfabetização: era preciso estabelecer uma ortografia e ensinar o povo a escrever nas línguas vernáculas, deixando de lado cada vez mais o latim (CAGLIARI, 1998, p. 19, grifos do autor)
A preocupação de ensinar a ler e a escrever na língua materna se estendeu
por toda a Europa entre os séculos XV e XVIII, promovendo uma grande produção
de cartilhas e livros de leitura em diferentes línguas. Até, então, quando se possuía
livros, os alunos aprendiam naqueles que levavam de casa para as aulas.
(MENDONÇA; MENDONÇA, 2007).
No caso do ensino da língua portuguesa, a publicação da cartilha mais antiga
encontrada na história foi a obra ‗Cartinha‘ (1540), de autoria do gramático João de
Barros (1496-1571). Ela foi impressa em Lisboa e alguns exemplares foram
distribuídos as colônias de Portugal. Sua sistemática seguia o princípio da
soletração, trazia o alfabeto impresso em letras góticas, tabelas com as
combinações de letras que formavam as sílabas e uma lista de palavras ilustradas
por desenhos.
Entretanto, no Brasil, chegaram outras cartilhas além da escrita por João de
Barros. Exemplo disso, ―[E]m Lisboa, Antonio Feliciano de Castilho elaborou o
Método Castilho para o ensino rápido e aprazível o ler impresso, manuscrito e
numeração do escrever (1850), que continha o abecedário, silabário e textos de
leitura‖ (MENDONÇA; MENDONÇA (2007, p. 27, grifos dos autores), e além desse
método, ―outra cartilha portuguesa que ficou muito famosa inclusive no Brasil foi a de
João de Deus (1830-1896), chamada Cartilha maternal ou arte de leitura‖
(CAGLIARI, 1998, p. 24, grifos do autor).
Para Mortatti (2000), a publicação da cartilha de João de Deus foi o primeiro
de quatro momentos que marcaram a história da alfabetização no Brasil. Esse
período, entre 1876 e 1890, foi singularizado pelo aparecimento do método da
palavração contido na Cartilha Maternal que, diferentemente das propostas
alfabetizadoras circulantes na época, centradas em práticas de marcha sintética,
ensinava a partir da palavra para, depois, analisar os valores sonoros das letras.
Ademais, nesse momento, houve a primeira tentativa de metodização do ensino, ou
34
seja, a unificação de um roteiro em comum para alfabetizar aplicado a todas as salas
de educação primária.
O maior adepto do material e seu veemente panfletista no Brasil foi o
professor positivista Antonio Silva Jardim (1860 – 1891), que considerava o método
revolucionário, baseado na ciência, capaz de enfrentar o atravanco que a educação
se encontrava.
Apesar de nunca ter sido reconhecido oficialmente, a partir desse momento, com o método João de Deus, a questão do método se torna objeto de disputa na alfabetização institucional brasileira. A atuação de Silva Jardim, fundamentada na filosofia positivista, apregoa a ideia de que o método deve estar fundamentado na ciência, negando o passado, tido como arcaico e obstáculo ao
progresso social (BAGATIN, 2012, p. 54)
O segundo momento, ainda seguindo a delimitação histórica proposta por
Mortatti (2000), entre os anos de 1890 e 1920, ficou conhecido pela disputa entre os
defensores do, então, ―novo‖ método da palavração e dos antigos métodos sintéticos
(especialmente a silabação), sem deixar de lado a reforma da instrução pública
paulista concebida em 1890, que, dentre outros assuntos, propunha uma nova
postura alfabetizadora baseada no método analítico, que posteriormente serviu de
modelo para as reformas de outros estados brasileiros.
Consequentemente, a disputa cerrada entre os defensores de ambas as
vertentes metodológicas, sintética ou analítica, emparelhada à prosperidade do
crescente mercado editorial, propiciou a criação de diferentes cartilhas, dentre
essas, as baseadas no modelo da silabação aumentaram vertiginosamente.
Com a reforma da instrução pública paulista, surgiu, no cenário educacional,
uma nova geração de normalistas formada pela Escola Normal de São Paulo, que,
adeptas do método analítico, contribuíram para a sua difusão e institucionalização
no aparelho escolar paulista, através da produção de cartilhas, de artigos de
combate e de instruções normativas para seu uso. Essa situação permaneceu até a
repercussão da Reforma Sampaio Dória, de 1920, que previa a ―autonomia didática‖
aos professores.
No interior desse momento, encontra-se, ainda, um tipo particular de disputa entre os defensores do método analítico, permitindo classificá-los em ―mais modernos‖ e ―modernos‖. Esse tipo de disputa se trava a respeito do modo de processar o método analítico – a palavração, a sentenciação ou a ―historieta‖ – de acordo com a biopsicologia da criança e acaba por fundar uma nova tradição: o
35
método analítico como ―bússola da educação‖ (MORTATTI, 2000, p. 26, grifos da autora).
A partir de 1920, marca-se o terceiro e importante momento da história da
alfabetização brasileira, inicialmente pelo embate dos defensores do método misto
ou eclético e sectários do método analítico. Em consequência, a chama desse
embate diminui gradativamente, enquanto novos conceitos sobre o ensino da leitura
aparecem, a partir do surgimento, no cenário nacional, de um movimento com vistas
à renovação cultural e educacional, relativizando a importância do método.
Esse movimento, denominado Escola Nova9, foi formado por um grupo de
intelectuais da época, respaldado pela expansão qualitativa e quantitativa do
mercado editorial, pelas diferentes reformas do ensino, pela profissionalização dos
educadores e pelas Conferências Nacionais de Educação, todos envolvidos no
mesmo ideário de construção social, regeneração social e moral da República
(MORTATTI, 2000).
Entretanto, foi em 1932, por meio da redação do ‗Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova‘, escrito e primeiramente assinado por Fernando de Azevedo e
apoiado por 26 intelectuais signatários da época, dentre eles Lourenço Filho10, que
se tem o marco do movimento (SAVIANI, 2011).
O movimento de reformas propunha, basicamente, o rompimento com o
passado, com a escola tradicional que, antiquada, excludente e fundamentalmente
marcada pelo ensino realizado pela memorização e pela tortura, dificultava a
recomposição do tecido social decadente. Ao traduzir o pensamento escolanovista,
Bertoletti (2006, p. 48) afirmou:
9 As ideias do movimento ‗Escola Nova‘ ou ‗escolanovismo‘, chegaram ao Brasil no final do século
XIX e ganharam força no início do século XX. Fortemente influenciado pelo filósofo norte-americano John Dewey (1859-1952) e do filósofo francês Émile Durkheim (1858-1917), o escolanovismo propunha uma série de mudanças educacionais, tais como: ensino voltado para as necessidades do aluno, a ruptura dos tradicionais modelos de ensino, além da garantia de uma educação laica, gratuita e para todos (GHIRALDELLI JUNIOR, 2009). 10
Manuel Bergström Lourenço Filho nasceu no dia 10 de março de 1897. Em 1914, formou-se professor na Escola Normal de Pirassununga, posteriormente, no ano de 1916, na cidade de São Paulo, diplomou-se pela Escola Normal Secundária da Praça da República e bacharel na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1929. As atividades intensas de estudos lhe renderam uma Cadeira de professor na Escola Normal de Piracicaba, em 1921, onde lecionou pedagogia e psicologia. Nos dois anos seguintes, encabeçou a reforma da instrução pública no Ceará e lecionou na Escola Normal de Fortaleza. Em 1924, de volta ao estado de São Paulo, reassume sua Cadeira na Escola Normal de Piracicaba, e no outro ano passou à Escola Normal Caetano de Campos, na capital do estado, onde lecionou até o ano de 1930 (SAVIANI, 2011).
36
Para essa recomposição, elegeu-se a educação como elemento propulsor, capaz de ―reconstruir‖ o país e lançá-lo de vez para a modernidade, tornando-se necessária uma escola não nos moldes que se vinha construindo, mas uma ―escola nova‖.
Dentro desse grupo que acreditava na recomposição do país mediante um
projeto modernizador da educação, Lourenço Filho exerceu lugar de destaque,
segundo Saviani (2011, p. 205):
A par da administração de instituições, da pesquisa e da docência em psicologia e suas aplicações educativas e de grande número de publicações especializadas, Lourenço Filho dedicou atenção especial à escola elementar, envolvendo-se diretamente na produção e publicação de textos didáticos, seja como consultor editorial, seja redigindo, ele próprio, cartilhas e livros para uso nas escolas.
Como visto, Lourenço Filho foi autor de uma extensa obra sobre a educação,
em especial sobre a psicologia e a educação do povo, contando com mais de duas
centenas de textos (MORTATTI, 2000).
Contudo, para este texto, limitar-nos-emos à discussão das suas obras de
maior destaque e de grande influência na educação de base no Brasil, um ensaio,
‗Testes ABC: para verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e
da escrita‘ (2008), e duas cartilhas: ‗Cartilha do povo – para ensinar a ler
rapidamente‘ (1953) e, por fim, a cartilha ‗Upa, Cavalinho!‘ (1958), emblemáticas e
representativas do pensamento do autor sobre o ensino da leitura e escrita,
predominaram por mais de meio século no cenário educacional do país.
Os ‗Testes ABC: para verificação da maturidade necessária à aprendizagem
da leitura e escrita‘ expressava a nova mentalidade educacional que apregoava o
movimento renovador.
Partindo da necessidade de tudo medir cientificamente, forte corrente no
cenário das pesquisas científicas no início do século XX, os Testes ABC foram
tendenciosamente influenciados em sua elaboração pelos mundialmente conhecidos
testes de psicometria realizados pelo francês Alfred Binet (SILVA; SCHELBAUER,
2007).
Diferentemente dos testes empregados por outros estudiosos da época, que
eram complexos e exigiam um ambiente especializado e um profissional qualificado
para aplicar o exame, os Testes ABC eram de baixo custo, simples, rápido e de fácil
aplicação. Dessa forma, pelo caráter simples e econômico, seria possível a sua
37
aplicação por qualquer professor, em qualquer condição física da escola e em larga
escala, obtendo-se rapidamente o resultado da mensuração.
Consistia, esse, em oito testes e, em apenas alguns minutos, efetivava-se a
sua aplicação. A intenção era medir: coordenação visivo-motora, memória imediata,
memória motora, memória auditiva, memória lógica, prolação, coordenação motora e
o mínimo de atenção e fatigabilidade. A partir desses resultados, seria possível um
prognóstico com vistas à classificação dos alunos em agrupamentos gerais, para o
pesquisador:
Desde que obtido, nos termos numéricos que as provas permitem, será então possível classificar os alunos em três grupos gerais, quanto ao que deles se possa esperar: os que, nas condições comuns do ensino possam rapidamente aprender, ou seja, num só semestre letivo; os que normalmente venham a aprender no decurso de todo o ano; e, enfim, as crianças menos amadurecidas, que só lograrão a aquisição da leitura e da escrita, nesse prazo, quando lhes dediquemos atenção especial, em exercícios preparatórios, adequadas condições de motivação ou, mesmo, certo trabalho corretivo. O diagnóstico permitirá, pois, um prognóstico, quer dizer, a previsão dos resultados do trabalho escolar. Isso ensejará nas escolas isoladas a organização de seções pelo nível de maturidade conhecida; e, nas escolas graduadas, a organização de classes seletivas, praticamente homogêneas. (LOURENÇO FILHO, 2008, p. 15)
Como visto, os objetivos de Lourenço Filho eram bem claros: a aferição da
maturidade para aprender a ler e a escrever. A partir dos resultados estatisticamente
tabulados, dar-se-ia a criação de classes homogêneas. Dessa forma, na crença do
autor, o teste facilitaria o trabalho do professor, proporcionando economia em seu
tempo, além de avaliação mais justa do esforço individual do aluno, na tentativa de
fazer com que as crianças pudessem ler e escrever mais rápido.
A três pontos fundamentais respondem, portanto, os Testes ABC: ao diagnóstico das condições de maturidade para aprender; ao prognóstico do comportamento das crianças nas situações sucessivas do ensino; e à necessidade de maior estudo de certos alunos, geralmente tidos como de comportamento difícil, ou ‗‗crianças-problema‘‘ (LOURENÇO FILHO, 2008, p. 16).
Evidencia-se, assim, o valor prognóstico dos testes, pois, no pensamento de
Lourenço Filho, o fracasso inicial da aprendizagem das primeiras letras se dava por
sua imaturidade, as palavras a seguir confirmam a assertiva:
Algumas, não menos dotadas intelectualmente, mas imaturas para a leitura e a escrita, caem numa classe em que, como sempre acontece, outros se apresentam capazes de aprendizagem rápida.
38
Por mais cuidado que o mestre possa ter, criam-se desde cedo para com o estudo, nessas pobres crianças, atitudes prejudiciais ao seu progresso escolar. Recrudesce o sentimento de inferioridade, ou criam-se complexos emotivos mais ou menos graves (LOURENÇO FILHO, 2008, p. 83).
Com caráter popular, os testes logo se difundiram concomitantemente com as
ideias de homogeneização das salas, atribuindo ao aluno competências individuais
para o aprendizado, gerando um novo posicionamento frente ao ensino de ler e
escrever, que, nesse momento, era disputado por ideias centralizadas nos métodos
– de marcha sintética ou analítica – e não nos alunos.
Desse ponto de vista, a importância do método de alfabetização passou a ser relativizada, secundarizada e considerada tradicional. Observa-se, no entanto, embora com outras bases teóricas, a permanência da função instrumental do ensino e aprendizagem da leitura, enfatizando-se a simultaneidade do ensino de ambas, as quais eram entendidas como habilidades visuais, auditivas e motoras. (MORTATTI, 2006, p. 09)
Como visto, ao passo que as ideias de Loureço Filho adentravam os espaços
escolares, segundo Mortatti (2006, p. 09):
Vai-se, assim, constituindo um ecletismo processual e conceitual em alfabetização, de acordo com o qual a alfabetização (aprendizado da leitura e escrita) envolve obrigatoriamente uma questão de ―medida‖, e o método de ensino se subordina ao nível de maturidade das crianças em classes homogêneas. A escrita continuou sendo entendida como uma questão de habilidade caligráfica e ortográfica, que devia ser ensinada simultaneamente à habilidade de leitura; o aprendizado de ambas demandava um ―período preparatório‖, que consistia em exercícios de discriminação e coordenação viso-motora e auditivo-motora, posição de corpo e membros, dentre outros.
Além do mais, para Mortatti (2000), esse período de forte permanência do
pensamento de Lourenço Filho, por meio do uso dos Testes ABC, foi denominado
de ―a alfabetização sob medida‖, pois o resultado de como ensinar estava
condicionado à maturidade da criança e as questões de ordem didática ficariam,
portanto, submissas às de ordem psicológica.
Torna-se evidente, através do exposto, a preocupação de Lourenço Filho em
estudar a criança a fim de adaptá-la ao modelo de escola que se propunha na
época. A preocupação com as individualidades dos escolares sempre ficou nítida em
suas publicações e, atrelada ao sucesso de suas pesquisas e à preocupação da
escolarização do povo, o autor propõe uma nova postura por meio da seleção dos
39
níveis de maturidade, preconizando a economia de tempo e energia dos mestres,
bem como o aumento da produtividade escolar.
Após o sucesso dos resultados dos testes, o professor escolanovista, ainda
preocupado com a escolarização do povo, no tocante à formação de uma
mentalidade nacionalista, moralizante e desenvolvimentista, por via do ensino das
primeiras letras, não poderia deixar incompleto o plano de erradicar o analfabetismo.
Sendo assim, escreveu a Cartilha do Povo – para ensinar a ler rapidamente, obra
destinada a crianças e adultos.
Antes de tudo, cabe elucidar que, escrita seis anos antes da publicação dos
‗Testes ABC, a Cartilha do povo – para ensinar a ler rapidamente‘ foi gerada
―concomitantemente ao desenvolvimento das pesquisas experimentais sobre o nível
de maturidade para o aprendizado da leitura e escrita‖ (BERTOLETTI, 2006, p. 65).
Nessa cartilha foi inscrita a nova mentalidade educacional que o movimento
renovador Escola Nova propunha, ou seja, o rompimento com as antigas práticas
escolares tradicionais, baseadas em memorizações e castigo, residentes nas
escolas mal equipadas e insuficientes para o povo. Em contrapartida, suas lições
foram insurgentes ao tradicionalismo pedagógico e, nessa nova concepção, ―almeja-
se para a escola uma função socializadora capaz de proporcionar ao aprendiz
conhecimentos que ultrapassem o mero aprendizado das primeiras letras,
educando-o para a vida‖ (BERTOLETTI, 2006, p.55).
Nessa direção, na formatação didática da ‗Cartilha do povo‘, Lourenço Filho
preocupou-se em propor um material a ser utilizado como um instrumento auxiliar do
trabalho docente, simples, porém eficaz, com a finalidade de integração nacional por
meio da maior ampliação da educação popular possível, seja para crianças ou
adultos, oferecendo subsídios de apoio ao alfabetizador, leigo ou professor formado.
Dessa maneira, não seguiu uma orientação metodológica pura: a cartilha foi
pensada para ser utilizada tanto na abordagem sintética como na analítica e, caso
seja privilegiado essa última, ressalva o autor, deve-se iniciar os trabalhos a partir da
4ª lição (LOURENÇO FILHO, 1953 apud MORTATTI, 2000, p. 172).
Isso posto, vale ressaltar as grandes dimensões tomadas pela cartilha, dada
quase sete décadas de impressão, que, ao longo de suas edições, datada
inicialmente de 1928, com tiragem inicial de 1.080.000 exemplares – número jamais
alcançado por qualquer obra produzida no Brasil até aquele momento – atingiu, até
40
o ano de 1986, um montante de 2.201 edições. A cartilha foi impressa pela
Companhia Melhoramentos de São Paulo, empresa editorial de grande renome,
prestígio e investidora no comércio de livros didáticos, recreativos e teóricos sobre a
educação. Para Bertoletti (2006, p. 46).
Esse caráter de permanência direta ou indireta da Cartilha do povo pode ser interpretado como índice da permanência dos fundamentos teóricos nela contidos, por vezes, ampliado e atualizado ao longo da extensa carreira profissional de Lourenço Filho.
Em suma, a ‗Cartilha do povo – para ensinar a ler rapidamente‘ foi um grande
veículo dos ideais escolanovistas e instrumento representativo do pensamento do
autor, pois continha os princípios de nacionalização e os fundamentos didáticos
necessários relativos à alfabetização para a homogeneização das salas, contra os
altos índices de fracasso escolar provenientes, dentre outros fatores, da
heterogeneidade das salas de ensino das primeiras letras.
Cabe ressaltar que o emblema escolanovista era o combate ao
analfabetismo, pois esse seria um dos principais obstáculos de acesso brasileiro ao
mundo moderno, visto que o país do novo século necessitava de cidadãos
politizados, instruídos e capazes de acompanhar as transformações da vida urbana.
Sendo assim, a criação de uma cartilha de simples manuseio, de baixo custo e que
atendesse tanto crianças quanto adultos, seria capaz de concretizar os objetivos dos
ideais renovadores.
Outra publicação didática marcante nesse período da história da alfabetização
brasileira assinada por Lourenço Filho, já à época de sua aposentadoria, após 30
anos da publicação da ‗Cartilha do Povo‘, encerra sua produção didática na ‗Série
Leitura Graduada Pedrinho‘ com a publicação do último título da série a cartilha
‗Upa, Cavalinho!‘ (MORTATTI, 2000).
A ‗Série Leitura Graduada Pedrinho‘ marcou uma nova fase na história do
livro de leitura no Brasil. Desde seu lançamento, provocou elogios sendo aclamada
como ―esforço de renovação‖. Tais elogios, ―como não poderia deixar de ser, estão
relacionados à influência e prestígio de especialista de que goza o autor, sobretudo
pelo já apontado aspecto catalizador de seu pensamento‖ (MORTATTI, 2000, p.
175).
A referida série de leitura compunha-se por quatro livros de leitura e uma
cartilha, cujo personagem principal era Pedrinho, que contava como coadjuvantes
41
seus irmãos Maria Clara, Zezinho e o cachorrinho Veludo. A impressão do 1º livro
‗Pedrinho‘ se deu em 1953, sequencialmente nos próximos anos os títulos: Pedrinho
e seus amigos; Aventuras de Pedrinho; Leituras de Pedrinho e Maria Clara; Pedrinho
e o mundo e, por fim, a cartilha Upa, Cavalinho!.
Com o propósito civilizador e moralizante, as histórias que envolviam a
personagem e sua turma objetivavam a formação do leitor obediente, estudioso, leal
e cuidadoso, com vistas à formação do cidadão industrioso, empreendedor e
cosmopolita, características que assinalavam o ideal renovador (CUNHA;
FERNANDES, 2008).
No entanto, curiosamente a cartilha ‗Upa, Cavalinho!‘ consta como o último
volume da série, tendo sua 1ª edição publicada em janeiro de 1957, obtendo a
tiragem de 1.000.000 de exemplares. Bertoletti (2006, p. 73) apontou que:
É bastante curioso o fato de a cartilha encerrar e não iniciar essa Série de Leitura, uma vez que, parece lícito supor que, para o autor, é necessário primeiro aprender a ler – finalidade da cartilha – para depois ler – finalidade dos outros livros da Série. Isso poderia ser considerado uma certa hesitação por parte de Lourenço Filho em escrever nova cartilha, talvez por Cartilha do povo continuar atual e intensamente utilizada, à época do lançamento dessa outra cartilha. Estando, no entanto, prontos os quatro livros da Série, parece ter sido necessária uma ―introdução‖, uma vez que seu primeiro livro, Pedrinho (1953), parece ter sido utilizado nas escolas como instrumento de aprendizado da leitura inicial.
Diferentemente da ‗Cartilha do povo‘, essa ―nova‖ obra didática conta com um
amplo manual do professor, contendo as orientações de trabalho com a cartilha,
além de uma síntese de sua teoria, remetendo em nota de rodapé aos Testes ABC
para embasar a sua explanação. Sobre o seu conteúdo, expôs Mortatti (2000, p.
177),
[...] o autor expõe o plano da cartilha, que se desenvolve em cinco fases: de sentenças e palavras - oito primeiras lições -; de discriminação das sílabas com as consoantes dadas - oito lições seguintes -; de discriminação e recomposição imediata, em palavras já conhecidas e em novas - seis lições seguintes -; das consoantes ainda não estudadas; e de ensaio da leitura corrente - 16 lições finais da cartilha.
Assim sendo, a cartilha, estruturada em 51 lições, não numeradas, que vão
da página três a página 61, é apresentada por meio de uma sequência acumulativa
de fatos e personagens, ou seja, uma lição dá sequência à outra, progressivamente
42
apresentando novos assuntos que explicam ou completam os da lição anterior
(BERTOLETTI, 2006).
De 1957 até 1970 (data da sua última publicação), a cartilha ‗Upa, cavalinho!‘
sintetizou um rigoroso projeto de alfabetização inteiramente voltado para o público
infantil, igualmente construída por uma base teórica apoiada na Psicologia, como em
a ‗Cartilha do povo‘, porém as questões de ensino apoiadas em instrumentos de
alfabetização mais infantilizadas e do papel do professor como um incentivador no
processo de aprendizagem, ficaram mais definidos nessa última obra.
Sem sombra de dúvida, as contribuições que Lourenço Filho deixou desde o
início da divulgação de seu trabalho, na década de 1930, sobre o ensino da leitura e
escrita, também podem ser percebidas em outras obras publicadas nos anos de sua
atuação (BERTOLETTI, 2006)
Além do mais, ainda hoje, são perceptíveis as semelhanças nos princípios e
estruturação de cartilhas que ainda estão sendo publicadas e utilizadas nos meios
escolares, quando não, seu discurso sobre requisitos para o início do ensino das
primeiras letras – a maturidade necessária para aprender a ler e escrever – estão na
voz de muitos professores de nossas escolas, a fim de justificar o mau desempenho
de práticas alfabetizadoras malsucedidas.
Alguns métodos para alfabetização, que tentam se apresentar para o grande
público como ―novos‖ e ―modernos‖, estão, na verdade, em perfeita sintonia com as
propostas feitas por Lourenço Filho ainda no início do século XX. O problema é que
naquele momento não havia o grande número de informações que se tem hoje
sobre como ocorre o processo de construção da linguagem escrita.
Ainda se tratando do terceiro período, muitas outras famosas cartilhas foram
publicadas, além das propostas pelo escolanovista Lourenço Filho, principalmente
aquelas que apregoavam a silabação. Segundo Mendonça; Mendonça (2007, p. 28):
A partir da década de 1930, cresceu consideravelmente o número de cartilhas publicadas, pois isso passou a ser um grande negócio. Por volta de 1944, surge o Manual do Professor, cuja função é orientar o professor quanto ao correto uso do material. E o mercado das cartilhas continuou a crescer. Em pesquisas realizadas nos anos 60 e 80, as principais cartilhas adotadas no estado de São Paulo eram Caminho Suave, Quem sou Eu? e Cartilha Sodré; No Reino da Alegria, Mundo Mágico e Cartilha Pipoca (anos 80) (grifos dos autores).
43
Ademais, faz-se necessário apontar que, dentre essas conhecidas produções
de cunho sintético, dois métodos fônicos foram intensamente utilizados e
amplamente conhecidos no Brasil: ‗A abelhinha‘ e ‗A casinha feliz‘ (CARVALHO,
2012). Criados entre as décadas de 1950 e 1960, esses métodos chegaram com
formato de cartilhas nas escolas particulares e públicas brasileiras e, nas palavras
da autora, ―na década de 1970, o método já era largamente empregado em escolas
públicas do Rio de Janeiro com resultados muito satisfatórios: 80 a 95% de alunos
aprovados em escolas de população desfavorecida e taxas mais elevadas em
escolas de classe média‖ (idem, 2012, p. 25).
O quarto período, delimitado entre 1980 e 1994, foi marcado pela introdução
e divulgação da teoria construtivista de Emilia Ferreiro, pela condenação do uso das
cartilhas e, ainda em curso, a difusão do interacionismo11, baseado na Psicologia
Soviética, sendo os maiores representantes da teoria no Brasil os pesquisadores
João Wanderley Geraldi e Ana Luiza Smolka (MORTATTI, 2000b).
As novas concepções sobre o processo alfabetizador trazidas por Ferreiro
desestabilizam tudo o se havia criado sobre a temática até então:
Inicialmente, propõem não um método novo, mas um novo conceito sobre alfabetização, pregando o abandono das cartilhas e ―métodos tradicionais‖. Destacam a capacidade da criança em construir seu próprio processo de aprendizagem, desenvolvendo atitudes e habilidades como autonomia, autoavaliação contínua e criatividade. Partem do pressuposto de que a aprendizagem passa pela mediação da ação e de que todo conhecimento supõe uma reconstrução por parte do indivíduo. O respeito às diferenças e a valorização do conhecimento que o estudante traz de sua realidade concreta, de seu cotidiano, ganham importantes proporções nos métodos com base construtivista (BAGATIN, 2012, p. 58, grifos do autor).
Amplamente divulgada, tanto nos espaços acadêmicos quanto nos escolares,
a abordagem construtivista promoveu uma ‗revolução conceitual‘ no cenário
alfabetizador, deslocando o foco da alfabetização nos métodos para o eixo relação
professor-aluno, fomentando o embate entre seus defensores e os sectários ―–
11
Desse ponto de vista centrado no interacionismo linguístico, alfabetização designa o processo de ensino-aprendizagem da leitura e escrita entendidas como atividade discursiva, que depende diretamente das relações de ensino que ocorrem na escola, especialmente entre professor e alunos. A perspectiva interacionista propõe, portanto, uma forma de compreender como se ensina e se aprende a língua escrita e comporta uma nova didática da leitura e escrita, centrada no texto e na qual se relacionam os diferentes aspectos envolvidos nesse processo discursivo: por que, para que, como, o que, quando, onde, quem, com quem ensinar e aprender a língua escrita (MORTATTI, 2010, p. 332, grifos da autora). A proposta desta pesquisa de mestrado não se detém no aprofundamento desta teoria de ensino, por tanto, para saber mais, consultar Mortatti (1999).
44
velados e muitas vezes silenciosos, mas persistentes e atuantes – dos tradicionais
métodos (sobretudo o misto), das tradicionais cartilhas e do tradicional diagnóstico
do nível de maturidade com fins de classificação dos alfabetizandos‖ (MORTATTI,
2000b, p. 27, grifos da autora).
2.2 A condenação das cartilhas
O ideário construtivista acompanhou o espírito de democratização que
pairava sobre o cenário político brasileiro da década de 1980. Nele continha a
proposta de uma educação mais igualitária e justa, na qual o sujeito que aprende
estava no centro do processo, anseios almejados pela sociedade que vivia num
processo de redemocratização do país. Dessa forma, muitos simpatizaram com a
teoria, ganhando forma e espaço nas escolas e nos ambientes acadêmicos.
Reiterando a assertiva, Mortatti (2000b, p. 27) afirmou:
Assumido e disseminado como correlato metodológico das necessárias mudanças sociais e políticas pretendidas neste final de século, o construtivismo passa a ser defendido pelos ―educadores progressistas‖, que se empenham no convencimento dos alfabetizadores, mediante produção, tradução e divulgação massivas de artigos, teses acadêmicas, livros e vídeos de combate, cartilhas construtivistas, sugestões metodológicas e relatos de experiência bem-sucedidas, visando a garantir sua institucionalização na rede pública de ensino.
Concomitantemente à divulgação e uso da recém-chegada teoria, estudos
sobre a cartilha foram se intensificando, seus resultados, juntamente com os índices
de analfabetismo assinalados na época, inculparam-na pelo fracasso da
alfabetização, ampliando mais o espaço e o interesse pela proposta inovadora
construtivista.
O discurso construtivista navegou a ventos fortes sob o argumento de melhora dos índices de aproveitamento dos alunos em sala de aula, que no contexto de redemocratização do país estavam muito abaixo do esperado. Podemos dizer que o momento de maior ascensão - e consequentemente institucionalização – do construtivismo no Brasil ocorreu com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) - 1ª a 4ª série, em 1997 (BAGATIN, 2012, p. 59, grifos do autor)
45
Entretanto, mesmo sendo incorporada ao discurso oficial de ensino, a teoria
construtivista não conseguiu superar totalmente o modelo de alfabetização
idealizado há séculos pelas cartilhas. Embora condenada, a cartilha vem resistindo e
permanece nas escolas brasileiras até o presente momento, pois,
[...] conservou-se intocada sua condição de imprescindível instrumento de concretização de determinado método, ou seja, da seqüência necessária de passos predeterminados para o ensino e a aprendizagem iniciais de leitura e escrita, e, em decorrência, da configuração silenciosa de determinado conteúdo de ensino, assim como de certas também silenciosas, mas efetivamente operantes, concepções de alfabetização, leitura, escrita, texto e linguagem/ língua (MORTATTI, 2000a, p. 48).
Nessa direção, Brenner (1990), Cagliari (1988; 1998; 2009), Mendonça e
Mendonça (2007), Mortatti (2000a) e Schlickmann (2001) apontaram os mesmos
problemas no trabalho com as cartilhas.
Segundo esses autores, a concepção de alfabetização adotada nas cartilhas
é tida como a codificação e decodificação de conteúdos (segundo o método
proposto: sintético ou analítico), sem considerar o processo de construção da
linguagem escrita e tão pouco a realidade da criança. Só ao término das lições,
previamente estruturadas, a criança está considerada apta para ler e escrever, ou
seja, alfabetizada.
Dentro dessa perspectiva, a leitura e a escrita são vistas como instrumentos
de aquisição dos conteúdos escolares, uma vez que seu objetivo se resume às
situações de ensino/aprendizagem dentro do perímetro escolar. Dessa forma, as
funções sociais que a leitura e a escrita poderiam desempenhar no cotidiano dos
educandos são desconsideradas, além de reduzir a leitura à técnica de ensinar/fixar
a pronúncia da norma culta, mediante uma fala artificial e silabada, e a escrita à
representação da linguagem oral, aos exercícios de ortografia, de cópias e ditados.
Segundo os autores, os textos trazidos pelas cartilhas são como um
conglomerado de sentenças, nem sempre com sentidos sintático-semânticos
definidos, tampouco com textualidade presente em sua composição. Constituídos
por palavras contidas no material didático, esses textos utilizam palavras
selecionadas de acordo com o nível de dificuldade determinado para aquele
momento de aprendizagem.
Os textos dos manuais e cartilhas são pobres, escritos dentro de uma ideologia definida e a gramática ensinada carece de uma
46
reavaliação profunda, quanto a sintaxe, morfologia e fonologia. Necessitam, sobretudo, de um planejamento mais amplo, com um programa de ensino gramatical dentro de uma filosofia linguística definida, e observância aos princípios linguísticos que norteiam a estruturação da língua. (BRENNER, 1990, p.53).
Para confirmar as consequências deixadas por esses modelos de textos,
Cagliari (2009), ao investigar as decorrências didáticas de diferentes metodologias
de alfabetização, solicitou a alguns alunos (alfabetizados pelas tradicionais cartilhas)
que produzissem textos espontaneamente. Nesta investigação, foi possível observar
a precariedade no ensino de texto e o efeito do seu modelo pode ser evidenciado a
partir de três exemplos:
Ovo dá pascoa coma ele comia ele ficou gordo Ele era bonitinho Eu fui no bar e comprei um ovo Eu comprei um ovo da pascoa (23) Era uma vez um cachorro que O cachorro está indo viaja Palhaço faz graça no circo O coelho é lindo (24) O gato comeu peixe O xalé é de xaxá O gato comeu o rato (25) (CAGLIARI, 2009, p. 118)
As marcas deixadas nessas crianças, a partir da exposição ao protótipo
textual das cartilhas, mostram uma alfabetização castradora, onde as ideias já
trazidas na oralidade da criança não têm vez frente ao padrão estabelecido pela
prática docente alienada ao material didático.
O aluno vem para a escola com a habilidade de produzir textos orais. Se ele se
depara com textos artificiais, montados para finalidades específicas, que não correspondem
à sua linguagem, concluirá que sua oralidade está errada e acreditar que o modelo
apresentado pela escola é o correto, o padrão ideal de texto a ser seguido. Poderá, ainda,
sequer acreditar no modelo da escola e, tendo o seu discurso desacreditado, tornar-se
resistente ao trabalho pedagógico (MENDONÇA; MENDONÇA, 2007, p. 32).
Ainda segundo os autores, as produções das crianças acima ajudam a
demonstrar a concepção de linguagem/língua assemelhada à somatória de
tijolinhos, ou seja, a palavra representada por união de sílabas, as frases por um
conjunto de palavras e os textos como o montante dessa soma. Além disso, a
47
linguagem se apresenta como expressão do pensamento e funcionalmente
determinada como instrumento de comunicação preestabelecido para as situações
de ensino/aprendizagem dos conteúdos escolares.
A conclusão, pois, que se é levado a tirar, mostra que as cartilhas são incompetentes e um equívoco educacional. Se os alunos ainda aprendem, apesar das cartilhas, isto se deve, de maneira precípua, ao bom senso e ao trabalho dos professores, mesmo com todas as deficiências da formação que receberam das escolas de magistério, e à condescendência dos alunos que, perdidos no meio de tanta confusão, não sabem como reclamar, mas continuam acreditando que a escola vale a pena (CAGLIARI, 1988, p.26).
Conforme o exposto, historicamente, no Brasil, o ensino das primeiras letras é
delimitado como um problema estratégico em relação ao cumprimento da promessa
de acesso às novas gerações ao mundo público da cultura letrada, situação que
possibilitaria ao país o ingresso no mundo moderno, à superação do atraso industrial
e a formação de cidadãos cosmopolitas e politizados.
Marcado por anseios e iniciativas, o cenário alfabetizador brasileiro sempre foi
palco de novos modelos de ensino com promessas eficazes com vistas de
superação de velhas práticas tidas como fracassadas, sempre utilizando os índices
de analfabetismo e fracasso escolar como termômetro, como se passível de
mensurar a eficiência dos modelos vigentes.
Tais concepções remetem à permanência de um projeto (republicano) de educação que vem sendo objeto de constantes ajustamentos e atualizações, cada vez que se constata uma crise, ou seja, cada vez que a testagem – especialmente por meio dos índices de repetência ou evasão – de sua eficácia revela que as crianças estão tendo pouco ou nenhum sucesso na alfabetização (MORTATTI, 2000a, p. 48).
A concretização desses modelos de alfabetização – políticos, ideológicos e
metodológicos sustentados em determinados momentos históricos – foi evidenciada
nos formatos de um novo tipo de livro didático: as cartilhas.
Com a ajuda da crescente indústria editorial e o amplo mercado consumidor,
a cartilha, ou os modelos de alfabetização que, ―de acordo com certo programa
oficial estabelecido previamente‖ (MORTATTI, 2000a), foi engendrada nas práticas
pedagógicas do professorado brasileiro, tendo o seu maior incentivo feito pelos
governos a partir da compra e difusão por meio de programas de distribuição de
livros didáticos.
48
2.3 Alfabetização e Letramento: conceitos que se entrelaçam na formação do
leitor
Como visto, historicamente, o conceito de alfabetização ficou atrelado ao
ensino-aprendizado da ‗técnica‘ de ler e escrever o sistema alfabético, que,
sucintamente, corresponde, na leitura, à destreza de decodificar os sinais gráficos
em sons e, consequentemente, na escrita, à destreza de codificar os sons da fala
em sinais gráficos.
A partir da década de 1980, surgem, simultaneamente nos meios acadêmicos
do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos, preocupações acerca da ―necessidade
de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais avançadas e
complexas que as práticas do ler e escrever, resultantes da aprendizagem do
sistema de escrita‖ (SOARES, 2008, p. 4).
Nesse contexto, nasce o termo letramento – conceito recentemente
introduzido no campo da Educação, das Ciências Sociais, da História e das Ciências
Linguísticas – e, consequentemente, a ampliação do entendimento da alfabetização.
A raiz etimológica do vocábulo advém da língua inglesa literacy, que vem do
latim littera (letra), precedido do sufixo –cy, indicador de qualidade, condição, fato de
ser. Ou seja, literacy é o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler
e escrever (SOARES, 2002).
Inicialmente, essa palavra se apresenta no Brasil por meio dos discursos dos
especialistas, mais precisamente na segunda metade da década de 1980, com o
texto de Mary Kato. Logo após, vêm as autoras Leda Verdiani Tfouni e Ângela
Kleiman, sendo que essa última o representa em título de livro na década seguinte.
Esse termo técnico surgiu a partir da emergência de uma nova realidade
social onde a condição de saber apenas codificar e decodificar não bastava mais
para responder efetivamente às práticas sociais de uso da língua escrita. Em outras
palavras, Soares (2002) afirmou que o ‗letramento‘ caracteriza ao indivíduo que sabe
fazer uso do ler e escrever, aquele que responde às exigências que a sociedade
requer nas práticas de leitura e escrita no cotidiano.
Antes de nos aprofundarmos na compreensão das dimensões de letramento,
convém conceituar alfabetização utilizando as palavras de Soares (2003b, p. 80):
49
[...] tomando-se a palavra em seu sentido próprio como o processo de aquisição da ―tecnologia da escrita‖, isto é, do conjunto de técnicas – procedimentos, habilidades – necessárias para a prática da leitura e da escrita: as habilidades de codificação de fonemas em grafemas e de decodificação de grafemas em fonemas, isto é, o domínio do sistema de escrita (alfabético, ortográfico) (grifos da autora).
Ademais, para não reduzir a alfabetização a um mero mecanismo de
codificação e decodificação, o conceito de alfabetização pode ser compreendido
como um sistema mais amplo, ou seja, como um processo de compreensão e
expressão de significados morfológicos, sintático e semântico da língua escrita,
Segundo Soares (2003a, p. 17) ―não se escreve como se fala, mesmo quando se
fala em situações formais; não se fala como se escreve, mesmo quando se escreve
em contextos formais‖.
Portanto, alfabetizar é entendido como fazer com que o educando
compreenda as convenções do alfabeto, decifrando as estruturas arbitrárias da
escrita, através do desenvolvimento de competências e habilidades de análise
estrutural das palavras como reflexão metalinguística.
Ampliando a discussão, diferentemente da mecânica de codificar e decodificar
signos linguísticos, como dito, o termo letramento surgiu a partir da necessidade de
se definir a utilização social da língua escrita na prática discursiva de um
determinado grupo social. Segundo Kleiman (1998, p. 18), ―podemos definir hoje
letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema
simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos‖.
Ainda sob essa perspectiva de utilização social da escrita, Soares (2003b, p.
80) conceituou o termo amplamente:
Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina-se letramento, que implica habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou escrever para atingir diferentes objetivos – para informar ou informar-se, para interagir com outros, para imergir no imaginário, no estético, para ampliar conhecimentos, pra seduzir ou induzir, para divertir-se, para orientar-se, para apoio à catarse...; habilidades de interpretar e produzir diferentes tipos e gêneros de textos, habilidades de orientar-se pelos protocolos da leitura que marcam o texto ou de lançar mãos desses protocolos, ao escrever; atitudes de inserção efetiva no mundo da escrita, tendo interesse e prazer em ler e escrever, sabendo utilizar a escrita para encontrar ou fornecer informações e conhecimentos, escrevendo ou lendo de forma diferenciada, segundo as circunstâncias, os objetos, o interlocutor [...]
50
Desse modo, para melhor definir e distinguir as ações entre alfabetização e
letramento, Soares (2002) atribuiu o conceito aos usos sociais da leitura e da escrita
pelo indivíduo que podem ou não dominar a tecnologia de codificar ou descodificar,
pois, nessa perspectiva, o indivíduo pode não saber ler e escrever, mas pode ser
letrado (atribuindo a este adjetivo o sentido vinculado ao letramento) ao ouvir uma
leitura, ao ditar escrita (de uma carta ou uma lista de compras, por exemplo) faz uso
da escrita e envolve-se em práticas sociais de leitura ou escrita.
Isso posto, fica claro que os processos de alfabetização e letramento são
distintos, porém complementares no caminho de formar o leitor, pois:
Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das atuais concepções psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de leitura e escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional de escrita – a alfabetização – e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita – o letramento. (SOARES, 2008, p. 14, grifos da autora)
Nessa mesma direção, como dito anteriormente, a divulgação no Brasil da
teoria construtivista acerca da aquisição da escrita e do surgimento do termo
letramento, a partir da década de 1980, levou para muitos lugares a condenação da
prática das cartilhas, que, por muitas décadas, foram utilizadas para o ensino das
primeiras letras e tinham apenas a preocupação de ensinar a codificar e decodificar
a língua escrita.
A crítica relacionada às atividades da alfabetização mecanizada, baseadas
em exercícios de memorização e repetição – de letras, sílabas, palavras
descontextualizadas e aglomerados de frases consideradas textos – encontradas
nas cartilhas, pauta-se na ausência de práticas geradoras de hábitos de leitura
oferecidas por esses materiais. Tampouco oferecem condições de situações
didáticas atreladas a práticas sociais e reflexivas, passíveis de situações de
letramento, pois não utilizam diversos tipos de textos, muito menos são permeadas
por práticas de discussões da realidade e de exercícios que valorizam o
conhecimento prévio do aluno por meio da oralidade (MENDONÇA; MENDONÇA,
2007).
Se o objetivo primordial é fazer com que o aluno seja um leitor autônomo, que
compreenda os sentidos mais profundos do texto e os relacione com a realidade,
51
não é possível tomar como unidade básica de ensino nem a letra, nem a sílaba, nem
a palavra, nem a frase que, descontextualizadas, pouco tem a ver com a
competência discursiva, ou seja, a capacidade de se produzir discursos – orais ou
escritos – adequados a situações enunciadas em questão, considerando todos os
aspectos e decisões envolvidas nesse processo, que é questão central. Dentro
desse marco, a unidade básica de ensino só pode ser o texto (BRASIL, 1999).
Dessa maneira, quando ocorre uma ruptura nas práticas tradicionais no
ensino da leitura e da escrita, à medida que a teoria construtivista e a ideia de
alfabetizar e gerar letramento ganham maiores proporções, uma gama de textos
adentra ao espaço escolar com vistas ao abandono dos criticados textos
apresentados pelas cartilhas.
Dentre essa diversidade textual, a literatura infantil, que antes estava à
margem ou fora do processo, ganha maior espaço na escola; ao passo que as
concepções de ensino baseadas nos ideais de utilização social da língua escrita se
incorporam nos planejamentos didáticos.
A literatura, antes rejeitada e, como visto, substituída por ―pseudotextos‖ para
aprender a ler as sílabas da unidade didática pré-estabelecida pelas cartilhas,
começa a ter destaque. Nessa direção, Arena (2010, p. 13-14) afirmou que:
Desde os anos 1980, no Brasil, foram verificados dois movimentos na área da leitura: o primeiro teve como núcleo o lento, mas progressivo, abandono dos manuais, entre eles, o da cartilha, como material impresso nuclear no processo de ensinar e de aprender a ler; o segundo, vinculado ao primeiro, deu-se na vagarosa, mas gradativa incorporação do livro de literatura infantil nas salas de aula, acompanhada pela rápida expansão de produção editorial de qualidade. A introdução frequente e variada do gênero, não mais fora de seu suporte (nas páginas dos manuais), mas no material histórico elaborado para lidar com ele, isto é, o livro, estabeleceu novas discussões sobre as relações entre literatura infantil, alfabetização e aprender a ensinar a ler.
Dessa maneira, a proximidade entre a literatura e a criança faz com que o
processo de letramento se realize maior facilidade e efetividade, logo, ―o processo
de letramento que se faz via textos literários compreende não apenas uma dimensão
diferenciada do uso social da escrita, mas, também, e sobretudo, uma forma de
assegurar seu efetivo domínio‖ afirma Cosson (2006, p. 12).
Ademais, a literatura ao ser inserida no contexto escolar é considerada
promotora da criança em seu meio histórico-social, além de levá-la a reflexões sobre
52
as culturas e realidades que tem acesso. Nessa perspectiva de uso da literatura
como promotora de habilidades de uso social da língua, Arena (2010, p. 15) justifica
a sua inserção nas salas escolares por duas questões:
[...] a primeira, por entender que a literatura medeia a relação da criança com a cultura de sua época, mas transcende a ela, tanto para o passado, quanto paro o futuro; a segunda, porque a criança, imersa em um contexto cultural, necessita desse contexto para se apropriar da cultura que encharca o gênero literário a que tem acesso.
Tradicionalmente, na escola, a leitura é utilizada com a finalidade de ensinar a
ler, ou seja, lê-se para aprender a decodificar; porém, no cotidiano, a leitura é regida
por outros objetivos, que conformam o comportamento do leitor e sua atitude em
relação ao texto. No dia-a-dia, uma pessoa pode ler para sentir prazer – lendo um
romance, um livro religioso, humorístico -, para informar-se – ler jornal, uma revista
informativa -, ler para agir – ao ler uma placa.
Essas leituras, guiadas por diferentes objetivos, produzem efeitos variados,
que modificam a ação do leitor diante do texto. São essas práticas sociais que
devem ser vividas em nossa sala de aula, considerando-se que uma leitura não é
simplesmente decodificar, conforme afirmou Freire (1992), pois:
[...] uma compreensão crítica do ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura das palavras.
Esse tratamento do ensino de leitura praticado pela escola, alicerçado por
conhecimentos empíricos e/ou por atividades mecanizadas tradicionalmente
divulgadas pelas cartilhas, perpetuam-se por décadas no cenário escolar e,
infelizmente, não extrapolam o nível de decodificação e tampouco proporciona ao
educando o contato com a manipulação e utilização dos diferentes gêneros textuais
em circulação social. Ou seja, o tratamento prende-se nas atividades de
alfabetização sem se preocupar com atividades de letramento.
Como visto, a leitura é simultaneamente objeto de conhecimento e
instrumento de aprendizagem, conceito nem sempre bem entendido pela escola.
Dessa forma, o ato de ler torna-se cada vez mais um instrumento necessário para o
desenvolvimento e sucesso do indivíduo (REVOREDO; SOUZA, 2010).
Destarte, reitera-se que, para se formar realmente um bom leitor, proficiente,
autônomo e que tenha gosto pela leitura, não cabe à escola apenas alfabetizar, mas
53
cabe também a ela expor seu aluno aos diferentes tipos e gêneros textuais para que
ele possa interagir com a linguagem escrita e envolver-se em práticas sociais de
leitura ou escrita, ou seja, desenvolver concomitantemente o processo de
letramento, pois são esses processos que possibilitam o desenvolvimento pleno da
leitura, que envolve complexas competências de cunho linguístico, cognitivo, social e
afetivo.
Desse modo, se a escola continuar adotando práticas de ensino mecânicas e
descontextualizadas, distantes da realidade que cerca seus alunos, sem se
preocupar com o trabalho de formação de um sujeito crítico e atuante capaz de
compreender o seu entorno, perpetuará a situação de exclusão de seu alunado na
sociedade grafocêntrica que vivemos e sem perspectiva de mudança de sua
realidade.
54
3 MÉTODO FÔNICO: UMA SOLUÇÃO PARA O FRACASSO NA
ALFABETIZAÇÃO?
Assim como no discurso religioso a voz de um deus é falada na do profeta-pregador, no discurso pseudocientífico, a voz do saber é falada na do pseudocientista-propagandista, que mistifica a verdade como revelada, a serviço de finalidades reais que não podem ser explicitadas, sob pena de inviabilizar esse discurso e os efeitos pretendidos (MORTATTI, 2008, p. 108).
A discussão abordada nesta seção pauta-se na ascensão do discurso em
defesa do método fônico, veiculado por meio da retórica fonocentrista, que, ao se
dizer preocupada com os índices insatisfatórios dos alunos em início de
escolarização, acusa a teoria construtivista, presente nas propostas governamentais
de educação, como principal agente do fracasso na alfabetização brasileira.
Para este diálogo, será utilizado um tratamento conciso do Relatório Final do
Grupo de Trabalho ―Alfabetização Infantil: os novos caminhos‖, resultado do Painel
Internacional de Especialistas em Alfabetização Infantil. O documento considerado o
grande catalisador do movimento em prol do método fônico foi publicado em 2003
pela Câmara dos Deputados, impresso em formato de livro, em 2005, pela
Memnon12 e reeditado em 200713 por essa Casa de Leis.
Composto por pesquisadores nacionais e estrangeiros14 ligados à Ciência da
Cognição e coordenados pelo fundador-presidente do IAB, o grupo de autores
recomenda no relatório a substituição do construtivismo em documentos e diretrizes
oficiais nacionais pelo método fônico.
A necessidade de discutir sobre esse movimento pauta-se nas grandes
proporções que os discursos presentes na publicação vêm tomando a partir de
então, pois,
[...] sem desmerecer ou desconfiar das boas intenções fonocentristas, alguns elementos discursivos usados no debate de ideias por eles estão longe de contribuírem para o avanço da ciência no campo da alfabetização, como: a agressividade com que se referem aos outros métodos; comparação do método fônico com o construtivismo de forma maniqueísta; falseamento da realidade quanto à suposta neutralidade científica, política e ideológica do
12
Editora voltada para publicações nas áreas de Psicologia, Fonoaudiologia e Psicopedagogia. 13
Edição que utilizaremos para este texto. 14 Os membros do grupo são: Cláudia Cardoso-Martins (Brasil), Fernando Capovilla (Brasil), Jean-
Emile Gombert (França), João Batista Araújo e Oliveira - Coordenador do Relatório (Brasil), José Carlos Junca de Morais (Bélgica), Marilyn Jager Adams (EUA) e Roger Beard (Inglaterra).
55
método fônico; vinculação com as ciências exatas como estratégia de apresentar sua proposta como ―confiável‖; dentre outras (BAGATIN, 2012, p. 52, grifos do autor).
Nessa direção, antes de adentrarmos aos meandros do documento, faremos
uma contextualização do construtivismo no Brasil, bem como, buscaremos os
concepções que o definem nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e suas
implicações pedagógicas, visto que o principal interlocutor do discurso fonocentrista
é a teoria.
3.1 O mal-entendido: construtivismo no Brasil
Como visto, desde o surgimento das primeiras manifestações humanas da
linguagem escrita, inicialmente representativas de objetos por meio de desenhos
rudimentares até evolutivamente se tornarem os caracteres de representação
fonográfica de nosso atual alfabeto, o homem preocupou-se em didatizar o ensino
da codificação e decodificação dos símbolos escritos.
A fim de facilitar esse processo, o delineamento de diferentes caminhos
metodológicos foi tensionado em uma secular disputa entre técnicas que se
apresentariam como o ‗novo‘ facilitador no ensino da linguagem escrita, acusando
de ‗antigo‘ e ineficaz o modelo vigente. Circunscrevem, desse modo, os métodos
criados ao longo da história da alfabetização ocidental, porquanto os sentidos
atribuídos à alfabetização, marcados pelo ‗grande debate‘ ou ‗querela dos métodos‘
(BRASLAVSKY,1988; MORAIS, 1996; MORTATTI, 2008).
Cabe ressaltar que,
[...] considerado novo e melhor em relação ao antigo e tradicional, seja para enfatizar um desses métodos, seja para negá-los em bloco, em cada momento histórico, cada novo sentido da alfabetização se tornou hegemônico, porque oficial, mas não único nem homogêneo, tampouco isento de resistências, mediadas especialmente pela velada utilização de antigos métodos e práticas alfabetizadoras (MORTATTI, 2010, p. 330, grifos da autora).
Durante essa trajetória, diferentes concepções de alfabetização e de estar
alfabetizado variaram ao longo do tempo, bem como diferentes concepções de
linguagem, ambas definidas por circunstâncias sociais, políticas e ideológicas em
56
cada momento histórico vivido pelas sociedades grafocêntricas, ao passo que
gradativamente as dimensões de informações e saberes tomaram dimensões
imensuráveis, agregando ainda mais valor à cultura escrita e ao sujeito denominado
letrado.
No Brasil não ocorreu diferente, nas seis últimas décadas,
[...] mudamos radicalmente nossas concepções sobre esses temas. Se nos anos de 1950, em nosso país, ainda tomávamos por alfabetizado quem sabia assinar o nome, hoje cobramos que os recém-alfabetizados sejam capazes de ler e compreender pequenos textos, além de conseguir produzir textos (MORAIS, 2012, p. 14).
Essas concepções, guiadas por diferentes objetivos políticos e sociais,
tornaram-se o principal ponto de pauta das agendas governamentais, tendo em vista
que o crescente processo (ainda em decurso) de industrialização e modernização da
sociedade brasileira demandava a escolarização das massas, a fim de formar o
sujeito preparado para atender às novas exigências dessa sociedade que almejava
a ordem para atingir o progresso nacional, tomando como urgente a alfabetização do
cidadão (ou, melhor dizendo, o problema do analfabetismo que sempre assolou os
índices de escolarização do sistema educacional brasileiro).
Ampliando a discussão, nas palavras de Mortatti (2010, p. 329):
A alfabetização escolar – entendida como processo de ensino e aprendizagem da leitura e escrita em língua materna, na fase inicial de escolarização de crianças – é um processo complexo e multifacetado que envolve ações especificamente humanas e, portanto, políticas, caracterizando-se como dever do Estado e direito constitucional do cidadão. Em sociedades letradas contemporâneas, essa relação tanto impõe a necessidade de inserção/inclusão dos não alfabetizados no mundo público da cultura escrita e nas instâncias públicas de uso da linguagem, quanto demanda a formulação de meios e modos mais eficientes e eficazes para implementar ações, visando concretizar essa inserção/inclusão, a serviço de determinadas urgências políticas, sociais e educacionais
Na tentativa de atender essa urgência, a partir de meados do século XX,
especialmente na década de 1980, diferentes propostas aportadas em teorias
científicas emergentes, tais como: a Psicologia, a Linguística, a Sociologia, a
Psicolinguística, que imbicariam para a melhoria da qualidade do ensino de leitura e
escrita, foram implementadas mediante reformas de ensino, testes de aptidão,
reformulação de currículos das licenciaturas e políticas públicas de formação
continuada de professores (essa última mais recentemente nas últimas três
décadas).
57
A fim de buscar respostas a essas necessidades e questionamentos, a partir de então foram engendrados e/ou adotados por pesquisadores brasileiros pelo menos três modelos teóricos principais de explicação para os problemas da alfabetização no Brasil, os quais podem ser denominados, sinteticamente, construtivismo, interacionismo linguístico e letramento (MORTATTI, 2010, p. 332, grifos da autora).
Nessa direção, com o fim do regime ditatorial, imbuídos por ideais da
redemocratização, as práticas escolares, influenciadas pelas mudanças sociais,
começaram a tomar outras configurações, dessa maneira,
[...] a relação professor-aluno passa a ser pautada como um princípio pedagógico, almejando uma relação mais igualitária. As cartilhas se tornam fora de moda, sendo as principais acusadas pelo ―fracasso‖ da escola na alfabetização das crianças. Como correlato teórico-metodológico, introduziu-se no Brasil o pensamento construtivista sobre alfabetização, inspirado na pesquisadora argentina Emilia Ferreiro (BAGATIN, 2012 p. 57, grifos do autor).
Incialmente, os estados brasileiros aderiram aos programas de formação
pedagógica e utilizaram a então recém-chegada pesquisa sobre a ‗psicogênese da
língua escrita‘, realizada por Emilia Ferreiro e colaboradores, baseadas na teoria
construtivista piajetiana, como referencial15 na elaboração dos cursos e currículos
dos ciclos de alfabetização. Concomitantemente, pesquisas e artigos de combate
eram produzidos nos ambientes acadêmicos panfletando a teoria.
A partir desse momento, logrou hegemonia, por meio de sua oficialização no âmbito de políticas públicas para a alfabetização, o modelo teórico resultante da perspectiva epistemológica construtivista em alfabetização, ou simplesmente construtivismo, como ficou conhecido (MORTATTI, 2010, p.332).
A culminância da divulgação do construtivismo se deu na elaboração e
publicação dos PCN, em meados da década de 1990, passando a influenciar
politicas municipais e estaduais, os projetos político-pedagógicos (PPP) das escolas,
além do aporte às mais variadas pesquisas, construção de materiais didáticos,
cursos de formação em níveis de aperfeiçoamento e especialização e, sobretudo, a
15
Podemos citar como exemplos categóricos dois casos, no estado de São Paulo, a implantação Ciclo Básico de Alfabetização (CBA), em 1983-1984 (MORTATTI, 2010), modelar futuramente aos outros estados, bem como na cidade de Recife/PE, o Ciclo de Alfabetização, implantado em 1986 (MORAIS, 2012).
58
disseminação de um discurso construtivista, nem sempre condizente com as efetivas
práticas didáticas.
Apesar de o construtivismo em alfabetização ter-se tornado oficial, outros estudos e pesquisas foram ganhando destaque também a partir de meados dos anos de 1980, no Brasil, como ocorreu com as propostas dos pesquisadores brasileiros João Wanderley Geraldi e Ana Luiza Smolka, fundamentadas no interacionismo linguístico e na psicologia soviética, e com as propostas dos pesquisadores brasileiros Mary Kato, Leda Tfouni, Ângela Kleiman e Magda Soares, fundamentadas no conceito de letramento. Propostas didático-pedagógicas decorrentes desses modelos teóricos foram sendo incorporadas e divulgadas, ainda que em menor grau e intensidade, como aspectos complementares do construtivismo, no âmbito de políticas públicas de alfabetização (MORTATTI, 2010, p. 332, grifos da autora).
Entretanto, pode-se afirmar que, no Brasil, a teoria construtivista nunca
chegou, de fato, a ser efetivada nas práticas escolares, tampouco foi apropriada de
forma fidedigna pelos organismos governamentais, no caso, o governo federal como
maior autoridade legal, que normatizam a educação pública brasileira (MORAIS,
2012).
Isso aconteceu devido aos novos moldes econômicos, implantados na década
de 1990, a partir de uma tendência neoliberal de gerenciamento do Estado,
necessitarem de um modelo educacional diferente daquele prescrito pela recém
acabada Ditadura Militar (DUARTE, 2000), bem como, deveria atender os preceitos
democráticos previstos na Carta Magna promulgada em 1988.
Assim, para a reforma, o Estado brasileiro se apropriou indebitamente de
teorias educacionais que suportassem o discurso neoliberal, além de formar o
cidadão para o novo modelo de sociedade capitalista que se instalara. Pois, ―[p]ara a
reprodução do capital torna-se hoje necessária, como foi visto, uma educação que
forme trabalhadores segundo os novos padrões de exploração do trabalho‖
(DUARTE, 2000, p.47).
Assim, essa proposta de formação do novo cidadão foi, primeiramente,
materializada na forma legal, a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB 9.394/96, que normatiza, regula e orienta a educação)
e, posteriormente, em formato prescritivo, para efetivar as práticas pedagógicas
almejadas, por meio da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN).
Nessa perspectiva, retalhos da teoria construtivista foram sendo apropriados
pelos elaboradores da política educacional vigente, que serviria de estofo para o
59
modelo econômico que estava se implantando naquele momento e recomendado a
outras teorias emergentes, nem tanto difundidas, como o interacionismo e
letramento. Assim, o conceito de construtivismo presente nos PCN constituiu-se a
partir de vários retalhos de teorias que veem o sujeito humano como ser
cognoscente construtor do seu conhecimento, aportados em autores como Piaget,
Vigotski e Ausubel, e podem ser identificados nos seguintes trechos do documento:
Por muito tempo a pedagogia focou o processo de ensino no professor, supondo que, como decorrência, estaria valorizando o conhecimento. O ensino, então, ganhou autonomia em relação à aprendizagem, criou seus próprios métodos e o processo de aprendizagem ficou relegado a segundo plano. Hoje sabe-se que é necessário resinificar a unidade entre aprendizagem e ensino, uma vez que, em última instância, sem aprendizagem o ensino não se realiza. A busca de um marco explicativo que permita essa ressignificação, além da criação de novos instrumentos de análise, planejamento e condução da ação educativa na escola, tem se situado, atualmente, para muitos dos teóricos da educação, dentro da perspectiva construtivista. A perspectiva construtivista na educação é configurada por uma série de princípios explicativos do desenvolvimento e da aprendizagem humana que se complementam, integrando um conjunto orientado a analisar, compreender e explicar os processos escolares de ensino e aprendizagem. A configuração do marco explicativo construtivista para os processos de educação escolar deu-se, entre outras influências, a partir da psicologia genética, da teoria sociointeracionista e das explicações da atividade significativa. Vários autores partiram dessas ideias para desenvolver e conceitualizar as várias dimensões envolvidas na educação escolar, trazendo inegáveis contribuições à teoria e à prática educativa.
O núcleo central da integração de todas essas contribuições refere-se ao reconhecimento da importância da atividade mental construtiva nos processos de aquisição de conhecimento. Daí o termo construtivismo, denominando essa convergência (BRASIL, 1997, p.36).
Nos excertos supracitados, pode-se perceber, no texto do documento, as
influências de diferentes teorias psicológicas que centram a aprendizagem focada na
atividade construtiva do sujeito. Para Bagatin (2012, p. 61, grifos do autor),
[...] diversas são as tentativas de explicar o fenômeno do ―boom construtivista‖ no Brasil, ora enfatizando a resposta prática para a questão do que fazer na sala de aula, ora relacionando a teoria ao contexto sociopolítico e econômico da época de seu surgimento. O que todas elas concordam é que o construtivismo brasileiro foi
60
caracterizado por uma mistura de distintas teorias e pregou a radicalização da autonomia dos processos de aprendizagem por parte das crianças, materializando-se, no âmbito da realidade das salas de aulas, em verdadeiros ―modismos construtivistas‖ (ibid).
Apesar dessa miscelânea teórica, esse ―construtivismo‖ trouxe grandes
contribuições no âmbito da alfabetização ao retirar de cena os antigos métodos
tradicionais, que privilegiavam o ensino da técnica e deixavam de lado a
aprendizagem do aluno, porém
[...] infelizmente, no jargão pedagógico e no senso comum, ―construtivismo‖ se tornou uma palavra-ônibus, que pode exprimir desde os princípios de ―pedagogias do laissez-faire‖ ou de ―pedagogias que só valorizavam a descoberta espontânea dos alunos‖, até formas travestidas do que há de mais transmissivo e tradicional na história das escolas repressoras deste planeta (MORAIS, 2012, p. 45-46, grifos do autor).
Além disso, o construtivismo surge como uma teoria de ensino/aprendizagem
e não como um método. Mal interpretado pelos profissionais que elaboram e aplicam
as propostas de ensino, a tentativa de sua ―metodização‖ gerou diversos equívocos
de interpretação e, muitas vezes, levou o ensino das primeiras letras para o fracasso
(MENDONÇA; MENDONÇA, 2007).
Evidentemente, nem o construtivismo, nem a Psicogênese da língua escrita são métodos, mas ainda hoje é comum, ao se questionar um alfabetizar sobre qual é seu método de ensino, obter-se a resposta: construtivista. Relevante é lembrar que, juntamente com as revelações de Ferreiro e Teberosky, já descritas, foram divulgadas concepções que não eram delas, mas geradoras de muitos equívocos, que inclusive lhes causaram muito constrangimento (MENDONÇA; MENDONÇA, 2007, p. 55)
Enfim, como termômetros para aferir essas políticas de alfabetização,
principalmente no que diz respeito às práticas/métodos, continuam sendo utilizados
os índices de reprovação e evasão do alunado brasileiro, tidos, por muitos, como
caracterizadores da (in)eficiência do sistema escolar, sem levar em conta os baixos
investimentos, a má formação dos professores, a violência no interior das escolas,
dentre outras variáveis que contribuem para o fracasso da escola pública brasileira.
Ao construtivismo não foi utilizada outra medida. Além desses equívocos
gerados em torno da teoria, os contínuos índices de baixo nível de conhecimento em
linguagens, matemática e ciências do alunado da escola pública, demostrados pelas
avaliações governamentais e internacionais, fomentaram grupos de pesquisadores
que, contrários ela, movimentaram-se e, de certa forma, inculparam-na como o
61
principal, quiçá o único, agente promotor do fracasso educacional, como
demonstrado a seguir.
3.2 A retórica fonocentrista: novos caminhos?
Desde sua publicação, o ‗Relatório final do grupo de trabalho Alfabetização
Infantil: os novos caminhos‘ (2003, 2005, 2007), foi tema de artigos científicos e
objeto de pesquisa de mestrados e doutorados, principalmente nas áreas de
Educação e Linguagem.
Desse modo, ao compor a discussão pretendida para este texto, como
principais referências, foram utilizadas produções científicas derivadas dessas áreas
de estudo. Na seleção, recorremos principalmente aos trabalhos de Bajard (2006);
Bagatin (2012); Calil, Lopes e Felipeto; (2006) e Weizs (2004) que, emblemáticos e
contrários aos princípios norteadores do documento, questionaram o rigor científico
de seu conteúdo, ao traçarem um paralelo entre o que existe de pesquisas em torno
da alfabetização e os dados apresentados pelo grupo. Além do mais, esses
trabalhos encontram-se em consonância epistemológica com os referenciais teóricos
propostos nesta pesquisa.
Adentrando aos meandros da discussão, o Relatório conta com seis capítulos
escritos em 182 páginas, redigidos em tom confrontador e messiânico. Seu conteúdo
basicamente aponta os ―novos caminhos‖ por meio da alteração da influência
construtivista pela fonocentrista nas recomendações pedagógicas oficiais, no caso,
as que constam nos PCN das séries iniciais.
Para tanto, com o objetivo de elevar o método fônico à categoria de salvador
do problema do ensino de leitura e escrita, através de uma retórica baseada em
dados, comparações e evidências científicas, o texto está recheado de afirmações,
na tentativa de convencimento aparentemente forçoso de rebaixar a teoria
construtivista ao nível do amadorismo, como:
[...] Nos últimos 30 anos, foram feitos notáveis progressos científicos. O estudo da leitura hoje se constitui em um ramo científico sólido. Também nesse período, importantes avanços foram realizados nas práticas de alfabetização de inúmeros países. O Brasil se encontra à margem desses conhecimentos e desses progressos (BRASIL, 2007, p. 13).
62
O problema é que uma postura eminentemente política ou ideológica levou, em diversos países, e continua levando, no Brasil, a uma rejeição de evidências objetivas e científicas sobre como as crianças aprendem a ler (BRASIL, 2007, p. 20). Todos esses estudos adotam procedimentos científicos bem estabelecidos e reconhecidos pela comunidade científica internacional (BRASIL, 2007, p. 22). O estudo da alfabetização rompeu com o mundo da especulação e do amadorismo (BRASIL, 2007, p. 23).
Ainda que os autores afinquem por demonstrar com clareza e solidez a
fidedignidade de seus argumentos, esse esforço altiloquente redunda-se em frases
de efeito com argumentos pouco sólidos e obscuros, assim descritos pelo renomado
pesquisador Élie Bajard:
A necessidade de recorrer compulsivamente ao argumento de autoridade da ciência acaba funcionando como denegação, gerando suspeitas sobre a força da própria argumentação. O Relatório, que recorre até à caricatura para desconsiderar o pensamento alheio, assemelha-se mais a um panfleto do que a um texto científico (BAJARD, 2006, p. 495).
Para engrossar a voz, o grupo utiliza experiências internacionais, como a
substituição do construtivismo pela abordagem fônica, realizadas por países de
primeiro mundo, como os Estados Unidos, França e Inglaterra. A título de ilustração,
toma-se o caso particular desse último país que, segundo o Relatório, em 1996
contava com 45% dos seus alunos da 4ª série abaixo dos níveis mínimos de
desempenho de leitura esperados e abaixo das médias internacionais:
A partir de 1997, com a National Literacy Strategy, começaram a ocorrer notáveis mudanças nas práticas de ensino, incluindo o uso do método fônico e o estímulo a práticas orientadas de leitura e uso do tempo em sala de aula. Poucos anos depois, a porcentagem de alunos abaixo do mínimo caiu de 45% para 20% e, em 2001, a Inglaterra passou a ocupar o 3º lugar no ranking internacional de desempenho em leitura, comparativamente a 35 outros países (BRASIL, 2007, p. 23, grifos dos autores).
Entretanto, traçar esse tipo de comparação configura-se como um profundo
equívoco. Em artigo, que trata a respeito da querela dos métodos no Brasil e o
ressurgimento da discussão sobre o método fônico como alternativa metodológica,
comparativamente – sob o mesmo argumento de substituição de métodos globais
pelo fônico feitas por países do primeiro mundo –, Mortatti (2008, p. 105) alertou:
63
Essa afirmação se baseia em raciocínio sofismático, segundo o qual o que serve para alguns países desenvolvidos em determinado momento histórico e como resposta a suas necessidades específicas, serve para todos os outros subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, independentemente das diferenças históricas, políticas, sociais, culturais e linguísticas entre esses países e de suas necessidades específicas. Trata-se apenas de imitar modelos resultantes de pesquisas e necessidades de outros, como se se tratasse de problemas universais idênticos, com soluções igualmente universais e idênticas.
Do mais, os enfoques metodológicos utilizados nesses países são
semelhantes aos daqui, porém não são idênticos, sejam pelas diferenças
linguísticas, sejam pelos procedimentos didáticos adotados nos processos de
ensino/aprendizagem.
Os autores de tal acusação defendem suas cartilhas fônicas e dizem que, como demostra a literatura estrangeira, os professores dos países de língua inglesa, que usam ―phonics‖, têm muito melhores resultados que os que usam ―métodos globais‖ (que é como traduzem o que naqueles países é denominado ―enfoque whole language‖). A leitura de boas pesquisas sobre a ―guerra dos métodos‖ em inglês (cf. HURRY, 2004)16 nos ensina que tal polarização é falsa (MORAIS, 2012, p. 36, grifos do autor).
Em estudo, Hurry (2004) apontou que, diferentemente de como ocorre no
Brasil, nos países de língua inglesa, a sistematização do tratamento grafema-fonema
é feita com outros tipos de atividades de leitura, como, por exemplo, de textos reais,
sem vocabulário restrito às correspondências entre letra e som já ensinadas, além
de ser admitido o erro da criança ao escrever espontaneamente, quando solicitada,
atividades que pouco têm a ver com esse enfoque metodológico (MORAIS, 2012).
O problema com a polêmica que se quer importar dos países ―desenvolvidos‖ — sob o argumento de que eles é que entendem de educação enquanto nós só entendemos de futebol — é que ela não contribui em nada para o debate das questões da educação brasileira: não está acrescentando nada ao estado do conhecimento na área; não está ajudando em nada a enfrentar o nosso verdadeiro desafio que é o de criar a competência necessária para alfabetizar todas a nossas crianças e não apenas as que já chegam à escola com concepções relativamente avançadas sobre o sistema de escrita em português. Competência que precisa ser construída pelo professor e que não pode ser substituída pela adoção desta ou daquela cartilha, seja ela fônica ou metafônica (WEIZS, 2004, p. 05, grifos da autora).
16
HURRY, J. Comparative Studies of Instructional Methods. In: Nunes, T. BRYANT, P. (org.). Handbook of Children’s Literacy. Dordrecht: Kluwer Academic Publichers, 2004, p. 557-574.
64
Nessa direção, os fonocentristas instauraram uma confusão entre métodos de
ensino, no documento, ao compararem as práticas realizadas aqui e as
internacionais acusando o construtivismo de fracassado, pois, para os
fonocentristas, ―Os PCNS, como os proponentes da Whole Language, pretendem
não se associar a nenhum método, mas propõem um ensino de leitura incidental, o
que, na prática, equivale ao método ideovisual [...]‖ (BRASIL, 2007, p.65).
Os mesmos editores de cartilhas acima referidos têm feito afirmações sem qualquer fundamento sobre a didática da alfabetização de corte construtivista interacionista. Uma delas é que esta didática foi ―derrotada‖ e abandonada tanto na França como nos EEUU. Esta didática nunca foi ―derrotada‖ nem nos EEUU nem na França, não porque ela seja ―invencível‖ e sim porque ela é desconhecida nestes dois países. As práticas didáticas que estão sob ataque nestes dois países são as seguintes: na França a proposta de leiturização cujo expoente mais conhecido no Brasil é Jean Foucambert e nos EEUU o movimento Whole Language. Nenhum dos dois é ou se diz construtivista (WEIZS, 2004, p. 04, grifos da autora).
Essa discrepância entre esses países de primeiro mundo (adeptos ao método
fônico e vitoriosos no ranking mundial), segundo os fonocentristas, seria decorrente
do grau de cientificidade que apoia suas respectivas recomendações nacionais para
alfabetização (BAGATIN, 2012), diferentemente do Brasil que, adepto do
construtivismo calcado no ―mundo da especulação e do amadorismo‖ (BRASIL,
2007, p. 21), não deu conta de alfabetizar as massas, isso porque, somente o
método fônico, fundado em teorias provenientes de ―pesquisas atuais sobre leitura
obedecem às mesmas regras aplicáveis às demais ciências experimentais, como a
Física ou a Biologia‖ (BRASIL, 2007, p. 21).
Sobre esse discurso infundado, alertou Bajard (2006, p.495): ―Para os
autores, as ciências humanas seriam epistemologicamente equivalentes às ciências
do mundo físico! Paradoxalmente, o discurso emitido hoje pelos cientistas da
natureza é menos messiânico que o mantido pelo Relatório‖. Essa citação deflagra,
mais uma vez, o apelo dos fonocentristas ao persuadir o leitor por meio de um
discurso agressivo e manipulador que pouco contribui para os reais problemas da
alfabetização atual.
Muitas páginas poderiam ser escritas sobre as fragilidades do documento, no
entanto, nos limites deste texto, selecionamos algumas premissas ilustrativas
apresentadas por Bajard (2006), que colocam ainda mais em dúvida a cientificidade
65
do Relatório, quando se trata acerca das concepções de linguagem e
ensino/aprendizagem:
a lógica da argumentação deixa a desejar;
a linguística de referência, historicamente marcada, é redutora;
a dimensão semiótica é esquecida, embora se trate de uma linguagem visual;
a psicologia do ato de ler e da aprendizagem remete a uma concepção mecanicista e autoritária (BAJARD, 2006, p. 496).
A análise feita pelo autor supracitado evidencia características muito próximas
entre as concepções expressas pelo Relatório e as antigas cartilhas, atribuindo uma
nova embalagem a uma velha mercadoria17.
À guisa de conclusão, como dito anteriormente, o Relatório foi objeto de
estudos de muitas pesquisas e debates, logo, a discussão abordada por este
trabalho propõe um delineamento geral do documento veiculador da retórica
fonocentrista.
Desse modo, foram levantados os principais argumentos dos defensores do
método fônico ao elevar uma metodologia historicamente comprovada como
excludente e alienante ao patamar de ‗revelação científica‘. Além de acusar o
construtivismo, de forma maniqueísta, como o vilão do fracasso da alfabetização
brasileira, desconsiderando o histórico de baixos índices de escolarização marcados
na trajetória de nossa educação, bem como, outros aspectos internos e externos à
escola.
Mesmo que correntes teóricas não concordem com a postura ideológica que
embasa as contribuições trazidas pelas pesquisas de Emília Ferreiro e
colaboradores ou que interpretem a apropriação da linguagem escrita por outro viés
epistemológico, há de se convir que, naquele momento histórico (década de 1980),
cujos índices de reprovação e evasão das crianças na primeira série eram
alarmantes, em detrimento de uma metodologia excludente (das cartilhas) que
atribuía as debilidades da técnica (ensino) às ―deficiências da criança‖, sem
considerar o processo de aprendizagem. Sobre o construtivismo de Ferreiro:
Foi essa teoria do conhecimento, essa concepção de aprendizagem, que permitiu que se mudasse completamente as perguntas, as questões que norteavam a investigação em alfabetização. Deixou-se, em primeiro lugar, de buscar compreender o que havia de errado — de deficiente ou deficitário — com as crianças que não tinham sucesso na alfabetização (e que no Brasil correspondiam a
17
Expressão utilizada por Bajard (2006) em referência ao método fônico proposto pelo Relatório.
66
inacreditáveis 50% das matriculadas na 1a série) e tratou-se de descobrir como aprendiam as que o tinham (WEIZS, 2004, p.02).
Ademais, mesmo tendo sido incorporado no discurso da grande maioria dos
alfabetizadores, as práticas construtivistas inspiradas na teoria da psicogênese da
escrita de Ferreiro e colaboradores tendem a ocorrer muito raramente.
Estudos como os de Mamede (2003)18 atestam que, por um lado, mesmo quando se diziam ―construtivistas‖, os professores usavam, rotineiramente, atividades de cópia de letras e sílabas e ensinavam famílias silábicas. Por outro lado, Santos e Morais (2007)19 constataram que docentes de turmas do primeiro ano julgavam que os ―novos livros de alfabetização‖ (substitutos das antigas cartilhas) ―continham muitos textos, mas poucas atividades de ensino da escrita alfabética‖. Para contornar tais lacunas, as alfabetizadoras pesquisadas tendiam a recuperar as antigas cartilhas (que guardavam em seus armários) e delas copiavam tarefas de ensino de relações entre letra e som, que faziam com seus alunos (MORAIS, 2012, p. 26, grifos do autor)
No momento atual, em que diversas teorias e práticas educacionais são
amplamente difundidas, aplicadas e pesquisadas, seria possível considerar
irrelevante a discussão de uma única concepção de alfabetização, ainda mais se
tratando do caso particular do velho conhecido método fônico, que durante séculos
ressurgiu nas salas de aula em novas roupagens.
Além do mais, tendo em vista que a primeira publicação do documento data
de mais de dez anos e efetivamente não conseguiu introduzir a abordagem fônica
como correlato metodológico oficial, a presente discussão, de fato, seria
desnecessária.
Entretanto, uma maior atenção deve ser atribuída ao caso, logo o documento
veio por intermédio de comissão criada pelo Poder Legislativo, órgão que elabora e
altera as leis de nosso país, proporcionando grande visibilidade nacional ao método
e chancelando o discurso em prol de uma ‗nova‘ alternativa aos péssimos resultados
que as ‗velhas‘ práticas têm deflagrado.
Se a intenção dos defensores do método fônico for substituir a influência construtivista pela fonocentrista dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) - 1ª a 4ª série, começaram a empreitada pelo local correto: a Câmara dos Deputados – talvez a
18
MAMEDE, I. Professoras alfabetizadoras e suas leituras teóricas. In: Anais da 26ª Reunião Anual da Anped. Caxambu, 2003, p. 1-16. 19
SANTOS, A.A.; MORAIS, A.G. O uso dos novos livros didáticos de alfabetização: o que afirmam os professores ao ensinarem o sistema de escrita alfabética? In: Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste, 28, Maceió, 2007. Anais. Maceió: UFAL, 2007, v. 1, p. 1-12.
67
casa que concentre os mais intensos debates políticos no país, responsável por propor alterações na legislatura nacional (BAGATIN, 2012, p. 79, grifos do autor).
De fato, o Relatório não conseguiu atingir o objetivo principal de seu intento.
Em fevereiro de 2006, Fernando Haddad, então Ministro da Educação, tentou propor
uma revisão dos PCN, todavia, sem sucesso. Assim, ―percebendo que o debate
estava a gerar mais calor do que luz, dois meses depois, em abril, Haddad anunciou
que o ministério desistira de recomendar um método oficial‖ (SCHUWARTSMAN,
2009, s/p).
Contudo, mesmo não surtindo o efeito esperado pela comissão, o documento
passou a influenciar propostas curriculares municipais e estaduais, além de destacar
matérias em jornais e revistas de grande circulação, lucrar encontros de formação e
palestras aos seus locutores, circunscrevendo o território dessa concepção.
Algumas Assembleias Legislativas – notadamente as do Ceará, Pará e Maranhão promoveram debates em torno do relatório. Em municípios do Ceará, Maranhão, no Estado de Sergipe e mais recentemente, no Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte houve significativa abertura para a discussão e adoção de novas teorias e práticas de alfabetização. O mesmo vem ocorrendo em dezenas de municípios em todo o país (BRASIL, 2007, p. 11).
Outro exemplo encontra-se na materialidade da proposta, que pode ser
evidenciada a partir de três anos após a primeira edição do documento, por meio da
fundação de uma organização não governamental, curiosamente criada pelo
coordenador do Relatório, o Instituto Alfa e Beto, um dos maiores produtores de
materiais didáticos baseados em abordagem fônica, talvez o maior e mais
significativo que se encontra no mercado atualmente, a ser abordado na próxima
seção.
68
4 METODOLOGIA E ANÁLISE DO CORPUS
O sujeito está, o tempo todo, diante do texto (na qualidade de fala e discurso do outro) e do contexto (na qualidade de realidade circundante), ao mesmo tempo em que se faz e é tocado pela dinâmica da realidade que se esforça por compreender. Na verdade, ele é parte dela tanto quanto ela passa a fazer parte de sua existência (GHEDIN; FRANCO, 2011, p.171).
Esta seção objetiva apresentar o caminho metodológico percorrido na
presente pesquisa, bem como a origem e a descrição do material selecionado como
corpus e as análises realizadas a partir do conteúdo investigado.
Assim, ela se apresenta em subseções: inicialmente, a metodologia da
pesquisa, posteriormente o Instituto Alfa e Beto, considerando seu histórico, ideário
educacional e materiais produzidos, para que compreenda a proveniência e o
contexto do ‗ABC do Alfabetizador‘. Por fim, a análise do conteúdo deste documento
segmenta-se em categorias.
4.1 Metodologia
Para este estudo, a compreensão dos aspectos metodológicos da pesquisa
evidencia-se a partir do pensamento de Tozoni-Reis (2011, p. 9): a ―Metodologia de
pesquisa é um caminho a ser trilhado pelo pesquisador no processo de produção de
conhecimentos sobre a realidade estudada‖.
Sendo assim, com a finalidade de examinar a concepção de alfabetização
contida no ‗ABC do Alfabetizador‘, livro que compõe o Programa Alfa e Beto de
Alfabetização, elaborado pelo IAB, para a realização desta investigação, optou-se
pela pesquisa de abordagem qualitativa, cujas fontes de informação e os
procedimentos de coleta são de cunho documental.
A escolha pela pesquisa documental justifica-se através do pensamento de
Tozoni-Reis (2011, p. 31):
A pesquisa documental tem como principal característica o fato de que a fonte dos dados, o campo onde se procederá a coleta dos dados, é um documento (histórico, institucional, associativo, oficial etc.). Isto significa que a busca de informações (dados) sobre os fenômenos investigados é realizada nos documentos que exigem,
69
para a produção de conhecimentos, uma análise, no caso, a documental.
Por se tratar de uma pesquisa cujo corpus de análise compõe-se pelo livro
de formação do professor, documento que apoia a prática pedagógica do professor
alfabetizador, fomos buscar sua caracterização dentro da pesquisa nas palavras de
Gonsalves (2005, p. 32):
A noção de documento corresponde a uma informação organizada sistematicamente, comunicada de diferentes maneiras (oral, escrita, visual ou gestualmente) e registrada em material durável. Assim, ao lado de comunicados à imprensa, livros de recortes, artigos de jornal, registros individuais e processos, os materiais que os sujeitos escrevem por si mesmos como autobiografias, diários e cartas pessoais também são documentos.
Contudo, tratando da definição e da relevância de se propor uma pesquisa
de investigação documental, ainda nas palavras de Tozoni-Reis (2011, p. 32):
A pesquisa documental em educação, portanto, é uma ―visita‖ que o pesquisador faz a documentos que tenham significado para a organização da educação ou do ensino, com o objetivo de empreender uma análise, em geral crítica, das propostas em questão.
Na coleta e análise dos dados obtidos no documento supracitado, utilizou-se
a técnica de pesquisa baseada na análise de conteúdo, pois ela tem como principal
objetivo ―desvendar os sentidos aparentes ou ocultos, manifestos ou latentes,
explícitos ou implícitos, de um texto, um documento, um discurso ou qualquer outro
tipo de comunicação‖ (TOZONI-REIS, 2011, p.31).
Dessa maneira, na utilização da técnica, a escolha dos procedimentos para
esta análise do estudo, pautou-se no objetivo da pesquisa, ou seja, na concepção de
alfabetização presente no corpus selecionado, guiada pelas intenções do
pesquisador, sem perder de vista as bases epistemológicas alicerçadas nos
referenciais teóricos utilizados até então. Portanto,
Esses procedimentos podem privilegiar um aspecto da análise, seja decompondo um texto em unidades léxicas (análise lexicológica) ou classificando-o segundo categorias (análise categorial), seja desvelando o sentido de uma comunicação no momento do discurso (análise da enunciação) ou revelando os significados dos conceitos em meios sociais diferenciados (análise de conotações), ou seja, utilizando-se de qualquer outra forma inovadora de decodificação de comunicações impressas, visuais, gestuais etc., apreendendo o seu conteúdo explícito ou implícito (CHIZZOTTI, 1998, p. 98).
70
Na construção da análise documental, inicialmente, foi realizada uma leitura
flutuante20 do documento para conhecimento, conexão entre o texto e o quadro
teórico da pesquisa, bem como a reflexão do pesquisador frente ao conteúdo
encontrado.
O segundo passo constituiu-se pela organização e delimitação do corpus de
estudo, a fim de definir os perímetros da investigação que, posteriormente, serviram
de material para a elaboração do roteiro de análise. Feito isso, selecionaram-se os
elementos de análise do documento que propiciaram a formatação do texto da
dissertação.
Desse modo, os elementos de análise foram selecionados e categorizados da
seguinte maneira:
1. Alfabetização
2. Linguagem/língua
3. Leitura
4. Escrita
A escolha por esses elementos de análise se deu por eles serem ‗conceitos-
chaves‘ para a organização/edificação do ensino das primeiras letras, logo, são
elementos essenciais para o exercício de se alfabetizar. A partir desse entendimento
foram determinados os caminhos que o alfabetizador deverá percorrer na formação
do aluno alfabetizado, ou seja, na construção do cidadão leitor e escritor de textos,
em diferentes situações e esferas comunicativas, premissas defendidas nesta
investigação.
Portanto, para contextualização e maior entendimento dos elementos
analisados do documento em questão, apresentou-se primeiramente o Instituto Alfa
e Beto. Feito isso, descrevemos as características do documento impresso, em suas
dimensões e conteúdo, descritos a seguir.
20
Leitura flutuante é um termo especificamente utilizado na técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 1977) que consiste em uma leitura onde hipóteses ou questões norteadoras são levantadas em função de teorias utilizadas na pesquisa. Sumariamente, pode-se dizer que a leitura flutuante é a pré-leitura do documento para reconhecimento e seleção do corpus.
71
4.2 O Instituto ALFA e BETO e o ABC do alfabetizador
Pretende-se apresentar, nesta subseção, o IAB, bem como seu ideário de
educação, abordando seu histórico e materiais que compõem o Programa Alfa e
Beto de Alfabetização, além de descrever as dimensões do ‗ABC do Alfabetizador‘,
livro de formação teórica do método, documento que compõe o corpus de análise da
pesquisa.
Para tanto, buscamos os dados no site21 do IAB, onde, em primeira leitura
realizada para reconhecimento dos conteúdos, ficou evidente a configuração
comercial que o instituto assume, pois, além das informações sobre a organização e
exposição dos seus materiais, disponibiliza também a venda dos produtos e serviços
em uma loja virtual.
Curiosamente, considerado uma organização não governamental (ONG), sem
fins econômicos, o IAB foi oficialmente criado, em novembro de 2006, pela família
Oliveira. A organização foi idealizada e, atualmente, é liderada pelo professor João
Batista Araujo e Oliveira (Diretor-Presidente) e pela professora Mariza Rocha e
Oliveira (Diretora-Administrativa).
A ONG recebeu de seus instituidores a concessão de direitos de uso de
diversos produtos e programas que haviam sido desenvolvidos e implementados
desde o ano 2000. A partir de então, expandiu sua presença no território nacional,
estabelecendo parcerias com universidades e organizações não governamentais e
privadas22.
Segundo o site, o IAB se alicerça na trajetória profissional de seu fundador, o
professor João Batista, graduado em Psicologia pela Universidade Católica de Minas
Gerais (1969), mestre em Psicologia pela Tulane University (1972) e Ph.D. em
21
Informações obtidas no endereço eletrônico http://www.alfaebeto.org.br/ durante o período da pesquisa. 22
Segundo o site, o IAB conta com uma rede de parcerias que o ajudam na promoção de políticas e práticas, classificados da seguinte forma: Parceiros Institucionais - Confederação Nacional da Indústria (CNI), Serviço Social da Indústria (SESI), Instituto GEIA, Instituto de Co-Responsabilidade pela Educação (ICE), Fundação Lemann, Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV), Fundação Bernard van Leer, BG Group, Eletrobrás, Odebrecht, Gávea Investimentos, Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República; Universidades e Instituições Científicas - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Departamento de Psicologia), Universidade Mackenzie, Universidade Estácio de Sá, PUC-Rio (Departamento de Psicologia), Academia Brasileira de Ciências; Parcerias Internacionais - Reach out and Read, University of Virginia, New York University (School of Medicine), Bank Street College (New York), Ministério da Educação de Portugal (Programa Nacional de Leitura), UNICEF/PAHO.
72
Pesquisa Educacional pela Florida State University (1973), atuou em diversas
universidades no Brasil e exterior, publicou uma considerável gama de artigos
científicos e livros que tratam sobre a reforma da educação e ensino na sala de aula,
dentre essas publicações está o ―ABC do Alfabetizador‖. Entretanto, cabe ressaltar
que grande parte dessa produção fora publicada por seu próprio instituto.
A página da Internet disponibiliza a presença do IAB em diferentes
localizações do país:
O Instituto Alfa e Beto atua em todo o território nacional. Ao longo de sua existência, já esteve presente em 18 dos 27 estados da Federação em programas patrocinados pelo Ministério da Educação, Secretarias Estaduais e Municipais de Educação e também por meio de parcerias envolvendo empresas públicas, privadas e organizações não governamentais. O IAB já esteve presente em mais de 700 municípios – seja em redes estaduais ou municipais (IAB, 2015).
Como visto, o IAB tem grande abrangência no território nacional e influência
na educação de muitos brasileiros em idade escolar. Dessa maneira, a fim de
garantir o atendimento ao seu mercado consumidor, a ONG conta com uma vasta
equipe de suporte e atendimento ao cliente, em diferentes localidades do país.
As atividades técnicas do Instituto são realizadas por um corpo de profissionais localizados em diferentes regiões do país, que se ocupam tanto da supervisão de projetos quanto de assuntos técnicos especializados (site IAB, 2015).
Quanto aos objetivos pretendidos pela instituição, as informações
encontradas no site referem-se a três termos bem delimitados e definidos em poucos
parágrafos: missão, prioridades e objetivos estratégicos.
Por se tratar de uma organização declaradamente sem fins lucrativos e
voltada para o público educacional, chamou bastante a atenção o encontro desses
vocábulos, comumente utilizados em meios empresariais. Nesse caso, os termos
denotam o grau de comprometimento da instituição com a conquista de um mercado
consumidor.
Dessa forma, a missão pretendida pela ONG define-se da seguinte maneira:
―O Instituto Alfa e Beto tem como missão promover políticas e práticas de educação
baseadas em evidências e melhores práticas‖ (IAB, 2015).
Ainda na seção que trata sobre a missão, o IAB apresenta suas prioridades
dentro desse mercado que, segundo o site ―O Instituto Alfa e Beto, tem duas
73
prioridades: assegurar a alfabetização de crianças no 1º ano do Ensino Fundamental
e promover políticas eficazes de educação na Primeira Infância‖.
Quanto aos objetivos estratégicos, o instituto apresenta uma proposta
categórica de mudanças nas políticas educacionais baseadas nos ideários da ONG,
seja no estado ou município que o adota, bem como a massificação das práticas
pedagógicas mediante homogeneização da técnica de ensino. Nas palavras do IAB:
O Instituto Alfa e Beto tem como objetivos estratégicos: Contribuir para a mudança de políticas com ênfase em algumas
causas que o Instituto considera fundamentais para mudar os rumos da educação no país.
Contribuir para mudar práticas por meio da implementação, em larga escala, de projetos baseados em evidências (IAB, 2015).
Esses elementos, que alicerçam o funcionamento da ONG, se justificam a
partir de uma causa: ―promover a qualidade da educação no contexto da realidade
educacional brasileira‖ (IAB, 2015). Para tanto, o instituto se apoia no discurso,
altamente recorrente, de uma educação baseada em evidências. Para o IAB, a
educação baseada em evidências se define:
Combinando evidências científicas e empíricas obtidas por meio de estudos sólidos e instrumentos como testes, avaliações e conhecimentos empíricos sobre as melhores práticas, hoje é possível que se tomem decisões e com maior chance de produzir impacto positivo na aprendizagem dos alunos, nos efeitos da escola e no bom uso de recursos para a educação (IAB, 2015).
Em seu estudo, Lima (2011) apontou os argumentos utilizados pelo instituto
para defender o ensino baseado em evidências:
A justificativa utilizada pelo IAB para uma educação baseada em evidencia é que o mundo inteiro, incluindo o Brasil, é crescente a demanda por avaliação dos resultados do sistema de educação, padrões para avaliar professores, alunos e escolas e critérios para avaliar a eficiência e equidade das políticas educacionais. O IAB ainda informa que a educação baseada em evidências pode contribuir para trazer maior eficiência, qualidade e equidade na educação, principalmente, pelo fato de oferecer objetivos claros para a avaliação (LIMA, 2011, p. 38).
Esse modelo de educação, baseado em evidências, provém de argumentos
derivados dos resultados dos testes de desempenho discente e comparativamente
avaliados aos padrões da comunidade científica, através de premissas baseadas no
princípio da não contradição.
Dentro desse conjunto de objetivos e da alegação de uma educação
fundamentada em princípios científicos, o IAB oferece uma gama de programas de
74
intervenção pedagógica e materiais para implementação de métodos que se
comprometem em aumentar a qualidade da educação brasileira. No site estão
divididas em quatro segmentos: Primeira Infância, Alfabetização, Séries Iniciais e
Institucionais. Os produtos dos segmentos são:
Primeira Infância 1. IAB DIGITAL: Zero a Quatro na Palma da Mão 2. Guia IAB de Leitura: os 600 livros que toda criança deve ler
antes de entrar para a escola 3. Primeira Infância, Primeiras Leituras 4. Coleção Pequenos Leitores 5. Fichas de Atividades 6. Programa Alfa e Beto Pré-escola 7. Coleção Livro Gigante 8. Coleção Grafismo e Caligrafia 9. Coleção Artes na Pré-escola 10. Universidade da Primeira Infância 11. Elaboração de Políticas para a Primeira Infância 12. Elaboração de Currículo para Educação Infantil 13. Avaliação de Instituições de Educação Infantil
Alfabetização
1. IAB DIGITAL: Galáxia Alfa 2. Programa Alfa e Beto de Alfabetização 3. Coleção Livro Gigante 4. Coleção Grafismo e Caligrafia 5. Curso de Formação de Professores Alfabetizadores 6. Teste Diagnóstico de Alfabetização
Séries Iniciais
1. IAB Digital: QAventura! Revisão Prova Brasil 2. Programa Alfa e Beto de Alfabetização 3. Programa Alfa e Beto de Ensino Estruturado – Séries Iniciais 4. Programa IAB de Língua Portuguesa 5. Programa IAB de Fluência de Leitura 6. Gramática na Prática 7. Gincana IAB de Língua Portuguesa 8. Programa IAB de Matemática 9. Coleção Matemática para Pais e Professores 10. Gincana IAB de Matemática 11. Programa IAB de Ciências 12. Programa IAB Prova Brasil 13. Programa Alfa e Beto de Aceleração da Aprendizagem – PAA
Institucionais
1. Diagnóstico de Redes de Ensino 2. Reestruturação de Redes de Ensino 3. Otimização do Transporte Escolar 4. Planejamento de Redes para Implementar o Tempo Integral
(IAB, 2015)
75
Dentre esses programas e materiais, o carro chefe da organização é o
Programa Alfa e Beto de Alfabetização. Na página da Internet, encontra-se a
seguinte caracterização do programa:
O Programa Alfa e Beto de Alfabetização inclui um conjunto rico e variado de materiais para o aluno, professor, classe e escola. O objetivo de nossos livros e ferramentas pedagógicas é assegurar que todos os estudantes dominem o nível básico de fluência em leitura e escrita ao final do 1º ano do Ensino Fundamental. A proposta pedagógica do Programa de Alfabetização está baseada no método fônico, comprovadamente o mais eficaz para promover a alfabetização de crianças e adultos. Além dos materiais voltados para a alfabetização, o Programa do IAB também inclui livros de Matemática e Ciências para o 1º ano, instrumentos didáticos de uso coletivo em sala de aula e manuais de orientação para professores, coordenadores pedagógicos e secretarias de Educação. Todos os técnicos recebem capacitação pedagógica de 24 horas e gerencial de 8 horas (IAB, 2015).
O Programa conta com um conjunto de materiais que dão aporte às práticas
pedagógicas de alfabetização de quem o adota23. Dentre esses materiais
encontram-se fantoches, livros didáticos, livros de leitura, cartazes, cartela de letras,
saquinho com letras do alfabeto, manuais de professor, testes e livros que formam o
professor que alfabetizará utilizando o método fônico. Nessa gama de materiais,
encontra-se o ‗ABC do Alfabetizador‘ descrito a seguir.
4.3 As dimensões do ABC do Alfabetizador: apresentação do corpus
Escrito por João Batista Araujo e Oliveira, cuja trajetória e formação foram
descritas na subseção anterior, o ‗ABC do Alfabetizador‘ tem formato grande (21 x
28 cm) e duas orelhas em branco. A capa tem fundo da cor marrom estampado com
letras da mesma cor, em tom de marca d‘água; no centro o título do livro, no
cabeçalho o nome do autor e no rodapé a logomarca colorida do Instituto Alfa e
Beto, seguida do slogan da editora ―Aprender a ler. Ler para aprender‖, no canto
inferior direito, uma tarja branca escrita em preto o número da edição do livro.
23
Encontram-se em anexo páginas de amostra do material do aluno que podem ser site do IAB.
76
O exemplar selecionado para esta análise encontra-se em sua 8ª edição,
datada no ano de 2008 e conta com a apresentação da 2ª edição, de janeiro de
2004. No material não está explicitado o número de exemplares impressos por
edição.
A obra contém 517 páginas, incluindo a última página de referências
bibliográficas (não enumerada), dividas em três partes, segundo seu sumário: Parte I
– Introdução; Parte II – Competências da alfabetização; Parte III – Competências do
alfabetizador. Cada uma dessas partes está subdividida em 10 capítulos, ainda
subdivididos em subitens24.
Na apresentação da 2ª edição, o autor apresenta o objetivo do material:
O livro é destinado a professores, portanto, mantém, em todos os momentos, o foco na aplicação prática. Mas não se trata de um livro de receitas – trata-se de um livro texto que contém a fundamentação e os conceitos básicos que todo professor alfabetizador necessita conhecer (OLIVEIRA, 2008, s/p).
Em todas as três grandes divisões, antes de iniciar o texto dos capítulos, o
livro apresenta uma prévia do conteúdo, apontando de antemão os conceitos que
serão apresentados ao leitor e os conteúdos que deverão receber mais atenção em
sua leitura. Uma espécie de glossário e ainda dicas para compreender os conceitos
do material complementam essa antecipação da leitura e todos estão apresentados
por meio dos seguintes tópicos: ―O que você vai aprender neste capítulo‖, ―Conceitos
de que você vai precisar para compreender o capítulo‖, ―Para você aprender melhor‖
(OLIVEIRA, 2008). Além dessa prévia, no final dos capítulos, aparece um tópico que
leva o leitor a uma sumarização do conteúdo, denominado ―Voltando ao ponto de
partida: aprendendo a aprender‖ (OLIVEIRA, 2008). Nesse item, o texto do livro
propõe ao leitor resumos, sínteses e exercícios do conteúdo lido.
Quanto ao referencial teórico do livro, é notável, dentre as referências
bibliográficas utilizadas ao compor o ‗ABC do Alfabetizador‘, que a maioria das obras
é escrita por autores estrangeiros, suas referências constarem em títulos
provenientes de países de língua inglesa.
Antes de finalizar a descrição da obra, vale acrescer um comentário de um
fato que chamou bastante atenção na hora do reconhecimento do conteúdo. No
Capítulo 10, intitulado ‗Fundamentos Científicos‘, seção que finaliza o livro destinada
24
O sumário do material está disponível em anexo.
77
ao tratamento de críticas ao construtivismo e aos PCN, há o acréscimo de 3 artigos25
já publicados que ajudam a compor o texto, dentre eles, delimitado entre as páginas
477 a 513, desse livro, como observado pelo autor em nota de rodapé, o Capítulo V,
do ‗Relatório da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados
(2003): Alfabetização Infantil: Os Novos Caminhos. Brasília: Comissão de educação
da Câmara dos Deputados‘, documento discutido na seção anterior a esta.
Por fim, apesar de o livro ser uma obra teórica de formação de professores,
ele apresenta um caráter bastante didático, com linguagem acessível, contendo
sínteses, quadros e gráficos.
Feita a contextualização do corpus, segue a análise do documento
segmentada por categorias previamente estabelecidas.
4.4 Análise do corpus
Por se tratar de um documento extenso, que aborda diferentes saberes
(pilares teóricos que subsidiam a formação do professor que se apropriará das
técnicas do método proposto pelo Programa Alfa e Beto), delimitou-se um recorte
em seu conteúdo.
Desse modo, como corpus, foram definidas as Partes I e II da obra ‗ABC do
Alfabetizador‘, compreendidas entre as páginas 15 e 331, que tratam basicamente
do conceito de alfabetizar e das competências da alfabetização. A Parte III do
documento, que aborda as competências do alfabetizador, não foi incluída nesta
análise, pois, em leitura prévia, percebeu-se a repetição de muitos conceitos
utilizados nas partes anteriores, bem como o fato de o tema não ser relevante para
alcançar os objetivos propostos para este trabalho.
25 Os artigos são: ―Construtivismo e alfabetização: um casamento que não deu certo‖ da revista
Ensaio (Rio de Janeiro, v. 10, nº 35, p. 161-200, abr/jun. 2002 (ARAUJO, 2008, p. 429, grifos do autor); Capítulo V do Relatório da Comissão de educação e Cultura da Câmara dos Deputados (2003): Alfabetização Infantil: Os novos Caminhos. Brasília: Comissão de educação da Câmara dos Deputados (ARAUJO, 2008, p. 478) e ―Alfabetização: os novos parâmetros‖, a ser publicado no livro Editado por Fernando Capovilla: Neuropsicologia Cognitiva da Leitura (2004) (ARAUJO, 2008, p. 514, grifos do autor).
78
Sendo assim, apresenta-se, a seguir o resultado da análise da primeira
categoria selecionada – alfabetização –, entendida, neta investigação, como uma
categoria ‗guarda-chuva‘, onde conceitos mais amplos foram definidos e analisados,
e seus resultados serviram para a análise das outras categorias eleitas, pois, como
dito, o ato de ensinar a ler e escrever envolve a compreensão dos conceitos de
língua/linguagem, leitura e escrita para o desenvolvimento de uma alfabetização
responsável, por formar sujeitos leitores e escritores de textos, elementos que
estariam reunidos sob esse guarda-chuva que comporia a alfabetização.
4.4.1 Alfabetização
Nas 42 páginas do Capítulo 1 – ‗O que significa alfabetizar‘, onde o autor faz
uma introdução aos conceitos chaves sobre o ensino do ler e escrever, em busca
quantitativa pela palavra, a palavra ‗alfabetização‘ foi encontrada 112 vezes.
Consequentemente, na elaboração da análise, foi levada em consideração a
unidade ‗alfabetização‘ como ideia central e os termos que a precedem ou a
sucedem como elementos secundários, para alcançar uma visão conjunta do todo
no contexto textual. Desse modo, foi encontrada a palavra ligada frequentemente
aos termos: método, teórico, conceito, competência, programa, processo, objetivos
(esses três últimos muito recorrentes no texto)26.
É interessante comentar que a exploração do conteúdo visou uma
aproximação das ideias expressas na unidade com outras relacionadas à temática,
estejam elas implícitas ou explícitas, a fim de desempenhar uma postura crítica
frente às posições do autor em termos de significação.
Nessa direção, tendo em vista a análise da categoria ‗alfabetização‘,
procurou-se refazer a linha de raciocínio do autor ao reconstruir o processo lógico da
26 Nos outros capítulos, destinados ao tratamento das competências da alfabetização, onde o autor
apresenta os passos e as técnicas do Programa Alfa e Beto, bem como, retoma os conceitos apresentados no capítulo introdutório, o termo ressurge com menos frequência, sendo que, em algumas páginas nem aparece.
79
estrutura textual desta seção para que evidenciar, na sequência coerente do texto, o
esquema de suas ideias relativas ao termo investigado.
Logo, numa linguagem semelhante àquela adotada na redação do ‗Relatório:
Os Novos Caminhos‘ (BRASIL, 2007), discussão feita na seção anterior a esta, a
trama textual tecida por Oliveira (2008), no ‗ABC do Alfabetizador‘, aproxima-se do
discurso confrontador e messiânico contido no relatório coordenado pelo autor. As
críticas ao construtivismo, a promessa de reverter o fracassado histórico da situação
do alfabetismo brasileiro permanece neste texto e ainda vai além, como, por
exemplo, ao apregoar o desenvolvimento do seu método como prevenção ―ao
posterior surgimento de muitos dos problemas considerados como a ―dislexia‖‖
(OLIVEIRA, 2008, p. 100, grifos do autor).
Balizada em comparações entre as experiências ―bem sucedidas‖ nos ―países
desenvolvidos‖ e o ―fracasso‖ dos modelos de alfabetização praticados no Brasil, a
retórica encontrada em todo o documento, frequentemente apelativa às palavras de
efeito como ―evidências científicas‖, tece críticas e se centra no confronto entre a
teoria expressa no ‗ABC‘ e a construtivista.
Notadamente, julgamentos pejorativos em relação às recomendações
governamentais que concernem à alfabetização contida nos PCN e também na
proposta do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores27 (PROFA),
feitos de forma muito semelhante a do ‗Relatório: Os Novos Caminhos‘, estão
presentes em todo o livro, inclusive constantemente em formas de citações indiretas.
Tendo em vista os aspectos observados, antes de anunciar os conceitos de
alfabetização, o documento, primeiramente, apresenta a definição de princípio
alfabético com o propósito de ancorar o entendimento de alfabetização a esse item
de conceituação. Assim, mediante uma visão reducionista, explica que o código
alfabético28 se traduz em grafemas que são representações de fonemas, sem levar
em consideração a trajetória de construção histórica e coletiva do alfabeto,
27
Proposto em 2001 pelo Governo Federal, via parceria entre Ministério de Educação e secretarias estaduais e municipais, o PROFA foi um curso de formação destinado especialmente a professores que ensinam a ler e escrever na Educação Infantil e no Ensino Fundamental, tanto crianças como jovens e adultos. 28
O termo código surge constantemente no texto de análise para não destoar do discurso encontrado no documento. Na primeira seção desta dissertação foi apresentado o conceito mais amplo da linguagem escrita, que perpassa a visão de código, e adotado para a realização deste trabalho investigativo.
80
tampouco o caráter representativo e notacional da escrita, como explicitado na
primeira seção deste trabalho.
Dentro da perspectiva do código alfabético representativo de fonemas, o texto
segue apresentando quatro concepções de alfabetização, abordadas evolutivamente
para levar a compreensão do leitor ao conceito defendido pelo autor como ideal,
denominando conceito operacional de alfabetização. Dentro desse percurso, o ponto
de partida é o conceito estrito de alfabetização, e as sinuosidades da compreensão
sobre o objetivo da alfabetização seriam os conceitos classificados por ele, como:
equivocado e o amplo.
O primeiro conceito classifica a alfabetização como mera decodificação do
―código alfabético‖, a representação de fonemas em grafemas e vice-versa.
Esse conceito estrito de alfabetização abrange as capacidades de decodificar (uma palavra escrita num som) e de codificar (um som numa palavra escrita). Portanto, mesmo nesse conceito estrito, alfabetizar implica escrever de forma ortograficamente correta – ou seja, aplicar o código alfabético corretamente (OLIVEIRA, 2008, p. 18).
Segundo Oliveira (2008), o domínio dessas capacidades seria suficiente para
formar o leitor autônomo, pois a decodificação é a chave para ler qualquer palavra,
tendo em vista que o objetivo da alfabetização se concentraria na decodificação
independentemente de outros fatores, como a compreensão das palavras ou textos
e, desde que seja feita de forma primorosa, tais capacidades seriam satisfatórias na
formação do leitor.
Convém frisar que, mesmo se tratando de um conceito bem restrito, o autor
não o abandona, tampouco o condena. Desse modo, ampliando a discussão e
cerceando a ideia de alfabetização, ele apresenta o segundo conceito, considerado
o equivocado:
O equivoco reside na confusão entre o objetivo de ler, que é compreender, e o processo de aprender a ler, que envolve a decodificação. Esse equívoco tem implicações importantes – pois, ao confundir objetivo e processo, confundem-se também os métodos de alfabetização, com desastrosas conseqüências para a aprendizagem do aluno (OLIVEIRA, 2008, p. 19).
Nessa perspectiva dita equivocada, o ‗ABC‘ prega que ler não é sinônimo de
compreender, diferentemente da concepção disseminada por pesquisas de B.
81
Goodman e Frank Smith, sob o nome de Whole Language29, e adotada pelos PCN,
no termo de construtivismo, que amalgamaram essa perspectiva de que, ao ensinar
a ler durante o processo de alfabetização, se estaria ensinando a compreender o
texto lido, traçando uma confusão entre o objetivo de ler e o processo de ler
(OLIVEIRA, 2008).
O terceiro conceito de alfabetização apresentado por Oliveira (2008), como
―amplo‖, traz o termo letramento como sinônimo de alfabetização, juntamente com
outras definições de alfabetização, tais como, alfabetização matemática, científica,
digital etc. Entretanto, não há referências na obra sobre o que seriam o letramento,
tão pouco, as outras definições de alfabetização, apenas há a citação da existência
delas e a crítica, conduzindo o professor que se forma/informa sobre o método do
‗Programa Alfa e Beto‘ ao entendimento de alfabetização defendido no material,
assim, desconstruindo possíveis compreensões maiores que levariam à reflexão do
papel do professor no momento da alfabetização. Nas palavras do autor:
Conceitos amplos são muito úteis para provocar discussões, ampliar horizontes e suscitar questionamentos, mas possuem pouco valor prático para o professor, que na sala de aula tem uma missão específica: alfabetizar seus alunos na primeira série do Ensino Fundamental (OLIVEIRA, 2008, p. 19).
Nessa definição, o conceito amplo de alfabetização ajudaria compreender o
conceito equivocado, logo, o letramento e as outras possíveis definições de
alfabetização são dispensáveis, pois a amplitude da prática de alfabetizar levaria o
ato pedagógico ao engano entre o que seriam alfabetização (decodificação) e
educação de maneira generalizada – letramento, leitura de mundo, alfabetização
matemática, digital, científica...
O problema de definições desse tipo é que são ricas de ideias, mas de pouco ou nenhum uso prático. Trata-se do velho dilema do cachorro correndo atrás do próprio rabo, da quadradura do círculo. No extremo, trata-se de uma confusão entre alfabetização e ensino da língua, ou até mesmo educação (OLIVEIRA, 2008, p. 20).
Por fim, a quarta concepção de alfabetização, nomeadamente conceito
operacional, tido como ―prático‖ e ―útil‖, aproxima-se muito do primeiro conceito, o
restrito, centrado na mecânica decodificação/codificação do alfabeto. Entretanto, o
que os difere é a centralização na habilidade de decodificação, conforme explicita o
29
Entendimento de Whole Language e construtivismo claramente equivocado e desmistificado explícito por Morais (2012) na seção anterior.
82
manual: ―conceito prático de alfabetização pode ajudar a superar discussões
intermináveis e estéreis: aprender a ler é diferente de ler para aprender. O
processo de alfabetização refere-se ao momento de aprender a ler‖ (OLIVEIRA,
2008, p. 20, grifos do autor).
Nessa direção, o objetivo do processo defendido no material analisado estaria
no ato de ler, explícito no slogan do Programa Alfa e Beto e elucidado nas palavras
do autor:
Na etapa inicial de escolarização o aluno está aprendendo a ler: a prioridade, a atenção e o esforço se concentram em quebrar, decifrar o código alfabeto [...]. Esse conceito operacional se revela muito útil para entender onde acaba o processo de alfabetização (aprender a ler) e onde começa o processo de usar a capacidade de ler para aprender (OLIVEIRA, 2008, p. 20).
A alfabetização, na trajetória conceitual proposta pelo ABC, em síntese,
constitui-se no ato da decodificação, pois, nessa perspectiva, a ação de ler limita-se
ao processo de decifrar os sons representados no código alfabético. O propósito de
compreender os sentidos da escrita ficaria legado ao segundo plano,
concomitantemente ao entendimento dos significados das palavras. A compreensão
do que se lê partiria de outro processo: de aprender a partir do que se lê.
Na etapa seguinte, em que o aluno já decodifica as palavras sem esforço e é capaz de lê-las com fluência, ele vai ler para aprender: aprender o significado das palavras, os conceitos transmitidos num determinado texto. Por exemplo, um livro de ciências de segunda ou terceira série do Ensino Fundamental deve ser usado antes de tudo para aprender ciências, não para aprender a ler (OLIVEIRA, 2008, p. 20).
Desse modo, o processo de alfabetização teria começo, meio e fim, exigindo
um programa de ensino sistematizado, baseado nas ―competências da
alfabetização‖, sendo a decodificação a competência medular dentre as outras a
serem desenvolvidas, guiadas por meio do objetivo central da alfabetização: ler.
Ler implica, fundamentalmente, identificar as palavras de maneira automática. Ler com fluência significa não apenas identificar as palavras automaticamente, mas com velocidade e ritmo que evidenciam e facilitam a compreensão. [...] Em condições normais de alfabetização o aluno aprende primeiro a decodificar e, progressivamente, torna automático o reconhecimento das palavras, até se tornar um leitor fluente. [...] O contexto é útil para compreender sentido, mas retarda o processo de identificar palavras (OLIVEIRA,
2008, p. 22).
83
Tais competências para aprender a ler, centradas na decodificação,
basicamente consistiriam no desenvolvimento da consciência fonológica
(capacidade de identificar e discriminar sons) mediante estratégias da metacognição
(uso de habilidades e estratégias para refletir e controlar o processo de
aprendizagem), dentre elas, a metalinguagem (uso da própria língua para descrevê-
la ou explicá-la), exigindo como pré-requisitos o conhecimento do princípio alfabético
e da consciência fonêmica (entendimento consciente de que a palavra é construída
por uma série de fonemas) (OLIVEIRA, 2008).
Assim, o desenvolvimento da prática de ler seria baseado na compreensão
(entendida como reconhecimento de palavras) e ampliação do vocabulário
(quantidade palavras para o reconhecimento), juntamente com o desenvolvimento
da escrita (com exercícios de caligrafia, ortografia, consciência sintática e de
redação).
Essas dinâmicas de desenvolvimento das competências da alfabetização
compõem as ações do processo metodológico, assim, caracterizam o método
defendido por João Batista como: método metafônico.
O método metafônico é um termo associado ao Programa Alfa e Beto de alfabetização, desenvolvido pelo autor deste livro. O termo metafônico foi utilizado para ressaltar as duas características principais desse programa, a saber, a ênfase no ensino das relações entre sons e letras e na metacognição. Vale dizer, o processo de alfabetização é eminentemente cognitivo, exigindo a todo momento que o aluno reflita sobre o que está fazendo e o que está aprendendo – da mesma forma que estamos solicitando aqui continuamente o envolvimento do leitor (OLIVEIRA, 2008, p. 40, grifos do autor).
A explanação conceitual supracitada evidencia a pouca diferença entre o
método fônico, dos séculos passados, com a ―recente descoberta científica‖ do
método metafônico. Afirmativa explicitada no seguinte trecho do documento em
análise:
As letras não representam um som, elas representam um fonema. Fonemas são unidades abstratas. O importante é levar o aluno a fazer uma representação mental desses fonemas. Aprender a pronunciar o ―som‖ da letra significa um exercício necessariamente artificial, um artifício pedagógico (Oliveira, 2008, p. 39).
A sistemática mecânica de apresentação das partes para o todo continua a
mesma, utilizando exercícios de repetição para assimilação, porém camuflada pelo
acréscimo de conceitos atuais às antigas práticas. Além de tudo, a centralidade do
processo continua no ensino, ou seja, no método, em sua aplicação e eficácia,
84
desconsiderando a capacidade da criança de aprender, de construção de seu
próprio processo de aprendizagem, do desenvolvendo de atitudes e habilidades
como autonomia, autoavaliação contínua e criatividade.
Ninguém jamais negou a relação entre fonemas e grafemas no processo de
alfabetização, a questão é de como a criança vai aprender isso. Se o caminho a
percorrer é demorado ou sofrido, se há situações reais de uso da escrita para
significar a situação de aprendizagem, em suma, a criança deve perceber que a
escrita pode ser utilizada em vários lugares para diversos usos, ela tem que sentir
que ela pode fazer isso por ela mesma.
Talvez, a possibilidade de inserir a criança no processo de alfabetização
proposto pelo IAB estaria ligada ao conceito de metacognição. Entretanto, na busca
pelo entendimento do termo ‗metacognição‘, realizada nesta investigação,
encontrou-se, em pesquisas relacionadas ao ensino da leitura e compreensão leitora
de Girotto; Souza (2010, p. 46), a seguinte definição: ―a metacognição é o
conhecimento sobre o processo do pensar‖.
Dentro dessa perspectiva, o sujeito tomaria consciência do processo de
aprendizagem, pensando, refletindo sobre o objeto de conhecimento em questão.
Não obstante, Oliveira (2008, p. 28) definiu a metacognição como ―controlar o
próprio processo do conhecimento, de aprendizagem‖.
Desse modo, as nomeadas estratégias de metacognição, ou os termos
metalinguagem e consciência metafonológica ligados a ela, contidos no ‗ABC‘, não
parecem nada reflexivos ou que levariam o sujeito ao entendimento do processo que
faz parte, da compreensão do seu objeto e objetivo de aprendizagem, como
pensado por Girotto; Souza (2010). Ao que parece, tais estratégias estariam mais
ligadas aos velhos exercícios de automação, de técnicas estéreis e inócuas, como,
nas palavras do autor, ―saber se está usando corretamente o lápis e escrevendo
com postura correta‖ ou ―verbalizar o sentido e a direção dos movimentos
necessários para aprender a formar letras‖ (OLIVEIRA, 2008, p. 29).
Não se desconsidera, neste trabalho, a necessidade de trabalhar com alguns
requisitos para alfabetizar, como ensinar pegar o lápis, as dimensões da pauta do
caderno, da movimentação da esquerda para a direita que fazemos ao escrever,
dentre outras peculiaridades da técnica, como diria Magda Soares, em ‗A reinvenção
da alfabetização‘ (2003c). Porém, a oposição coloca ao desprezar o aprendiz como
85
sujeito cognoscente (que pensa, reflete, cria e usa a linguagem), considerando-o
como centro do processo, que deveria ser idealmente representado no binômio
ensino/aprendizagem. Ampliando essa assertiva, buscou-se, nas palavras de Magda
Soares, uma metáfora que ilustraria a presente discussão:
Não adianta aprender uma técnica e não saber usá-la. Podemos perfeitamente aprender para que serve cada botão de um forno de micro-ondas, mas ficar sem saber usá-lo. Essas duas aprendizagens – aprender a técnica, o código (decodificar, usar o papel, usar o lápis etc.) e aprender também a usar isso nas práticas sociais, as mais variadas, que exigem o uso de tal técnica – constituem dois processos, e um não está antes do outro (SOARES, p. 1, 2003c).
Caso a alfabetização se traduzisse em decodificar/codificar sons, em
caligrafia, na maneira de friccionar o papel, em ditados, dentre outros exercícios
mecânicos, que função a criança atribuiria a escrita? Certamente, ela não a
associaria as diferentes funções que a linguagem assume: comunicativa, notacional,
mnemônica, artística, interativa...
Portanto, a fim de chegar ao entendimento do conceito ‗alfabetização‘ no ABC
do Alfabetizador, algumas menções aos outros elementos foram feitas nesta
primeira categoria de análise. Como dito, não seria possível falar sobre alfabetização
sem ao menos citá-los como parte do processo de ensino/aprendizagem do ler e
escrever. Dentre esses elementos mencionados, encontra-se o conceito de
‗linguagem/língua‘, categoria analisada e apresentada a seguir.
4.4.2 Linguagem/língua
O movimento do ensinar a ler e a escrever teria como objeto de ensino,
preliminarmente, a manipulação (em seu uso e forma) da língua, no caso do Brasil, a
língua portuguesa, por se tratar da língua oficialmente adotada pelo Estado.
Entretanto, ao ir à escola, a criança já sabe português, tendo em vista que ela
ouve e fala a língua dominando aspectos morfossintáticos e semânticos capazes de
compreender e de se fazer compreender durante o processo de interação verbal.
Nessa perspectiva, nas palavras de Cagliari (2009, p. 24), o ―objetivo mais geral do
86
ensino da língua portuguesa para todos os anos da escola é mostrar como funciona
a linguagem humana [...]‖.
Segundo Koch (1995, p. 9), no decurso histórico a linguagem humana passou
por três principais concepções:
A mais antiga destas concepções é, sem dúvida, a primeira, embora continue tendo seus defensores na atualidade. Segundo ela, o homem representa para si o mundo através da linguagem e, assim sendo, a função da língua é representar (= refletir) seu pensamento e seu conhecimento de mundo. A segunda concepção considera a língua como um código através do qual o emissor comunica a um receptor determinadas mensagens. A principal função da linguagem é, nesse caso, a transmissão de informações. A terceira concepção, finalmente, é aquela que encara a linguagem como atividade, como forma de ação, ação interindividual finalisticamente orientada, como lugar de interação que possibilita aos membros de uma sociedade a prática dos mais diversos tipos de atos (Ibid).
Dentro dessa terceira concepção, que não nega as duas primeiras, mas as
incorpora e amplia, entende-se que é por meio da linguagem ―que o indivíduo, ao
fazer uso da língua, não apenas exterioriza seu pensamento, não somente transmite
informações; na verdade, mais do que isso, realiza ações, age, atua, orientado por
determinada finalidade, sobre o outro‖ (CURADO, 2004, p. 19).
Assim, por intermédio da linguagem, o ser humano se expressa, comunica e
principalmente medeia as relações em seu meio e consigo mesmo, constrói o
processo de saber por meio de novas construções relacionadas com anteriores, bem
como produz os sentidos da comunicação nos processos de enunciação, orais ou
escritos.
Em seções anteriores, foi discutida a criação de diferentes metodologias de
ensino das primeiras letras baseadas nessas diferentes concepções de linguagem,
bem como, na utilização da língua e da linguagem escrita a partir de surgentes
necessidades do ler e escrever, ao longo da trajetória histórica da sociedade
ocidental (BRASLAVSKY, 1988).
Diante do exposto, o entendimento desses conceitos torna-se fundamental;
logo,
[...] a maneira como o professor concebe a linguagem e a língua, pois o modo como se concebe a natureza fundamental da língua altera em muito o como se estrutura o trabalho com a língua em termos de ensino. A concepção de linguagem é tão importante quanto à postura que se tem relativamente à educação (Travaglia, 2000, p. 21).
87
Dentro dessa perspectiva, buscou-se o conceito de linguagem/língua explicito
no ‗ABC do Alfabetizador‘ e não se encontrou referência direta aos termos,
tampouco, a localização histórica da criação do método fônico na tentativa de traçar
uma relação entre a necessidade de criação do método e a concepção de linguagem
em dado momento histórico.
Entretanto, o documento apresenta referência direta ao trabalho pedagógico
relacionado a adequações da criança à linguagem da escola e outros indícios,
como conceitos implícitos que, mediante análise, levaram à compreensão dessa
categoria. Desse modo, pensou-se na pertinência de apresentar primeiramente os
indícios implícitos do conceito linguagem/língua, ao compor uma linha coerente na
tessitura textual. Assim, partiu-se do implícito para o explícito até chegar à
compreensão dos pressupostos linguísticos que respaldam a metodologia
alfabetizadora analisada.
Preliminarmente, não é difícil entender os fundamentos linguísticos que
alicerçam o método proposto por Oliveira (2008). Logo, alguns elementos do texto
evidenciam a assertiva, tais como: a conceituação limitada do alfabeto
representativo de um código de transcrição da fala, entendido como um sistema
fechado e arbitrário; a ênfase nas atividades mecânicas de decodificação e
codificação; além das práticas de caligrafia, cópia, ditado, soletração e treino da
leitura que redundam o método.
Todos esses elementos organizados de forma estruturada apontam para uma concepção de linguagem restrita às normas e formas da língua, como um sistema exato e fechado, cabendo à criança a sua mera assimilação e posterior reprodução. Dessa forma, considera-se que o centro organizador da linguagem se situa no sistema linguístico, ou seja, no sistema das formas fonéticas, gramaticais e lexicais da língua (BAGATIN, 2012, p. 86)
Seguindo essa perspectiva, a língua estaria restrita as estruturas e normas,
inflexíveis às variações resultantes das relações entre os sujeitos. Ao sistema
linguístico caberia a subordinação do imperativo das regras, impassível de
determinações ideológicas, artísticas ou de qualquer outra natureza relativa ao uso
dos sujeitos falantes dela.
A esses indivíduos caberia apenas a obrigação de incorporar e imitar as
estruturas linguísticas como elas são, deixando de lado qualquer possibilidade do
88
caráter analítico desse sistema, de modo que o parâmetro válido seria o certo ou o
errado, ou seja, o condizente com a norma ou o dissonante dela (BAGATIN, 2012).
Toda essa reflexão traz a possibilidade de se comparar o conceito
linguagem/língua presente no ‗ABC‘ aos dois conceitos primeiros inscritos na história
dos estudos sobre a linguagem, especialmente ao primeiro. Vale lembrar que a
história da alfabetização marca a criação do método fônico no século XVI, pelo
gramático alemão Valentin Ickelsamer, cujo entendimento do conceito de linguagem
circulante na época era de ‗espelho‘ do pensamento ou ‗representação‘ de seu
entendimento do mundo. Como visto, a essência do método de Ickelsamer não foi
modificada quando recebeu novas técnicas, ou apenas um novo nome, ao se
transmutar no método metafônico criado por João Batista A. Oliveira (2008).
Ampliando a discussão, dentro dessa perspectiva, nas palavras de Curado
(2004, p.19),
[...] não se expressaria bem o indivíduo que não pensasse, porquanto a expressão construir-se-ia no interior da mente, a instância de produção, secundarizando-se a língua, útil apenas por exteriorizar, traduzir o pensamento. A eficiência comunicativa dependeria da capacidade de o indivíduo organizar de maneira lógica seu pensamento; para tal organização, haveria regras disciplinando-o e, como consequência, a própria linguagem. Daí, a valorização das normas gramaticais do falar e do escrever ―bem‖. Diante de tal perspectiva, a enunciação (a ação de enunciar) põe-se como ato monológico, individual, prescindindo-se do outro e das circunstâncias, da situação social em que a enunciação ocorre. Os estudos linguísticos aí desenvolvidos encontram-se sob a denominação de gramática tradicional ou normativa (Ibid, grifos do autor).
Esses conceitos implícitos no documento e exemplificados nas falas de
Bagatin (2012) e Curado (2004) podem ser evidenciados no momento em que,
explicitamente no material, se elege a linguagem da escola, ou seja, a linguagem
padrão, da norma dita culta, como concepção de linguagem e língua entendidas
como corretas, visualizada no seguinte trecho introdutório ao subitem do Capítulo 2,
―A linguagem da escola‖, nas palavras do autor:
Além de desenvolver o vocabulário próprio e adequado para conversar sobre a língua e a capacidade de brincar com a linguagem, um processo de alfabetização bem-sucedido requer que a criança que não sabe aprenda a lidar com outros três conjuntos de competências: a língua falada padrão, as palavras que expressam conceitos básicos e os comandos da escola (OLIVEIRA, 2008, p. 74).
89
Essas competências, que levariam à formação de um falante perfeito, no caso
o alfabetizando, a dominar os padrões da língua, consistiria em seguir os modelos e
obedecer aos comandos da escola, que, segundo o autor, utiliza um vocabulário
próprio e de conceitos que a criança não domina, pois, sua linguagem, ou seja, a
variante dialetal familiar, em suas palavras ―podem soar como uma língua
estrangeira para os alunos que nunca frequentaram uma escola‖ (OLIVEIRA, 2008,
p. 77).
Assim, a arbitrariedade do sistema linguístico tenta afunilar os espaços da justificação ideológica por parte dos sujeitos. A própria mudança da língua ao longo da história é entendida como um erro, como algo que saiu do script, que burlou as normas estabelecidas. Não há espaço para a criatividade e muito menos para a antítese. O sujeito deve somente respeitar as regras do sistema linguístico (BAGATIN, 2012, p. 87).
Tendo em vista que, no ‗ABC‘, a linguagem se apoia na perspectiva do falante
perfeito, dominante da norma padrão, nessa direção, retomando a ideia de Travaglia
(2000), a adoção da concepção de linguagem, implicaria em posicionamentos de
posturas educacionais, tais como, a anulação da participação do sujeito em seu
próprio processo de aprendizagem, de uma exigente educação sistematizada,
padronizada, sem reflexão, como sugere o desenvolvimento da terceira competência
do aprendizado dos comandos da escola:
Comando exige ação, exige resposta. Ensinar comandos não significa apenas ensinar o significado das palavras: levante-se, segure corretamente o lápis, sublinhe as frases com ponto de interrogação. Ensinar comandos significa quais comandos seguir cegamente e quais são passíveis de discussão ou de aprovação coletiva. Ao aprender a conviver com comandos o aluno está aprendendo valores fundamentais para a vida social: ordenar, organizar, coordenar, mandar, obedecer, em síntese, está aprendendo não apenas as palavras, mas o poder das palavras (OLIVEIRA, 2008, p. 77).
Em um método que compreende a linguagem escrita como um código a ser
decifrado, representativo de sons da fala, não se poderia exigir uma postura crítica
do aluno, pois, nessa perspectiva, necessariamente todos os falantes deveriam
reproduzir na leitura igualmente os sons representados pelas letras. Entretanto, seria
impossível haver essa uniformidade, pois a língua, quando falada, sofre variações
dialetais, históricas, geográficas, culturais e sociais (CAMACHO, 2004).
90
Além do mais, voltando à discussão da linguagem escrita, sem deixar de lado
o pensamento de Camacho (2004), seria impossível representar a fala através da
(de)codificação da escrita, pois, segundo Ferreiro (2007, p. 27):
Toda escrita alfabética tem como princípio fundamental marcar as diferenças sonoras através de diferenças gráficas, mas no desenrolar histórico se produzem inevitavelmente defasagens entre esse princípio geral e as realizações concretas dos usuários. Isto se dá por duas razões: a primeira tem a ver com uma variável temporal – as ortografias das línguas escritas evoluem muito mais lentamente do que a fala; a segunda razão é de caráter espacial – na medida em que uma língua se estende a um número crescente de usuários dispersos numa área geográfica ampla, surgem variantes dialetais que se distanciam em maior ou menor medida do que se representa por escrito. Por essas duas razões (além de várias outras que se podem acrescentar), é falso supor que a escrita (em seu estado atual, produto de um desenvolvimento histórico) representa diretamente a fala, ou um modo idealizado de fala. A escrita representa a língua, e não a fala (Ibid).
É importante esclarecer que este trabalho comunga com a ideia de que a
linguagem formal, através da língua padrão, deve ser empregada na escola e seu
uso ensinado aos seus educandos. Entretanto, a postura metodológica empregada
nas salas de alfabetização deve privilegiar essa concepção como uma das inúmeras
possibilidades de interação verbal em diferentes esferas comunicativas, como forma
de relação social, atuando e agindo sobre o outro, assim como apontou Curado
(2004).
Deste modo, cabe à escola a grande responsabilidade de mostrar à criança sem constrangê-la, ao contrário, valorizando sua fala, que há um outro modo de se falar que é a língua da escola, dos livros, das revistas, da televisão, do rádio, enfatizando a necessidade de aprender este outro jeito de falar. A partir do momento que a escola apresenta esta segunda forma de expressão verbal e mostra que as duas formas – padrão e não padrão – podem ser usadas dependendo da situação, formal ou informal, estará não só aceitando e respeitando a vez e a voz do aluno, mas dando subsídios para que possa desenvolver sua capacidade de expressão, e oferecendo instrumentos para que não seja discriminado em função de sua fala, e ainda, por meio do domínio pleno da oralidade domine também a língua escrita [...] (MENDONÇA, 2004, p. 20, grifos da autora)
Dentro dessa perspectiva, o trabalho com a linguagem/língua estria centrada
num processo reflexivo, elevando o trabalho pedagógico ao objetivo do
entendimento do funcionamento da linguagem humana, como sugerido por Cagliari
(2009). O pensamento contrário, como o adotado pelo ‗ABC‘, limitaria o
91
ensino/aprendizagem, reduzindo os objetivos da alfabetização aos caprichos dos
passos do método:
Além de constituir um dos objetivos da escola – expressar-se com clareza no idioma padrão – a fala padrão é importância fundamental, não apenas para a compreensão da leitura, mas especialmente para a posterior aprendizagem da ortografia. Aprender a expressar-se na linguagem padrão é uma tarefa longa e lenta, e precisa ser iniciada desde o primeiro dia de escola (OLIVEIRA, 2008, p. 75)
Por fim, essa concepção monológica de linguagem, centrada no sujeito
linguisticamente perfeito, adotada pelo ‗ABC‘, conduzirá todo o caminho percorrido
pelo professor e o aluno durante o processo de ensino/aprendizagem das primeiras
letras. Desse modo, apresenta-se a próxima categoria pesquisada: leitura;
antecipadamente mencionada, examinando-se esse elemento no viés das ideias
debatidas até o momento, porém com maior proporção.
4.4.3 Leitura
Dificilmente uma criança chega à escola sem ter algum contato com a
linguagem escrita. Antes mesmo de dominar rudimentos de leitura, ou seja, a
decodificar, ela percebe os sinais impressos mais triviais, como palavras em roupas,
etiquetas, em letreiros, na televisão, nas embalagens... Isso naturalmente ocorre
com maior frequência nos meios urbanos, todavia, não é exclusividade nos meios
rurais.
Referindo-se a essa fase dos primeiros contatos perceptíveis com a
linguagem escrita, completa Aguiar (2004, p. 61) que ―nesse momento, já
começamos a fazer associação entre as manchas escritas e a significação que elas
contêm, embora sem saber soletrar‖.
Esses primeiros contatos do sujeito com a linguagem, seja escrita ou até
mesmo representada simbolicamente por outros meios não verbais, em diferentes
contextos carregados de significações, foi denominado, por Paulo Freire (2005),
como a ‗leitura do mundo‘.
Nessa perspectiva, o texto é visto como ―todo e qualquer objeto cultural, seja
verbal ou não, em que está implícito um código social para organizar os sentidos,
92
através de alguma substância física‖ (AGUIAR, 2004, p. 61). Consequentemente,
pinturas, gravuras, filmes, livros, vestuário, cores, rádio, TV, gestos, dentre muitas
outras manifestações culturais se enquadrariam na modalidade de textos, portanto
poderiam ser lidos (AGUIAR, 2004). Desse modo, para Freire (2005), a leitura do
mundo precederia a leitura da palavra.
[...] A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto (FREIRE, 2005, p. 11).
Assim, a partir da concepção freireana, pode-se afirmar que ler é
compreender, ou seja, é estabelecer o sentido entre o assunto lido e as ideias
presentes no pensamento do leitor, ao passo que, no momento da concepção do
entendimento desse assunto, novos conhecimentos são adquiridos e assimilados,
propiciando interação entre eles, bem como a possibilidade da utilização dessa nova
apreensão em diferentes situações ou em outras leituras.
Salientar a importância da leitura do mundo é fundamental para a leitura da palavra, porque, antes de sermos alfabetizados, já exercitamos a capacidade de extrair sentidos das mensagens que nos cercam e responder a elas com base em nossas vivências e convicções. Depois, diante do texto escrito, vamos repetir essa postura ativa e desafiadora. Daí a necessidade de nos tornarmos bons leitores antes de sermos alfabetizados (AGUIAR, 2004, p. 62).
Por outro lado, a leitura do mundo não deve ser a única leitura a ser feita pelo
cidadão contemporâneo, haja vista que vivemos em uma sociedade que faz uso da
linguagem escrita cada vez mais. Assim, considerando que a leitura não é um
comportamento natural do ser humano, ela precisa ser apresentada ao sujeito da
mesma forma que outras atividades culturais previamente estabelecidas pelo meio.
Usualmente, cabe à escola o dever de ensiná-la, tanto sua decodificação como
utilização, pois o domínio da cultura letrada, na contemporaneidade, torna-se cada
vez mais uma condição importante, porém não única, para o exercício da cidadania.
Convém acrescentar que os objetivos de ensino e expectativas de
aprendizagem estão presentes nos programas escolares de alfabetização e seu
maior desafio encontra-se, atualmente, na leitura, ou seja, na compreensão de
textos escritos. Papel não muito bem desempenhado pela escola, segundo Indursky
(2010, p.164), pois ―[...] saber ler para a escola consiste, praticamente sempre, saber
93
extrair informações do texto‖. Tal assertiva ainda pode ser confirmada pelos dados
indicativos do analfabetismo funcional brasileiro, apresentados na seção introdutória
desta pesquisa, como também o reflexo das práticas escolares pautados nesse
entendimento.
A leitura, em seu conceito mais restrito, comumente está associada à
decodificação de sinais gráficos, da retirada de informação do texto lido, no entanto,
objeto de estudo de diversos autores, quase sempre com o intento de buscar
alternativas para superar essa deficiência gerada principalmente na escola, a leitura
em seu sentido mais completo pode ser definida de diferentes maneiras. Assim,
apresentada primeiramente, na perspectiva de Bamberger (1995, p. 23):
Processo complexo, a leitura compreende várias fases de desenvolvimento. Antes de mais nada, é um processo perceptivo durante o qual se reconhecem símbolos. Em seguida, ocorre a transferência para conceitos intelectuais. Essa tarefa mental se amplia num processo reflexivo à proporção que as ideias se ligam em unidades de pensamento cada vez maiores. O processo mental, no entanto, não consiste apenas na compreensão das idéias percebidas, mas também na sua interpretação e avaliação. Para todas as finalidades práticas, tais processos não podem separar-se um do outro; fundem-se no ato da leitura.
Não obstante, Aguiar (2004, p. 61) apontou que:
Podemos definir a leitura como uma atividade de percepção e interpretação de sinais gráficos que se sucedem de forma ordenada, guardando entre si relações de sentido. Ler, assim, não é apenas decifrar opalavras, mas perceber sua associação lógica, o encadeamento ds pensamentos, as relações entre eles e, o que é mais importante, assimilar as ideias e as intenções do autor, relacionar o que foi apreendido com os conhecimentos anteriores sobre o assunto, tomando posições com espírito crítico e utilizar conteúdos adquiridos em novas situações.
Pode-se, ainda, conceituar a leitura como prática social, a partir dos estudos
do letramento promovidos por Kleiman (2002; 2004). Nessa perspectiva, o sujeito,
ao ler um texto, seria endereçado a textos de outras leituras. Nesse momento, ao
buscar sentidos, o leitor faria relações entre o que está sendo lido e o conjunto de
crenças, valores e atitudes que carrega consigo (conceitos oriundos do grupo social
em que foi primariamente socializado). Nas palavras da autora:
Nessa perspectiva, os usos da leitura estão ligados à situação; são determinados pelas histórias dos participantes, pelas características da instituição em que se encontram, pelo grau de formalidade ou informalidade da situação, pelo objetivo da atividade de leitura, diferindo segundo o grupo social. Tudo isso realça a diferença e a
94
multiplicidade dos discursos que envolvem e constituem os sujeitos e que determinam esses diferentes modos de ler (KLEIMAN, 2004, p.14).
Na perspectiva de Kleiman, a chave que abriria as portas para a
compreensão da leitura estaria na interação entre os sujeitos, através de práticas
comunicativas em diferentes situações de interação. Para esclarecer o pensamento
da autora, referindo-se justamente à citação acima como um entendimento atual de
leitura, elucida Marcuschi (2008, p. 231)
Isto quer dizer que na visão atual o leitor não é um sujeito consciente e dono do texto, mas ele se acha inserido na realidade social e tem que operar sobre conteúdos e contextos socioculturais com os quais lida permanentemente (Ibid).
Ampliando a assertiva, o entendimento de leitura, enquanto prática social,
perpassa o nível de decodificação ao relacionar leitura e atribuição de sentidos no
momento da intersecção entre o texto, o contexto e as experiências prévias do leitor.
Nesse sentido, cabe afirmar que esse tipo de leitura sempre será precedido de uma finalidade concreta, que atenderá a um objetivo presente no contexto real em que o leitor está inserido. A leitura como prática social é um meio que poderá conduzir o leitor a resolver um problema prático, responder a um objetivo concreto ou a uma necessidade pessoal (SANTA ROSA, p.03, 2005).
Isso posto, encontrar uma definição para a leitura não é uma tarefa simples.
Mesmo se tratando de autores contemporâneos, há variações bem distintas sobre o
termo (BAJARD, 1992). Entretanto, diante do exposto, todos os conceitos
apresentados, mesmo expressando variações epistemológicas distintas, comungam
com o entendimento de que leitura e compreensão são indissociáveis na promoção
do ato de ler. Ou seja, há um consenso entre os autores de que a extração de sons
das letras não produz leitura, pois somente há leitura se houver a construção de
sentidos que geraria a compreensão leitora, a extração de sons ficaria reduzida ao
conceito de decodificação. Portanto,
[...] é possível dizer que, ao priorizarmos o domínio da técnica na correspondência grafema-fonema, não criamos necessidades autênticas de leitura na criança, uma vez que essa ―atividade‖ fica esvaziada de sentido para o aluno, perde-se todo o contexto de produção/compreensão, ainda, a situação discursiva solicitada nesse processo (GIROTTO; SOUZA, 2010, p.46, grifos das autoras).
Antecipadamente mencionado, os objetivos do Programa Alfa e Beto pautam-
se, basicamente, no ensino da decodificação, igualmente entendido como ler. Em
95
seus preceitos, ler não é sinônimo de compreender. Desse modo, primeiramente
seria necessário fazer com que os alunos aprendessem a decodificar com fluência
os sons das letras para, posteriormente, realizar atividades de compreensão da
leitura. Nas palavras do autor no material analisado:
A essência da alfabetização – o processo de aprender a ler – reside na capacidade de identificar palavras, independentemente de seu sentido. Uma pessoa que sabe ler, sabe ler qualquer palavra, independentemente de seu sentido. Com os conhecimentos do código ortográfico de uma língua, ela será capaz de ler qualquer palavra dessa língua e escrevê-la de forma ortograficamente correta
(OLIVEIRA, 2008, p. 145).
A partir dessa afirmação, entende-se a leitura no ‗ABC‘ como um ato
puramente mecânico, reduzida a um processo automatizado e vazio de sentido,
exigente de um desempenho baseado em reflexos e condicionamentos
comportamentais. Ao sujeito fica apenas reservado o direito de emitir sons, ou seja,
a reprodução oralizada de um código, ficando isento da possibilidade de pensar,
tampouco refletir sobre o texto/conteúdo lido.
Mais uma vez, destaca-se a negação de um ser cognoscente que traz
consigo suas impressões, crenças e valores vivenciados dentro e fora dos muros
escolares. Esse sujeito negado é tido como um papel em branco, inerte às situações
de atividade de leitura de mundo que precedem a apresentação das técnicas de
alfabetização realizadas na escola. Cidadão que deveria ser o centro do processo,
entendido neste trabalho como um ser social produtor de cultura, bem como
possuidor de necessidades pessoais e concretas de leitura em diferentes situações
comunicativas, seria ignorado, limitado à mecânica do processo fônico de
transmissão e expressão oralizada do código da escrita, segundo o método de
Oliveira (2008).
Portanto, contrariando todas as concepções de leitura, defendidas pelos
autores supracitados, na perspectiva do ‗Programa Alfa e Beto‘, para que o aluno se
torne leitor se faz necessário, tão somente isso, o domínio pleno da decodificação
das palavras, com fluência e rapidez. Para que isso seja possível, o alfabetizador
utilizará uma gama de materiais e exercícios de repetição/memorização
recomendadas no manual do livro didático do professor.
Partindo da apresentação de sons e letras para formar sílabas e palavras, o
aluno é condicionado a decorar listas de vocabulário formadas pelas famílias
96
silábicas que são apresentadas gradualmente no passo a passo das lições, até se
apropriar de um repertório suficiente de vocábulos para ler textos ―complexos‖, como
os exercícios das antigas cartilhas.
Contrariando o pensamento de Oliveira (2008), Bamberger (1995, p. 23)
argumentou que ―a habilidade de ler perfeitamente não consiste na capacidade bem
treinada de ―combinar sons em palavras e palavras em unidades de pensamento‖
(como se acreditava anteriormente) (grifos do autor), logo, as listas de vocabulário
isolado não se configuram em unidades carregadas de significação, tão pouco são
reconhecidas como textos, no fazendo sentido para quem lê, desse modo,
[...] se as pessoas leem e não entendem o que leem, então não leem. O texto escrito é um veículo de informações produzidas por um emissor que devem chegar a um receptor. O que temos aí é um processo de comunicação que só ocorre, realmente, quando o leitor toma posse de matéria lida e posiciona-se diante dela. Se isso não ocorre, a comunicação falha e o ato de ler não acontece (AGUIAR, 2004, p. 61).
Complementando o pensamento de Aguiar (2004), acrescenta-se que, para
que a leitura possa ter significado, é preciso que ela seja uma atividade dinâmica de
recriação dos sentidos existentes nos textos, que enriqueça e amplie a lógica
imediata daquilo que é lido e que faça parte dos interesses e realidade dos que o
leem, como insistentemente defendido neste trabalho.
Na perspectiva da automatização esvaziada do ‗ABC‘, o aluno aprende a ler
através da repetição e exposição contínua dos vocábulos formados pelas famílias
silábicas a que estão sendo expostos, além do mais, para ler corretamente,
[...] o aluno precisa identificar palavras de forma automática. Para automatizar a leitura, ele precisa ler várias vezes a mesma palavra. Para ler várias vezes a mesma palavra, precisa ser exposto à mesma palavra com alguma frequência. Isso requer duas condições:
Primeiro, que o texto seja apropriado, quer dizer, que o aluno consiga lê-lo;
Segundo, que o texto apresente a palavra que o aluno vem tratando de automatizar (OLIVEIRA, 2008, p. 145).
Para essa prática de leitura, na seleção de textos ―apropriados‖ que os alunos
deverão ler, além da leitura de listas de vocábulos e de pseudopalavras criadas a
partir das sílabas que estão sendo ensinadas, encontram-se disponíveis no material
didático de apoio à aprendizagem minilivros decodificáveis30 (termo empregado no
‗ABC‘ na página 181), que são pequenos livros pretensamente de literatura infantil
30
Encontra-se no anexo deste trabalho um exemplar de minilivro disponibilizado pelo site do IAB.
97
―contendo fonemas e palavras que o aluno consegue identificar automaticamente ou
com os conhecimentos que possui sobre decodificação‖ (OLIVEIRA, 2008, p. 180).
Na perspectiva do autor, a facilidade de decodificação desses textos ―permite que o
aluno leia fazendo poucos erros e, dessa forma, ganhando velocidade. Ao ganhar
velocidade, o aluno aumenta sua chance de compreensão‖ (OLIVEIRA, 2008, p.
180).
As histórias, ou se poderia chamá-las de ―pseudotextos‖, contidas nesses
minilivros são semelhantes aos textos que serviam de pretextos para a leitura e
treino das famílias silábicas das antigas cartilhas que foram condenadas no século
passado (ARENA, 2010). Vazios de literalidade, esses pequenos livros não
apresentam uma história coerente e atrativa, tampouco, fazem parte da seleção
leitor, são exercícios instrumentais da decodificação e obrigatórios, pois em ―cada
aula de decodificação são apresentados entre 3 e 6 minilivros diferentes‖
(OLIVEIRA, 2008, p.180).
A leitura obrigatória desses tipos de livros empobrecidos de textualidade e
disfarçados de literatura implicaria no abandono ou no repúdio de práticas de leitura
pelo aluno, leitor em formação, pois,
[...] para gostar de ler é necessário conhecer, ou melhor, experimentar, as vantagens da leitura, a qual não pode ficar por um mero processo de descodificação; entrando também no domínio da compreensão e da interpretação, que permite construir conhecimento tendo por base o que já se conhece sobre o assunto, ativando referenciais e realizando aprendizagens significativas. Para gostar de ler, o leitor tem que se assumir como um sujeito ativo, ultrapassando a leitura literal, lendo nas entrelinhas, interagindo com o texto e confrontando-se consigo mesmo. É deste diálogo entre o leitor e o texto que, em larga medida, nasce o gosto pela leitura (REVOREDO; SOUZA, 2010, p. 2).
Dificilmente por intermédio dos minilivros, os alunos, guiados pelo material do
Programa Alfa e Beto, conseguirão perpassar os limites do texto, tampouco interagir
com ele, como descrito na citação acima. Infelizmente, não será no período de
alfabetização, segundo a perspectiva do material, que os alunos terão contato com
bons materiais de leitura que poderiam ser propiciados através da escolha livros de
qualidade, contidos no acervo de literatura infantil, que chegam aos professores e
98
alunos nas escolas brasileiras por meio do Programa Nacional Biblioteca Escolar
(PNBE)31.
Nessa vertente, em se tratando das implicações do trato da leitura prescritas
no documento analisado e ressaltando o papel crucial que o período de
alfabetização tem na formação do leitor, cabe apresentar dados de pesquisas
realizadas por Revoredo e Souza (2010), sobre a formação do leitor mirim. Esses
estudos apontam que as famílias reservam à escola o ofício de incentivar leitura na
criança, nas palavras das pesquisadoras:
[...] as famílias realizam uma tentativa de aproximação da criança com a leitura em sua primeira infância, mas acabam por deixar esta participação e/ou incentivo de lado quando seus filhos crescem; deixando a cargo deles próprios ou da escola a função de aproximação da leitura (REVOREDO; SOUZA, 2010, p. 7).
Dessa forma, mais uma vez há necessidade de centrar as aulas de
alfabetização não somente na decodificação de sinais impressos, mas,
especialmente, na formação do leitor que compreende textos, bem como na
promoção pelo seu gosto e hábitos de leitura, tendo em vista que a escola é
depositária das expectativas dessa formação não somente pelos organismos
governamentais, mas também pela família de seu alunado e, futuramente, será
cobrada pela sociedade.
Uma maneira de incentivar o hábito de leitura, como dito antecipadamente,
seria a partir da utilização da literatura como promotora de habilidades de uso social
da língua (ARENA, 2010), recurso de formação do leitor veiculado mediante leitura
literária mediada pelo professor.
O processo de ensino/aprendizagem permeado pela literatura infantil,
chamado letramento literário, defendido por Cosson (2006), passível de formar o
leitor manipulador de cultura, bem como construtor de sentidos para si e para o
mundo em que vive, no ‗ABC do Alfabetizador‘, torna-se praticamente desprezado,
como pode ser visualizado no excerto de seu texto:
31
Segundo o portal do MEC, o ―Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), desenvolvido desde 1997, tem o objetivo de promover o acesso à cultura e o incentivo à leitura nos alunos e professores por meio da distribuição de acervos de obras de literatura, de pesquisa e de referência. O atendimento é feito em anos alternados: em um ano são contempladas as escolas de educação infantil, de ensino fundamental (anos iniciais) e de educação de jovens e adultos. Já no ano seguinte são atendidas as escolas de ensino fundamental (anos finais) e de ensino médio. Hoje, o programa atende de forma universal e gratuita todas as escolas públicas de educação básica cadastradas no Censo Escolar‖, disponível em http://portal.mec.gov.br/, acessado em 30/04/2015.
99
A chamada literatura infantil quase sempre supõe que o aluno já aprendeu a ler. A simples leitura individual, silenciosa, não contribui muito para adquirir fluência. Essa leitura é importante – na verdade é a mais importante –, mas não deve consistir objeto de leitura atividades de sala de aula, e sim, de atividades na biblioteca ou em casa. A aula deve servir para instruir o aluno em como ler, e não em momento de leitura. Toda leitura em aula deve servir para o professor obter informações que lhe permitam ajudar seus alunos a lerem cada vez melhor, para depois lerem de forma independente. Isso pode ser feito através de atividades individuais (tomar leitura e usar um aluno como exemplo para os demais), leitura em pequenos grupos ou leitura coletiva. A prática que leva à perfeição não surge da mera repetição, mas da prática realizada com textos adequados e feedback imediato (OLIVEIRA, 2008, p. 184, grifos do autor).
Como visto, a crítica à leitura literária, feita por Oliveira (2008), baseia-se na
ineficiência da literatura em alcançar a fluência da decodificação, pois, nessa
perspectiva, os materiais de leitura deveriam seguir os padrões determinados pela
sequência didática de apresentação das famílias silábicas, que somente se
encontram nos minilivros decodificáveis e têm como objetivo aumentar a fluência
(rapidez e entonação correta) da decodificação.
Vale comentar, ainda, que o trato da literatura, segundo o autor, ficaria a
cargo das atividades de bibliotecas e da família. Pensamento retrógrado e
equivocado tomando como base os dados apresentados por Revoredo; Souza
(2010) quanto às expectativas que a família deposita na escola, enquanto promotora
da leitura e a negação da entrada tardia da literatura infantil nas classes de
alfabetização, que só teve propulsão a partir da década de 1980 (ARENA, 2010).
Após o ensino da decodificação, o segundo passo do trabalho com a leitura,
segundo o ‗ABC‘, seria o ensino da compreensão, entendido como objetivo da
leitura. A primazia de velocidade e ritmo, entendida como fluência da leitura, atrelada
a quantidade de vocabulário armazenada na memória do aprendiz, comporiam a
capacidade de compreender o que está sendo lido.
Para tanto, o ensino de vocabulário teria papel central nesse momento da
alfabetização, nas palavras do autor:
As evidências científicas oferecem uma resposta simples e objetiva – o conhecimento do sentido das palavras (vocabulário) é o fator que mais afeta a compreensão da leitura, porque:
A compreensão de um texto depende diretamente do número de palavras conhecidas;
A dificuldade de um texto se define como a porcentagem de palavras não conhecidas;
100
O domínio do vocabulário diminui o tempo necessário para a leitura, ou seja, torna a leitura eficiente;
As pessoas que dominam menos vocabulário dependem mais do contexto para compreender o sentido das palavras. Com isso prestam mais atenção às palavras individuais e menos ao contexto. No melhor dos casos, mesmo quando conseguem compreender o texto, seu esforço é maior e o leitor é mais dependente (OLIVEIRA, 2008, p. 191-192).
Assim sendo, a busca por palavras conhecidas em nossa memória seria
suficiente para se compreender o texto. Aprender o vocabulário, os significados das
palavras, seria elemento central para a compreensão. Contrapondo-se ao
entendimento de Oliveira (2008), salienta-se que:
Esse tipo de atividade e tratamento do vocabulário nos dá uma ideia bastante clara da noção de língua que os autores têm e da função meramente representacional dos vocábulos da língua. Até parece que, sabendo o léxico, entende-se o texto. No entanto, é necessário ter claro que o conhecimento do léxico de uma língua é apenas uma condição necessária, mas não suficiente para a compreensão de um texto (MARCUSCHI, 2008, p. 274).
Afirmar que a compreensão leitora depende pura e simplesmente do
entendimento do léxico de uma língua seria reduzir a leitura, novamente, a um ato
simples e mecânico, sem considerar os processos cognitivos que o leitor aciona ao
ler, como atividades de criação de sentidos. leva em consideração a função
estética, comunicativa e sociointerativa da leitura nas diferentes situações
discursivas que o sujeito poderia se deparar no cotidiano. Concepções defendidas
nesta pesquisa por meio de diferentes resultados de pesquisas na área da leitura.
Assim, a leitura no ‗ABC‘, bem como, as teorias
[...] fundadas no paradigma da decodificação sustentam a posição de que a língua é um sistema de representação de ideias e o texto é um repositário de informações. Nelas, compreender não passaria de uma tarefa de identificar e extrair informações textuais. [...] No caso, compreender o texto é apenas decodificar informações inscritas objetivamente (MARCUSCHI, 2008, p. 248).
Ademais, explícito em seu discurso, o Programa Alfa e Beto de Alfabetização
tem como prioridade acabar com os analfabetos funcionais, ou seja, os sujeitos que
leem e não compreendem, fenômeno atribuído por seu autor ao construtivismo por
sua ineficiência em alfabetizar as crianças nos primeiros anos da escolarização.
O método fônico apresenta-se como uma estratégia de combate ao analfabetismo funcional, argumentando que a compreensão só se efetua quando a decodificação grafema-fonema, primeira fase da alfabetização, segundo eles, é eficiente. Nesse sentido, os exercícios
101
com fins pedagógicos centram-se na simples réplica automática de frases e textos ao invés de colocarem o foco na compreensão. Ao invés de basearem o método no verdadeiro problema do analfabetismo funcional, a compreensão, fundamentaram-no numa etapa anterior, a identificação de letras e fonemas. É dessa maneira que acreditam contribuir para o fim do analfabetismo funcional (BAGATIN, 2012, p. 92).
À guisa de um desfecho, por meio da concepção de leitura que o ‗ABC do
Alfabetizador‘ apresenta, poderiam ser apontadas inúmeras implicações que o
método fônico causaria em seus aprendizes, infelizmente incabíveis nos limites
textuais deste trabalho, bem como aparte do objetivo proposto. Entretanto, através
de um excerto do texto de Paulo Freire, tais implicações na reflexão de como seriam
essas aulas poderiam ser, assim, sintetizadas: ―Sem bater fisicamente no educando
o professor pode golpeá-lo, impor-lhe desgostos e prejudicá-lo no processo de
aprendizagem‖ (FREIRE, 1996, p. 122).
Feito a explanação proposta sobre ‗leitura‘, apresenta-se o exame do conceito
‗escrita‘ presente no corpus selecionado. Embora tenha sido previamente
apresentado em pequenas proporções, durante a investigação de outras categorias,
tenciona-se, ness última, maior rigor de análise nos meandros da trama textual.
4.4.4 Escrita
Como visto até agora, o ‗ABC do Alfabetizador‘ compreende a escrita como
um conjunto de correspondências grafofônicas, representadas pelos caracteres do
sistema alfabético. A partir desse entendimento, apregoa um conceito de linguagem
monológica, centrada na língua padrão, pronta e imutável, desconsiderando as
múltiplas funções da linguagem escrita, bem como possibilidade de variações
dialetais da língua, visando o falante perfeito da norma padrão do português.
Além disso, como já explicitamente mencionado, o objetivo maior do
‗Programa Alfa e Beto de Alfabetização‘ encontra-se no ensino da leitura, atividade
compreendida como decodificação do sistema alfabético. Para concretizar
efetivamente o intento de ler, suas práticas alfabetizadoras exigem exercícios de
repetição e memorização de vocábulos – sonorizados com velocidade e ritmo
perfeitos para se chegar à compreensão leitora.
102
Em contrapartida, dentro da perspectiva do Programa, o ensino da escrita
(codificação) estaria legado ao segundo plano das intenções do método, porém
proporcionalmente exigente de atividades mecânicas e repetitivas, que levariam o
aluno à perfeição do domínio das normas gramaticais e ortográficas.
Assim como no ensino de leitura, fragmentada em dois processos distintos –
aprender a ler e ler para aprender –, quando se trata do ensino da escrita, o autor
parte da mesma concepção fracionada do processo da aquisição do sistema ao
estabelecer diferenciação entre os conceitos: escrever e redigir. Nas palavras do
autor:
Escrever, no sentido estrito, refere-se a transcrever um código oral num código escrito. O código oral é representado pelos fonemas, o código escrito, pelos grafemas ou letras. Para escrever, o aluno precisa identificar o princípio geral do alfabeto – ou seja, a idéia de que há uma correspondência entre sons e letras. [...] Já quando redigindo um texto, o aluno está fazendo algo muito mais complexo – pois ele mesmo gera idéias, estrutura o texto e escolhe as palavras que vai escrever. (OLIVEIRA, 2008, p. 265 - 266).
A partir desse entendimento, o ato de escrever estaria ligado à mecânica da
codificação, processo de ensino/aprendizagem mnemônico e associacionista,
conduzido por meio de cópias, ditados, exercícios de treino motor e ortográfico,
igualmente aos propostos pelas antigas cartilhas de marcha sintética.
Entretanto, baseado na verdade messiânica das evidências científicas,
justificativa polivalente do autor frente à perpetuação das práticas inócuas dos
velhos métodos, o primeiro passo para a formação do escritor competente se daria
por meio da instrução da caligrafia32. Concepção presente no ‗ABC‘ descrita da
seguinte maneira:
Caligrafia refere-se à legibilidade e fluência para escrever. A legibilidade é condição para a compreensão, a fluência se faz essencial para liberar a atenção do aluno dos aspectos formais da escrita e concentrar-se no objetivo e conteúdo do que quer comunicar por escrito (OLIVEIRA, 2008, p. 266).
Desse modo, guiados pela sistemática de conteúdo previsto no material, a
criança desenharia as letras do alfabeto ao passo que a progressiva apresentação
das letras e seus respectivos sons fossem apresentados. O ensino da linguagem
escrita, que poderia ser um momento criativo, onde os alunos pudessem ser
convidados a pensar sobre as relações grafofônicas e as peculiaridades da escrita,
32
Encontra-se em anexo um exemplar de lição de caligrafia disponibilizada no site do IAB.
103
bem como a reflexão sobre os cenários reais e as situações comunicativas que essa
manifestação da linguagem se encontra, ou seja, incentivadas a escrever
(FERREIRO; TEBEROSKY, 1999), são possivelmente negadas, confirmadas no
seguinte trecho do documento:
No momento de aprender a mecânica da escrita, o significativo para a criança é o desenho, a forma da letra, o domínio dos movimentos. A pedagogia que recomenda ―escreva do jeito que você sabe‖ ignora o fato fundamental da caligrafia: é uma atividade de natureza eminentemente motora, e não cognitiva. Da mesma forma que desenhistas, pintores, dançarinos e atletas, o contexto para a aprendizagem se define pela própria atividade – ser tenista, pintor ou bailarino. É este o contexto relevante que requer e dá sentido a atividades repetitivas necessárias para um desempenho satisfatório (OLIVEIRA, 2008, p. 283, grifos do autor).
Segundo a assertiva supracitada, bastaria a criança ser exposta às situações
de trabalho com a caligrafia que ela tomaria gosto pela escrita, tendo em vista que
os traçados das letras são suficientemente significativos para aprender a escrever; o
seu contexto de reprodução seria suficiente para chegar ao nível de escritores, pois
a prática levaria à perfeição. A exemplo disso, Oliveira (2008) utiliza como os
pianistas, pois, segundo ele, após treinos exaustivos se tornariam bons pianistas.
Se caso tal afirmação fosse verdade, as cartilhas do passado teriam
produzido uma gama incontável de bons escritores, tendo em vista que as situações
didáticas da caligrafia tomavam boa parte do período de alfabetização. Desse modo,
a possiblidade de formar escritores através do treino caligráfico pode ser
desmascarada pelos vergonhosos números das estatísticas históricas sobre o
analfabetismo brasileiro causado pelas antigas práticas das cartilhas.
Ainda que a caligrafia tenha deixado de ser uma disciplina escolar, o espírito que preside a escrita é o mesmo: cópia fiel de um modelo imutável, simplesmente com uma maior margem de tolerância para aceitar a fidelidade da cópia (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 289, grifos das autoras)
Este trabalho destaca que a caligrafia é uma atividade necessária para o que
aluno desenvolva habilidades motoras apreciando a grafia infantil como uma marca
pessoal de sua produção, bem como os aspectos estéticos da escrita feita à mão,
mesmo considerando o advento da informática, que cada vez mais substitui o
registro manual pelo digital. Entretanto, ela não tem função primordial durante o
processo, pois o traçado caligráfico ―pode ser ensinado em séries mais adiantadas,
104
complementando os estudos sobre a escrita iniciados na alfabetização‖ (CAGLIARI,
1998, p.186).
Todavia, uma das premissas defendidas veementemente neste trabalho
centra-se na consideração do ser cognoscente, que diante das situações de ensino
pensa e opina sobre o objeto de aprendizagem. Assim, pensa-se que as atividades
de caligrafia deveriam ter significação, ligadas ao contexto real de utilização,
trabalho possível e exemplificado da seguinte forma:
Na alfabetização, o professor pode mostrar catálogos de letras, no qual os alunos poderão encontrar uma variedade enorme de estilos, cujas peculiaridades divergem da forma original de letras de fôrma maiúsculas e minúsculas. Encontrarão letras enfeitadas para fazerem cartazes, letras sugerindo fogo, vento, alegria, tristeza, etc. Usar letras desse tipo para enfeitar trabalhos, títulos, cartazes, etc. é uma forma de ensinar não só a escrever, como também a escrever segundo uma cultura (CAGLIARI 1998, p. 187).
Depois da caligrafia, o ensino da ortografia apresenta-se como segundo pilar
que sustenta a edificação de alunos escritores competentes. Para tanto, as
atividades privilegiadas pelo método metafônico seriam a utilização de cópias, bem
como de ditados, de lista de vocábulos e de palavras inventadas para o exercício da
codificação, seguindo a formatação das famílias silábicas que estão sendo
ensinadas em cada passo do programa. Desse modo, as regras ortográficas da
língua seriam assimiladas ao passo que as palavras fossem transcritas, lidas e
exaustivamente copiadas, efetivando o ensino da escrita.
Para que seja eficaz, o ditado deve se articular cuidadosamente com o ensino da decodificação, de forma que o aluno só transcreva sons em grafemas cujas correspondências ele já estudou. Dessa forma o aluno poderá adquirir segurança ortográfica – e não ficar pensando que só o professor sabe como escrever certo (OLIVEIRA, 2008, p. 292).
Para o método fônico, o desenvolvimento da habilidade da escrita está
intrinsicamente ligado ao número de padrões ortográficos apresentados e
memorizados pelos alunos, passo importante da técnica, pois a escrita entendida
como um código, que deveria representar exatamente os sons em letras (como na
transcrição fonética). Infelizmente, não ocorre bem assim, tendo em vista que nem
todas as correspondências letra-som são unívocas, o aluno deverá decorar as
possibilidades de irregularidades ortográficas (que ‗casa‘ não se escreve com ‗z‘, por
exemplo).
105
Até agora foram apresentados o bloco de atividades ligadas ao nível
morfológico da língua, bem como o entendimento e os exercícios que compõem a
técnica associativa do método – apresentação de som e letra, das sílabas, até
chegar ao nível dos vocábulos e suas irregularidades ortográficas –, tendo em vista
sua base de progressão sintática (da menor para maior parte) de apresentação do
código.
Feito isso, o próximo passo estaria na formação das sentenças, denominado
por Oliveira (2008, p. 266), como ―desenvolvimento da consciência sintática‖, terceiro
pilar do processo de habilidades de escrita presente no ‗ABC do Alfabetizador‘.
O desenvolvimento da consciência sintática, segundo Oliveira (2008), estaria
ligado ao ensino da composição das frases, orações e períodos (sintaxe da língua),
seguindo o mesmo padrão de práticas de associação.
Esses exercícios se apresentam como de categorizações gramaticais:
alteração de gênero, número, graus e tempos verbais, qualificativos, sujeitos
compostos, conectivos; por meio de reescrita de sentenças isoladas, igualmente,
através da expansão ou emenda frases/orações que possivelmente se relacionam.
Pode-se exemplificar pelo excerto retirado do documento analisado:
Expandir frases Por exemplo, utilizar frases que foram utilizadas num determinado contexto – chamando atenção para o efeito de colocar, retirar ou mudar a ordem de lavras na frase. Por exemplo: Bola A bola A bola do menino A bela bola do menino A bela bola do menino é de couro (OLIVEIRA, 2008, p. 299-300, grifos do autor) Emendar ou retificar frases relacionadas Esse tipo de atividade pode servir para desenvolver a percepção sobre uso de sujeitos compostos, pronomes, conectivos e também para usar frases mais longas. Por exemplo: João foi passear. Maria foi passear. (pedir ao aluno que fale a mesma coisa usando uma só frase.) Maria tem um livro. O livro é de Maria (pedir ao aluno que substitua ―de Maria‖ na segunda frase.) Edwiges foi ao cinema. Edwiges não gostou do filme. (pedir ao aluno que faça a frase usando um conectivo – por exemplo, mas.)
106
Além de dar ao aluno um repertório de estruturas de frases que ele seja capaz de usar, esses exercícios podem ser expandidos para iniciar o aluno na estrutura do parágrafo (OLIVEIRA, 2008, p. 300, grifos do autor).
A criança em idade escolar é um falante nativo de sua língua, domina
elementos morfológicos e sintáticos suficientes para elaborar frases e textos, como
contar histórias, fatos, casos, cantar músicas... Mesmo sem dominar a linguagem
escrita possui um cabedal de elementos gramaticais em sua oralidade capaz de
interagir eficazmente.
Cagliari (1998) denominou esse tipo de abordagem prática dos elementos
morfossintáticos da língua como ―entulho gramatical‖. Nos primeiros anos de
escolarização, quando a criança está refletindo sobre as possibilidades/hipóteses de
escrita, o ensino de conteúdos gramaticais fora do contexto comunicativo, bem como
realizados de maneira automatizados, são inócuos para o aprendiz, além de
desmotivadoras e induzirem ao erro. Segundo o autor supracitado:
Querer ensinar essas coisas na alfabetização é um desastre. Como não há explicações sérias, apenas exercícios como ―faça segundo modelo‖, nota-se que muitos alunos erram, nesses exercícios, coisas que, de fato, conhecem perfeitamente, como falantes nativos da língua (CAGLIARI, 1998, p.96).
Na perspectiva do ‗ABC‘, assim como outras habilidades comunicativas são
desprezadas, o aluno se tornaria usuário da linguagem escrita por meio da
progressão controlada do material. Essa metodologia pode causar sérios impactos
no trabalho criativo da criança no momento de produção real de textos escritos,
como aqueles exemplos de textos, transcritos em seção anterior, produzidos por
crianças que foram ensinadas pelos métodos das cartilhas.
Uma alternativa, no entanto, de proporcionar a aquisição da linguagem
escrita, consequentemente situações de aprendizagem de sua produção, ocorreria
através de contextos socioculturais de utilização desse tipo de linguagem. Assim
como a criança vem para escola fazendo suas primeiras leituras, identificando
sentidos aos textos e contextos que se encontram as impressões gráficas,
inversamente, incentivado pelo professor, ela poderia produzir seus primeiros
materiais escritos, por meio de gêneros textuais primários ao listar, por exemplo,
elementos que circundam seu convívio, os nomes dos colegas (lista de chamada),
107
etiquetas de materiais, e, progressivamente ao avançar na escrita, avisos e
pequenos bilhetes.
Práticas atreladas à familiarização de textos correntes, ao seu uso e
decifração, poderiam incentivar o aluno a ler e a escrever em situações reais de
interlocução, promovendo o gosto pela leitura e escrita, bem como a construção
dessa linguagem pela criança. Isso posto, momentos de produção de sentidos por
meio de textos, pouparia o educando da maçante tarefa de repetir sons, de treinos
motores, cópias e exercícios previamente determinados pelo material.
Depois de ensinar a montar e desmontar palavras e frases, – supostamente o
aluno do ‗Programa Alfa e Beto‘ já estaria (de)codificando os sinais gráficos –,
momento que se poderia explorar a produção da escrita espontânea, ou seja, de
estimular a criatividade de escrita, bem como mostrar seu uso social. Entretanto, o
material sugere uma antiga proposta, o quarto nível de desenvolvimento das
habilidades de escrita: a redação.
Redigir um texto constitui atividade complexa. Para ensinar o aluno a redigir, o professor deve compreender o que seja específico sobre a escrita – pois é exatamente essa especificidade que torna aprendizagem da escrita mais lenta em relação a outras tarefas que os alunos aprendem tão rapidamente e com tanta facilidade. Os estudiosos do tema sugerem considerar três dimensões específicas da escrita (Gombert et alia., 2000)33:
O texto escrito é um monólogo;
redigir requer uma organização prévia de informações;
redigir pressupõe regras e o domínio de certas competências (inclusive caligrafia e ortografia) (OLIVEIRA, 2008, p. 303).
O ensino da redação posto pelos autores que sustentam a teoria presente no
livro de Oliveira (2008) vem sendo criticada há anos por pesquisadores da área da
linguística aplicada e do ensino (CAGLIARI, 1998; CURADO, 2004; MARCUSCHI,
2008; PEREIRA, 2004) por sua ineficiência. A crítica pauta-se nos modelos de textos
que o aluno deve seguir baseado em estruturas fixas das tipologias textuais, calcada
numa perspectiva primitiva de linguagem, bem como visando um único leitor
(professor) e um único espaço de circulação (escola), quando circula.
Desse modo, cabe conceituar a crítica ao ensino da redação, diferenciando-a
da prática de produção de textos, proposta alternativa a este trabalho estanque
proposto no ‗ABC‘, nas palavras de Pereira (2004, p. 101),
33
GOMBERT, J.E.; COLÉ,P.; VALDOIS, S.; GOIGOUX, R. MOUSTY, P.; FAYOL, M. Enseigner la lecture ou cycle 2. Parias: Nathan, 2000.
108
[...] o aluno faz uma redação, quando reproduz frases que não são dele, ideias já consagradas, clichês – enfim, quando devolve para o professor a palavra da escola; diferentemente, o estudante produz um texto, quando, quando consegue, apesar de tropeçar na ortografia, na concordância e em outras convenções da língua culta, escrever algo original, algo de seu, a expressão de sua visão de mundo.
A linguagem representada pela escrita em um texto, além de exprimir um
produto autoral criativo, no caso do aluno escritor em formação, faz parte da
atividade de interação verbal entre o um escritor e o leitor. Essa situação exige do
sujeito que escreve o posicionamento frente ao texto criando uma proposta de
produção de sentido, pois, tanto no ato comunicativo como na ―produção de um
texto, não entram apenas fenômenos estritamente linguísticos‖ (MARCUSCHI, 2008,
p. 94). Leva-se em consideração, também, o local de produção, de circulação, bem
como os atores sociais envolvidos nesse processo de enunciação. Nesse aspecto, a
seleção lexical, o grau de formalidade/informalidade terá papel decisivo na produção
textual (Idem).
Por fim, num método que considera a linguagem escrita um mero código de
representação fonética, vê-se o aluno à parte do processo de ensino/aprendizagem
e amarra a liberdade de cátedra em seu material didático, não se pode exigir como
produto criativo, expressivo de ideias e ideais, uma escrita de texto que não siga o
modelo proposto.
109
CONSIDERAÇÕES
O presente trabalho investigativo se propôs a analisar a concepção de
alfabetização presente no livro de formação do professor, intitulado ‗ABC do
Alfabetizador‘, material que compõe o Programa Alfa e Beto de Alfabetização,
vendido por uma Organização Não Governamental denominada Instituto Alfa e Beto.
A escolha do tema partiu da preocupação da veracidade dos baixos índices
de letramento dos alunos das escolas brasileiras advindos de um processo de
alfabetização insuficiente para atender as necessidades que a sociedade
contemporânea grafocêntrica exige, na atualidade, bem como pela grande
abrangência que esse Programa de Alfabetização possui nos processos educativos,
influenciando diretamente as práticas pedagógicas propostas para o ciclo de
alfabetização que vem sendo cada vez mais implantada por vários municípios,
estados e países, inclusive adotada, há alguns anos, pela rede pública de ensino do
estado de Mato Grosso do Sul, local onde foi realizada esta pesquisa.
Para tanto, ao constituir a presente investigação, foram apresentados os
conceitos correntes sobre alfabetização, evidenciando através da História a trajetória
percorrida pela linguagem escrita e pelos seus métodos de ensino para
contextualizar as relações que esses processos estabelecem com a formação do
sujeito alfabetizado. Durante essa trajetória histórica, ressaltou-se a secular disputa
metodológica entre defensores de técnicas baseadas em abordagens sintéticas e
analíticas com o propósito de facilitar o ensino das primeiras letras, além de situar
nessa linha evolutiva a criação do método fônico.
Assim sendo, a partir do decurso histórico da educação brasileira, foi traçada
a relação entre o surgimento de métodos de alfabetização criados no Brasil e sua
estreita relação com a publicação das cartilhas até a chegada de teorias baseadas
na ciência da Psicologia Cognitiva, destacando a teoria da psicogênese da língua
escrita, concomitantemente com a chegada do termo letramento, que, por
consequência, levaram à condenação do uso das cartilhas, porém nem sempre ao
seu abandono.
Em seguida, tencionou-se a discussão em torno da publicação do Relatório
Final do Grupo de Trabalho ―Alfabetização Infantil: os novos caminhos‖, resultado do
Painel Internacional de Especialistas em Alfabetização Infantil. O documento
110
considerado o grande catalisador do movimento em prol do método fônico propunha
a substituição da teoria construtivista presente nos documentos oficiais do Ministério
da Educação pela abordagem fônica, por meio de uma retórica agressiva, baseada
em dados de pesquisadores internacionais que justificam a legitimidade do método
fônico como ―salvador‖ da alfabetização brasileira.
Apesar de não ter alcançado o intento de modificar os documentos oficiais, o
Relatório passou a influenciar propostas curriculares municipais e estaduais, além de
destacar matérias em jornais e revistas de grande circulação, lucrar encontros de
formação e palestras aos seus locutores, circunscrevendo o território dessa
concepção de alfabetização.
Feito isso, apresentou-se o percurso metodológico utilizado para a realização
deste trabalho investigativo, bem como o ―Programa Alfa e Beto de Alfabetização‖ e
o manual do professor ‗ABC do Alfabetizador‘, documento selecionado como corpus.
Por fim, a partir dos resultados da análise do documento, aportados pelos
conceitos encontrados nos referenciais teóricos que subsidiam a discussão desta
pesquisa e apresentados ao longo do texto, chegou-se ao entendimento do conceito
‗alfabetização‘ presente no ABC do Alfabetizador. Pode-se afirmar que, apesar do
método metafônico criado por João Batista Araujo e Oliveira possuir uma riqueza de
materiais pedagógicos que suportam a prática alfabetizadoras proposta por seu
método, bem como um cabedal teórico propiciado por uma vasta bibliografia
estrangeira, a alfabetização é entendida como um ato que se traduz em
decodificar/codificar sons, igualmente àquele antigo método fônico criado na Idade
Média e abandonado por seus contemporâneos por sua ineficiência.
111
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ANEXOS