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69 Com Com Com Com Comunismo e Religião nas unismo e Religião nas unismo e Religião nas unismo e Religião nas unismo e Religião nas “V “V “V “V “Voltas oltas oltas oltas oltas do Par do Par do Par do Par do Parafuso”: afuso”: afuso”: afuso”: afuso”: O Pa O Pa O Pa O Pa O Papel da Nar pel da Nar pel da Nar pel da Nar pel da Narrativ ativ ativ ativ ativa e do Símbolo nas e do Símbolo nas e do Símbolo nas e do Símbolo nas e do Símbolo nas Transf ansf ansf ansf ansfigur igur igur igur igurações do ações do ações do ações do ações do Cotidiano e na Criaçãode um Cotidiano e na Criaçãode um Cotidiano e na Criaçãode um Cotidiano e na Criaçãode um Cotidiano e na Criaçãode um Sentido de Comunidade Sentido de Comunidade Sentido de Comunidade Sentido de Comunidade Sentido de Comunidade 1 Marcelo Ayres Camurça* Resumo A influência do pensamento de Otávio Velho em trabalhos (como o meu) que pretendiam nos anos 90 fazer uma “antropologia dos grupos e partidos de esquerda” direcionou-os para o cotejo entre a dimensão do comunismo e a da religião, explorando uma afinidade eletiva que resultaria positiva para o entendimento de ambas dimensões. Isto se deu através da crítica a uma sociologia marxista e antropologia da política que reduziam o papel do símbolo e da narrativa na política à mera analogia com realidades sociais e econômicas, não enxergando sua força constituinte de realidade. Transportando essa discussão para análises sobre o papel das esquerdas no país, enfocadas fundamentalmente pela visão da ciência política, tratava-se de reconhecer nestas uma faceta de imaginário buscando o reconhecimento da existência de uma simbólica da política onde o símbolo na sua autonomia pudesse ser visto como reserva que produz sentido (pelo próprio mecanismo de simbolização) fundando visões de mundo e práticas socio-políticas. Antropólogo, diretor da Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM) e docente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião (PPCIR) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Texto originalmente apresentado na Mesa Redonda “A época do espírito: em torno do trabalho de Otávio Velho” coordenada por Emerson Giumbelli e com a participação de Luís Eduardo Soares, Regina Novaes e Pablo Semán nas XIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, Porto Alegre 27-30 de setembro de 2005. * 1

CAMURCA, Marcelo Ayres - Comunismo e Religiao Nas Voltas Do Parafuso

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CAMURCA, Marcelo Ayres - Comunismo e Religiao Nas Voltas Do Parafuso

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    Marcelo Ayres Camura*

    Resumo

    A influncia do pensamento de Otvio Velho em trabalhos (como o meu) que pretendiamnos anos 90 fazer uma antropologia dos grupos e partidos de esquerda direcionou-ospara o cotejo entre a dimenso do comunismo e a da religio, explorando uma afinidadeeletiva que resultaria positiva para o entendimento de ambas dimenses. Isto se deu atravsda crtica a uma sociologia marxista e antropologia da poltica que reduziam o papel dosmbolo e da narrativa na poltica mera analogia com realidades sociais e econmicas, noenxergando sua fora constituinte de realidade. Transportando essa discusso para anlisessobre o papel das esquerdas no pas, enfocadas fundamentalmente pela viso da cinciapoltica, tratava-se de reconhecer nestas uma faceta de imaginrio buscando oreconhecimento da existncia de uma simblica da poltica onde o smbolo na sua autonomiapudesse ser visto como reserva que produz sentido (pelo prprio mecanismo de simbolizao)fundando vises de mundo e prticas socio-polticas.

    Antroplogo, diretor da Associao dos Cientistas Sociais da Religio do Mercosul(ACSRM) e docente do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio (PPCIR)da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).Texto originalmente apresentado na Mesa Redonda A poca do esprito: em tornodo trabalho de Otvio Velho coordenada por Emerson Giumbelli e com a participaode Lus Eduardo Soares, Regina Novaes e Pablo Semn nas XIII Jornadas sobreAlternativas Religiosas na Amrica Latina, Porto Alegre 27-30 de setembro de 2005.

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    AbstractThe influence of Otvio Velhos thought in works (like mine) that essayed in the 90s to doanthropology of leftist groups and parties directed them to comparison between thedimensions of communism and religion, exploring an elective affinity which resulted positivefor understanding both dimensions. This occurred through critic of marxist sociology andof political anthropology that reduced the role of symbol and narrative in politics to mereanalogy with social and economic realities, not seeing its reality constituent power. Transposingthis discussion to analises on lefts roles in the country, focused mainly by political sciencevision, the aim was to recognize in them a perspective of the imaginary, searching therecognition of the existence of a politics symbolic where the symbol could be seen in itsautonomy as a reserve which produces meaning (through symbolization mechanism itself)funding world visions and socio-political practices.

    Keywords:Keywords:Keywords:Keywords:Keywords: communism, religion, narrative, symbol.

    A realizao desta Mesa, para mim se inscreve dentro de umsentimento que Roberto da Matta na Reunio da ABA deBelo Horizonte em 1992, se referiu como de uma antropolo-gia da saudade.2 Reunir-me aqui para homenagear Otvio,com Lus Eduardo Soares que me foi apresentado por eleprprio, com quem segui nos idos de 90, um Laboratriono IUPERJ e depois a convivncia no velho ISER, cujainterlocuo foi crucial para minha tese. Com Regina Novaes,que tambm conheci por intermdio de Otvio e que foi daminha banca de doutorado e depois tambm parceira dediretoria no ISER. Emerson Giumbelli e Pablo Semn, cole-gas enquanto orientandos do Otvio, amizade e convviocrescido sombra do nosso mestre. Saudade daquela convi-vncia intensa e significativa.

    Conferncia de Abertura da XVIII Reunio Brasileira de Antropologia em BeloHorizonte, 1992. Registrado na publicao As Reunies Brasileiras de Antropologia(1953-2003) de Mariza Corra na pgina 68 e publicada no livro Conta doMentiroso de Matta pela Editora Rocco em 1993.

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    Em entrevista a pesquisadora Sonia Herrera para sua Tese Doutorado afirmou, eu achoque a igreja qual tive um pertencimento mais autntico foi o Partido Comunista(Snia HERRERA, Reconstruo do processo de formao e desenvolvimento da reade estudos da religio nas cincias sociais brasileiras, 2004, p.325)Otvio VELHO, O que a Religio pode fazer pelas Cincias Sociais? (Para refernciascompletas, cf. abaixo BibBibBibBibBibliogrliogrliogrliogrliografafafafafiaiaiaiaia.)Otvio VELHO, O cativeiro da Besta-Fera.Ibid., p. 16-17

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    ___Saudade, mas tambm temor, pela responsabilidade deter que discorrer sobre o pensamento do Otvio na suapresena sem cometer grandes incorrees. Mas, como den-tro de uma perspectiva otaviana cada texto ultrapassa seuautor e seu contexto, constituindo-se numa narrativa sem-pre aberta a novas adies, fico a salvo de uma leitura maiscannica de seus escritos, podendo cometer toda sorte dere-leituras destes escritos.___A influncia do pensamento de Otvio em trabalhos(como o meu) que pretendiam nos anos 90 fazer uma an-tropologia dos grupos e partidos de esquerda direcionou-os para o cotejo entre comunismo e religio. Ele, como eu, ex-militante comunista3, que descobrira o universo religiosopde inspirar-me na explorao desta afinidade eletiva queresultou positiva para o meu entendimento do ethos comu-nista. A questo era testar o valor heurstico de estender aotema da esquerda poltica as mesmas categorias usadas parapensar a religio; tomando religio no sentido que sempreOtvio lhe deu, no como um campo em si, mas relaciona-da a tendncias, estilos de pensamento e da cultura contem-pornea, enfim, como expresso de um esprito de poca.4___Otvio vinha de escrever O Cativeiro da Besta-Fera5,texto que se tornou revelador para minha demarche. Nelecriticava uma sociologia marxista e antropologia da polticaque reduziam a fora constituinte do smblico - na vivnciasocial de grupos subalternos na Amaznia - mera analogiacom o que consideravam domnios relevantes do social, comoo poder do Estado, das classes dominantes, do capitalismo.6Transportei, ento, esta crtica para os estudos sobre as es-querdas no pas, enfocadas fundamentalmente pela cincia

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    poltica que privilegiava a mediao racional do clculo eprevisibilidade de projetos, dos interesses e negociaes, epara quem o simblico era mero ornamento. Ou seja, ossmbolos na poltica tinham seu significado e sua traduosituados em outras esferas: o poder, a economia e a ideolo-gia. Desta forma, pude empreender uma volta no parafuso(expresso usada coloquialmente por Otvio nas suas aulaspara designar a necessidade de ir alm de constataesrasas). E a partir da postular - como Otavio fizera no Cati-veiro da Besta Fera - a instaurao da poltica e do poderpelo simblico e no o contrrio.___Na obra de Otvio, ao smbolo pleno de eficcia ecom compromisso apenas com o ato de simbolizar, acres-centa-se a noo de narrativa, presente em textos subse-qentes7, ambos em oposio ao signo com sua pretensode representar uma realidade exterior a ele. Smbolo e nar-rativa ento, portando o seu prprio realismo8 e propician-do um senso de comunidade9, algo como a communitasde Turner sem a contraparte da estrutura social, posto queregido pela inveno.___Semelhante cultura bblica10, formulada por Otvio,enquanto narrativa de longa durao que se impe comorepertrio para reelaboraes em contextos e crenas atu-ais, pude pensar numa cultura comunista11 que como ummito presidiu e configurou, para alm das intenes consci-entes, as estratgias e aes dos partidos e Estados comu-nistas, constituindo tambm um sentido de comunidade.Na reflexo de Aaro Reis Filho, o que manteve os comu-nistas unidos, em ao, foram seus mitos coesio-nadores(a revoluo inevitvel, a misso universal do proletariado,

    Gilberto VELHO; Otvio VELHO, Antropologia e a questo da representao. DuasConferncias, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1992. E Religio e Modernidade: roteiropara uma discusso. Anurio Antropolgico/92, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.Otvio VELHO, Antropologia e representao, p. 199.Ibid., p. 203.Otvio VELHO, O cativeiro da Besta-Fera.Marcelo Ayres CAMURA, A concepo de Histria na Cultura Comunista; ID.,Os Melhores Filhos do Povo.

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    o papel essencial do partido de vanguarda).12 Baudrillard nasua anlise do PC Francs evocar a precedncia do roteirosobre o real.13 E o historiador Jacob Gorender sublinhou oefeito de real que as sentenas do lder comunista chinsMao Tse Tung os imperalistas so tigres de papel, opoder nasce da boca do fusil tiveram para ao militaris-ta da esquerda brasileira.14___Em Relativizando o relativismo, Otvio demonstra umapreo pela recuperao dos grandes temas e temas quen-tes demarcando-se da validao relativista de qualquer es-tilo de vida, pois, para ele, esta postura epistemolgica leva banalizao do cotidiano e reduz todo esforo analtico aum comentrio sobre o j dado.15 Em sintonia com estareflexo pude pensar as idias mobilizadoras da sociedadesem classes ou do compromisso partidrio comometanarrativas (grandes temas), no em seu contedo maissubstantivo, das resolues, diretrizes e formulaes explci-tas, mas como lugares simblicos, de transcendncia16 oude transfigurao do ordinrio17 que lograram desencade-ar modalidades alternativas de vida social e comunitria.___Mas aqui no se cairia no equvoco de se considerarprodutivas para a cena contempornea idias passadistas edemodes deixadas de lado no ocaso do marxismo e da que-da do muro? Semelhante persistncia da religio18 naalta modernidade, para Otvio, no como revanche do sa-grado ou reencantamento do mundo, mas como estra-nhamento sutil face ao ordinrio cotidiano,19 estas recorrnciasa utopias e engajamentos aparentemente indo em dire-o oposta cultura relativista contempornea poderiam,

    Daniel Aaro Reis FILHO, A Revoluo faltou ao encontro. Os comunistas no Brasil, p. 19.Jean BAUDRILLARD, Partidos Comunistas: os parasos artificiais da poltica.Jacob GORENDER, Combate nas trevas. A esquerda brasileira: iluses perdidas lutaarmada.Otvio VELHO, Relativizando o relativismo, p. 181.Ibid., p. 184.Otvio VELHO, Antropologia e representao, p. 204.Otvio VELHO, A Persistncia do Cristianismo e a dos Antroplogos .Otvio VELHO, Relativizando o relativismo, p. 184; ID., A Antropologia da Religio emtempos de Globalizao, p. 5.

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    segundo o nosso autor proveitosamente ser pensadas, comoparte de um novo panorama cultural, ao invs de simplesrelquias do passado.20 Se considerarmos o atual poder depersuaso de determinadas crenas junto a grandes contin-gentes de populao mundial tidas pelos crculos bempensantes como retrgradas e fundamentalistas, comoo islamismo e o pentecostalismo, podemos situar tambmestas utopias militantes seculares comunistas, ao lado doque Otvio Velho sugere como um campo de possibilida-des de nossa poca.21 A nfase nestes temas que indicamuma posio de compromisso com alguma instncia coinci-dem com o que ele aponta sobre a importncia renovada(..) das discusses em torno da tica diante das quais umaatitude acadmica relativista resulta em situar-se margem.22De novo aqui, para nosso autor, a adeso no significa repre-sentar a veracidade da revelao religiosa, ou (no meu caso)da cientificidade do modelo comunista, para alm disso, ela,adeso, em si mesma, um fator tico.23 O compromissocom algo no verificvel, como a aposta (pascaliana) oucomo o salto (kierkegaardiano), enfim, uma posioantiessencialista da experincia como contraposio tantoao niilismo quanto ao cientificismo.24___A posio de Otvio de formular a narrativa e o smbolocomo focos de inveno, no desemboca necessariamentena idia de que cada um cria sua realidade e para o elogiodo respeito diferena seja ela qual for, resultando na frag-mentao ps-moderna. Sua nfase na inveno no impli-ca em contradio com sua postura de relativizar orelativismo.25 Considero que ele sai desse impasse, pela viado Holismo, metanarrativa que articula discursos distintosem tenso e at em conflito26, mas que so movidos por

    Otvio VELHO, Antropologia e representao, p. 193.Otvio VELHO, Relativizando o relativismo, p. 184.Ibid., p. 177.Otvio VELHO, Antropologia e representao, p. 195.Ibid., p. 195.Otvio VELHO, Relativizando o relativismo.Otvio VELHO, Antropologia e representao, p. 212.

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    uma vontade de semelhana e nos quais mesmo os malentendidos redundam produtivos.27___O paradigma holstico escolhido por Otvio em vriosde seus textos o Cristianismo28 tomado como pauta co-mum29 patrimnio comum30 narrativa de referncia31,que opera por princpio de incluso (e/e), (diferente do deexcluso ou/ou), mas que por isso mesmo, no deve sertomado numa nica e coerente viso autorizada, metropoli-tana de uma narrativa-mestra, mas como totalidade in-completa e narrativa em aberto.32 Narrativa composta porestrias que no seu conjunto produzem uma sensao deunidade, mesmo que entre si e na sua seqncia possam reve-lar indeterminaes e contradies. Anlogo ao Cristianismo,no caso de Otvio, trabalhei com o Comunismo, tambm comouma metanarrativa em aberto, comportando verses diver-sas num arranjo no-metropolitano. Comunismo enquantototalidade abrangente como pode ser evidenciado nesta fra-se de Semprn: O P[artido] C[omunista] (...) no s umpartido. tambm uma contracultura, uma micro-sociedade(...) um modelo reduzido de laboratrio social.33___Desta forma, ao contrrio do que querem fazer valercertos ncleos formadores de opinio pblica, a ao socialde grupos (religiosos e contestadores) no resulta numa po-sio sectria, de gueto, nem pelas controvrsias que causamna sociedade laica maior. Alis, se aplicarmos um olharotaviano sobre eles poderemos ver que sua presenadesinstitucionalizadora e des-reguladora, atravessando camposoutrora disciplinadamente compartimentados e normatiza-dos pela modernidade, como o teraputico, o educacional,

    Otvio VELHO, Antropologia e representao, p. 210, 218.Otvio VELHO, O cativeiro da Besta-Fera; ID., Antropologia e representao; ID.,Relativizando o relativismo; ID. A Antropologia da Religio em tempos de Globalizao; ID.,A Persistncia do Cristianismo e a dos Antroplogos.Otvio VELHO, A Antropologia da Religio em tempos de Globalizao, p. 5.Otvio VELHO, Antropologia e representao, p. 213.Otvio VELHO, A Antropologia da Religio em tempos de Globalizao, p. 7.Otvio VELHO, Antropologia e representao, p. 214.Jorge SEMPRN, Autobiografia de Federico Sanchez, p. 224-225.

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    o econmico e o cientfico, expressam muito do movimen-to da globalizao contemporneo. Nesse sentido possvelver tanto nas crenas e prticas dos agrupamentos newages, neo-orientalistas, neo-gnsticos e pentecostais, quantonas dos polticos outsiders da esquerda radical, libelus,Mr-oitos, pstus, sem-terra, ambos representantes deuma baixa cultura de senso comum prtico e militante,grandes linhas de continuidade (ainda que entremeadascom tenses, rupturas, etc.) e implicaes com o que problematizado nos fruns da alta cultura dos meios teo-lgicos e polticos.34 Ainda retenho (meio nebulosamente)na memria a percepo de Regina Novaes na argio daminha banca de Doutorado, nos idos de 1994, com sua ob-servao de que o MR8, agrupamento comunista com oqual fiz meu estudo de caso, prefigurava vrias das tendn-cias contemporneas, como: globalizao, comunicao demassa e mdia, fundamentalismo, corporalidade e aids.___Interessante, neste particular, ressaltar a empatia de Ot-vio, na contramo de tendncias acadmicas majoritrias,com movimentos como a nova era e o pentecostalismo.Os primeiros acusados de anarquia indesejvel mas recu-perados por Otvio como portadores de inveno positi-va35 e os segundos acusados de proselitismo conversionistae fundamentalismo mas percebidos por Otvio como por-tadores do discurso da semelhana 36 que vai ao encontrodos desejos dos nativos de continuidade e comunicaocom o meio cosmopolita e menos da dita preservao eautenticidade cultural.___Da mesma forma, tambm escolhi para estudo de casoum agrupamento de esquerda, o MR8, totalmente estigmati-zado tanto pela sociologia poltica quanto pela coberturajornalstica que forma opinio pblica. Como os new ages,promotor de combinaes as mais inusuais, por exemplo:

    Otvio VELHO, Antropologia e representao, p. 218.Ibid., p. 177.Otvio VELHO, A Antropologia da Religio em tempos de Globalizao; ID., A Persistnciado Cristianismo e a dos Antroplogos.

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    no MR-8, o rock e o pacifismo convivem com o stalinismona sua forma mais crua (JB 22/10/85) Ou, na resposta deCludio Campos, seu Secretrio Geral que em entrevista aoEstado de So Paulo, ao ser perguntado sobre quem seriamas principais figuras da humanidade, exps toda uma bricolage:se ombrear com Stlin ...contam-se nos dedos da mo ...Jesus Cristo, Marx, Lenin e Ghandi (ESP 07/06/83). E comoos pentecostais portador de um discurso messinicosalvacionista/conversionista, como o que se segue, estampa-do nas manchetes de seu orgo de divulgao, o Hora doPovo: Solidariedade total e irrestrita ao povo lbio Longavida ao irmo Kadafi (HP 172, 18/04 02/ 05/86); Irexige grande Sat fora do Golfo (HP n 263, 29/09/90).___Para Otvio, new ages e pentecostais englobados nacategoria novos movimentos religiosos no enobrecidos(...) e por isso mesmo capazes de (...) provocar antipatia sobmuitos aspectos, na verdade, do ponto de vista de umaanlise scio-antropolgica, teriam no s que comunicaralgo sobre si mas algo a nos dizer sobre ns mesmos.37Essa contribuio vem marcada mais por mal entendidosprodutivos38 do que por uma precisa localizao oucontextualizao sociolgica39 pois para Otvio, estepropalado locus social objetivo no possui a solidez supostanos manuais.40 Desta forma, aderir ao MR8, ao Santo Daime41ou Igreja Universal, no significa nem totalmente o aban-dono de um antigo ethos e sua substituio por outro novo enem somente a canibalizao da alteridade a servio da pers-pectiva nativa, mas, fundamentalmente, o mergulho numjogo intertextual, aberto42, em que pelo mecanismo

    Otvio VELHO, O que a Religio pode fazer pelas Cincias Sociais?, p. 12.Otvio VELHO, Antropologia e representao, p. 218.Ibid., p. 186.Otvio VELHO, Relativizando o relativismo, p. 176.Em um texto de minha autoria, Da alternativa para a sociedade a uma sociedade alternativa:o itinerrio de ex-militantes de esquerda para o Santo Daime busco estabelecer continuidadesentre o passado de ex-militantes comunistas que aderiram ao Santo Daime e o seupresente mstico-religiosoOtvio VELHO, A Antropologia da Religio em tempos de Globalizao, p. 7.

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    tateante dos mal entendidos e das pequenas diferenas esemelhanas em cadeia vo se gerando identidades poro-sas, emprstimos mtuos para usar conceitos de umamigo seu, Pierre Sanchis, tambm homenageado das Jorna-das anteriores43 que resultam em semelhanas sem se re-duzir em igualdade entremeadas de diferenciais que no che-gam a distines.___Por fim algumas palavras acerca do homem alm daobra: Otvio, como as tendncias societrias que estudou,tambm esteve comprometido em colocar pessoas em rela-o, no estilo das redes, e a formar comunidade, como jme reportei no incio da minha fala. Registro aqui, apenas ados seus orientandos da minha poca: Carlos Steil, LeilaAmaral, Clara Mafra, Emerson Giumbelli, Vital Pasquarelli,Amir Geiger, e nosso colega Luiz Gonzaga Piratininga, tocedo retirado do nosso convvio. No curso que ministreiesse semestre no Mestrado do Programa de Ps-Graduaoem Cincia da Religio em Juiz de Fora, intitulado O pensa-mento antropolgico de Otvio Velho sobre a religio na ltimasesso de nome depoimentos sobre convivncia acadmicacom o autor e sua influncia nos seus trabalhos tambmreuni em nome do mestre, os colegas docentes da UFJF:Octavio Bonet, Vitria Peres (que tambm surpreendente eprecocemente nos deixou...) que, embora no sendo seusorientandos seguiram vrios de seus cursos e travaram comele relaes pessoais, e Leila Amaral que proferiu um belodepoimento biogrfico-acadmico de sua relao com Ot-vio, que se encontra tambm publicado nesta revista.___Otvio, da mesma forma que os movimentos religiososque interpretou, que para ele exemplificam o esprito denossa poca, mantm na sua trajetria biogrfica o trnsito

    A homenagem ao antroplogo Pierre Sanchis a que me refiro se deu nas XIIJornadas sobre Alternativas Religiosas na Amrica Latina no Centro UniversitrioMaria Antnia (USP) de 16-19 de outubro de 2003 atravs da Mesa Sincretismo,cultura y identidad: (re)leyendo a Pierre Sanchis desde Argentina y Brasilcoordenada por Alejandro Frigerio e com participao de Ceclia Mariz, PabloSemn e La Freitas Perez.

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    Otvio VELHO, Is Religion a Way of Knowing?.44

    e a itinerncia da Nova Era,e o sentido pentecostal demisso: partindo do PCB, antropologia, ao luteranismo eao mundo inter-religioso e s ONGs. O tom militante naparticipao na FASE, ISER, e na assessoria ao WCC, e osencontros cmplices (como ele mesmo alcunhou) nos se-minrios do IBRADES com aqueles que possuemenvolvimento com a questo da religio.___Agora estamos todos curiosos sobre que volta do para-fuso vir depois dessa retirada sua da docncia institucional?Do Otvio dos estudos agrrios, que no conheci, ao Ot-vio dos estudos da religio que influenciou at a minhaescolha acadmica profissional, para o que parecia ser oltimo Otvio dos estudos sobre emoes, estados altera-dos de conscincia, ecologia. Mas que retoma o tema dareligio articulando-o aos seus novos interesses em Is religiona way of knowing?.44 Em suma, no h como capturar numesquema tipolgico, esta obra tambm aberta, sujeita anovas adies, muito pela erudio de suas mltiplasinterlocues com a filosofia, teologia, psicanlise e comautores de ponta destes conhecimentos. O que se pode afir-mar que cada texto surgido nesta trajetria ele mesmouma expresso deste nosso esprito de poca.

    BibliografiaBibliografiaBibliografiaBibliografiaBibliografia

    AARO REIS FILHO, Daniel. A Revoluo faltou ao encontro.___Os comunistas no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1990.BAUDRILLARD, Jean. Partidos Comunistas: os parasos artificiais___da poltica. Rio de Janeiro, Rocco, 1985.CAMURA, Marcelo Ayres. A concepo de Histria na___Cultura Comunista. Srie Estudos, n. 86, IUPERJ, 1991._____. Da alternativa para a sociedade a uma sociedade___alternativa: o itinerrio de ex-militantes de esquerda para___o Santo Daime. Atualidade em Debate, caderno 1, Centro___Joo XXIII, 1990.

  • 80 Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 9, n. 2, p. 69-80

    Marcelo Ayres Camura

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