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Sumário1 Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
2 Hibridismo Estético e Arte Eletrônica: formas de
registro e novas corporalidades nas artes visuais. . 10
3 Técno-Imagens: hibridismo estético. . . . . . . . . . 33
4 Automatização, Reprodução e Imagens. . . . . . . . 47
5 Quase-Cinema: cinema, bitola e conceito. . . . . . . 58
6 Videoinstalação: um começo. . . . . . . . . . . . . . 70
7 Sobre Desenhos e Ilusões. . . . . . . . . . . . . . . 81
8 A(R)Tivismo Indigenista no Brasil. . . . . . . . . . . 91
9 Uma Carroça Sonora e uma Bicicleta Sonora, a De-
riva como Dispositivo para Poéticas na Cidade. . . . 107
10 Arte Emergente: sistema arte e complexidade. . . . 130
11 Realidade Virtual: ambientes imersivos. . . . . . . . 157
12 Autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166
1 Apresentação
7
Tecno-Imagens e Arte Contemporânea Brasileira: diálogostransdisciplinares.
Regilene A. Sarzi-Ribeiro
Judivan José Lopes
Neste e-book vamos conhecer os trabalhos de pesquisas
e breves estudos, apresentados no formato de pequenos textos co-
mumente denominados papers e ou ensaios e artigos, realizados
pelos discentes participantes da disciplina “As Técno-imagens na
História da Arte Contemporânea Brasileira: Diálogos Transdisci-
plinares”, oferecida pela Profa. Dra. Regilene Ap. Sarzi-Ribeiro,
no 1o. Semestre de 2017, junto ao Programa de Pós-graduação
em Artes do Instituto de Artes da UNESP, campus São Paulo.
Os textos aqui reunidos dialogam cada um à sua ma-
neira com os objetivos da disciplina, que foram: conceituar as
matrizes e os paradigmas da produção imagética e suas conexões
com hibridismo estético e cultural no contexto brasileiro; exa-
minar a produção artística contemporânea brasileira no campo
das técno-imagens, suas origens e desdobramentos, a partir de
8
estudos que articulem aspectos históricos, sociológicos e filo-
sóficos; analisar artistas, obras e exposições que se apropriam
de dispositivos, aparelhos e operações poéticas de produção e
exibição de imagens técnicas e finalmente, mas não menos impor-
tante, aplicar a Transdisciplinaridade – Teoria da Complexidade
e Abordagem Sistêmica – como método de pesquisa e leitura da
arte na contemporaneidade.
Neste sentido, nos sentimos satisfeitos em organizar o
material, em colaboração e vê-los publicados, corroborando os
resultados dos nossos encontros nas segundas-feiras à tarde no
Instituto de Arte da UNESP, quando mesmo diante da necessi-
dade de um cafezinho, ali pelas três horas da tarde, nossas trocas
e compartilhamentos se estendiam até a cantina do IA.
Considerando que foram encontros, longos, porém pra-
zerosos, teóricos reflexivos, sobre os aspectos da materialidade e
a técnica que dar forma e significados as manifestações artísticas
de imagens contemporânea. Um trabalho de grande engajamento
que aqui fica registrado representativamente.
Agradecemos aos parceiros dessa jornada de descober-
tas de novas conexões entre a arte e as técno-imagens e colegas
autores nesta publicação – Judivan José Lopes, Luis Alberto de
Souza, Miguel Alonso A. Carvalho, Yardena do Baixo Sherry,
Natalie M. M. Ramirez, Elisângela de Freitas Mathias, Luis Ro-
berto A. Quesada, Mirian Steinberg, Vanessa P. do Nascimento.
Registro nossos agradecimentos especiais à Rosangella
9
Leote, que aceitou prefaciar nosso e-book, com a mesma ênfase
trazemos a tona o incentivo que tem dado a essa produção, ideia
que nasceu quando então, ela figurava a posição de coordenadora
do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes-
Unesp.
Assim, com grande alegria, apresentamos nossa pro-
dução em processo, cujas pesquisas em redes certamente se
encontram abertas a novas conexões entre campos, áreas e novos
conhecimentos, como nos propõe a transdisciplinaridade.
Boa leitura!!!
2 Hibridismo Estético e
Arte Eletrônica: formas
de registro e novas cor-
poralidades nas artes vi-
suais.
Regilene A. Sarzi-Ribeiro
11
Hibridismo Estético e Arte Eletrônica: formas de registro enovas corporalidades nas artes visuais.
Regilene A. Sarzi-Ribeiro
Foi a partir desta pesquisa que tudo começou. Foi a par-
tir desta pesquisa que elaborei a disciplina “As Técno-imagens na
História da Arte Contemporânea Brasileira: Diálogos Transdisci-
plinares”, oferecida no Programa de Pós-Graduação em Artes do
IA, UNESP, em São Paulo, primeiro semestre do ano de 2017.
Neste contexto, este ensaio compõe parte do projeto
de pesquisa intitulado “Hibridismo Estético e Arte Eletrônica:
Formas de Registro e Corporalidades nas Artes Visuais”, que
submetemos para credenciamento como professor colaborador,
junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de
Artes da UNESP, São Paulo. No estudo buscamos articular, na
Linha de Pesquisa “Abordagens Teóricas, Históricas e Cultu-
rais da Arte”, o conhecimento entre as áreas de Artes Visuais,
Filosofia Estética Contemporânea, Sociologia e Medicina e a
História das Técno-Imagens, para abarcar a complexidade das
relações entre a História da Arte, a Ciência e a Tecnologia. A
12
proposta é uma Pesquisa sobre Artes Visuais, com foco na Arte
Contemporânea (nacional e internacional), tendo como método
a Transdisciplinaridade.
A fundamentação teórica é pautada no referencial filo-
sófico e sociológico, histórico e contextual dentro da abordagem
Transdisciplinar, visando aproximar conceitualmente e confron-
tar o pensamento e os desenvolvimentos teóricos de Barbara
Stafford (1992); Olga Pombo (2010; 2012); Diana Domingues
(1997; 2009); André Parente (1999); Vilém Flusser (2008; 2011);
Philip Dubois (2004); Pierre Levy (1996); Oliver Grau (2007);
Lucia Santaella (2003; 2004) e Arlindo Machado (1997; 2001;
2007), Fritjof Capra (2011), Nicolescu Basarab (1999) e Edgar
Morin (1999 e 2015).
As autoras Stafford, Pombo e Santaella discutem as
relações entre arte e ciência, imagens biomédicas e artísticas.
Domingues e Santaella tratam do corpo nas novas tecnologias.
Parente, Dubois, Machado e Santaella versam sobre a linguagem
videográfica. Deleuze e Foucault aprofundam as relações de
poder e experiências do corpo. Os autores Flusser, Lévy, Grau
e Santaella contribuem para a discussão sobre a experiência
humana com as máquinas, arte virtual, arte interativa e as técno-
imagens.
No livro Body Criticism (1992), Stafford analisa a per-
sistência de um notável conjunto de metáforas corporais decor-
rentes de práticas estéticas e médicas. Para a autora, as formas de
representação do corpo são metáforas dos processos cognitivos
13
vivenciados em sociedade, e o trabalho do pesquisador consiste
em reconstruir estas metáforas para tornar compreensível a ne-
cessidade humana de representar o corpo tanto na arte quanto na
ciência.
Sobre o hibridismo estético entre as linguagens do ví-
deo e as novas tecnologias, Lucia Santaella (Culturas e artes
pós-humano: da Cultura das mídias à cibercultura e Corpo
e comunicação: sintoma da cultura) apresenta artistas pionei-
ros nesta produção como Dennis Opemheimer (1970) e Mona
Hatoum (1994). Diana Domingues (A Arte no Século XXI: a
Humanização das Tecnologias) reúne artistas estrangeiros que
usam imagens de diagnóstico médico em suas videoinstalações.
Para discussão dos conceitos filosóficos estéticos im-
plicados na experiência humana com as máquinas e as novas
tecnologias, selecionamos para um confronto o pensamento de
Pierre Levy, Vilém Flusser e Oliver Grau. De um lado o filó-
sofo existencialista Vilém Flusser (Filosofia da Caixa Preta e
O universo das imagens técnicas) e o de outro, o filósofo das
mídias, o francês Pierre Levy (O que é Virtual?). Ambos travam
um diálogo crítico e reflexivo com aspectos culturais e históricos
que cercam a experiência do homem com a realidade e as coisas
do mundo e as diferentes configurações sociais no âmbito da
tecnologia, como as imagens tecnocientíficas (Flusser) e o virtual
e a cibercultura (Lévy).
A partir de Flusser, pretendemos traçar as bases dos
efeitos socioambientais, sobretudo na cultura, gerados pela pro-
14
liferação das técno-imagens, que segundo o filósofo resultam
do programa civilizatório. Flusser (2008) defende que nas artes
os homens conseguem se libertar do poder das técno-imagens e
empreender a experiência da estética pura. Pierre Levy (1996) se
debruça sobre a problemática das mudanças dinâmicas e radicais
da sociedade, decorrentes das novas tecnologias e trata de temas
atuais como a cibernética, a conectividade, a interatividade e o
ciberespaço. O alemão Oliver Grau, em Arte Virtual: da ilusão
à imersão (2007) defende a virtualidade como sendo resultado
da relação essencial dos homens com as imagens e descreve
como essa relação se evidencia tanto nos meios antigos quanto
nos novos pela convergência e desejo de ilusão. Grau (2007)
reconstrói a história da arte como historia das mídias e incorpora
a percepção física e psicológica ao paradigma da virtualidade,
manifestada como experiência sensorial do observador.
Para abordagem transdisciplinaridade, tomaremos como
base os autores Edgar Morin (1999, 2001), Cornelius Castoriadis
(1999) e Basarab Nicolescu (1999), referências na abordagem
do pensamento complexo. Morin é uma das figuras centrais
do pensamento transdisciplinar como em A Cabeça Bem-feita:
repensar a reforma, reformar o pensamento (2001). No livro
Complexidade e transdisciplinaridade - A reforma da universi-
dade e do ensino (1999), Morin destaca os desafios da reforma
da Universidade, a necessidade do pensamento do contexto e do
complexo, de atitudes questionadoras e reflexivas que articulem
e atravessem as disciplinas.
15
Cabe ressaltar que um estudo transdisciplinar como
este que iremos realizar, pressupõe um olhar para a comple-
xidade das áreas envolvidas a fim de atravessar os campos de
conhecimento e tecer novos nexos entre eles, por meio de um
pensamento complexo (MORIN, 2015) como propõem Edgar
Morin (1999), Nicolescu Basarab (1999) e Fritjof Capra (2011),
entre outros. Neste contexto, destacamos a teoria sistêmica ou a
ecologia dos sistemas como base para refletir sobre a estrutura
em rede, que organiza as relações entre os artistas, os aparelhos
de registro do corpo e suas imagens técnicas. O físico-teórico
austríaco Fritjof Capra assegura que “[...] a ideia central dessa
concepção sistêmica e unificada da vida é a de que o seu padrão
básico de organização é a rede [...]”, e completa “[...] em todos os
níveis de vida, desde as redes metabólicas das células até as teias
alimentares dos ecossistemas e as redes de comunicações da so-
ciedade, a cultura e as artes, os componentes vivos se interligam
sob a forma de rede” (CAPRA, 2011, p.267).
No que diz respeito ao sujeito e os processos de ima-
ginação e reflexão interessam os desenvolvimentos teóricos de
Castoriadis em Feito a ser feito, (1999). O autor discute o social
histórico, a criação e a relação entre as formas novas e antigas
do conhecimento, articulados à metodologia transdisciplinar e à
filosofia da emancipação, a partir de uma nova postura criativa e
disposição para o novo. Nicolescu, em O Manifesto da Transdis-
ciplinaridade (1999), apresenta um panorama da física quântica,
da decadência do cientificismo, da ciência contemporânea até a
complexidade e a transdisciplinaridade.
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A metodologia da pesquisa se apoiará nos instrumen-
tos de análises estéticas, comparativas e leitura iconográfica com
vistas ao estudo da mediação, produção e recepção do objeto
artístico. Os procedimentos metodológicos serão levantamento
bibliográfico, coleta de dados iconográficos e videográficos, in-
terpretação dos documentos a partir de textos e ensaios de teor
histórico-crítico. As análises serão pautadas por referenciais
histórico-críticos, filosóficos e sociológicos apresentados anterior-
mente na fundamentação teórica, cujos autores discutem as ques-
tões existenciais; experimentais (tempo, espaço e materialidade)
e as transformações estéticas, sociais, políticas e culturais que
envolvem os processos de hibridização entre as técno-imagens:
fotografia, cinema, vídeo, cibernética, redes, arte eletrônica e arte
virtual.
A Arte Contemporânea tem alimentado cada vez mais
as videoinstalações, videoartes e espaços interativos com apro-
priações de imagens fotográficas e videográficas produzidas por
diagnósticos médicos. Estas imagens, ou formas de registro
do corpo, exploram a exposição interna e externa de órgãos e
membros e foram qualificadas por Santaella (2004) como corpo
esquadrinhado, corpo ao avesso.
A especificidade de sons e imagens e a experiência
visual, cognitiva e sensível, que promovem são agentes de expe-
riências estéticas do corpo na contemporaneidade. Essa experi-
ência participa estruturalmente da constituição do sujeito e altera
paulatinamente sua percepção, fruição e interação.
17
Os diferentes níveis de interação na estética digital e as
novas tecnologias da imagem levam o sujeito à experiência da
virtualização e esta reitera a experiência do corpo fragmentário,
em fluxo, em constante devir. Tempo, espaço e materialidade
são alterados e experiências estéticas novas são mediadas pelos
meios eletrônicos. As técno-imagens ampliam as representações
do corpo em fragmentos cuja autonomia acabou gerando um
estilo no tratamento do corpo na modernidade (SARZI-RIBEIRO,
2007).
As relações entre a representação e as formas de regis-
tro (desenho, gravura, fotografia, vídeo) do corpo se acentuam
com as transformações conceituais e tecnológicas desencadeadas
na passagem do século XVIII para o XIX. As representações
do corpo ganharam notoriedade no século XX com o advento
da imagem fotográfica, sobretudo as que surgiram a partir de
imagens da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Imagens que
mostram os mais de dez milhões de corpos destruídos, mutilados
e traumatizados, cujos registros perpetuaram a prática de frag-
mentação e a visualidade moderna, levando-nos a experiência
do corpo por meio da virtualização, como nas videoinstalações
(SARZI-RIBEIRO, 2014).
Num salto no tempo voltamos aos desenhos anatômi-
cos do renascentista italiano Leonardo da Vinci (1452-1519).
Suas imagens são registros do corpo ao avesso que o artista-
cientista italiano soube explorar como poucos em seus estudos de
anatomia. Muito antes da internet, dos raios-X ou das tomogra-
18
fias computadorizadas, do cinema ou da fotografia, Leonardo da
Vinci utilizou o desenho para conhecer e desbravar o funciona-
mento interno do corpo humano, associando o seu conhecimento
sobre a Matemática para elaborar suas teorias sobre a máquina
humana (SILVA, 2013).
Os desenhos de Leonardo baseados em estudos internos
e anatômicos do corpo (figura 01), feitos por meio da dissecação
de cadáveres, transformaram a ciência e suas ilustrações científi-
cas foram utilizadas pela medicina, embora tenham permanecido
durante muito tempo desconhecidas no campo das artes visuais.
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Figura 1 – Mulher (1506). Leonardo da Vinci.Da série Estudos de Anatomia. Sépia.
Fonte: Galeria Academia, Veneza, Itália.
20
Figura 2 – Sem Título (1997/2000). Claudio Mubarac.Fotografia e água-forte, 29 x 28 cm. Da suíte Sobre as Câmaras.
Fonte: Catálogo da Exposição “Objetos Frágeis: a gráfica de ClaudioMubarac”, 2006.
Depois da primeira metade do século XIX, a fotografia
passou a revelar coisas que o olhar humano, mais lento e menos
preciso, não conseguia captar e que a partir do registro fotográfico
podem ser vistas pela percepção detalhada das imagens.
As relações entre a percepção visual e o corpo represen-
tado por fragmentos podem ser encontradas em diferentes épocas
e artistas: do pintor francês Théodore Géricault (1791-1824) ao
anglo-irlandês Francis Bacon (1909-1992), da artista plástica bra-
sileira Adriana Varejão ao gravador brasileiro Claudio Mubarac.
21
Na Suíte Sobre as Câmeras (figura 02), Mubarac se apropriou
dos raios-X de seu corpo e por meio da fotogravura integrou as
radiografias às imagens gráficas.
A partir dos anos 1960, os artistas conceituais descobri-
ram o corpo e as instalações artísticas, mas também a fotografia,
o filme e o vídeo. A experiência acumulada com as formas de re-
gistro de imagens no campo da comunicação fez com que ações,
performances e intervenções urbanas passassem a ser registradas
de maneira frequente em fotografias, filmes e vídeos. Surgem as
videoinstalações e a arte eletrônica.
Entre as décadas de 1970 e 1980, o suporte passou a ser
questionado como lugar de memória e autoridade para dar espaço
à arte como prática do tempo: arquivar, diferenciar, serializar,
intermediar, transferir, reproduzir, se tornam operações organiza-
das por um regime visual fotocinematográfico. A arte no século
XX se tornou fotográfica. Registrar, arquivar e reproduzir ou
serializar se tornaram ações poéticas que operam os novos meios
e suportes. O arquivo fotocinematográfico atua nos intervalos
entre a obra e a sua extensão temporal (COSTA, 2009).
As inovações tecnológicas contribuem paulatinamente
para as transformações corpóreas em situações e manifestações
hibridizadas. No campo da Arte e da Comunicação surgem di-
ferentes abordagens conceituais, teóricas e metodológicas sobre
o corpo na atualidade e nos conduzem a reflexões sobre as ten-
sões e as dinâmicas que envolvem as condições de adaptação e
estratégias discursivas da Arte e da Ciência.
22
A transversalidade da relação “corpo, arte e tecnolo-
gia” nos remete às reconfigurações de dispositivos (visuais e
audiovisuais) e operações ou procedimentos como apropriação,
hibridização, registro, mediação, construção de sentido e inte-
ração presentes nas diferentes visibilidades do corpo (SARZI-
RIBEIRO, 2012).
No universo da Arte, da Ciência e da Comunicação os
procedimentos de mediação do corpo demandam novas configu-
rações de uma identidade real, virtual e ou digital cada vez mais
proeminente na cultura e no campo da representação, efêmera,
inacabada, parcial e provisória. Neste contexto, o corpo dialoga
com a tecnologia para além de um entremeio, um entre-lugar
(SEMINÁRIO CORPO e TECNOLOGIA, 2003).
De igual forma, o processo de virtualização decorre
da interação do homem com as novas tecnologias e conforme
Levy (1996, p. 33): “[...] o corpo sai de si mesmo, adquire
novas velocidades, conquista novos espaços. Verte-se no exterior
e reverte a exterioridade técnica ou a alteridade biológica em
subjetividade concreta. Ao se virtualizar, o corpo se multiplica”.
Sobre as imagens biomédicas, ressalta Ortega:
O corpo virtual é um ícone da culturado espetáculo, na qual a imagem atingeuma materialidade singular que com-pete pelo estatuto de realidade com amaterialidade do corpo físico. A essemodelo se opõe nossa experiência en-carnada do corpo físico unificado, comosujeito de ação no mundo, que implica
23
o conjunto dos sentidos e que escapana mera apreensão visual e objetivanteda mídia e das tecnologias de image-amento. Portanto, a corporificação ima-terial das tecnologias biomédicas é umapseudocorporificação, na qual o quese perde é a substância, o corpo (OR-TEGA, 2005, p. 237).
As novas técnicas de registro e geração de imagens
médicas e exames não invasivos como a videolaparoscopia, co-
loscopia, ultrassom e endoscopia exibem imagens nunca antes
vistas e alteram significativamente as formas de percepção do
corpo. Em 1969, o artista norte-americano Robert Rauschen-
berg (1925-2008) se apropriou de imagens médicas e raios X
de seu próprio corpo para criar a litografia Booster (figura 03).
Monteiro (2007) descreve como o artista norte-americano Robert
Rauschenberg (1925-2008), em 1969, se apropriou de imagens
biomédicas na sua obra.
[...] uma enorme litografia - Booster -com imagens de raios X de seu próprioesqueleto. O artista recorta a imagemde raios-X em cinco pedaços para com-por o centro da litografia [...] aproveitando-se não tão-somente de imagens radio-gráficas, mas, sobretudo, de imagensdigitalizadas, presentes no contexto mé-dico já a partir dos anos 60 com a uniãoentre o computador e a tecnologia dosraios X. (MONTEIRO, 2007, p. 02)
24
Figura 3 – Booster (1969). Robert Rauschenberg. Da série Boosterem 07 estudos. Litografia e silkscreen. 183.4 x 90.9cm.Fonte: MOMA, NY.
25
Figura 4 – Stills de raios-x do Estômago (1970). Dennis Oppeheim.Fotografia e texto sobre papelão. 27.7x22cm. Fonte: SiteDennis Oppeheim.
Em 1970, o artista norte-americano Dennis Oppemheim
(1938-2011) exibiu grandes fotos de raios-X de seu estômago na
série Stills de raios-x do Estômago (figura 04) com os recursos da
época. Oppenheim foi um artista conceitual que explorou diferen-
tes linguagens e a fusão entre elas a partir de um hibridismo como
entre esculturas e fotografias, performances e esculturas. Foi um
dos criadores da Land Art e da videoperfomance. No começo
26
da década de 1970 ele já explorava filmes e vídeos para registrar
suas performances nas quais o seu próprio corpo era apropriado
como lugar (locus) para ações que desafiavam e transformavam
o corpo. Muitas de suas performances visavam à comunicação
por meio de situações ritualísticas que envolviam interatividade
e risco pessoal e os registros em fotografia e vídeo.
Figura 5 – Vitruvian Man (Re). Eric Fong. Da Série Corpus Interna(1998). Imagens de exame médicos e multimídias (detalhe).75x75x8.Fonte: The Main Gallery, NY.
27
Vinte anos depois, na década de 1990 as videoinstala-
ções continuam se apropriando das imagens biomédicas, como
nas instalações da brasileira Mônica Mansur, na obra Corps
Étranger (1994) da palestina Mona Hatoum e ou nas obras das sé-
ries Corpus Interna (1998), Da Vinci Séries II (1997) e Self/Data
Body (1998) do americano Eric Fong (figura 05).
Figura 6 – Tomós (1996). Mônica Mansur. Série Estrutura da Ob-sessão impressão sobre acetato) 20 tiras de 45x200cm.Portfólio, Site Mônica Mansur
28
A artista Mônica Mansur fotografou as imagens dos
seus exames médicos e diminui a luz, distorceu, ampliou e alterou
a imagem. Em 1996, ela se apropriou das imagens médicas e
imprimiu-as em acetato para a instalação Tomós (figura 06), e
depois se apropriou da linguagem do vídeo para criar uma [...]
instalação com imagens em movimento do interior de estômagos
e cólons humanos (MONTEIRO, 2007, p.04).
Tais imagens apropriadas e operadas esteticamente são
elementos essenciais para a configuração de obras artísticas na
contemporaneidade que se apropriam do alto índice de exposição
do corpo real, sensível, frágil, fragmentário, imperfeito e sua
condição biológica, como poética.
A apropriação que os artistas fazem das imagens bio-
médicas e tecnocientíficas para fins poéticos é resultado de uma
necessidade secular de presentificar, tornar visível e humani-
zar o corpo em sua fragilidade, multiplicado e, agora, visto por
dentro, ao avesso. O que apresentamos nesta breve introdução
fortalecem nossas inquietações sobre o corpo, um signo que so-
breviveu à crise da representação exatamente porque passou a ser
presentificado por um corpo virtual.
Dessa forma, defendemos que as técno-imagens são
signos visuais que participam da construção do imaginário corpo-
ral, humanizando a percepção visual criadora para a sua condição
biológica, real e sensível frente à constante espetacularização
visual e idealização no campo social, político e econômico. Para
Santaella, o escancaramento interno perturba a imagem que se
29
tem do corpo como aparência e as projeções de nossas fantasias:
Imagens de diagnóstico são insuporta-velmente indiciais. Órgãos, tecidos, bu-racos e reentrâncias, pedaços do corposão expostos, postos a nu. [...] Diantede tanto real, não há imaginário que re-sista. Suprema ironia, pois nada podeser mais erótico do que as cavidades,lábios, sulcos, fendas e curvas para den-tro do corpo (SANTAELLA, 2003, p.288).
Este corpo interessa, particularmente, pois as imagens
de diagnósticos médicos têm se apresentado como fonte poética
para a linguagem das videoinstalações. E, ainda, porque per-
guntamos: se as imagens de raios-x, scanners, ressonâncias e
câmeras virtualizam o corpo e possibilitam a reconstrução de
órgãos internos, expondo o interior que permanece dentro, como
ficam as relações entre corpo-visível e o corpo-sensível?
Para responder à questão, defendemos a hipótese de
que as tecnologias responsáveis pela virtualização como o scan-
ner, o vídeo e o computador apropriadas por linguagens artísticas
humanizam e sensibilizam novas corporalidades e são potencial-
mente fontes geradoras de novas experiências estéticas e poéticas.
Neste contexto, as técno-imagens mediam a virtua-
lização, tornam híbridas as linguagens artísticas e promovem
experiências estéticas atemporais. Entretanto, muitos aspectos da
mediação, criação e recepção na estética digital se encontram em
aberto, aguardando que novas Pesquisas em Artes Visuais, como
30
esta que propomos realizar em diálogo com a Arte Contemporâ-
nea Brasileira para aprofundar suas implicações no campo das
Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais da Arte, tendo como
método a Transdisciplinaridade.
Referências:
CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. 7a. ed. São Paulo:Cultrix, 2011.
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COSTA, Luiz Cláudio da (org.). Dispositivos de registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro:Contra Capa, 2009.
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FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. SãoPaulo: Annablume, 2011.
FLUSSER, Vilém. O Universo das Imagens Técnicas. Elogio da Superficialidade. São Paulo:Annablume, 2008.
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LEVY, Pierre. O que é o Virtual. São Paulo: Ed. 34. 1996.
MACHADO, Arlindo. A Arte do Vídeo. São Paulo: Brasiliense, 1997.
MACHADO, Arlindo. Made in Brasil. Três décadas do Vídeo Brasileiro. São Paulo: Iluminuras,2007.
31
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STAFFORD, Barbara. M. Body Criticism. Imaging the Unseen in Enlightenment Art and Medicine.Cambridge: MIT, 1992.
3 Técno-Imagens: hibri-
dismo estético.
Luis Alberto Souza
34
Técno-Imagens: hibridismo estético.
Luis Alberto Souza
Durante os seis encontros realizados no primeiro semes-
tre de 2017, no Instituto de Artes da UNESP/SP, pude ampliar um
pouco a ideia da arte e suas interfaces tecnológicas. Pois, foram
aulas/encontros em que foi possível transitar por uma diversidade
de temas e enfoques da arte contemporânea, trazendo sempre
reflexões tanto de ordem técnica, quanto de ordem política, esté-
tica e filosófica, caminhando por assuntos que perpassavam as
relações do cinema com a fotografia e o vídeo.
A relação dessas linguagens com os ambientes imer-
sivos da realidade virtual e os hibridismos que vão se acentuar
na segunda metade do século XX, culminando numa profusão
de experiências das mais diversas naturezas no campo das artes,
que agora já não mais se encontram compartimentadas nos seus
conceitos estanques dessa ou daquela linguagem.
A percepção de uma nova realidade surgida a partir do
século XX e que tem como uma das principais características,
a inserção da tecnologia em todos os âmbitos da vida social,
35
contribuiu para o desencadeamento de profundas mudanças na
forma como o ser humano se relaciona com a mundo. A esse
conjunto de transformações empregou-se o termo “globalização”
para designá-lo, considerando a abrangência e dimensões assumi-
das por esse processo, até então inalcançadas no desenvolvimento
das sociedades humanas.
Essa concepção de globalização, tem como fonte o pen-
samento de Fritjof Capra (2002), o qual identifica que a partir da
criação, em meados da década de 1990 da Organização Mundial
do Livre Comércio houve a disseminação, por setores majoritá-
rios da economia mundial, do discurso de que essa globalização,
construída sobre os pilares marcadamente orientados por interes-
ses econômicos, representaria uma nova ordem, cujos benefícios
seriam igualmente usufruídos por todas as nações e atingiria a
todas às pessoas, garantindo assim o desenvolvimento de um
mundo com melhores condições de vida.
Essa perspectiva, no entanto, tem se mostrado profun-
damente contraditória. Pois, ao centrar o foco principalmente no
campo econômico e nas novas formas de transação comercial, as
questões sociais foram relegadas a segundo plano, o que motiva
o apontamento crítico realizado por diversos grupos ativistas.
Dentre esses pontos podemos situar o aumento da pobreza, as
agressões ao meio ambiente, a submissão da democracia, ali-
enação e o aumento de doenças endêmicas. A identificação
desses fatores no cenário mundial tornou-se uma importante ta-
refa, capaz de possibilitar a compreensão das raízes sistêmicas da
36
contemporaneidade, assim como o papel das novas tecnologias
aliadas à expansão das grandes empresas.
Primeiramente, de acordo com Capra (2002) a partir da
desintegração do bloco comunista soviético, na década de 1980 e
a elevação do capitalismo à condição de hegemonia, houve uma
reorganização do mundo de acordo com um conjunto de regras
econômicas, comuns em escala mundial.
Em segundo lugar, Capra (2002) atribui à Revolução In-
formática contribuições para que houvesse a elaboração da noção
de sociedade global sustentada, sobretudo, pelos avanços de três
áreas fundamentais da eletrônica: a microeletrônica, as teleco-
municações e os computadores. Esses fatores inter-relacionados
operaram uma nova reconfiguração de tempo/espaço, permitindo
a interconexão de milhões de pessoas a partir de uma rede global
de comunicação e moldando novas maneiras de relacionamento
com a realidade. Essa nova sociedade reformulada a partir da
Segunda Guerra Mundial, possui como suas principais caracte-
rísticas o fato de que suas atividades econômicas são globais;
suas principais fontes de produtividade e competitividade são
a inovação, a geração de conhecimento e o processamento de
informações; e ele se estrutura principalmente em torno de redes
de fluxos financeiros. (CAPRA, 2002, p.135).
Importante ressaltar também, que a todos esses fatores
citados podemos acrescentar que, visivelmente, foi promovido
um maior estreitamento entre culturas, compreendendo também
que muitas vezes esses processos não ocorrem de maneira igua-
37
litária, sendo mediados por relações assimétricas de poder, o
que contribui para a exclusão e apropriação cultural. Esse des-
locamento realizado entre diferentes culturas, também pode ser
compreendido a partir do que Nestor Canclini (1997) denomina
como desterritorializar. Ou seja, atribui um significado de perda
da relação “natural” da cultura com territórios geográficos e so-
ciais, provocando re-localizações da nova produção simbólica e
o redimensionamento da relação entre o nacional e o popular, o
que é reforçado por processos migratórios e de valorização de
uma visão de cultura experimental, multifocal e tolerante. Essa
re-elaboração possibilitou a construção de novos sentidos em co-
nexões com as práticas sociais e econômicas, travando disputas
pelo poder local e alianças com poderes externos.
Assim, é inegável que a constatação de que as expres-
sões culturais também são afetadas e transformadas pelos novos
sistemas eletrônicos de comunicação que a exemplo podemos
citar a criação de hipertextos, onde há combinação de sons, ima-
gens e palavras (escritas e faladas), o poder e força da comu-
nicação audiovisual (propaganda), o campo de convivência e
embate do binômio comunicação de massa versus conteúdo li-
mitado direcionado, principalmente, a um determinado público
identificado em mercados regionais, tem não só criado valores
e comportamentos, como têm sustentado a própria percepção
da realidade. Essa atuação direta dos meios de comunicação
em todas as esferas da vida pública e privada tem contribuído
também para realizar em muitos casos, uma indistinção acerca
do que é real.
38
Nas teias e emaranhados que desenham as improváveis
cartografias rizomáticas da pós-modernidade, Zygmunt Baumam
(2000) adota o termo “Sociedade da modernidade fluida” ou”
Modernidade líquida” para designar uma série de transformações
que se distingue de um período caracterizado como modernidade
pesada/sólida e aponta duas características dessa nossa nova e
diferente situação.
A primeira que diz respeito ao fim de certezas alimen-
tadas quanto a um futuro em que a perfeição, o equilíbrio e a
satisfação das nossas crenças e necessidades se fariam de maneira
a atender um curso de estabilização. E a segunda, refere-se ao
deslocamento da ideia de sociedade regulamentadora para uma
lógica de auto-afirmação do indivíduo, traduzido como aperfeiço-
amento e que expressa pelo pensamento de que “A sociedade mo-
derna existe em sua atividade incessante de “individualização”,
assim como as atividades dos indivíduos consiste na reformula-
ção e renegociação diárias da rede de entrelaçamentos chamada
“sociedade”. Portanto, cabe ao indivíduo a tarefa de transformar
a identidade humana, assim como assumir a responsabilidade e
consequências dessa ação.
No campo Cultural o termo “Culturas híbridas” para
Canclini (1997) o pós-modernismo é a co-presença tumultuada
de todos os estilos, a descontinuidade e lhe empresta uma abor-
dagem com forte carga política a partir de reflexões realizadas no
encontro da cultura indígena e a cultura de elite, considerando
nesse caso, a possibilidade de renovação da cultura e a produção
39
de novos sentidos, sendo em alguns casos apontados por alguns
autores a necessidade de cuidado em relação a esse otimismo,
observando que se adotado por uma intenção estritamente capita-
lista, poderá a vir a ser tornar um instrumento de dominação. Para
Peter Burke (2003), entretanto, “Hibridismo cultural” implica
em interações de alta complexidade, que apontam para infinitas
possibilidades e extensões e o se associa à ideia de ação humana
inconsciente.
O termo hibridismo na contemporaneidade é uma res-significação de um termo adotado do campo da biologia e daquímica para designar misturas entre espécies ou elementos quí-micos diferentes. Hoje ele é utilizado no universo cultural comosinônimo de ação consciente, disseminado para diversas áreasdo conhecimento humano, inclusive em arte, ressaltando a suadimensão tanto política quanto estética, ou seja, tanto no quese refere ao modo de agir, como ao modo de construir objetosculturais, conforme destaca Lúcia Santaella (2003):
São muitas as razões para esse fenô-meno da hibridização, entre os quaisdevem estar incluídas as misturas demateriais, suportes, e meios, disponí-veis aos artistas e propiciadas pela so-breposição crescente e sincronizaçãoconsequente das culturas artesanal, industrial-mecânica, industrial-eletrônica e telein-formática. (SANTAELLA, 2003, p.135).
Ao sugerir intencionalidades de contestação e provoca-
ção às normas culturais pré-estabelecidas, extrapolando limites e
transgredindo normas, Santaella (2003) elege para a discussão
40
a questão das hibridizações em três campos significativos, que
resumidamente podem ser colocadas da seguinte forma:
Primeiro: Misturas no âmbito externodas imagens, interinfluências, acasala-mentos passagens entre imagens arte-sanais (cinema e vídeo) e infográficas.Segundo paisagens sígnicas das instala-ções e ambientes que colocam objetos,imagens artesanais bi e tridimensionais,fotos, filmes, vídeos, imagens infográ-ficas e ciberambientes numa arquite-tura capaz de instalar novas ordens desensibilidade. Terceiro: as misturasde meios tecnológicos presididos pelainformática e teleinformática que, gra-ças à convergência das mídias, trans-formou as hibridizações das mais di-versas ordens em princípio constitutivodaquilo que vem sendo chamado de ci-berarte. (SANTAELLA, 2003, p. 135-136).
Essas novas possibilidades de criação em arte utili-
zando diferentes meios que se relacionam e criam novas per-
cepções, desloca a valoração da arte enquanto objeto de apro-
priação material criando indagações no campo epistemológico,
abrindo-se para novas intervenções e possibilidades infinitas de
combinações estéticas.
Dentre os exemplos possíveis que apontam para essas
combinações estéticas, resultante do hibridismo das imagens
técnicas, encontra-se a obra do artista mineiro Éder Santos, con-
siderado um dos pioneiros da videoarte no Brasil.
41
O artista inicia suas pesquisas nesse campo a partir da
década de 1980, desenvolvendo uma multiplicidade artística em
diversas mídias como em videoinstalações, vídeoesculturas, per-
formances, longas-metragens e videoclipes. Um traço caracterís-
tico de suas obras é a amplificação das imagens, rompendo com
a tradicional produção de vídeo para monitores (single channel),
além de incorporar ao seu trabalho imagens consideradas, comu-
mente, como defeitos técnicos, aliando a essa escolha elementos
simbólicos e a proposição de novas formas de relacionamento
entre espectador e imagem, incentivando a discussão acerca da
subordinação dessas ao discurso midiático.
Entre suas obras, podemos destacar a premiada Ja-
naúba (1993), na qual o artista evoca a gênese das imagens
audiovisuais, dialogando com elementos cinematográficos e ex-
plorando novas maneiras de operar com os recursos eletrônicos.
Também se situa entre a sua produção obras como a instala-
ção Call Waiting (2006), na qual imagens de pássaros, fios e
gaiolas são projetadas na parede por meio de sombras, o que
remete às reminiscências da sua infância. Outros trabalhos são
em vídeo como Tumitinhas (1998), Eu Não Vou à África Porque
Tenho Plantão (1990) e Mentiras & Humilhações (1988). Rea-
liza também dois longas-metragens: Enredando Pessoas (1995)
e Deserto Azul (2014). Estas obras exploram a temática existen-
cialista, da religiosidade mística, da crítica social e da memória.
Por fim, destaca-se a exposição Estado de sítio, reali-
zada em 2016, na Grande Galeria Alberto da Veiga Guignard
42
do Palácio das Artes, em Belo Horizonte/MG. Nessa mostra o
artista busca o diálogo e a crítica relacionada ao atual contexto
político brasileiro, ressaltando o estado de exceção e de ataque
à democracia, como o fim dos programas sociais, a perda de
direitos civis, a intolerância religiosa e a deposição da presidente
Dilma Roussef. Estão na mostra cinco instalações: Cascade, To-
dos os santos, A casa dos sinais flutuantes, Distorções contidas e
Cinema.
Figura 7 – Foto da obra (vídeoarte) Janaúba (1993) de Éder Santos.
Considerações finais
Pensar a arte e suas relações no campo tecnológico
representa uma escolha estética e política. Pois, não é possível
pensar um determinado meio sem considerar as suas implicações.
43
Figura 8 – Foto da instalação Call Waiting (2006) de Éder Santos.
Figura 9 – Foto da instalação Call Waiting (2006) de Éder Santos.
44
Figura 10 – Foto da vídeoinstalação Cascade (2016) de ÉderSantos.
O desenvolvimento das novas tecnologias está inevitavelmente
associado a uma concepção de sociedade que se quer global,
mas que, nem por isso foi capaz de eliminar de seu meio as
diversas mazelas sociais como a pobreza, a destruição ambiental,
a desigualdade e a fome.
A arte pode ou não representar uma crítica, direta ou in-
direta, mas não devemos ignorar as condições históricas e filosófi-
cas em que se desenvolvem essas relações de criação/proposição
e contato/fruição com esses “objetos” artísticos, observando até
que ponto é possível, aceitável e ético a ação d(a) artista, sem
com isso justificar o senso comum de que “tudo é arte”.
Os encontros que se sucederam durante o primeiro
semestre do ano de 2017, foram profundamente férteis na propo-
sição de diálogos tecidos durante as aulas ou nas apresentações
dos seminários, contando sempre com a sensibilidade e o cui-
45
dado da Professora Regilene Sarzi em mediar a reflexão acerca
do vasto universo das técno-imagens, considerando a existência
de uma grande heterogeneidade entre os componentes do grupo,
o que sem dúvida se tornou um fator de enriquecimento ao serem
abordados os assuntos sob diferentes pontos de vista.
Durante esses encontros pude despertar o interesse em
pesquisar mais a respeito desse campo de conhecimentos, tra-
zendo novas possibilidades de se pensar no ensino de arte na
escola e de promover com os alunos novas relações e perspecti-
vas no campo artístico.
Referências:
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BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2003.
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SANTOS, Éder. Call Wairing -Instalação, 2006. Fonte:htt p : //payload526.cargocollective.com/1/23/752667/12825592/29_03_2017_call −waiting_ f oto_1000. jpg. Acesso em 22/10/2017.
46
SANTOS, Éder. Cascade - Videoinstalação, 2016. Fonte:http://hojeemdia.com.br/polopoly_fs/1.429225!/image/image.jpg_gen/derivatives/landscape_653/image.jpg- Acesso em 22/10/2017.
SANTAELLA, Lúcia. Cultura e artes do pós-humano. São Paulo; Paulus, 2003.
4 Automatização, Repro-
dução e Imagens.
Miguel Alonso A. Carvalho
48
Automatização, Reprodução e Imagens.
Miguel Alonso A. Carvalho
No universo da arte, ao abordar dispositivos, máquinas,
aparelhos e imagens técnicas, vários caminhos podem ser trilha-
dos, sejam em uma busca cronológica e histórica das origens de
cada um, sejam pelas aproximações de processos de funciona-
mento, pelos graus de complexidade, ou até pela generalização
de seus usos, entre outros possíveis. Neste texto, será trilhado
um breve percurso, uma revisão bibliográfica, considerando a
saga humana pela ação de automatização das máquinas de produ-
ção de imagem, como uma proposta de ligação entre diferentes
saberes e fatores, até chegar a uma possível estrutura ampla de
abordagem para as relações do ser humano com as máquinas.
A trilha aqui proposta pelo olhar sobre a automatização
na produção de imagens se inicia nas imagens pré-históricas,
preservadas nas cavernas, com a impressão carimbada da mão,
com pigmentos orgânicos e minerais, diretamente no suporte da
parede, ou com a mão utilizada de máscara, com o pigmento
borrifado e registrando sua silhueta (Figura 11).
49
Figura 11 – Detalhes das pinturas rupestres de 9300 a 1300 anos atrás,com mais de 800 mãos.Sítio arqueológico “La Cueva deLas Manos”, Argentina, 2015.
O ser humano ficciona, imagina, ritualiza seu mundo.
As imagens impressas em diversos suportes, como as das caver-
nas, são parte do domínio lingüístico1 humano. . Tais processos
são relevantes para que se constate a ambição milenar humana
por criar e reproduzir imagens. Essa ambição é a construção de
significados e é decorrente de aspectos cognitivos e emotivos.
Elas dão coesão as distintas sociedades, participando da pró-
pria noção de consciência individual. “A linguagem permeia, de
modo absoluto, toda a nossa ontogenia como indivíduos, desde
o modo de andar e a postura até a política”(Maturana e Varela,
2001, p.234).
1 Conforme Maturana e Varela “Chamamos de Domínio lingüístico de um organismo ao âmbito
de todos os seus comportamentos lingísticos.”(2001, p.231).
50
A produção de imagens é uma característica humana.
Construir imagens é criar realidades, mas acima de tudo, é orga-
nizar o ambiente em representações abstratas. Conforme indicam
Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela, no livro “A Árvore
do Conhecimento”, a comunicação junto a linguagem estão to-
talmente ligadas e formam o universo mental do ser humano, a
consciência. A significação constituída por imagens está no meio
dessa estrutura e a arte permeia todo o sistema. É importante
entendermos que estas imagens também são indícios de ação
humana em seu meio.
Tais construções de imagens são acrescidas da procura
histórica pela capacidade de automatizar seus processos. Ed-
mound Couchout em seu texto “The automization of figurativete-
chniques: Toward The Autonomous Image”, no livro “Media Art
Histories”(2007), editado por Oliver Grau faz uma leitura dessa
junção entre individuo/imagem/meios de produção de imagens.
Segundo Couchout (2007), na história existem períodos
em que a pesquisa por técnicas de automatização esteve mais
lenta, como na Idade Média, e períodos acelerados, como na
Renascença. Em ambos os casos, as questões econômicas e
sociais foram determinantes para essa variação. Mas além desse
ponto de vista de Couchout, a necessidade de automação não é
a mesma da necessidade de reprodução de produtos e imagens.
Nestes processos os dois objetivos são distintos, contudo estão
intimamente ligados e ao avaliar as tecno-imagens é essencial ter
isso em mente.
51
O celebre texto de Walter Benjamin, “A obra de arte
na era da sua reprodutibilidade técnica” aponta a consolidação
da reprodutibilidade como fator excludente do valor de aura, de
objeto único, e a consolidação das novas qualidades e problemas
que as imagens ganharam com a Revolução Industrial e que se
diferenciam dos parâmetros de outras técnicas.
As mudanças na capacidade de reprodutibilidade das
imagens, feitas no século XX, foram frutos dos avanços, quími-
cos e mecânicos, feitos no século anterior, principalmente pelos
processos de foto-sensibilização, de fixação química de imagens
e de elaboração de matrizes para sua repetição. Destaca-se nesse
contexto o meio fotográfico, vindo do século XIX, principal-
mente por sua capacidade de registro e de reprodução, o qual
rompeu com muitas estruturas e trouxe novidades para o de-
senvolvimento de imagens e de conhecimento, que duram até
hoje.
Percebe-se uma evolução progressiva desses meios,
mas eles ainda estão imbricados em um mesmo paradigma. Ao
se pensar nessa estrutura, sempre há necessidade de uma única
matriz de reprodução, seja um fotolito ou uma chapa de metal,
pedra ou outro material.
A divisão paradigmática - citada acima - nesse período
da história é apontada por muitos autores e possui diversas leitu-
ras, como a feita por Lúcia Santaella (2005) e seus três paradig-
mas da imagem: Pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico2
2 Como exemplo de outro autor que estrutura paradigmas para os processos técnicos de criação,
52
. A divisão da autora leva em consideração, principalmente, as
metodologias de produção de cada época e seus meios, sendo
possível relacionar a materialidade e as formas de distribuição,
ou melhor, do acesso do público e da obra.
Tais características da automação, nas formas que fo-
ram apresentadas até agora neste texto, se enquadram nos dois
dos primeiros paradigmas de Santaella, o pré-fotográfico e o
fotográfico. Mas é importante perceber que mesmo com o au-
mento da complexidade desses processos de automação (seja
mecânico ou químico) eles ainda têm sua funcionabilidade e
linguagem ligadas a uma reprodução futura da matriz, possuem
uma linearidade no processo, com começo, meio e fim.
É somente no paradigma pós-fotográfico que a auto-
mação se desliga da reprodução. Na interface entre humano-
máquina desse novo paradigma a imagem passa a ser virtual, ela
acompanha o desenvolvimento da tecnologia informacional e
passa a se formar com dados, com os bytes, que são a tradução
dos símbolos convencionais, como o alfabeto (ou uma fotografia),
em informação binária3 .As imagens digitais são interativas, pois
só estão presentes no momento de interação com o observador,
ou em sua materialização pela interface (projeção, configuração
na tela do monitor ou até mesmo em sua impressão).
não só de imagens, mas de construção e compartilhamento de informação, destacamos Pierre
Levy em seu livro “Tecnologias da Inteligência” (1992).3 Conjuntos de cálculos executados, informações das combinações de Zeros (0) e uns (1) que se
armazenam no hardware por meio de cargas elétricas que se armazenam nos componentes (
chipes).
53
Dessa forma a comunicação passa a ser feita direta-
mente na interface da máquina. Couchout (2007) destaca a
produção digital, por seu diferencial radical no modo de au-
tomatização, pois esta passa a ser “um cálculo automático” e o
processo que era físico, na matriz, passa a ser virtual, convertido
em dados. A reprodução não é apenas futura ela já é automática.
O criador de uma imagem digital é o observador dessa
interação, ele não reproduza imagem, ele a programa para ser
reproduzida automaticamente, isto é, ele faz um processo de
automação que independe de uma estrutura fixa, ela ocorre e é
reprodutível concomitantemente.
Não é mais um processo linear, é atemporal e seu es-
paço é múltiplo. Couchout (2007) evidencia esse objeto virtual,
pois este deixa de seruma representação bidimensional ou tridi-
mensional, não tem aura e nem reprodução no sentido tradicional.
Todas as versões são originais. Ele é a automatização da forma
como ação.
Máquinas autônomas
Dentro deste terceiro paradigma, o pós-fotográfico, de
Santaella (2005), muitas novas possibilidades surgiram e estão
surgindo para o conhecimento humano. Não só nas artes, mas
nas ciências e no desenvolvimento de novas tecnologias. As
barreiras tradicionais destas áreas são modificadas a cada dia e o
grande desenvolvimento da automação, como indica Couchout,
vai além de reprodução irrestrita, e de matrizes para repetição.
54
Esse novo parâmetro influencia todas as áreas do co-
nhecimento. A automação se torna tão complexa até o ponto do
desenvolvimento de formas de vida digitais, máquinas autôno-
mas e, radicalmente, a inteligência artificial, com a capacidade
de aprendizado.
A capacidade humana de fazer arte-fatos para simular inteligência, vidae processos evolucionários vai certa-mente mudar dramaticamente as ativi-dade humanas neste século. Uns po-dem desejar essa agitação, outros po-dem certamente achar assustadora. Es-tando atentos para não deixar esse sis-tema unicamente no caminho da efici-ência lógica, deverão os artistas- ou nãodeverão- manter o controle desses se-res para dotar de autonomia, no nomeda livre criatividade? (COUCHOUT,2007 p.190).
Conforme Couchot (2007) defende, é dentro dessa nova
modalidade de automação e de produção de imagens que o artista
deve se posicionar e explorar as novas capacidades de produção
humana e do humano junto às máquinas. Daí à importância
do estudo da cibernética, visando pensar uma teoria sobre as
relações dos homens com as máquinas.
A automação chegou ao ponto de automatismo e de
quase auto-suficiência. Nesse ponto, com o desenvolvimento
automatizado dos dados,surgem as máquinas de Turing (Figura
12), principio dos computadores atuais, máquinas automatiza-
55
das que quantificam muitas informações complexas do mundo,
traduzindo-as de forma binária, e, dessa forma, constroem novas
formas de raciocínio. Surge a grande pergunta “as máquinas
podem pensar?”4
Figura 12 – Detalhe da máquina que Turing construída no filme “OJogo da Imitação”, Direção: Morten Tyldum, 2015.
Por mais que, até agora, tenha se abordado a automa-
ção no processo de criação de imagens, é essencial pensar em
quais novos conteúdos essas máquinas sofisticadas trouxeram,
automatizando não só as imagens, mas o próprio meio. Tem
que se ter cuidado com a ideia de automatismo numa estética
cibernética, por conta de seu caráter extremamente racionalista,4 Esta pergunta faz parte do artigo Computing machinery and intelligence. [S.I.:s.n, 1950 ],
de Alan Turing, do qual nasce a proposta do “Jogo de imitação”, um marco dos estudos da
cibernética.
56
a partir dos parâmetros da informação, pressupondo a interação
e a comunicação.
O observador não pode ser entendido independente de
seu meio. Pensar a automação considerando a atualidade dos
meios artísticos e técnicos não é uma questão tão usual, mas
eminente das relações mais cotidianas de arte-tecnologia. Pois,
reformulando a frase dita no início do texto: A produção de
imagens é uma característica humana e de suas criações, estas
imagens são indícios de alguma ação, seja de quem a produziu,
seja de qual meio ela foi elaborada e de quem a percebe, isto
é, dispositivos, máquinas, aparelhos e imagens técnicas podem
auxiliar tanto na criação artística, quanto na fruição de uma obra.
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GIANETTI, Cláudia. Estética Digital– Sintopia da arte, a ciência e a tecnologia. Belo Horizonte:C/Arte, 2006.
SANTAELLA, Lúcia. Os três paradigmas da imagem. In: SAMAIN, Etienne. O Fotográfico. 2a.Ed. São Paulo: Ed. Hucitec, SENAC. 2005. p.295-307.
TURING, Alan. Computing machinery and intelligence. [S.I.:s.n, 1950]. Disponível em:< htt p : //loebner.net/Prize f/TuringArticle.html > Acesso em: 11 de Outubro de 2017.
Sumário de Imagens:
57
Figura 11: Detalhes das pinturas rupestres de 9300 a 1300 anos atrás. Sítio arqueológico “La Cuevade Las Manos”, Argentina, 2015. Disponível em: < htt p ://www.terraadentro.com/2015/01/31/arte− rupestre−da− cueva−de− las−manos/ >Acesso em: 11 de Outubro de 2017.
Figura 12: Detalhe da máquina que Turing construída no filme “O Jogo da Imitação”, Direção:Morten Tyldum, 2015. Disponível em: <http://bitaites.org/tecnologia/o-enigma-alan-turing>Acesso em: 11 de Outubro de 2017.
5 Quase-Cinema: cinema,
bitola e conceito.
Yardena do Baixo Sheery
59
Quase-Cinema: cinema, bitola e conceito.1
Yardena do Baixo Sheery
Introdução
Em carta a Antonio Dias, escrita em 1980, Oiticica
relaciona sua “FILMOGRAFIA (?)”. Entre as obras relacionadas
estão as Cosmococas, datadas de 1973 e descritas como inaugu-
rais do conceito de quase-cinema. As Cosmococas não foram
concretizadas durante sua vida, assim como nenhum dos projetos
de Oiticica realizados em Nova Iorque, mas o intenso tráfego
epistolar de Oiticica trouxe ao Brasil o termo quase-cinema que
foi empregado por outros artistas ao tratarem de sua obra, muito
embora se considere o quase-cinema uma questão exclusivamente
oiticiqueana. Estes outros artistas usaram o termo referindo-se,
inclusive, a vídeos. Oiticica cunha o termo para tratar da mistura
entre cinema e experiência sensorial que é a Cosmococa.
1 Este texto é uma compilação, um pequeno inventário, uma curadoria de informações pontuais
e questões sobre a criação do “conceito designação” de quase-cinema de Hélio Oiticica.
60
Das bitolas
O mais próximo, na obra de Oiticica, da vídeo-arte, é a
presença de uma televisão fora do ar em um de seus Penetráveis.
Não há, além desta exceção, vídeo (ou quase-vídeo) em sua obra,
todas as suas bitolas são película, ou seja, acetato.
O uso de filme na obra de Oiticica começa com foto-
grafias, empestadas de notícias de jornal, no B33 Bólide Caixa
18 Homenagem a Cara-de-Cavalo e no estandarte Seja Marginal,
Seja Herói (alto-contrastada e transferida por serigrafia). Além
destas, existem as fotografias-registros dos Parangolés. É digno
de nota que foi com a introdução da fotografia (seja na obra em
si ou como forma de registro) que também se introduz na obra de
Oiticica a figura humana, e esta só aparecerá no suporte fílmico,
ou seja, em película/acetato (fotografia, slide, super-8).
Do “cinema” em quase-cinema.
Antes do quase-cinema, Hélio Oiticica realizou várias
experimentações cinematográficas, todas elas a seguir:
No final dos anos 1960 Oiticica manuscreve dois rotei-
ros que nunca chega a filmar. Em 1968 atuou em Câncer (1972)
de Glauber Rocha. É ainda no final dos anos 1960 que, para Ivan
Cardoso, produziu o cartaz de Sentença de Deus (1972).
Em 1971, ao mudar-se para Nova Iorque, matricula-se
em um curso livre na NYU para aprender a usar câmera super-8.
61
Figura 13 – Cartaz de Sentença de Deus (1972).
Passa a frequentar os círculos de Jack Smith, cineasta under-
ground, que lhe apresenta Mario Montez, uma das superestrelas
de Andy Warhol.
Em 1972, numa visita de Júlio Bressani a Nova Iorque,
assina a cinematografia de seu filme Lágrima Pantera (1972).
Também em 1972, aceita uma encomenda, por carta,
de Ivan Cardoso, para que fizesse um “short” com uma de suas
atrizes, Cristiny Nazareth, que visitara Nova Iorque e se hos-
pedara com Oiticica, para “complementar” seu filme A Múmia
Volta a Atacar. O filme de Cardoso nunca foi concluído. Já o
short, que se chama Agripina é Roma-Manhattan e tem Mario
Montez e Antonio Dias no elenco, é considerado pelo Centro de
Arte Hélio Oiticica o único dirigido pelo artista.
62
Figura 14 – Cristiny Nazareth e David Starfish em fotografiados bastidores da filmagem de Agripina é Roma-Manhattan (1972).
Há ainda uma pequena coleção de rolinhos super-8:
Brasil Jorge (1971), Battery Park (1971), Filmore East 1, 2, 3
e 4 (1971-2), Igreja Notre Dame (1972), Haffer’s Office (1973),
TV’s Stones 1 (1973), Making Off – CC1 (1973), Gay Pride 1, 2
e 3 (1973), Neyrótika (1973) e Teresa Jordão (1973).
Realizou também, em meados dos anos 1970, alguns
curtas experimentais com os irmãos Thomas e Andreas Valentim:
Nova York 1972-1976 (1971-1976), All Language (1974), Rio de
Janeiro 1974-1976 (1974-1976), One Night on Gay St. (1975)
(com Luís Carlos Joels e Wally Salomão), Flit (1976) e Phone
(1976).
63
Figura 15 – Still de Flit (1976).
Em 1973 projeta Neyrótika e as Cosmococas, e em
1975, Helena Inventa Angela Maria. Todas essas três recebem a
designação de quase-cinema, e são projetos que Oiticica não tem
a chance de realizar. Sobre o conceito de quase-cinema, Oiticica
trata de sua inauguração ao relatar sua “FILMOGRAFIA (?)” em
carta a Antonio Dias:
HÉLIO OITICICA - FILMOGRAFIA (?)
1972 – AGRIPINA É ROMA-MANHATTAN – New York
Super 8 não terminado: material feito a ser utilizado como parte
de programa futuro.
1973 – NEYRÓTIKA – New York nãonarração montada em
NEW YORK abril/maio 73: 80 slides com marcação de tempo e
64
trilha sonora: inacabado!
1973 – COSMOCOCA–programa in progress– New York
constituído de BLOCO-EXPERIÊNCIAS com a designação CC
de CC1 a CC5 com NEVILLE DALMEIDA a partir de 13 de
março de 73 inaugurando o conceito designação de
quase-cinema
CC6 com THOMAS VALENTIN
CC8 sozinho
São BLOCOS constituídos de slides-trilha
sonora-INSTRUÇÕES: essas INSTRUÇÕES são especiais em
cada caso exigindo a construção de ambientação-ocasião
próprios
1975 – HELENA INVENTA ÂNGELA MARIA – New York
5 BLOCOS-SESSÕES a serem tomados do mesmo modo q
COSMOCOCA e NEYRÓTIKA como experiência de
quase-cinema: suas INSTRUÇÕES variam conforme a situação
pedida: quanto à trilha-sonora também: há maquete feita do
ambiente-PENTÁGONO feito como protótipo para sua
apresentação: programação nova e especial a ser feita para cada
apresentação2
As obras que designam o conceito de quase-cinema
não são, portanto, o clássico “filme de artista” resultante do2 Arquivo Projeto Hélio Oiticica 163.80.
65
artista experimentando nesta linguagem. O quase-cinema, no
contexto da obra de Oiticica, é o resultado do casamento do que
se convencionou chamar “arte sensorial”, já explorada em seus
Penetráveis, com sua experimentação cinematográfica, que não
era filme de artista e sim cinema, mais especificamente cinema
underground ou marginal.
Depois da experimentação quasecinematográfica de
meados dos anos 1970, Oiticica reincursiona no cinema margi-
nal. Em 1978 realiza a instalação Tenda Luz para Gigante da
América, de Júlio Bressane. Em 1979 Ivan Cardoso fez um curta
documentário sobre sua obra chamado H.O. Oiticica participa
também do documentário Uma Vez Flamengo (1980) de Ricardo
Sollberg e atua em O Segredo da Múmia (1982), também de Ivan
Cardoso.
66
Figura 16 – Hélio Oiticica nos bastidores de O Segredo da Mú-mia (1982).
Figura 17 – Hélio Oiticica em copião perdido e não datado deIvan Cardoso (anos 1970).
67
Figura 18 – “Filmografia (?)” de Oiticica conforme apresentadaem carta a Antonio Dias em 1980.
Do (não) conceito de quase-cinema
[. . . ] COSMOCOCA–programa in pro-gress– New York constituído de BLOCO-EXPERIÊNCIAS [...] inaugurando oconceito designação de quase-cinema[. . . ]. Hélio Oiticia em Carta a Anto-nio Dias, relacionando sua “FILMO-GRAFIA (?)”3
[...] Nas décadas de 1970 e 1980 tra-balhei muito com o Super-8 e o ví-deo, realizando 29 filmes dentro doconceito/definição de Hélio Oiticica de
3 Idem
68
Quasi Cinema, que é o filme de artista[. . . ] Paulo Bruscky 4
Quando o “conceito designação” de quase-cinema foi
inaugurado, Hélio Oiticica não o definiu claramente, de maneira
que as próprias obras serviram como uma declaração desta nova
designação. As obras foram produzidas anos após sua morte,
mas o conceito, mesmo sem a obra que designava, fez a ponte
aérea NY-RJ ainda nos anos 1970 e foi apropriado por artistas
brasileiros em obras de natureza muito diversa das que Oiticica
havia planejado sem chance de realizar em vida.
Assim, quase-cinema, conforme a ideia original de
Hélio Oiticica, considerando-se as obras que recebem esta desig-
nação, é a projeção de películas (slides ou super-8) associada a
experiências sensoriais, incluindo, necessariamente, trilha sonora.
Quase-cinema conforme a definição de outros artistas, pode ser
todo e qualquer filme ou vídeo de artista, o que não fere neces-
sariamente o conceito de Oiticica porque sua obra sempre foi
aberta a participação e sua “FILMOGRAFIA (?)” permaneceu
aberta a revisões, ou seja, poderia vir a incluir este tipo de obra.
4 BRUSCKY, Paulo. Cinema de Inversão/Invenção. in MACHADO, Arlindo (org.). Made in
Brasil: Três décadas de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras, 2007, p.81
69
Referencias:
Arquivo Projeto Hélio Oiticica (APHO) 163.80
BRUSCKY, Paulo. Cinema de Inversão/Invenção. In MACHADO, Arlindo (org.). Made in Brasil:Três décadas de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras, 2007.
DACOSTA, Cláudio. Hélio Oiticica e a morte do Cinema. In Arte e Ensaios – Revista doPrograma de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.
6 Videoinstalação: um co-
meço.
Natalie Mireya Mansur Ramirez
71
Videoinstalação: um começo.
Natalie Mireya Mansur Ramirez
Nas décadas de 1960 e 1970, muitos artistas utilizaram
o vídeo para criticar a sociedade que, a cada passo para a globali-
zação, tornava-se mais superficial. É a partir desse contraponto
que a vídeo arte ganha força, pois o vídeo é tido como um meio
manipulável, no qual o autor pode expressar sua subjetividade
individual ou política. Enquanto a televisão apresenta uma idea-
lização do mundo exterior, relacionada às ambições das grandes
corporações publicitárias, o vídeo por si só como meio e mídia
é o viés pelo qual se transgride o reducionismo de informações
que a televisão traz ao espectador, possibilitando um espectador
reflexivo e não passivo diante do bombardeio de programas não
educativos e de entretenimento e propagandas que instigam o
capitalismo libidinal. 1
1 Para o francês Jean François Lyotard, o capitalismo é movido pela libido, ou seja, cria-se a ne-
cessidade de se adquirir bens de consumo a fim de suprir a produção desenfreada e consequente
excesso de estoque. A libido é o desejo, o motor do desenvolvimento do capital.
72
É importante lembrarmos que a imagem animada -
filme, vídeo - é consequência das experimentações com foto-
gramas nos fins do século XIX e início do século XX, denomi-
nadas cronofotografia, que consistia na captação do movimento
com inúmeras máquinas fotográficas a fim de reconstitui-lo em
imagens. Muitos artistas utilizaram a fotografia para estudos
pictóricos, como o pintor francês Edgar Degas e demais impres-
sionistas. Pode-se perceber que tanto os artistas do surgimento
da fotografia como os artistas do surgimento do vídeo utilizaram
do recurso tecnológico em voga. Quando se trata do surgimento
do cinema mudo utilizado pelas vanguardas ou do surgimento
da câmera Portapak nos anos 1960, percebe-se que o uso desses
recursos tecnológicos se deu como meio de aperfeiçoamento ou
desconstrução das linguagens tradicionais como pintura, escul-
tura e desenho, ou ainda como narrativas pessoais em busca de
identidade cultural, sexual e liberdade política. (RUSH, 2006, p.
99).
A pesquisadora Rosalind Kraus, em seu texto Vídeo: A
Estética do Narcisismo (2008) alega que com o surgimento do
vídeo - aparato tecnológico - o uso do corpo como objeto central
foi muito comum entre os artistas da época. Tanto na videoarte
como nas videoinstalações, o corpo do espectador ganhou espaço,
se pensarmos em artistas como os americanos Joan Jonas, Bruce
Nauman, Dan Graham e os brasileiros Letícia Parente e Nelson
Lerner.
Mas o que é o vídeo? Para a autora Inês Gouveia, “do
73
ponto de vista técnico, o vídeo é um processamento tecnológico
que permite registrar e reproduzir simultaneamente som e ima-
gem através de um processo magnético” (GOUVEIA, 2011, p.15).
Essa mesma definição é cabível para a imagem de Televisão que
a autora atribui no mesmo texto.
Discutem-se três fases sobre o surgimento e a utilização
da imagem do vídeo. Na primeira, entre 1952 e 1964, iniciam-
se as utilizações não funcionais do vídeo por parte de artistas
como Wolf Wolstell e Nam Jun Paik, ambos do FLUXUS. Esses
dois artistas utilizavam da imagem do vídeo desconstruindo sua
nitidez e funcionalidade através da intervenção em seu circuito
eletrônico original.
A segunda fase, de 1965 a 1973, corresponde ao pe-
ríodo do surgimento da câmera portátil Portapak, produzida pela
Sony, a qual torna mais prático o processo de gravação e difusão
da imagem de vídeo e a proliferação da performance para a câ-
mera. Nesse contexto, a performance dialoga com o vídeo, visto
que os acontecimentos históricos americanos e europeus de cará-
ter libertário como o movimento feminista, anti-guerra, de lutas
raciais e estudantis, são os mesmos que marcam e influenciam,
de certa forma, o surgimento da arte da performance, e talvez
por isso o uso do corpo para se produzir imagem de vídeo foi tão
recorrente por parte dos artistas. (GOUVEIA, 2011, p.24).
É interessante ressaltar que os EUA foi o país que de-
teve por muitas décadas o domínio sobre as pesquisas em relação
à tecnologia televisiva, e por isso a vídeo arte tem seu surgimento
74
em solos norte-americanos. Tratava-se de uma demonstração de
poder político, já que a época do surgimento da câmera portátil
é a mesma da Guerra fria. Também é nesse contexto que o pen-
sador e influente da Revolução Estudantil de Maio de 1968 na
França Guy Debord faz uma crítica a mass mídia2 através de seu
livro A Sociedade do Espetáculo (1967), no qual ele apresenta
sua tese sobre a televisão programada e a nossa relação com o
que acontece no mundo. No referido texto Debord propõe que
vivemos através da recepção de imagens, isto é, as imagens televi-
sivas são intercessoras da nossa experiência como espectador. O
mundo, na crítica de Debord, seria aquele em que um indivíduo
não precisa sair de casa para ver os horrores da guerra ou pro-
gramas fúteis de entretenimento. Tal crítica visa denunciar um
mundo supérfluo no qual todo acontecimento é espetáculo, não
havendo espaço para a distinção entre o real e a espetacularização
da vida pela mídia, tornando nossas experiências reais baseadas
em imagens fictícias ou representativas de algo, naturalizando
acontecimentos catastróficos e hediondos.
A terceira fase, de 1974 a 1981, ainda para a autora
Inês Gouveia, consiste na absorção do uso do vídeo, por parte dos
artistas, como uma linguagem potencial e exploratória. Nesse
período, as galerias e instituições museológicas dedicaram seus
espaços expositivos para a difusão e o incentivo à produção de
vídeo arte, como no “caso do primeiro departamento de vídeo
2 Do inglês, são os meios de comunicação de massa como rádio, televisão, imprensa. O termo
geralmente é embutido de carga pejorativa, pois sugere que os meios de comunicação visam
padronizar as informações para o espectador, e que as mesmas são desprovidas de criticidade,
servindo mais como espetáculo, na concepção do francês Guy Debord.
75
criado, em 1971, no Everson Museum of Art, em Siracusa, e
a gerar uma proliferação de centros de vídeo por toda a Amé-
rica do Norte” ou como a “Documenta 6 de Kassel, em 1977
e sob curadoria de Manfred Schneckenburger, abarca uma das
primeiras análises e classificações da nova prática artística, tendo
promovido, em simultâneo, a primeira transmissão via satélite
de obras em vídeo.” (GOUVEIA, 2011, p.32 - 34). É nessa fase
que as videoinstalações se propagam com maior força, visto a
maturidade que os artistas dispunham devido ao avanço do uso e
dos próprios meios tecnológicos.
O conceito de videoinstalação está ligado ao de instala-
ção. Assim como na instalação, todos os elementos envolvidos
em uma videoinstalação irão integrar o conceito da obra. Não
apenas o conteúdo do vídeo, mas sua forma de apresentação, o
tipo de projeção/monitor, o ambiente em que é alocado e sua dis-
posição nesse ambiente, a iluminação, os objetos da sala, como
outros elementos.
Para o autor americano Michael Rush (2006), as vide-
oinstalações remetem aos trípticos medievais. Esse exemplo é
cabível e interessante para elucidarmos o conceito. Se pensarmos
em um artista como o americano Bill Viola, o qual produz vídeos
verticalizados, dispostos lado a lado, e muitas vezes exibidos
dentro de espaços físicos religiosos, compreenderemos o quão
significativas são as formas de constituição da videoinstalação.
A videoinstalação, assim como toda produção artística
contemporânea, visa à reflexão. A relação do espectador com o
76
monitor é modificada justamente para estimular outra concepção
sobre o conteúdo de vídeo/TV. Ao pesquisarmos sobre videoinsta-
lação, encontramos menção a fragmentação da imagem. Tal pode
ser associada à fragmentação do sujeito, que é algo que existe
desde o Cubismo, no início do século XX. No Cubismo a repre-
sentação do corpo era fragmentada em um plano bidimensional.
As narrativas da contemporaneidade são subjetivo-singulares,
podendo ser associadas a um indivíduo. Nas videoinstalações,
a fragmentação do sujeito pode ser lida como a fragmentação
da narrativa, isto é, não há uma leitura linear e concreta, mas
fragmentos de conteúdo imagético, narrativo, e afins, os quais
somados dá consistência ao conceito da videoinstalação. (LA-
COMBE, 1998 p.92).
A videoinstalação também está ligada à arte conceitual,
pois a ela é conferida a ideia de desmaterialização do objeto de
arte. A facilidade de reprodução da mídia torna o vídeo tão aces-
sível, que seu valor mercadológico passa a ser desconsiderado,
aproximando-se da difícil tentativa de se cotar algo imaterial.
Daisy Peccinini (1980) discorre com criticidade sobre
o conceito de Novos Meios/Novas Mídias. A autora infere que
a inovação no ramo da tecnologia não define o caráter daquilo
que é novo, tendo em vista que com mídias tradicionais o artista
ou quem as manipula tem a possibilidade de transgredir o seu
tempo. Portanto, novos meios se trata também de novas formas
de apreensão daquilo que já dispomos em dado contexto e a
forma como iremos abordar ou utilizar isso.
77
Considerações finais
A pesquisa sobre videoinstalação no Brasil foi um
pouco difícil devido à escassez de material disponível no Galpão
Vídeo Brasil e no Acervo do Itaú Cultural, locais escolhidos
para pesquisa de campo quando da procura pelas referências
presentes no livro de Arlindo Machado. O importante para uma
pesquisa em videoinstalação é ter acesso a uma descrição deta-
lhada da montagem do trabalho, e não apenas ao conteúdo do
vídeo. Citaremos aqui dois artistas brasileiros contemporâneos
com produção relevante para a continuação da cena.
Mariana Manhães vive e trabalha no Rio de Janeiro.
Suas videoinstalações são engenhocas complexas, as quais ela
constrói em parceria com seu pai, que é engenheiro. Ela utiliza
utensílios domésticos inanimados, com os quais cria animações e
depois as projeta em superfícies circulares, rodeadas de materiais
infláveis ou parafernálias que remetem a um corpo robótico,
improvisado mecanicamente. Seu trabalho se assemelha ao da
suíça Pippilot Rist e ao do americano Tony Oursley.
78
Figura 19 – Mariana Manhães, Arvorar, 2006.
Figura 20 – Mariana Manhães, Então Vaso Verde, 2003. Fonte:http://www.marianamanhaes.com/
79
Outro importante artista, contemporâneo, porém per-
tencente à primeira geração de videoinstalações no Brasil é o
mineiro Eder Santos. Possui uma extensa carreira como diretor
de cinema, mesclando artes visuais, teatro, dança, vídeo, novas
mídias. Seu trabalho é um dos mais bem catalogados encontrados
nessa pesquisa. No site de compartilhamento de vídeo, Vimeo do
artista, é possível encontrar até o making of de algumas de suas
videoinstalações. Eder Santos explora o espaço físico onde irá
exibir sua instalação, criando ambientes, por vezes, imersivos.
Figura 21 – Eder Santos, Galeria das Almas, 2009. Fonte:https://vimeo.com/channels/edersantos
Referencias:
GOUVEIA, I. S. Televisor e monitor em contexto artístico 1952 – 1981. 2011. 170f. Dissertação(Mestrado) – Universidade do Porto Faculdade de Belas Artes, Porto, 2011.
KRAUSS, Rosalind. A estética do narcisismo. Revista Artes e Ensaios, Rio de Janeiro, no 18, 2008,p. 144 a 157.
LACOMBE, Lima Mendes Octavio. O espaço em camadas de Parabolic People, 1998. SP –Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.
LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
MACHADO, Arlindo. Made in Brasil. Três décadas do vídeo brasileiro. SP 2007.
80
MELLO, Chirstine. Extremidades do vídeo. SP, 2008.
PECCININI, Daisy. Arte e Novos Meios, Brasil 70/80. FAAP 1985.
RUSH, Michael. Novas mídias na Arte Contemporânea, 2006.
7 Sobre Desenhos e Ilu-
sões.
Elisângela de Freitas Mathias
82
Sobre Desenhos e Ilusões.
Elisângela de Freitas Mathias
Ao longo da história da arte o modo de produzir ima-
gens se transformou rapidamente. Essas mudanças foram geradas
pelo desenvolvimento dos meios técnicos, em especial, a partir
da criação de aparatos tecnológicos, como câmera fotográfica e
computadores utilizados nesta produção. A evolução nos tipos
de instrumentalização para a produção de imagens modificou os
modos de produção e também os papéis dos agentes de produção
destas imagens. Ao artista, além do potencial estético dos mé-
todos avançados de criação de imagens, coube criar opções de
percepção e formas inovadoras de interação com essas imagens.
A realidade virtual surgiu bem antes dos computadores e faz parte
da relação dos homens com as imagens. Dos afrescos romanos
aos panoramas, das pinturas em quadros que sugerem movimento
às representações do próprio movimento na tela, a realidade vir-
tual é o resultado das estratégias em produzir a ilusão e imersão,
cada qual com os meios técnicos disponíveis. Segundo Oliver
Grau, “na realidade virtual, uma visão é associada à exploração
83
sensório-motora de um espaço imagético que produz a impressão
de um ambiemte vivo”(GRAU, 2007, p.21).
Penso que o conceito de imersão pode ser amplo quando
se refere as formas de interagir com uma imagem, seja ela um
desenho ou um holograma. Para a arte virtual, tanto no presente
como no passado, a imersão é a passagem de uma estado mental
para outro. Um processo que se caracteriza pela “diminuição
da distância crítica do que é exibido e o crescente envolvimento
emocional com aquilo que está acontecendo”, ao mesmo tempo
que as “perspectivas de espaço real no espaço da ilusão” (GRAU,
2007, p.30) atraem a atenção de quem as observa. O efeito
imersivo da arte virtual, apela aos sentidos através das imagens
em diálogo com os aparatos midiáticos para que a impressão
de ‘estar’ num mundo artificial seja completa. Para Oliver Grau
(2007), as realidades virtuais imersivas são um ‘faz-de-conta’ da
imaginação estimulada. O que irá interferir no grau de imersão
da imaginação estimulada serão os meios à disposição para tal
ilusionismo.
Durante as aulas sobre imagens, arte e técnologia, cons-
truì significados para as discussões, a partir do meu repertório
pessoal baseado nas Histórias em Quadrinhos (HQs). Por ve-
zes para compreender sobre muitos conceitos desenvolvidos em
discussão com os colegas, invoquei meu acervo quadrinístico
para ilustrar certas concepções. Neste exercício de compreensão
através da comparação e equivalência, muitas questões povoaram
meu pensamento. Espaço imersivo necessariamente tem que ter a
84
relação de interação corpo/espaço ou, corpo no espaço? Sempre
para se imergir é necessário a ilusão de espaço? A imersão que
uma criança ao criar um desenho pode ser considerada espacial?
O efeito de imersão do macro espaço dos panorâmicos é diferente
do micro espaço de uma página de História em Quadrinhos?
Não pretendo discorrer aqui sobre a arte virtual que
opera com ilusão e imersão assistida por computador, nem como
o uso da tecnologia modificou o potencial estético da arte. Ao
contrário, tomo a liberdade de comparar os estudos sobre ilusão e
imersão de Oliver Grau com as estratégias de ilusão da gramática
dos quadrinhos feitos no suporte papel. Me atento ao suporte
papel, pelo fato de existir pesquisas sobre a hibridização dos
quadrinhos com as novas mídias. O pesquisador Edgar Franco
(2012) nomeou esta linguagem intermídia como “HQtrônicas”,
destacando suas principais características, sendo elas: interati-
vidade, animação, trilha sonora, efeitos sonoros, tela infinita e
multilinearidade. Essas características nos remetem aos apara-
tos tecnológicos da arte virtual e suas pretensões ilusionistas de
expansão de espaço. A pretensão desta escrita é pensar sobre o
modo simplista de recorrer à ilusão que os quadrinhos em suporte
de papel apresentam. Afasto aqui, qualquer intenção de comparar
o efeito imersivo da arte virtual do efeito imersivo da leitura de
uma HQ. Apenas desejo vislumbrar a existência de um diálogo
entre elas no que se refere aos elementos que compõem o efeito
de ilusão que gera imersão. Na arte virtual, a multimídia é usada
para alimentar e maximizar a sugestão de ilusão, enquanto que
nas HQs, os códigos ideogramáticos são responsáveis por isso.
85
As Histórias em Quadrinhos (HQs) são histórias em
uma sequência de imagens que tem como característica básica a
junção de texto e imagem. Nestas histórias desenhadas, percebe-
mos a utilização de recursos gráficos, ou códigos ideogramáticos,
que dão a impressão de movimento, expressividade, sons e sen-
sações no desenho dos quadrinhos. Existe uma infinidade de
códigos ideogramáticos nos desenhos das histórias em quadri-
nhos - figuras cinéticas, metáforas visuais, balões e onomatopeias
– que unidas num mesmo quadro potencializam a impressão de
ilusão de ‘realidade’ ocasionando uma imersão que varia de su-
ave a intensa. As figuras cinéticas dão a ilusão de mobilidade,
obtida através de linhas, grafismos e riscos, próximos aos perso-
nagens e objetos que pretendemos movimentar e destacar. As
metáforas visuais servem para expressar ideias e sentimentos
por meio de signos ou convenções gráficas que se relacionam
indireta ou diretamente com expressões do senso comum, como
‘ver estrelas’ ou ‘falar cobras e lagartos’. Um híbrido de ima-
gem e texto, o balão, representa uma densa fonte de informações
uma vez que sua própria estrutura indica desde a tonalidade de
voz do personagem até sua ordem de leitura. As onomatopeias
são signos convencionais que representam os sons por meio de
caracteres alfabéticos, que apresentam uma plasticidade típica
que também sugere a intensidade e a direção do som produzido.
Segundo Quella-Guyot, tais códigos “servem para representar,
por meio de uma série de indicadores reconhecíveis, o que não
é figurativo, visando reproduzir o real em sua totalidade e em
sua complexidade visual e sonora” (QUELLA-GUYOT, 1994
86
p.27). Desse modo, “a constituição de uma página de quadrinhos
é feita de modo a considerar todos os elementos que influem na
leitura, buscando criar uma dinâmica interna que facilite o enten-
dimento” (RAMA e VERGUEIRO, 2012, p.37). Até mesmo o
formato dos quadros dentro de uma página e os ângulos de visão
propostos por estes, colaboram para que a leitura da imagem não
seja monótona, com o intuito de afastar a percepção de fraude na
ilusão.
Para Oliver Grau, ao longo da história da arte, a ilu-
são funcionou de dois modos. O primeiro, basicamente lúdico,
onde a ilusão é tida como um prazer puramente estético e, o
segundo, quando os efeitos sinérgicos, obtidos por meio de apa-
ratos tecnológicos, causam a inibição temporária da percepção
entre realidade e espaço imagético, sugerindo a ilusão total.
Na leitura dos quadrinhos, a possível imersão decorre
a partir desses dois modos de ilusão, logicamente em graus dife-
renciados dos propiciados pela arte virtual. Na HQ a ilusão opera
entre o prazer estético e a tentativa de inibir a percepção do real,
uma vez que a visão periférica está constantemente em funcio-
namento, o que impede por vezes uma imersão mais intensa. A
suposta imersão nos quadrinhos irá depender da imaginação esti-
mulada por meio de elementos gráficos e da coautoria de quem
as lê. Nos quadrinhos o leitor é participante ativo na criação de
sentidos. Em sua leitura o indivíduo revive o universo sonoro,
rítmico e visual dos personagens e das cenas, completando com a
imaginação as situações sugeridas. A imaginação é solicitada até
87
mesmo para preencher o vazio entre um quadro e outro, pois no
quadrinho a ação pode começar na primeira vinheta e concluir-se
na segunda saltando todas as passagens intermediárias. A essa
ação dá-se o nome de “inferência” que é a capacidade gerada
pela imaginação de concluir coisas que não são vistas.
Figura 22 – Guilherme, 13 anos. Tira cômica “O homem invisívele seu cachorro”. 2013. Lápis de cor sobre papel sulfite.10x28cm. Piracicaba/SP
Na imagem acima, percebemos o recurso da inferência
utilizado por um aluno nas aulas de Arte. A sugestão de ilusão
da figura 22, não chega a uma imersão completa pois o lugar, ou
o espaço, onde ocorre as cenas é reduzido, porém os mecanismos
acionados para a narrativa visual colaboram para uma inferência
do leitor. E é essa inferência, juntamente com os outros recursos
gráficos existentes nas histórias em quadrinhos que desconfio dar
a sugestão de uma “ilusão multimídia” para a leitura, entendendo
como multimídia entre aspas, as variações gráficas de um sistema
de signos.
Considerações finais
88
O conceito de ‘espaço imersivo não hermético’ de Oli-
ver Grau, cujo grau de imersão na arte virtual é menor por ter a
mídia reconhecida, esbarra na dinâmica da leitura de uma Histo-
ria em Quadrinhos. Nesta dinâmica, o leitor sabe que aquilo que
tem em mãos não é real como o ambiente no qual está situado
fisicamente (será?) mas é afetado por artifícios ilusórios e sensí-
veis que dão a impressão de pertencimento àquilo que vê. Quero,
para finalizar, propor ao leitor deste artigo um convite à deriva
reflexiva/imersiva com a inserção de um quadrinho com graus
diferentes de entendimento (figura 23) e com uma afirmação de
Oliver Grau em que:
“a realidade é apenas uma afirmaçãosobre o que podemos observar. As ob-servações dependem dos nossos limitesmentais e físicos individuais e de nos-sas observações teóricas e científicas,dependendo desses limites é que obser-vamos”. (GRAU, 2007, p. 36).
Numa experiência de leitura compartilhada de quadri-
nhos com os alunos, pude perceber o forte grau de ilusão entre
uma inferência e outra, quando uma criança dispara do meio da
sala de aula a frase: “Dá uma vontade de morar aí dentro, né?”.
Referencias:
89
Figura 23 – Will Eisner. Nova York: A vida na grande cidade. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2009.
CAGNIN, Antônio Luiz. Os Quadrinhos. São Paulo: Ática, 1975.
DERDYK, Edith. Formas de Pensar o Desenho. São Paulo, Scipione: 1989.
FRANCO, Edgar Silveira. HQtrônicas: do suporte papel à rede internet. São Paulo: Annablume /Fapesp, 2aed., 2008.
GOMBRICH, Ernest. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. SãoPaulo: Martins Fontes, 1986.
GRAU, Oliver. Arte Virtual: da Ilusão à Imersão. São Paulo: Editora UNESP, 2017.
IAVELBERG, Rosa. O Desenho Cultivado da Criança. São Paulo: ECA-USP, 1992 (dissertaçãode mestrado).
LOWENFELD, Victor; BRITTAIN, W.L. Desenvolvimento da Capacidade Criadora. São Paulo,Mestre Jou, 1977.
90
MÈREDIEU, Florence. O Desenho Infantil. São Paulo, Cultrix: 1974.
QUELLA-GUYOT, Didier. A História em Quadrinhos. Edições Loyola: São Paulo, 1994.
RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro, (orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos nasala de aula. 4a ed. São Paulo: Contexto, 2012.
RAMOS, Paulo. A Leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2010.
RODARI, Gianni. A gramática da fantasia. São Paulo: Summus, 1982.
8 A(R)Tivismo Indigenista
no Brasil.
Luis Roberto Andrade Quesada
92
A(R)Tivismo Indigenista no Brasil.
Luis Roberto Andrade Quesada
Preâmbulo sobre a situação indígena no Brasil
No Brasil de hoje persiste um enorme desconhecimento
no que diz respeito à diversidade cultural existente em territó-
rio nacional. Segundo o censo demográfico do IBGE de 2010
(Último censo publicado), “existem 274 línguas indígenas fa-
ladas por indivíduos pertencentes a 305 etnias diferentes em
território brasileiro” 1. Inclusive estima-se que existem muitos
mais povos do que se reconhece oficialmente. Porém, até muito
recentemente, os índios no Brasil viveram em uma condição de
invisibilidade quase total2. Relegados à condição de vitimas
passivas e condenados, tanto no espaço (marginalidade, invisibili-
dade, isolamento) como no tempo (coisa do passado e empecilho
para o futuro e a noção de progresso).1 IBGE. Os indígenas no censo demográfico de 2010. In htt p :
//indigenas.ibge.gov.br/images/pd f/indigenas/ f olderindigenasweb.pd f . Acessado
em 17/01/2017.2 DA CUNHA, Manuela Carneiro. Historia dos Índios no Brasil. (1992).São Paulo: Companhia
das letras. Pp. 279-282
93
Existem diversas manifestações legais, internacionais
e nacionais vigentes que se preocupam por defender aos povos
originários. Dentre eles o Convênio 169 da Organização Interna-
cional do Trabalho (OIT) do qual o Brasil se tornou consignatário
em 2002 3. Esta convenção assegura aos povos indígenas o di-
reito ao trabalho com relação ao exercício da agricultura e a
pecuária tradicionais, o direito fundamental ao território e a terra,
o direito à saúde, o direito à educação que deve ser intercultural,
o direito a manter e preservar seus idiomas e valores tradicionais
se desejarem, tanto como identificar-se com a cultura própria
do país ou região em que habitam sem deixar, por este motivo,
de ser indígenas. Além desta convenção, os povos indígenas
foram recordados também na Constituição de 1988 no “Título
VIII – Da Ordem Social – Capítulo VIII – Dos Índios – Artigos
231/232” 4, onde “São reconhecidos aos Índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos origi-
nários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo
à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens”5. Por outra parte dentro do sistema brasileiro de educação
a lei no 11.645/2008 estabelece a obrigatoriedade da temática da
história e da cultura indígena dentro da rede de ensino fundamen-
tal e médio público e privado brasileiro 6. Mas, se tivermos em
3 SCHKOLINK, Susana. et al POPOLO, Fabiana. (2005). Los censos y los pueblos indígenas
en América Latina: una metodología regional. CEPAL. p. 44 BRASIL. Constituição Federal de 1988. (1988). Constituição da República federativa do Bra-
sil. Brasília, DF: Senado. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
Acessado em 14/06/20175 Ibd.6 SILVA, Edson. (2012). Povos indígenas: História, culturas e o ensino a partir da lei 11.645.
94
conta que se trata de uma lei recente, vemos uma preocupação
que chegou muito tarde, além de ter uma importante falha: não
existe a obrigatoriedade da temática dentro do ensino universi-
tário brasileiro público ou privado, de tal forma que podemos
questionar de que forma são capazes, os professores do ensino
fundamental e médio, de abordar tais questões sendo que carecem
da formação prévia para o ensino da temática indígena? Como
abordar a temática indígena deslocando a visão hegemônica da
cultura dominante instituída ao longo dos anos?
Apesar de alguns sinceros esforços, o Brasil mantêm
uma dívida social com relação aos povos indígenas, tais leis
não são respeitadas e nossa história se encontra impregnada de
opressão e marginalização que segue nos dias de hoje, princi-
palmente na expropriação territorial por parte das sucessivas
oligarquias brasileiras, dominante desde à escravidão dos “ne-
gros da terra” (escravos nativos) nos tempos da colonização. As
elites do poder que governaram e governam o nosso país são
os responsáveis por toda essa violência estrutural. Cegos pela
cobiça e atendendo aos processos desenvolvimentistas de expan-
são capitalista e especulação econômica, se camuflam na velha
noção de “progresso”, atendendo maioritariamente, às necessi-
dades e interesses econômicos das empresas transnacionais que
expropriam as riquezas naturais da terra (por vezes territórios
indígenas), mediante o extrativismo, a agropecuária extensiva e
intensiva de hoje, o agronegócio baseado na monocultura (por
exemplo da soja), a construção de hidroeléctricas(por exemplo,
Revista historien. Vol. 7, pp. 39-49
95
Belo Monte) a especulação imobiliária e os projetos políticos
de grandes interesses econômicos que surgem das mãos de uma
verdadeira minoria, como os parlamentares da bancada ruralista,
grandes proprietários de terra e defensores das empresas multina-
cionais do agronegócio que legislam em favor de seus interesses
próprios e cobiçam terras indígenas demarcadas ou em processos
demarcatórios por todo o Brasil.
Cibercultura indígena no Brasil
Mediante os avanços do que alguns autores chamam
Cibercultura (LEVY, 2007) ou sociedade da informação (CAS-
TELLS, 1999), criam-se processos de hibridismo cultural (CAN-
CLINI, 1990) nos quais encontramos envolvidas comunidades
indígenas que habitam o território brasileiro. O Ciberespaço
qualifica-se como um território transfronteiriço onde sujeitos
tradicionalmente invisíveis no mapa do Brasil assim como à soci-
edade hegemônica, encontram um meio de auto-representação
e identificação cultural, expondo um tipo de conhecimento an-
tropológico virtual. A crescente presença indígena na internet
(sites, redes sociais, blogs) permite repensar identidades culturais
e questionar a imagem genérica e estereotipada do “Índio” no
imaginário popular brasileiro (sujeito nú, morador da mata que
vive somente da caça e da pesca).
É certo que a mestiçagem, não somente biológica, mas
também cultural foi muito profunda ao longo dos séculos em
grande parte dos povos que habitam o Brasil, mas este fenômeno
96
deve ser estudado e compreendido mediante a interculturalidade7.
Toda cultura é dinâmica, se transforma com o tempo e se conta-
giam das ideias, modos de vida e costumes mediante os “contatos”
(no melhor dos casos) que se produzem entre elas, isso não têm
porque significar uma aculturação completa, pois reestruturam-
se, recriam-se e reinterpretam-se tanto cultura subordinada como
cultura dominante dentro das histórias dos “contatos”, surgindo
assim novas realidades, por meio das manifestações culturais
hibridas.
Observamos que a visibilidade indígena melhorou nos
últimos anos, foram demarcados territórios com base legal na
constituição, de tal forma que 13 por cento do território do país
são terras indígenas, e 25 por cento da Amazônia brasileira8. Isto
é algo valioso, pois onde habitam povos indígenas a natureza está
melhor preservada, não há grandes níveis de contaminação ao
meio ambiente e existe um profundo respeito ao equilíbrio do
ecossistema do plantea. Entretanto, as invasões à suas terras não
cessam, neste atual (des)governo de Michel Temer vemos um
claro exemplo dessa opressão e extorsão territorial, que perpassa
não somente os direitos indígenas mas afeta de maneira cruel e
desenfreada à natureza e o meio ambiente por vías da exploração
direta das riquezas do sólo. O governo Temer pretende abrir uma
7 Entendemos interculturalidade de acordo com a definição de Canclini (CANCLINI, 1990), ou
seja, nos referimos a aqueles processos fecundos de hibridismo que originam novas realidades
culturais, neste caso, novos costumes apropriados pelos povos indígenas, e não uma perda de
identidade ou “aculturação completa”.8 FLIP 2014. “Tristes trópicos” com Beto Ricardo e Eduardo Viveiros de Castro. Confe-
rência flip 2014:Paraty. In https://www.youtube.com/watch?v=ndtlzFzbSBw. Acessado em
21/06/2017
97
nova era de caça ao ouro entre outras atividades delitivas para
com o ecossistema, mediante parcerias do Estado brasileiro com
grandes corporações mineradoras de capital transnacional que já
operam e pretendem agora expandir suas atividades “delitivas”
na Amazônia brasileira. Em sua ultima “pedalada” contra a
Amazônia o atual presidente pretende dar legitimidade à um
Decreto lei que permita a exploração mineral de uma região
do tamanho do Estado do Espirito Santo que abriga diversas
comunidades indígenas e que até então estava restrita à pesquisas
ambientalistas e à paz dos povos originários que lá habitam.9
Por outro lado, hoje podemos afirmar que alguns desa-
fios relacionados, por exemplo, com a visibilidade das demandas
dos povos indígenas começam a ser superados com a imersão dos
índios na Cibercultura, pois o uso da tecnologia e do ciberespaço
por parte da população indígena tanto como de seus aliados não
indígenas, estão abrindo grandes vias para um conhecimento
mais amplo da alteridade indígena do país e cartografando assim
novos mapas, tanto culturais como territoriais.
Dentro destes processos vemos como a “Era da cone-
xão” (LEMOS, 2005) é capaz de gerar novos questionamentos
sobre as políticas de representação que predominam na educação
e no imaginário coletivo da sociedade contemporânea brasileira
ao redor da questão indígena. As conectividades atuais vêm
9 MENDONÇA, Heloísa (2017).Temer reage a críticas com novo decreto que
mantèm mineração em Zona da Amazônia EDICIONES EL PAÍS, S. L. In
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/29/politica/1503961054_236858.html . Acessado em
16/09/2017.
98
contribuindo para o aumento do reconhecimento, a visibilidade
e o estudo da Alteridade e a diversidade cultural indígena do
país. Sem dúvida alguma isto é o reflexo do hibridismo cultural
em grande parte tecnológico que provêm do que alguns autores
chamam Cibercultura ou sociedade da informação (CASTELLS,
1999) pois se tivermos em conta que nas atuais condições da
chamada globalização cultural (não nos referimos aqui à glo-
balização econômica entendida como a exportação do modelo
econômico neoliberal) existem vários movimentos indígenas que
se afirmam politicamente contrários à devastação ambiental de
seus territórios gerando discursos ecológicos utilizando meios
de comunicação como o rádio, a televisão e principalmente a
internet, que é utilizada como uma ferramenta importante para a
visibilidade do pensamento ameríndio na atualidade e diversos
movimentos e lideranças indígenas estão procurando reverter a
situação em que vivem: Condições de pobreza, analfabetismo,
marginalização, isolamento etc.
Podemos apreciar que estão reivindicando seus valores,
saberes e modos de vida, apostando pelo uso das tecnologias
emergentes de informação e comunicação, de tal forma que pode-
mos encontrar uma enorme quantidade de sites criados para exigir
melhorias, respeito e reconhecimento aos seus direitos, assim
como para aprender seus valores culturais e formas simbólicas
de compreender o mundo, além de entender a internet também
como uma ferramenta de defesa e de denúncia social ao redor
dos conflitos demarcatórios e aos abusos do poder governamental
para com os povos indígenas. Neste sentido a publicação do
99
relevante estudo sobre a temática da comunicação indígena brasi-
leira na internet realizado por Eliete Pereira da Silva, Ciborgues
[email protected]: A presença nativa no ciberespaço (PEREIRA DA
SILVA, 2012) a autora nos apresenta “o mapeamento de 50 sites
de organizações e de sujeitos auto identificados “indígenas” e
as interpretações nativas sobre esse ambiente informacional.”10.
O estudo conta com o mapeamento de sites de organizações
nacionais, regionais, locais, de etnias, pessoais (de importan-
tes lideranças indígenas do país) e nos revela as interpretações
indígenas sobre os canais info-comunicacionais midiáticos e a
internet. Na maioria dos casos vemos que a internet não implica
uma perda de identidade, muito pelo contrário, se mostra como
uma forte aliada na defesa de seus propósitos.
Outro grande exemplo que comprova a efetividade
desta Cibercultura indígena no Brasil é o caso do líder Almir
Narayamoga Suruí, pertencente à tribo amazônica Paiter-Suruí.
O cacique Almir, descobriu Google Earth em 2007 durante uma
visita a um cybercafé e posteriormente desenvolveu um projeto
ativista com Google para realizar a delimitação do seu território
no mapa atual do Brasil. Desde então, acolheu a tecnologia de
criação de mapas como uma forma de proteger a floresta tropical
e preservar a forma de vida de seu povo em harmonia com a natu-
reza, além de usar a tecnologia de vídeo-gravação dos telefones
celulares para denunciar invasões em suas terras por parte dos
10 PEREIRA DA SILVA, Eliete (2012). Ciborgues [email protected]: A presença nativa no ciberes-
paço. Ed. Ana Blume: São Paulo.
100
que se dedicam à tala ilegal11. Internacionalmente reconhecido
por sua criatividade no uso da tecnologia em benefício de seu
povo, o cacique Suruí atualmente se dedica à gestão de projetos
com foco no desenvolvimento sustentável da aldeia, a área de-
marcada dos Paiter Suruí se encontra no Estado de Rondônia e
outras informações sobre projetos tecnológicos atuais podem ser
consultadas no site dos Paiter-Surui12.
A(r)tivismo indigenista
O uso de câmeras de vídeo, telefone celular, internet
e outros meios são utilizados pelos povos indígenas para de-
nunciar as desigualdades e prejuízos às autoridades nacionais e
internacionais, assim como para criar material audiovisual onde
expliquem suas distintas culturas e conhecimento. Apesar das
dificuldades de conexão, enfrentam essas barreiras e utilizam es-
ses meios para ser vistos e escutados pela sociedade hegemônica
e suas instituições, muitas vezes em parceria com aqueles que
compartem preocupações socioambientais similares.
Um projeto, que considero pioneiro nesta imersão tec-
nológica dos povos indígenas é o Vídeo nas Aldeias13, criado
11 USTINOVA, Anastasia. Google breaks Amazon tribe‘s isolation. San Francisco Chroni-
cle. 2008 In http://www.sfgate.com/business/article/Google-breaks-Amazon-tribe-s-isolation-
3278226.php#ixzz1qWmqWLrV. Acessado em 6/7/201712 Paiter-Sururi (2016). Carta de principios e aspirações do parlamento Paiter-surui. em
http://www.paiter.org/parlamento_surui/ Acessado em 6/07/2017.13 VNA (2016). Projeto Vídeo nas Aldeias. Em
http://www.videonasaldeias.org.br/2009/index.php Acessado em 8/4/2016
101
em 1986 por Vincent Carelli, este trabalho é um exemplo que
corresponde com o ideal de “apoiar as lutas dos povos indígenas
para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais
e culturais”14 através de oficinas de produção cinematográfica
para os povos indígenas e contando ativamente com indivíduos
indígenas. Atualmente o projeto conta com uma vasta produção
de vídeos e documentários feitos por realizadores cineastas in-
dígenas de todo o Brasil. Uma parte importante desse material
foi exposto na 32a Bienal de Arte de SP Incerteza Viva (07 de
setembro à 11 de dezembro de 2016) na obra titulada “O Brasil
dos índios: Um arquivo aberto” onde assistimos um recorte de
85 fragmentos de 27 povos indígenas diferentes, com imagens
filmadas entre os anos 1911 e 201615. Grande parte dos vídeos
foram gravados por sujeitos indígenas, que após receberem ins-
trução em oficinas de vídeo por parte do projeto, encontraram no
audiovisual uma ferramenta de denúncia social e um aliado para
a conservação e preservação de seus saberes. É neste sentido que
podemos afirmar que a existência do ativismo indígena em redes,
deu passo ao que quero chamar aquí de A(r)tivismo (junção de
Arte + Ativismo) indigenista brasileiro. Podemos afirmar que
hoje em dia a arte contemporânea esta sendo utilizada como uma
valiosa ferramenta educacional, em função do aumento da visi-
bilidade indígena e seu (re)conhecimento político no Brasil do
século XXI.
14 Ibid.15 Publicação comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo em ocasião da 32a Bienal de
São Paulo – Incerteza Viva.
102
A tradição de uso de estéticas estrangeiras e a exibi-
ção de culturas Outras (muitas vezes culturas indígenas), assim
como sua “arte” em grandes exposições de matizes ocidentais
e hegemônicas, não é algo novo. A novidade está, de fato, na
intencionalidade com que tratam essa questão os artistas con-
temporâneos. Hoje devemos analisar o compromisso ético que
acompanha um trabalho de criação artística que se envolve politi-
camente com minorias étnicas desfavorecidas diante dos grandes
interesses dos Estados ou nações em que se encontram. Muitos ar-
tistas estão trabalhando de forma colaborativa com comunidades
e grupos étnicos minoritários afim de pesquisar e compreender
suas demandas e levá-las ao público na forma de material artís-
tico.
Apesar da contradição ao deparar-se com os inúmeros
agentes capitalistas “patrocinadores da cultura” ao adentrar o
Pavilhão, não podemos dizer que a Bienal das Incertezas e uma
importante quantidade de obras expostas nela, foram criadas com
as mesmas intenções daquela época em que o “primitivo” era
a grande novidade dentro dos movimentos artísticos que qua-
lificaram as vanguardas heroicas de raiz europeia. Muito pelo
contrário, reconheço sinceros desejos de manifestar a importân-
cia das mensagens atuais dos povos originários que habitam o
Brasil e outros países Latino-americanos. Tampouco se trata aqui,
daquela velha insistência de “dar voz” aos índios, mas sim, de
finalmente, dar “ouvidos” e enxergarmos, de fato, às mensagens
dos povos nativos que preservam saberes tradicionais e formas
de viver, que do mesmo modo que as nossas vidas urbanas exi-
103
gem o diálogo, a comunhão, o respeito e algum tipo de relação
harmônica direta ou indireta com a nossa mãe natureza.
Neste sentido, destaco duas obras que geraram impor-
tantes debates e ricas polêmicas nesta 32a Bienal de Arte de
Sp Incertezas Vivas, que me permitiram chegar ao título que da
nome à este artigo e crer na existência de um tipo de arte ativista,
socioambiental e indigenista no Brasil.
Em primeiro lugar a obra já descrita acima “O Brasil
dos índios: um arquivo aberto”, nela vemos a ferida aberta
que não deixará de sangrar tão cedo, bem como o próprio título
indica o arquivo está aberto e sua ampliação audiovisual torna-
se indiscutível nos tempos que correm, já que as discussões
políticas e artísticas sobre o tema estão muito vivas, sem espaço
para incertezas como reza o título da 32a Bienal.
A segunda obra que, na minha visão como mero es-
pectador que adentrou o acolhedor pavilhão- mágico, capaz por
sí só de legitimar como Arte (com maiúscula) tudo que alí se
encontra por encantamento espacial é a destacada, comentada e
criticada obra do artista Bené Fonteles titulada “Ágora: OcaTa-
peraTerreiro”. Como o seu próprio título induz, o autor realiza
uma tentativa de fundir o espaço aberto de discussão e reunião
que representava a ágora das polis gregas, levando o público à
debate sobre questões políticas de ativismo ecológico, questões
indigenistas e socioambientais que inundam de polêmica o Brasil
pós-Mariana16. Para isso, Bené Fonteles criou uma programação
16 No dia 5 de novembro de 2015 ocorreu em Mariana (MG) uma das piores catástrofes ambien-
104
contínua de ativação e extensão da obra onde contou com diver-
sas apresentações e encontros de seus convidados com o público.
Alguns convidados e colaboradores foram o líder indígena Aílton
Krenak, o xamã yanomami Davi Kopenawa, a fotógrafa Claudia
Andújar, os artistas Lourival Cuquinha e Ernesto Neto, o músico
Chico César e o compositor Carlos Rennó, entre outros.
As propostas de reunião e debate, aconteceram durante
todo o período de duração da Bienal nas chamadas ativações da
obra, onde o autor introduziu o público nas chamadas Conversas
para adiar o fim do mundo. Se a obra não é oca porque não foi
moradia de nenhum individuo indígena, não é terreiro porque
ali não ocorreu nenhuma gira ou ritual do tipo mágico-religioso
e não é tapera porque não se tratava de uma casa de pau a pi-
que em ruínas, penso que a obra funcionou como Ágora, pois
acredito que o autor realmente conseguiu ultrapassar a linha da
representação artística e levar adiante grandes encontros e trocas
de saberes nas reuniões e nos debates posteriores. Os encontros
propostos funcionaram como espaço de discussão sobre as po-
líticas opressoras do Estado brasileiro e as grandes corporações
extrativistas com relação aos povos indígenas, que hoje em dia
atuam muitas vezes como guardiões das florestas e do equilíbrio
ecológico e termodinâmico do planeta Terra. Uma grande adver-
tência se encontra na visão do xamã Yanomami Davi Kopenawa,
quem nos recorda que a "Queda do Céu"está por vir, se aproxima
tais da história do Brasil, após o rompimento de uma barragem da mineradora Samarco que é
controlada pela Vale e pela BHP Billiton. O acidente arrastou aproximadamente 62 milhões de
metros cúbico de rejeitos de mineração ao longo do Rio Doce. A tragédia causou várias mortes
e deixou várias pessoas desabrigadas, além de impactos ambientais irreversíveis.
105
tragicamente graças à noção de progresso e desenvolvimento
econômico defendida pelos que ele define (“Nós”) como o "povo
da mercadoria".
Referências:
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estrategias para entrar y salir de lamodernidad. Grijalbo: México, 2005.
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, vol. 3,São Paulo: Paz e terra, 1999, p. 411-439
DA CUNHA, Manuela Carneiro. Historia dos Índios no Brasil..São Paulo: Compa-nhia das letras, 1992. p. 279-282
LEMOS, André. Cibercultura e mobilidade: A era da conexão. Intercom: Rio dejaneiro, 2005.
LÉVY, Pierre. Cibercultura: la cultura de la sociedad digital. Barcelona: Antrophos,2007. p.230.
PEREIRA DA SILVA, Eliete. Ciborgues [email protected]: A presença nativa no cibe-respaço. Ed. Ana Blume: São Paulo. 2012
SCHKOLINK, Susana; POPOLO, Fabiana. Los censos y los pueblos indígenas en
América Latina: una metodología regional. CEPAL, 2005 p. 4
Artigo de revista:
SILVA, Edson. (2012). Povos indígenas: História, culturas e o ensino a partir da lei 11.645.Revista historien. Vol. 7, 2012. p. 39-49
Homepage:
106
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USTINOVA, Anastasia. Google breaks Amazon tribe‘s isolation. San Francisco Chronicle. 2008.Disponivel em < htt p : //www.s f gate.com/business/article/Google−breaks−Amazon− tribe−s− isolation−3278226.php#ixzz1qWmqWLrV >. Acesso em 6 jul 2017
FLIP 2014. “Tristes trópicos” com Beto Ricardo e Eduardo Viveiros de Castro. Conferência flip2014:Paraty. Disponivel em< https://www.youtube.com/watch?v=ndtlzFzbSBw > Acesso em 21 deJun. 2017. MENDONÇA, Heloísa (2017). Temer reage a críticas com novo decreto que mantèmmineração em Zona da Amazônia. EDICIONES EL PAÍS, S. L. Disponível em<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/29/politica/1503961054_236858.html>. Acessado em 19de Out de 2017.
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9 Uma Carroça Sonora e
uma Bicicleta Sonora,
a Deriva como Disposi-
tivo para Poéticas na Ci-
dade.
108
Uma Carroça Sonora e uma Bicicleta Sonora, a Derivacomo Dispositivo para Poéticas na Cidade.
Mirian Steinberg
O espaço da cidade é formado por um complexo fluxo
de informações, pessoas, imagens, sonoridades, onde se apre-
sentam vários elementos que formam as estruturas e imagens
urbanas. Elementos estruturais da cidade como as ruas e as calça-
das, os tapumes, os cruzamentos com carros, pessoas, carroceiros
com suas carroças, ciclistas, semáforos, faixas de pedestres, ci-
clovias. A cidade como um lugar, ou lugares onde pessoas e
coisas interagem e convivem mutuamente e simultaneamente,
como fluxos de circulação de formas e sonoridades na paisagem.
Há uma dinâmica numa diversidade de fluxos de pes-
soas se apropriando dos espaços e ao me colocar com o olhar
atento a região central de São Paulo e observar ás pessoas de dife-
rentes classes sociais e idades, os moradores de rua, passeadores
de cachorros e carrinhos de bebês, nota-se na multiplicidade de
pessoas com diferentes ritmos e velocidades dos passos, uma
infinidade de ruídos entre pássaros tímidos, motores de carros,
109
buzinas, sirenes, vozes de ambulantes, fragmentos de narrativas,
ao mobiliário urbano como os bancos da praça ora vazios ora
cheios, a movimentação de caminhantes em trajetórias diversas e
simultâneas.
Nesse contexto, o caminhar nas ruas de São Paulo
pode parecer um filme a céu aberto, sendo transmitida numa
sala expandida, a cidade, cujo expectador é o público observador
atento a essa dinâmica. Situa-se no urbano um lugar de percepção
e de acontecimentos, um espaço como um sistema de coisas e
relações, não como as definições clássicas de espaço, mas sim
como um conjunto indissociável de que participam de um lado
certo arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos
sociais, e de outro lado à vida que os preenche e os anima, seja
a sociedade em movimento. (SANTOS, 1998, p.10).
Nas derivações pelas ruas, além das percepções visuais,
a escuta das diferentes narrativas particulares, subjetividades e
conteúdos em movimento na cidade também são estímulos de
construção de poéticas. Conforme Santos:
O conteúdo (da sociedade) não é inde-pendente, da forma (os objetos geográ-ficos), e cada forma encerra uma fra-ção do conteúdo. O espaço, por conse-guinte, é isso: um conjunto de formascontendo cada qual fração da sociedadeem movimento. As formas, pois temum papel na realização social. (SAN-TOS, 1998, p 10).
110
A deriva é uma prática de um caminhar sem rumo,
passando por diversos ambientes e sendo afetado na cidade e
afetando ela mesma. Foi nas derivas pelas ruas de alguns bairros
de São Paulo que se inicia esta pesquisa e encontro personagens
com suas narrativas e formas originais de se colocar no espaço
urbano. Tal prática da deriva leva a deambulação na cidade. A
deambulação é um chegar caminhando a um estado de hipnose, a
uma desorientação ou perda de controle, é um médium através do
qual se entra em contato com a parte inconsciente do território.
(CARERI, 2013). Hélio Oiticica diria Delirium Ambulatório,
ao se referir à arte na vida. A ideia de que arte e a vida se
embaralham já estava na Land Art em Robert Smith na década
de 1960 e 1970 criava-se um imaginário à volta da natureza. Os
mapas afetivos tem uma lógica própria e a derivação é retratada
no espaço gráfico, seguindo uma lógica pessoal despertada pela
atmosfera na inter-relação da cidade e o corpo em movimento.
O disparador dessa pesquisa se deu durante as deri-
vas, na modalidade de registros em vídeo em andamento, na
observação de alguns modos de vida e de deslocamentos nas
ruas da cidade. Dois principais personagens foram encontrados
na cidade com seus objetos sonoros e estes ao circularem ex-
pressam seus desejos, numa produção de suas particularidades e
singularidades.
A escolha do objeto a ser pesquisado se deu durante as
derivas: um carroceiro e morador de rua com sua carroça sonora
no centro da cidade (figura 24) e um ciclista com sua bicicleta
111
de 25 mil leds e caixas de som no bairro do Butantã (figura 25)
morador de uma das maiores favelas da região do Morumbi, a
Paraisópolis.
Figura 24 – Carroça Sonora de Lucena - Região Central de SãoPaulo – 2017. Fotografia do autor do artigo.
A deriva me levou, por acaso, ao encontro dos per-
sonagens protagonistas Lucena e Berbela. Ambos com seus
respectivos objetos sonoros 1 criando eventos sonoros 2 nas ruas.
Lucena carroceiro e morador de rua desde seus cinco anos de1 Objeto Sonoro – Pierre Schaeffer inventor desse termo (lóbject sonore) o descreve como um
“objeto acústico para a percepção humana e não um objeto matemático ou eletroacústico para
síntese”. Definido pelo ouvido humano como a menor partícula independente de uma paisagem
sonora e é analisável pelas características de seu envoltório. Embora possa ser referencial como
um sino, um tambor, é considerado como uma formação fenomenológica. Comparado com
Evento Sonoro. (Schafer, 1977, p.366).2 Evento Sonoro – alguma coisa que ocorre em certo lugar durante um intervalo de tempo. O
112
idade, atualmente com 32 anos, morador do centro de São Paulo
carrega uma carroça sonora com 10 caixas de som e com pendrive
de músicas de sua preferência dentro do seu repertorio variado
de músicas internacionais da década de 90.
Figura 25 – Bicicleta do Berbela, Paraisópolis – 2017 Autor doartigo - fotografia de celular.
Berbela de 53 anos de idade, artista, artesão e mecâ-
nico de moto na Favela Paraisópolis – no bairro do Morumbi, sua
casa é um ponto turístico na Paraisópolis. Há 15 anos equipou
evento sonoro, como OBJETO SONORO é definido pelo ouvido humano como a menor partí-
cula independente da PAISAGEM SONORA. Difere do objeto sonoro na medida em que é um
objeto acústico para estudo simbólico, semântico e estrutural para estudos de maior magnitude
de que ele próprio. (Schafer ,1977, p.366).
113
uma bicicleta com 25 mil leds, dvd, televisão, sirene, um rádio
com bateria de carro que abastece o sistema de luzes e som do
alto-falante. Toca em seu rádio músicas variadas de seu reperto-
rio musical internacional da década de 80, John Lennon, Elton
John, e também gosta muito de Raul Seixas. Sai semanalmente
pedalando ao anoitecer sua bicicleta sonora e sempre concentra
muitas pessoas em volta dele e da bicicleta.
Ambos os personagens urbanos se colocam de uma
forma singular na cidade. Além de eles estarem engajados em
seus trabalhos, o corpo é como uma máquina de carregar o peso
dessa estrutura sonora e visual, já percorrem as ruas da cidade
com um objeto sonoro, sendo este um veículo móvel, onde o
corpo é o motor que transporta resíduos sólidos, objetos, mobi-
liário, bateria, caixas de som, músicas, luzes, além de estarem
engajados na dinâmica da cidade. Lucena exibe esporadicamente
jogos de futebol nas praças do centro da cidade com uma TV den-
tro da carroça. Em ambos, o corpo escolhe o trajeto conforme os
limites do peso possíveis do corpo em transportar os seus objetos
sonoros e visuais e os limites impostos pela própria geografia e
os relevos das ruas. Tanto em Lucena, o carroceiro e em Berbela,
o ciclista, o corpo está inteiramente implicado na caminhada
e assim ambos criam um rastro de musicalidades previamente
selecionadas, conforme suas preferências e repertorio, reiterando
a subjetividade, singularidade e identidade musical através do
objeto móvel, sonoro e musical.
Uma ação do corpo em experimentar o espaço da ci-
114
dade, numa atitude de esforço e atividade de interação com a
cidade. Um gesto para além do transitar com um objetivo de
chegar a algum destino. O local de chegada e de saída não é a
prioridade, e sim o tempo de deslocamento e de relações, como
caracteriza um espaço nômade e também o nomadismo.
Nômade é aquele que não tem uma habitação fixa. Es-
tabelece uma estreita relação com o espaço, um espaço do ir e
do deslocamento. Vive em contraposição entre o espaço fixo e a
sedentariedade dos agricultores e a dinâmica do nomadismo dos
pastores. Nessa relação é criado um espaço neutro, vazio, entre o
nômade e o sedentário, no deserto vazio e a cidade. Deleuze e
Guatarri (2009) descrevem essas diferenças entre sedentarismo e
nomadismo como o espaço estriado é determinado pela ordem
e pelos limites, muros, calçadas, percursos definidos e o espaço
liso marcado por traços indefinidos e novos percursos.
Personagens como Lucena e Berbela, ambos em situa-
ções de vulnerabilidade social, em situações precárias de sobre-
vivência e ativam a cidade com seus objetos musicais, criando
percursos como um evento sonoro / musical e visual. Estabe-
lecem uma relação de apropriação do espaço não determinado
pelas regras de utilização do espaço urbano, como nômades tra-
çando percursos construídos numa interação entre a cidade e
as singularidades de seus corpos, das musicalidades emitidas
em seus veículos e no rastro de luzes na bicicleta de Berbela.
Colocam o próprio corpo como um todo, em derivas e imerso
na multiplicidade de estímulos, em estado de deslocamento no
115
ambiente das ruas, sendo esse um dos contextos de significação
do trabalho. Formam acontecimentos potentes de ampliação da
escuta e da observação das fluências e opacidades urbanas.
Os Situacionistas3, poderiam dizer em fazer uma revo-
lução a partir dos acontecimentos da cidade, e desenvolvem a
ideia de um pensamento urbano situacionista. Nesse pensamento
Francis Alys se inspira e passa anos percorrendo várias cidades
do México (onde vive atualmente), Cuba, Londres, Jerusalém.
Realiza a série Construir Caminhando e a obra The Green Line
(figura 26) em Jerusalém em 2004. Ele diz que a cidade se con-
verte em um laboratório de experimentações e num labirinto que
obriga a se perder.
Os Situacionistas propõe a deriva como um procedi-
mento de passagem através dos variados ambientes que cons-
troem conhecimentos de natureza psicogeográfica4, um compor-
tamento que se opõe as noções clássicas de viagem e de passeio e
visa o rompimento do olhar automatizado e ampliação da escuta
da paisagem sonora.
A deriva nas ruas é uma potência de processos criativos
e composições estéticas, um campo para criar mapas, cartografar
3 Situacionista - A Internacional Situacionista - fundada em 1957 por Guy Debord (1997)
caracteriza-se como um tipo de comportamento da sociedade urbana. Composta por artistas,
pensadores, e ativistas propunha a pratica coletiva da criação artística e apropriação dos espa-
ços urbanos através da construção de situações. (MAZZILLI, , 2015,p. 99).4 Psicogeografia estudava o ambiente urbano, sobretudo os espaços públicos, através das derivas
e tenta mapear os diversos comportamentos afetivos diante dessa ação básica do caminhar na
cidade (MAZZILLI, 2015 p. 99).
116
Figura 26 – The Green Line de Francis Alys. Jerusalém /2004.
situações e formas de resistência e relações com a sociedade.
Oiticica ao trazer o conceito de anti-arte com os Parangolés
critica o conceito de museu, galeria de arte e a própria ideia de
exposição e afirma ser a anti-arte por excelência, e se estende ao
conceito de “apropriação” ás coisas do mundo, sobre as coisas
do mundo a cidade como um labirinto, o museu é o mundo!
(OITICICA, 2010, p.21)
Uma primeira questão a ser colocada é sobre as caracte-
rísticas estéticas da carroça e da bicicleta sonora como elementos
urbanos geradores de um campo de forças, uma singularidade
de produção e alteração da paisagem visual e sonora das ruas,
117
criando uma atmosfera poética no ambiente, uma relação de con-
vívio entre as pessoas que param para escutar e ver a carroça
e a bicicleta. Nesse sentido, uma obra pode funcionar como
dispositivo relacional com certo grau de aleatoriedade, máquina
de provocar e gerar encontros casuais, individuais ou coletivos.
(BOURRIAUD, 2009).
A artista Sophie Calle também se insere nas caminha-
das estéticas e segue um determinado passante nas ruas de Paris e
depois formaliza através de uma experiência biográfica que a leva
a colaborar com as pessoas com quem se deparou. As relações
de convívio como forma de arte é uma constante histórica desde
os anos de 1960.
Ligia Clark propõe na sua obra interativa Caminhando
(1964) um corte com tesoura na fita de Moebius trazendo a refe-
rência a um espaço topológico, a partir da experiência do corpo
em realizar uma caminhada, com escolhas, curvas, percursos
longos, infinitos e constantes, a vida como uma caminhada, o
emaranhado entre arte e vida.
A modalidade das experiências estéticas nas derivas
se insere na relação de um embaralhamento entre a arte e a
vida já bastante frequente na arte. Na literatura de Alan Põe
com o celebre conto o homem das multidões e no flanar de
Baudelaire. Os objetos sonoros na cidade suscitam uma reflexão,
uma proposição, o gesto do artista e não a produção de um objeto
artístico, como nos ready-made em Duchamp.
118
Uma obra é uma máquina de significar (. . . ) osready-made são objetos de adoração, nem de uso,mas de invenção e de criação. Duchamp pretendereconciliar arte e vida, obra e espectador (. . . ) artefundida a vida é arte socializada, não arte socialnem socialista e ainda menos atividade dedicadaá produção de belos objetos ou simplesmente de-corativos (. . . ) a arte que obriga o espectador eo leitor a converter-se em um artista e em poeta.(PAZ, 2012 p.61)
Os elementos sonoros encontrados nas ruas suscitam
algumas reflexões. Serão a carroça sonora de Lucena e a bicicleta
sonora de Berbela objetos relacionais? Eles criam situações e
relações, favorecem um intercambio humano e urbano, uma
atmosfera de acontecimentos na cidade, inseridos no espaço
relacional como define Bourriaud sobre arte relacional, como
uma espécie de ready-made urbano ao criar uma admiração no
espectador-passante-publico na rua que o fazem muitas vezes
reinventar os percursos e segui-los. Como também a artista Sofie
Calle ao seguir um passante na rua e converter essa caminhada
criando vídeos, fotografias, poesia na rua.
Serão esculturas sonoras na cidade conforme propõe
Rosalind Krauss apontando a arte relacional na criação de espa-
ços de poéticas? A proposição de que toda obra de arte pode
ser definida como objeto relacional, como o lugar geométrico de
uma negociação com inúmeros correspondentes e destinatário
e está implicada nessa atmosfera criada pela carroça e pela bici-
cleta sonora encontrada na deriva pela cidade. (BOURRIAUD,
2009).
Nesse contexto Bourriaud, referindo-se à Rosalind
119
Krauss sobre escultura expandida no campo ampliado, levanta
uma questão sobre os acontecimentos nas ruas da cidade, e que
aqui não se trata mais de ampliar os limites da arte, mas sim
capturar ready-made, esculturas sonoras, relações criativas nas
derivas pelas ruas e viver na cidade um campo expandido de
acontecimentos e potências criativas.
Testar a capacidade de resistência dentro do camposocial global, a função crítica e subversiva da artecontemporânea agora se cumpre na invenção delinhas de fuga individuais e coletivas, nessas cons-truções provisórias e nômades com que o artistamodela e difunde situações perturbadoras. (BOUR-RIAUD, 2009 p.44).
OPACIDADES, um jogo deesconde-esconde na cidade
A ideia do caminhar ser como um jogo em busca de
situações lúdicas já existentes pela cidade, uma busca da cidade
nômade escondida dentro da cidade sedentária ou, como explica
Deleuze e Guatarri, um jogo de esconde-esconde em que os
jogadores caminhantes buscariam o próprio princípio do jogo
que coexiste num espaço indeterminado da cidade, seria o mote
desta pesquisa. Milton Santos chamou esse espaço de espaços
opacos. Considerados espaços abertos do aproximativo e da cria-
tividade, em oposição aos espaços luminosos considerados como
espaços fechados de exatidão, racionalizados e racionalizadores.
A distinção de espaços luminosos e espaços opacos de Santos,
Deleuze e Guatarri chamaram de espaços estriados e espaços
lisos. (CARERI, 2015, p.13).
120
Os personagens dos objetos sonoros, Lucena e Berbela
seriam criadores dos espaços menos estriados e racionalizadores,
e também de opacidades capazes de construírem espaços abertos,
opacos e lisos, numa função poética de ampliação da observação,
de relação e de criação de novos campos com publico, de realizar
aproximações de pessoas, produzir encontros e acontecimentos
estéticos como um jogo lúdico na cidade.
Nesse sentido a deriva pretende encontrar com o so-
noro/musical desses veículos moveis e escutá-los, como num
jogo de esconde-esconde onde a regra é capturar poéticas, rastros
musicais ao meio do caos da paisagem sonora urbana, registrar
formas inusitadas no caos da metrópole, ressaltar e reconhecer
os gestos e narrativas humanas dos transeuntes. Uma deriva que
ressalta e cria opacidades dentro da cidade luminosa e estriada
com suas inúmeras regras, poderes e exclusões sociais.
A carroça de Lucena e a bicicleta de Berbela, itine-
rantes, num certo nomadismo, forma como um jogo de esconde-
esconde deslizando pelos espaços lisos e opacos da cidade, tornando-
a menos estratificada.
O espaço nômade é um espaço vazio, desabitado, é o
próprio percurso que define o espaço formado durante o trajeto,
como um rastro móvel. Não há a relevância dos pontos de partida,
nem os de chegada, o deslocamento é o lugar. “Assim como o
percurso sedentário oferece uma estrutura e dá a vida á cidade,
o nomadismo considera o percurso como o lugar simbólico em
que se desenrola a vida da comunidade.” (CARERI, 2015, p.42).
121
Os elementos sonoros encontrados nas derivas criam
espaços nômades na cidade e permitem coexistirem com os au-
tomatismos velozes da metrópole, compondo o que Massimo
Canevacci em 2004 apresenta como cidade polifônica. Ele re-
aliza um ensaio sobre suas observações pessoais da cidade de
São Paulo possibilitando novas formas de interpretação das soci-
edades complexas. Não pretendo me estender nesse estudo, mas
focar no que ele denomina a cidade como “cidade patchwork” e
apresenta uma metodologia de “dar voz a muitas vozes” expe-
rimentando um enfoque polifônico á cidade multifocal. E, para
capturar a realidade local utiliza-se da deriva, que ele caracteriza
como “um abandono ao fluir das emoções” e defende o apuro
no olhar e na escuta (grifo próprio) para interpretação dos signos.
(MAZZILLI, 2015, p.98).
Estética do precário
Outra questão importante nessa pesquisa é a reflexão
sobre o paradoxo da precariedade. Por um lado Berbela e Lucena
vivem em situações de rua ou morando na favela com alta vulne-
rabilidade social, são anônimos, comuns, inseridos na sociedade,
em suas particularidades e simplicidade, com seus objetos sono-
ros, criam eventos sonoros, alterando a paisagem sonora e visual
na cidade. Ambos não têm uma formação nas artes, tampouco
uma iniciação na educação que prescreve, codifica a arte e a
cultura como relevantes.
122
Nesse contexto, cabe destacar o interesse de Dubuffet,
um artista em Paris que realiza viagens e pretende nelas encontrar
o que ele chama do homem comum, coisas do povo, as origina-
lidades no precário, artista do lado de fora, outsiders. Ele faz
uma “deriva” como “curador” e busca em suas viagens encontrar
pessoas com forte expressividade, mas sem uma formação esté-
tica convencional, uma busca de pessoas comuns, artistas fora
do circuito das artes. Visita hospitais psiquiátricos, periferias,
cria coleções e organiza todo esse material. Nega o domínio do
percurso da técnica, do artista que cumpre com as etapas formais
para ser reconhecido, e ser encaixado no circuito das modalida-
des artísticas. Tenta nesses artistas e suas obras, desconstruir
com o mito de ser artista, com isto faz uma critica a ideia de arte
genial com qualidade técnica, do artista como um sacerdote. Cria
a noção de Arte Bruta que designa produções de arte não conven-
cionais, faz críticas à educação formal engessada pelo sistema,
numa cultura asfixiante. Fez um texto manifesto consagrado e
publicado em 1968. (DUBUFFET, 1998).
No Brasil destaca-se essa influência a atuação da mé-
dica Dra. Nise da Silveira com forte dissidente desse pensamento
na obra do Bispo do Rosário, paciente psiquiátrico, artista reco-
nhecido depois da sua morte. O domínio do olhar naquilo que se
impõe como o precário como arte, os objetos não uteis, mas com
uma qualidade estética.
Em se tratando de objetos sonoros, existe a escuta do
sonoro da carroça e da bicicleta na rua. No contexto da escuta da
123
paisagem sonora5, o som na cidade é um ruído. Cabe uma breve
analogia metafórica sobre a precariedade e o ruído. O ruído é
um elemento sonoro que interfere na ordem harmônica, como
algo a ser evitado. O ruído é um conceito trazido pela música
contemporânea, mas se expande na ideia de tudo aquilo que ainda
não está inserido e que provoca reações de estranhamento, que
pode ser desagregador do ambiente e ameaçar a sociedade. O
ruído como metáfora do que não deve ser visto, nem escutado. Na
música contemporânea foi colocado em destaque desde Russolo,
pintor e compositor, construiu o primeiro instrumento de ruído
das máquinas e publicou um tratado sobre o ruído em 1913. Na
vanguarda norte-americana da música de John Cage o ruído pode
ser um acaso, um descontrole, um improviso.
Em princípio, sabemos que o ruído e o lixo são colo-
cados à margem, como algo que a sociedade não quer escutar
nem ver, algo que atrapalha o bem-estar, elementos de rejeição
e de “poluição sonora e visual” que deve ser eliminado, jogado
fora, um lixo! O precário como um ruído social, naquele em
que há uma relação de aceitação ou de rejeição das pessoas que
escutam o ruído. O ruído como metáfora de precariedade. Cabe
aqui apresentar algumas questões complexas que se pretende
aprofundar durante a pesquisa. Qual a ética e a estética dos ruí-
dos emitidos pelos nossos protagonistas e seus objetos sonoros?
Será ele algo incômodo, marginalizado, periférico, rejeitado ou
5 Paisagem Sonora – é o ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro
vista como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construção
abstrata, como composições musicais e montagens de fitas, em particular considerada como um
ambiente (SCHAFER,1997, p. 366).
124
provoca musicalidades e estão no centro da discussão? O ruído
e o precário aqui estão em movimento, dinâmico, num transito
entre o centro e a periferia da cidade, abrindo a discussão sobre
o que é de fato a precariedade na sociedade.
Bourriaud em Radicantes traz à discussão o tema da
precariedade estética e as formas errantes na sociedade desde o
início do século XXI com a generalização dos descartáveis, o
grito de alerta, muitas vezes clichês, dos ecologistas. Coloca a
questão da precariedade e da brevidade da vida dos objetos, o
precário é efêmero.
O termo “precário” qualificava um direito de usorevogável a qualquer momento (...) matéria frá-gil, curtas durações, matizes incertas (...) e sobre-puja o longo prazo e o direito de acesso à propri-edade, à estabilidade das coisas, dos signos e dosestados se torna exceção. Bem-vindos ao mundodos descartáveis: um mundo de destinos custo-mizados (...) um consumismo globalizado repre-sentado pelo shopping centers que representam aface gloriosa e as favelas ou os mercados de pul-gas, o avesso miserável, em um universo que pre-valece uma competição generalizada entre empre-gados descartáveis, consumidores e consumidos.(BOURRIAUD, 2011, p. 81).
Estamos numa sociedade conduzida por uma precarie-
dade generalizada. Um mundo pós-moderno onde os princípios
se mesclam e se multiplicam com incessantes multiplicações.
Em suma, a precariedade hoje impregna a totalidade da estética
contemporânea.
Aqui com nossos objetos sonoros há um paradoxo, pois
é no precário das ruas e das favelas que se encontra uma estética
125
fora dos sistemas de consumo e comercialização, pertencentes e
engajados na criação de uma nova escuta e olhar, uma difusão
cultural que define outro território numa situação inédita. Rompe
com o lugar-comum dos automatismos do ritmo metropolitano,
acorda um tempo de intensidades e memórias afetivas estimula-
das pelo repertorio musical que atravessa as ruas. Propõe uma
escuta na rua singular e cria subjetividades no publico. Uma
estética do esvaziamento das crenças e valores de que uma obra
deve estar nas galerias e museus e sendo realizadas por artistas
consagrados.
Pois o que hoje se vê, quando se observa a produ-ção artística, é que novos tipos de contratos pa-recem estar se constituindo entre cultura e pre-cariedade, entre duração física da obra de arte esua duração como informação, alterando a basede certezas sobre as quais se apoiavam até entãoo pensamento crítico (. . . ) ter encontrado novosmeios de resistir a esse novo ambiente instávelcomo também de extrair dele uma nova força, eque uma nova cultura (. . . ) que tem a precarie-dade como pano de fundo. (. . . ) neste início desec. XXI, se desenvolva a partir dessa falênciada duração, no próprio cerne do turbilhão consu-mista e da precariedade cultural, vindo se opor áfragilidade dos territórios humanos sob efeito domaquinário econômico globalizado. (BOURRI-AUD, 2011, p. 84).
Não pretendo me deter, mas citar brevemente alguns
artistas que se utilizaram da estética do precário, com o uso de
materiais e objetos achados, como Kurt Schwitters em suas cola-
gens criando relevos no espaço. Rauschenberg (figura 27) com
uma perspectiva Duchampiana com dejetos industrializados acu-
mulados, pelos artistas italianos da Arte Povera e as composições
126
do movimento Fluxus na valorização do cotidiano numa poética
do quase nada.
Figura 27 – Robert Rauschenberg – Riding Bikes, 1998 – Berlim– Alemanha – Fotografia Hans Bug.
Considerações finais
O que defendo nesta pesquisa é que os objetos sonoros
de Berbela e Lucena ao produzirem eventos sonoros, conduzidos
pelo simples desejo de emitir e produzir imagens, sons e músicas
alteram o olhar e a escuta dos passantes e modificam os espa-
ços da cidade. As derivas como instrumentos de investigação
podem permitir ao pesquisador encontrar espaços de opacidades
127
na cidade e acredita-se que através de registros é possível poten-
cializar tais ações, com o objetivo de devolver e amplificar os
sons das ruas e suas significações.
O que se propõe é criar nas pequenas ações e nas adver-
sidades caóticas da vida urbana, novas maneiras, mais nômades
e fluentes de circulação pela cidade, sem pontos fixos e sentidos
de propriedade, com mais liberdade e experimentações aos per-
cursos menos determinados, abrindo frestas de subjetividades e
singularidades, ampliando as referências culturais naqueles que
transitam. Essas pequenas ações do cotidiano de Berbela e Lu-
cena permitem revisitar a cidade e mesmo nas suas adversidades
e vulnerabilidades sociais transmitem suas poéticas no cotidiano,
ativando a cidade e sendo protagonistas na cena criativa fora do
circuito das artes e das galerias. Uma política de pessoas co-
muns, engajadas numa vida menos capitalista e consumista, com
menos sentidos de propriedade e de mais sentidos inventivos na
vida. Essa é a relevância da pesquisa, através dos registros e suas
formas de exibição e invenção de proposições artísticas a serem
desenvolvidas no decorrer da pesquisa, tornar publico e dar voz
aos anônimos artistas encontrados nas derivas pela cidade de São
Paulo.
Trazer a estética do precário e questionar a sociedade
liquida (Zygmunt Bauman, 1925- 2017) do consumo, sendo ela
sim precária de conteúdos e produções de subjetividade e desejos.
A pesquisa está em andamento, já foram iniciados os
primeiros registros em vídeo e o cronograma com as ativida-
128
des teóricas estão sendo realizados, com o levantamento dos
principais autores e referenciais, os conceitos centrais que norte-
arão a pesquisa e a contextualização histórica no campo da arte
contemporânea.
Neste sentido, eu pretendo aprofundar nos registros
em campo em vídeo na cidade e no exercício das derivas juntos
com os protagonistas (Berbela e Lucena) acompanhá-los, realizar
filmagens, conversas, escutas das narrativas, contemplando as
aproximações e abordagens possíveis dentro da linguagem do
vídeo, procurando manter a natureza da deriva no trabalho. O
roteiro será feito durante a deriva e na edição dos vídeos serão
melhores elaboradas. Os processos e procedimentos artísticos
serão aprofundados no decorrer da pesquisa de campo.
Referencias:
BOURRIAUD, Nicolas. Radicante. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CARERI, Francesco. Walkscapes, O caminhar como prática estética. São Paulo: Editora GG, 2015.
DUBUFFET, Jean. L’ Homme du Commun á L’ ouvrage. Paris: Gallimard, 1973.
DELEUZE E GUATARRI, Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol1. São Paulo: Editora 34,2009
MAZZILLI, Clice de Toledo Sanjar. Projeto e Linguagem. Design, Arte, Arquitetura e cidade.Defesa em 2015. 270 f. Livre Docência Departamento de Projeto em Faculdade de Arquitetura eUrbanismo em Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.
OITICICA, HELIO. Museu É o Mundo. Catálogo do Instituto Itaú Cultural. São Paulo: 2010
PAZ, Otavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. 3aedição. São Paulo: Editora Perspectiva,2012.
129
SANTOS, MILTON. Metamorfose do espaço habitado, fundamentos teóricos e metodológicos dageografia. São Paulo: Hucitec, 1998.
SCHAFER, Muray. A afinação do mundo. São Paulo: Editora UNESP, 1997.
TEORIA DA DERIVA E O URBANISMO SITUACIONISTA. Portfólio. Disponívelem:htt p : //reverbe.net/cidades/port f olio/teoria−da−deriva− e−o−urbanismo−situacionista/.Acessoem : 06 jun.de2017.
10 Arte Emergente: sis-
tema arte e complexi-
dade.
131
Arte Emergente: sistema arte e complexidade.
Judivan José Lopes
Sistema, Complexidade,pensamento sistêmico.
O desenvolvimento da teoria geral de sistema teve iní-
cio na primeira metade do século XX pelo biólogo austríaco Karl
Ludwig von Bertalanffy, que a concebe e configura como estudo
da organização de fenômenos. Segundo (BERTALANFFY, 1973,
p. 84), “um sistema pode ser definido como um complexo de
elementos em interação”, ou um grupo de unidades combinadas
que formam um todo organizado que se relacionam entre si.
Os sistemas, independentes de sua natureza, abrigam
princípios gerais como os de “totalidade e soma, mecanização,
ordem hierárquicas, aproximação a estados estáveis, equifinali-
dade” (idem, p.120), e pode habitar a investigação dos princípios
comuns a todas as entidades complexas as quais podem ser utili-
zadas para a sua descrição.
132
A teoria de sistemas permite reconceituar os fenô-menos dentro de uma abordagem global, permi-tindo a inter-relação e integração de assuntos quesão, na maioria das vezes, de naturezas completa-mente diferentes. Dando assim uma visão em di-versas áreas do conhecimento. Um sistema é com-posto por inúmeros fatores que quando usadosadequadamente pode contribuir muito no cresci-mento de uma organização. (SOUSA, 2013, p.2).
Dessa forma pode abordar questões científicas e empí-
ricas ou pragmáticas dos sistemas, e tem como fator importante
o modo sistêmico de pensar, para Senge (2017, p. 127), “o pen-
samento sistêmico é uma disciplina para ver o todo, É um quadro
referencial paraver inter-relacionamentos [. . . ] os padrões de
mudanças” que permite mudar os sistemas com maior eficácia e
agir mais de acordo com os processos do mundo natural, adminis-
tração, engenharia, economia, política, ecologia e até fisiologia
(idem, p. 128).
Praticar o pensamento sistêmico é abordar os principais
conceitos da teoria de sistemas “entrada, saída, processamento,
retroação, homeostasia e ambiente” como disse Souza (2013,
p. 2), é pensar nas relações entre suas partes, nas inter-relações
entre elas, o que atingir e onde se pretende chegar, é pensar como
o organismo pode funcionar. O pensamento sistêmico por sua
vez é:
Enxergar através da complexidade para entendersuas situações, suas causas profundas e as con-sequências das ações. Para tal, segundo Argyrise Shon (1974, 1978 e 1979), ambientes assim fa-vorecem a confiança, de forma a criar um vínculovirtuoso de aprendizagem e abertura. (CARVA-LHO, 2010, p.13).
133
O pensamento sistêmico favorece uma visão holística
da complexidade ao facilitar a identificação e visualização de
variáveis e estruturas complexas que, através de ferramentas da
dinâmica de sistemas podem ser facilmente entendíveis por ele
e pelos demais envolvidos na situação em análise. Na prática
o compartilhamento destas ferramentas, os objetivos e detalhes
de cada parte da situação e dela como um todo, se tornam mais
claros, é o que diz (MENDES, 2011), em seu blog, ao se referir
as principais ferramentas relacionadas ao pensamento sistêmico.
Com base ainda em Peter Senge (2017, p. 209), “as or-
ganizações só aprendem por meio de indivíduos que aprendem”,
destacando a importância do que ele conceitua como domínio
pessoal frente a aprendizagem organizacional, em função do cres-
cimento criativo do coletivo para atingir metas escolhidas, que
sem as “ferramentas que promovem a consciência pessoal e as ha-
bilidades reflexivas, ‘infraestruturas’ que tentam institucionalizar
a prática regular dos modelos mentais”. (idem, p. 270).
A integração das disciplinas ao pensamento sistêmico
não poderia ser melhor sucedida sem a associação, por um lado,
ao assumimos o comprometimento mútuo de manter uma mesma
imagem no panorama não individual, mas, em conjunto, em uma
visão compartilhada. Por outro lado, acrecido de um compor-
tamento de “alinhamento e desenvolvimento da capacidade da
equipe de criar os resultados que seus membros realmente de-
sejam” (idem, p.339). “A disciplina aprendizagem em equipe
envolve o domínio das práticas do diálogo e da discussão, as duas
134
formas distintas de conversação em equipes”.
O pensamento sistêmico associado ao domínio pes-
soal, modelos mentais, visão compartilhada e aprendizado em
equipe, se transforma em uma técnica de resolver de problemas
utilizando modelos e simulações para observar e analisar as trans-
formações ocorridas no sistema, se transforma em um processo
mental que compreende a análise das inter-relações, ciclos de
retroalimentação, em vez de cadeias lineares de causa e efeito e
uma análise dos processos de mudança ao longo do tempo em
vez de tirar instantâneos de momentos estanques.
Pensamento sistêmico, é um termo, também utilizado
por Edgar Morin, Isabelle Stengers e Ilya Prigogine, associado
a epistemologia da complexidade, que pode ser considerado
um ramo da filosofia da ciência inaugurado no início dos anos
1970. Termo ainda não consolidado como movimento científico,
embora tenha gerado uma série de consequências nas áreas tecno-
lógicas e filosóficas pelo seu caráter de visão transdisciplinar dos
sistemas complexos adaptativos, comportamento emergente de
muitos sistemas, complexidade das redes, teoria do caos, compor-
tamento dos sistemas distanciados do equilíbrio termodinâmico
e das suas faculdades de auto-organização.
Para Pimenta (2013, p. 35), Morin se apropria do con-
ceito de processos auto-organizadores e auto-eco-organizadores
para dar complexidade ao real, que era ignorado pela ciência
determinista. Esses conceitos sustentam que cada sistema cria
suas próprias determinações e as suas próprias finalidades sem
135
perder a harmonia com os demais sistemas com os quais inte-
rage, sendo possível resgatar os conceitos de autonomia e de
sujeito, para eliminar a ideia da “visão tradicional da ciência,
onde tudo é determinismo, não há sujeito, não há consciência,
não há autonomia” (MORIN, 2007, p. 65).
Edgar Morin entende que como sujeitos, somos autô-
nomos e dependentes. Somos ainda muitos para nós mesmos e
bem pouco para o universo, além de que “somos uma mistura
de autonomia, liberdade, heteronomia” (MORIN, 2007, p. 66),
por não sermos apenas resultado dos pensamentos inconscien-
tes, o que sustenta nossa sensação de sermos livres sem sermos.
Para Morin (2013, p. 36), há três princípios que nos facilitam o
entendimento da complexidade: dialogicidade, recursão organi-
zacional e holográfico.
Resumidamente a dialogicidade é o princípio garante a
sobrevivência ao mesmo tempo que garante a reprodução para a
continuidade da espécie, a recursão organizacional é um princípio
no qual o sistema aberto permite que produtor e produto sejam
um só e o princípio holográfico contém todos os elementos do
todo até a parte mais infinitesimal.
Morin acredita que a complexidade como abordagem
transdisciplinar dos fenômenos é a mudança de paradigma, a
partir dos quais se abandona o reducionismo que tem pautado as
pesquisas e investigações científicas nas abrangências de todas as
áreas do saber para dar lugar à criatividade e ao caos, questiona
todas as formas de pensamento unilateral, dogmático, quantita-
136
tivo ou instrumental. Em fim, toda incerteza é parte constituinte
e paradigmática da complexidade, uma abertura de horizontes,
de princípio de mobilidade do pensamento.
Pensar de forma aberta, incerta, criativa, prudente e
responsável é um desafio à própria democracia. Daí a noção de
democracia cognitiva, que visa estabelecer o diálogo entre as
diversas formas de conhecimento, ser um caminho que se faz no
próprio transcurso, no próprio fazer e repensar-se continuamente.
Decorrente desses pensamentos se desenvolve também uma te-
oria de complexidade computacional, que é um filão científico
tecnológico mais estável e melhor definido, e que evoluiu separa-
damente daquele referente ao conceito de sistema não linear, mas
afinal está sutilmente ligado a este. Sobre a arte neste contexto
de complexidade tecnológica Rosangela Leote defende:
A arte, inclusive a produzida por parâmetros deestéticas tecnológicas, apresenta uma complexi-dade que me faz, longe de ter clareza, trazer ape-nas alguns pontos que podem ajudar a penetrarnos meandros desta complexidade. Após loca-lizar os modos de fruição, presentes no âmbitoartístico que envolve as tecnologias contemporâ-neas, aponto processos perceptivos da obra.
[. . . ]
Nesse âmbito, também se modifica o modo peloqual a obra é fruída. (LEOTE, 2015. p. 97).
Rosangela Leote, percebe o fenômeno da complexi-
dade, e destaca o maior envolvimento do interator com as obras
de arte produzidas com mídias emergentes, o fruidor “se expressa
na ludicidade; na interatividade (percepção/reação/recriação); e
na imersividade (vivência/virtualidade)”, (LEOTE, 2015. p. 98),
137
concluindo que as obras que têm na constituição de seu funciona-
mento o algorítimo, a linguagem de programação computacional
permite essa relação de estímulo resposta com o interator, ge-
rando um dialogo ininterrupto entre o fruidor e a máquina, entre
a máquina e o fruidor.
As artes tecnológicas não se destacam apenas por essa
relação com o interator, talvez essa característica seja a mais
evidente e relevante, mas outro aspecto de muita importância
é levantado por diversos artistas e pesquisadores da produção
de arte de estética tecnológica, a imbricação da relação arte-
ciência, relevante e presente no “produto” artístico. A arte, nesse
caso, abriga fenômenos de distintos saberes, que se bifurcam
por duplo caminho: conhecimento de uma realidade objetiva e
questionamentos a cerca de realidades subjetivas.
[...] frisamos a distinção sempre citada entre Artee Ciência, quando, para nós, ciência é conheci-mento acerca de uma realidade e a arte é conhe-cimento acerca de realidades possíveis. O pro-blema quanto aos tipos de conhecimento acarreta,portanto, aquele relativo à quais procedimentos,ou métodos, que devemos seguir para atingir osobjetivos de cada tipo. (VIEIRA, 2013. p. 2).
Quando comparamos arte e ciência, vemos que elas
diferem quanto à admissão da hipótese e quanto ao método no
estudo concernente a realidade, mesmo mutável ou relativo às
realidades possíveis. Do ponto de vista do método é visível a
ênfase nos experimentos intersubjetivos porque têm uma aparente
liberdade ou, para os mais conservadores, “frivolidade”. Ainda a
138
partir de Vieira, perguntamos e nas atividades artísticas? Ele nos
responde:
A Arte, por lidar com realidades possíveis, traba-lha em um elevado nível de complexidade. Nãoestamos querendo afirmar que a arte seja maiscomplexa, enquanto conhecimento, do que a ci-ência, mas sim que questões, as quais um artistaenfrenta cotidianamente, são “caladas” pelo cien-tista mais conservador, que também as enfrenta.(VIEIRA, 2013, p. 2).
Considerando o processo de investigação e criação de
arte, recheado de aspectos com muita subjetividade e pela poética
que lhe é inerente, o conhecimento artístico é de alta comple-
xidade, construído e elaborado por sistemas vivos, nos quais a
complexidade dispara em crescimento, conforme aduz Leote:
Ampliando a discussão e adotando a Teoria daComplexidade como guia, entendo que, sendo areorganização do sistema imprevisível, em um ní-vel maior ou menor de complexidade, nessa ideiade imprevisibilidade estão também as ações dointerator em determinada obra. Não se trata deacaso, mas de lógica de integração dos elementosdos sistemas abertos. (LEOTE, 2015. p. 106).
As mídias eletrônicas, as ciências da computação, a
robótica, vivem uma dinâmica de transformação tecnológica,
são campos de pesquisa que se tem obtido muitas inovações e
superações das ferramentas, a ponto de não nos permitir afirmar
qual é a tecnologia mais recente, ou quando fica ultrapassada e
não é essa temporalidade da ferramenta que tem feito a diferença,
mas o uso dessas ferramentas eletrônicas interfacetando a obra
139
de arte e envolvendo sua audiência, que de certo modo questiona
se esta envolvido pela arte ou pela ciência e tecnologia.
Com essa nova presença artística que se distancia da
pintura ou escultura no sentido mais clássico da cultura, se quer
saber: Isso é arte ou ciência? Quando o uso da ciência é arte?
No senso comum se sabe o que é arte pelo trabalho de consenso
na sociedade sobre determinados aspectos: se ela está exposta
em um museu, centro cultural ou galeria de arte; se está sendo
comentada por uma personalidade artística, um crítico de arte,
especialista da arte ou se é expressa na mídia por meio da deter-
minação que se impõe sobre algo como arte, sendo assim parece
não haver dúvidas que seja uma obra de arte, então essa coisa
é, na sociedade e nas situações dadas, uma obra de arte. No
entanto, “podemos distinguir três dimensões de funcionamento
do sistema da arte contemporânea: uma dimensão econômica,
uma dimensão cultural e uma dimensão política.” (MELO, 2012,
p. 07).
Precisamente é dessas interligações que a manifestação
artística constitui um sistema de arte, com a ressalva de que seus
componentes não são exclusivos da arte. “O mercado parece
acompanhar a diversidade dos trabalhos contemporâneos, pois
instalações e performances, obras consideradas invendáveis em
épocas anteriores, têm sido valorizadas, compradas em leilões
por museus e colecionadores e até alugadas por galerias” (Ibidem,
2012, p. 118). Coelho por sua vez ressalta:
Pode-se verificar que Melo, utilizando-se do con-
140
ceito da transitoriedade da arte enunciado por Nel-son Goodman (1975), valorizou a atuação de ato-res do sistema que, em seus contextos, influem nalegitimação da obra de arte, chegando a afirmarque não há mais possibilidade de se conceituararte através de um paradigma da estética, comoanteriormente, pois tal definição da arte só seriaatualmente possível no plano da sociologia, den-tro daquilo que as pessoas nas suas funções no te-cido social consideram e denominam “arte”. (CO-ELHO, 2014, p. 167).
As transformações artísticas ocorreram ao longo dos
séculos, essas mudanças na arte foram reconhecidas por estilos
de acordo com as concepções vigentes, o valor e o entendimento
estético das obras de arte, que enquadravam as formas de produzir
dos artistas. Não podemos negar que essas posições ocorreram
e se tornaram regras estéticas legitimadas pela estética e pela
história da arte, mesmo assim os paradigmas se modificaram su-
cessivamente e a arte contemporânea encarnou em outros corpos,
arte tecnológica ou arte eletrônica, ou mídia art e todas as suas
variações neologismas se inserem nessas tendências.
Obra de arte como sistema.
Com essas alterações de contextos econômicos, cul-
turais e políticos sociais, os movimentos de mercado, cultura e
tecnologia, nos dizem que, uma abordagem sistêmica é aquela
que vai além do objeto artístico que é exposto isoladamente,
apenas para fins apreciativo ou contemplativo, Para Oliveira; Hil-
debrand (2010. p. 1027) o conceito de “sistema como obra de
arte é influenciado pela ciência, através de novas formulações
141
teóricas que observam os fenômenos sob o ponto de vista sistê-
mico”, também pelas modificações da obra com a utilização de
suportes e interfaces tecnológicas, que consequentemente novas
possibilidades físicas expositivas, conceituais e poéticas.
Existe ainda a reflexão a respeito dessas transforma-
ções e da assimilação dessas mídias emergentes pelos artistas
como descrevem Oliveira e Hidelbrand (2010, p. 1027-1028),
considerando que nos dias atuais a produção artística se permite
fazer conexões entre arte, ciência e tecnologia e a utilização de
suportes digitais amplia o foco na arte sistêmica abarcando para
além da arte, ciência e tecnologia, pondo o público como sujeito
preponderante dessa relação artística.
Focar nos sistemas em vez da obra de arte propri-amente dita é dar ênfase, às conexões, aos nós, àfluidez das bordas e dobras, aos espaços vazios, àsubjetividade, ao sujeito mediado pelo Outro nalinguagem e na cultura e, de fato, às forças nãovisíveis do mundo que nos cerca. (OLIVEIRA;HIDELBRAND, 2010, p. 1027-1028).
Em Estética Digital, Gianetti (2006) aborda a propo-
sição ‘a arte como sistema’, ela parte do entendimento que a
media art não é uma corrente autônoma, mas, é parte integrante
do contexto da criação artística contemporânea, um recurso para
diferenciá-lo das manifestações artísticas que utilizam outras fer-
ramentas que não as baseadas nas tecnologias eletrônicas e/ou
digitais.
Podemos compreender que nessa perspectiva do sis-
tema como obra de arte, em Simondon (apud OLIVEIRA, 2010.
142
p. 1030), o sistema é algo em contínuo movimento e em processo
de individuação, onde o indivíduo se constitui, construindo a sua
subjetividade no campo do pré-individual de singularidades e de
potencialidades diante das novas proposições artísticas.
Para Milton Sogabe (2008. p.129), a presença da TV,
vídeos e projeções nos espaços das instalações resultam em novas
maneiras de compor e organizar os ambientes expositivos, ge-
rando espaços quase vazios, “ocupados apenas por uma imagem
projetada na parede que se modifica com a nossa presença”.
Sogabe (2008. P. 131), defende que a partir dessa
atitude expositiva, aliada a obras com outras características de
se apresentar ao público, a arte nos conduzirá para o que vem
ser chamado de “interação propriamente dita”, o público afetar
os eventos, o público tem uma nova função ou característica,
participa da obra com seu corpo e reflexão mental, e contempla o
espaço virtual, para além da postura interpretativa.
O próprio ciberespaço, no que diz respeito às re-des de comunicação pode ser inserido no espaçoda instalação, conectando espaços físicos com es-paços simulados ou outros espaços reais à distân-cia, tornando mais complexa a questão do espaçoda instalação. A moldura da “sala escura e fe-chada” da instalação quebrou-se por causa da tec-nologia utilizada. (SOGABE, 2008. p. 131).
Podemos compreender a media art como as formas de
arte geradas em sua totalidade ou em parte, nas interfaces das
novas mídias. São obras que se diferenciam das obras do passado
por articular novas configurações em todas as etapas da obra
143
de arte, da criação até a fruição. Desde os agentes de criação,
processos e procedimentos criativos passando pelos recursos
utilizados; combinados aos espaços expositivos e presentificação
da obra até as formas de fruição da obra de arte caracterizada por
uma participação ativa e interativa e complementar do público.
Aspectos múltiplos renderizados em sistemas e com-
plexidade, sem ordem preestabelecida. Podemos compreender
melhor essa proposição de obra de arte como sistema, e suas vari-
ações observando seus princípios em três obras de arte propostas
por artistas distintos.
Figura 28 – Osmose - Char Davies – Captura de imagens imersi-vas em tempo real, um voo durante uma performance.Museu de Arte Contemporânea de Montreal - 1995 -16 min.
A primeira obra, Osmose, criada em 1995, é uma obra
de realidade virtual interativa com gráficos em 3D e som 3D
interativo, uma instalação de ambiente imersivo, onde o fruidor
coloca um capacete na cabeça, veste aparatos tecnológicos que
a partir de seus movimentos e respiração se faz conduzir por
cenas de um mundo criado por Char Davies, que para dar forma e
interatividade perceptual conta com uma equipe de engenheiros,
144
cientistas e especialistas da lógica de programação, computação
gráfica e de sons para que pela tela montada na cabeça e pelo
rastreamento de movimento em tempo real do interator a obra
o remeta a um espaço para explorar e mobilizar a consciência
sobre si e sobre esse novo mundo que ele agora habita.
[. . . ] você encontra uma pequena sala cheia decomputadores, cabos e aparelhos eletrônicos detodos os tipos, onde um assistente o convida a su-bir em uma plataforma onde há um dispositivoinfravermelho para captar seus movimentos. Li-geiramente assustado, uma parafernália razoavel-mente pesada é colocada ao redor de seu peito.Depois, colocam em sua cabeça um capacete con-tendo óculos-telas estereoscópicos e fones de ou-vido. "Para subir, inspire. Para descer, expire."
[. . . ]
Agora você se encontra lançado no espaço sideral.Uma música suave, flutuante, cósmica, acompa-nha a gravitação tranquila, o lento movimento gi-ratório que o leva em direção ao planeta brilhante,bem abaixo, que é o seu destino. Você pareceter se tornado o feto que retorna à Terra. (LÈVY,2010, p. 39).
Pierre Lèvy, nos ajuda a compreende de um lado a es-
trutura técnica do virtual, presente em obras de realidade virtual,
evidenciando no primeiro momento os dispositivos desenvolvidos
pelas pesquisas científicas em tecnologia, que numa observação
mais apurada se sugere o encontro das especificações técnicas
que foram elaboradas parte por parte, por uma equipe que a ar-
tista, em seu site, atribui os créditos Davies (1990), “Conceito,
direção, direção artística de Char Davies - Software personali-
zado VR de John Harrison - Computação gráfica de Georges
Mauro - Arquitetura Sonic / programação de Dorota Blaszczak -
Composição / programação de som de Rick Bidlac”.
145
E por outro lado, Lèvy nos guia no entendimento e
percepção da aventura virtual, a mudança de referencial de relaci-
onamento do fruidor com a abra, tanto com o corpo físico como
com a subjetividade a partir de seu embarcamento, acoplagem e
conexão, o sujeito é tomado pela emoção, sensações e instintos
no mundo simulado e “realista”.
A segunda obra, Atrator Poético: Instalação Multimí-
dia Interativa, de 2005, do grupo SCIArts – EquipeMutidisci-
plinar. Desenvolvida para o diálogo entre imagem, som com o
ferro-fluído e o interator. A poética da obra se acontece com
participação do público e sua interferência na imagem. Essa
interação produz construções sonoras e provoca a movimenta-
ção do líquido magnético que se conforma ao campo formado
por bobinas eletromagnéticas (ferro-fluído). A imagem dessa
movimentação é captada por uma câmera e é projetada numa
superfície circular, veja o gráfico de funcionamento na figura 30.
O público toca na superfície de projeção, circulaem torno dela e gera imagens que parecem cons-telações, formas que surgem e desaparecem, ouvesons associados à imagem, e quando percebe queas imagens projetadas têm relação com o que acon-tece com o ferro-fluído no totem, volta para obser-var as formas do ferro-fluído, percebendo o pro-cesso e refazendo o percurso. (SCIArts, 2010).
Para Blumenschein (2008, p. 103), uma das artistas en-
volvidas na criação dessa obra, “A experiência estética de fluidez
e os trânsitos comunicantes entre as partes do sistema são algu-
mas das questões conceituais que emergem a partir das interações
com a instalação”. Ela, ainda nos diz que uma das características
146
Figura 29 – Equipe Mutidisciplinar. Atrator Poético: InstalaçãoMultimídia Interativa – 2005. Cinético Digital –Instituto Cultural Itaú.
Figura 30 – Esquema de montagem do Atrator Poético. Blumens-chein (2008, p. 130).
147
da obra Atrator Poético é a possibilidade de interações circulares
e dinâmicas causando a impressão nos visitantes que seus o sur-
gimento das imagens tem estreita ligação com suas ações, não
percebendo que há imprevisibilidades e aleatoriedade o tempo
todo tanto nas imagens quanto nos sons. O que de fato ativa os
sensores são os gestos das mão e do corpo em cima e em volta
do totem/tablado.
SCIArts é uma Equipe Interdisciplinar, compostas por
vários artistas: Fernando Fogliano (Físico, doutor em Semiótica),
Júlia Blumenschein (Design Digital, mestra em Tecnologia da
Inteligencia), Milton Sogabe (Artista, doutor em Comunicação e
Semiótica, Hermes Renato Hildebrand (Matemático, doutor em
Semiótica) e Rosangela Leote (Performer e doutora em Semio-
tica), nessa obra em particular teve uma participação especial,
a parceria com o músico Edson Zampronha. O SCIart, sem-
pre buscou em seus projetos a intersecção entre Arte, Ciência e
Tecnologia. Na elaboração de suas instalações:
[. . . ] procura tanto exprimir a profunda comple-xidade existente na relação entre estes elementos,que são a essência da cultura humana, quanto a re-presentação de conceitos artísticocientíficos con-temporâneos que demandem novas possibilidadesmidiáticas e poéticas. (SCIart, 2005).
E por fim, EntreMeios, uma vídeo instalação interativa,
produzida pelo LabInter - Laboratório Interdisciplinar Interativo-
UFSM, em 2010, composto por: Andreia Machado Oliveira (Ba-
charel e Licenciatura em artes Visuais, doutora em Informática
na Educação), Marcos Cichelero, Matheus Moreno (Arquiteto,
148
Figura 31 – Labinter. EntreMeios: Videoinstalação Interativa,2010.
Figura 32 – Registro fotografico de EntreMeios. OpenLab Hipe-rorgânicos5, CAC4, UFRJ, em 2014. (CAMARGO,2016, p. 45).
149
mestre em Arte), Fabio Gomes (Ciências da Computação) e Eva-
risto Nascimento. É uma projeção em tecido branco esticado em
curva, que pode ser visto pelos dois lados, superfície impregnada
de imagens generativas efêmeras, sensíveis e outopoéticas, que
pode ser visualizada e experienciada.
Essa instalação propôs uma modificação do espaço
real, mesclando imagens de realidades distintas em um mesmo
lugar, no ciberespaço se relacionam meios geográficos a partir de
imagens capturadas de lugares localizados em Santa Maria, no
Rio de Janeiro e as imagens do interator projetadas em tempo real.
Para Camargo (2016, p. 45-46), “A instalação EntreMeios é um
hiperespaço cibrido, onde a experiência transorgânica acontece”
onde:
O corpo do interator funciona como controladordigital para a entrada de sinais infravermelhos quereconhecem o centro de massa através de um sen-sor Kinect e uma câmera. O gerenciamento di-gital é realizado como o software Processing, queenvia e recebe informações dos dispositivos sensí-veis, processando e realizando respostas nas ima-gens projetadas. (CAMARGO, 2016, p. 46).
Para o Labinter (2010), a instalação “propõe a sobre-
posição de espacialidades e temporalidades nas imagens” para
questionar as relações de lugares que habitamos, proporciona
um deslocamento simbólico pelas camadas de imagens, e sugere
a simulação da passagem do interator entre passado, presente e
futuro.
150
Conexões entre sistema, complexidade e midia art.
Inicialmente podemos dizer que a midia art se confi-
gura como um tipo de arte composta por máquinas e softwares.
Dispositivos produzidos pelas engenharias, máquinas com “vida”,
proporcionadas por impulsos elétricos, eletrônicos e códigos nu-
méricos da computação. Softwares combinados com imaginário
criativo e diferentes estéticas de artistas, técnicos e cientistas.
Tudo formando um complexo de conhecimentos, talentos e habi-
lidades que geralmente só pode ser encontrados em equipes.
Processo criativo que geralmente acontecem em grupos,
que se organizam para criar por participação ou colaboração, para
oferecer ao público, como diz Domingues “[...] ambientes com
uma realidade ampliada em aspectos biológicos e emocionais
que se caracterizam em formas de vida, simulando o existir pós-
biológico ou expandido por tecnologias” (DOMINGUES, 2002,
p.46).
São obras desenvolvidas com para interfaces de equi-
pamentos eletrônicos que podem proporcionar hiperconexão,
telepresença, ação remota, realidade virtual imersiva, simula-
ção de fenômenos físicos dentre outras possibilidades. Obras
munidas de dispositivos que sugerem possibilidades de ação de
relacionamento intrínseco do interator com a obra:
[...] mouses, teclados, modens, câmeras, senso-res, capacetes, luvas, sondas espaciais, microscó-pios de varreduras são dispositivos que capturamvidas, ações do corpo e do ambiente em suas capa-cidades de emitir sinais, pensar, imaginar, simular
151
e interpretar micromundos celular, codificar par-tículas do universo, tarefas de mundos virtuais,robôs, permitem a telepresença e encarnam iden-tidades vividas na rede (DOMINGUES, 2002. p.33).
Por essas características de recursos das tecnologias
e das ciências que a concepção de criação de tais obras de arte
envolvem equipe de multi saberes para pensá-la e desenvolvê-
la, além de oferecer um espaço de relacionamento prazeroso
e desafios entre as pessoas, com as permutas de de ideias e
concepções.
Saberes multi e transdisciplinares compõem obras de
arte, objetos ou instalações de corpo maquinico. Obras que ocu-
pam espaços bidimensionais, tridimensionais, ambientes espaci-
ais, físicos, virtualizados e imersivos pensados para a presença do
fruidor como elemento ativo, participativo e cocriador. São obras
que se configuram como um sistema, onde todos os componentes
dessa relação se complementam, não só os aspectos relacionados
a criação e sobretudo a fruição, mas todas as relações implícitas
de cultura, poder e política da sociedade em que se desdobra o
contexto de criação e apresentação da obra.
É importante enfatizar que são obras com dinâmicas
capazes de nos levar como sujeito mediado pelo outro na lingua-
gem e na cultura, pelas forças que nos cercam no mundo. Têm
como princípio básico à interatividade, a partir da qual podem
proporcionar uma relação de deslocamento do fruidor para o
mundo maquinico e/ou o mundo maquinico para o seu mundo
152
biológico.
A obra de arte interativa, segundo Sogabe (2006), pode
ser entendida como sendo de prática recorrente baseada em um
sistema de estímulo/resposta, que convida o público a reencontrar
com ela, o gesto natural. Assim, o público inter(ator) pertence
à obra, já que, por exemplo, “[...] o espaço das instalações que
era ocupado com elementos tridimensionais dá lugar ao público
que precisa se movimentar e atuar dialogando com os elementos
virtuais que se atualizam” (SOGABE, 2008, p.1990).
A obra pode se configurar como o acontecimento da re-
lação artista-obra-interator, ela abarca possibilidades conceituais
desde a concepção possibilitada pela multiplicidade de interfaces
tecnológicas, exigindo multiplicidade de conhecimentos e técni-
cas, não mais de um único artista em torno da obra, mas, agora,
da equipe de criação.
Essa interação retira o fruidor da condição passiva e o
proporciona uma participação imersiva na condição de interator
ocupando um duplo papel, sendo cocriador e também parte da
criação, por ser imprescindível sua presença em ação no aconte-
cimento da obra de arte, seja no seu acionamento como sujeito
aparelhado, por interatividade em acoplagem, conectividade, vi-
vencia e/ou toque, em que dialoga com ela em percepção sináp-
tica, como referência (COUCHOT, 2003), em que nessa relação
obra-interator o envolvimento pode se doar de corpo, coração
e mente, tornando seu corpo expandido, sentidos ampliados e
amplificados e de consciência “cibernetizada”.
153
Consciência em que atuam inteligência individual e co-
letiva, interagindo objetividade e subjetividade entre significantes
e significados, em que, para Deleuze (1996, p.119), “estabelece
uma comunicação interativa entre as ordens díspares de grandeza
ou de realidade; ou que ela atualiza a energia potencial ou integra
as singularidades”; Consciência que resolve o problema posto pe-
los díspares, organiza uma dimensão nova na qual os envolvidos
formam um conjunto único de grau superior.
Essa consciência “cibernetizada” permite as trocas en-
tre a inteligência humana e a inteligência da máquina, em pro-
cessos de trocas conhecimentos estabelecidos e de aprendizados
constantes e indefinidamente limitados, a medida em que ex-
ploram a percepção dos sentidos: visualidade, espacialidade,
sonoridade; imersão e imaginação, articulação de cognição e cul-
tura em diferentes níveis proporcionais aos níveis de articulação
e interatividade dos fruidores inseridos no sistema obra.
Referências:
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11 Realidade Virtual: am-
bientes imersivos.
158
Realidade Virtual: ambientes imersivos.
Vanessa Pereira do Nascimento
Segundo Kátia Maciel (2017) no livro Transcinemas,
o conceito homônimo define a participação do sujeito na cons-
trução do “espaço-tempo cinematográfico”, o que abrange uma
“situação-cinema”, ou seja, coloca o cinema enquanto dispositivo
e sua forma hegemônica como apenas uma das diferentes possibi-
lidades de experienciar a linguagem. Ao definir as características
do cinema tradicional, Parente (2017) destaca a arquitetura, a
tecnologia utilizada e a forma narrativa. Ao modificar esses ele-
mentos as tecnologias contemporâneas acabam influenciando
essa forma cinema. O cinema expandido, por exemplo, vai am-
pliar a espacialidade da tela convencional, ganhando o espaço da
instalação, tornando-se híbrido com outras linguagens, enquanto
o cinema interativo adiciona a capacidade de agência do interator,
isto é, se modifica de acordo com suas ações.
É nesse campo, onde há um espaço cinematográfico
sem as mesmas características do cinema tradicional que se si-
tua as experiências envolvendo realidade virtual (RV). Além de
159
apresentar diferentes graus de agência essa tecnologia ainda apre-
senta um ambiente imersivo potencializado pelos dispositivos
envolvidos, ou seja, um ambiente no qual o sujeito se envolve
emocionalmente e passa por uma espécie de inibição temporária
do ambiente físico a qual está realmente inserido (GRAU, 2007).
Dentre as aplicações em realidade virtual está a constru-
ção do “espaço-tempo cinematográfico” em 360 graus, podendo
ser exibido em diferentes arquiteturas desde que provoquem a
imersão, o que é mais comumente alcançado com as interfa-
ces mais avançadas do período considerado, já que a RV busca,
sobretudo, provocar a ilusão nos sentidos humanos (KIRNER;
TORI, 2006). Iniciativas como o documentário “Rio de Lama”
(2016) do cineasta Tadeu Jungle, gravado nesse formato com o
objetivo de provocar a empatia daqueles distantes da tragédia em
Mariana1 e a instalação “Blackout” (2017) do grupo Scatter que
também se apresenta como um ambiente imersivo em 360 graus,
aproximando o público dos relatos de desconhecidos dentro do
metrô de Nova York, serão relacionadas nesse texto com o intuito
de levantar aspectos e possibilidades dessa forma de cinema.
Outros espaços.
Em crítica a definição mais utilizada por pesquisadores
sobre o que seria a realidade virtual, Romero Tori (2015) atuali-
zou a definição criada em 1994 por Paul Milgram. Na ocasião
1 Em 05 de novembro de 2015 a vila Bento Rodrigues localizada na cidade foi destruída devido
ao rompimento de duas barragens da empresa Samarco.
160
Milgram definiu o espaço virtual como oposto a realidade do
mundo físico, e de acordo com o autor conceitos como a rea-
lidade aumentada, na qual elementos virtuais se sobrepõem ao
ambiente físico e a virtualidade aumentada, na qual elementos
do mundo físico integram algum espaço virtual estariam entre
os dois opostos, formando uma realidade mista. Considerando o
espaço virtual como parte da realidade, Tori sugere que exista o
real virtualizável, como são as imagens digitais que ainda assim
não deixam de ser reais, e o real não virtualizável, como uma ima-
gem impressa que não pode simplesmente ser desfeita, apagada
sem deixar rastros como ocorre com os dados digitais. O virtual,
ou realidade virtualizável seria, portanto, o que pode ser mate-
rializado e desmaterializado sem deixar resíduos no ambiente
físico.
Segundo Kirner e Tori (2006), os elementos chave para
a identificação de RV são as representações geradas por com-
putador, a interação em tempo real e os dispositivos especiais.
Dessa maneira os games, as narrativas interativas e os ambientes
de simulação podem ser classificados como RV, porém, como a
imersão é fator definitivo para essa tecnologia, os dispositivos
envolvidos precisam proporcionar a ilusão dos sentidos, portanto,
o que é RV para uma geração pode se tornar a interface padrão
para a próxima, tornando essa definição móvel e normalmente
associada à tecnologia mais avançada do período considerado.
Atualmente os chamados óculos de realidade virtual (HMD –
head-mounted displays) são os dispositivos mais comuns, presen-
tes em exposições multimídia, usados como interface para games
161
e até mesmo disponibilizados em modelos acessíveis como o
Google Cardboard 2, feito de papelão para ser utilizado junto a
um celular com giroscópio, o sensor responsável por identificar
os movimentos necessários para a navegação em RV.
Apesar da definição de RV envolver representações
geradas por computador, o vídeo gravado em suporte digital se
caracteriza como uma realidade virtualizável, portanto pode ser
apresentado como RV ao potencializar a imersão com a utilização
de óculos especiais e adicionar a interatividade. Tal liberdade
cedida ao interator provoca mudanças nas obras feitas para esse
suporte. Além de pensar a cena não mais como um plano retan-
gular, o artista pode optar pela não linearidade, já que o sujeito
pode escolher olhar para um determinado espaço enquanto uma
ação se desenrola fora do enquadramento produzido.
Ao escrever sobre seu documentário “Rio de Lama”,
Tadeu Jungle descreve a realidade virtual como a tecnologia
capaz de provocar empatia nas pessoas, já que elas não mais
assistem ao filme, mas se sentem parte dele (JUNGLE, 2015).
Durante os 9 minutos de duração do curta-metragem é possível
ver os destroços da vila de Bento Rodrigues, situada no município
de Mariana, que foi atingida pela destruição das barragens da
empresa Samarco em 05/11/2015. A sobreposição em áudio das
memórias dos habitantes da cidade provoca o público a imaginar
como era a vida no local.
2 Display de realidade virtual para ser utilizado junto a um celular. Lançado em 2014, pela
empresa Google.
162
Para ter a experiência de assistir ao documentário em
RV é necessário a instalação do aplicativo que contém o vídeo
no celular e a utilização de óculos especiais, que privam com-
pletamente a visão do ambiente físico e situam o interator nas
cenas gravadas. Com a navegação disponível em seis graus de
liberdade3 (KIRNER; TORI, 2006), isto é, a possibilidade de
olhar para qualquer direção movimentando a cabeça como se
realmente estivesse no local, o dispositivo de RV apresenta uma
obra que é um espaço a ser explorado, que pode ser diferente a
cada acesso, pois o diretor construiu o ambiente, mas é o intera-
tor que vai definir a forma final do enquadramento (PARENTE,
2017).
Ao adicionar aos seis graus de liberdade o ambiente
físico como forma de se locomover pelo espaço virtual, a ins-
talação “Blackout”, do estúdio americano Scatter, proporciona
a sensação de caminhar pelo ambiente criado digitalmente, en-
quanto é possível interagir com diferentes personagens dentro
de um metrô em Nova York e ouvir suas histórias. O interator
pode caminhar pelo espaço que simula o interior de um metrô e
tem as mesmas dimensões do ambiente virtual que é sobreposto
pelo uso dos óculos especiais. Através dessa interface é possível
entrar em contato com os pensamentos e histórias de pessoas em
um ambiente onde tal interação não costuma acontecer.
As possibilidades narrativas apresentadas pelo “Rio de
Lama” e pelo “Blackout”, demonstram a capacidade da RV ir
3 Liberdade em se movimentar rotacionando nos eixos x (largura), y (altura) e z (profundidade).
163
além dos dispositivos tecnológicos envolvidos e da modificação
da arquitetura tradicional de exibição. Junto às interfaces das cha-
madas novas tecnologias modificam-se também as possibilidades
narrativas, alterando a forma cinema, já que ao interator é dada a
capacidade de interferir na temporalidade da obra, produzindo
assim outros espaços cinematográficos (MACIEL, 2017).
Considerações finais.
É possível observar como a inserção da realidade vir-
tual como outra forma de cinema é capaz de modificar as três
características levantadas por Parente (2017) sendo a arquitetura,
as tecnologias envolvidas e a narrativa. Partindo de diferentes
dispositivos tecnológicos como são os óculos especiais, a arquite-
tura do ambiente pode ser totalmente substituída pela informação
virtual, como no caso do documentário “Rio de Lama” ou relaci-
onada diretamente à narrativa, como na instalação “Blackout”,
afastando-se de qualquer maneira da sala tradicional de cinema.
A presença da interatividade e a potencialização da imersão al-
teram ainda a forma narrativa, tornando o interator responsável
pela forma final que a obra será exibida, na qual ele é capaz de
definir o enquadramento, a movimentação da câmera e no caso
da ambientação no metrô de Nova York, até mesmo a ordem que
as histórias são ouvidas.
164
Referências:
BLACKOUT. Direção: Alexander Porter e Yasmin Elayat. Scatter. Nova York, 2017. Som, Color,Formato: realidade virtual. Disponível em:< htt ps : //vimeo.com/217524159 > Acessoem : 02Jul.2017.
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KIRNER, Claudio; TORI, Romero. “Fundamentos de Realidade Virtual” in KIRNER, Claudio;SISCOUTTO, Robson; TORI, Romero (org.). Fundamentos e Tecnologia de Realidade Virtual eAumentada. Livro do Pré-Simpósio VIII Symposium on Virtual Reality Belém – PA, 02 de Maio de2006. Porto Alegre: Editora SBC – Sociedade Brasileira de Computação, 2006. P. 2-21.
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PARENTE, André. “A forma cinema: variações e rupturas” in MACIEL, Kátia (org.).Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2017. P. 21-45.
165
12 Autores
Elisângela de Freitas Mathias
Possui Bacharelado e Licenciatura em Ciências Sociais
pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Marília (1999)
e Licenciatura Plena em Educação Artística pela Universidade
Estadual Paulista - UNESP/Bauru (2005). É especialista em
Linguagens da Arte pelo Centro Universitário Maria Antônia-
USP (2013). Atualmente cursa o mestrado profissional em Artes,
PROFARTES, no Instituto de Artes da Universidade Estadual
Paulista - UNESP/São Paulo (2016). Tem experiência na área de
Artes, com ênfase em Artes Plásticas, Arte Educação e Desenho
de Humor. Atualmente é titular de cargo efetivo como Professora
na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.
Judivan Lopes
Artista, Professor de Arte no Instituto Federal de Ala-
goas – IFAL – Campus Arapiraca, lider do do grupo de pesquisa
Lambe-Lambe Digital: as mil faces do mundo, Coordenador dos
coletivos artísticos: Grupo de Produção de Arte com Tecnologia
167
Interativa Geparti e ArtVírus: grupo de arte-intervenção urbana.
Membro do GIIP: Grupo Internacional e Interinstitucional de
Pesquisa em Convergências entre ARTE, CIÊNCIA E TECNO-
LOGIA, doutorando em Arte Visuais, orientando da Professora
Dra. Rosangela Leote, Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” - Unesp - Instituto de Artes (Campus São Paulo),
na Linha de Pesquisa em Processos e Procedimentos Artísticos,
com a pesquisa: “CORPO/ARTE: percepção humana, pele, ossos
e nervos de tecnologia.”
Luis Alberto de Souza
Mestrando pelo Programa de Mestrado Prof-Artes, na
UNESP/SP, em 2016. Pós-graduando Lato sensu em Arte na Edu-
cação: Teoria e Prática, pela Universidade de São Paulo (USP).
Pós- graduação Lato sensu, em Gestão de Pessoas e Projetos
Sociais pela Universidade Federal de Itajubá/MG (UNIFEI), em
2014. Licenciatura em Pedagogia, pela Universidade Federal
de São Carlos, (UFSCar), 2014. Licenciatura em Artes Visuais
pela Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP). Atualmente,
exercendo o cargo de professor de Arte na Prefeitura Municipal
de São José dos Campos/SP e na Rede Estadual do Estado de
São Paulo/SP.
168
Luis Quesada
Artista Visual, Docente e pesquisador em Artes. Atual-
mente é doutorando em Artes pela UNESP, bolsista do programa
internacional PAEDEX-AUIP e membro oficial do grupo GIIP
e do grupo LABDIC. Licenciado em Artes Visuais e Mestre em
Produção e Investigação em Artes pela Universidade de Gra-
nada (Espanha). Desenvolve sua obra e pesquisa acadêmica
mediante a perspectiva do hibridismo cultural, do estudo da Iden-
tidade/Alteridade, da antropofagia nas artes e do a(r)tivismo
indigenista.
Miguel Alonso A. Carvalho
Artista plástico e arte educador, Mestrando no Pro-
grama de pós-graduação em Artes da UNESP, Universidade
Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", São Paulo, SP.
Formado em bacharelado e em licenciatura em Artes Visuais
na UNESP. Bolsista de Iniciação Científica, FAPESP (vigência
2014 e 2011/2012), na área de Convergências Artes, Ciências
e Tecnologias, junto a Prof.a. Dr.a Rosângella Leote. Esteve
em intercâmbio na ESMAE (Escola Superior de Música, Artes
e Espetáculo) do Instituto Politécnico do Porto (Portugal), com
bolsa de estudos da AREX- UNESP, onde foi aluno nos cur-
sos de TCM (Tecnologia da Comunicação Multimídia) e TCAV
(Tecnologia da Comunicação em Audiovisual). Envolvido com
169
trabalhos de extensão dentro da universidade, no projeto Zonas
de Compensação; e em trabalhos artísticos coletivos, como no
coletivo Laranja Azul. Além dos estudos acadêmicos e da área de
Multimídia, trabalha diretamente nas áreas da Pintura, Gravura e
desenvolvimento Tridimensional. Já trabalhou como educador
no Museu da Cidade de São Paulo e no Centro de Memória do
Circo, entre outras instituições.
Mirian Steinberg
Pesquisadora pela CAPES. Mestranda no Instituto de
Artes da UNESP em 2017 na Linha de Pesquisa em Processos
e Procedimentos Artísticos. Especialista em Historia das Artes.
Licenciatura em Musica e Formação em Musicoterapia. Artista
Educadora no PIÁ – Programa de Infância e Artes da Secretaria
de Cultura do Município de São Paulo em 2016. Produção ar-
tística de vídeos e áudios, instalação sonora, performance vocal
coletiva na Mobile Radio na 30a Bienal de SP. Exerceu atividade
Docente do Curso de Graduação da Faculdade Paulista de Artes
de 99 a 2013.
Natalie Mireya
170
É bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Fede-
ral do Espírito Santo. Possui pesquisa de Iniciação Científica pelo
CNPq na área de Teoria e História da Arte Moderna e Contempo-
rânea e na área de Performance Artística. A artista e pesquisadora
trabalha com performance, fotografia, vídeo e objetos, envolvi-
dos em sua atual pesquisa artística Qual o Resultado da Equação
com Elementos Delicados x Agressivos? Participou de mostras
em diversos estados do Brasil e países da Europa, como Relações
Urbanas, nas Caixas Culturais, e Venice Experimental Video Art
Festival, no Palazzo Cazanardi, em Veneza, além de países da
America Latina.
Regilene A. Sarzi-Ribeiro
Pós-doutora em Artes pelo Instituto de Artes UNESP/SP.
Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Professora
Assistente Doutora (RDIDP) do Departamento de Artes e Repre-
sentação Gráfica da FAAC/UNESP/Bauru/SP. Membro Diretoria
ANPAP 2017-2018. Líder do Grupo de Pesquisa labIMAGEM
– Laboratório de Estudos da Imagem – CNPq. Desenvolve pes-
quisas em História da Arte do Vídeo, Corpo e Imagens híbridas,
Fundamento e Crítica da Arte e Transdisciplinaridade
Vanessa Pereira do Nascimento
171
É mestranda no Instituto de Artes da UNESP (2016),
pós-graduada em Estéticas Tecnológicas pela PUC-SP (2013),
graduada em Design de Multimídia pelo SENAC-SP (2007) e
técnica em Design Gráfico pela ETEC Carlos de Campos (2005).
Possui experiência na área de comunicação visual, no desenvol-
vimento de peças gráficas e multimídia. Desde 2010 ministra
oficinas, cursos e palestras que relacionam tecnologias e artes
no SESC-SP e em diferentes espaços culturais. Integra o grupo
de idealizadores do projeto de cultura digital LINCE, criado em
2014 e atuante na Zona Leste de São Paulo.
Yardena Sheery
Mestre e doutoranda em Artes no Instituto de Artes
da Unesp, artista plástica atuante em São Paulo/SP e bacharel
em Artes Visuais na mesma instituição, além de bacharel em
Comunicação pela Faculdade de Comunicação Social Cásper
Líbero. Pesquisa a obra de Hélio Oiticica, particularmente o
período da pós-Tropicália, em Nova Iorque, e sua produção em
cinema marginal.