44
Globês a língua do mundo global. Globês a língua do mundo global? 1

CAPÍTULO 1 - rl.art.br file · Web viewVLLADH (aliás Adélia Rocha) GLOBÊS A LÍNGUA DO MUNDO GLOBAL. GLOBÊS A LÍNGUA DO MUNDO GLOBAL? Monografia de LINGUÍSTICA E ENSINO DA

  • Upload
    vodung

  • View
    212

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Globês a língua do mundo global. Globês a língua do mundo global?

1

VLLADH

(aliás Adélia Rocha)

GLOBÊS A LÍNGUA DO MUNDO GLOBAL. GLOBÊS A LÍNGUA DO MUNDO

GLOBAL?

Monografia de LINGUÍSTICA E ENSINO DA LÍNGUA, apresentada ao Departamento

de Letras da Universidade da Beira Interior

Departamento de Letras da Universidade da Beira Interior

2006

2

ÍNDICE

Introdução 4

Capítulo1

A globalização 7

Capítulo 2

Comentário da obra Don’t speak English Parlez globish 11

Capítulo 3

O globês 14

Capítulo 4

O inglês como língua internacional 20

Conclusão 26

Bibliografia 28

3

INTRODUÇÃO

Quando no dia 20 de Maio de 2005, lemos na revista Sábado um artigo sobre o

globês, não podíamos imaginar quão útil tal artigo nos iria ser. Na altura, o referido

artigo mereceu-nos destaque, pelo que lhe colocámos um post-it , hábito que temos

quando vemos que há um assunto de interesse que vale a pena aprofundar, assim que

haja tempo para tal. Este artigo, contudo, não mereceu sequer menção no índice de

matérias da revista, o seu título, «Você fala globês?»,1 aparece encimado pelos seguintes

dizeres: «Insólito: o novo dialecto». A imagem que ilustra o texto mostra José

Mourinho ao lado de Roman Abramovich, os dois homens fortes do Chelsea,

sorridentes, caminhando no campo do clube britânico. Por baixo, na legenda pode ler-

se:

«O treinador José Mourinho e o russo Roman Abramovich falam em inglês ou

em globês?»

Lemos o artigo para o tentar descobrir. E foi assim que ficámos a conhecer Jean-Paul

Nerrière, um antigo presidente da IBM, o típico executivo da era da globalização que,

por via das suas funções, tinha que manter contactos internacionais e por isso se

encontrava frequentemente em aeroportos, constituindo estes, segundo ele, lugares

privilegiados para observar o comportamento linguístico dos viajantes. Segundo o

artigo, foi precisamente ao fazer essa observação em aeroportos internacionais, que

Nerrière terá notado que a língua que se fala nestes locais de encontro de várias

nacionalidades não é o inglês, mas sim aquilo a que ele deu o nome de “globish” e que

na revista é traduzido por globês, palavra que utilizaremos no nosso trabalho. Feita essa

constatação, Nerrière escreveu um livro2 sobre essa forma de comunicar, que não sendo

em inglês, deriva, no entanto, dele.

O artigo de Bárbara Silva compara o inglês e o globês nos seguintes termos:

1 SILVA; Bárbara, 2005, «Você fala Globês?», in Sábado, nº 55, p. 1092 NERRIÈRE, Jean –Paul, 2004Don’t Speak English, Parlez Globish, Paris: Eyrolles

4

« Inglês Globês

- É uma língua - É um dialecto

- Veículo de cultura - Serve para comunicar

- Há dicionários com - Tem 1500 palavras

61.500 entradas

- Frases completas - Frases curtas

- Gramática complexa - Gramática inexistente

- Aprende-se na escola - Aprende-se nos aeroportos»

Veremos que esta comparação não está completamente correcta.

O globês pareceu-nos interessante e por isso o escolhemos para tema da nossa

monografia. Esta é composta por quatro capítulos. O primeiro é acerca da globalização.

Se o globês se propõe resolver o problema da comunicação a nível global, pareceu-nos

que o nosso trabalho deveria começar com uma reflexão em torna da globalização. Para

tal, apoiámo-nos principalmente nas obras de dois conhecidos autores, Anthony

Giddens e Alexandre Melo.

No segundo capítulo, fazemos um comentário à obra de Nerrière, Don´t speak

English, Parlez globish, comentário esse em que fica patente o nosso desagrado

relativamente, por exemplo, à forma como a língua inglesa é tratada no livro. Mas

também destacamos os pontos que, a nosso ver são pertinentes. E a este respeito, há que

referir que a obra faz um retrato muito claro daquilo que é comunicar a nível

internacional nos nossos dias.

No terceiro capítulo, temos por tema o globês. Falamos nos seus objectivos, nas

suas características e nas etapas a seguir para fazer a sua aprendizagem. Neste capítulo,

para além da obra de Nerrière, fizemos ainda uso de alguma da muita informação

disponível na Internet acerca deste assunto. Aliás, o globês recorre para a sua

divulgação e ensino/ aprendizagem a tudo aquilo que as novas tecnologias põem ao

nosso dispor.

Finalmente, no quarto capítulo, falamos da língua inglesa numa perspectiva quer

diacrónica quer sincrónica. Esta última prevalece. Como base do nosso estudo,

recorremos a duas obras de dois grandes linguistas britânicos, David Crystal e Tom

McArthur, autores de uma extensa e importante obra no domínio da língua inglesa.

5

Neste capítulo, vemos como o inglês emerge como língua global e as consequências de

tal facto na evolução da própria língua. Dizemos língua, mas poderíamos dizer línguas.

Tom McArthur considera que as variantes do inglês são de tal modo numerosas e

substanciais que não hesita em falar em Línguas Inglesas.

O título do nosso trabalho: “Globês a língua do mundo global. Globês a língua

do mundo global?” Deixa antever alguma reserva quanto ao objectivo do globês.

Esperamos que a leitura do trabalho consiga ser esclarecedora e dê uma resposta à

dúvida que o título deixa em aberto.

6

CAPÍTULO 1

A Globalização

Um passeio pela baixa de Lisboa para fazer compras e comer uma refeição

rápida é quanto basta para sentirmos, de algum modo, o que se entende por

globalização. Podemos comprar roupa na Zara, ir ao El Corte Inglês, ver as últimas

novidades editoriais na Buchholz, comer um cheeseburger no McDonalds e, claro,

comprar umas prendinhas baratas nas lojas dos chineses. Nada nos impede de, bem à

portuguesa, após a refeição de “fast food”, beber uma bica e comer um pastel de Belém

num daqueles cafés, ou melhor, espaços, em que não há cadeiras. Para termos acesso a

um assento, o melhor será procurar um cibercafé onde, a par da bica, poderemos

navegar na Internet. Se acaso a ida a Lisboa coincidir com a realização de algum evento

a nível mundial, um concerto para combate à pobreza em África, por exemplo, é

recomendável, em vez da baixa, uma ida ao Parque das Nações onde poderemos seguir,

em tempo real, através de um ecrã gigante, o que se passa em partes mais ou menos

remotas do mundo.

Expressões como globalização e aldeia global são bem conhecidas de todos

através da sua divulgação em programas televisivos. Porém, definir globalização não é

tarefa fácil. Isso mesmo é dito por Anthony Giddens:

«Vivemos num mundo de transformações, que afectam quase tudo o que

fazemos. Para o melhor ou para o pior, estamos a ser empurrados para uma ordem

global que ainda não compreendemos na sua totalidade, mas cujos efeitos já se fazem

sentir em nós.»3

Não é nosso objectivo sermos exaustivos quanto a este tema. O que nos interessa

essencialmente é a questão da comunicação neste mundo global em que as fronteiras se

diluem e em que os contactos entre pessoas, ou melhor, entre falantes de várias

nacionalidades se intensificam de uma forma sem precedentes. Sem perder de vista o

nosso objectivo principal, vamos, no entanto, fazer uma breve abordagem acerca do que

3 GIDDENS; Anthony, 2005 (1999) O Mundo na Era da Globalização, Lisboa: Editorial Presença, p.19

7

se entende por globalização, com base no que nos é dito por Alexandre Melo.4 Segundo

ele, tudo aquilo que marcou a história de forma definitiva constitui um passo no

processo de globalização. Desde o aparecimento da linguagem até à Internet. Refere

também que há três tipos ou dimensões da globalização: a económica, a política e a

cultural.

A globalização económica terá sido a primeira a ocorrer devido às trocas

comerciais ao longo dos tempos, trocas essas que conheceram uma nova dimensão com

a revolução industrial e, posteriormente, com o período do pós-guerra, nos anos

cinquenta do século passado. É a partir dessa altura que se começa a falar em empresas

multinacionais ou transnacionais. Hoje em dia, fala-se de globalização económica para

designar todo o tipo de actividade económica «cujo horizonte geográfico é

necessariamente global, planetário, universal.»5

Quanto à globalização política, Alexandre Melo, dada a dificuldade de análise de

um tal processo, opta por referir alguns factos históricos que evidenciam o seu carácter

transnacional: o colonialismo, o imperialismo, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial,

a Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim, entre outros. Para além disso, refere

também a emergência de organizações internacionais como a Organização das Nações

Unidas. Tudo isto para destacar que as grandes questões da humanidade, tais como o

ambiente, a paz e as armas nucleares são só resolúveis à escala mundial. Estes

problemas não são controláveis por políticos e medidas políticas nacionais:

«A ideia de liberdade, a questão da paz e da guerra, a gestão dos conflitos e dos

equilíbrios, só são hoje pensáveis à escala global.»6

Finalmente, no âmbito da globalização cultural, chama-se, em primeiro lugar, a

atenção para a importância dos meios de comunicação de massas nas transformações

que operaram e operam na forma de ser e estar do homem no mundo. De seguida,

colocam-se algumas perguntas às quais o autor se propõe responder ao longo do livro.

Essas perguntas têm a ver com a forma como opera o processo de globalização. A

última pergunta, porém, é a que nos interessa: «E em que língua(s)?»7

4 MELO; Alexandre, 2002, Globalização Cultural, Lisboa: Quimera Editores Lda., pp.15-395 A. Melo op. Cit. P.306 A. Melo op. Cit. P.367 A. Melo op. Cit. P.39

8

Lamentavelmente, a resposta não aparece no livro. Aliás, das três obras que lemos sobre

globalização, nenhuma contempla a questão da língua, porventura porque é por demais

evidente que a língua do mundo global é a língua inglesa. Coloquemos a questão nestes

termos: cada país tem a sua língua nacional que satisfaz as necessidades de

comunicação a nível local. Mas quando há necessidades de comunicação a nível

mundial, que língua utilizamos? A língua inglesa, incontestavelmente. Este facto,

porém, não é pacífico, levanta muitas questões.

Uma dessas questões, por exemplo, tem a ver com a morte das línguas. Num

interessante artigo retirado da Internet, pode ler-se:

«(…) o inglês vem sendo qualificado como killer language (língua assassina) em

relação às línguas minoritárias, com poucos falantes, que acabam desaparecendo.»8

Também Claude Hagège, ao explicitar o objectivo da obra que escreveu sobre este

tema, diz o seguinte:

«Ele [o livro] pretende mostrar três verdades: por um lado, que as línguas são

provavelmente o que as nossas culturas humanas têm de mais vivo; por outro, que elas

são mortais e morrem em quantidades impressionantes, se não se lutar pela sua

manutenção; finalmente, que a sua morte não é um aniquilamento definitivo e que

algumas renascem, se se souber promovê-las. Defender as nossas línguas e sua

diversidade, nomeadamente contra o domínio de uma única, é mais do que defender as

nossas culturas. É defender a nossa vida.»9

Parece-nos que as palavras de Hagège são algo alarmistas. E a que língua dominante ou

dominadora se está ele a referir? Ao inglês.10

Há, depois, a questão das línguas artificiais, isto é, das línguas que são criadas

pelo homem e que não são pertença de uma comunidade e que, entre outros objectivos,

pretendem ser um instrumento de comunicação internacional. O Esperanto é um

8 Artigo “A origem e o destino das línguas”, 2001, retirado do site http://comciencia,br/reportagens/linguagem/ling08.htm 9 HAGÈGE, Claude, 2000, Não à Morte das Línguas, Lisboa: Instituto Piaget, p. 1310 Op. Cit. P. 182, Claude Hagège salienta o contributo de cada língua, através da sua estrutura, para o conhecimento da forma como funciona o espírito humano e diz que o inglês por si só, sem as outras línguas, seria insuficiente para tal.

9

exemplo, para muitos é, até, o exemplo. Existem, porém, muitas outras. Mas não nos

alongaremos mais sobre este assunto.

Uma última questão, e muito importante, diz respeito à própria língua inglesa, à

sua identidade, à sua evolução. Há um inglês com diferentes variantes ou há vários

“ingleses”?11 O estatuto de língua mais falada no mundo actual, trouxe ao inglês uma

espécie de problema de identidade que se reflecte na criação de alguns projectos

linguísticos que têm por ambição substituir a língua inglesa como meio de comunicação

do mundo globalizado. Um desses projectos é o do globês que é o tema central do nosso

trabalho e irá ser analisado nos capítulos que se seguem.

11 Voltaremos a este assunto mais à frente. Refere-se a este propósito o nome de um manual escolar do Ensino Secundário, que contém a palavra “Englishes”: PEGADO, Ana, e outros, 2003, Englishes – Inglês – 4/6 10º Ano, Lisboa: Texto Editora

10

CAPÍTULO 2

Comentário da obra Don´t speak English Parlez globish

Esta obra é composta por doze capítulos, seis testes de diagnóstico, para

avaliação do nível de competência em globês, e um glossário de globês, francês. O seu

objectivo principal parece ser, à primeira vista, o de explicar em que consiste o globês.

Porém, mais do que isso, o livro faz o elogio da língua francesa e um ataque cerrado à

língua inglesa, à qual se refere predominantemente como “angloricain”12. No fundo,

Jean-Paul Nerrière dá conta da complexidade que representa comunicar hoje no mundo

globalizado, em que a competição é feroz e em que só os melhores vencem. Ora o

domínio de pelo menos uma língua estrangeira é essencial para poder competir e aceder

aos lugares de topo e essa língua estrangeira, por muito que custe a muitos, e

particularmente a Jean-Paul Nerrière, é o inglês.

Nerrière é um nostálgico dos tempos em que a língua francesa era a língua

internacional:

«(…) le statut de moyen populaire de communication globale est maintenant

occupé par une langue autre que la nôtre.»13

Feita esta constatação e com base na sua experiência de contactos internacionais como

vice-presidente da IBM, Nerrière como que decide contrariar por decreto o curso natural

das coisas e desenvolve, na presente obra, uma espécie de teoria da conspiração em três

partes. Primeira, demonstrar que aquilo a que geralmente se chama inglês, de facto já

não o é. O inglês, uma língua apátrida por excesso de pátrias,14 está completamente

descaracterizado por demasiada utilização. Ele ilustra isso mesmo através de várias

histórias que evidenciam que o inglês, que os não anglófonos falam, não é entendido

pelos anglófonos e vice-versa, porque o que os não anglófonos falam não é inglês, mas

12 NERRIÈRE, J-P, op. Cit. P. 171. O termo “angloricain” é uma mistura de “anglais” com “américain”, que poderíamos traduzir por “inglericano”.13 NERRIÈRE, op. Cit. P. 5414 NERRIÈRE, op. Cit. P. 67. Citamos:«Quelle est sa [do inglês] terre d’election: l’Angleterre? Les Etats-Unis? Le Canada? Pourquoi pás Singapour (…) c’est une langue sans domicile fixe.»

11

sim aquilo a que ele chama “globish”.15 Segunda, descrever, promover, divulgar e

ensinar o globês a todos inclusive aos anglófonos. O globês, contudo, mais não é que

um mero instrumento de comunicação no mundo do trabalho, como iremos ver mais à

frente, deixando assim vago o lugar a uma língua de cultura. Terceira, promover e

impor o francês à humanidade como língua de cultura. Resumindo, a ressurreição do

francês como língua internacional passa por substituir o inglês por um seu derivado, o

globês, mero instrumento de comunicação despojado de profundidade, deixando este ,

por isso mesmo, um vazio que só pode ser ocupado pelo francês, a língua de cultura por

excelência. A passagem seguinte é inequívoca quanto ao que acabámos de afirmar:

«À la communication pour la planète: le globish calamiteux, qui doit supplanter

urgemment l’angloricain, grâce à une succession organisée et orchestrée par nous. Ce

sera l’ultime variante imposée par les non-anglophones natifs incroyablement

majoritaires, qui inflingeront partout ce dialecte de caniveau, tout à fait nécessaire et

tout à fait suffisant. L’anglais, le vrai, fera ce qu’il pourra… À la culture pour

l’humanité: le français, langue princière, avec sa structure unique, objet du souci de

grands prêtres qui garantissent la pérennité.»16

Mas nem só de conspirações é feito este livro. Jean-Paul Nerrière é um homem

do mundo e faz um retrato pertinente do que é comunicar à escala global. A obra está

cheia de histórias que ilustram isso mesmo e que são um testemunho dos problemas

colocados pela diversidade de línguas num mundo globalizado. Ele, não sendo linguista,

não deixa de fazer uma incursão pela história da humanidade, dando conta das línguas

que em dadas épocas se impuseram como línguas de comunicação, prestígio e cultura,

nomeadamente o grego, o latim e o francês. Aborda igualmente a questão das línguas

artificiais enquanto instrumentos de interacção planetária que pretendem ser. Fala

também das linguagens de programação de computadores e de outros instrumentos não

verbais que servem para veicular informação, por exemplo, o código de sinais utilizado

na marinha. Com estes últimos, ele quer salientar que não é necessário ter uma língua

muito extensa e elaborada para poder comunicar de forma eficaz, que é o objectivo do

globês. A própria língua inglesa que ele ataca impiedosamente, como já dissemos,

15 NERRIÈRE, op. Cit. P. 72. A palavra “globish” deriva da junção de “globe” com “English”. É o inglês que se fala no mundo, ao qual nos referimos no nosso trabalho como globês.16 NERRIÈRE, op. Cit. Pp. 235, 236

12

merece-lhe reflexão aprofundada e o reconhecimento do seu papel incontestável como

instrumento de trabalho universal.

Em determinada altura ele cita Claude Hagège que chama snobes e não

patrióticos àqueles que negoceiam produtos franceses não utilizando para tal a língua

francesa. Como resposta ao linguista, diz Nerrière:

« Monsieur Hagège n’a sans doute que rarement eu l’occasion de tenter de

vendre une centrale nucléaire à Séoul , un TGV à Lima ou un ensemble d’ordinateurs à

Ryad. Faire de son mieux en langue anglaise n’est ni snobisme ni défaut d’amour pour

la patrie: ce n’est que vertueux souci de survivre économiquement. Nécessité fait loi.»17

Para além do mais, Nerrière escreve bem, tem sentido de humor e é culto. Por

isso mesmo lamentamos os termos usados para referir a língua inglesa, termos esses que

não acrescentam nada, são absolutamente dispensáveis e só desvirtuam aquilo que ele se

propõe fazer: descrever o globês. Ao comparar o inglês a uma prostituta18, ao dizer que

o inglês é uma estrutura anárquica19, nos termos em que o faz, corre o risco de não ser

levado a sério, principalmente por aqueles que falam ou ensinam a língua inglesa pondo

estes, desde logo, reservas quanto ao que o autor tem para dizer e qual a autoridade que

tem para o fazer.

Depois deste comentário breve, vamos, de seguida falar do globês.

17 NERRIÈRE, op. Cit. P. 5218 NERRIÈRE, op. Cit. P. 67. Citamos: « Ils [os anglófonos] n’ont plus maintenant qu’une Messaline vagabonde et prostituée, omnipresente mais claudicante et loqueteuse, et que tout le monde peut couvrir.»19 NERRIÈRE, op. Cit. P. 66. Citamos: «Concluons donc que ce que nous croyons être l’anglais n’est ni unique, ni unifié: complexe, trop riche, dérivé en de trop multiples versions divergentes, peut-être atteint de myxomatose sur ses propres terroirs d’origine, mais ayant joyeusement tapiné pour infester le monde entier et en faire une zone d’ascendant indiscutible. C’est surtout une langue privée de toute autorité de régulation.» E ainda na p. 68: «Une langue qui se transforme n’importe comment, sans règle ni structure, dês qu’il s’agit de communiquer ailleurs que dans le pays de naissance de chaque intervenant?»

13

CAPÍTULO 3

O Globês

O termo globês ou globish, no original, é formado a partir de duas palavras:

“globe” e “English”, para designar o inglês que é falado no mundo pelos falantes que

não são anglófonos. Nerrière salienta que não inventou nada, que o globês não é uma

língua artificial, que não é sequer uma língua, mas sim um dialecto ou, mais

concretamente, um instrumento de comunicação mundial. Não é uma invenção na

medida em que o globês, segundo o autor, já é a língua que é falada no mundo e

designada erroneamente como inglês. Logo, ele propõe-se apenas sistematizar e

formalizar o que é já uma realidade e, ao fazê-lo, tem por objectivo torná-lo acessível a

todos, tornando dispensável o estudo do verdadeiro inglês. Vejamos, a este propósito a

passagem seguinte:

«(…) le globish n’est pas une langue : il n’en est qu’un substitut providentiel. Il

ne permet d’approcher aucune érudition, n’ouvre pas la porte au plaisir attendu d’une

littérature luxuriante, et ne consent que des conversations à caractère pragmatique, si ce

n’est cupide. Il est important d’en faire la publicité en le confinant strictement à son

ambition : la seule communication planétaire. L’objectif que je poursuis en définissant

le globish est donc modeste : c’est ce qui va le rendre accessible à tous.»20

A característica principal do globês é, portanto, o pragmatismo. Num artigo de

opinião da autoria de Ben Macintyre para a revista “Times”, datado de 20 de Dezembro

de 2005, pode ler-se com ironia que o globês é o equivalente linguístico de um canivete

suíço:

«It [o globês] is not a language in the traditional sense, freighted with cultural meaning,

but a supremely useful and ingenious tool, the linguistic equivalent of a Swiss Army

knife.»21

20 NERRIÈRE, op. Cit. P. 7521 No site http://www.timesonline.co.uk/article/0,,1068-1591497,00.html p.1

14

Definido que está o seu objectivo, passamos a abordar em que consiste e como e onde é

que se pode aprender e praticar. É nos capítulos seis, sete e oito da sua obra que

Nerrière se debruça sobre estes assuntos.22

O globês tem um vocabulário, uma pronúncia, uma gramática e regras de

expressão. O vocabulário é de 1500 palavras, estas, no entanto, tendo em conta a

formação de palavras por composição e derivação, os estrangeirismos e palavras

parecidas com o francês – Nerrière embora queira que todo o mundo aprenda o globês,

dirige-se na sua obra apenas aos franceses – permitem a compreensão de 3500 palavras.

As 1500 palavras que aparecem listadas no fim do livro, e que são verdadeiramente as

que constituem o globês, têm por base o vocabulário utilizado pela rádio americana

Voice of America e o dicionário de Ogden do Basic English.23

Quanto à pronúncia, ela deve ser essencialmente clara, permitindo a

identificação da palavra dita:

«(…) je dirais que l’accent idéal est celui que ne possède aucun anglophone

natif, et qui qualifie habituellement le terme mid-attlantic. Disons qu’il est intermédiaire

entre ceux de New York et de Londres».24

Veremos mais à frente que pronúncia é esta, ao abordarmos os instrumentos para a

adquirir. A gramática é a da língua inglesa, isto mesmo é dito pelo autor à croata Elia

Patricia Pekica Pagon, numa entrevista on-line:

«According to which grammatical rules does Globish function?

22 NERRIÈRE, op. Cit. Pp. 75-15423 Nerrière fornece o nome dos sites http://ogden.basic-english.org/topics.html e http://www.voa.gov . O site do Basic English tem muita informação. Basic, diz-nos Nerrière é o acrónimo de British American Scientific International Commercial e não um adjectivo para designar “inglês essencial”, por exemplo. Na página do site intitulada “

OGDEN’S BASIC ENGLISH, Word List – in His Order”, temos uma lista de 850 palavras inglesas que constituem um núcleo comum que todo o falante não anglófono deve saber para comunicar. Na página com o título “Part II Chapter 8. BASIC for BUSINESS” do mesmo site, obtemos a informação de que juntando a estas 850 palavras, 50 palavras específicas de um qualquer ramo de actividade, num total de 900 palavras, qualquer não anglófono estará preparado para negociar em todo o mundo. Referimos ainda que vimos, com espanto, que no site http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=L%ADngua-artificial o Basic English está listado como língua artificial, logo a seguir a Adjuvilo. Porquê o espanto? O Basic English é inglês. São palavras do inglês, regras do inglês, pronúncia inglesa.24 NERRIÈRE, op. Cit. P. 93

15

The English grammar. Nothing else. Globish is not incorrect English. It is

“English light”.»25

A parte que é mais elaborada é a que diz respeito às regras de expressão, a que

Nerrière dedica o capítulo sete.26 Ele fala de catorze técnicas para alguém se exprimir

com eficácia, mas apenas define treze, que passamos a apresentar. Primeira, avaliar o

alvo. Se for uma pessoa isolada, há que fazê-la falar. Se for um grupo, procede-se a uma

observação para detectar os que participam e os que se mantêm à margem da conversa.

Estes devem ser questionados directamente ou abordados posteriormente a nível

individual. O objectivo é sempre criar um ambiente descontraído em que todos

participem e se entendam sem inibições. Se o alvo for um auditório, é mais difícil

interagir. Assim, é aconselhável abordar os participantes durante a pausa para o café e

tentar agendar a comunicação – não esqueçamos que estamos em ambiente de trabalho,

reuniões e conferências internacionais – para depois dessa pausa. Por fim, caso os

interlocutores sejam anglófonos, é necessário fazê-los sentir que o importante nestes

encontros é a compreensão mútua. O falante não anglófono deve fazer o anglófono

repetir o que disse as vezes necessárias para permitir que a comunicação se estabeleça.

Segunda, treinar o ritmo. O falante de globês deve fazê-lo muito lentamente e

articulando bem as palavras. Terceira, utilizar frases curtas. Uma frase deverá ter o

máximo de vinte e seis palavras. Quarta, utilizar muitas palavras. Esta técnica tem a ver

com a necessidade de fazer paráfrases. Uma vez que o vocabulário é composto somente

por 1500 palavras é preciso, por vezes, utilizar cinco palavras para dizer aquilo que um

britânico diria apenas com uma.27 Quinta, repetir as frases. Esta técnica visa a repetição,

através de reformulação ou não, de cada frase para que a mensagem seja compreendida

25 Artigo “Na interview about Globish” retirado do site http://www.jpn-globish.com p.326 NERRIÈRE, op. Cit. Pp. 95-12527 Ilustramos esta técnica com a transcrição de uma oração, a Ave-Maria, em inglês e globês que aparecem num artigo do site do globês, referido na nota vinte e cinco deste capítulo, cujo título é: “Christian prayers in Globish”. Começamos pela versão inglesa que contém inclusive arcaísmos: “thee”, “thy”, “theine”, por exemplo, e depois transcreveremos a versão em globês que começa com um “Hello Mary” de causar arrepios aos mais devotos. Este exemplo por si só é suficiente para destacar o objectivo do globês: reduzir a linguagem à sua expressão mais simples.«Hail Mary, «Hello, Mary,Full of grace, who was most holy,The lord is with thee, God is with youBlessed art thou among women, among all the women, you are the one who was most honoured,And blessed is the fruit of thy womb, Jesus. /And Jesus, the fruit coming from your body is also holy,Holy Mary Mother of God, Holy Mary, Mother of God,Pray for us sinners now, Pray for us wrong-doers at this very moment,And at the hour of our death And at the time of our death,Ámen.» Ámen. »

16

por todos. Sexta, evitar metáforas e expressões idiomáticas. A linguagem tem de ser

denotativa. Não há lugar para metáforas ou idiomatismos que são expressões

culturalmente marcadas e, por isso, difíceis de compreender quando há falantes

oriundos de culturas diferentes. Sétima, pôr de parte o humor. Este, tal como as

expressões idiomáticas, funciona essencialmente dentro de uma cultura, logo não é

facilmente compreensível por todos. Oitava, não fazer perguntas na negativa. Dado que

há línguas que, para além do “sim” e do “não” têm outras formas de responder,

dependendo da forma como a pergunta é formulada, há que fazer sempre a pergunta na

afirmativa. As respostas, por sua vez, não devem ser monossilábicas de modo a

tornarem bem clara a posição do falante. Nona, evitar os acrónimos. Uma vez que a

ordem das letras nos acrónimos é diferente de língua para língua, não se deve utilizar

um acrónimo sem primeiro tornar claro do que é que se está a falar. Décima, falar com

as mãos, o corpo e tudo o que facilite a comunicação. Faz-se uma apologia da

linguagem gestual e corporal. Chama-se contudo a atenção para o facto dos gestos não

serem entendidos de igual modo em todas as partes do mundo. Há, portanto, também

que ser prudente na utilização do gesto. Décima primeira, recorrer a meios audiovisuais.

As ideias principais de uma comunicação deverão ser veiculadas em suporte escrito a

acompanhar a exposição oral. Décima segunda, redigir de imediato e em conjunto as

conclusões de um encontro. Procura-se que o que foi dito num dado encontro seja

registado por escrito com a participação de todos, para que não haja perdas de

informação. Décima terceira, abordar com prudência a tradução simultânea. Caso haja

necessidade de recorrer a tradução simultânea, o orador deverá encontrar-se com o

intérprete, na presença de um falante bilingue e não só deverá entregar-lhe o texto da

comunicação, como deverá comentá-lo com ele. Trata-se, pois, de evitar más traduções.

Não duvidamos da eficácia de tais medidas relativamente ao entendimento das

mensagens, mas temos muitas dúvidas quanto à exequibilidade de algumas. Tempo é

dinheiro e os encontros em globês serão, no mínimo, mais demorados. Para além disso,

quando se fala, por exemplo, em acompanhar a exposição oral com o apoio da

informação por escrito, isso já é feito de forma regular, nomeadamente recorrendo a

apresentações em Powerpoint .

Passemos agora a aprendizagem do globês tal como ela é apresentada no

capítulo oito.28 A aprendizagem pressupõe a existência de professores de globês, que

28 NERRIÈRE, op. cit. pp. 127-154

17

deverão ser recrutados entre os professores de inglês. Quanto aos alunos preferenciais

temos, em primeiro lugar, os adultos com necessidade de comunicar a nível global, em

segundo lugar, os próprios estudantes de inglês. Nerrière enumera sete etapas nessa

aprendizagem. Primeira, educar as cordas vocais. Esta primeira etapa prende-se com a

oralidade, mais precisamente com a pronúncia. Para isso, ele propõe um exercício que

consiste em seleccionar vinte e seis canções lentas de clássicos britânicos e americanos,

ouvi-las, decorá-las e reproduzi-las, se necessário, recorrendo a uma transcrição

fonética. Por transcrição fonética entende-se, obviamente, escrever o que se ouve para

melhor aprender os sons, bem como a entoação. “Strangers in the Night” de Frank

Sinatra é recomendada como devendo ser a primeira a ser ouvida. Fundamental nesta

fase é ignorar completamente a escrita. Segunda, compreender a ligação entre a palavra

dita e a palavra escrita. Para tal, são propostos dois processos: recurso ao karaoke e

recurso à Internet. Ambos os recursos proporcionam a audição e a transcrição das letras

das vinte e seis canções que constituem a base de treino dos sons, do ritmo e da

entoação. Nesta etapa ainda não se trata de compreender o conteúdo, o significado.

Estamos só ao nível do significante. Terceira, aprender as palavras e o seu significado.

Neste ponto Nerrière dirige-se muito claramente aos franceses, quando refere que uma

das maneiras de aprender o significado das palavras é quando elas são semelhantes ao

francês. Depois há, naturalmente, que recorrer ao site da Internet sobre o globês para

consultar as 1500 palavras aí apresentadas e ir aprendendo o seu seus significados de

forma gradual. Chama-se a atenção para os perigos da tradução literal. Quarta, aprender

as palavras e o respectivo acento tónico. A sílaba tónica da palavra, isto é, a sílaba que é

dita com mais intensidade, é um aspecto muito importante para que a palavra seja

compreendida. Como não há regras para a acentuação da palavra em inglês, Nerrière

destaca, a negrito, a sílaba tónica de cada uma das mil e quinhentas palavras do globês.

Quinta, dominar a estrutura das frases. Para organizar as palavras dentro da frase, o

autor recorre novamente à Internet, indicando não só o site do Basic English, como

também o site www.manythings.org/voa , sites estes onde existem regras gramaticais e

exercícios estruturais para que os aprendentes de globês possam aprender a sua sintaxe.

Sexta, destacar a componente gestual. É salientada a importância do gesto e da

linguagem gestual para reforçar, ilustrar e enriquecer o discurso oral. Sétima, destacar a

importância da prática permanente. Esta prática é faseada: ouvir, ler, escrever e falar.

Para tal são sugeridos vários meios que passam sempre, pela Internet, nem que seja para

18

comprar as obras de leitura recomendadas. O aprendente é aconselhado a ouvir

programas da rádio Voice of America, a ver programas da CNN e da BBC, a ver filmes

em inglês preferencialmente em DVD, dado que este permite escolher o idioma, bem

como a existência ou não de legendas. Como leitura, uma vez que não há ainda obras

em globês, recomendam-se obras escritas em Basic English e, posteriormente, banda

desenhada em inglês. A escrita poderá ser praticada através dos “chats” na Internet,

recorrendo quer ao dicionário quer a sites de tradução automática. Como prática mais

avançada no domínio da leitura, são aconselhadas obras de escritores como Agatha

Christie . No âmbito da conversação, refere-se que o ideal seria praticar com um amigo

inglês que falasse globês.

Como vemos, o globês não dispensa o inglês. O globês vive e depende do inglês.

Depois, a existência de professores de globês parece dispensável, já que a Internet, os

“chats”, o DVD e o karaoke são suficientes para a sua aprendizagem. Mais, aprender

inglês não é tarefa fácil, mas aprender globês também não o é menos. Por outro lado, a

ideia de colocar como início da aprendizagem a canção “Strangers in the Night” tem-se

prestado a vários comentários, destacamos um:

«The web site also includes song lyrics because Nerrière reckons this is an

excellent way to learn words, even if they are not on the Globish 1,5000. “Strangers in

the Night” is one choice, but what is the student to do when Sinatra goes “scoobie-

doobie-do”?»29

Perguntamo-nos se não será mais proveitoso aprender bem a língua que, como

veremos no próximo capítulo, não obstante os problemas com que se debate, é, de facto,

a língua global e continuará a sê-lo pelo menos enquanto os Estados Unidos detiverem o

poder que actualmente detêm. Sabemo-lo todos. Nerrière também.

CAPÍTULO 4

O Inglês como Língua Internacional

29 BLUME, Mary, «If you can´t master English, try Globish», in International Herald Tribune de 22 de Abril de 2005, retirado do site http://www.ultralingua.net/services/webtrans/iht/iht-pt-enable.cgi?service=english2po...

19

Nerrière tem alguma razão quando se refere ao estado actual da língua inglesa no que

diz respeito à sua unidade, isto é, à falta dela, pelo facto de ser falada por tantos em todo

o mundo. David Crystal, reputado linguista, bem conhecido de todos aqueles que

ensinam inglês, diz o seguinte numa importante obra sobre o inglês hoje, obra essa que

servirá de referência para este último capítulo do nosso trabalho:

« If English is your mother tongue, you may have mixed feelings about the way English

is spreading around the world. You may feel pride, that your language is the one which

has been so successful ; but your pride may be tinged with concern, when you realize

that people in other countries may not want to use the language in the same way that

you do, and are changing it to suit themselves. We are all sensitive to the way other

people use (it is often said, abuse) ‘our’ language.»30

Como podemos ver, há, por parte dos especialistas de língua inglesa e não só, alguma

apreensão quanto ao rumo que ela está a seguir. David Crystal coloca “our” entre aspas,

isto é, há inclusive algum pudor em dizer nossa língua sem aspas, porque a língua

inglesa é de todos aqueles que a falam. Mais à frente voltaremos a este ponto. Para já

vamos, com base no livro de David Crystal, fazer uma breve reflexão em torno da

língua inglesa, tentando explicar como é que ela se tornou na língua global.

O que confere a uma língua o estatuto de língua internacional não é tanto a sua

estrutura, o facto de ser uma língua mais ou menos acessível, mas sim o poder militar e

económico do país que a fala. São estes dois tipos de poder que, no século XIX , vão

projectar o inglês no mundo. Estamos a falar do Império Britânico que levou a que a

língua fosse tão falada nas inúmeras colónias inglesas espalhadas por todo o globo, a

ponto de se falar do inglês como a língua «on which the sun never sets».31 Ligado ao

império temos a Revolução Industrial que faz do Reino Unido a “fábrica do mundo”.

Tudo o que é novo é produzido e comercializado pela Inglaterra. A língua inglesa

desenvolve novas palavras para dar nome a todos os desenvolvimentos ocorridos. País e

língua crescem lado a lado partilhando sucesso e poder. A partir do século XX a

Inglaterra perde o império e a posição cimeira que tinha granjeado, mas o inglês não, já

30 CRYSTAL, David, 2003 (1997), English as a Global Language, Cambridge: Cambridge University Press31 CRYSTAL, op. cit. p. 10

20

que a potência emergente, os Estados Unidos, também fala inglês. David Crystal,

citando Nunberg , refere um episódio curioso, de um jornalista que em 1898 pergunta a

Bismarck o que é que este considera ser o factor decisivo da história moderna, ao que

ele responde:

«“the fact that the North Americans speak English”»32

São os Estados Unidos, de facto, que mantêm, a partir do século XX, o inglês no centro

da economia, da política e também da cultura a nível global. A este propósito, é de

referir que o inglês é uma das línguas oficiais ou de trabalho de todas as organizações

internacionais. Com base na informação veiculada pela “Union of International

Associations”, diz-nos David Crystal:

«In 1995-6, there were about 12,500 international organizations in the world

(…) a sample of 500 of these (…) showed that 85 per cent (424) made official use of

English (…). Of particular significance is the number of organizations in this sample

which use only English to carry on their affair: 169 – a third.»33

Temos depois o caso dos meios de comunicação de massas, a publicidade, a música

pop, o cinema, tudo campos onde o inglês predomina. O caso do cinema é por demais

evidente através, inclusive, da diabolização que é feita de certas produções de

Hollywood por veicularem o estilo de vida americano, mas os números conseguem

surpreender:

«Of the 2,466 artists listed, only 85 (3 per cent) were making movies in

languages other than English. Of the 340 directors, 318 (94 per cent) were involved

only in English-language works.»34

Outro dado curioso, agora a nível das comunicações, é o facto de três quartos do correio

que circula no mundo ser feito em língua inglesa.35 E, falando em comunicações, é

inevitável falar da Internet. Esta veio consolidar uma vez mais a posição do inglês,

sendo este o idioma por excelência deste meio que está a transformar o mundo de uma

32 CRYSTAL, op. cit. p. 8533 CRYSTAL, op. cit. pp. 87,8834 CRYSTAL, op. cit. p. 9935 CRYSTAL, op. cit. p. 114

21

forma ainda difícil de prever em toda a sua dimensão. Mais uma vez citamos David

Crystal:

«The biggest potential setback to English as a global language, it has been said

with more than a little irony, would have taken place a generation ago – if Bill Gates

had grown up speaking Chinese.»36

Acabámos de ver de forma muito sucinta alguns dados que explicam a

penetração do inglês. Vamos de seguida abordar a sua situação actual de forma mais

detalhada. E a primeira pergunta que surge é a seguinte: qual é a pátria ou quais são as

pátrias do inglês?

David Crystal recorre a um estudo de 1988 feito pelo linguista norte-americano

Braj Kachru para responder à pergunta que formulámos. 37 Kachru descreve a

penetração do inglês no mundo, servindo-se de três círculos concêntricos. No primeiro

círculo, mais pequeno, temos o Reino Unido, os Estados Unidos, a República da

Irlanda, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. Ou seja, os países onde o inglês é a

língua materna ou L1 – língua 1. No segundo círculo, o do meio, maior que o primeiro,

temos países como a Índia e Singapura entre muitos outros. Nestes países o inglês tem o

papel de L2. finalmente, no terceiro círculo, o maior de todos, encontramos países como

a Rússia e a China e inúmeros outros. Estes são os países que usam o inglês como

língua internacional e em que a língua inglesa é ensinada como LE – língua estrangeira.

Ao círculo menor é dado o nome de “inner circle” e o número de falantes oscila entre os

320-380 milhões. Ao círculo intermédio é dado o nome de “outer” ou “extended circle”

e o número de falantes é de 300-500 milhões. O círculo maior é referido como

“expanding” ou “extending circle” e o número de falantes compreende os 500-1000

milhões. Crystal prefere chamar a este último círculo em vez de “expanding”,

“expanded”38, dado que em relação aos anos oitenta, em que “expanding” ainda dá a

ideia de um processo, no século XXI, em que o inglês é de facto a língua global, a

palavra “expanded” reflecte melhor a situação actual. Esta é a situação geográfica,

digamos assim do inglês, que assume o estatuto de L1, L2 e LE.

36 CRYSTAL, op. cit. p. 12237 CRYSTAL, op. cit. pp. 60, 6138 CRYSTAL, op. cit. p. 60. O linguista levanta também reservas quanto ao número de falantes de cada círculo, dada a dificuldade de se fazer esse apuramento. No entanto, decidimos citar esses números como referência.

22

Neste contexto que é único na história da humanidade, é fácil compreender

como o inglês se fragmentou em inúmeras variantes. Já o dissemos atrás, as variantes

são tantas que já se fala em “Englishes”. Tom McArthur, no seu livro The English

Languages39 coloca mesmo a questão de se falar em Línguas Inglesas como se fala em

Línguas Românicas ou Línguas Germânicas. David Crystal também aborda este tema e

faz um estudo de algumas dessas diferenças entre um e outro inglês, diferenças essas

que se registam a todos os níveis: lexical, gramatical e fónico. Além do mais estas

formas de inglês têm nome:

«Mixed varieties involving English are now found everywhere, with colourful

nicknames attached – Franglais, Tex-Mex, Chinglish, Japlish, Spanglish, Denglish or

Angleutsch and many more.»40

O próprio nome destas variantes evidencia o traço comum que as caracteriza: o

hibridismo, que actua de diversas maneiras . É um hibridismo híbrido, diríamos nós. A

uma dessas formas de hibridismo dá David Crystal o nome de “code-switching”41, que

consiste em mudar de uma língua para outra para comunicar. McArthur descreve no seu

livro um diálogo entre um casal americano de origem mexicana que está a fazer

compras num armazém no Texas e que ilustra bem o que se entende por “code-

switching”:

«HUSBAND: Que necessitamos?

WIFE: Hay que comprar pan, com thin slices [She turns to the sales clerk]

Donde está el thin-sliced bread?

CLERK: Está en el aisle three, sobre el second shelf, en el wrapper rojo.

WIFE: No lo encuentro.

CLERK: Tal vez out of it.»42

Perante este cenário de diversidade e pluralismo que para Nerrière é um sinal de

decadência e desprestígio para a língua inglesa e que deve ser resolvido com a

39 MCARTHUR, Tom, 1998, The English Languages, Cambridge: Cambridge University Press40 CRYSTAL, op. cit. p. 16541 CRYSTAL, op. cit. p. 16442 MCARTHUR, op. cit. p. 12

23

promoção de um derivado do inglês, mas que não é inglês, o globês, Crystal tem uma

posição serena e faz uma análise objectiva, sem cenários catastróficos. Ele destaca

alguns pontos que garantirão alguma unidade ao inglês, apesar de toda a diversidade.

Desde logo, se o objectivo é a comunicação global, impõe-se a existência de elementos

comuns dentro da diversidade, para que a comunicação se possa estabelecer. Por outro

lado, quando há projectos para formalizar a existência de “uma nova língua inglesa”, há

reacções em contrário. Isto é, que haja, de facto, uma série de variantes, de falares que

estão longe da norma linguística britânica ou americana, aceita-se, agora que se

reconheça formalmente a existência de um “novo inglês”, não se aceita. Exemplo disso

é o caso do “ebonics” que é relatado por McArthur.43 O caso remonta a 1996 na

Califórnia. Uma escola de Oakland, maioritariamente frequentada por alunos de raça

negra que falam uma variante de inglês, vê-se confrontada com níveis elevados de

insucesso porque os alunos não conseguem compreender nem exprimir-se em inglês

padrão. Para solucionar o problema, a direcção da escola resolve dar estatuto de língua

de trabalho ao dialecto falado pelos alunos dando-lhe o nome de “ebonics”.44 As aulas

seriam dadas em “ebonics” e toda a formação das crianças seria feita em “ebonics”. As

reacções não se fizeram esperar através da televisão e da imprensa escrita. McArthur

apresenta uma lista de comentários que ele recolheu da imprensa, nomeadamente cartas

de leitores a comentar o sucedido. Transcrevemos um desses comentários:

«I am absolutely thrilled at the Oakland school district’s choice of Ebonics as

the language of choice in the classroom. I expect that very shortly we will see New

York punks being taught in Brooklonics, Georgia rednecks in Ya’allonics, Valley girls

in Bimbonics, chronic nerds in Siliconics and farm boys in Rubonics. But what most of

us need to keep up with the bureaucrats is a thorough understanding of Moronics.»45

Digamos que há reacções por parte dos conservadores e puristas da língua, entre outros,

que funcionam como um mecanismo de controlo. David Crystal acredita na capacidade

de adaptação a novas situações linguísticas e aponta mesmo para o desenvolvimento de

um inglês a que ele chama “World Standard Spoken English”, caso no futuro as

diferenças viessem a acentuar-se ainda mais. Diz ele:43 MCARTHUR, op. cit. pp. 197, 19844 MCARTHUR, op. cit. p. 198. “Ebonics” resulta da junção de “ebony” com “phonics”45 MCARTHUR, op. cit. p. 127

24

«People would still have their dialects for use within their own country, but

when the need came to communicate with people from other countries they would slip

to WSSE .»46

Este “World Standard Spoken English” faz lembrar o globês e é o globês, mas

apenas quanto ao objectivo de comunicação global. A fundamentação de David Crystal

assenta em pressupostos diferentes, lógicos, inteligíveis e aceitáveis. Para o linguista o

WSSE não se substituiria a qualquer língua ou dialecto nacional, aquele seria um

complemento desse mesmo dialecto ou língua. Ele fala inclusive em diglossia47:

« There is nothing unusual, in linguistic terms, about a community using more

than one variety (or language) as alternative standards for different purposes. The

situation is the familiar one of diglossia. »48

A obra de David Crystal, bem como a de Tom McArthur levantam ainda outras

questões relacionadas com a língua inglesa e fazem-no, especialmente este último, de

forma muito interessante, dando inúmeros exemplos ilustrativos da utilização que se faz

do inglês pelo mundo fora. Pensamos, contudo, que o que foi dito ilustra

suficientemente o papel do inglês na era da globalização: a sua capacidade de se recriar,

de se reproduzir, de se adaptar, ou seja, a sua flexibilidade resultante de uma

característica muito própria que consiste em aliar a extrema riqueza vocabular a uma

grande economia a nível da sintaxe e da morfologia. Acreditamos que o aspecto

linguístico por si só é também muito importante, para além das questões incontornáveis

ligadas ao poder do país de referência da língua que foram abordadas no princípio do

presente capítulo.

CONCLUSÃO

46 CRYSTAL, op. cit. p. 18547 Diglossia é a «situação que caracteriza os indivíduos, os grupos de indivíduos ou as comunidades linguísticas que utilizam a concorrência de dois falares ou duas variedades de uma mesma língua. (…)» em GALISSON, R. e COSTE, D. , 1983, Dicionário de Didáctica das Línguas, Coimbra: Livraria Almedina, p. 20348 CRYSTAL, op. cit. p. 189

25

Cumpre-nos dizer, em primeiro lugar, que estamos cientes das fragilidades do

nosso trabalho. Escrever sobre a língua inglesa é um assunto complexo que requereria

mais tempo e rigor. Fizemos o melhor possível dentro do espaço e do tempo de que

pudemos dispor e fizemo-lo com agrado.

Parte desse agrado prende-se não só com o que aprendemos, mas também com a

leitura das obras que consultámos. Nerrière divertiu-nos com os seus excessos de

linguagem e as inúmeras histórias que conta ao longo do seu livro. David Crystal e Tom

McArthur são dois cientistas da língua capazes do maior rigor, mas sem nunca perder de

vista que no mundo global em que vivemos, os leitores potenciais não estão, à partida,

definidos. Eles são especialistas e escrevem para estudiosos da língua inglesa, mas

aqueles que forem apenas leitores curiosos poderão fazê-lo na certeza de terem uma

leitura instrutiva e agradável.

Feitas estas considerações, queremos dizer que, a nosso ver, o globês é apenas

mais um projecto que não tem possibilidade de tornar-se na alternativa ao inglês.

Nerrière tem, contudo, o mérito de disponibilizar na Internet uma vasta quantidade de

materiais, alguns dos quais de muita qualidade e que poderão, ironicamente, servir

como estratégia para o ensino da língua inglesa. Pessoalmente, pensamos desenvolver

algumas actividades nesse sentido com os nossos alunos.

Estamos a viver o ciclo do inglês. Este ciclo está ligado, já o dissemos, ao futuro

dos Estados Unidos. Sabemos, porém, que os Estados Unidos são a pátria de muitas

pátrias e o caso do “ebonics” é ilustrativo de tensões a nível linguístico dentro da

potência mundial da actualidade. Sabemos que a língua castelhana está a ganhar cada

vez mais terreno. Em Portugal, nas escolas do Ensino Secundário, o espanhol já quase

fez desaparecer o alemão e começa a ameaçar o francês. Começou já também a entrar

no domínio do inglês. Na Escola Secundária Campos Melo na Covilhã, quando foi

implantado o Sistema de Ensino por Unidades Capitalizáveis, havia quatro professores a

leccionar as vinte e quatro unidades de inglês. A partir do momento em que o espanhol

passou a ser opção, o panorama é o seguinte: temos dois professores para as doze

unidades de espanhol do Ensino Secundário e um professor para as vinte e quatro

unidades do Terceiro Ciclo e do Ensino Secundário.

O mundo é dinâmico, as línguas são dinâmicas e o futuro resume-se a uma série

de conjecturas que poderão ou não tornar-se realidade. Não sabemos sequer se a seguir

à globalização, vem um modelo de sociedade fechada, onde fronteiras e muros tornam a

26

erguer-se, ou sequer se a tecnologia vai resolver todo e qualquer problema de

comunicação. De momento, no entanto, a língua global é indiscutivelmente a inglesa.

Para terminarmos, queremos apenas responder à pergunta que ilustra a imagem

do artigo da revista Sábado, a que fizemos referência na introdução. Relembramos a

pergunta:

«O treinador José Mourinho e o russo Roman Abramovich falam em inglês ou em

globês?»

Sabemos qual seria a resposta de Jean-Paul Nerrière. A nossa, porém, não é menos

previsível: inglês, evidentemente.

BIBLIOGRAFIA

27

CRYSTAL, David, 2003 (1997) English as a Global Language, Cambridge: Cambridge

University Press

GALISSON, R. e COSTE, D., 1983, Dicionário de Didáctica das Línguas, Coimbra:

Livraria Almedina

GIDDENS, Anthony, 2005 (1999), O Mundo na Era da Globalização, Lisboa: Editorial

Presença

HAGÈGE, Claude, 2000, Não à Morte das Línguas, Lisboa: Instituto Piaget

McARTHUR, Tom, 1998, The English Languages, Cambridge: Cambridge University

Press

MELO, Alexandre, 2002, Globalização Cultural, Lisboa: Quimera Editores

NERRIÈRE, Jean-Paul, 2004, Don’t speak English, Parlez globish, Paris : Eyrolles

Sites na Internet

http://www.jpn-globish.com/

http://ogden.basic-english.org/topics.html

http://www,voa.gov

http://www.ultralingua,net/services/webtrans/iht/iht-pt-enable.cgi?service=english2po...

http://www.comciencia.br/reportagens/linguagem/ling08.htm

http://www.timesonline.co.uk/article/=,,1068-1591497,00.html

http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=L%C3%ADngua-artificial

28