Caracterização Jurídica Da Dignidade Da Pessoa Humana - Antônio Junqueira de Azevedo

Embed Size (px)

DESCRIPTION

x

Citation preview

  • CARACTERIZAO JURDICA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

    Antnio Junqueira de Azevedo Professor Titular da Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo

    Resumo: A acepo insular da pessoa; a concretizao do princpio

    constitucional da dignidade humana luz da nova tica; o princpio da dignidade humana a consistncia ao respeito aos pressupostos mnimos de liberdade e convivncia entre os homens so alguns dos itens abordados neste trabalho pelo autor civilista.

    Abstract: The person's insular meaning; the concretion of the constitucional

    principie fo human dignity towards a new ethics light; the principie fo human dignity is the consistence of the respect to the minimum pretexts of freedom and companionship between men are the itens approached in this article by the civilist author.

    Unitermos: dignidade humana; nova tica; intangibilidade da vida humana; concretizao da dignidade humana.

    1. Introduo.

    A utilizao da expresso "dignidade da pessoa humana " no mundo do Direito fato histrico recente. Muitas civilizaes, graas a seus heris e santos, respeitaram a dignidade da pessoa humana, mas juridicamente a tomada de conscincia, c o m a verbalizao da expresso, foi u m passo notvel dos tempos mais prximos.1

    "Da dignidade da pessoa humana tornam-se os homens de nosso tempo sempre mais cnscios " ("Declarao Dignitatis H u m a n a e Sobre a Liberdade Religiosa " de Paulo VI e do Concilio Vaticano II, e m 7 de dezembro de 1965). Tomada e m si, a expresso u m conceito jurdico indeterminado; utilizada e m norma, especialmente

    1. Parece que a expresso cm causa surgiu pela primeira vez, nesse contexto preceptivo cm que hoje est sendo usada, cm 1945, no "Prembulo" da Carta das Naes Unidas ("dignidade e valor do ser humano"). A palavra 'dignidade", porm, utilizada cm contexto tico, no-jurdico, para o ser humano, j est muito precisamente cm Kant, que ope "preo " "Pieis ", para tudo que serve de meio, "dignidade", "Wrde", para o que c um fim cm si mesmo, o valor intrnseco do ser racional (para o citado filsofo, somente o homem est nessa condio). Citamos Kant por via de traduo francesa dos "Fundamentos da Metafsica dos Costumes " (p. 80). Os dados completos de todas as citaes esto na bibliografia final.

  • 108 Antnio Junqueira de Azevedo

    constitucional, princpio jurdico.2 sob essa ltima caracterizao que est na Constituio da Repblica, eis que a aparece entre os "princpios fundamentais" (art. Io, III).

    C o m ligeiras diferenas de redao, tambm utilizam a expresso, exemplificativamente: 1. a Declarao Universal dos Direitos do H o m e m (1948), tanto e m seu primeiro "considerando " quanto em seu primeiro artigo. "Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da famlia humana e de seus direitos iguais e inalienveis o fundamento da liberdade, da justia e da paz no mundo" E art. Io: "Todos os homem nascem livres e iguais em dignidade e direitos. So dotados de razo e conscincia e devem agir em relao uns aos outros com esprito de fraternidade"; 2. a Constituio da Republica Italiana (1947): "Todos os cidados tm a mesma dignidade social e so iguais perante a lei sem distino de sexo, raa, lngua, religio, opinio poltica e condies pessoais e sociais" (art. 3" 1" parte); 3. a "Lei Fundamental" da Alemanha (1949): "A dignidade do h o m e m intangvel. Respeit-la e proteg-la obrigao de todo o poder pblico " (art. 1.1); 4. a Constituio da Repblica Portuguesa: "Portugal uma Repblica soberana, baseada, entre outros valores, nacdignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construo de uma sociedade livre, justa e solidria" (art. Io).3 E: "Todos os cidados tm a mesma dignidade social e so iguais perante a lei" (art. 13., Ia alnea).

    Infelizmente, porm, o acordo sobre palavras, "dignidade da pessoa humana ", j no esconde o grande desacordo sobre seu contedo. H hoje duas diversas concepes da pessoa humana que procuram dar suporte idia de sua dignidade; de u m lado, h a concepo insular, ainda dominante, fundada no homem como razo e vontade, segundo uns, como autoconscincia, segundo outros - a concepo para cujo fim queremos colaborar porque se tornou insuficiente, - e, de outro, a concepo

    2. Os conceitos jurdicos indeterminados so assim chamados porque seu contedo mais indeterminado que o dos conceitos jurdicos determinados (exemplo destes, os numricos, - dezoito anos, 24 horas -, daqueles, "casa particular"). Os conceitos jurdicos indeterminados podem ser descritivos (cx. patrimnio, cobrana) ou normativos (cx. justa causa, boa-f) (cf. Engish, "Introduo ao Pensamento Jurdico", 1988, p. 210). Os normativos exigem valorao. N o caso da dignidade humana, o conceito, alm de normativo, axiolgico porque a dignidade humana valor-a dignidade a expresso do valor da pessoa humana. Todo "valor" a projeo de um bem para algum; no caso, a pessoa humana o bem c a dignidade, o seu valor, isto , a sua projeo. Principio jurdico, por sua vez, c a idia diretora de uma regulamentao (Cf. Larcnz, "Derecho justo", 1985, p. 32). O princpio jurdico no regra, mas norma jurdica; exige no-somente interpretao, mas tambm concretizao.

    3. A redao de 1976, repetida cm 1982, por ocasio da primeira reviso, era: "Portugal uma Repblica soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformao numa sociedade sem classes ". Depois, cm 1989 (2a reviso), a redao passou a: "Portugal uma Repblica soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construo de uma sociedade livre, justa e solidria ". Hoje, aps a 3a reviso, o teor do art. 1" o que consta do texto supra. O artigo "O Direito Brasileiro e o Principio da Dignidade Humana ", de Nobre Jnior (2001), enumera diversas outras Constituies que abrigam o princpio da dignidade. O livro "A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos ", de Comparato (2001), por sua vez, traz c comenta as mais importantes declaraes de direitos humanos.

  • Caracterizao Jurdica da Dignidade da Pessoa Humana 109

    prpria de uma nova tica, fundada no h o m e m como ser integrado natureza, participante especial do fluxo vital que a perpassa h bilhes de anos, e cuja nota especfica no est na razo e na vontade, que tambm os animais superiores possuem, ou na autoconscincia, que pelo menos os chimpanzs tambm tm, e sim, em rumo inverso, na capacidade do homem de sair de si, reconhecer no outro um igual, usar a linguagem, dialogar e, ainda, principalmente, na sua vocao para o amor, como entrega espiritual a outrem. A primeira concepo leva ao entendimento da dignidade humana como autonomia individual, ou autodeterminao; a segunda, como qualidade do ser vivo, capaz de dialogar e chamado transcendncia.

    D o ponto de vista ontolgico, ou de viso da realidade, a concepo insular da pessoa humana dualista: homem e natureza no se encontram, esto em nveis diversos; so respectivamente sujeito e objeto. O homem, "rei da criao" v e pensa a natureza. Somente o homem racional e capaz de querer. O h o m e m radicalmente diferente dos demais seres; somente ele auto-consciente. A natureza fato bruto, isto , sem valor em si. A segunda monista: entre homem e natureza, h u m continuum; o homem faz parte da natureza e no o nico ser inteligente e capaz de querer, ou o nico dotado de autoconscincia. H, entre os seres vivos, u m crescendo de complexidade e o homem o ltimo elo da cadeia. A natureza como u m todo u m bem. E a vida, o seu valor.

    D o ponto de vista antropolgico, em segundo lugar, o h o m e m no u'a "mente", que tem um corpo; ele todo corpo. O racionalismo iluminista, que deu origem concepo insular, corresponde visualmente figura do homem europeu: o terno que veste deixa-lhe mostra somente a cabea e as mos (= razo + ao, ou vontade); o resto do corpo a parte oculta do iceberg, - a natureza fsica, cuja essncia, no homem, aquela filosofia ignora.4 Essa parte do corpo - (entre parntesis, observamos que insensivelmente "o corpo" pensado por ns muitas vezes europia, como sendo a parte de nosso ser que no a cabea) - essa parte do corpo, repetimos, considerada uma "mquina" ou u m "mecanismo" tido pela mente. Mas a mente tambm corpo!

    O desconhecimento do valor da natureza, inclusive da natureza no homem, , assim, a primeira grande insuficincia de concepo insular. A segunda , justamente, seu carter fechado, subjetivista. Quer como razo e vontade, quer como autoconscincia, a concepo insular age com reduo daplenitudo hominis, retirando

    4. O presente texto resulta de comunicao feita cm congresso realizado cm Ouro Preto, onde h, cm algumas igrejas, "santos de roca" da poca do Uuminismo; essas imagens tambm servem muito bem para ilustrar a concepo insular da pessoa humana: somente tem cabea c mos, o resto c "roupa ". No deixa de ser curioso observar como essas imagens no so apreciadas pelos brasileiros. claro - elas no correspondem nossa formao africana c indgena que valoriza o corpo c a vida. Jorge Miranda ("Manual de Direito Constitucional", IV, p. 36) assim se expressa sobre os valores da frica tradicional: 'A inviolabilidade da vida e a entreajuda dos membros da comunidade so os valores fundamentais da ordem colectiva. Procura-se, acima de tudo, a vida em harmonia com os outros, com a Natureza e com os espritos que a povoam e animam ". Nesse sentido, a nova tica, que defendemos, por ser mais abrangente, at mesmo mais "brasileira " que a insular sempre to "europia ".

  • 110 Antnio Junqueira de Azevedo

    do ser humano justamente o que ele tem de realmente especfico: seu reconhecimento do prximo, com a capacidade de dialogar, e sua vocao espiritual.

    Apesar dos desvios, dos rumos dispersos, dos caminhos sem sada, a evoluo dos seres vivos, vista a longussimo prazo, revela aumento progressivo de complexidade - dos seres unicelulares, como a bactria, aos pluricelulares, passando aos vegetais, aos animais invertebrados, aos vertebrados, e vindo at o homem. Entre o mais remoto e o mais recente dos seres, h mudanas de nvel com a emergncia de novas faculdades, sempre, porm, sem quebra da continuidade: simples vida, foram se acrescentando a mobilidade, a sensibilidade, a inteligncia e a vontade, a autoconscincia e, finalmente, a projeo para o prximo, com a capacidade de dialogar, e a potencial abertura para o absoluto.5 A o tentar fixar a especificidade do homem, a concepo insular pra na inteligncia e na vontade, que so faculdades comuns aos homens e animais superiores, ou pra na autoconscincia, comum pelo menos ao homem e ao chimpanz.6 O que, de fato, especfico do homem omitido por ela. Da, com graves conseqncias jurdicas, o lento deslizar intelectual no entendimento da dignidade

    5. D o incio da vida na Terra at a projeo para o prximo, com o uso da linguagem, h u m continuum (imanencia). A abertura para o absoluto potencial; para transform-la cm ato c preciso uma deciso fundamental, amar. Amar a deciso fundamental que inventa a transcendncia.

    6. A autoconscincia atribuda pela ctologia tambm aos chimpanzes (c talvez aos orangotangos) especialmente por causa da chamada "experincia do espelho" "Enquanto quase todos os mamferos que se orientam pela viso tentam inicialmente pesquisar ou olhar atrs do espelho, somente duas espcies no-humanas de mamferos - chimpanzes e orangotangos -parecem entender que eles esto se vendo no espelho. Essa situao especial desses macacos conhecida h muito tempo. Em 1922, Autan Pertielje, um naturalista holands, observou que, enquanto os smios no compreendiam a relao entre sua imagem e eles mesmos, um orangotango olhava atentamente em primeiro lugar para sua imagem no espelho mas ento tambm para o que estava atrs de si e sua crosta de comida no espelho... obviamente entendendo o uso do espelho.

    De modo semelhante, o psiclogo de orientao "gestalt", Wolfgang Kohlei; em 1925, comentou a respeito do profundo interesse dos chimpanzes por sua prpria imagem; eles continuavam a brincar com o espelho, fazendo faces estranhas para si mesmos e testando os objetos rejletidos com o objeto real, olhando para a frente e para trs entre os dois. Smios, pelo contrrio, reagiam com expresses faciais sem significado: viam seu prprio reflexo como de outro indivduo, tratando-o como um estranho de seu prprio sexo e espcie.

    Uma evidncia convincente derivou de uma sofisticada experincia de Gordon Gallup, um psiclogo comparatista americano. Um indivduo recebia, sem se dar conta, uma mancha de tinta num lugar especifico, como sobre a sobrancelha, invisvel sem o espelho. Guiado por sua imagem refletida, chimpanzes e orangotangos - como as crianas com mais de 18 meses - esfregavam a mancha com sua mo e olhavam os dedos que tinham sido usados, reconhecendo que a mancha colorida estava no prprio rosto. Outros primatas - como crianas com menos de 18 meses - no faziam essa conexo. Gallup foi a ponto de equiparar auto-reconhecimento com autoconscincia, e esta, por sua vez, com mltiplas habilidades mentais. A lista dessas habilidades inclui atribuio de inteno aos outros, enganos intencionais aos outros, reconciliao e empada. Em resumo, seres humanos c macacos superiores ("apes") entram num terreno cognitivo que os coloca parte de outras formas de vida " (De Waal, "GoodNatured", 1996, p. 67). N o original: "While almost ali visually oriented mammals initially try to reach or look behind a mirror, only two nonhumman species - chimpanzees and orangutans - seem to understand that they are seeing themselves. The special status ofthese apes lias been recognized for a long time. In 1922 Anton Pertielje, a Dutch naturalist, remarked that, whereas monkeysfail to understand the relation between

  • Caracterizao Jurdica da Dignidade da Pessoa Humana 111

    da pessoa humana, de "autonomia individual", para "qualidade de vida", quando, ento, algo que deveria ser radical passa a ser to relativo quanto viver melhor ou pior. A concepo insular, antropocntrica e subjetivamente fechada, j no garante juridicamente o ser humano; infelizmente, ela pode levar a abusos e desvios, entre os quais o caso da eutansia paradigmtico.7

    Se as concretizaes jurdicas da dignidade segundo ambas as concepes so muitas vezes idnticas, em pontos fundamentais divergem radicalmente. Segue-se, ento, por fora desse diverso entendimento do que seja pessoa humana, u m absurdo jurdico: o mesmo texto normativo constitucional, usado para fundamentar tanto a permisso da introduo quanto a proibio da introduo, da eutansia, do abortamento, da pena de morte, da manipulao de embries, do exame obrigatrio de D N A , da proibio de visitar os filhos etc. "A confuso geral" (Machado de Assis).

    E preciso, pois, aprofundar o conceito de dignidade da pessoa humana. A pessoa u m bem e a dignidade, o seu valor.8 O Direito do sculo X X I no se contenta

    their reflections and themselves, an orangutan attentively looksjirstly at his mirror image, but then also ai his behind and his crust ofbread in a mirror... obviously understanding the use ofa mirror.

    Similarly, the German gestaltpsychologist Wolfgang Khler in 1925 commented on the lasting interest of chimpanzees in their mirror image; they continue to play with it, making strange faces at themselves and checkng reflected objects against the real thing by looking back andforth between the two. Monkeys, in contrast, react with facial expressions that are any thing butfrivolous: they regard their reflection as another individual, treating it as a stranger of their own sex and species.

    Compelling evidence was derived in the 197Os from elegant experiments by Gordon Gallup, an American comparative psychologist. An individual unknowingly received a dot ofpaint in a specific place, such as above the eyebrow, invisible without a mirror. Guidedby their reflection, chimpanzees and orangutans - as well as children more than eighteen months ofage - rubbed the painted spot with their hand and inspected thejingers that had touched it, recognizing that the coloring on the reflected image was on their owsface. Other primates - and younger children -failed to make this connection. Gallup went on to equate self recognition with self awareness, and this in tum with a multitude ofsophisticated mental abilities. The list encompassed attribution of intention to others, intentional deception, reconciliation, and empathy. Accordingly, humans and apes havc cntcrcd a cognitivo domain that scts thcm apart from ali othcr formsof lifc" (De Waal, "GoodNatured", 1996, p. 67).

    7. Escreve Eticnnc Montcro ("Cahiers", n. 3, 1998) contra a chamada "eutansia direta": "A alguns agradaria fazer-nos crer que, ao privilegiar o respeito autonomia individual (cada um juiz da sua prpria dignidade e decide o momento de sua morte), a legalizao a nica soluo admissvel em um estado pluralista e laico. Mas esto muito equivocados: ao plasmar em um texto legal - cuja vocao estruturar comportamentos - o principio da eutansia, inclusive a voluntria, o legislador avalizaria a controvertida noo de "qualidade de vida ", impondo-a todos "

    8. A concretizao da idia de dignidade da pessoa humana exige um tomada de posio implcita ou explcita sobre o que seja "pessoa humana". A tica supe a antropologia (filosfica). "Esta cs Ia razn por Ia que Ia historia de Ia filosofia cs Ia historia dcl encuentro secular entre antropologia y tica. La rama de Ia cincia que tiene como objetivo ei estdio global dei bien y dei mal moral - estos son los objetivos de Ia tica - no puede prescindir dei hecho de que ei bien y ei mal se manijiestan en Ias acciones, y a atravs de Ias acciones se convierten en parte dei hombre. Se pueden encontrar ejemplos tan antiguos como Ia tica a Nicmaco. Yaunque en Ia filosofia moderna, especialmente en ei pensamiento filosfico contemporneo, existe una clara tendncia de Ia antropologia (este terreno est ahora sometido a Ia exploracin de Ia psicologia y Ia sociologia moral), no esposible eliminar completamente Ias implicaciones antropolgicas de Ia tica " (Karol Wojty Ia, "Personay accin", 1982, p. 13).

  • 112 Antnio Junqueira de Azevedo

    com os conceitos axiolgicos formais, que podem ser usados retoricamente para qualquer tese. Mal o sculo X X se livrou do vazio do "bando dos quatro " - os quatro conceitos jurdicos indeterminados: funo social, ordem pblica, boa-f, interesse pblico9 -, preenchendo-os, pela lei, doutrina e Jurisprudncia, com alguma diretriz material, que surge, agora, no sculo XXI, problema idntico com a expresso "dignidade da pessoa humana"\ N o presente artigo, aps a crtica da dignidade como autonomia individual, fundada na concepo insular da pessoa humana (parte "II", a seguir), faremos uma tentativa de determinao do contedo da dignidade, segundo uma nova tica - a tica da vida e do amor - (parte "III").

    2. A concepo insular de pessoa.

    Em pelo menos trs reas, o avano do conhecimento cientfico ps abaixo a viso insular da pessoa. Essas reas so: a biologia, com a explicao da evoluo das espcies; a etologia - estudo do comportamento dos animais na natureza -, especialmente a primatologia, com o aprimoramento das observaes; e as cincias cognitivas, com as descobertas sobre o crebro humano.

    Aps indagar para si mesmo o que o homem, o zoologista G. G. Simpson escreveu: "O ponto que quero agora deixar registrado que todas as tentativas para responder a essa questo feitas antes de 1859 so sem nenhum valor ("worthless ") e melhor que as ignoremos completamente" (apud Richard Dawkins, "The Selfish Gene ", 1998, p. 1). D e fato, desde 1859, ano da publicao da "Origem das Espcies " qualquer idia do homem como ser desvinculado de uma ancestralidade primata tornou-se insustentvel. As pesquisas paleontolgicas, no ponto a que chegamos, com a certeza da sucesso dos diversos tipos de antropides (a partir de 35 milhes de anos) e, em seguida, dos vrios tipos de hominides (a partir de 25 milhes de anos), depois os homindeos (h seis ou cinco milhes de anos), at chegar s muitas espcies do gnero homo (desde aproximadamente 2,5 milhes de anos h. habilis, h. erectus, h. neanderthalensis, h. sapiens arcaico etc), e, finalmente, ao moderno homo sapiens (mais ou menos 150 mil anos atrs), no permitem aquela concluso dos sbios iluministas de que somente o homem dotado de razo e vontade. Da bipedia (entre oito e cinco milhes de anos) utilizao de instrumentos de pedra (2,5 milhes de anos), do aumento do crebro (iniciada h 2,5 milhes de anos) descoberta do fogo (700 mil), da linguagem d "protolinguagem " com o homo habilis e linguagem somente com o moderno homo sapiensl) e aos cuidados especiais com os mortos (100 mil anos), so sempre alguns milhares de anos de evoluo, demonstrando, numa

    9. O conceito de funo social veio a ter, afinal, diretrizes materiais na prpria Constituio da Repblica (art. 182 c seus c art. 186); o de ordem pblica, com a diviso doutrinria entre ordem pblica de direo, c m decadncia, c ordem pblica de proteo, c m ascenso, c, ainda, com a separao das leis de ordem pblica, do princpio de ordem pblica, ganhou preciso. O de boa-f foi to trabalhado pela doutrina que dispensa comentrios. D o "bando dos quatro ", somente o conceito de "interessepblico " mantm, ainda, infelizmente, grande indefinio.

  • Caracterizao Jurdica da Dignidade da Pessoa Humana 113

    determinada linha de primatas, o progressivo aumento das faculdades existenciais. Essas emergncias vitais da evoluo vo colocando os novos seres em nveis cada vez mais elevados de complexidade. No possvel, portanto, manter a convico de que aquelas faculdades (razo, vontade, autoconscincia) j teriam surgido no homem prontas como as conhecemos hoje, tal qual Minerva da cabea de Jpiter, ou seja, que ou teriam sido criadas com o prprio homem em um momento nico, ou teriam sido acrescentadas a u m "suporte " (o macaco ancestral), de repente, no se sabe bem como.

    Acresce a isso que a etologia comprova o que qualquer bom observador, no contaminado pelo racionalismo europeu, sabe: animais, como burros, cavalos, cachorros, macacos, pensam e querem. de se ver com que persistncia os burros se esforam para fazer o que desejam! E como comum crianas de fazenda se queixarem aos pais de que o cavalo em que esto montadas "s pensa em comer"!I0 Os cachorros, por sua vez, como seus donos sabem, tm conscincia do que proibido e do que permitido; envergonham-se quando erram e orgulham-se quando acertam. So impressionantes, por fim, os relatos de solidariedade, amizade e colaborao entre os macacos antropides ("apes"- chimpanzes, gorilas, orangotangos)! (cf. as exposies feitas por De Waal, "GoodNatured" 1996,passim).u

    Nesse campo, no tm nenhuma razo grandes nomes da filosofia, como Descartes e Kant, o primeiro, ao afirmar que os animais so "mquinas que se movem " e o segundo, ao reduzi-los a "coisas ". Descartes, depois de escrever que a alma que pensa e que os animais no tm alma e, portanto, no pensam, nem tem vontade, transforma-os em "robots" naturais ("autmatos" na sua linguagem). "O que no parecer nada estranho s pessoas que, sabendo como a indstria dos homens pode fazer autmatos, ou mquinas mveis, empregando poucas peas, comparando com a

    10. preciso no confundir vontade (= capacidade interna de deciso) c liberdade (liberdade natural). Admitamos, para argumentar, que a vontade dos animais no c livre - as decises dos animais seriam determinadas pela natureza c suas circunstncias -... mas, perguntamos, no seria essa a mesma situao, somente mais complexa, a do homem? A diferena no seria somente de grau? U m computador aperfeioadssimo, alimentado com todos os dados de uma situao c mais todos os dados individuais de algum (dados genticos, o passado vivido c registrado psicologicamente, o atual estado fsico) no revelaria previamente que deciso esse algum tomaria naquela situao? C o m exceo do ato fundamental da liberdade moral, amar ou no amar (ver nota 5), c a possibilidade de praticar os atos com amor ou sem amor, haveria mesmo liberdade (liberdade natural)? Com exceo da capacidade de amar, parece que ou os animais superiores, como o homem, tm alguma liberdade de querer, variando a extenso do "espao de escolha " de cada um, ou nenhum dos dois tm nenhuma.

    11.0 autor citado no texto, a propsito de macacos aleijados ou mentalmente prejudicados, mas perfeitamente integrados no grupo, chega a se referir a uma "survival ofthe unflttest" ("sobrevivncia dos inaptos "). "O altuismo no exclusivo da nosso espcie. De fato, sua presena em outras espcies, e o teortico desafio que isso representa, o que deu origem sociobiologia - o estudo contemporneo do comportamento animal (inclusive humano) de uma perspectivas evolucionista. Ajudar os outros a u m custo ou risco de si mesmo algo muito difundido no mundo animal ("GoodNatured", p. 12). "Altruism is not limited to our species. Indeed, its presence in other species, and the theoretical challenge this represents, is whatgave rise to socibiology - the contemporary study of animal (including human) behavior from an evolutionary perspective. Aiding othcrs at a cost or risk to oncsclf is widcsprcad in the animal world"("GoodNatured". p. 12).

  • 114 Antnio Junqueira de Azevedo

    pluralidade de ossos, msculos, nervos, artrias, veias e todas as demais partes do corpo animal, consideraro esse corpo como uma mquina que, tendo sido fabricada pelas mos de Deus, incomparavelmente melhor ordenada e tem em si movimentos mais admirveis que qualquer uma das que podem ser inventadas pelos homens"'2

    ("Discours de Ia mthode", 5a parte). C o m o diz Hans Jonas ("Le prncipe responsabilit", 1995, p. 127), inegvel a presena de "elementos subjetivos" no agir e sofrer dos animais; negar essa presena uma "violncia dogmtica" E, sobre essa negao ideolgica cartesiana da subjetividade animal, escreve: "Mas a razo totalmente artificial de tal negao, a saber o decreto de Descartes (sic) de que a subjetividade como tal somente pode ser racional e, portanto, existir somente no homem, no convence o observador razovel e qualquer proprietrio de cachorro poder zombar dessa observao "l}

    Kant, por sua vez, escreve: "Todos os objetos de nossas inclinaes tm somente um valor condicional, porque, se as inclinaes e as necessidades que delas derivam no existissem, esses objetos seriam sem valor. Mas as prprias inclinaes ou as fontes de nossas necessidades tampouco tm um valor absoluto e tampouco merecem serem desejadas por si mesmas que todos os seres racionais devem querer se livrar inteiramente delas. Assim, o valor de todos os objetos, que ns podemos conseguir por nossas aes, sempre condicional. Os seres, cuja existncia no depende de nossa vontade, mas da natureza, tm somente, se so seres privados de razo, um valor relativo, o de meios, e eis por que so chamados de coisas, enquanto que, ao contrrio, d-se o nome de pessoas aos seres racionais, porque sua prpria natureza os fez como fins em si, isto , algo que no pode ser empregado como meio, e que, em conseqncia, restringem na mesma proporo a liberdade de cada um (e, por sua vez, lhe um objeto de respeito) ",4~15

    12. No original: "Ce qui ne semblera nullement trange ceux qui, sachant combien de divers automates, ou machines mouvantes, l 'industrie des hommes peut faire, sans y employer quefort peu de pices, comparaison de Ia grande multitude des os, des muscles, des nerfs, des artres, des veines, et de toutes les autres parties qui sont dans le corps de chaque animal, considcrcront cc corps c o m m c une machinc qui, ayant tfaite des mains de Dieu, est incompareblement mieux ordonne, et a en soi des mouvementsplus admirables, qu 'aucune de celles quipeuvent tre inventes par les hommes " Sobre as consideraes de Descartes c de seus seguidores, a respeito dos animais, v. Gonticr, "De 1'homme I'animal", passim.

    13. N o original: "Mais Ia raison totalment artificielle d'une telle ngation, savoir le dcrct de Descartes (sic) que Ia subjectivit comme telle peut seulement tre raisonnable et doit donc exister seulement dans l'homme, ne liepas 1'observateur raisonnable et n 'importe quel propritaire de chien pourra s 'en gausser" (reforos grficos nossos).

    14. N o original: "Tous les objets des inclinations n'ont qu'une valeur conditionelle; car si les inclinations et les besoins qui en drivent n 'existaient pas, ces objets seraient sans valeur. Mais les inclinations mmes, ou les sources de nos besoins, ont si peu une valeur absolue et mrilent si peu d 'tre dsirespour elles-mmes, que tous les tres raisonnables doivent souhaiter d 'en tre entirement dlivrs. Ainsi Ia valeur de tous les objets, que nous pouvons nous procurer par nos actions, est toujours conditionnelle. Les tres dontVexistence ne dpendpas de notre volont, mais de Ia nature, n 'ont aussi. si ce sont des tres prives de raison, qu 'une valeur relative, celle de moyens, et c 'est pourquoi on les appelle

  • Caracterizao Jurdica da Dignidade da Pessoa Humana 115

    Felizmente, o B G B , seguindo o Cdigo Civil austraco, hoje bem mais realista; e m 1990, seu texto foi alterado: o ttulo "Coisas" (Sachen) da Parte Geral passou a ser "Coisas. Animais " (Sachen. Tier) e o 90 atualmente dispe: "Os animais no so coisas. Os animais so tutelados por lei especfica. Se nada estiver previsto, aplicam-se as disposies vlidas para as coisas" Alm disso, e m caso de dano ao animal ( 251.2), o juiz no pode recusar a tutela especfica, ainda que os custos da cura sejam maiores que o valor econmico hipottico do animal.

    Finalmente, as cincias cognitivas, por vrios meios, especialmente pela observao das conseqncias de leses cerebrais acidentais,16 pela realizao de ressonncia magntica e de eletroencefalografia, pela utilizao dos processos P E T (cmaras de psitrons),17 e, finalmente, pela conjugao das anlises qumicas e dos estados mentais18, tm, com alguma segurana, comprovado que os processos de sensaes, ordenao das sensaes e impresses internas (pensamentos) so fsicos ou no mnimo tem total correspondncia fsica.

    E patente, pois, a insuficincia terica da concepo da pessoa humana como ser auto-consciente, racional e capaz de querer. Fundamentar toda a nossa dignidade numa "autonomia" individual, que, alm de duvidosa, no evidentemente absoluta e acaba sendo vista somente como "qualidade de vida" a ser decidida subjetivamente, no basta.

    A enormidade dos avanos da tecnologia chegou a u m ponto que no s pe e m perigo a vida do planeta, como, no que diz respeito ao tema desse artigo, permite a plena manipulao da natureza humana, por meio da biomedicina. A velha

    des choses, landis qu 'au contraire on donne le nom de personnes aux tres raisonnables, parce que leur nature mme enfit des fins en soi, c "est--dire quelque chose qui ne doitpas tre employ comme moyen, et qui, par consquent, restreint d'autant Ia liberte de chacun (et lui est un objet de respecl) "

    15.0 trecho de Kant nos "Fundamentos da Metafsica dos Costumes " muito citado porque, a todos os personalistas, agrada a idia do homem como fim, c nunca como meio. Isto est bem, mas Kant, alm dos erros filosficos de negar valor cm si natureza c vida cm geral c de incluir os animais entre as "coisas "-esse erro , hoje, erro tambm jurdico cm seu prprio pas -, expressa a idia de pessoa como fim, sem ligao lgica com a moral formal que ele sustenta com base no imperativo categrico. Sua concepo de pessoa - certa, no resultado - no se deduz de seus raciocnios formais. "En vrit, doit-on ajouter, l 'intuition morale de Kant tait plus grande que ce que dictait Ia logique du systme. Le vide particulier auquel conduit "Vimpratif catgorique"purement formei avec son critre de Ia possibilite d'universaliser sans contradiction Ia maxime du vouloir, a t remarque maintes fois. Mais Kant lui-mme rachetait le simple formalisme de son impratif catgorique par um prncipe de comportement "matriel" quiprtendument en dcoule, alors qu 'en vrit il lui est surajout: le respect de Ia dignit des personnes en tant qu 'elles sont leurs propresfins. Le reproche de vide ne vaut certainement pas pour cela!"

    16. O caso mais clebre o de Phincas Gagc que sobreviveu leso cerebral causada por barra de ferro, cm 1868 (cf. Jcan-Picrrc Changcux et Paul Ricocur, "Ce qui nous fait penser", p. 172). Mas, depois, as observaes se multiplicaram (cf. Antnio Damsio, "O Mistrio da Conscincia ", passim).

    17. Cf. Changcux et Ricocur, p. 62.

    18. Entra aqui toda a questo dos neurotransmissores (cf. Mastcr c McGuirc "The Neuro-transmitter Revolution ", passim), de que, apesar de sua importncia, no trataremos para no cansar o leitor.

  • 116 Antnio Junqueira de Azevedo

    tica j no resolve essas novas situaes. Diferentemente, conforme a tica da vida e do amor, as solues existem.

    O princpio jurdico da dignidade fundamenta-se na pessoa humana e a pessoa humana pressupe, antes de mais nada, uma condio objetiva, a vida. A dignidade impe, portanto, u m primeiro dever, u m dever bsico, o de reconhecer a intangibilidade da vida humana. Esse pressuposto, conforme veremos adiante, u m preceito jurdico absoluto; u m imperativo jurdico categrico. E m seguida, numa ordem lgica, e como conseqncia do respeito vida, a dignidade d base jurdica exigncia do respeito integridade fsica e psquica (condies naturais) e aos meios mnimos para o exerccio da vida (condies materiais). Finalmente, a mesma dignidade prescreve, agora como conseqncia da especificidade do homem, isto , de ser apto ao dilogo com o prximo e aberto ao amor, o respeito aos pressupostos mnimos de liberdade e convivncia igualitria (condies culturais). Os trs ltimos preceitos (respeito integridade fsica e psquica, s condies mnimas de vida e aos pressupostos mnimos de liberdade e igualdade), como prprio dos preceitos deduzidos dos princpios jurdicos, no so imperativos categricos; embora fundamentais, na sua qualidade de requisitos mnimos para o desenvolvimento da personalidade e procura da felicidade, no so imperativos radicais, so imperativos jurdicos relativos. Alm disso, devem ser obedecidos segundo sua hierarquia.

    3. Concretizao do princpio constitucional da dignidade humana luz da nova tica.

    A vida genericamente considerada consubstancia o valor de tudo que existe na natureza. Esse valor existe por si; ele independe do homem. D o primeiro ser vivo at hoje, h u m fluxo vital contnuo; todo ser vivo tem sua prpria centelha de vida, mas cada centelha individual surge do fogo que, desde ento, queima na Terra e, nesse fogo, cada centelha se insere como parte no todo. A vida e m geral fundamenta o Direito Ambiental e o Direito dos Animais. Todavia, , sem dvida, a vida humana, que, sob o aspecto ontolgico, representa sua parte excelente. Por isso, a vida humana - globalmente e em cada uma de suas centelhas - deve merecer a maior ateno do jurista. Sob o ponto de vista que nos interessa, isto , de cada pessoa humana, a vida condio de existncia. O princpio jurdico da dignidade, como fundamento da Repblica, exige como pressuposto a intangibilidade da vida humana. Sem vida, no h pessoa, e sem pessoa, no h dignidade.

    O pressuposto de u m princpio no uma conseqncia do princpio; sua exigncia radical. U m princpio jurdico, ao se concretizar, exige sempre u m trabalho de modelao para adaptao ao concreto; nesse trabalho, a intensidade da concretizao poder ser maior ou menor. At mesmo u m princpio fundamental, como o da dignidade da pessoa humana, impe o trabalho de modelao porque, por exemplo, preciso compatibilizar a dignidade de uma pessoa com a de outra (e, portanto, alguma coisa da dignidade de uma poder ficar prejudicada pelas exigncias da dignidade da outra). Diferentemente, o pressuposto desse princpio fundamental impe concretizao

  • Caracterizao Jurdica da Dignidade da Pessoa Humana 117

    radical; ele logicamente no admite atenuao. Se afastado, nada sobra do princpio da dignidade. E esse princpio, se pudesse ser totalmente eliminado, no seria princpio fundamental. O preceito da intangibilidade da vida humana, portanto, no admite exceo; absoluto e est, de resto, confirmado pelo caput do art. 5o, da Constituio da Repblica. Vejamos algumas de suas concretizaes.

    Deixando de lado o que ningum contesta, a licitude da suspenso do "empenho teraputico " l9 a primeira concretizao da intangibilidade da vida humana, no campo polmico de hoje, h de ser a proibio da eutansia (dita, s vezes, "eutansia-direta"). O mdico que concorda e m praticar a eutansia, porque o interessado declarou vontade nesse sentido, est admitindo implicitamente a falta de valor intrnseco da vida de seu paciente. C o m o diz Montero ("Rumo a uma legalizao..." 1998): "E claro que o fundamento no reconhecido da eutansia se baseia na idia de que algumas vidas no valem (mais) a pena serem vividas. A deciso de praticar a eutansia no se apoia nunca apenas na vontade do doente, mas sempre o resultado de um juzo de valor sobre a qualidade de vida " O prprio suicdio fere o princpio da intangibilidade da vida humana, porque no h, quanto \'\a,jus in se ipsum - na qualificao "lcito/ilcito", ato ilcito, ainda que sem sano. Toda vida individual se insere no fluxo vital coletivo, de tal forma que o titular no o soberano absoluto de sua vida; a vida de cada u m valor que, mediatamente, a todos interessa.

    U m a segunda concretizao da intangibilidade da vida humana a proibio do abortamento do embrio, isto , a interrupo voluntria da gravidez. A clula una (zigoto), resultante da fuso dos gametas e, e m seguida, multiplicada por desenvolvimento interno no ventre materno, , sem dvida, u m novo ser humano que j recebeu sua prpria parcela de vida, j se inseriu com individualidade no fluxo vital contnuo da natureza humana. Tem vida prpria e, no mnimo, capacidade para ser amado. Filosoficamente, ou eticamente, , pois, pessoa humana. D o ponto de vista jurdico, pode no ter "personalidade civil" (art. 4o do Cdigo Civil e art. 2o do novo Cdigo), mas j sujeito de direito (art. 4o, ltima parte, do Cdigo Civil e art. 2o ltima parte, do novo Cdigo). Constitucionalmente, no h, por fim, como negar que

    19. Catccismo da Igreja Catlica (edio francesa, ns. 2.278/2.279): "A cessao dos procedimentos mdicos onerosos, perigosos, extraordinrios ou desproporcionados em relao aos resultados esperados, pode ser legtima. a recusa do "empenho teraputico". Ningum, assim, quer dar a morte; somente aceita de no a poder impedir ". N o original: "La cessation deprocdures mdicales onreuses, prilleuses, extraordinaires ou disproportionnes avec les rsultats attendus, peut tre legitime. Ccst le refus de "Pachamcmcnt thrapeutique" On ne veut pas ainsi donner Ia mort; on accepte de ne pas pouvoir l 'empcher". E o texto continua: Les decisions doivent treprisespar lepatient s 'il en a Ia competente et Ia capacite, ou sinon par les ayants droit lgaux, en respectant toujours Ia volont raisonnable et les intrts legitimes du patient.

    Mme si Ia mort est considre comme imminente, les soins ordinairement dus unepersonne malude ne peuvent tre lgitimement interrompus. L 'usage des analgsiques pour allger les soujfrances du moribond, mme au risque d 'abrger ses jours, peut tre moralement conforme Ia dignit humaine si Ia mort n 'estpas volue, ni commefin ni comme moyen, mais seulement prvue et tolre comme invitable. Les soins palliatifs constituent une forme privilgie de Ia charit dsintresse. A ce titre ils doivent tre encourags " (reforos grficos nossos).

  • 118 Antnio Junqueira de Azevedo

    o feto assim constitudo est protegido tanto pelo princpio da dignidade da pessoa humana que pressupe o direito vida quanto pelo caput do art. 5o, da Constituio da Repblica.20

    Por outro lado, do embrio pr-implantatrio, resultante de processos de fecundao assistida, ou at mesmo de clonagem, constitudo artificialmente e que ainda est fora do ventre materno, por no estar integrado no fluxo vital contnuo da natureza humana, difcil dizer que se trata de "pessoa humana " E verdade que, por se tratar da vida e m geral e especialmente de vida humana potencial, nenhuma atividade gratuitamente destruidora moralmente admissvel mas, no nosso entendimento, a j no se trata do princpio da intangibilidade da vida humana; trata-se da proteo, menos forte, vida e m geral. Dentro desses parmetros, isto , sob o ngulo da intangibilidade da vida humana, a prpria clonagem teraputica, como admitida pelo Parlamento Europeu e pelo Governo ingls, no condenvel do ponto de vista tico e jurdico.21

    U m a terceira concretizao da intangibilidade da vida humana como pressuposto do princpio constitucional da dignidade (e, aqui, garantida expressamente pela letra "a" do inciso XLII do art. 5o, da Constituio da Repblica) a impossibilidade da introduo legislativa da pena de morte. Considerando que, pelas condies de hoje, a eliminao fsica no a nica forma de sano capaz de evitar u m mal maior, isto , de evitar outras mortes (seria, e m tese, a nica hiptese e m que caberia a pena de morte) e no havendo nenhum outro valor jurdico superior vida humana, a pena de morte no Direito Penal c o m u m inconstitucional.

    Depois da intangibilidade da vida humana, a primeira conseqncia direta que se pode tirar do princpio da dignidade o respeito integridade fsica e psquica da pessoa humana. Pode o Poder Pblico "invadir" a condio natural do ser humano

    20. D o acordo com o que est escrito no texto, o chamado "aborto sentimental", embora no punvcl pelo Cdigo Penal de 1940, constitucionalmcntc u m ato ilcito. A gravidez indesejada, resultante de estupro, infelizmente, pe cm conflito direitos rclcvantssimos mas, logicamente, tem-se que reconhecer que o valor maior o valor da vida humana. A deciso de abortamento elimina a vida c, cm decorrncia, como dissemos, elimina tambm toda c qualquer dignidade (valor) da pessoa eliminada; a- de no-abortamento fere, por hiptese, a dignidade da me, mas, certamente, no elimina essa dignidade. Esse abortamento c, pois, ato ilcito, ainda que no punvcl. O Io do art. 4" da Conveno da Costa Rica dispe: "Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei, e, em geral, desde o momento da concepo. Ningum pode ser privado da vida arbitrariamente". Diferentemente, na gravidez que pe cm risco a vida da me, considerando que nele h "vida humana x vida humana ", o abortamento no ato ilcito; no caso de exceo ao preceito da intangibilidade da vida humana.

    21. Procurando no multissccular arsenal da experincia jurdica uma situao que possa servir como base para o raciocnio analgico, h o caso do Digesto 19,1,17; a comparao talvez seja u m pouco grotesca mas, do ponto de vista da analogia, parece ter pertinncia. O embrio pr-implantatrio seria como o material de construo empilhado no terreno; ele ainda no a casa (art. 49 do Cdigo Civil c art. 84 do novo C. Civil; bem mvel, c no, imvel). J o embrio retirado do ventre materno, para melhoria gentica c posterior reimplante, se isto for possvel, seria semelhante ao material retirado da casa, para posterior reaproveitamento, o qual juridicamente no perde sua condio de imvel (art. 46 do Cdigo Civil). E m latim (Ulpiano): "ea quae ex aedificii detracta sunt, ut reponantur, aedijicii sunt; at quae parata sunt, ut imponantur, non sunt aedificii"

  • Caracterizao Jurdica da Dignidqde da Pessoa Humana 119

    e obter fora amostras de sangue para fins de prova? Pode realizar fora transfuses de sangue? U m a "sacralidade" do corpo, semelhana da intangibilidade da vida humana, existe? Sim, existe essa "sacralidade" do corpo, mas no to forte quanto a da vida, at porque estamos agora em pleno terreno dos princpios jurdicos, cujos preceitos nunca so imperativos categricos.

    O exame de D N A , no campo civil, no pode, por exemplo, ser imposto manu militari; caberiam aqui outros meios de prova, como presuno e indcios, a serem utilizados livremente pelo julgador. No parece ser suficiente o interesse privado no conhecimento da paternidade para quebrar o preceito da no-invaso fsica; a permisso poderia se tornar precedente excessivamente grave, valendo como abertura de caminho para abusos posteriores.22 Por outro lado, no campo penal, diferentemente, por fora do interesse pblico na apurao de u m crime, o exame forado poderia ser admitido.

    Por sua vez, a deciso do paciente de autorizar ou no que lhe faam transfuso de sangue, tal qual a de se submeter ou-no a operaes cirrgicas de risco, parece pertencer ao campo da autonomia (no se trata aqui da intangibilidade da vida, como no caso da eutansia). A hiptese muda de figura quando se trata de representante de outra pessoa, por exemplo, de pai em relao a filho menor - aqui no h direito discricionrio do representante; a transfuso de sangue, ou a operao, diante da impossibilidade de manifestao de vontade til do paciente, dever ser feita, ou no, segundo as normas tcnicas.

    Ponto fundamental do respeito integridade fsica e psquica o da obrigao de segurana. Os autores nacionais parece que ainda no se conscientizaram de que a obrigao de segurana, to firmemente referida nos arts. 8o, 9e 10 do Cdigo de Defesa do Consumidor (Seo: "Da proteo sade e segurana "), tem sede constitucional, seja como decorrncia do princpio da dignidade, seja por fora do caput do art. 5o da Constituio. A obrigao de segurana hoje se "autonomizou"; existe independentemente de contrato - pode no haver contrato nem muito menos importa se o contrato gratuito ou oneroso (transporte pago ou no, hospedagem, servios em geral etc). A obrigao de segurana existe sempre; os danos pessoa devem ser indenizados. E importante dizer: em matria de danos pessoa, a regra hoje a responsabilidade objetiva. A responsabilidade subjetiva, nesse campo, atualmente a exceo. A responsabilidade objetiva, na obrigao de segurana, surge agora diretamente da Constituio (no da lei ou da Jurisprudncia); somente haver responsabilidade subjetiva quando houver lei expressa (por exemplo, na responsabilidade mdica - na qual, assim mesmo, h inverso do nus da prova, porque a prova deve ser feita por quem tem melhores condies para a fazer). A admisso da responsabilidade subjetiva como exceo responsabilidade objetiva constitucional admissvel, porque os preceitos decorrentes dos princpios jurdicos no so absolutos.

    Alm da vida em si e da integridade fsica e psquica, a concretizao da dignidade humana exige tambm o respeito s condies mnimas de vida (segunda

    22. H deciso do STF no sentido do texto (Habeas Corpus n. 71.373-4/R.S.).

  • 120 Antnio Junqueira de Azevedo

    conseqncia direta do princpio). Trata-se aqui das condies materiais de vida. A obteno da casa prpria e a sua proteo, por exemplo, so decorrncias da dignidade humana. Embora a Lei n. 8.009/90 traga como ementa a impenhorabilidade do "bem de famlia ", e, em seu art. Io somente se refira a "imvel residencial prprio do casal ou da entidade familiar", est correto o entendimento do STJ de que a proteo cabe antes ao ser humano como tal que famlia- o aprimoramento tico leva a isso. "Penhora Lei n. 8.009/90. Solteiro deve merecer o mesmo tratamento. A Lei n. 8.009/90, artigo 1", precisa ser interpretada consoante o sentido social do texto, (omissis). Data venia, a Lei n. 8.009/90 no est dirigida a nmero de pessoas. Ao contrrio - pessoa. Solteira, casada, viva, desquitada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. S essa finalidade, data venia, pe sobre a mesa a exata extenso da Lei. Caso contrrio, sacrificar-se- a interpretao teolgica para prevalecer a insuficiente interpretao literal. (STJ-Ac. unn. da 6"T,publ. em 20.09.99 -Resp. 182.223-SP-Rel. Min. Vicente Cernicchiaro) " (Cumpre dizer, entre parntesis, que o STJ no se refere Constituio da Repblica por causa das conhecidas conseqncias processuais sobre competncia).23 A Corte de Cassao da Frana (19 de janeiro de 1995) tambm j decidiu que "a possibilidade para qualquer pessoa de dispor de uma casa decente um objetivo constitucional" (apud Heymann-Doat, p. 149).

    Justificam-se, pelo mesmo esprito de respeito s condies mnimas de vida, inmeras normas como as de impenhorabilidade (especialmente os incisos II, IV, VI, VII e X do art. 649 do Cdigo de Processo Civil, ou seja, provises para manuteno por u m ms, salrios, instrumentos profissionais, penses, imvel rural at u m mdulo), a proibio de doar todos os bens,24 as que do direito a alimentos, as que prevem estado de necessidade,25 as que concedem direito real de habitao e as que isentam o benefcio do seguro de vida das obrigaes ou dvidas do segurado.

    N o campo contratual, o respeito s condies mnimas de vida tambm tem aplicao. Segundo a teoria alem dos "limites do sacrifcio" os contratos no precisam ser cumpridos quando sua execuo leva a gastos excessivos no previstos, o que ter maior razo de ser quando o adimplemento puder dificultar a sobrevivncia. Tambm, ao que nos informa Nobre Filho ("O Direito Brasileiro e...", p. 16), com base e m Ernesto Benda, no campo administrativo, o Tribunal Constitucional alemo ordena o respeito s condies de sobrevivncia: "Assim, de acordo com tal preceito, afigura-se inadmissvel que o administrado seja despojado de seus recursos indispensveis sua existncia digna, de sorte que a interveno estatal na propriedade, pela via fiscal ou no, no dever alcanar patamares capazes de priv-lo dos meios mais elementares de subsistncia. De modo igual, o citado art. 1.1 traduz, em detrimento dos poderes pblicos, a obrigao adicional de prover ao cidado um mnimo existencial"

    23. H outras decises; por exemplo, a do 1" Tribunal de Alada Civil de So Paulo publicada no Boletim'da A A S P n. 2105 de 3.IX.99 (n. 5 do Ementrio).

    24. Cf. Luiz Edson Fachin, "Estatuto Jurdico do Patrimnio Mnimo ", passim.

    25. A necessidade cria direito (Cf. Alain Sayag, "Essaisur le besoin createur de droit", passim).

  • Caracterizao Jurdica da Dignidade da Pessoa Humana 121

    Pio XII, por sua vez, na rdio-mensagem do Natal de 1942, estabelece relao entre dignidade humana e o direito propriedade privada. "Deus, ao abenoar nossos pais, disse: 'Crescei e multiplicai-vos; enchei a Terra e submetei-a' E disse depois ao primeiro chefe de famlia: 'Comers o po mediante o suor de teu rosto'. A dignidade da pessoa humana exige, pois, normalmente, como fundamento natural para viver, o uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigao fundamental de normas jurdicas positivas, reguladoras da propriedade privada. As normas jurdicas positivas reguladoras da propriedade privada podem modificar e conceder um uso mais ou menos limitado; mas se querem contribuir pacificao da comunidade, devero impedir que o trabalhador que ou ser pai de famlia se veja condenado a uma dependncia e escravido econmica inconcilivel com seus direitos de pessoa " 26

    Grosso modo, o pressuposto e as conseqncias do princpio da dignidade (art. Io, III, da CR.) esto expressos pelos cinco substantivos correspondentes aos bens jurdicos tutelados no caput do art. 5o da C. R.; so eles: vida ( o pressuposto), segurana (primeira conseqncia), propriedade (segunda conseqncia) e liberdade e igualdade (terceira conseqncia), sendo o pressuposto, absoluto e as conseqncias, "quase absolutas".

    Finalmente, a terceira conseqncia do princpio da dignidade a consistente no respeito aos pressupostos mnimos de liberdade e convivncia igualitria entre os homens (condies culturais). Excluindo o direito vida e o direito integridade fsica e psquica, j tratados, relacionam-se com esta conseqncia os demais "direitos de personalidade" - mas no e m todos os seus aspectos e, sim, nos aspectos fundamentais; so, aqui, direitos que se prendem ao livre desenvolvimento da pessoa humana no seu meio social. A ttulo de exemplo, lembramos as seguintes concretizaes:

    a. direito identidade, especialmente direito ao nome. Trata-se de ter identidade e nome. N o sculo XIX, segundo Heymann-Doat ("Libertespubliques" p. 145), a priso era u m "espao extra-legal", da a seguinte quebra de dignidade humana: "no deixar penetrar no recinto da priso os nomes dos condenados... e dar a cada detento um nmero bem visvel que fique preso no brao direito " E a autora continua: "Era privar os prisioneiros do direito mais elementar da pessoa, o direito a um nome "21

    N o tema de registro civil, a Frana foi condenada pela Corte Europia dos Direitos do

    26. N o original espanhol: "Dios, ai bendecir a nuestroprogenitores, les dijo: 'Crcccd y multiplicaos y henchid Ia tierra y dominadla' Y dijo despus alprimerjefe de famlia: 'Mediante cl sudor de tu rostro comers cl pan'. La dignidade de lapersona humana exige, pues, normalmente, como fundamento natural para vivir, ei derecho ai uso de los bienes de Ia tierra, ai cual corresponde Ia obligacin fundamental de normas jurdicas positivas, reguladoras de Ia propiedad privada. Las normas jurdicas positivas, reguladoras de Ia propriedadprivada, pueden modificary conceder un uso ms o menos limitado; pero, si quieren contribuir a Ia pacificacin de Ia comunidad, debern impedir que ei obrem que es o ser padre de famlia se vea condenado a una dependncia y esclavitud econmica inconciliable con sus derechos de persona " ( "Doctrina Pontifcia ", 11).

    27. No original: "ne pas laisser pntrer dans l 'enceinte de Ia prison les noms des condamns... et donner chaque dtenu un nmero trs apparent qu'ilporte attach au bras droit. Ctait priver les prisonniers du droit le plus lmentaire de Ia persone, le droit un nom "

  • 122 Antnio Junqueira de Azevedo

    H o m e m , no "affaire B. XF.", e m 25 de maro de 1992, por se recusar a alterar o estado civil de u m transexual (apud Heymann-Doat, p. 147).

    b. direito liberdade. E m deciso sobre priso em alienao fiduciria j se decidiu: "A liberdade o maior bem da vida, por isso mesmo sobrepaira ao interesse pecunirio de qualquer credor. S em ltimo caso deve-se prender o cidado comum, que confia sua prpria liberdade ao credor, fortalecido pela lei para explorar atividade econmica considerada til ao desenvolvimento do Pas" (Des. Cristiano Graef Jnior, in RJTJRGS- v. 77, p. 143) " So contrrias dignidade, sob esse aspecto da liberdade (liberdade natural), as clusulas de tempo excessivo de prestao de servio.28 Eventualmente, tambm as clusulas abusivas de exclusividade e de no-concorrncia podem ferir o direito liberdade.29

    c. direito igualdade. Serve de exemplo o conhecido "caso do ano", na Frana, que consistiu no fato de que, na comuna de Morsang-sur-Orge, distrito da cidade de Aix-en-Provence, o prefeito proibiu u m espetculo realizado em casa noturna, e m que o "jogo" consistia no lanar, de u m grupo de pessoas para outro, u m ano - este , por dinheiro , aceitava participar da "brincadeira" O Conselho de Estado, em deciso de 1995, contraria a todos os particulares envolvidos, deu como legtima a proibio feita pelo prefeito; o ano estava sendo tratado como coisa. Tambm em alguns programas de auditrio, no Brasil, a condio "desfrutvel" com que o apresentador trata a pessoa que ali est fere a dignidade, nesse captulo da igualdade bsica dos seres humanos.

    d. direito intimidade, ao sigilo de correspondncia etc. A Corte Europia dos Direitos do H o m e m desenvolveu o direito intimidade, compreendendo nele a vida sexual. Quanto correspondncia, o art. 5o, XLIX, da Constituio da Repblica determina: " assegurado aos presos respeito a integridade fsica e moral" e, de fato, pelo princpio da dignidade da pessoa humana, todo preso deve ser tratado com Humanidade; ora, segundo deciso da Corte Europia dos Direitos do H o m e m , no "affaire Fell et Burger", de 25 de maro de 1983, os presos tambm tm direito ao respeito de sua correspondncia (apud Heymann-Doat, p. 146).

    Sintetizando tudo que procuramos transmitir com este artigo, conclumos: a. diante da "confuso geral" criada por gregos e troianos na utilizao do princpio jurdico da dignidade da pessoa humana, impe-se ao jurista brasileiro, evitando uma axiologia meramente formal, dar indicaes do contedo material da expresso; b. h graves falhas cientficas na concepo filosfica da pessoa humana como ser dotado de razo e vontade, ou auto-consciente (concepo insular). Segue-se da que insuficiente a idia de dignidade como autonomia, a que essa concepo d sustentao. A pessoa humana, na verdade, se caracteriza por participar do magnfico fluxo vital da natureza ( seu gnero mais amplo), distinguindo-se de todos os demais seres vivos

    28. Cf. art. 1120 do C. Civil c art. 598 do novo C. Civil.

    29. Sobre essas clusulas abusivas, mas vistas sob ngulos diferentes (abuso de direito, fatores econmicos etc), Le Gac-Pcch, " La proportionnalit en droit prive des contrats" pp. 161 c ss. a pp. 189 c ss.

  • Caracterizao Jurdica da Dignidade da Pessoa Humana 123

    pela sua capacidade de reconhecimento do prximo, de dialogar, e, principalmente, pela sua capacidade de amar e sua abertura potencial para o absoluto ( sua diferena especfica) (concepo da pessoa humana fundada na vida e no amor); c. com esse fundamento antropolgico, a dignidade da pessoa humana como princpio jurdico pressupe o imperativo categrico da intangibilidade da vida humana e d origem, em seqncia hierrquica, aos seguintes preceitos: 1. respeito integridade fsica e psquica das pessoas; 2. considerao pelos pressupostos materiais mnimos para o exerccio da vida; e 3. respeito s condies mnimas de liberdade e convivncia social igualitria.

    So Paulo/Ouro Preto, outubro de 2001.

    Bibliografia.

    "Catecismo da Igreja Catlica" - ed. francesa "Catchisme de L'Eglise Catholique" Mame-Plon, 1992.

    CHANGEUX, Jean-Pierre e RICOEUR, Paul - "Ce qui nous fait penser: La Nature et Ia Rgle", Odile Jacob, Paris, 2000 (a Ia edio de 1998).

    C O M P A R A T O , Fbio Konder - "A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos" 2a. ed. rev. e ampl., Saraiva, So Paulo, 2001.

    D A M S I O , Antnio - "O Mistrio da Conscincia ", trad. Laura Teixeira Motta, rev. tcnica de Luiz Henrique Martins Castro, Cia. das Letras, So Paulo, 2000 (ttulo original: "The Feeling of What Happens Body and Emotion in the Making of Consciousness", 1999).

    D A W K I N S , Richard - "The Selfish Gene " 5a ed., Oxford Univ. Press, Oxford/ N e w York, 1999 (a Ia ed. de 1976).

    D E W A A L , Frans - "GoodNatured: the Origins ofRight and Wrong in Humans and Other Animais", Harvard Univ. Press, Cambridge, 1996.

    DESCARTES, Ren - "Discours de Ia Mthode ", com intr. e notas de Etienne Gilson, J. Vrin, Paris, 1954 (a Ia edio de 1637).

    ENGISH, Karl - "Introduo ao Pensamento Jurdico", trad. De J. Baptista Machado, Gulbenkian, Lisboa, 1988 (ttulo original: "Einfurhung in das juristiche Denken", 1977; a Io ed. de 1956).

    FACHIN, Luiz Edson - "Estatuto Jurdico do Patrimnio Mnimo ", Renovar, Rio de Janeiro, 2001.

    G O L D S M I T H , Timothy H. - "The Biological Roots of Human Nature: Forging Links Between Evolution andBehavior", Oxford Univ. Press, N e w York/ Oxford, 1994 (a Ia ed.del991).

  • 124 Antnio Junqueira de Azevedo

    GONTIER, Thierry - "De 1'homme l 'animal: Paradoxes sur Ia nature des animaux. Montaigne et Descartes", J. Vrin, Paris, 1998.

    HEYMANN-DOAT, Arlette - "Libertespubliques et droits de 1'homme", 4a

    ed.,L.G.D.J, Paris, 1997.

    JONAS, Hans - "Le prncipe responsabilit " trad. francesa de Jean Greisch, 3a ed., Flammarion, Paris, 1995 (ttulo original: "Das Prinzip Verantwortung" 1979).

    K A N T , Emmanuel - "Fondements de Ia metaphysique des moeurs" obra seguida da "Critique de Ia raison pratique" trad. francesa de J. Barni, Liv. Philosophique de Ladrange, Paris, 1848 (ttulo original: "GrundlegungzurMetaphisik derSitten" 1785).

    L A R E N Z , Karl - "Derecho justo: fundamentos de tica jurdica ", trad. e apres. de Lus Dez-Picazo, Civitas, Madri, 1985 (ttulo original: "Richtiges Recht- Grundzge einer Rechtsethik " 1978).

    LEAKEY, Richard - "L 'origine de l 'Humanit ", trad. francesa de Jean - Pierre Ricard, Le Grand Livre du Mis, Paris, 1998 (ttulo original: "The Origins of Humankind" 1994).

    L E GAC-PECH, Sophie - "La proportionnalit en droit prive des contrats " L.G.D.J., Paris, 2000.

    M A S T E R S , Roger D. e McGUIRE, Michael T. - "The Neurotransmitter Revolution: Serotonin, Social Behavior, and the Law" Southern Illinois University Press, Carbondale e Edwardsville, 1994.

    McGUIRE, Michael T. e M A S T E R S , Roger D. - Vide Masters, Roger D.

    M I R A N D A , Jorge- "Manual de Direito Constitucional" Tomo IV, 2a ed. rev. e actualizada, Coimbra Ed., Coimbra, 1993.

    MONTERO, Etienne - "Rumo a uma legalizao da eutansia voluntria? Reflexes sobre a tese da autonomia " in "Cahiers de Ia Faculte de Droit de Namur" (Blgica), n. 3, 1998.

    N O B R E JNIOR, Edilson Pereira - "O Direito Brasileiro e o Principio da Dignidade da Pessoa Humana", in Revista "Lex" n. 266, fev. de 2001.

    P A U L O VI - "Declarao Dignitatis Humanae Sobre a Liberdade Religiosa " - Documentos do Vaticano II, Ed. Vozes, Rio, 1996 (edio bilinge latina-portuguesa, com texto em portugus, revisto pela CNBB).

    PIGNEDOLI, Valeria - "Privacy e liberta religiosa" Giuffr, Milo, 2001.

    PIO XII - Rdio-mensagem do Natal de 1942 ("Con sempre"), verso em espanhol, in "Doctrina Pontifcia II" B A C , Madri, 1958.

  • Caracterizao Jurdica da Dignidade da Pessoa Humana 125

    RICOEUR, Paul e C H A N G E U X , Jean-Pierre - Vide Changeux, Jean-Pierre.

    SAYAG, Alain- "Essaisurlebesoin createur de droit", L.G.D.J., Paris, 1969.

    S O M M A , Alessandra - "Lo status deli 'animale " (cap. XIV do "Corso di Sistemi Giuridici Comparati" a cura di Guido Alpa), Giappichelli Ed., Turim, 1996.

    W O J T Y L A , Karol - "Persona y accin " trad. espanhola de Jesus Fernandez Zulaica, B.A.C., Madri, 1982 (ttulo da edio original: "Osoba e Czyn " Ttulo da ed. definitiva: "TheActing Person" 1980. O texto definitivo foi estabelecido pelo autor com a colaborao de Anna-Teresa Tymienicka).