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7/25/2019 Carta Para Carolina Maria de Jesus - Geleds
1/6
Carta para Carolina Maria deJesus
Publicado h 12 meses - em 12 de dezembro de 2014 Atualizado s11:45
Categoria Mulher Negra
A
carta para Carolina Maria deJesuse que faz parte da verso
ebook Onde estaes felicidade organizado por Me Pari
Revoluo
enviado porHildalia Fernandes Cunha CordeiroviaGuest
Postpara o Portal Geleds
Venerada Carolina Maria de Jesus,
Bom dia, amada senhora! Escrevo-lhe esta carta neste dia to importante, para parabeniz-la pelo seu centenrio e
retribuir um pouco do muito oferecido por voc. Ficou um tanto longa, eu sei, mas faa a leitura da mesma quando
puder, sem pressa para finalizar. Realize a seu tempo e da forma mais confortvel e tranquila possvel.
Como tem passado, amiga to querida? Sei que, apesar do lugar muito aprazvel onde est (pelo menos so as
poucas informaes que chegam at aqui sobre o mesmo), voc, permita-me trat-la assim, no anda satisfeita com
o que pode ter conhecimento nesse outro plano. Sou portadora, nesta comunicao, de boas e ms notcias. Quais
as que prefere receber primeiro? No que eu guarde esperanas de que voc no saiba o que passo a relatar a partir
de ento.
Passado um sculo do seu nascimento, no creio que descanse em paz, infelizmente. No sei notcias sobre seu
filho Jos Carlos. Joo Jos, seu mais velho, sei que faleceu. Vera Eunice lembrada por alguns (uns, srios, outros,
nem tanto). No encontro notcias sobre seus netos: Ricardo, Luciana, Marisa, Paulo Csar, Adriana, Lilian, Eliane,
Elisa, Ana, Jackson e Rafael. Fiquei sabendo a respeito deles na dedicatria existente no seu livro mais conhecido,
Quarto de despejo: dirio de uma favelada. Por aqui pelo nordeste, notcias suas no costumam chegar, mesmo em
tempos que se dizem e se desejam globais. Quase nada se fala por aqui sobre voc, querida, infelizmente. At
mesmo as suas obras so muito difceis de achar ainda hoje. Mas, em compensao, h muito, no ouvia falar tanto
de voc como neste ano, em que completaria 100 anos (no vou dizer se viva estivesse, uma vez que creio na
continuao da sua energia, amiga to querida). Envio essas mal traadas linhas, constitudas de indignadasindagaes sobre sua trajetria, suas andanas, produes e legados deixados sua famlia e que, novamente, as
aves de rapina, como voc mesma nominava todos aqueles oportunistas, no deixam chegar a quem, por direito,
deveria.
Carolina desejaria muito partilhar com voc somente as boas notcias, compartilhar o quanto tem sido grande a
procura das suas obras pelas geraes mais novas, com um genuno interesse de aprender, com as suas negras
escritas, sobre as artes de vencer mesmo em contextos mais do que adversos. meu desejo, tambm, falar sobre os
desdobramentos da sua escrita, mesmo sabendo que voc os acompanha atentamente os desdobramentos e
alcances do legado deixado por voc, pois creio que a vida no acaba aqui e que vive em suas obras e para alm
delas.
Diria mais, penso que voc traga a condio de yetnd, que aquela que retorna. Espero e anseio por isso. No
entanto, gostaria de lhe dizer, mesmo ciente que voc observa a caminhada de muitas das nossas irms e se
regozija com as nossas vitrias, que muitas so as mulheres negras que seguem as estradas desenhadas
inicialmente por voc, querida amiga. Muitas tm escrito com dignidade, (re) significando para dignificar a nossa
existncia aqui no iy, no plano material. A lista enorme, graas a Olrun. Dentre elas, podemos citar: Conceio
Evaristo, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Ftima Trincho, Ana Celia da Silva, Vanda Machado, Lia Vieira, Geni
Guimares, Cristiane sobral, Cidinha da Silva, Nilma Lino Gomes, Mel Adn, Lvia Natlia, Elizandra Souza, Rita
Santana, Urnia Muzanzu, Edileuza Penha, Florentina Souza, Ana Rita Santiago e Cristian Sales, dentre outras tantas.
Marcha das Mulheres Negras 2
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2/6
Todas continuam o trabalho arduamente iniciado por voc, venervel ancestral. At mesmo eu, muito recentemente,
iniciei o caminho por essa seara difcil, que o de ouvir, arquivar e propagar nossas negras memrias, para que
gritemos ao mundo sobre os nossos negros mundos, to cheios de sabedoria e de ensinamentos, no mais das vezes,
de ordem ancestral.
Narrar. Eis o duro e rduo ofcio que escolhemos (ser mesmo que escolhemos?), iniciado por voc e perpetuado por
essa forte e determinada rede formada por mulheres negras. Seria uma continuao da reunio ocorrida em solo
africano, quando as yagba, nossas mes ancestrais, decidiram se unir, para acumular fora e energia contra o
poder falocntrico, j to impregnado naquelas pocas imemoriais? Seria uma (re) atualizao do que, outrora, em
terras nigerianas, se denominou de Gld,que tinha como patronas as yaa Mi, as Senhoras Donas do Pssaro?
Penso que muitos dos nossos traos de garra, teimosia, perseverana (sobretudo ira, por que no?) sejam advindos
destas, e como elas nos proporcionam poderes imensurveis e nos fazem acreditar que podemos sempre ir mais
alm e seguir adiante, rumo emancipao individual, levando-nos, tambm (e inevitavelmente), emancipao
coletiva.
Narrar: esta foi a sua misso, cumprida com toda a dignidade e teimosia que lhe eram to peculiares. Obrigada,
irm, pelo espelho que se tornou para todas ns, que procuramos seguir pela mata apontada por voc, precursora
em tais caminhos. Narrar para: (sobre) viver; para que os dias passem; para procurar entender; para se (re) fazer;
para aceitar como se possvel fosse; para se fortalecer e tentar seguir adiante. Esperando o fim? No. Construindo
um futuro.
Escrever era tudo que lhe restara Carolina, para que no lhe arrancassem de vez a dignidade duramente assegurada.
Entre uma dor e outra, voc corria para o papel para eternizar a sua histria, mas que era de tantas outras das
nossas tambm. Uma contadora de histrias reais, vividas e experienciadas diariamente, na linda e sofrida pele
preta. Na pauta dos dias e no contedo dessas pretas letras, sob folhas em branco, registrava ressentimentos osmais diversos, traumas, dores, amores no correspondidos, a dureza dos dias, demandas de todas as ordens, a falta
de dinheiro para impor respeito, a sua condio de humana mulher negra, consegue recordar amiga? Narrava a
agonia de no poder oferecer condies mnimas sua prole. Projetava um futuro diferente, desenhando-o no papel,
para que ele ganhasse fora e se tornasse real. Voc nunca desistiu. Sempre acreditou na sina de ser uma escritora.
Sentenciava sobre isso em muitos dos seus textos. Sabia-se e concebia-se escritora.
Posso ouvir os ecos dos seus escritos no primeiro dirio publicado. Penso que seja importante reproduzir alguns
trechos aqui, minha mais velha, nessa nossa comunicao de ordem to ntima, visto que se trata de uma carta, mas
que no h garantia de onde ela v parar amanh, no mesmo? Quanto mais nos tempos atuais, nos quais o
privado e o pblico so separados por linhas to tnues, to frgeis e to prximas Acredito que seja interessante
registrar trechos da sua primeira e mais conhecida obra, sobretudo, para que as novas geraes, to interessadas
nas suas escritas, possam conhecer um pouco mais do seu rico, diversificado e complexo acervo, amiga. Prometo
que os reproduzirei aqui, conforme constam nos originais, pelo menos daqueles a que tivemos condies de realizar
a leitura, para que futuros leitores sintam-se incitados a realizar a leitura da sua linda e necessria obra. Permite
que assim seja?
Espero que voc e todas (os) as (os) que, depois, vierem a ter acesso leiam tais trechos, como quem ouve assobios
lanados ao vento, de forma leve, suave, ainda que, muitas vezes, muito mais parea com o rudo de uma trovoada,
por que no? O vento parece traduzir perfeitamente a sua energia, ora brisa, ora furaco, mas sempre vento.
Permita-me, amiga, alinhavar a nossa comunicao com a explicitao de algumas das suas falas magistrais, at
mesmo para que eu possa provar ao nosso leitor virtual e real que, ainda que a admire infinitamente, o que torno
pblico aqui ultrapassa, e muito, a admirao pela escritora. Ainda que seja um texto com um forte, inevitvel e
desejoso tom emocional, com as passagens selecionadas, espero explicitar caractersticas suas que gostaria de ter
lido em muitos das escritas sobre a sua pessoa, aos quais tenho acesso ao longo desses anos de estudo sobre a sua
escrita e sobre voc.
Sobre a sua escrita, venho relembrar os seguintes trechos: o primeiro a ser relatado aqui nessa carta, escrito em 22
de maio de 1958, Duro o po que ns comemos. Dura a cama que dormimos. Dura a vida do favelado; o
segundo, em 29 de maio de 1958, H de existir alguem que lendo o que eu escrevo dir isto mentira! Mas, as
miserias so reais; o terceiro, em 1 de junho de 1958, No tenho fora fsica, mas as minhas palavras ferem mais do
que espada. E as feridas so incicatrisaveis.
Voc resistiu. Escreveu. Eternizou-se no papel e em nossas memrias. Mostrou-nos caminhos, sadas, nunca atalhos
uma vez que esses no costumam funcionar para ns, mulheres negras desfavorecidas economicamente, quer
tenhamos estudo ou no. Obrigada pela teimosia, pela persistncia, pela representao to digna da nossa condio
de humanas mulheres negras.
Hoje, mais especificamente no ano em que se comemora o seu centenrio, voc volta a ser, tal qual outrora, objeto
de estudo para tantos no negros. Voc continua sendo pensada por eles, bem como a sua vasta obra, sempre a
partir da nfase ao depreciativo. Adjetivos como escritora da misria, memorialista do lixo, voz enunciativafavelada, dentre tantas outras, so atualizadas, mas a inteno permanece a mesma, a de confin-la na favela da
qual, mesmo tendo se mudado, permaneceu engessada no imaginrio daqueles que no conseguem nem desejam
conceb-la como aquela que conseguiu driblar todas as inmeras adversidades e produziu um acervo que, mesmo
hoje, com toda a facilidade advinda das altas tecnologias, no permite que um escritor tenha flego e vontade para
produzir tanto quanto voc o fez.
V O C J L E U ?
Complexo de vira-latas: Co
elite brasileira enfiou isso n
sua cabea
Todo preconceituoso cov
O ofendido precisa compre
isso, Mario Sergio Cortella
10 comportamentos machi
disfarados de coisas natu
Os cotistas desagradecidos
Existe racismo no Brasil? Fa
Teste do Pescoo e descubr
Quem usa, recomenda:
econmico, seguro e ecolg
coletor menstrual ganha
adeptas no Brasil
Frequncia afetiva, qual a
Afrobetizar a educao no B
Sou mulher. Suburbana. Ma
ainda t na vantagem: sou
branca
Pai compra tnis vista par
filhos, tratado como ladr
d uma aula de resistncia
negra para a PM
As cotas para negros: por q
mudei de opinio por Willia
Douglas, juiz federal (RJ)
Feminismo para homens, u
curso rpido em 26 lies, p
Alex Castro
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3/6
O seu ato de escrever era dirio e compulsivo.Voc contava o mundo tal qual o via, despedaando-se, sobretudo o
seu e dos seus iguais. Tantos dos seus, que so nossos, vivendo em condies desumanas! Era preciso narrar. Narrar
para sobreviver, para testemunhar, para publicizar continuadas atrocidades perpetradas contra o nosso povo de
pele preta e negra alma. Sim, temos alma sim, Igreja catlica. No somos e nunca fomos pea, mercadoria, coisa.
Foram os coloniza-DORES que, assim, impuseram a nossa existncia ao mundo. Mas, voc, mais do que ningum,
sabe que nunca nos submetemos ao jugo, subordinao, no , Carolina?
Escrever para (re) construir-se dia aps dia: Todos os dias escrevo. Era a sentena proferida por voc, nobre
guerreira, talvez, na tentativa de que a sentena ecoasse e para que voc no fraquejasse e no desistisse. Tinha,
ainda, muito e tanto a nos dizer. Eternizar as nossas histrias e memrias no papel para que elas ganhassem o
mundo e tornasse pblica a misria, o sobejo, os restos e sobras destinados ao nosso povo negro, mas a nossacapacidade, tambm, de superar os inmeros e diversificados obstculos.
O que no pode deixar de ser contado hoje e precisa ser feito por ns, que viemos a partir da porta arrombada por
voc, Carolina Maria de Jesus, so seus feitos e no os seus possveis defeitos, visto que voc era humana. Torna-se
imprescindvel, tambm, procurar, problematizar e publicizar adjetivos que revelam o menosprezo sua pessoa e
sua rica obra, ininterruptamente, jogados ao vento. Estes voltam, so devolvidos por esse mesmo vento que os leva,
junto com as suas negras escritas, para terras distantes e, por l, so to bem acolhidos, recebidos e lidos, a
exemplo da recepo de suas obras em outros pases.
Aqui, registro tambm o seu domnio sobre o que se passava no Brasil e no mundo, sobretudo no plano poltico: em
15 de maio de 1958, escreveu Eu classifico So Paulo assim: O Palcio, a sala de visita. A Prefeitura a sala de
jantar e a cidade o jardim. E a favela o quintal onde jogam os lixos; em 19 de maio de 1958, bradou em letras
pretas O que o senhor Juscelino tem de aprovvel a voz. Parece um sabi e a sua voz agradvel aos ouvidos. E
agora, o sabi est residindo na gaiola de ouro que o Catte. Cuidado sabi, para no perder esta gaiola, porque os
gatos quando esto com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados so os gatos. Tem fome; Quando estou
na cidade tenho a impresso que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos,
almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impresso que sou um objeto fora de uso, digno de estar num
quarto de despejo; E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual a fome!.
Mesmo tendo somente a antiga segunda srie, dona uma caligrafia caprichada, e uma sagacidade e ironia a toda
prova, seguia voc, desbravando, com toda a valentia que lhe era peculiar, os dias que passavam corridos e cheios
de adversidades. Momentos de sossego e de merecido descanso eram irreais para voc a nossa herona e, ainda
assim, nunca deixou de acreditar que chegaria a concretizar o destino que desenhou para si e para os seus.
Dividia os afazeres domsticos e de garantia da sobrevivncia com a leitura e a escrita. Conhecia os grandes das
letras de sua poca e de outros tempos que a antecediam. Como? De que maneira se dava o acesso a tais autores e
obras? Que momento do dia voc tinha para l-los e guard-los em sua privilegiada mente, conhecer e propagar
ideias deles e de os seus pensamentos, a ponto de reproduzi-los at mesmo no formato potico, dentre outros
tantos produzidos por voc?
Uma veia para comentrios que beiravam o domnio do marxismo, tamanha a lucidez de leitura do contexto scio-
histrico desfavorecido que vivenciava, mas que avanavam para muito alm do que um economista de origem
europeia poderia prever. Uma conscincia e lucidez do quanto era explorada. Uma me teimosa que no abria mo
de dar aos filhos o que estivesse ao seu alcance. Mesmo que o nico presente possvel para a filha caula fosse
encontrado no lixo, um par de sapatos para Vera Eunice, esse era devidamente limpo e engraxado antes de ser
entregue.
Bela, vaidosa, cheia de si, sempre cuidadosa com a aparncia, as poucas imagens fotogrficas que chegam at ns,
hoje, revelam tais cuidados, voc no se deixava levar por nenhum perna de cala, como nomeiam as nossas
mensageiras, que encontrasse pelo caminho. Orgulho poderia ser o seu sobrenome. No se rendia fora e
presena masculina que, no mais das vezes, deseja impor a sua vontade sobre as demais. Talvez, preferissecontinuar s, conforme narrou em 2 de junho de 1958: O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se
comigo. Mas eu no quero porque j estou na maturidade. E depois, um homem no h de gostar de uma mulher que
no pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lapis e papel debaixo do travesseiro. Por isso
que eu prefiro viver s para o meu ideal.
Voc manifestou, repetidamente, o no render-se explorao masculina em troca de um pouco de comida. Tudo
isso a fazia uma mulher sempre muito frente do seu tempo, como ilustram as passagens a seguir: em 18 de julho
de 1955, No invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas. No casei e no estou
descontente; em 19 de julho de 1955, H mulheres que os espsos adoece e elas no penado da enfermidade
mantem o lar. Os espsos quando v as esposas manter o lar, no saram nunca; em 21 de julho de 1955, No tenho
marido, e nem quero! Uma senhora que estava me olhando escrever despediu-se. Pensei: talvez ela no tenha
apreciado a minha resposta.
Voc no maldizia a sua tez negra nem o seu cabelo crespo, muito pelo contrrio, orgulhava-se, enaltecia a sua
esttica herdada dos africanos: em 16 de junho de 1958, eternizou o seu orgulho em Eu escrevia peas e
apresentava aos diretores de circos. les respondia-me: pena voc ser preta. Esquecendo les que eu adoro a
minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu at acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco.
Porque o cabelo de preto onde pe fica. obediente. E o cabelo de branco, s dar um movimento na cabea ele j
sai do lugar. indisciplinado. Se que existe reincarnaes, eu quero voltar sempre preta.
O casamento um risco pa
vida das mulheres, diz m
especialista em sade men
feminina
Esta mulher fotografou-se t
os dias durante um ano. O fi
nos deixa sem palavras
Infantolatria: as consequn
de deixar a criana ser o ce
da famlia
O pas onde os negros tem
cabelos naturalmente loiro
Professores evanglicos
impedem ensino da histri
cultura africana nas escola
especialista
Os demnios do Demnio,
Eduardo Galeano
L E I A N O S S O S G U E S T P O S T S
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4/6
Nutria a crena de que venceria, tanto quanto a sagacidade de se saber roubada. Voc mantinha a teimosia em
continuar narrando. Narrava para abrir os caminhos, para no sucumbir. Hoje, as aves de rapina continuam
rondando o que restou do seu cadver, o corpo que a terra j deu conta, porque todo o mais vive, ressoa, vibra,
segue, propaga-se, sobretudo, com o auxlio indispensvel do vento. Os usurpadores de ontem e os descendentes
dos mesmos continuam no desespero de se apropriar do que restou para sua famlia do seu legado. De que valeu
escrever tantos cadernos inditos, se a sua herana no usufruda pelos seus? Tudo bem, trata-se de um acervo
inestimvel ao nosso povo negro, mas sua famlia, de fato e de direito, goza deles no plano material? Voc nos ensina
e nos representa com maestria, mas e seus desejos de no deixar seus filhos passarem pelos mesmos dificultosos
caminhos, percorridos com tanto sofrimento por voc, querida mais velha? To sbia e to resistente!
Voc continua sendo estudada na Academia, mas s para uso interno. Poucos so os que a alcanam e a respeitam.Poucos, muito poucos, infelizmente. To poucos conseguem e desejam alcanar tal nobreza. Este no nem esta
para todos. Ainda bem, no? Mnima e fragilmente assegurada estar a apropriao de sua rica sabedoria por parte
das aves de rapina.
Desejo que voc, momentaneamente de passagem pelo run lugar reservado a poucos, s aos que tm
merecimento para tal consiga ter um descanso digno. Aproveite para se revigorar, amiga e da nos emane fora
para continuarmos. Desejo que retorne logo, ou no tempo previsto, para prosseguir em sua misso, dessa vez, de
maneira menos penosa e pesada. No que muitas coisas tenham mudado por aqui. Mas voc desbravou inmeras
fendas e possibilidades com sua escrita primeira.
Aprendi que, no espao celestial, o tempo espiralado, entretanto, mesmo de posse de tal informao e
conhecimento, quase consigo visualiz-la com a cabea e o runtodo branquinho, cheia de ideias, a pele j toda
enrugada, revelando as marcas do tempo sobre a mesma, o qual lhe trouxe ainda mais sabedoria.
Voc nunca parou de escrever e, ainda assim, partiu para o runasfixiada, sem ar. Entupida de dizer?
Provavelmente. Dizem que o corpo somatiza o que a mente produz. Faltou flego, no foi mesmo, minha mais velha?
Asfixiaram-lhe. Faltou ar para encarar, com tanta ousadia, interruptas dificuldades. Voc foi usurpada. Viu o seu
projeto de escrever dar certo, mas no conseguiu garantir o to desejado futuro para seus filhos, que, hoje, veem-se
na sina da me, novamente secados, dissecados, violentados, devassados em suas intimidades e memrias.
Sim, Carolina, SOMOS TODAS CAROLINAS, um coletivo de mulheres negras, com um projeto intitulado Carolinas ao
vento, centenria e atemporal. E desse lugar de poder que ouso convocar as minhas irms, originrias da mesma
frtil barriga, que precisamos tomar novamente a caneta para falarmos com propriedade, respeito e dignidade, para
que jovem senhora, que foi embora do plano fsico to cedo, sinta-se contemplada. S ns poderemos fazer isto:
levar adiante a misso iniciada por voc, nossa mais velha, mestra na arte de contar histrias do cotidiano, histrias
to prximas s vividas por ns tambm.
Para (re) lembrar tudo de negativo que, historicamente, tem sido escrito sobre voc, adorvel irm, no so
necessrios reforos. H muito o que dizer e escrever sobre a Carolina, mulher negra e orgulhosa do que , suas
proezas, suas artes de ginga, suas superaes, positivizar o que os no negros fazem questo de no contar. Penso
que deva ser iniciada por a a nossa jornada como perpetuadoras do que voc nos legou.
Sempre que penso em voc, Carolina, sinto a sua forte e doce presena. Como isso me apazigua e me engrandece!
como se voc estivesse contemplando e abenoando o trabalho. novamente Conceio Evaristo outra mais velha
nossa, que muito nos dignifica nas letras pretas que vai afirmar que, para falarmos e tratarmos de voc, venerada
mulher, faz-se necessrio, acima de tudo, fazer com reverncia e muito respeito, pedir a sua permisso para tanto,
sobretudo, pela espoliao que fizeram com o seu legado e o muito sofrido por voc a partir de ento. Toda vez que
leio algo seu ou vejo uma imagem sua, sinto a sua forte presena abenoando o estudo, a busca por saber quem foi
essa mulher-GNIO. Gosto de senti-la abenoando a caminhada. Gosto muitssimo de sentir a sua presena-beno. E
com a sua permisso e autorizao que procuro seguir adiante na senda escancarada por voc, to combativa e
incansvel. Que orgulho tenho eu de ter tido uma ancestral to digna e cheia de garra! Gosto de sentir a sua presenaque parece chegar com o vento que pela janela adentra. Este parece ser o seu elemento, tal qual a Mulher Bfalo,
dada a sua determinao e seu poder de transmutar-se, superar-se diante da vida. Se voc, que tinha tudo para nem
tentar, teimou e foi adiante, no seremos ns, juntas, que desistiremos ou deixaremos novamente nas mos das
aves de rapina, o contar sobre a nossa mestra maior.
Mas, infelizmente no consigo v-la serena, tranquila, usufruindo da paz e descanso que o lugar deveria lhe
proporcionar merecidamente. Voc parece tensa, ainda a labutar com a vida, que momentaneamente neste plano,
no lhe pertence mais. Parece, ainda, brigar com oiyque quase tudo lhe negou.
Sigamos, irms. Nossa mais velha, Carolina, espera que assim procedamos. Levamos o nome dela no vento. Voemos,
pois, junto com ela! Narrar Carolina, eis o desafio, espalhar seu nome ao vento
Despeo-me, momentaneamente, de voc, Carolina Maria de Jesus, com mais um dos seus ricos ensinamentos, to
lcidos, to atuais, mesmo passadas algumas dcadas desde a sua escrita primeira: em 9 de agosto de 1958, legou-nos que A vida igual um livro. S depois de ter lido que sabemos o que encerra. E ns quando estamos no fim da
vida que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, at aqui, tem sido preta. Preta a minha pele. Preto o
lugar onde eu moro. Ou ainda quando, to proftica e lucidamente, afirmou em 20 de maio de 1958: Os polticos
sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando v o seu povo oprimido.
P A L A V R A S C H A V E S
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Mesmo tendo muito que dizer ainda, para que voc no se canse com a leitura desta carta, que j se tornou extensa
por demais, fico por aqui, amada mais velha. Sei que nos encontraremos em breve, de uma maneira ou de outra e
que voc permanece em cada uma de ns mulheres negras.
Da sua mais nova, para sempre sua admiradora,
Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro
Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro mestre em Educao e Contemporaneidade (UNEB) docente no curso de
Pedagogia e Letras da Faculdade D. Pedro II; aprendiz de contista. Tem um conto publicado nos Cadernos Negros 36;
Pesquisa sobre narrativas de professoras negras; cabelo como smbolo identitrio e escrita feminina negra (em
especial sobre Carolina Maria de Jesus). Erva Doce na famlia Abad Capoeira e me de Cau, sua maior obra. email:
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