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CEM ANOS DE ABOLICÂO OU SEM ANOS DE ABOLICÂO?E1izabeth Maria Beserra Coelho(l)Regina Celi Miranda Reis Luna(2)
RESUMOUma reflexão sobre o Centenário da Abolição da escravidão negra no Br~
si1: discute o processo de libertação dos negros apontando seus verdadeiros ben~ficiários. Admite que a legislação abolicionista isentou os negros do cativeirolegal e submeteu-os ao cativeiro da cor.
1 INTRODUCÂO
Cem anos de abolição ou
sem anos de abolição? Esta é uma
frase que pode sugerir um simples
jogo de palavrasmas,entretanto,
atende a um propósito deliberado
que é o de susci tar uma reflexão
sobre o significado da abolição
da escravidão negra no Brasi 1,
ou mais precisamente questionar
se os acontecimentos que marca
ram o 13 de maio de 1988 podem
configurar o fim da escravidão
negra no Brasil.
No momento em que o E~
tado Brasileiro "orgulhosamente 11
organiza as comemorações do Ce~
tenário da Abolição da Escrava
tura, cabe a questão: sera que
temos, de fato, o que comemorar?
~ basicamente esse que~
tionamento que orienta a reflexão
que pretendemos de s envo I ver aqui.
Fundamentalmente interessa-nos
entender a quem serviu o conjunto
de leis que caracterizaram o p~
cote abolicionista brasileiro 8,
através do confronto com a si
tuação atual dos negros, deood i
car o significado social desse
13 de maio.
2 ABOLICÂO: DE QUE E PARAQUEM?
o Brasil foi o último
país do mundo a abolir a escra
(1) Antropóloga, Professora Assistente do Departamento de Sociologia e Antropol~gia da Universidade Federal do Maranhão.
(2) Antropóloga, Professora Assistente do Departamento de Sociologia e Antropol~gia da Universidade Federal do Maranhão.
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1) 21 - 28, jan./jun. 1988 21
vidão negra. Não so foi o último,mas foi também o mais " suigeneris". A abolição no Brasilfoi decretada por brancos,em dQses homeopáticas, de modo a evidenciar em cada gota o caráterde violência que revestiu esseconjunto de leis.
A abolição do tráfico deescravos, em 185O, em decorrênciade pressões externas, não só incentivou o tráfico interno de escravos - urnadose extra de sofrimento e humilhação para os afrlcanos - mas também a1ertou aseli tes agrárias para a iminênciado fim da escravidão como instituição legal. De fato, algunsanos depois, teve início o p~cote abolicionista, declarandolivres os filhos de escravos, em1871. A quem beneficiou a Lei doVentre Livre? Sem dúvida algumaserviu ao senhor, que viu-se livre da obrigação de alimentar eproteger os filhos de seus escravos.
Como era conciliada a"liberdade" dos filhos com a escravidão aos pais? Fácil imaglnar a tremenda contradição quese impôs, àquele momento.
A segunda lei abolicionista,outorgada em 1885 - achamada Lei dos Sexagenários - declarou livres os escravos que
22
possuíam acima de 65 anos. Maisurnavez teve-se urnalei favorávelaos senhores já que isentava-osdo ônus do sustento dos escravosidosos.
Em arnbasas legislaçôes -a do Ventre Livre e a do Sexag~nário - está expresso o caráterviolento das medidas que expunhamà sua própria sorte aqueles escravos que eram considerados improdutivos: crianças e velhos.
Poucos anos depois, em1888, o Parlamento votou a LeiÁurea, quando a escravidão J a eraconsiderada uma instituição desmoralizada, em virtude nao sodas lutas abolicionistas, da resistência negra, mas também daspróprias transformações econômlcas que passaram a ocorrer nopaís com o avanço do capitalismo.Mesmo assim, setores conservadores que ainda consideravam lucrativa a escravidão, votaramcontra a referida lei:esperavamextrair do trabalho o máximo delucro que esse pudesse dar e recusavam a enfrentar o question~mento referente a imobilizaçãodo capital - característica dosistema escravagista. Entretanto, mesmo a revelia desses setores, a escravidão foi abolidalegalmente.
Qual o significado so
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1) 21 - 28, jan./jun. 1988
cial dessa abolição? Para que e
para quem?
Abolir significa extin
guir. Dessa forma, abolir a escra
vidão significava extinguir a e~
cravidão que se caracterizava
por um estado de submissão no
qual o indivíduo permanecia sob
o poder absoluto do senhor. Em
outras palavras, significava li
bertar, tornar livre.
Que tipo, então, de liber
dade puderam os negros africanos
desfrutar?
3 SER OU NÂO SER LIVRE: ACONDIÇÂO DO NEGRO APÓSA LEI AUREA
Legalmente livre, que es
paço pode o negro ocupar na so
ciedade brasileira, ou melhor,
corno pode fazer uso desse status
de liberdade?
Em 1850, quando a socie
dade brasileira já estava ciente
do fato de que a instituição da
escravidão tinha seus dias con
tados, o Brasil elaborou e pr~
mulgou a primeira "Lei de Terras"
estabelecendo a forma de acesso
à propriedade da terra,que ficou
definida corno sendo a compra.De fato, ao estabelecer
a compra corno corida çâo para o
status de proprietário, o Brasil
protegeu-se contra a ameaça de
ter negros corno parte de sua
elite agrária. E mais, garantiu
que nenhum negro pudesse obter,
pela compra, qualquer pedaço de
terra nesse país.
Em face disso, o grande
contingente de negros ex-es
cravos constituiu-se numa cate
goria de camponeses conhecida
corno morador: indivíduos que
trabalhavam nas fazendas, sem
salário, em troca do direito de
morar nas cercanias das mesmas
e de fazer urna pequena lavoura
para garantir o sustento de sua
família. Esses moradores foram
sendo, gradativamente, elimina
dos do cenário das relações s~
ciais de produção no campo br~
sileiro e passaram a engrossar
o contingente de posseiros, ou
seja, de ocupantes de terras de
volutas.
Impedidos de ter o acesso
legal à terra, esses negros foram
preteridos, também, nos projetos
de colonização que objetivaram a
instalação de imigrantes euro
peus, portanto brancos, e que
excluíam o escravo basicamente
por dois motivos: o branqueame~
to da população e a desvaloriza
ção do trabalho manual que a pr~
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1): 21 - 28, j an c Zj un , 1988 23
sença do escravo exerceria.
Segundo PETRONE,1 "temia-se que o imigrante fosseatingido pela idéia muito difundida na sociedade escravocratabrasileira, de que o trabalho mamual, o trabalho na terra, em vezde enobrecer, comopregava a. ideologia camponesa européia, aviltava, e que nenhum branco que seprezasse devia dedicar-se a ele" .
Sem espaço no campo, os
negros que refugiaram-se nas cidades não tiveram acesso às funções urbanas, em decorrência dopreconceito racial que se haviaaguçado coma abolição. Viram-seentão relegados à condição de me~digos, pedintes. Imediatamente oEstado promulgou a Lei de Vadiagem,que punia todos os cidadãos~ue fossem encontrados vagandopelas ruas, sem emprego. Quemeram esses cidadãos? Eram basicamente negros, ex-escravos que estavam sendo marginalizados de todas as formas.
Os negros, que durante operíodo escravagista sequer foram considerados pelo Estado, anão ser comomercadoria, passarama ter que ser reconhecidos pelasociedade,configurando-s~ entã~
o seu status de cidadão de segunda classe.
4 o NJ:GRO "LIVU": UM C!DADAO DE SEGUNDA CLASSE
Abdias Nascimento, ao e~crever"O Negro revoltado';afirmouque a ideologia racista brasileira reservou para o negro o p~pel de cidadão de segunda classe.
Essa afirmação pode serconstatada na medida em que po~cos foram os negros que consegui:ram, no Brasil, ocupar cargo:,elevados na hierarquia social,já que seu padrão educacional ébaixo em decorrência de lhe tersido negado o acesso à educação.Por outro lado, os negros são comfreqliência discriminados no me~cado de trabalho sendo-Ihes reservadas atividades braçais, consideradas desqualificadas.
As condições de habitaçao também refletem a situaçãodos negros no Brasil. Os negroshabi tam, emsua maioria, favelas,cortiços e mocambos.
Também convém destacarque a grande maioria dos presosno Brasil são negros. CornoafirmaAbdias Nascimento, "presos querpor problemas poli ticos, quer por
1 PETRONE, M.R.S. A emigração e o aprimoramento da raça. são Paulo, Brasiliense,1983, p.38 a 44.
24 Cad. Pesq. são Luís, 4 (1): 21-28, jan./jun. 1988
problemas de subsistência, r esu l
tantes das péssimas condições devida impostas pelo racismo ous i.mp Le sment.e pelo crime de sernegro" 2
AS crianças negras morrem em maior número que as crianças brancas. Seria uma questãode inferioridade biológica? Talvez sej a essa a resposta que muitos ainda queiram dar, mas sabemos que, de fato, esse índicede mortalidade infantil elevadodeve-se ao baixo padrão alimentardessas crianças e às precáriascondições de higiene e saúde aelas impostas.
Nesse quadro, a situaçãoespecífica da mulher negra deveser considerada. Além de partilhar com os negros do sexo masculino a condição de cidadã desegunda classe, as mulheres negras são reservados os papéis dedoméstica e objeto sexual, esteúltimo expresso p~la mulata queincorpora um "personagem trágico", quer por sua desintegraçãosocial, quer pela ausência deidentidade (nem negra, nem bra~ca), quer por se constituir emproduto de exportação - sujeitaaos preços dos mercados capit~
listas mundiais - ou ainda por re
forçar a ideologia do br anqueamento expressando o meio caminhopara a limpeza da "raça".
A condição de cidadãoinferior imposta ao negro podeser reconhecida tambémna discriminação sofrida pelas religiõesafro-brasileiras. Perseguidas eridicularizadas, as expressõesreligiosas negras são reduzidasno Brasil, ao nível da superstição e da magia. São, por outrolado,as únicas formas de expre~são religiosa que necessitam delicença policial para exerceratividades em seus templos, quesão vulgarmente apelidados deterreiros.
Estes sao alguns pontosque nos permitem perceber comclareza a condição inferior a queestão relegados os negros no Br~silo Entretant~ concordamos comAbdias Nascimento quando esteafirma que os negros estão constantemente pagando por um crimeque cometeram à sua revelia, quevema ser o crime de ser negro.
5 A LIBERDADE QUE SE PERDEUNA PRISAo DA COR
Livres do cativeiro le
2 NASCIMENTO, A. O negro revoltado. Rio, Nova Fronteira, 1982,p.31.
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gal, as negras viram-se apr í s í.q
nadas na cativeiro. da caro
o Brasil definiu-se camauma demacracia racial. Entretanto.
as evidências fazem perceber que
a demacracia racial brasi leira re
duz-se a um mito..
Esse mi ta, cansciente ou
incanscientemente, tem servida
para isentar a saciedade brasi
leira de qualquer respansabili:.
dade com relação. à situação. de
inferioridade em que se
tra a população de cor.
tra lado, a negaçao do
ceito tem servido para
encan
Por ou
preco!:!
dificul
tar a desenvolvimento entre os
negros do senso de identidade
como grupo, da consciência de
ser negro. Por trás da aparente
democracia racial escondem-se me
canismos sutis de extinção dos
negros, tais como a miscigenação
e a imigração européia, ambas
estratégias de branqueamento da
"raça". As evidências, raras, de
ascenção social de negras servi
ram também para mascarar a dis
criminação e desenvolver nos ne
gros a ilusão de que abria-se
para eles um espaço na sociedade
brasileira .1
De f at.o, o que tem ocarrido nao e a concessão de um es
paço para os negros, já que os
negros que ascenderam na escala
social tiveram que pagar um pr~
ço muito alto pela sua mobilida
de: negar a sua condição de ne
gra, assumir a percepçaa que os
brancos possuem da questão racial
e tiveram que se transformar,
como bem coloca Emília Viotti da
Costa, em "negros especiais", em
"negros de alma branca".3
o mito da democracia ra
cial não tem conseguido também
esconder as favelas, os cortiços,
os alagados e as mocambos. Tam
pouco as discriminações no mer
cado de trabalho.
Por outro lado, as tenta
tivas de reduzir a problemática
racial a uma questão. de desigual
dade de classe social têm sido
infrutí feras I já que os próprias
meios de camunicaçãa de massa
veiculam, cam certa freqllência,
casas de discriminação. racial
enval venda pessoas negras pe r ten
centes a camadas sociais mais e
levadas. 4
3 COSTA, E.V. Da monarquia à República. são Paulo. Liv. Ed. Ciências Humanas Ltda.1979, p. 235.
4 Cf. exemplos da discriminação racial envolvendo negros de classe médiasil em Hasenbalg, C. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil.Cr aa l , 1979, p , 271 a 281,
no BraRio.
211
Dessa forma, sem dúvidaalguma,a abolição significou p~ra os negros muito mais a sub st í,
tuição de uma forma de cativeiropor outra, talvez mais sólida,talvez mais rígida. e um cativeiro que transcende as questões legais e respalda-se em "dado natural", e, talvez por isso, sejamais difícil sua abolição.
6 CONCLusAo
Face aos pontos aqui l~vantados, que evidenciam a discriminação e a desigualdade s.2.ciais no Brasil, entendemos que oCentenário da Abolição da Escr~vidão deve ser encarado como ummomento especial para Reflexão.
Essa Reflexão, que vemsendo encaminhada por segmentosdo movimento negro, deve ser ampliada para todos os setores dasociedade,especialmente aquelesvoltados para a Educação em todos os níveis de ensino.
Nesse momento, cabe aUniversidade o importante papel.de saber captar todas as expre~sões e denúncias referentes aoproblema do negro, no Brasil,organizando-as em forma de conhecimento sistematizado e devolvê-las à sociedade como instrumento de conscientização darealidade.
Frente a um quadro espa~toso de empobrecimento das pop~lações negras, no Brasil, é evidente que nada há a comemorar, afestejar. .. "Há sim, a construir ... um futuro que nós construiremos,sobre as fundações denossa própria experiência hist~rica" (Nascimento, Abdias. op ,cito pág. 31).
Acreditamos, pois, queusar o 13 de maio para celebrara abolição da escravidão no Brasil, mascarando a violência cultural,econômica e física da discriminação social, é cometer umcrime maior contra o negro nestepaís.
7 REFERENCIAS BIBLIOGRAFlCAS
1. COSTA, Emília Viotti. Da MQ
narquia à República: momentos decisivos,S.Paulo, Livz ar í a Editora Ciências Humanas Ltda, 1979.
2. HASENBALG, Carlos A. Discr~minação e Desigualdades Rg.ciais no Brasil,Rio,Graal,1979.
3. NASCIMENTO, Abdlas. O NegroRevoltado, Rio, Nova Fro~.teira, 1982.
4. PETRONE ,Maria Tereza Shorer.A Imigração e o Aprimorll
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1): 21 - 28, jan./jun. 1988 27
mento da Raça, S. Paulo,
Brasiliense, 1983.
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ENDERECO DO AUTORELIZABETH MARIA BESERRA COELHO
Departamento de Sociologia eAntropologiaCentro de Estudos BásicosUniversidade Federal do MaranhãoCampus Universitário do BacangaTe 1. (098) 221- 543365.000 - SÃO LuIs-MA.
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1): 21 - 28, jan./jun. 1988