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ISSN 0103-9253 versatildeo impressa ndash ISSN 2236-7101 versatildeo online
CENAacuteRIOS E PERSONAGENS DOS ENTREVEROS HOMICIDAS NO BRASIL DO
SEacuteCULO XXI ANAacuteLISE DO CASO DE CAMPINA GRANDE-PB
SCENARIOS AND CHARACTERS OF HOMICIDES IN CENTURY XX IN BRAZIL
ANALYSIS CASE OF CAMPINA GRANDE-PB
Vanderlan Silva
Universidade Federal de Campina Grande
Resumo
Este texto apresenta e discute os principais resultados de pesquisa realizada durante os anos de 2010
e 2011 na cidade de Campina Grande sobre exclusatildeo social e violecircncia homicida A pesquisa foi
motivada pela crescente percepccedilatildeo da populaccedilatildeo campinense e dos relatos cotidianos da imprensa
local sobre a vertiginosa incidecircncia da violecircncia homicida na cidade durante os primeiros anos da
deacutecada inicial do presente seacuteculo Diante da singularidade objeto de estudo eleito cujo evento ceifa a
vida de um dos principais atores da cena social e coloca percentual consideraacutevel dos acusados de
crime em situaccedilatildeo de invisibilidade e emudecimento conscientemente produzidos a pesquisa realizou
coleta de dados sobre homiciacutedios praticados na cidade durante os anos de 2009 e 2010 junto a quatro
fontes secundaacuterias a saber Instituto de Medicina Legal da Paraiacuteba Poliacutecia Civil do estado Jornal
Diaacuterio da Borborema e Jornal da Paraiacuteba A anaacutelise documental empreendida na pesquisa mostrou
que os homiciacutedios praticados na cidade durante o recorte temporal feito na pesquisa indicam que
Campina Grande tem vivido quadro alarmante de violecircncia homicida situaccedilatildeo que a coloca entre as
200 (duzentas) cidades mais violentas do paiacutes Outrossim evidencia-se que os homiciacutedios
campinenses atingem de maneira desigual e antidemocraacutetica a populaccedilatildeo da cidade pois como
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 164
revelam os dados as principais viacutetimas satildeo atores sociais oriundos dos bairros pobres e perifeacutericos da
cidade jovens negros com baixo grau de escolaridade desempregados ou exercendo funccedilotildees de
baixa ou sem nenhuma formaccedilatildeo profissional
Palavras-chave Violecircncia Homiciacutedios Anaacutelise documental Campina Grande
ABSTRACT
This paper presents and discusses the main findings of a research concerning social exclusion and
homicidal violence carried out between 2010 and 2011 in Campina Grande city The research was
motivated by the growing perception of the aforementioned city population and daily reports from
the local press about the vertiginous incidence of deadly violence in the city during the early years of
the present century initial decade Due to the uniqueness of the study object whose event reaps the
lives of the main actors of the social scene and put considerable percentage of the criminals charged
in situations of invisibility and muteness the research conducted data collection on homicides
committed in the city during the years 2009 and 2010 together with four secondary sources namely
Institute of Forensic Medicine of Paraiba State Civil Police Borborema Daily Newspaper and Journal of
Paraiacuteba The document analysis has showed that the murders in the research study period indicate
that Campina Grande has lived alarming picture of homicidal violence a situation that places it among
the two hundred (200) most violent cities Furthermore as the data show the homicides reach in an
unequal and undemocratic way the citys population - the main victims are social actors coming from
the poor and peripheral areas of the city young people black people with low level of education
unemployed or low jobs workers or people without professional training
Keywords Violence Homicide Document analysis Campina Grande
Introduccedilatildeo
Este trabalho1 apresenta e discute os resultados de pesquisa realizada na
cidade de Campina Grande sobre exclusatildeo social e violecircncia homicida durante os
anos de 2009 e 2010 Segunda cidade do Estado da Paraiacuteba em importacircncia
1 Uma versatildeo preliminar deste texto foi apresentada durante o XVII Congresso Brasileiro de Sociologia realizado na cidade de Salvador-BA em setembro de 2013 cujo tiacutetulo foi Exclusatildeo e violecircncia letal O caso de Campina Grande
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 165
econocircmica e nuacutemero de habitantes Campina Grande conta com 402109 2
(quatrocentos e dois mil) habitantes e se destaca no cenaacuterio estadual e regional por
sua forte presenccedila na aacuterea de serviccedilos da induacutestria de transformaccedilatildeo e na produccedilatildeo
de grandes eventos culturais
A motivaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa pode ser atribuiacuteda a duas razotildees
Primeiro agrave percepccedilatildeo crescente dos casos de violecircncia entre muitos segmentos
sociais em Campina Grande e agrave divulgaccedilatildeo alarmante3 por parte da imprensa local
(tvrsquos raacutedios e jornais impressos) Esses fatores chamaram nossa atenccedilatildeo para o
fenocircmeno e despertaram a necessidade de entender os enredos de tais eventos
criminosos Segundo a divulgaccedilatildeo do Mapa da Violecircncia 2010 trazendo dados dos
homiciacutedios produzidos no Brasil ateacute o ano de 2007 mostrava que estava em curso
um forte processo de interiorizaccedilatildeo da violecircncia que atingia cidades de porte meacutedio
tal como Campina Grande de maneira nunca antes vista Nesse processo os iacutendices
nas principais metroacutepoles do paiacutes e na Regiatildeo Sudeste comeccedilavam a perder forccedila ao
passo que nas regiotildees Norte e Nordeste e mais particularmente nas cidades do
interior dos estados dessas regiotildees os casos de violecircncia letal comeccedilaram a mostrar
uma curva ascendente contiacutenua nos uacuteltimos anos
Na pesquisa estabelecemos como objetivo compreender como esse processo
de interiorizaccedilatildeo da violecircncia no paiacutes se apresentava no cenaacuterio campinense4 para
isso procuramos identificar e interpretar em que medida os casos crescentes de
violecircncia letal atingiam os vaacuterios segmentos da populaccedilatildeo de Campina Grande
Esse recente processo de interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil no iniacutecio de
seacuteculo XXI tem sido objeto de boas anaacutelises cientiacuteficas algumas das quais destacam
2 A uacuteltima estimativa feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e estatiacutestica) foi feita em 2014 httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=250400ampsearch=paraiba|campina-grande Acessado em fevereiro de 2015
3 Em muitos casos a percepccedilatildeo do crescimento da sensaccedilatildeo de inseguranccedila eacute reforccedilada pelos programas policialescos estaduais e municipais que fazem dos relatos sensacionalistas dos eventos violentos e crimes chamarizes para os ouvintes eou espectadores
4 Gentiacutelico de quem nasce em Campina Grande
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as vaacuterias transformaccedilotildees ocorridas no paiacutes nas uacuteltimas deacutecadas Entre tais variaacuteveis
vale ressaltar a forte repressatildeo dos oacutergatildeos policiais na regiatildeo Sudeste contra o crime
organizado e a consequente migraccedilatildeo de organizaccedilotildees criminosas para regiotildees nas
quais os aparatos policiais natildeo tecircm o mesmo poder de combate Agrega-se a isso a
variaacutevel da dinacircmica do mercado de bens liacutecitos e iliacutecitos que encontra na regiatildeo
Nordeste a possibilidade de expansatildeo de seus mercados em decorrecircncia dessa
regiatildeo ter tido crescimento5 econocircmico acima da meacutedia nacional na uacuteltima deacutecada
Vivendo em meio ao processo de ldquointeriorizaccedilatildeo da violecircnciardquo certamente
ainda eacute cedo para que consigamos dimensionar com competecircncia suficiente as
muacuteltiplas dimensotildees que tal processo tem produzido e produziraacute nos anos vindouros
no Brasil Contudo alguns estudos merecem destaque entre eles o Mapa da
Violecircncia 2008 publicado pelo Instituto Sangari6 cujo periacuteodo de anaacutelise cobre os
homiciacutedios entre 2002 e 2006 em cuja publicaccedilatildeo a cidade foco de nossa pesquisa
aparecia situada na 340ordf7 posiccedilatildeo entre os municiacutepios brasileiros com uma taxa8 de
362 mortes por grupos de cem mil habitantes Embora a posiccedilatildeo ateacute entatildeo ocupada
pela cidade no quadro dos municiacutepios mais violentos do paiacutes natildeo trouxesse razotildees
para comemoraccedilatildeo por parte de nenhum administrador da seguranccedila puacuteblica jaacute que
a taxa da cidade era superior agrave nacional Todavia o que se produziria nos anos
seguintes revelaria que o processo de aumento da violecircncia homicida no interior e
particularmente na cidade se intensificaria De acordo com nova publicaccedilatildeo9 que veio
agrave luz em 2011 Campina Grande chegou agrave taxa de 484 homiciacutedios por grupos de cem
mil habitantes em 2010 No prazo de quatro anos a cidade ldquosaltourdquo 160 (cento e
5 Particularmente a regiatildeo Nordeste A respeito ver importantes anaacutelise do IPEA
6 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violecircncia 2008 Satildeo Paulo Instituto Sangari Brasiacutelia Ministeacuterio da Justiccedila Ministeacuterio da Sauacutede RITLA 2008
7 Idem Os nuacutemeros apresentados mostram que Campina Grande ostentava em 2006 139 homiciacutedios em 2005 136 em 2004 124 em 2003 126 e em 2002 108 P 21
8 A taxa para grupos de cem mil mortes foi convencionada internacionalmente e eacute largamente utilizada em estudos e poliacuteticas puacuteblicas em todo o mundo para dimensionar o impacto dos homiciacutedios Vale lembrar que a ONU considera taxas acima de 10 casos por grupos de referecircncia como endecircmicas
9 WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 p 41
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sessenta) posiccedilotildees no quadro das cidades mais violentas do paiacutes passando a ocupar
a 180ordf posiccedilatildeo
Na busca de entender a relaccedilatildeo entre exclusatildeo social e crimes letais em
Campina Grande procuramos identificar os cenaacuterios e atores envolvidos nos
entreveros que produziram ldquomortes matadasrdquo Para isso procuramos conhecer os
seus lugares sociais a partir de variaacuteveis como idade gecircnero grau de escolaridade
local de moradia profissatildeoocupaccedilatildeo raccedila estado civil etc
A pesquisa foi realizada durante os anos de 2010 e 2011 e elegeu como
recorte temporal o biecircnio 2009 e 2010 Ateacute o final da pesquisa concluiacuteda em meados
de 2011 O Mapa da Violecircncia 2012 ateacute entatildeo natildeo havia sido publicado Apoacutes sua
publicaccedilatildeo no final de 2011 pudemos ter acesso aos dados sobre os homiciacutedios no
Brasil entre os anos de 2008 a 2010 Vale lembrar que esta ldquoausecircnciardquo de dados ateacute
entatildeo tambeacutem tinha servido como motivaccedilotildees para a realizaccedilatildeo da pesquisa muito
embora como esperamos deixar claro ao longo deste trabalho a publicaccedilatildeo do
Instituto Sangari natildeo se propotildee a fazer uma anaacutelise de profundidade dos dados ao
contraacuterio de nossa pesquisa
Construindo o campo metodoloacutegico em meio a arquivos
A pesquisa foi realizada a partir de dados secundaacuterios colhidos junto a quatro
fontes sendo duas oficiais (e estatais) e duas jornaliacutesticas respectivamente Poliacutecia
Civil da Paraiacuteba onde colhemos os Boletins de Ocorrecircncia (BOrsquos) sobre homiciacutedios
referentes aos anos pesquisados Instituto de Medicina Legal da Paraiacuteba doravante
IML no qual pesquisamos os laudos cadaveacutericos dos mortos por accedilatildeo violenta
provocada por outrem e Jornal da Paraiacuteba e Diaacuterio da Borborema10 Esses dois
uacuteltimos satildeo jornais vespertinos de circulaccedilatildeo estadual nos quais colhemos dados nas
10
Fechou as portas em fevereiro de 2012 A nossa pesquisa foi uma das uacuteltimas a ter acesso aos arquivos do jornal em pleno funcionamento
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reportagens sobre crimes de homiciacutedio cometidos em Campina Grande durante o
periacuteodo ldquocobertordquo pela pesquisa
Eacute importante esclarecer que a escolha de muacuteltiplas fontes com informaccedilotildees
sobre os eventos homicidas na cidade durante o periacuteodo analisado foi enriquecedor
na medida em que nos permitiu fazer o cotejamento dos dados colhidos nas vaacuterias
fontes isso possibilitou o preenchimento de lacunas que por vezes se apresentava
nos dados produzidos por uma ou outra instituiccedilatildeo
A escolha de trabalhar com dados secundaacuterios em arquivos de jornais e em
instituiccedilotildees ligadas agrave Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica da Paraiacuteba estaacute diretamente
vinculada agrave natureza de nosso objeto de estudo Ao escolher trabalhar com
homiciacutedios por razotildees obvias nos foi impossiacutevel entrevistar as viacutetimas Restava-nos
ainda a possibilidade de se trabalhar com suspeitos e reacuteus dos crimes Todavia o
grande nuacutemero de casos de homiciacutedios cujos autores permanecem ldquodesconhecidosrdquo
se revelou um obstaacuteculo de difiacutecil superaccedilatildeo Especula-se que no Brasil apenas 8
(oito por cento) dos casos de homiciacutedios tem autoria esclarecida pela poliacutecia O
acesso aos familiares das viacutetimas por sua vez tambeacutem se mostrou difiacutecil por causa do
tempo exiacuteguo que tiacutenhamos para realizar um processo de aproximaccedilatildeo negociaccedilatildeo e
sensibilizaccedilatildeo com pessoas que passavam por processos psicoloacutegicos traumaacuteticos
apoacutes a perda de seus entes
Por sua vez o processo de negociaccedilatildeo com os responsaacuteveis pelas instituiccedilotildees
responsaacuteveis pelos dados foram realizados inicialmente atraveacutes de contatos
telefocircnicos e posteriormente oficializados mediante ofiacutecios da Unidade Acadecircmica
de Ciecircncias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande Um dos jornais
cobrou a taxa de R$ 3000 para acesso aos dados e limitou11 a quantidade de dias de
acesso aos arquivos
11
Posteriormente no decorrer da pesquisa in loco a limitaccedilatildeo de dias foi abolida restando apenas a exigecircncia de controle sobre horaacuterio e quantidade de pessoas que acessavam os arquivos dos jornais
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De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As
dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se
mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo
ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados
como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a
respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a
esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas
fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse
relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo
Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas
particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de
homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante
Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23
perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como
data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da
pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13
de acordo com a fonte acessada
A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em
termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas
fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e
personagens
12
Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela
13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos
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A construccedilatildeo dos dados
Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos
vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo
exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo
diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos
com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo
tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos
processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e
veicularam
Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como
marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima
de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como
classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos
fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em
Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens
entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos
dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos
de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala
muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas
paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados
cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares
e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas
relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo
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Discutindo a violecircncia homicida
Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009
e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das
principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de
(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a
violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem
seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A
compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas
manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia
Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica
sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia
A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua
incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma
sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute
colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece
afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o
homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e
na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo
algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente
nos dias atuais
Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos
produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de
(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que
A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social
entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo
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grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos
morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social
Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas
homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos
histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os
distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual
Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como
uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas
pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia
fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares
secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade
Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo
da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor
domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da
racionalidade moderna
No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como
conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de
ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das
aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de
violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os
homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes
meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila
da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus
14
Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio
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membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos
favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores
e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de
imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por
carecircncias das mais variadas ordens
Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)
aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais
contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir
sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que
a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um
excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a
informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos
imateriais de informaccedilatildeo
Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de
formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os
que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira
estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens
simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como
pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais
satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo
ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que
algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar
socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande
Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e
utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social
pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade
Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas
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seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que
romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER
2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas
nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo
Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade
ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria
conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os
policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER
1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de
homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos
O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora
de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de
violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas
Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica
no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente
processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial
conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade
Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da
violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais
distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam
entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as
enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que
produzem
15
Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos
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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande
Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da
Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e
reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das
praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo
tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo
que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo
De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado
em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio
Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada
menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em
2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo
analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma
maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante
mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso
contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos
puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em
Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre
gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de
masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem
16
WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa
17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais
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como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
18
Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
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que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
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A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179
Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
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Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
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grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
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dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 164
revelam os dados as principais viacutetimas satildeo atores sociais oriundos dos bairros pobres e perifeacutericos da
cidade jovens negros com baixo grau de escolaridade desempregados ou exercendo funccedilotildees de
baixa ou sem nenhuma formaccedilatildeo profissional
Palavras-chave Violecircncia Homiciacutedios Anaacutelise documental Campina Grande
ABSTRACT
This paper presents and discusses the main findings of a research concerning social exclusion and
homicidal violence carried out between 2010 and 2011 in Campina Grande city The research was
motivated by the growing perception of the aforementioned city population and daily reports from
the local press about the vertiginous incidence of deadly violence in the city during the early years of
the present century initial decade Due to the uniqueness of the study object whose event reaps the
lives of the main actors of the social scene and put considerable percentage of the criminals charged
in situations of invisibility and muteness the research conducted data collection on homicides
committed in the city during the years 2009 and 2010 together with four secondary sources namely
Institute of Forensic Medicine of Paraiba State Civil Police Borborema Daily Newspaper and Journal of
Paraiacuteba The document analysis has showed that the murders in the research study period indicate
that Campina Grande has lived alarming picture of homicidal violence a situation that places it among
the two hundred (200) most violent cities Furthermore as the data show the homicides reach in an
unequal and undemocratic way the citys population - the main victims are social actors coming from
the poor and peripheral areas of the city young people black people with low level of education
unemployed or low jobs workers or people without professional training
Keywords Violence Homicide Document analysis Campina Grande
Introduccedilatildeo
Este trabalho1 apresenta e discute os resultados de pesquisa realizada na
cidade de Campina Grande sobre exclusatildeo social e violecircncia homicida durante os
anos de 2009 e 2010 Segunda cidade do Estado da Paraiacuteba em importacircncia
1 Uma versatildeo preliminar deste texto foi apresentada durante o XVII Congresso Brasileiro de Sociologia realizado na cidade de Salvador-BA em setembro de 2013 cujo tiacutetulo foi Exclusatildeo e violecircncia letal O caso de Campina Grande
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econocircmica e nuacutemero de habitantes Campina Grande conta com 402109 2
(quatrocentos e dois mil) habitantes e se destaca no cenaacuterio estadual e regional por
sua forte presenccedila na aacuterea de serviccedilos da induacutestria de transformaccedilatildeo e na produccedilatildeo
de grandes eventos culturais
A motivaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa pode ser atribuiacuteda a duas razotildees
Primeiro agrave percepccedilatildeo crescente dos casos de violecircncia entre muitos segmentos
sociais em Campina Grande e agrave divulgaccedilatildeo alarmante3 por parte da imprensa local
(tvrsquos raacutedios e jornais impressos) Esses fatores chamaram nossa atenccedilatildeo para o
fenocircmeno e despertaram a necessidade de entender os enredos de tais eventos
criminosos Segundo a divulgaccedilatildeo do Mapa da Violecircncia 2010 trazendo dados dos
homiciacutedios produzidos no Brasil ateacute o ano de 2007 mostrava que estava em curso
um forte processo de interiorizaccedilatildeo da violecircncia que atingia cidades de porte meacutedio
tal como Campina Grande de maneira nunca antes vista Nesse processo os iacutendices
nas principais metroacutepoles do paiacutes e na Regiatildeo Sudeste comeccedilavam a perder forccedila ao
passo que nas regiotildees Norte e Nordeste e mais particularmente nas cidades do
interior dos estados dessas regiotildees os casos de violecircncia letal comeccedilaram a mostrar
uma curva ascendente contiacutenua nos uacuteltimos anos
Na pesquisa estabelecemos como objetivo compreender como esse processo
de interiorizaccedilatildeo da violecircncia no paiacutes se apresentava no cenaacuterio campinense4 para
isso procuramos identificar e interpretar em que medida os casos crescentes de
violecircncia letal atingiam os vaacuterios segmentos da populaccedilatildeo de Campina Grande
Esse recente processo de interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil no iniacutecio de
seacuteculo XXI tem sido objeto de boas anaacutelises cientiacuteficas algumas das quais destacam
2 A uacuteltima estimativa feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e estatiacutestica) foi feita em 2014 httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=250400ampsearch=paraiba|campina-grande Acessado em fevereiro de 2015
3 Em muitos casos a percepccedilatildeo do crescimento da sensaccedilatildeo de inseguranccedila eacute reforccedilada pelos programas policialescos estaduais e municipais que fazem dos relatos sensacionalistas dos eventos violentos e crimes chamarizes para os ouvintes eou espectadores
4 Gentiacutelico de quem nasce em Campina Grande
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 166
as vaacuterias transformaccedilotildees ocorridas no paiacutes nas uacuteltimas deacutecadas Entre tais variaacuteveis
vale ressaltar a forte repressatildeo dos oacutergatildeos policiais na regiatildeo Sudeste contra o crime
organizado e a consequente migraccedilatildeo de organizaccedilotildees criminosas para regiotildees nas
quais os aparatos policiais natildeo tecircm o mesmo poder de combate Agrega-se a isso a
variaacutevel da dinacircmica do mercado de bens liacutecitos e iliacutecitos que encontra na regiatildeo
Nordeste a possibilidade de expansatildeo de seus mercados em decorrecircncia dessa
regiatildeo ter tido crescimento5 econocircmico acima da meacutedia nacional na uacuteltima deacutecada
Vivendo em meio ao processo de ldquointeriorizaccedilatildeo da violecircnciardquo certamente
ainda eacute cedo para que consigamos dimensionar com competecircncia suficiente as
muacuteltiplas dimensotildees que tal processo tem produzido e produziraacute nos anos vindouros
no Brasil Contudo alguns estudos merecem destaque entre eles o Mapa da
Violecircncia 2008 publicado pelo Instituto Sangari6 cujo periacuteodo de anaacutelise cobre os
homiciacutedios entre 2002 e 2006 em cuja publicaccedilatildeo a cidade foco de nossa pesquisa
aparecia situada na 340ordf7 posiccedilatildeo entre os municiacutepios brasileiros com uma taxa8 de
362 mortes por grupos de cem mil habitantes Embora a posiccedilatildeo ateacute entatildeo ocupada
pela cidade no quadro dos municiacutepios mais violentos do paiacutes natildeo trouxesse razotildees
para comemoraccedilatildeo por parte de nenhum administrador da seguranccedila puacuteblica jaacute que
a taxa da cidade era superior agrave nacional Todavia o que se produziria nos anos
seguintes revelaria que o processo de aumento da violecircncia homicida no interior e
particularmente na cidade se intensificaria De acordo com nova publicaccedilatildeo9 que veio
agrave luz em 2011 Campina Grande chegou agrave taxa de 484 homiciacutedios por grupos de cem
mil habitantes em 2010 No prazo de quatro anos a cidade ldquosaltourdquo 160 (cento e
5 Particularmente a regiatildeo Nordeste A respeito ver importantes anaacutelise do IPEA
6 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violecircncia 2008 Satildeo Paulo Instituto Sangari Brasiacutelia Ministeacuterio da Justiccedila Ministeacuterio da Sauacutede RITLA 2008
7 Idem Os nuacutemeros apresentados mostram que Campina Grande ostentava em 2006 139 homiciacutedios em 2005 136 em 2004 124 em 2003 126 e em 2002 108 P 21
8 A taxa para grupos de cem mil mortes foi convencionada internacionalmente e eacute largamente utilizada em estudos e poliacuteticas puacuteblicas em todo o mundo para dimensionar o impacto dos homiciacutedios Vale lembrar que a ONU considera taxas acima de 10 casos por grupos de referecircncia como endecircmicas
9 WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 p 41
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 167
sessenta) posiccedilotildees no quadro das cidades mais violentas do paiacutes passando a ocupar
a 180ordf posiccedilatildeo
Na busca de entender a relaccedilatildeo entre exclusatildeo social e crimes letais em
Campina Grande procuramos identificar os cenaacuterios e atores envolvidos nos
entreveros que produziram ldquomortes matadasrdquo Para isso procuramos conhecer os
seus lugares sociais a partir de variaacuteveis como idade gecircnero grau de escolaridade
local de moradia profissatildeoocupaccedilatildeo raccedila estado civil etc
A pesquisa foi realizada durante os anos de 2010 e 2011 e elegeu como
recorte temporal o biecircnio 2009 e 2010 Ateacute o final da pesquisa concluiacuteda em meados
de 2011 O Mapa da Violecircncia 2012 ateacute entatildeo natildeo havia sido publicado Apoacutes sua
publicaccedilatildeo no final de 2011 pudemos ter acesso aos dados sobre os homiciacutedios no
Brasil entre os anos de 2008 a 2010 Vale lembrar que esta ldquoausecircnciardquo de dados ateacute
entatildeo tambeacutem tinha servido como motivaccedilotildees para a realizaccedilatildeo da pesquisa muito
embora como esperamos deixar claro ao longo deste trabalho a publicaccedilatildeo do
Instituto Sangari natildeo se propotildee a fazer uma anaacutelise de profundidade dos dados ao
contraacuterio de nossa pesquisa
Construindo o campo metodoloacutegico em meio a arquivos
A pesquisa foi realizada a partir de dados secundaacuterios colhidos junto a quatro
fontes sendo duas oficiais (e estatais) e duas jornaliacutesticas respectivamente Poliacutecia
Civil da Paraiacuteba onde colhemos os Boletins de Ocorrecircncia (BOrsquos) sobre homiciacutedios
referentes aos anos pesquisados Instituto de Medicina Legal da Paraiacuteba doravante
IML no qual pesquisamos os laudos cadaveacutericos dos mortos por accedilatildeo violenta
provocada por outrem e Jornal da Paraiacuteba e Diaacuterio da Borborema10 Esses dois
uacuteltimos satildeo jornais vespertinos de circulaccedilatildeo estadual nos quais colhemos dados nas
10
Fechou as portas em fevereiro de 2012 A nossa pesquisa foi uma das uacuteltimas a ter acesso aos arquivos do jornal em pleno funcionamento
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reportagens sobre crimes de homiciacutedio cometidos em Campina Grande durante o
periacuteodo ldquocobertordquo pela pesquisa
Eacute importante esclarecer que a escolha de muacuteltiplas fontes com informaccedilotildees
sobre os eventos homicidas na cidade durante o periacuteodo analisado foi enriquecedor
na medida em que nos permitiu fazer o cotejamento dos dados colhidos nas vaacuterias
fontes isso possibilitou o preenchimento de lacunas que por vezes se apresentava
nos dados produzidos por uma ou outra instituiccedilatildeo
A escolha de trabalhar com dados secundaacuterios em arquivos de jornais e em
instituiccedilotildees ligadas agrave Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica da Paraiacuteba estaacute diretamente
vinculada agrave natureza de nosso objeto de estudo Ao escolher trabalhar com
homiciacutedios por razotildees obvias nos foi impossiacutevel entrevistar as viacutetimas Restava-nos
ainda a possibilidade de se trabalhar com suspeitos e reacuteus dos crimes Todavia o
grande nuacutemero de casos de homiciacutedios cujos autores permanecem ldquodesconhecidosrdquo
se revelou um obstaacuteculo de difiacutecil superaccedilatildeo Especula-se que no Brasil apenas 8
(oito por cento) dos casos de homiciacutedios tem autoria esclarecida pela poliacutecia O
acesso aos familiares das viacutetimas por sua vez tambeacutem se mostrou difiacutecil por causa do
tempo exiacuteguo que tiacutenhamos para realizar um processo de aproximaccedilatildeo negociaccedilatildeo e
sensibilizaccedilatildeo com pessoas que passavam por processos psicoloacutegicos traumaacuteticos
apoacutes a perda de seus entes
Por sua vez o processo de negociaccedilatildeo com os responsaacuteveis pelas instituiccedilotildees
responsaacuteveis pelos dados foram realizados inicialmente atraveacutes de contatos
telefocircnicos e posteriormente oficializados mediante ofiacutecios da Unidade Acadecircmica
de Ciecircncias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande Um dos jornais
cobrou a taxa de R$ 3000 para acesso aos dados e limitou11 a quantidade de dias de
acesso aos arquivos
11
Posteriormente no decorrer da pesquisa in loco a limitaccedilatildeo de dias foi abolida restando apenas a exigecircncia de controle sobre horaacuterio e quantidade de pessoas que acessavam os arquivos dos jornais
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De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As
dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se
mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo
ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados
como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a
respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a
esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas
fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse
relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo
Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas
particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de
homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante
Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23
perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como
data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da
pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13
de acordo com a fonte acessada
A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em
termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas
fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e
personagens
12
Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela
13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos
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A construccedilatildeo dos dados
Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos
vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo
exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo
diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos
com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo
tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos
processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e
veicularam
Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como
marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima
de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como
classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos
fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em
Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens
entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos
dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos
de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala
muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas
paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados
cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares
e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas
relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo
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Discutindo a violecircncia homicida
Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009
e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das
principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de
(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a
violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem
seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A
compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas
manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia
Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica
sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia
A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua
incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma
sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute
colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece
afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o
homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e
na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo
algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente
nos dias atuais
Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos
produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de
(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que
A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social
entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo
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grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos
morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social
Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas
homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos
histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os
distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual
Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como
uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas
pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia
fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares
secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade
Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo
da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor
domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da
racionalidade moderna
No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como
conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de
ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das
aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de
violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os
homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes
meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila
da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus
14
Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio
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membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos
favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores
e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de
imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por
carecircncias das mais variadas ordens
Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)
aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais
contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir
sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que
a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um
excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a
informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos
imateriais de informaccedilatildeo
Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de
formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os
que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira
estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens
simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como
pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais
satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo
ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que
algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar
socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande
Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e
utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social
pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade
Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas
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seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que
romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER
2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas
nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo
Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade
ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria
conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os
policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER
1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de
homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos
O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora
de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de
violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas
Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica
no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente
processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial
conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade
Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da
violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais
distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam
entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as
enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que
produzem
15
Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos
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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande
Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da
Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e
reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das
praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo
tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo
que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo
De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado
em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio
Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada
menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em
2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo
analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma
maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante
mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso
contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos
puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em
Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre
gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de
masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem
16
WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa
17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais
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como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
18
Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
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que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
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A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179
Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
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Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182
dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
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WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 165
econocircmica e nuacutemero de habitantes Campina Grande conta com 402109 2
(quatrocentos e dois mil) habitantes e se destaca no cenaacuterio estadual e regional por
sua forte presenccedila na aacuterea de serviccedilos da induacutestria de transformaccedilatildeo e na produccedilatildeo
de grandes eventos culturais
A motivaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa pode ser atribuiacuteda a duas razotildees
Primeiro agrave percepccedilatildeo crescente dos casos de violecircncia entre muitos segmentos
sociais em Campina Grande e agrave divulgaccedilatildeo alarmante3 por parte da imprensa local
(tvrsquos raacutedios e jornais impressos) Esses fatores chamaram nossa atenccedilatildeo para o
fenocircmeno e despertaram a necessidade de entender os enredos de tais eventos
criminosos Segundo a divulgaccedilatildeo do Mapa da Violecircncia 2010 trazendo dados dos
homiciacutedios produzidos no Brasil ateacute o ano de 2007 mostrava que estava em curso
um forte processo de interiorizaccedilatildeo da violecircncia que atingia cidades de porte meacutedio
tal como Campina Grande de maneira nunca antes vista Nesse processo os iacutendices
nas principais metroacutepoles do paiacutes e na Regiatildeo Sudeste comeccedilavam a perder forccedila ao
passo que nas regiotildees Norte e Nordeste e mais particularmente nas cidades do
interior dos estados dessas regiotildees os casos de violecircncia letal comeccedilaram a mostrar
uma curva ascendente contiacutenua nos uacuteltimos anos
Na pesquisa estabelecemos como objetivo compreender como esse processo
de interiorizaccedilatildeo da violecircncia no paiacutes se apresentava no cenaacuterio campinense4 para
isso procuramos identificar e interpretar em que medida os casos crescentes de
violecircncia letal atingiam os vaacuterios segmentos da populaccedilatildeo de Campina Grande
Esse recente processo de interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil no iniacutecio de
seacuteculo XXI tem sido objeto de boas anaacutelises cientiacuteficas algumas das quais destacam
2 A uacuteltima estimativa feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e estatiacutestica) foi feita em 2014 httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=250400ampsearch=paraiba|campina-grande Acessado em fevereiro de 2015
3 Em muitos casos a percepccedilatildeo do crescimento da sensaccedilatildeo de inseguranccedila eacute reforccedilada pelos programas policialescos estaduais e municipais que fazem dos relatos sensacionalistas dos eventos violentos e crimes chamarizes para os ouvintes eou espectadores
4 Gentiacutelico de quem nasce em Campina Grande
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as vaacuterias transformaccedilotildees ocorridas no paiacutes nas uacuteltimas deacutecadas Entre tais variaacuteveis
vale ressaltar a forte repressatildeo dos oacutergatildeos policiais na regiatildeo Sudeste contra o crime
organizado e a consequente migraccedilatildeo de organizaccedilotildees criminosas para regiotildees nas
quais os aparatos policiais natildeo tecircm o mesmo poder de combate Agrega-se a isso a
variaacutevel da dinacircmica do mercado de bens liacutecitos e iliacutecitos que encontra na regiatildeo
Nordeste a possibilidade de expansatildeo de seus mercados em decorrecircncia dessa
regiatildeo ter tido crescimento5 econocircmico acima da meacutedia nacional na uacuteltima deacutecada
Vivendo em meio ao processo de ldquointeriorizaccedilatildeo da violecircnciardquo certamente
ainda eacute cedo para que consigamos dimensionar com competecircncia suficiente as
muacuteltiplas dimensotildees que tal processo tem produzido e produziraacute nos anos vindouros
no Brasil Contudo alguns estudos merecem destaque entre eles o Mapa da
Violecircncia 2008 publicado pelo Instituto Sangari6 cujo periacuteodo de anaacutelise cobre os
homiciacutedios entre 2002 e 2006 em cuja publicaccedilatildeo a cidade foco de nossa pesquisa
aparecia situada na 340ordf7 posiccedilatildeo entre os municiacutepios brasileiros com uma taxa8 de
362 mortes por grupos de cem mil habitantes Embora a posiccedilatildeo ateacute entatildeo ocupada
pela cidade no quadro dos municiacutepios mais violentos do paiacutes natildeo trouxesse razotildees
para comemoraccedilatildeo por parte de nenhum administrador da seguranccedila puacuteblica jaacute que
a taxa da cidade era superior agrave nacional Todavia o que se produziria nos anos
seguintes revelaria que o processo de aumento da violecircncia homicida no interior e
particularmente na cidade se intensificaria De acordo com nova publicaccedilatildeo9 que veio
agrave luz em 2011 Campina Grande chegou agrave taxa de 484 homiciacutedios por grupos de cem
mil habitantes em 2010 No prazo de quatro anos a cidade ldquosaltourdquo 160 (cento e
5 Particularmente a regiatildeo Nordeste A respeito ver importantes anaacutelise do IPEA
6 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violecircncia 2008 Satildeo Paulo Instituto Sangari Brasiacutelia Ministeacuterio da Justiccedila Ministeacuterio da Sauacutede RITLA 2008
7 Idem Os nuacutemeros apresentados mostram que Campina Grande ostentava em 2006 139 homiciacutedios em 2005 136 em 2004 124 em 2003 126 e em 2002 108 P 21
8 A taxa para grupos de cem mil mortes foi convencionada internacionalmente e eacute largamente utilizada em estudos e poliacuteticas puacuteblicas em todo o mundo para dimensionar o impacto dos homiciacutedios Vale lembrar que a ONU considera taxas acima de 10 casos por grupos de referecircncia como endecircmicas
9 WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 p 41
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sessenta) posiccedilotildees no quadro das cidades mais violentas do paiacutes passando a ocupar
a 180ordf posiccedilatildeo
Na busca de entender a relaccedilatildeo entre exclusatildeo social e crimes letais em
Campina Grande procuramos identificar os cenaacuterios e atores envolvidos nos
entreveros que produziram ldquomortes matadasrdquo Para isso procuramos conhecer os
seus lugares sociais a partir de variaacuteveis como idade gecircnero grau de escolaridade
local de moradia profissatildeoocupaccedilatildeo raccedila estado civil etc
A pesquisa foi realizada durante os anos de 2010 e 2011 e elegeu como
recorte temporal o biecircnio 2009 e 2010 Ateacute o final da pesquisa concluiacuteda em meados
de 2011 O Mapa da Violecircncia 2012 ateacute entatildeo natildeo havia sido publicado Apoacutes sua
publicaccedilatildeo no final de 2011 pudemos ter acesso aos dados sobre os homiciacutedios no
Brasil entre os anos de 2008 a 2010 Vale lembrar que esta ldquoausecircnciardquo de dados ateacute
entatildeo tambeacutem tinha servido como motivaccedilotildees para a realizaccedilatildeo da pesquisa muito
embora como esperamos deixar claro ao longo deste trabalho a publicaccedilatildeo do
Instituto Sangari natildeo se propotildee a fazer uma anaacutelise de profundidade dos dados ao
contraacuterio de nossa pesquisa
Construindo o campo metodoloacutegico em meio a arquivos
A pesquisa foi realizada a partir de dados secundaacuterios colhidos junto a quatro
fontes sendo duas oficiais (e estatais) e duas jornaliacutesticas respectivamente Poliacutecia
Civil da Paraiacuteba onde colhemos os Boletins de Ocorrecircncia (BOrsquos) sobre homiciacutedios
referentes aos anos pesquisados Instituto de Medicina Legal da Paraiacuteba doravante
IML no qual pesquisamos os laudos cadaveacutericos dos mortos por accedilatildeo violenta
provocada por outrem e Jornal da Paraiacuteba e Diaacuterio da Borborema10 Esses dois
uacuteltimos satildeo jornais vespertinos de circulaccedilatildeo estadual nos quais colhemos dados nas
10
Fechou as portas em fevereiro de 2012 A nossa pesquisa foi uma das uacuteltimas a ter acesso aos arquivos do jornal em pleno funcionamento
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reportagens sobre crimes de homiciacutedio cometidos em Campina Grande durante o
periacuteodo ldquocobertordquo pela pesquisa
Eacute importante esclarecer que a escolha de muacuteltiplas fontes com informaccedilotildees
sobre os eventos homicidas na cidade durante o periacuteodo analisado foi enriquecedor
na medida em que nos permitiu fazer o cotejamento dos dados colhidos nas vaacuterias
fontes isso possibilitou o preenchimento de lacunas que por vezes se apresentava
nos dados produzidos por uma ou outra instituiccedilatildeo
A escolha de trabalhar com dados secundaacuterios em arquivos de jornais e em
instituiccedilotildees ligadas agrave Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica da Paraiacuteba estaacute diretamente
vinculada agrave natureza de nosso objeto de estudo Ao escolher trabalhar com
homiciacutedios por razotildees obvias nos foi impossiacutevel entrevistar as viacutetimas Restava-nos
ainda a possibilidade de se trabalhar com suspeitos e reacuteus dos crimes Todavia o
grande nuacutemero de casos de homiciacutedios cujos autores permanecem ldquodesconhecidosrdquo
se revelou um obstaacuteculo de difiacutecil superaccedilatildeo Especula-se que no Brasil apenas 8
(oito por cento) dos casos de homiciacutedios tem autoria esclarecida pela poliacutecia O
acesso aos familiares das viacutetimas por sua vez tambeacutem se mostrou difiacutecil por causa do
tempo exiacuteguo que tiacutenhamos para realizar um processo de aproximaccedilatildeo negociaccedilatildeo e
sensibilizaccedilatildeo com pessoas que passavam por processos psicoloacutegicos traumaacuteticos
apoacutes a perda de seus entes
Por sua vez o processo de negociaccedilatildeo com os responsaacuteveis pelas instituiccedilotildees
responsaacuteveis pelos dados foram realizados inicialmente atraveacutes de contatos
telefocircnicos e posteriormente oficializados mediante ofiacutecios da Unidade Acadecircmica
de Ciecircncias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande Um dos jornais
cobrou a taxa de R$ 3000 para acesso aos dados e limitou11 a quantidade de dias de
acesso aos arquivos
11
Posteriormente no decorrer da pesquisa in loco a limitaccedilatildeo de dias foi abolida restando apenas a exigecircncia de controle sobre horaacuterio e quantidade de pessoas que acessavam os arquivos dos jornais
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De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As
dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se
mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo
ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados
como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a
respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a
esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas
fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse
relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo
Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas
particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de
homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante
Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23
perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como
data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da
pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13
de acordo com a fonte acessada
A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em
termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas
fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e
personagens
12
Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela
13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 170
A construccedilatildeo dos dados
Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos
vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo
exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo
diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos
com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo
tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos
processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e
veicularam
Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como
marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima
de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como
classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos
fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em
Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens
entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos
dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos
de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala
muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas
paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados
cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares
e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas
relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo
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Discutindo a violecircncia homicida
Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009
e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das
principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de
(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a
violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem
seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A
compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas
manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia
Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica
sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia
A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua
incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma
sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute
colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece
afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o
homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e
na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo
algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente
nos dias atuais
Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos
produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de
(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que
A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social
entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 172
grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos
morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social
Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas
homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos
histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os
distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual
Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como
uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas
pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia
fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares
secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade
Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo
da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor
domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da
racionalidade moderna
No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como
conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de
ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das
aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de
violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os
homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes
meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila
da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus
14
Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio
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membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos
favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores
e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de
imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por
carecircncias das mais variadas ordens
Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)
aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais
contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir
sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que
a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um
excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a
informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos
imateriais de informaccedilatildeo
Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de
formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os
que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira
estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens
simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como
pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais
satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo
ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que
algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar
socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande
Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e
utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social
pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade
Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas
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seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que
romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER
2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas
nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo
Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade
ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria
conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os
policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER
1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de
homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos
O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora
de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de
violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas
Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica
no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente
processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial
conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade
Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da
violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais
distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam
entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as
enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que
produzem
15
Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos
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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande
Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da
Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e
reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das
praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo
tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo
que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo
De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado
em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio
Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada
menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em
2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo
analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma
maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante
mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso
contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos
puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em
Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre
gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de
masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem
16
WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa
17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais
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como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
18
Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
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que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
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A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179
Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
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Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
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grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
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dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
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WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
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as vaacuterias transformaccedilotildees ocorridas no paiacutes nas uacuteltimas deacutecadas Entre tais variaacuteveis
vale ressaltar a forte repressatildeo dos oacutergatildeos policiais na regiatildeo Sudeste contra o crime
organizado e a consequente migraccedilatildeo de organizaccedilotildees criminosas para regiotildees nas
quais os aparatos policiais natildeo tecircm o mesmo poder de combate Agrega-se a isso a
variaacutevel da dinacircmica do mercado de bens liacutecitos e iliacutecitos que encontra na regiatildeo
Nordeste a possibilidade de expansatildeo de seus mercados em decorrecircncia dessa
regiatildeo ter tido crescimento5 econocircmico acima da meacutedia nacional na uacuteltima deacutecada
Vivendo em meio ao processo de ldquointeriorizaccedilatildeo da violecircnciardquo certamente
ainda eacute cedo para que consigamos dimensionar com competecircncia suficiente as
muacuteltiplas dimensotildees que tal processo tem produzido e produziraacute nos anos vindouros
no Brasil Contudo alguns estudos merecem destaque entre eles o Mapa da
Violecircncia 2008 publicado pelo Instituto Sangari6 cujo periacuteodo de anaacutelise cobre os
homiciacutedios entre 2002 e 2006 em cuja publicaccedilatildeo a cidade foco de nossa pesquisa
aparecia situada na 340ordf7 posiccedilatildeo entre os municiacutepios brasileiros com uma taxa8 de
362 mortes por grupos de cem mil habitantes Embora a posiccedilatildeo ateacute entatildeo ocupada
pela cidade no quadro dos municiacutepios mais violentos do paiacutes natildeo trouxesse razotildees
para comemoraccedilatildeo por parte de nenhum administrador da seguranccedila puacuteblica jaacute que
a taxa da cidade era superior agrave nacional Todavia o que se produziria nos anos
seguintes revelaria que o processo de aumento da violecircncia homicida no interior e
particularmente na cidade se intensificaria De acordo com nova publicaccedilatildeo9 que veio
agrave luz em 2011 Campina Grande chegou agrave taxa de 484 homiciacutedios por grupos de cem
mil habitantes em 2010 No prazo de quatro anos a cidade ldquosaltourdquo 160 (cento e
5 Particularmente a regiatildeo Nordeste A respeito ver importantes anaacutelise do IPEA
6 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violecircncia 2008 Satildeo Paulo Instituto Sangari Brasiacutelia Ministeacuterio da Justiccedila Ministeacuterio da Sauacutede RITLA 2008
7 Idem Os nuacutemeros apresentados mostram que Campina Grande ostentava em 2006 139 homiciacutedios em 2005 136 em 2004 124 em 2003 126 e em 2002 108 P 21
8 A taxa para grupos de cem mil mortes foi convencionada internacionalmente e eacute largamente utilizada em estudos e poliacuteticas puacuteblicas em todo o mundo para dimensionar o impacto dos homiciacutedios Vale lembrar que a ONU considera taxas acima de 10 casos por grupos de referecircncia como endecircmicas
9 WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 p 41
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sessenta) posiccedilotildees no quadro das cidades mais violentas do paiacutes passando a ocupar
a 180ordf posiccedilatildeo
Na busca de entender a relaccedilatildeo entre exclusatildeo social e crimes letais em
Campina Grande procuramos identificar os cenaacuterios e atores envolvidos nos
entreveros que produziram ldquomortes matadasrdquo Para isso procuramos conhecer os
seus lugares sociais a partir de variaacuteveis como idade gecircnero grau de escolaridade
local de moradia profissatildeoocupaccedilatildeo raccedila estado civil etc
A pesquisa foi realizada durante os anos de 2010 e 2011 e elegeu como
recorte temporal o biecircnio 2009 e 2010 Ateacute o final da pesquisa concluiacuteda em meados
de 2011 O Mapa da Violecircncia 2012 ateacute entatildeo natildeo havia sido publicado Apoacutes sua
publicaccedilatildeo no final de 2011 pudemos ter acesso aos dados sobre os homiciacutedios no
Brasil entre os anos de 2008 a 2010 Vale lembrar que esta ldquoausecircnciardquo de dados ateacute
entatildeo tambeacutem tinha servido como motivaccedilotildees para a realizaccedilatildeo da pesquisa muito
embora como esperamos deixar claro ao longo deste trabalho a publicaccedilatildeo do
Instituto Sangari natildeo se propotildee a fazer uma anaacutelise de profundidade dos dados ao
contraacuterio de nossa pesquisa
Construindo o campo metodoloacutegico em meio a arquivos
A pesquisa foi realizada a partir de dados secundaacuterios colhidos junto a quatro
fontes sendo duas oficiais (e estatais) e duas jornaliacutesticas respectivamente Poliacutecia
Civil da Paraiacuteba onde colhemos os Boletins de Ocorrecircncia (BOrsquos) sobre homiciacutedios
referentes aos anos pesquisados Instituto de Medicina Legal da Paraiacuteba doravante
IML no qual pesquisamos os laudos cadaveacutericos dos mortos por accedilatildeo violenta
provocada por outrem e Jornal da Paraiacuteba e Diaacuterio da Borborema10 Esses dois
uacuteltimos satildeo jornais vespertinos de circulaccedilatildeo estadual nos quais colhemos dados nas
10
Fechou as portas em fevereiro de 2012 A nossa pesquisa foi uma das uacuteltimas a ter acesso aos arquivos do jornal em pleno funcionamento
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reportagens sobre crimes de homiciacutedio cometidos em Campina Grande durante o
periacuteodo ldquocobertordquo pela pesquisa
Eacute importante esclarecer que a escolha de muacuteltiplas fontes com informaccedilotildees
sobre os eventos homicidas na cidade durante o periacuteodo analisado foi enriquecedor
na medida em que nos permitiu fazer o cotejamento dos dados colhidos nas vaacuterias
fontes isso possibilitou o preenchimento de lacunas que por vezes se apresentava
nos dados produzidos por uma ou outra instituiccedilatildeo
A escolha de trabalhar com dados secundaacuterios em arquivos de jornais e em
instituiccedilotildees ligadas agrave Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica da Paraiacuteba estaacute diretamente
vinculada agrave natureza de nosso objeto de estudo Ao escolher trabalhar com
homiciacutedios por razotildees obvias nos foi impossiacutevel entrevistar as viacutetimas Restava-nos
ainda a possibilidade de se trabalhar com suspeitos e reacuteus dos crimes Todavia o
grande nuacutemero de casos de homiciacutedios cujos autores permanecem ldquodesconhecidosrdquo
se revelou um obstaacuteculo de difiacutecil superaccedilatildeo Especula-se que no Brasil apenas 8
(oito por cento) dos casos de homiciacutedios tem autoria esclarecida pela poliacutecia O
acesso aos familiares das viacutetimas por sua vez tambeacutem se mostrou difiacutecil por causa do
tempo exiacuteguo que tiacutenhamos para realizar um processo de aproximaccedilatildeo negociaccedilatildeo e
sensibilizaccedilatildeo com pessoas que passavam por processos psicoloacutegicos traumaacuteticos
apoacutes a perda de seus entes
Por sua vez o processo de negociaccedilatildeo com os responsaacuteveis pelas instituiccedilotildees
responsaacuteveis pelos dados foram realizados inicialmente atraveacutes de contatos
telefocircnicos e posteriormente oficializados mediante ofiacutecios da Unidade Acadecircmica
de Ciecircncias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande Um dos jornais
cobrou a taxa de R$ 3000 para acesso aos dados e limitou11 a quantidade de dias de
acesso aos arquivos
11
Posteriormente no decorrer da pesquisa in loco a limitaccedilatildeo de dias foi abolida restando apenas a exigecircncia de controle sobre horaacuterio e quantidade de pessoas que acessavam os arquivos dos jornais
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De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As
dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se
mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo
ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados
como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a
respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a
esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas
fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse
relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo
Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas
particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de
homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante
Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23
perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como
data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da
pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13
de acordo com a fonte acessada
A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em
termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas
fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e
personagens
12
Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela
13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos
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A construccedilatildeo dos dados
Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos
vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo
exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo
diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos
com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo
tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos
processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e
veicularam
Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como
marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima
de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como
classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos
fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em
Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens
entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos
dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos
de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala
muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas
paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados
cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares
e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas
relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo
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Discutindo a violecircncia homicida
Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009
e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das
principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de
(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a
violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem
seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A
compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas
manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia
Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica
sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia
A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua
incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma
sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute
colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece
afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o
homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e
na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo
algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente
nos dias atuais
Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos
produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de
(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que
A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social
entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo
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grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos
morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social
Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas
homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos
histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os
distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual
Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como
uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas
pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia
fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares
secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade
Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo
da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor
domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da
racionalidade moderna
No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como
conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de
ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das
aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de
violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os
homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes
meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila
da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus
14
Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio
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membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos
favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores
e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de
imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por
carecircncias das mais variadas ordens
Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)
aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais
contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir
sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que
a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um
excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a
informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos
imateriais de informaccedilatildeo
Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de
formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os
que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira
estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens
simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como
pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais
satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo
ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que
algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar
socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande
Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e
utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social
pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade
Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas
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seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que
romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER
2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas
nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo
Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade
ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria
conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os
policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER
1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de
homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos
O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora
de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de
violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas
Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica
no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente
processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial
conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade
Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da
violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais
distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam
entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as
enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que
produzem
15
Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos
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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande
Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da
Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e
reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das
praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo
tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo
que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo
De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado
em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio
Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada
menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em
2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo
analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma
maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante
mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso
contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos
puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em
Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre
gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de
masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem
16
WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa
17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais
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como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
18
Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
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que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
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A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
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Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180
Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182
dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 167
sessenta) posiccedilotildees no quadro das cidades mais violentas do paiacutes passando a ocupar
a 180ordf posiccedilatildeo
Na busca de entender a relaccedilatildeo entre exclusatildeo social e crimes letais em
Campina Grande procuramos identificar os cenaacuterios e atores envolvidos nos
entreveros que produziram ldquomortes matadasrdquo Para isso procuramos conhecer os
seus lugares sociais a partir de variaacuteveis como idade gecircnero grau de escolaridade
local de moradia profissatildeoocupaccedilatildeo raccedila estado civil etc
A pesquisa foi realizada durante os anos de 2010 e 2011 e elegeu como
recorte temporal o biecircnio 2009 e 2010 Ateacute o final da pesquisa concluiacuteda em meados
de 2011 O Mapa da Violecircncia 2012 ateacute entatildeo natildeo havia sido publicado Apoacutes sua
publicaccedilatildeo no final de 2011 pudemos ter acesso aos dados sobre os homiciacutedios no
Brasil entre os anos de 2008 a 2010 Vale lembrar que esta ldquoausecircnciardquo de dados ateacute
entatildeo tambeacutem tinha servido como motivaccedilotildees para a realizaccedilatildeo da pesquisa muito
embora como esperamos deixar claro ao longo deste trabalho a publicaccedilatildeo do
Instituto Sangari natildeo se propotildee a fazer uma anaacutelise de profundidade dos dados ao
contraacuterio de nossa pesquisa
Construindo o campo metodoloacutegico em meio a arquivos
A pesquisa foi realizada a partir de dados secundaacuterios colhidos junto a quatro
fontes sendo duas oficiais (e estatais) e duas jornaliacutesticas respectivamente Poliacutecia
Civil da Paraiacuteba onde colhemos os Boletins de Ocorrecircncia (BOrsquos) sobre homiciacutedios
referentes aos anos pesquisados Instituto de Medicina Legal da Paraiacuteba doravante
IML no qual pesquisamos os laudos cadaveacutericos dos mortos por accedilatildeo violenta
provocada por outrem e Jornal da Paraiacuteba e Diaacuterio da Borborema10 Esses dois
uacuteltimos satildeo jornais vespertinos de circulaccedilatildeo estadual nos quais colhemos dados nas
10
Fechou as portas em fevereiro de 2012 A nossa pesquisa foi uma das uacuteltimas a ter acesso aos arquivos do jornal em pleno funcionamento
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 168
reportagens sobre crimes de homiciacutedio cometidos em Campina Grande durante o
periacuteodo ldquocobertordquo pela pesquisa
Eacute importante esclarecer que a escolha de muacuteltiplas fontes com informaccedilotildees
sobre os eventos homicidas na cidade durante o periacuteodo analisado foi enriquecedor
na medida em que nos permitiu fazer o cotejamento dos dados colhidos nas vaacuterias
fontes isso possibilitou o preenchimento de lacunas que por vezes se apresentava
nos dados produzidos por uma ou outra instituiccedilatildeo
A escolha de trabalhar com dados secundaacuterios em arquivos de jornais e em
instituiccedilotildees ligadas agrave Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica da Paraiacuteba estaacute diretamente
vinculada agrave natureza de nosso objeto de estudo Ao escolher trabalhar com
homiciacutedios por razotildees obvias nos foi impossiacutevel entrevistar as viacutetimas Restava-nos
ainda a possibilidade de se trabalhar com suspeitos e reacuteus dos crimes Todavia o
grande nuacutemero de casos de homiciacutedios cujos autores permanecem ldquodesconhecidosrdquo
se revelou um obstaacuteculo de difiacutecil superaccedilatildeo Especula-se que no Brasil apenas 8
(oito por cento) dos casos de homiciacutedios tem autoria esclarecida pela poliacutecia O
acesso aos familiares das viacutetimas por sua vez tambeacutem se mostrou difiacutecil por causa do
tempo exiacuteguo que tiacutenhamos para realizar um processo de aproximaccedilatildeo negociaccedilatildeo e
sensibilizaccedilatildeo com pessoas que passavam por processos psicoloacutegicos traumaacuteticos
apoacutes a perda de seus entes
Por sua vez o processo de negociaccedilatildeo com os responsaacuteveis pelas instituiccedilotildees
responsaacuteveis pelos dados foram realizados inicialmente atraveacutes de contatos
telefocircnicos e posteriormente oficializados mediante ofiacutecios da Unidade Acadecircmica
de Ciecircncias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande Um dos jornais
cobrou a taxa de R$ 3000 para acesso aos dados e limitou11 a quantidade de dias de
acesso aos arquivos
11
Posteriormente no decorrer da pesquisa in loco a limitaccedilatildeo de dias foi abolida restando apenas a exigecircncia de controle sobre horaacuterio e quantidade de pessoas que acessavam os arquivos dos jornais
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De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As
dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se
mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo
ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados
como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a
respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a
esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas
fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse
relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo
Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas
particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de
homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante
Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23
perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como
data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da
pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13
de acordo com a fonte acessada
A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em
termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas
fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e
personagens
12
Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela
13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos
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A construccedilatildeo dos dados
Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos
vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo
exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo
diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos
com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo
tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos
processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e
veicularam
Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como
marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima
de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como
classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos
fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em
Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens
entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos
dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos
de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala
muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas
paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados
cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares
e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas
relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo
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Discutindo a violecircncia homicida
Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009
e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das
principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de
(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a
violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem
seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A
compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas
manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia
Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica
sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia
A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua
incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma
sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute
colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece
afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o
homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e
na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo
algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente
nos dias atuais
Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos
produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de
(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que
A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social
entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo
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grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos
morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social
Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas
homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos
histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os
distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual
Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como
uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas
pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia
fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares
secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade
Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo
da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor
domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da
racionalidade moderna
No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como
conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de
ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das
aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de
violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os
homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes
meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila
da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus
14
Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 173
membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos
favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores
e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de
imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por
carecircncias das mais variadas ordens
Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)
aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais
contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir
sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que
a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um
excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a
informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos
imateriais de informaccedilatildeo
Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de
formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os
que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira
estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens
simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como
pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais
satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo
ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que
algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar
socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande
Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e
utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social
pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade
Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174
seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que
romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER
2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas
nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo
Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade
ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria
conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os
policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER
1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de
homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos
O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora
de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de
violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas
Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica
no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente
processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial
conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade
Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da
violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais
distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam
entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as
enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que
produzem
15
Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 175
Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande
Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da
Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e
reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das
praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo
tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo
que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo
De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado
em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio
Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada
menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em
2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo
analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma
maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante
mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso
contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos
puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em
Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre
gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de
masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem
16
WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa
17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176
como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
18
Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177
que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178
A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179
Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
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Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
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dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 168
reportagens sobre crimes de homiciacutedio cometidos em Campina Grande durante o
periacuteodo ldquocobertordquo pela pesquisa
Eacute importante esclarecer que a escolha de muacuteltiplas fontes com informaccedilotildees
sobre os eventos homicidas na cidade durante o periacuteodo analisado foi enriquecedor
na medida em que nos permitiu fazer o cotejamento dos dados colhidos nas vaacuterias
fontes isso possibilitou o preenchimento de lacunas que por vezes se apresentava
nos dados produzidos por uma ou outra instituiccedilatildeo
A escolha de trabalhar com dados secundaacuterios em arquivos de jornais e em
instituiccedilotildees ligadas agrave Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica da Paraiacuteba estaacute diretamente
vinculada agrave natureza de nosso objeto de estudo Ao escolher trabalhar com
homiciacutedios por razotildees obvias nos foi impossiacutevel entrevistar as viacutetimas Restava-nos
ainda a possibilidade de se trabalhar com suspeitos e reacuteus dos crimes Todavia o
grande nuacutemero de casos de homiciacutedios cujos autores permanecem ldquodesconhecidosrdquo
se revelou um obstaacuteculo de difiacutecil superaccedilatildeo Especula-se que no Brasil apenas 8
(oito por cento) dos casos de homiciacutedios tem autoria esclarecida pela poliacutecia O
acesso aos familiares das viacutetimas por sua vez tambeacutem se mostrou difiacutecil por causa do
tempo exiacuteguo que tiacutenhamos para realizar um processo de aproximaccedilatildeo negociaccedilatildeo e
sensibilizaccedilatildeo com pessoas que passavam por processos psicoloacutegicos traumaacuteticos
apoacutes a perda de seus entes
Por sua vez o processo de negociaccedilatildeo com os responsaacuteveis pelas instituiccedilotildees
responsaacuteveis pelos dados foram realizados inicialmente atraveacutes de contatos
telefocircnicos e posteriormente oficializados mediante ofiacutecios da Unidade Acadecircmica
de Ciecircncias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande Um dos jornais
cobrou a taxa de R$ 3000 para acesso aos dados e limitou11 a quantidade de dias de
acesso aos arquivos
11
Posteriormente no decorrer da pesquisa in loco a limitaccedilatildeo de dias foi abolida restando apenas a exigecircncia de controle sobre horaacuterio e quantidade de pessoas que acessavam os arquivos dos jornais
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De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As
dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se
mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo
ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados
como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a
respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a
esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas
fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse
relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo
Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas
particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de
homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante
Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23
perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como
data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da
pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13
de acordo com a fonte acessada
A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em
termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas
fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e
personagens
12
Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela
13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos
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A construccedilatildeo dos dados
Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos
vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo
exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo
diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos
com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo
tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos
processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e
veicularam
Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como
marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima
de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como
classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos
fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em
Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens
entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos
dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos
de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala
muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas
paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados
cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares
e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas
relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo
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Discutindo a violecircncia homicida
Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009
e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das
principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de
(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a
violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem
seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A
compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas
manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia
Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica
sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia
A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua
incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma
sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute
colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece
afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o
homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e
na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo
algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente
nos dias atuais
Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos
produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de
(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que
A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social
entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo
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grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos
morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social
Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas
homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos
histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os
distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual
Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como
uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas
pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia
fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares
secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade
Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo
da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor
domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da
racionalidade moderna
No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como
conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de
ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das
aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de
violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os
homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes
meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila
da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus
14
Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio
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membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos
favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores
e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de
imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por
carecircncias das mais variadas ordens
Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)
aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais
contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir
sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que
a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um
excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a
informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos
imateriais de informaccedilatildeo
Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de
formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os
que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira
estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens
simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como
pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais
satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo
ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que
algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar
socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande
Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e
utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social
pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade
Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas
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seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que
romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER
2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas
nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo
Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade
ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria
conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os
policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER
1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de
homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos
O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora
de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de
violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas
Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica
no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente
processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial
conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade
Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da
violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais
distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam
entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as
enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que
produzem
15
Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos
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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande
Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da
Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e
reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das
praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo
tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo
que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo
De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado
em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio
Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada
menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em
2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo
analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma
maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante
mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso
contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos
puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em
Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre
gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de
masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem
16
WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa
17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais
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como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
18
Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
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que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
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A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179
Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
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Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
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dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
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Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
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De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As
dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se
mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo
ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados
como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a
respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a
esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas
fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse
relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo
Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas
particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de
homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante
Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23
perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como
data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da
pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13
de acordo com a fonte acessada
A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em
termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas
fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e
personagens
12
Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela
13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos
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A construccedilatildeo dos dados
Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos
vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo
exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo
diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos
com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo
tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos
processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e
veicularam
Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como
marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima
de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como
classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos
fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em
Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens
entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos
dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos
de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala
muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas
paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados
cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares
e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas
relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo
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Discutindo a violecircncia homicida
Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009
e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das
principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de
(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a
violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem
seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A
compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas
manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia
Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica
sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia
A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua
incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma
sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute
colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece
afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o
homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e
na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo
algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente
nos dias atuais
Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos
produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de
(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que
A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social
entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo
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grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos
morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social
Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas
homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos
histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os
distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual
Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como
uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas
pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia
fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares
secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade
Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo
da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor
domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da
racionalidade moderna
No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como
conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de
ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das
aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de
violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os
homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes
meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila
da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus
14
Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio
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membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos
favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores
e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de
imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por
carecircncias das mais variadas ordens
Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)
aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais
contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir
sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que
a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um
excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a
informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos
imateriais de informaccedilatildeo
Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de
formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os
que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira
estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens
simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como
pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais
satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo
ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que
algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar
socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande
Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e
utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social
pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade
Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas
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seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que
romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER
2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas
nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo
Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade
ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria
conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os
policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER
1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de
homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos
O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora
de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de
violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas
Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica
no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente
processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial
conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade
Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da
violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais
distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam
entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as
enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que
produzem
15
Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos
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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande
Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da
Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e
reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das
praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo
tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo
que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo
De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado
em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio
Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada
menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em
2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo
analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma
maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante
mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso
contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos
puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em
Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre
gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de
masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem
16
WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa
17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais
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como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
18
Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
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que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
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A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
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Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
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Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
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grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
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dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
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2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)
SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle
Muller Saulxures Editions Circeacute 1995
WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia
Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo
Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo
Paulo Instituto Sangari 2010
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da
Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo
Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da
SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 170
A construccedilatildeo dos dados
Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos
vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo
exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo
diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos
com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo
tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos
processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e
veicularam
Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como
marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima
de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como
classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos
fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em
Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens
entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos
dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos
de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala
muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas
paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados
cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares
e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas
relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo
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Discutindo a violecircncia homicida
Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009
e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das
principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de
(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a
violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem
seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A
compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas
manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia
Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica
sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia
A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua
incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma
sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute
colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece
afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o
homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e
na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo
algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente
nos dias atuais
Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos
produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de
(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que
A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social
entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo
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grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos
morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social
Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas
homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos
histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os
distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual
Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como
uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas
pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia
fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares
secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade
Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo
da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor
domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da
racionalidade moderna
No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como
conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de
ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das
aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de
violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os
homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes
meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila
da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus
14
Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio
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membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos
favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores
e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de
imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por
carecircncias das mais variadas ordens
Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)
aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais
contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir
sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que
a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um
excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a
informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos
imateriais de informaccedilatildeo
Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de
formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os
que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira
estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens
simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como
pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais
satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo
ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que
algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar
socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande
Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e
utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social
pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade
Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174
seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que
romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER
2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas
nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo
Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade
ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria
conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os
policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER
1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de
homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos
O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora
de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de
violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas
Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica
no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente
processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial
conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade
Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da
violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais
distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam
entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as
enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que
produzem
15
Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos
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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande
Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da
Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e
reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das
praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo
tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo
que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo
De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado
em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio
Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada
menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em
2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo
analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma
maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante
mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso
contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos
puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em
Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre
gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de
masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem
16
WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa
17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176
como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
18
Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
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que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178
A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179
Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180
Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182
dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 171
Discutindo a violecircncia homicida
Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009
e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das
principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de
(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a
violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem
seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A
compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas
manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia
Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica
sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia
A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua
incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma
sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute
colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece
afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o
homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e
na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo
algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente
nos dias atuais
Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos
produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de
(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que
A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social
entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 172
grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos
morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social
Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas
homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos
histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os
distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual
Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como
uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas
pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia
fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares
secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade
Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo
da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor
domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da
racionalidade moderna
No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como
conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de
ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das
aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de
violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os
homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes
meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila
da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus
14
Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio
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membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos
favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores
e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de
imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por
carecircncias das mais variadas ordens
Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)
aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais
contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir
sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que
a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um
excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a
informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos
imateriais de informaccedilatildeo
Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de
formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os
que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira
estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens
simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como
pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais
satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo
ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que
algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar
socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande
Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e
utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social
pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade
Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174
seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que
romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER
2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas
nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo
Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade
ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria
conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os
policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER
1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de
homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos
O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora
de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de
violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas
Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica
no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente
processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial
conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade
Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da
violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais
distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam
entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as
enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que
produzem
15
Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos
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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande
Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da
Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e
reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das
praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo
tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo
que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo
De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado
em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio
Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada
menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em
2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo
analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma
maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante
mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso
contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos
puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em
Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre
gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de
masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem
16
WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa
17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais
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como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
18
Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
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que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178
A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179
Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180
Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
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grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
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dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
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WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 172
grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos
morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social
Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas
homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos
histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os
distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual
Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como
uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas
pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia
fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares
secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade
Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo
da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor
domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da
racionalidade moderna
No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como
conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de
ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das
aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de
violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os
homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes
meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila
da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus
14
Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio
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membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos
favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores
e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de
imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por
carecircncias das mais variadas ordens
Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)
aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais
contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir
sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que
a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um
excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a
informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos
imateriais de informaccedilatildeo
Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de
formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os
que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira
estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens
simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como
pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais
satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo
ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que
algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar
socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande
Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e
utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social
pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade
Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas
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seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que
romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER
2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas
nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo
Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade
ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria
conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os
policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER
1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de
homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos
O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora
de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de
violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas
Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica
no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente
processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial
conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade
Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da
violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais
distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam
entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as
enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que
produzem
15
Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos
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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande
Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da
Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e
reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das
praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo
tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo
que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo
De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado
em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio
Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada
menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em
2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo
analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma
maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante
mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso
contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos
puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em
Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre
gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de
masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem
16
WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa
17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176
como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
18
Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177
que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178
A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
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Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180
Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182
dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
Referecircncias
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Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
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Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da
SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 173
membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos
favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores
e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de
imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por
carecircncias das mais variadas ordens
Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)
aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais
contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir
sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que
a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um
excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a
informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos
imateriais de informaccedilatildeo
Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de
formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os
que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira
estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens
simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como
pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais
satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo
ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que
algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar
socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande
Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e
utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social
pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade
Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174
seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que
romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER
2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas
nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo
Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade
ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria
conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os
policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER
1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de
homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos
O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora
de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de
violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas
Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica
no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente
processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial
conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade
Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da
violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais
distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam
entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as
enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que
produzem
15
Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 175
Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande
Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da
Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e
reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das
praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo
tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo
que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo
De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado
em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio
Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada
menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em
2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo
analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma
maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante
mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso
contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos
puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em
Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre
gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de
masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem
16
WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa
17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176
como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
18
Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177
que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178
A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179
Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180
Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182
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marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
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Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183
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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174
seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que
romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER
2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas
nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo
Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade
ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria
conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os
policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER
1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de
homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos
O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora
de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de
violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas
Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica
no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente
processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial
conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade
Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da
violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais
distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam
entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as
enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que
produzem
15
Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 175
Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande
Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da
Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e
reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das
praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo
tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo
que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo
De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado
em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio
Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada
menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em
2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo
analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma
maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante
mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso
contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos
puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em
Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre
gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de
masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem
16
WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa
17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176
como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
18
Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177
que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178
A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179
Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180
Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182
dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
Referecircncias
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NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em
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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande
Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da
Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e
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praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo
tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo
que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo
De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado
em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio
Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada
menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em
2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo
analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma
maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante
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contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos
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Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre
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WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa
17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais
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como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
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Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
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que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178
A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179
Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
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Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
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Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
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grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
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dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
Referecircncias
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Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo
Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da
SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
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como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de
impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes
Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na
cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades
entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado
Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e
quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na
mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave
escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo
tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)
haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)
tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010
o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis
referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e
quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam
completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham
completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha
curso superior
Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental
incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma
incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando
computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1
Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios
atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade
Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se
entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos
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Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40
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que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
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Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178
A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
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Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180
Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182
dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
Referecircncias
ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na
contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de
1998
ARENDT Hannah Sobre a Violecircncia Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2001
BAUMAM Zygmunt Medo Liacutequido Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2008
BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999
CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours
Paris Hachette 1981
CLASTRES Pierre Arqueologia da violecircncia Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004
CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003
ELIAS Nobert O Processo Civilizador Uma Histoacuteria dos Costumes Vol I Rio de
Janeiro Jorge Zahar Editor 1994
FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983
GIRARD Reneacute A violecircncia e o Sagrado 3ordf Ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2008
HERITIER Franccediloise Les fondements de la violence Analyse anthropologique In
TOUATI Aramand (Org) Violences De la Reacuteflexion agrave lacuteIntervention Paris Cultures
em Mouvements 2004
MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto
Alegre Sulina 2001
MARTUCCELLI Danilo Reflexotildees sobre a violecircncia na condiccedilatildeo moderna Tempo
Social Rev Sociol USP Satildeo Paulo 11 (1) 157- 175 maio de 1999
MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183
NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em
Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE
2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)
SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle
Muller Saulxures Editions Circeacute 1995
WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia
Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo
Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo
Paulo Instituto Sangari 2010
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da
Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo
Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da
SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177
que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos
casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da
justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros
Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo
considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores
dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute
resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como
for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)
viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)
como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa
97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo
parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um
processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De
modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de
incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba
Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das
viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os
meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta
eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas
brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura
etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o
intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande
durante os anos de 2009 e 2010
19
Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro
20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178
A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179
Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180
Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182
dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
Referecircncias
ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na
contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de
1998
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BAUMAM Zygmunt Medo Liacutequido Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2008
BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999
CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours
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CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003
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Janeiro Jorge Zahar Editor 1994
FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983
GIRARD Reneacute A violecircncia e o Sagrado 3ordf Ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2008
HERITIER Franccediloise Les fondements de la violence Analyse anthropologique In
TOUATI Aramand (Org) Violences De la Reacuteflexion agrave lacuteIntervention Paris Cultures
em Mouvements 2004
MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto
Alegre Sulina 2001
MARTUCCELLI Danilo Reflexotildees sobre a violecircncia na condiccedilatildeo moderna Tempo
Social Rev Sociol USP Satildeo Paulo 11 (1) 157- 175 maio de 1999
MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183
NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em
Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE
2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)
SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle
Muller Saulxures Editions Circeacute 1995
WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia
Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo
Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo
Paulo Instituto Sangari 2010
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da
Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo
Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da
SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178
A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista
como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a
simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a
decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca
de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute
registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da
populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito
mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no
Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos
Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam
em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de
equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de
esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo
entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a
espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina
Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de
homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo
pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas
casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo
agrave sua integridade fiacutesica
Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande
certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia
homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas
como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias
21
Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013
22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179
Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180
Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182
dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
Referecircncias
ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na
contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de
1998
ARENDT Hannah Sobre a Violecircncia Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2001
BAUMAM Zygmunt Medo Liacutequido Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2008
BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999
CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours
Paris Hachette 1981
CLASTRES Pierre Arqueologia da violecircncia Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004
CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003
ELIAS Nobert O Processo Civilizador Uma Histoacuteria dos Costumes Vol I Rio de
Janeiro Jorge Zahar Editor 1994
FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983
GIRARD Reneacute A violecircncia e o Sagrado 3ordf Ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2008
HERITIER Franccediloise Les fondements de la violence Analyse anthropologique In
TOUATI Aramand (Org) Violences De la Reacuteflexion agrave lacuteIntervention Paris Cultures
em Mouvements 2004
MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto
Alegre Sulina 2001
MARTUCCELLI Danilo Reflexotildees sobre a violecircncia na condiccedilatildeo moderna Tempo
Social Rev Sociol USP Satildeo Paulo 11 (1) 157- 175 maio de 1999
MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183
NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em
Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE
2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)
SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle
Muller Saulxures Editions Circeacute 1995
WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia
Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo
Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo
Paulo Instituto Sangari 2010
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da
Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo
Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da
SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179
Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de
variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo
da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas
localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale
relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de
conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios
Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa
indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que
fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela
precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida
na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo
tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a
residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo
Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por
conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus
cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das
classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos
nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo
ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc
No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia
homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo
certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros
considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que
se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como
justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e
agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras
23
Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180
Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182
dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
Referecircncias
ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na
contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de
1998
ARENDT Hannah Sobre a Violecircncia Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2001
BAUMAM Zygmunt Medo Liacutequido Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2008
BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999
CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours
Paris Hachette 1981
CLASTRES Pierre Arqueologia da violecircncia Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004
CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003
ELIAS Nobert O Processo Civilizador Uma Histoacuteria dos Costumes Vol I Rio de
Janeiro Jorge Zahar Editor 1994
FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983
GIRARD Reneacute A violecircncia e o Sagrado 3ordf Ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2008
HERITIER Franccediloise Les fondements de la violence Analyse anthropologique In
TOUATI Aramand (Org) Violences De la Reacuteflexion agrave lacuteIntervention Paris Cultures
em Mouvements 2004
MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto
Alegre Sulina 2001
MARTUCCELLI Danilo Reflexotildees sobre a violecircncia na condiccedilatildeo moderna Tempo
Social Rev Sociol USP Satildeo Paulo 11 (1) 157- 175 maio de 1999
MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183
NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em
Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE
2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)
SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle
Muller Saulxures Editions Circeacute 1995
WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia
Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo
Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo
Paulo Instituto Sangari 2010
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da
Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo
Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da
SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180
Conclusatildeo
Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer
um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que
contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio
paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas
deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente
influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela
precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de
interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos
acadecircmicos
O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional
nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na
cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou
novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio
de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o
aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros
motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas
arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis
benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais
variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser
potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo
desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado
paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das
demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos
com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica
No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se
constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182
dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
Referecircncias
ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na
contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de
1998
ARENDT Hannah Sobre a Violecircncia Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2001
BAUMAM Zygmunt Medo Liacutequido Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2008
BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999
CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours
Paris Hachette 1981
CLASTRES Pierre Arqueologia da violecircncia Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004
CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003
ELIAS Nobert O Processo Civilizador Uma Histoacuteria dos Costumes Vol I Rio de
Janeiro Jorge Zahar Editor 1994
FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983
GIRARD Reneacute A violecircncia e o Sagrado 3ordf Ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2008
HERITIER Franccediloise Les fondements de la violence Analyse anthropologique In
TOUATI Aramand (Org) Violences De la Reacuteflexion agrave lacuteIntervention Paris Cultures
em Mouvements 2004
MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto
Alegre Sulina 2001
MARTUCCELLI Danilo Reflexotildees sobre a violecircncia na condiccedilatildeo moderna Tempo
Social Rev Sociol USP Satildeo Paulo 11 (1) 157- 175 maio de 1999
MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183
NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em
Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE
2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)
SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle
Muller Saulxures Editions Circeacute 1995
WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia
Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo
Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo
Paulo Instituto Sangari 2010
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da
Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo
Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da
SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181
grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na
pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas
de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se
colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso
acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos
conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a
chapa esquentou por muito tempo
Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um
padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e
caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores
Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais
e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados
acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da
vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais
pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de
escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho
que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e
foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos
A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os
anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se
encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e
mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios
comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das
viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo
da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar
Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo
contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem
Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes
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dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
Referecircncias
ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na
contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de
1998
ARENDT Hannah Sobre a Violecircncia Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2001
BAUMAM Zygmunt Medo Liacutequido Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2008
BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999
CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours
Paris Hachette 1981
CLASTRES Pierre Arqueologia da violecircncia Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004
CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003
ELIAS Nobert O Processo Civilizador Uma Histoacuteria dos Costumes Vol I Rio de
Janeiro Jorge Zahar Editor 1994
FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983
GIRARD Reneacute A violecircncia e o Sagrado 3ordf Ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2008
HERITIER Franccediloise Les fondements de la violence Analyse anthropologique In
TOUATI Aramand (Org) Violences De la Reacuteflexion agrave lacuteIntervention Paris Cultures
em Mouvements 2004
MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto
Alegre Sulina 2001
MARTUCCELLI Danilo Reflexotildees sobre a violecircncia na condiccedilatildeo moderna Tempo
Social Rev Sociol USP Satildeo Paulo 11 (1) 157- 175 maio de 1999
MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001
Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183
NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em
Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE
2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)
SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle
Muller Saulxures Editions Circeacute 1995
WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia
Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo
Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo
Paulo Instituto Sangari 2010
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da
Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo
Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da
SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
Email vanderlansilvauolcombr
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dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave
marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final
da exclusatildeo a letalidade
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Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
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Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da
SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982
Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
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NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em
Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE
2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)
SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle
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Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
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Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011
WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo
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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009
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Autor
Vanderlan Silva
Dr em Ciecircncias Sociais
Professor da UFCG
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