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MIRIAM ABY COHEN
CENOGRAFIA BRASILEIRA SCULO XXI: DILOGOS POSSVEIS ENTRE A PRTICA E O ENSINO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Artes, rea de Concentrao: Artes Cnicas, Linha de
Pesquisa: Teatro e Educao, da Escola de Comunicaes e
Artes da Universidade de So Paulo, como exigncia parcial
para obteno do Ttulo de Mestre em Artes, sob a orientao
da Profa. Dra. Maria Lcia de Souza Barros Pupo.
SO PAULO 2007
CENOGRAFIA BRASILEIRA SCULO XXI: DILOGOS POSSVEIS ENTRE A PRTICA E O ENSINO
Espao reservado para anotaes da banca
Mestrado
Miriam Aby Cohen
Artes Cnicas
Teatro e Educao
Prof Dr. Maria Lcia de Souza Barros Pupo
nvel do projeto
autor
rea de conhecimento
linha de pesquisa
orientadora
Dedico esta dissertao
minha filha Calen e ao meu companheiro Lee
pela enorme compreenso, apoio e bom humor
compartilhados durante esta aventura.
AGRADECIMENTOS
Agradeo a todos aqueles que me motivaram a prosseguir com esta jornada e
queles que colaboraram diretamente com esta pesquisa, sobretudo minha
orientadora Prof Dr Maria Lcia de Souza Barros Pupo. Agradeo especialmente
aos Professores: Luiz Fernando Ramos, Mrcio Tadeu, Helosa Cardoso Villaboim,
Ronald Teixeira, Ldia Kosovski, Marcelo Denny, Fausto Poo Vianna e Jos Svio de
Arajo. Agardeo tambm a colaborao da jornalista Jeanne de Castro, responsvel
pela reviso do texto e, finalmente, aos alunos das universidades que participaram
deste projeto de pesquisa: UNIRIO: Adriana, Ana, Bruna, Janana, Marieta e Simone; UFRJ: Alan, Julie, Lucas, Melina, Paula, Paula M, Renata, Isabela; USP: Ana Carolina, Ana Emlia, Ana Paula, Andr, Carol, Carolina, Dbora, Diogo, Fabola, Felipe,
Fernando, Graciela, Hugo, Ivan, Jefferson, Joo, Ktia, Lgia, Maira, Marcelo, Marina,
Marilia, Nzia, Paula, Paulo, Pedro, Ricardo e Solange.
RESUMO
Os dilogos possveis entre a prtica e o ensino da Cenografia no Brasil aqui
identificados so resultantes da investigao e da reflexo sobre a formao do
cengrafo contemporneo a partir da perspectiva de experincias na prtica teatral. O
cengrafo aqui tratado como artista, responsvel pela identidade visual do
acontecimento teatral e colaborador no processo de sua criao. A Cenografia
encarada como linguagem situada no contexto teatral sem, no entanto, excluir os seus
desdobramentos na prtica atual, entendendo que, a partir da sua origem, que o
Teatro, podemos transpor boa parte desta experincia para as demais reas.
O desenvolvimento desta pesquisa baseia-se no acompanhamento in loco de
processos vivenciados e metodologias aplicadas nas principais instituies brasileiras
de ensino da Cenografia. Os procedimentos so analisados diante do objetivo de
reconhecer e apontar caminhos produtivos para a formao do futuro artista
cengrafo. Esta investigao busca indicar rumos que de fato contribuam para o
desenvolvimento da qualidade artstica e tcnica do cengrafo, de forma que no o
restrinja apenas a responder com segurana s suas atribuies, mas que o prepare
para atuar e colaborar, efetivamente, como artista criador, nos processos e realizaes
contemporneas, participando do desenvolvimento das Artes Cnicas.
Teatro Contemporneo Cenografia Prtica Formao Processo Criativo
SUMMARY
The possible dialogues between the practice and teaching of scenography in
Brazil, identified herein, are the result of the investigation and reflection about the
development of the contemporary scenographer originating from the perception from
my experience in theatre practice. Here the scenographer is treated as an artist,
responsible for the visual identity of the theatrical event and collaborator in the process
of its creation. Scenography is taken as a language within the theatrical context, taking
care to not ignore scenographys expansion into other areas, understanding that
starting from its theatre origins we can carry a good part of this experience to these
other related areas.
The development of this research is based on the processes experienced and
methodologies applied in major Brazilian academic institutions that offer bachelor
degree level scenography courses. These proceedings are analysed with the objective
of recognizing and appointing productive directions for the training of future
scenographic artists. This investigation aims to indicate guidelines that contribute to the
development of the artistic and technical qualities of the scenographer, not just the
capacity to execute their acquired attributes, but to prepare an active collaborator, a
creative artist in the process of contemporary productions, participating in the
development of the Scenic Arts.
Contemporary Theatre Scenography Practice Academic Formation Creative Process
ndice pg.
CAMINHOS PERCORRIDOS na CENOGRAFIA A Cenografia, o Contexto e o Cengrafo ................................................................... 02
A Tempestade, uma ilha da conscincia ..................................................................13
Captulo 1 A PRTICA da CENOGRAFIA 1.1 Cenografia : ........................................................................................................ 23 1.1.2 Cenografia e Acontecimento Teatral
1.1.3 Cenografia como Linguagem Artstica
1.1.4 Cenografia e Tcnica
1.1.5 Cenografia e Artes Plsticas
1.1.6 Cenografia e Arquitetura
1.1.7 Cenografia, Espao e Tempo
- A Linguagem do Espao e do Tempo e o Teatro
- Espao Cnico, Espao Teatral e Cena
1.2 Na Prtica ............................................................................................................ 40 1.2.1 Processos vista
1.2.2 Componentes da realizao teatral
a) Argumento
b) Pesquisa
c) Ao e Recepo: a presena do Humano
d) Espao
e) Tempo
f) Sistema Cnico
Captulo 2 O ENSINO da CENOGRAFIA no BRASIL 2.1 Formao e regulamentao da Cenografia e de seu ensino no Brasil .............. 61 2.2 As Universidades ................................................................................................. 70 2.2.1 Interseces e contrastes .......................................................................................81
Capitulo 3 AS AVES: PROCESSO e METODOLOGIA na FORMAO do CENGRAFO 3.1 As Aves ............................................................................................................... 92 3.2. Processos de trabalho no contexto das universidades. O educador, o aluno e a Cenografia .................................................................. 95
3.2.1 Argumento .......................................................................................................... 97 3.2.2 Pesquisa ..........................................................................................................111 3.2.3 Sistema Cnico................................................................ ............................... 118 3.2.4 Ao e Recepo: a presena do Humano .......................................................135 3.2.5 Espao e Tempo ..............................................................................................146 3.3 Cinco grupos, cinco criaes cenogrficas ....................................................... 158
CAMINHOS A INVESTIGAR PRTICA e FORMAO em CENOGRAFIA...................................................................176
BIBLIOGRAFIA ..........................................................................................................186 ANEXO As escolas de Artes Cnicas de nvel universitrio ...................................190
CAMINHOS PERCORRIDOS NA CENOGRAFIA
1
A Cenografia, o Contexto e o Cengrafo
Cenografia o tratamento do espao cnico. O cenrio o que se
coloca neste espao. Assim, no h espetculo teatral sem
cenografia, mas pode haver sem cenrio.1 Clvis Garcia
A Cenografia parte integrante do fazer teatral desde sempre. parte da discusso sobre se os rituais tribais2 so ou no manifestao de qualidade teatral,
neste contexto, podemos identificar elementos relevantes da cenografia: a
organizao do espao, sua ocupao pela ao e pelo pblico, a indumentria, os
objetos cnicos sua organizao e utilizao.
Acompanhando a evoluo das proposies do fazer teatral, a Cenografia
modificou-se ao longo de sua histria. Distintas qualidades e atribuies lhe foram
conferidas: os elementos que organizam o espao e ilustram, no Teatro Grego; os
mecanismos para a realizao dos Mistrios, na Idade Mdia; do carter decorativo ou
pictrico perspectiva, no Renascimento; o cenrio que recria parcialmente a
realidade, um ambiente levado ao limite, no Naturalismo, a exemplo de Les Bouchers,
de Antoine; a representao visual que apenas sugere e estimula a imaginao do
pblico, no Teatro Simbolista; o espao tridimensional e vivo de Appia; o conceito de
unidade cnica, pautado sobre a qualidade visual do Teatro, por Craig; a ampliao de
sua responsabilidade como espao cnico, a aproximao do pblico com a cena
invadindo o espao teatral, a partir de Meininger e Meyerhold; as propostas de
rompimento com a caixa italiana (caixa tica) por Max Reinhardt, que, na sua viso
contempornea prope a busca por espao distintos, apropriados e especficos para
receber cada espetculo, no Teatro Moderno. Este caminho percorrido pela
Cenografia no contexto teatral transmite uma forte herana para a prtica cnica atual,
que se apia em muitos dos preceitos do Teatro Moderno.
1 Clovis Garcia , durante aula ministrada na USP em 2004. 2 O Rito um lugar de encontro entre os seres humanos, mas o rito uma encenao? O ritual tribal
caracteriza-se pela presena de um determinado indivduo responsvel por fazer a comunicao entre os
homens e os deuses. O Teatro faz isto? Qual a diferena? Das justificativas que encontrei at hoje, a que
me parece aproximar o rito do Teatro : segundo Joseph Campbell, autor de O poder do Mito: a
qualidade que o rito tem de transcender a dimenso temporal.
2
As diversas manifestaes teatrais, em seus contextos, marcaram processos
distintos do fazer cenogrfico. O naturalismo, por exemplo, teve papel fundamental
para a Cenografia no que diz respeito motivao de uma nova relao entre o diretor
e o cengrafo, que se fazia necessria para a criao e realizao de suas
proposies, modificando at os processos de trabalho. A Cenografia encontrou nas
renovaes cnicas do sculo XX, que surgiram em oposio ao naturalismo, muitas
outras possibilidades para o desenvolvimento da sua linguagem inclusive a sua
abstrao. O Teatro Moderno provoca para uma prtica no mais pautada apenas
sobre o texto dramtico, mas onde os demais sistemas de signos - espao, luz, som,
cor, imagem, movimento - passam a fazer sentido na interlocuo com o espectador.
A modernidade foi, para o Teatro e, conseqentemente, para a Cenografia,
assim como nas Artes Plsticas, um movimento de criao e de rompimento
constantes. No ps-guerra, as artes em geral se voltaram para um desvelar dos
processos e dos bastidores, revelando o que antes parecia estar por detrs daquilo
que era apresentado. No havia mais mscaras ou vitrines, a realidade era
apresentada como tal, havendo o rompimento definitivo com qualquer tipo de iluso.
Diante das diversas manifestaes de ruptura da Modernidade e do acesso
aos processos do fazer, a contemporaneidade recolhe, restaura e reordena
fragmentos que se aglutinam e ou se chocam, contestam a si mesmos, no precisam
mais ser contrapostos, parece que j vm imbudos de uma auto-degenerao, sem
expectativa de longa vida, provisrios, em constante transformao, criando e
recriando imagens, fragmentos de imagens, fugidias, rpidas, volteis... Elementos
organizados ou meramente colocados em espaos, espaos estes que, no entanto,
permanecem, no se modificam assim to rapidamente.
O espao, como um dos elementos fundamentais e diferenciais do Teatro -
responsvel por demarcar fisicamente o ponto para um encontro eventual entre os
seres humanos, parece ser, por vezes, o responsvel pela suspenso deste processo
de transformao. A exemplo do que j propunha Reinhardt, o artista contemporneo
sai em busca de um espao teatral que dialogue verdadeiramente com o seu
enunciado, com aquilo que ele quer dizer. Os espaos ditos inusitados, que na
verdade sempre existiram em toda histria do Teatro, usados agora para libertar-se da
relao proposta pelo formato do palco italiano, procurando uma outra aproximao
com o pblico, propondo novas relaes. Esta busca por um espao ideal permite ao
artista, inclusive, retornar ao teatro italiano e modific-lo em prol de seus objetivos,
como vemos fazer, por exemplo, Peter Brook.
3
Dos cenrios naturalistas s representaes mais minimalistas, vivemos em
um momento no qual j no importa quo sofisticados eles podem ser, mas se podem
surpreender, indicar, conter e, ainda, serem economicamente realizveis. No espao
cnico, o sublime hoje est, no necessariamente no uso de efeitos tecnolgicos, mas
mais freqentemente, na capacidade de tornar um espao nico para um evento
teatral, conferindo-lhe alguma energia, uma alma, tornando o espao vivo e
participativo deste acontecimento. Na prtica exploramos correspondncias entre o
espao, a imagem e a sua percepo, por parte no apenas do espectador, mas
tambm do ator, do diretor e dos demais artistas e profissionais responsveis pela
evento teatral.
Ao Contexto est diretamente relacionado o fazer artstico e a realizao
tcnica deste fazer. Na medida em que o Teatro se prope a dialogar verdadeiramente
com o seu tempo, torna-se necessrio analisar aspectos histricos, conceituais,
estticos e tcnicos, para que possamos assimilar a sua real evoluo. Ao longo do
sculo XX, de tantas transformaes, o homem coloca-se diante do questionamento
sobre desenvolvimento e repetio. A contemporaneidade o contexto sobre o qual
este projeto de pesquisa est focado, assim importa, sobretudo, neste trabalho, a
reflexo de artistas da prtica do Teatro na atualidade e o pensamento deixado por
artistas e pensadores que influenciam as condutas presentes.
Neste nosso tempo deveramos fazer uma pausa, olhar para trs,
reconectar.3 Esta frase de Jean-Franoise Lyotard ilustra o momento em que vivemos, um ponto de mudana, de redirecionamento, deflagrada pela inquietude das
ltimas dcadas, momento este no qual os modelos, inclusive para o Teatro, esto
sendo colocados em questo e conseqentemente so gerados outros esboos,
outros pensamentos. Estamos diante de um panorama teatral que, mais uma vez,
busca modificar-se ou pelo menos, no est estanque. Parar, olhar para trs, refletir
sobre a prtica at este momento e buscar novos estmulos, so movimentos e
reflexes que motivaram esta pesquisa e conduziram a investigao nos campos da
prtica e do ensino.
3 Jean- Franoise Lyotard, filsofo francs, doutor em letras lecionou na Frana, EUA e Brasil, na Universidade de So Paulo, em 1979, autor da publicao A Condio ps-moderna 1979.
4
O Teatro essencialmente baseia-se em um jogo entre o esconder e o revelar,
conferir sentido ou abstra-lo; um jogo que modifica suas regras de acordo com o seu
contexto, e principalmente, de acordo sobre como propomos nos colocar em relao a
ele. O Teatro desde sempre busca interlocuo com o seu pblico, e na atualidade
seu desafio est em formar seus espectadores. O caminho do fazer em relao
audincia modificou-se, e diferentemente do sculo XIX, quando fortemente marcado
pelo teatro de boulevard (que em alguns casos podemos ainda identificar em nosso
tempo), j no necessariamente a burguesia quem sustenta a produo teatral na
atualidade, talvez no diretamente, principalmente em relao ao teatro de pesquisa.
O artista teatral exime-se assim da necessidade de agradar aquele segmento da
sociedade. Para o artista visual cnico, no entanto, ainda um contexto no qual
desenvolve sua obra, diante do qual muitas vezes ainda reluta em render-se a um
gosto no provocador.
H uma lacuna de dilogo entre o Teatro e a crtica especializada impressa, no
Brasil, que tambm se reflete no seu desenvolvimento. Muito se fala sobre a
dificuldade de interlocuo do Teatro com a crtica e sobre o fato de que esta no d
conta dos inmeros eventos teatrais simultneos que tomam lugar nos grandes
centros. Dificuldade a partir da qual se identifica uma mudana no comportamento e
na expectativa do Teatro em relao mesma. O que poderia ser aparentemente
desestimulante, apresenta-se, entretanto, como um elemento motivador de uma busca
por novos caminhos a percorrer. As leituras dramticas, os debates ao final do
espetculo, o pblico cadastrado (aquele que acompanha o processo de
desenvolvimento da produo), entre outros procedimentos, tornaram-se instrumentos
para uma aferio do evento teatral diante de seu pblico e conseqentemente para
uma possvel construo de parmetros que no se apiam mais, necessariamente,
em conceitos e filosofias, mas na apreenso deste evento por parte do espectador.
Assim, o pblico, nem sempre treinado para ler o Teatro, tornou-se um dos principais
responsveis por esta resposta. No campo das artes visuais cnicas4 esta relao, ou
resposta, quase inexistente, fica diretamente relacionada referncia de mundo-
imagem que a audincia desenvolve a partir daquilo que recebe como informao
visual do universo que a rodeia. Torna-se um desafio fazer com que o pblico
transcenda a sua prpria imagem de mundo atravs da proposio de imagens e
4 artes visuais cnicas, termo desenvolvido pelo grupo CenografiaBrasil para tratar de forma abrangente
os aspectos visuais do teatro que no se restringem apenas cenografia, que abarcam a indumentria,
os objetos cnicos, adereos e inclusive a iluminao.
5
espaos configurados a partir da linguagem teatral, mas no se pode ficar preso a esta
dificuldade ou simplesmente acomodar-se em atender s expectativas de um
determinado pblico.
O mundo-imagem a superfcie da globalizao. o nosso mundo compartilhado. Empobrecida,
obscura, superficial, esta imagem-superfcie representa toda nossa experincia compartilhada. No
compartilhamos o mundo de outro modo. O objetivo no est em alcanar o que est por baixo da
superfcie da imagem, mas em ampli-la, enriquec-la, conferir-lhe definio, tempo. Neste ponto emerge
uma nova cultura.5 Felipe Ehrenberg
Neste momento, alm de olharmos para a realidade atual, preciso retomar os
aspectos primordiais que norteiam a prtica e a reflexo artstica. As transformaes
requerem uma reviso de conceitos, uma busca ao seu estgio inicial antes de suas
tantas releituras e interpretaes. preciso inverter a lgica limitada colocando o
passado frente como algo que se pode enxergar, algo conhecido, vivenciado e, ao
mesmo tempo, pensar no futuro como algo que nos persegue, que percebido, mas
que no se consegue ver claramente, algo que surpreenda. Comear a pensar em um
futuro inimaginado, lanando mo das referncias que sempre acompanham o
processo criativo, colocando-as frente, em um plano visvel, cuidando para que no
se sobreponham tela ainda branca do que ainda est por ser criado. Assim com uma
outra postura, estaremos, quem sabe, mais libertos para apresentar espaos, criar
novas imagens, e no apenas represent-los.
O Cengrafo descrito segundo o Ministrio do Trabalho, como o
profissional que: formula o conceito artstico da cenografia, pesquisando a obra
artstica, seu contexto histrico, perfil das personagens, autor e contedo,
possibilitando a compreenso do texto; responsvel por dar corpo s palavras no
espao e no tempo e criar ambientes e atmosferas que valorizam e enfatizam a
concepo cnica; elabora projeto cenogrfico a partir de estudos preliminares do
espao cnico; da viabilidade na utilizao de materiais e de ajustes com equipes
(artstica, tcnica e de produo) que acompanham sua concretizao, coordenando e
5 Felipe Ehrenberg cita Susan Buck-Morss. Felipe Ehrenberg foi o curador do Mxico para a 5 Bienal do Mercosul. Susan Buck-Morss professora de Filosofia Poltica e Teoria Social, na Universidade de
Cornell, Nova York, EUA. Texto do catlogo da mostra: Rosa-dos-Ventos, Histrias da Arte e do Espao; Posies e Direes na Arte Contempornea. Fundao Bienal do Mercosul - Porto Alegre, 2005. p. 58.
6
supervisionando equipes de cenotcnica, produo cenogrfica e outras equipes
envolvidas na montagem da cenografia; elaboram projeto cenogrfico para adaptar
cenografia a novos lugares e espaos. (definio da CBO 2002)6.
Embora esta descrio paute-se essencialmente no contexto cnico7,
considerando a evoluo histrica da cenografia e a sua estreita relao com o evento
teatral, a realidade atualmente, no Brasil, apresenta-nos um profissional denominado
cengrafo que atua em reas distintas de expresses artsticas e tcnicas especficas.
reas que tm em comum o componente espao: Teatro, pera, Cinema, Televiso, Show, Carnaval, Exposio, Evento (das mais diversas naturezas), Parques
Temticos, Restaurantes, entre outros.
A Cenografia, por seu carter efmero e provisrio, parece ser o termo
encontrado para explicar algo que no ser to definitivo como se pressupe a
arquitetura. Tomando como parmetro a configurao da cena, ou a atribuio de
cnico, conseguimos identificar claramente a obra realizada como Cenografia em
algumas reas de atuao, como o caso, por exemplo, do cinema no qual estamos
diante de uma cena que vista por um determinado olhar, olhar recortado por uma
lente e registrado por uma cmera, e assim como no Teatro, dialoga com um
enunciado. Existe, entretanto, um desmedido emprego da nomenclatura Cenografia
para determinar, diferenciar ou valorizar o que muitas vezes , na verdade, um
trabalho de design de interiores, de decorao ou de arquitetura de interiores. No
podemos ignorar este quadro que assim se apresenta na prtica, mas por mais que
nos esforcemos, raramente identificamos o carter cnico em um estande de vendas
de um produto da empresa X ou na festa de aniversrio, ou de casamento de Y.
A discusso sobre se uma determinada criao Cenografia, decorao,
instalao ou outro termo, recorrente no Brasil, trazendo tona uma variedade de
reas de atuao do cengrafo, assim compreendidas. Esta proximidade de definies
pode ser resultante de alguns fatores, tais como: (1) em nossa cultura a descrio de
Cenografia at h pouco tempo baseava-se na definio francesa decorateur;
contexto no qual o cengrafo considerado de certa forma um tcnico; (2) reflexo do
nosso prprio mercado de trabalho, que permite ao profissional transitar de um campo 6 CBO Classificao Brasileira de Ocupaes documento que norteia normaliza e regulamenta as profisses. Este documento gerado pelo Ministrio do Trabalho. Em 2002, a CBO foi inteiramente
reeditada, atualizando descries de todas as ocupaes. A anterior datava da dcada de 1970. 7 Cnico: que se presta expresso teatral,,Patrice Pavis, Dicionrio de Teatro, Perspectiva, 1999, p.44
7
de linguagem para outro: do Teatro para o cinema, para publicidade, para o evento,
para cerimnia de casamento, e assim por diante.
De fato, na prtica, Cenografia no mais exclusiva do contexto teatral, seus
horizontes se ampliaram como linguagem artstica e para mercados comerciais. No
se discute aqui a valorizao ou no do trabalho ou obra do cengrafo em um campo
mais do que em outro, mas o foco recai sobre a Cenografia como linguagem artstica
atravs da qual pode-se expressar, artisticamente. Este emprego talvez um pouco
exagerado do termo cenografia/cengrafo ocorre, talvez, porque de fato remeta
qualidade de linguagem artstica, conferindo algum status.
Procuro entender esse movimento migratrio, essa qualidade que a Cenografia
tem de transitar de uma rea a outra de linguagem, como um ponto de ebulio
favorvel no apenas vivncia profissional, mas tambm reflexo, que talvez nos
impulsione a outras condutas, mantendo-nos em movimento. O que me parece, no
entanto, pouco motivadora a compreenso sobre esta prtica, pois deparamos-nos
ainda com um infeliz conceito, que se tornou, digamos assim, popular, de que tudo
que de mentira, fake, Cenografia. S piora quando algum nos solicita um
trabalho utilizando a seguinte expresso: dar uma cenografada. Ao ouvir esta frase,
percebe-se de imediato qual a expectativa que o indivduo que a props tem sobre o
que ver. O que ele busca com dar uma cenografada, limita-se, na maioria das vezes,
reproduo do mundo real, sem interpretaes, sem qualquer inteno de expresso
artstica, a expectativa por um tratamento de espao desprovido de qualquer
possibilidade de surpreender e muito menos de transformar.
Apenas para efeito de ordenao dos pensamentos, proponho a utilizao dos
conceitos: cenografia para as atividades relacionadas s reas de expresso artstica e cenografia aplicada8, para as atividades que atendem a uma solicitao
mercadolgica, a um cliente. Para o desenvolvimento desta pesquisa preciso que
fique claro que o foco , nestes termos, a cenografia. O que por sua vez no
desqualifica ou exclui a cenografia aplicada; considerando a possibilidade de que os
conceitos e investigaes aqui propostos sejam observados tambm por este ponto de
vista. Para a leitura do texto que se segue, os termos cenografia e cengrafo sero aqui utilizados considerando os conceitos e referncias histricas que reforam o
8 Cenografia Aplicada um termo aqui utilizado que empresto do Prof. Mrcio Tadeu, da UNICAMP.
8
contexto cnico inerente Cenografia. Procuro sustentar esta relao a partir do
conceito de cena, da forma como enfatizada por Patrice Pavis:
a cena (skene) - que junto com a orchestra (palco) e o thetaron (platia), formavam os trs elementos cenogrficos que definiam o espao teatral, no Teatro Grego atravs dos tempos evoluiu para o conceito de cenrio; posteriormente rea de ao, local da ao, segmento temporrio no ato e,
finalmente, o sentido metafsico de acontecimento brutal e espetacular.9 Patrice Pavis Em alguns pases onde a especializao marcante, torna-se muito difcil
transitar de uma rea para outra como se faz no Brasil. O que ocorre tambm que o
termo, melhor empregado, design10 se presta a uma localizao mais correta de uma
rea de atuao profissional. Ironicamente, a denominao cengrafo, que usamos no
Brasil, vem sendo recentemente utilizada na Frana, Inglaterra e outros pases, em
substituio a decorateur e theatre design, respectivamente. Estes conceitos e seus
desdobramentos, entretanto, devem ser compreendidos levando-se em conta a cultura
e o histrico desta linguagem artstica em cada pas. O ponto de convergncia entre
as diversas culturas e suas fronteiras reside justamente na discusso acerca do papel
do cengrafo na realizao teatral contempornea. Exemplo disto a publicao
What is Scenography?, de Pamela Howard11, na qual a autora deixa claro o desejo
de criar denominaes diferenciadas para distinguir o designer de teatro - aquele que,
digamos assim, presta um servio a um espetculo, criando a Cenografia, e o
cengrafo aquele que participa efetivamente da criao e das decises sobre o
evento em parceria com o diretor e com o produtor. Trata-se de uma provocao,
atravs da qual a autora busca reforar os distintos processos e resultados aos quais
estas relaes podem conduzir. A primeira definio ainda apresenta uma relao
hierarquizada, na qual o cengrafo figura como uma personagem mais submissa, de 9 Patrice Pavis, Dicionrio de Teatro, Perspectiva, 1999, p. 42. 10 Design, diante dos conceitos aqui lanados poderamos refletir sobre estas nomenclaturas e equvocos; pensando at na possibilidade de rebatiz-los! Tomando como exemplo o que acontece em
outros pases, veremos que existem diversas especificaes na formao em DESIGN (desenho/ projeto/
criao): costume design (desenho de figurinos), theatre design (desenho de cenografia teatral), set
design (desenho de cenrio), production design (cenografia de tv ou cinema); interior design (desenho de
interiores), graphic design (desenho grfico), fashion&txtile design (desenho de moda e tecnologia em
txtil),... 11 Pamela Howard, cengrafa, diretora e professora na Central Saint Martins School of London. What is Scenography?, London, Routledge, 2002.
9
quem se espera atenda a uma solicitao e, de outro lado, uma relao horizontal de
criao e participao inclusive sobre o que ser proposto como acontecimento teatral.
Estes questionamentos e novas proposies conceituais resultam da evoluo
da linguagem cenogrfica e de sua trajetria. Neste percurso at os nossos dias, se
por um lado, o trabalho do cengrafo: os cenrios, figurinos e objetos cnicos,
explorou o seu potencial ao mximo, chegando a uma certa exausto, de outro, foi
conduzido possibilidade de modificar, ampliar e fortalecer o seu dilogo com a
direo, a iluminao e com as demais disciplinas da realizao teatral. Quando este
dilogo de fato acontece no campo das relaes profissionais e artsticas, estes
indivduos passam juntos a criar um acontecimento que ser provido de atmosfera.
Assim como as fronteiras no mundo esto desaparecendo, podemos tambm
dizer que as demarcaes restritas entre as disciplinas de teatro: a arte, o espao, a
luz, a direo, a dramaturgia, a audincia, tambm esto se diluindo e dando lugar a
uma diferente maneira de criao onde o cengrafo assume enorme responsabilidade.
Ao considerarmos a Cenografia como co-responsvel pela elaborao da atmosfera
ou da unidade cnica, amplia-se a rea de ao do cengrafo, que deixa de colocar
elementos sobre o palco ou no espao de encenao para trat-lo como um corpo
nico, conferindo sentido ao todo de sua obra e esta por sua vez adquirindo um
sentido prprio no evento. O papel do cengrafo sem dvida modificou-se no contexto
da realizao teatral contempornea. Ser cengrafo hoje, significa mais do que
decorar um fundo ou ter uma idia visual para a performance dos atores. A idia
contempornea de Cenografia exige do profissional uma ao abrangente, que inclui
todos os aspectos visuais da realizao teatral, amplia sua responsabilidade sobre o
todo do espao cnico e por vezes, sobre o espao teatral, demandando afinidade
entre criadores que possuem, por sua vez, processos, responsabilidades e talentos
individuais. O cengrafo assim levado a refletir sobre sua prpria capacidade em
responder estas atribuies. Para alm desta possibilidade, ele deveria sentir-se
apto no apenas a atender a uma exigncia ou responsabilidade que lhe conferida,
mas possibilidade de conceber proposies artsticas que o leve, e a outros
colaboradores, a deflagrar processos criativos.
Na prtica, o cengrafo se depara com experincias diversas, algumas bem
sucedidas que colaboram para firmar parcerias com diretores e outros profissionais de
teatro. Outras, tambm positivas, mas que reforam as relaes verticais de criao.
Existem ainda, algumas no to bem sucedidas, que resultam muitas vezes de
10
despreparo profissional, da aceitao de uma responsabilidade que est alm da sua
capacitao, provocando o distanciamento entre profissionais e a perda de confiana
pelo diretor no cengrafo em geral. Evidentemente, h outros aspectos que podem
levar a experincias mal sucedidas, como simplesmente a incompatibilidade artstica,
que no causam necessariamente ruptura definitiva, mas novas buscas. Um processo
criativo conjunto, quando deflagrado de fato, torna-se to fundamental e valorizado
porque permite que a crtica e a reflexo, inclusive de ordem esttica visual,
contribuam para o desenvolvimento do projeto em questo e, especificamente ao fazer
cenogrfico, permita vivenciar em etapas, o processo criativo e, assim como em um
moto-contnuo, conduza a uma real transformao.
Durante o processo criativo, o cengrafo, ou o artista visual cnico, v-se
diante do momento no qual se faz necessrio apresentar suas propostas, submeter o
seu trabalho a uma apreciao do diretor apenas, ou, s vezes, de todo o grupo de
pessoas que participam da produo. Esta apresentao normalmente realizada
atravs de croquis, maquetes volumtricas, ilustraes, imagens de referncia, cores,
elementos reais para experimentao, enfim, utiliza-se dos sistemas de representao
dos quais dispe. A partir da produo deste material e sua exposio, a
comunicao, a troca, o trabalhar junto, o dilogo, e principalmente a colaborao, que
a palavra chave no contexto contemporneo, iro conduzir para a reflexo sobre o
seu processo e dos demais colaboradores, cada um em sua rea, e
conseqentemente para o resultado. Para tanto, cada artista colaborador deve estar
solidamente preparado para oferecer a sua melhor contribuio artstica neste
processo, deve estar seguro daquilo que representa a sua obra, deve conhecer bem
seus objetos de trabalho e dominar suas tcnicas, deve, portanto, estar bem formado.
...Para o cengrafo conquistar uma dimenso autocrtica ele deve primeiramente acreditar na sua prpria
capacidade artstica. quando eu afirmo que o cengrafo muito solitrio, e que a anlise final e
decisiva dele. A qualidade e capacidade do cengrafo depende disto. A dificuldade recai na capacidade
de reconhecer a deciso correta 12 Ralph Koltai.
12 BACKEMEYER, Silvia. Ralph Koltai: designer for the stage. London, Lund Humphries Publishers, 1997, p.6
11
Cengrafos e educadores precisam estar conscientes de suas
responsabilidade e possibilidades como artistas, ao mesmo tempo, tornar a arte e os
limites de suas responsabilidades melhores compreendidos. Os futuros cengrafos,
hoje estudantes, devem ser estimulados no apenas prtica da cenografia, mas ao
entendimento e convvio da prtica do teatro como um todo. Esta proposio deveria
valer em todas as direes, no apenas da Cenografia, mas da interpretao, da
produo, da encenao e da teoria. Essa pesquisa conduzida por duas questes
centrais que norteiam a investigao e a reflexo sobre este campo e que poderiam
ser tambm aplicadas s demais disciplinas do fazer teatral, a saber:
O que realmente importante para a formao do futuro cengrafo, que garanta a ele
o desenvolvimento como artista criador e da capacidade de desempenhar com
segurana o seu papel diante da cena contempornea?
Qual ser o caminho para uma relao produtiva entre os estudantes de Cenografia,
seus mestres e o Teatro contemporneo, para que evoluam artisticamente e
conseqentemente possam contribuir para o desenvolvimento deste Teatro?
12
A TEMPESTADE Uma ilha da Conscincia
Estamos nas pesquisas quase sempre a coletar impresses, opinies e
depoimentos acerca de experincias e processos. Achei pertinente, neste caso,
comear pelo meu percurso, propulsor para a realizao desta pesquisa. Discorro, em
poucas pginas, sobre os caminhos que me levaram prtica da Cenografia e sobre
algumas influncias e reflexes que me motivaram a retornar universidade a fim de
investigar sobre procedimentos de ensino e aprendizado no campo artstico,
especificamente, da Cenografia teatral.
Ser um artista no ter uma tcnica, ter algo a dizer Jean Guy-Lecat13
As impresses e informaes, os conhecimentos de natureza sensvel e
consciente que coletamos ao longo de nosso percurso so alimento para nossas
reflexes. As reflexes quando latentes se transformam e podem vir a provocar
alguma necessidade de exteriorizao. Esta capacidade, ou necessidade, de
transformar e externar , ao meu entender, uma qualidade do artista, e a expresso
artstica o fio condutor pelo qual buscamos compreender e dialogar com o mundo e
com o outro. A presena de vrias pessoas em um processo criativo, de maneira to
intensa como se d em uma equipe de produo teatral, conduz para a possibilidade
desta vivncia. Ao longo de nossa jornada, quando nos deparamos com outros artistas
que comungam nossos pensamentos mais intrnsecos e percepes do mundo ainda
no revelados por ns mesmos, que adiantam verbalmente aquelas que parecem ser
reflexes particulares, ou esboos de percepes em processo de clarificao, seu
discurso ressoa como uma segunda voz em nossos pensamentos que, de alguma
forma, colabora ou interfere, modificando nosso olhar. Assim estes encontros com o
humano so de grande valia, e o Teatro tem esta especificidade; para alm do
espetacular, o encontro com aqueles que praticam o Teatro pode ser to
transformador quanto o prprio evento teatral para o qual colaboram.
13 Jean Guy-Lecat durante o evento Scenofest, na 10 Quadrienal de Praga, Junho de 2003, Praga, Rep. Tcheca. J. Guy-Lecat cengrafo, arquiteto, diretor tcnico trabalhou com Peter Brook por cerca de trinta
anos, alm de outros diretores e grupos como Jean Vilar, Jorge Lavelli, La MaMa, Jean-Marie Serreau,
Luca Ronconi, Jean-Louis Barrault, Dario Fo, Roger Blin, Samuel Beckett. E pesquisador sobre a
comunicao cnica, estimulado pelo questionamento do espao teatral contemporneo e a reflexo
sobre a relao espectador/ator.
13
Encontrar Jean Guy-Lecat encontrar com algum que compreende e rene
na sua prtica importantes influncias deixadas pelas renovaes cnicas do nosso
tempo, uma espcie de elo, inspirado por Adolphe Appia, Gordon Graig e Meyerhold,
fala com propriedade sobre a vida que o espao tem e, a vida que conferimos ao espao. Preocupa-se com a relao entre o espao da performance e o espao da audincia, apia seu processo de trabalho na idia de um espao para alm da
Cenografia, o espao teatral, o que justifica sua longa parceria com o diretor Peter Brook e os demais diretores com quem trabalhou. A ressonncia de suas palavras,
assim como de outros artistas e pensadores nesta rea, quando os encontramos
presencialmente e no apenas atravs de pginas escritas, torna-se uma vivncia,
mais do que uma informao e ser processada como tal, inesquecvel,
transformadora.
Conheci Jean Guy-Lecat em 2003, durante a 10 Quadrienal de Cenografia de
Praga, minha terceira participao neste evento 1995, 1999, 2003. Pode parecer
pouco relevante esta referncia a um evento externo ao contexto brasileiro, mas
infelizmente desde que o Teatro, e principalmente, as Artes Visuais Cnicas perderam
seu espao na Bienal de Artes de So Paulo, a Quadrienal de Praga tornou-se uma
importante baliza para essa arte na contemporaneidade, sobretudo de alguns anos
para c, por promover tambm um espao de reflexo, de encontros e de dilogos
possveis nesse campo.
A PQ14 assim abreviada, que at 1995 apresentava-se mais como uma
vitrine, sem dvida riqussima por apresentar as produes e criaes sempre
atualizadas ampliou-se, talvez um pouco demoradamente, atendendo aos movimentos
e anseios que presenciamos na cena contempornea. Desde a edio de 1999,
passou a implantar um programa paralelo, atualmente nomeado Scenofest, um grande
ponto de encontro entre profissionais, educadores e estudantes. Nestas incurses tive
a oportunidade de conhecer pessoalmente Joseph Svoboda, debater com Ralph Koltai
sobre a essncia de A Tempestade, de W. Shakespeare, e conhecer a obra de
consagrados e emergentes artistas do panorama teatral do mundo inteiro nas reas
14 Quadrienal de Praga PQ a criao da Quadrienal de Praga, em 1967, foi conseqncia de um intercmbio instaurado entre o Instituto de Teatro de Praga e a Bienal de Artes de So Paulo, como
resposta ao desejo pela realizao de uma exibio especfica para Cenografia e Arquitetura Cnica, a
cada quadro anos. Atualmente a PQ organizada pelo Instituto de Teatro de Praga e pela OISTAT
Organizao Internacional de Cengrafos, Arquitetos Teatrais e Tcnicos.
14
das visualidades cnicas. Um universo incontestvel de ricas e sucessivas
experincias que realimentam o nosso fazer.
Tendo em vista este contexto, o que mais me interessa trazer tona a
importncia da interao, a disponibilidade para o encontro e para o estabelecimento
de relaes de intercmbio, atravs das quais surgem caminhos para o
desenvolvimento artstico e profissional. Uma das conseqncias que estas
experincias deflagram em mim o desejo por identificar e refletir sobre possveis
espaos para dilogos desta natureza em nosso contexto, no Brasil, entre
profissionais j estabelecidos e em formao na rea das visualidades cnicas. Diante
do contexto da prtica e do mergulho no campo do ensino deparei-me, ao longo
destes anos, com possibilidades concretas para constituir este tipo de dilogo.
Meu caminho inicial foi em direo s Artes Plsticas, e posteriormente ao
Design; demorei algum tempo para chegar ao Teatro, freqentava desde cedo as
Bienais, mas na poca pouco sabia sobre Cenografia. Aos dezesseis anos, quando
ingressei na universidade, havia assistido Macunama, de Antunes Filho, que ficou
para mim como uma marcante experincia. Minha incurso primeira no processo de
criao teatral, cerca de oito anos mais tarde, resultou em um impacto de sucessivas
emoes: a empolgao, o xtase, algum constrangimento, muita incerteza,
satisfao, insatisfao e ao final, o esvaziamento. Estes sentimentos no parecem
distantes daqueles que vivenciamos no dia-a-dia da criao em nosso fazer teatral,
apenas a medida deles que modifica a cada experincia. Este primeiro desafio para
com o Teatro ocorreu quando j estava formada, em 1990. Reunimo-nos, um grupo
variado de profissionais atores, bailarinos, cartunistas, escritores, artistas plsticos,
designers; todos muito motivados pela proposta de desenvolver um projeto para o
programa Jornada SESC de Teatro, hoje extinto, cujo tema naquele ano era
Shakespeare. Depois de pesquisarmos sua obra e lermos algumas peas, escolhemos
15
o texto A Tempestade. Com energia fizemos vrias leituras do texto escolhido e
realizamos reunies de criao; era de fato um grupo teatral iniciante em pesquisa.
Empolgada, parti a pesquisar simbologias e trazer tona o repertrio de Bruegel e
Bosh aos demais colegas, sem conhecer, no entanto, os sistemas especficos das
Artes Cnicas... Formatvamos o projeto para sua apresentao, quando, um dia,
acordei e me deparei com uma matria de jornal sobre Peter Brook, que acabara de
estrear em Paris... um espetculo sobre a mesma obra de Shakespeare. Foi um balde
de gua fria... Emergiram da a insegurana, a autocrtica e ento pensei: est tudo
errado! Estamos completamente equivocados! Para constar, a encenao de Peter
Brook dispunha de recursos visuais cnicos de forma hiper essencial, limpa e
despojada. A montagem utilizava, por exemplo, um pau-de-chuva para apresentar a
tempestade e a maquete de um navio sobre a cabea de um ator apresentando o
espao da cena do naufrgio. O minimalismo assim nomeado porque era um termo
muito em voga nesta poca, veio a se chocar com o nosso tratamento ilustrativo,
que buscava representar um mundo imagtico para a mesma A Tempestade.
Desistimos do projeto e, naquele momento, sinceramente, achei que nunca mais
chegaria perto do Teatro.
A Bienal15 de 1991, um ano depois, me levou ao reencontro com a Cenografia.
Lembro-me ainda hoje das reprodues e fotos dos cenrios de Josef Svoboda, seu
cenrio de cortinas de tiras com projees e imagens fragmentadas; a instalao
sobre o Teatro de Revista de Luiz Fernando Ramos, a sublime transposio para o
espao cnico de A Potica do Espao, de Gaston Bachelard, livro que eu acabara de
ler e que naturalmente ficou como a obra que mais me chamou a ateno, apesar de
suas reduzidas propores naquele gigantesco espao do edifcio da Bienal. A Bienal
de Artes de So Paulo, nas edies XX 1989 e XXI 1991 devolvia s artes visuais
cnicas um espao importantssimo para sua difuso. Ali estavam obras de Rosa
Magalhes, Daniela Thomas, Robert Wilson, Serban, Lasar Segal, Teatro Unio e
Olho Vivo, Peter Stein, Naum Alves de Souza, entre outros.
15 Bienal - refere-se a Bienal de Artes de So Paulo. Em 1959, a Bienal recebeu uma exposio especial criada por Frantiek Trster, da Tcheco-Eslovquia, que ilustrava o desenvolvimento da Cenografia e da
Arquitetura Cnica em seu pas no perodo de 1914-1959; exposio que foi premiada e cujo sucesso se
repetiria nas trs edies seguintes da Bienal. A Bienal de Artes de So Paulo at a dcada de 1960
apresentava projetos relacionados s Artes Visuais Cnicas e foi a percussora da Quadrienal de Praga.
Infelizmente, durante muito tempo temos sido privados desta participao, lembrando que somente em
1989 e 1991, sob a curadoria de Joo Cndido Galvo, pudemos reviver um pouco esta experincia.
16
A TEMPESTADE por Peter Brook, 1990-91
17
No ano seguinte, 1992, ingressava no Centro de Pesquisa Teatral, dirigido por
Antunes Filho, como aluna do departamento de Cenografia e Indumentria. Integrei o
ncleo at 1998, perodo que foi de grande importncia para uma aproximao com a
linguagem teatral e de desenvolvimento tcnico e profissional em Cenografia e
Indumentria. Desde ento, o Teatro passou a ser meu territrio e, paralelamente
tambm, os campos do Cinema e Exposies. Sendo a minha formao em Design e
j com uma boa experincia na prtica Teatral, senti a necessidade de complementar
algumas lacunas em minha formao em relao s Artes Cnicas. Enveredei, ento,
pelo campo de pesquisa motivada justamente pela discusso acerca da formao do
profissional cengrafo.
Este percurso pessoal tambm o percurso de muitos profissionais da
Cenografia, Indumentria, Iluminao e das reas tcnicas do Teatro. Existe de fato
uma escassa oferta de cursos de formao profissional nestes campos no Brasil e,
conseqentemente, uma grande informalidade desta capacitao e falta de
interlocuo com pensadores da rea e ainda, uma conscincia profissional. Muitas
vezes o prprio cengrafo nada sabe sobre a abrangncia ou limites de seu papel.
Como resultante desta realidade, muitas vezes nos vemos, ou a colegas, diante de um
conflito bastante comum, sobre como os outros profissionais vem o Cengrafo e
como estabelecida a relao de parceria. necessrio um tcnico para realizar uma
idia cenogrfica ou um artista poder colaborar com a criao da encenao? Um
dos aspectos que norteiam desde o princpio a conduo desta pesquisa o de
considerar o cengrafo, a priori, um artista, que, para alm de seu papel como
colaborador no desenvolvimento de um projeto, deve ser motivado inclusive a atuar
como o provocador do acontecimento teatral.
A relevncia em apontar a Bienal ou a Quadrienal, nesse trabalho, reside na
importncia deste tipo de evento como meio de difuso, encontro e reflexo das
linguagens artsticas. A participao das artes visuais cnicas colabora para refor-
las como tal, assim talvez seriam menos confundidas, a Cenografia, a Indumentria e
a Iluminao como atividades relacionadas tcnica, e passariam a ser mais
identificadas como linguagens. Embora a PQ parea um tanto distante de nossa
realidade, so incomensurveis as experincias e o aprendizado que nos oferece.
Profissionais, educadores, estudantes, pessoas de Teatro reunidas em um espao-
tempo concentrado, trocam impresses, palavras, imagens, expresses e tambm
tcnicas. A cada edio uma surpresa, a possibilidade de sublimao, algo novo a
aprender, a praticar e a aprimorar atravs do dilogo.
18
A PQ, na edio de 1999 levou-me ao reencontro com A Tempestade, e como
um ciclo que se completa, curiosamente ao mesmo tempo em que eu comeava a
assinar meus trabalhos de modo independente, encontrei o cengrafo Ralph Koltai,
em exposio individual, paralela ao evento. Chamou-me a ateno, evidentemente,
sua obra para A Tempestade, encenada em 1978 e, por uma breve, mas inesquecvel
hora, Koltai discorreu sobre seu processo criativo e de realizao da Cenografia, sobre
o conceito que partiu da leitura da obra escrita de Shakespeare. O cerne da obra,
segundo ele, reside na discusso sobre a natureza do homem, na qual conflitam o
selvagem e o intelectual e refere-se ao estado de equilbrio destas virtudes como o
que denominou: Uma Ilha da Conscincia. Assim confrontam-se o instinto apoiado na
personagem do selvagem Calib e o intelecto, a capacidade de formular o
pensamento, o raciocnio, presente supostamente nas demais personagens
humanizadas. Estes dois aspectos acabam por se demonstrarem complementares,
inerentes ao selvagem e ao ser racional, e assim como no processo criativo estamos a
aprender a lidar com ambos, no necessariamente equilibr-los, neste contexto. A
faculdade latente do instintivo, que apura nossa percepo e deixa emergir aquilo que
no necessariamente sabemos codificar ou justificar, mas que toca os sentidos ou
alma, e a faculdade do raciocnio, que reflete sobre aquilo que percebemos e formula
compreenses. A reunio destas faculdades permite-nos, segundo Kant16, na sua
Crtica da Razo Pura, desenvolver nossa capacidade para o conhecimento, tornar
consciente uma dada situao ou objeto percebido.
No mundo de hoje, em galopante desenvolvimento tecnolgico, constatar que
ser um artista mais do que simplesmente desenvolver uma tcnica pode parecer
bvio, mas ao ouvir esta frase sinto-me acometida de uma espcie de acordar; so
palavras que tm o efeito de acionar uma espcie de chave da conscincia.
Paralelamente, ao reler Kant reencontro o conceito sobre a qualidade daquilo que
fazemos como artistas visuais: sobre criar ou ver atravs de um objeto um outro
significado, no simplesmente se limitar imagem do objeto, mas transcend-lo.
Percebo que estes conceitos j esto intrnsecos ao tratamento conferido ao trabalho
artstico, manifestados naturalmente no decorrer do processo criativo. So conceitos j
conhecidos, que permanecem em um estado que no consciente, no ficamos o
tempo todo pensando isto, algo que conhecemos e retoma, passando a um estado
intuitivo, adquirindo o sentido de algo que foi aprendido de fato.
16 Immanuel Kant, filsofo alemo do sc. XVIII, sua obra Critica da Razo Pura, 1781 uma espcie de marco divisor de duas eras no pensamento moderno.
19
Maquete da cenografia: A Tempestade, Ralph Koltai, 1978,
Encenado pela Royal Shakespeare Company, Reino Unido.
20
Nosso conhecimento surge de duas fontes principais da mente,
cuja primeira a de receber as representaes e a segunda
a faculdade de conhecer um objeto por estas representaes(..).
A nossa natureza tal que a intuio no pode ser seno sensvel,
isto , contm somente o modo como somos afetados por objetos.
Contrariamente a faculdade de pensar o objeto da intuio
sensvel o entendimento. Nenhuma dessas propriedades deve ser
preferida outra. Sem sensibilidade nenhum objeto
nos seria dado, e sem entendimento nenhum seria pensado.
Pensamentos sem contedo so vazios,
intuies sem conceito so cegas.
Portanto, tanto necessrio tornar os conceitos sensveis,
quanto tornar as suas intuies compreensveis.
Estas duas faculdades ou capacidades tambm no podem trocar as
suas funes. O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada
pensar. O conhecimento s pode surgir da sua reunio.
Por isso, no se deve confundir a contribuio de ambos, mas h
boas razes para separar e distinguir cuidadosamente um do outro.
Conseqentemente, distinguimos:
a cincia das regras da sensibilidade em geral, isto , a ESTTICA,
da cincia das regras do entendimento em geral, isto , a LGICA.
Crtica da Razo Pura17 - Immanuel Kant
17 Crtica da Razo Pura, Immanuel Kant. Traduo de Valria Rohden e Udo Baldur Moosburguer, inclui vida e obra de Kant, So Paulo, Nova Cultural, 1987.pgs 55 e 56.
21
A PRTICA DA CENOGRAFIA
22
Proponho uma aproximao com o campo da prtica cenogrfica a partir de
um exerccio de desconstruo dos conceitos relacionados Cenografia, e da
identificao destes com os principais aspectos que constituem o seu fazer. Convido
a uma reflexo sobre a proximidade da Cenografia com outras linguagens, ou reas.
Fao uso inclusive de conceitos formulados por profissionais da Cenografia teatral
contempornea na ilustrao destas abordagens.
A Cenografia, a medida em que se confunde com o design de interiores, a
decorao e a arquitetura de interiores, uma realidade brasileira na atualidade, v
confundidos, ou poderamos dizer, ampliados, alguns de seus conceitos. A Cenografia,
no Brasil, dependendo em qual contexto proposta, aparece muitas vezes reduzida a
menos do que um conceito, a um adjetivo: falso, como algo que no real, que uma
reproduo, uma mentira. Embora isto ocorra mais distante do Teatro, nota-se um
reflexo deste equvoco inclusive nas Artes Cnicas. Novas geraes que esto
emergindo, formal ou informalmente, confundem muitas vezes o cengrafo com
cenotcnico, o figurinista com costureira, convidando-os a resolver uma idia que
algum formulou. O cengrafo reduzido de algum que cria para algum que copia,
representa, executa ou produz, desconsiderando a possibilidade de a Cenografia
apresentar um espao, um conceito. Na prtica, muitas vezes, necessrio esclarecer que o cengrafo um artista e potencial colaborador.
Se por um lado existe uma m compreenso sobre o papel do cengrafo, por
outro nos deparamos com a evidente ampliao de sua responsabilidade. Este ampliar
horizontes por sua vez conduz discusso sobre o que se configura como atribuio
do cengrafo, na realidade da prtica. Conseqentemente ele, o cengrafo, levado a
refletir sobre a sua capacidade em responder a estas atribuies, e tambm, a refletir
sobre seu potencial como artista criador diante das diferentes reas de atuao e
especficas exigncias de cada linguagem. No apenas no Brasil, mas no mundo,
existe de fato uma reflexo, uma busca por uma redefinio para o que faz no
apenas o cengrafo, mas tambm o diretor de arte, o set designer, o scenographer; o
production designer. Estas discusses, como se v, no se limitam ao Teatro.
23
Cenografia :
Entre publicaes estrangeiras e nacionais, registros e depoimentos coletados
de cengrafos brasileiros e estrangeiros, existem mais de uma centena de definies
para responder O que Cenografia?. Tantas que permitiria escrever um livro
comentado a partir delas. Afinal, qual a necessidade de criarmos tantos conceitos para
definir Cenografia? Por que no sabemos explicar com clareza o que fazemos? Por
que no h clareza sobre o papel do cengrafo? Por que as definies existentes no
so suficientes, no exprimem verdadeiramente o que a cenografia hoje? Ou por
que se trata de uma percepo artstica, e cada artista a v atravs de sua prpria
subjetividade?
Alguns conceitos sobrevivem atravs dos tempos porque tratam daquilo que
essencial Cenografia. Por outro lado, s vezes um tanto abrangentes, ao serem
descontextualizadas podem suscitar outras leituras. Enquanto outras definies, ao
contrrio, carregam em si a referncia cena, ao lugar teatral, ao argumento, ao.
Entre as definies que encontrei, a que mais me agrada porque toca em dimenses
que determinam a questo do onde e do quando, do carter eventual, conceito to
apropriado para o acontecimento teatral, e que definem a participao da linguagem
cenogrfica neste contexto, :
Cenografia a Arte do Tempo e do Espao18. In Suk Suh
Ainda assim sinto alguma falta nesta definio. Falta que talvez resida na
diferena cultural onde esta sntese no se faz to auto-suficiente... Dentre os diversos
conceitos elaborados, muitos so formulados por profissionais do Teatro e, portanto,
relacionados diretamente linguagem teatral. Podemos praticar o exerccio de aplicar
conceitos existentes s diversas reas de atuao que utilizam o termo Cenografia e
verificar se resistem verdadeiramente ou se a rea em questo demanda outra
especificidade em relao responsabilidade, funo, expresso, ou linguagem.
18 In Suk Suh citado por Pamela Howard, What is Scenography?, London, Routledge, 2002 ,pg.XV.
24
Atravs da linguagem, tanto no que diz respeito s terminologias, quanto
maneira que desenvolve o olhar e define os objetivos, possvel identificar grupos
profissionais passveis ou no de interlocuo. Na realidade da formao tortuosa do
cengrafo no Brasil, a linguagem especfica do Teatro, do Cinema, da pera, da
Dana, etc., precisa ser aprendida neste movimento migratrio que nos permitido na
prtica das artes visuais cnicas.
A linguagem reflete o mundo e nossa interao com o mundo de diversas maneiras. Conseqentemente,
h muitos tipos de diferentes palavras, com diferentes significados (funes) e diferentes modos de se
relacionar com o mundo. A linguagem, segundo Wittgenstein determina os limites do meu mundo 19.
Hans Reichenbach
19 Hans Reichenbach, 1891 1953. Filsofo alemo, de contribuies importantes anlise do raciocnio probabilstico, lgica e filosofia da matemtica, mecnica quntica, espao, tempo, e teoria da
relatividade. A Linguagem do Espao e do Tempo, Perspectiva, 1972, pg. 11.
25
Cenografia e Acontecimento Teatral
Cenografia o espao eleito para que acontea o drama ao
qual queremos assistir. Portanto, falando de cenografia,
poderemos entender tanto o que est contido em um espao
quanto o prprio espao 20. Gianni Ratto
A Cenografia, do ponto de vista dessa pesquisa, considerada como uma
forma de expresso artstica que rene arte e tcnica na criao da espacialidade e de
visualidade que prope, ou dialoga com, concepes de carter cnico. Busco reforar
este contexto teatral da Cenografia recorrendo sua definio em algumas
circunstncias histricas relevantes.
A Cenografia na antigidade, para os gregos, assim denominada
Skenographia, constitua-se como a arte de adornar o Teatro. No Renascimento
passou a ser tratada como a tcnica de representar em um plano bidimensional, em
um telo, uma imagem em perspectiva; imagem que serviria para situar a ao teatral
em um determinado lugar representado de forma realista. J na passagem do sculo
XIX para o sculo XX, ela ganha definio de escritura cnica, uma forma de explicar
sua transposio de pintura bidimensional escultura ou arquitetura, de carter
tridimensional. Diante da evoluo da encenao, a Cenografia deixa de ser um
elemento meramente ilustrativo, ou decorativo, para tornar-se um dispositivo visual
que ganha presena e participao na comunicao ao pblico do argumento21
proposto pelo evento teatral, no apenas um lugar onde a ao se passa, mas como a
relao proposta entre o texto, a ao e a recepo. No contexto do Teatro
contemporneo, a Cenografia apresenta-se tambm como a arte de adaptar os
espaos teatrais ou no convencionais aos processos desencadeados para a
realizao de um acontecimento teatral.
20 Gianni Ratto, Anti-tratado de Cenografia, Senac, 1999, pg. 22. 21 argumento, termo utilizado para definir o assunto ou o que se quer dizer; ser abordado adiante, na pg 52.
26
Acontecimento teatral, por sua vez, adotando o termo pela definio, de Patrice
Pavis, como a representao teatral, no apenas no ficcional de sua fbula, mas em sua realidade de
prtica artstica que d origem a uma troca entre ator e espectador22. Constitui, portanto, a criao
de uma situao que rena presencialmente seres humanos em uma relao de ao
e recepo, situao que gera a necessidade de determinao de um espao-tempo.
O acontecimento teatral rene os componentes de expresso verbal e no-
verbal, criando uma inter-relao entre eles. A Cenografia responsvel por parte da
expresso no-verbal da representao. Os elementos, uma vez reunidos, passam a
fazer parte de um todo que ir dialogar, ou comunicar, com a audincia, mas
continuam a manter alguma individualidade narrativa, complementando um ao outro.
Cenografia como Linguagem Artstica
Cenografia o trabalho de um artista que no pode
ser expresso em palavras 23. Ezio Frigerio
Na contemporaneidade estamos diante de questionamentos sobre at onde
podemos ir, romper limites, recriar parmetros; discutimos a prtica do tudo pode,
que no privilgio da Cenografia. Prtica que se apresenta como uma via de mo-
dupla, podendo nos levar para vrios caminhos, adiante, na busca pela transformao,
nos manter no mesmo lugar, estanques, ou ainda, remeter ao passado.
Vivemos cercados por informaes, referncias e tendncias que recebemos
ou acessamos permanentemente. O que fazemos com elas? Nem sempre sabemos
selecionar os campos de informao; a curiosidade e acessibilidade s informaes
nos lanam a labirintos. s vezes refletimos sobre estes dados, s vezes no. Ao
refletirmos, o que faremos depois? Poderemos exterioriz-las ou no nossas
reflexes. A Arte carrega em si a qualidade de manifestao que permite ao indivduo
a exteriorizao de seus pensamentos de forma expressiva, assim o processo:
recepo reflexo exteriorizao, para o artista, deve ser completo para que seja
renovador.
22 Patrice Pavis, Dicionrio de Teatro, Perspectiva, 1999, p.6. 23 Ezio Frigerio citado por Pamela Howard, What is Scenography?, London, Routledge, 2002 ,pg.XV.
27
Na medida em que se esvazia o pote comea uma nova jornada, para qual o
individuo j no mais o mesmo da jornada anterior, porque fez a transformao.
Quando uma manifestao intelectual ou artstica apresenta-se desprovida de
critrios, de parmetros, sem conceitos claros, sua comunicao torna-se difcil.
como se no processo: recepo reflexo exteriorizao, a segunda etapa, da
reflexo, fosse suprimida e, a partir da informao passssemos direto
exteriorizao, sem processar os dados, sem, portanto, transform-los, empobrecendo
o processo que finda por resultar em uma simples repetio.
O cengrafo como artista vivencia este processo; seja ele completo ou no, e
certamente transparecer no resultado de seu trabalho. Atravs da Cenografia
enquanto linguagem artstica, podemos expressar nossos pensamentos, reflexes, e
emoes, medida que deixamos aberto para que os elementos significantes
presentes na Cenografia possam ser interpretados pela audincia, no apresentados
de forma fechada, com uma leitura nica.
Entender a Cenografia como linguagem artstica, permite identificar, a meu ver,
o diferencial entre a cenografia e a cenografia aplicada. A cenografia aplicada, pode
ser definida como o uso da linguagem cenogrfica para outros fins que no a
expresso artstica, dirigida ao contexto mais comercial das reas da comunicao,
como a publicidade, a exemplo de eventos de carter publicitrio: feiras, estandes, e
afins. Neste caso, a Cenografia atende a um carter mais informativo,
responsabilidade de levar ao publico um conceito preciso, um olhar, um ponto de vista
pr-definido, fechado, definido pelo cliente..
A arte distingue em geral a inteno de comunicar e a vontade de dizer algo preciso: pode-se querer
comunicar, ainda que uma parte da mensagem no evidencie a intencionalidade. assim com o teatro e
com outras formas de arte: a riqueza dos signos, a extenso e a complexidade dos sistemas que formam,
vo infinitamente alm da inteno primeira de comunicar. Se h perda de informao no que respeita ao
projeto inicial, h tambm ganhos imprevistos24. Anne Ubersfeld
As acepes dos termos cenografia ou cenografia aplicada se configuram de
acordo com a inteno para a qual so empregadas, ou ainda, pela funo que
desempenham. Essencialmente definem-se pelo dilogo que ser estabelecido
atravs dos componentes que integram sua criao e realizao.
24 Anne Ubersfeld, Para Ler o Teatro. Perspectiva, So Paulo, 2005, pgs. 18 e 19.
28
Cenografia e Tcnica necessrio que os artistas de toda natureza lembrem-
se sempre que a Arte absoluta quando est no domnio
do sentimento, mas que precisamente uma tcnica no
instante de sua exteriorizao 25. Santa Rosa
Santa Rosa resume claramente a fronteira entre o artstico e o tcnico na Arte
e conseqentemente na Cenografia. Cada linguagem dispe de seus prprios e
especficos dispositivos tcnicos para sua realizao. Estes sistemas se modificam
tambm de acordo com o seu contexto, no apenas no que toca o desenvolvimento
tecnolgico, mas a disponibilidade de recursos. A especificidade tcnica atende
principalmente proposio do espao teatral, seja ele um edifcio teatral, um espao
inusitado ou um espao especfico. Atende tambm s solicitaes do enunciado e da
encenao, como por exemplo, na Grcia Antiga, deus-ex-Machina, uma espcie de
grua, que tinha a funo de trazer ao palco um Deus para resolver um conflito que os
homens comuns no conseguiam dissolver. Trata-se essencialmente de um conjunto
de tcnicas relacionadas s propriedades dos materiais, ferramentas disponveis e s
convenes da encenao em cada contexto.
O artista que no domina e no conhece os detalhes dos dispositivos tcnicos
para a realizao de sua obra restringe o seu prprio processo criativo. Na Cenografia
contamos com o profissional cenotcnico para a realizao da obra, mas isto no nos
isenta da necessidade de conhecer as propriedades dos materiais, ferramentas, seus
limites, possibilidades de manipulao e principalmente a maquinaria do espao
teatral. Se durante muito tempo o cengrafo ou seu correspondente no Teatro se
viram aprisionados s formas pr-definidas de encenao e o rigor de utilizao de
sistemas cnicos para fins especficos, hoje nos perguntamos se queremos utilizar os
recursos tcnicos especficos da predominante caixa italiana. O quanto estes
mecanismos ilusionistas nos interessam na criao de uma obra cenogrfica. Os
sistemas cnicos de carter tcnico disponveis atualmente atendem s nossas
necessidades? So acessveis? O que se pode dizer que a cada experincia
configura-se uma realidade especfica para a realizao tcnica de uma criao que
deve ser compreendida desde o incio do processo. A cada vivncia aprenderemos
alguma tcnica nova e ao longo do nosso percurso precisamos estar abertos e atentos
s exigncias tcnicas e dispostos a novos aprendizados.
25 Santa Rosa, Teatro Realidade Mgica, Cadernos de Cultura, Ministrio Educao e Sade, s/data.
29
Cenografia e Artes Plsticas
Todas as Artes Plsticas so artes do espao (...) no existe
arte plstica fora do espao e, quando o pensamento humano
se exprime no espao, toma necessariamente forma plstica.
(...) este territrio comum, o espao, pode ser tomado como o
eixo de uma rosa-dos-ventos 26. Paulo Srgio Duarte
A referncia rosa-dos-ventos nos conduz imagem da espacialidade, os
360 da rosa-dos-ventos imaginada em progresso vertical configuram a imagem de
um cilindro ou, se formos mais longe, uma esfera, que a exemplo de A Tempestade,
de Ralph Kotai, pode ser a representao do inconsciente, ou simplesmente um
espao vazio sem limites, espera do humano que o transforme atravs da
exteriorizao de seus pensamentos. O espao sem dvida o ponto mais
representativo em comum entre a Cenografia, as Artes Plsticas e a Arquitetura.
A compreenso acerca de um espao, desenhar um espao, ocup-lo, a
criao de elementos visuais neste espao, sua composio, cor, luz, so atribuies
que integram o processo de criao do cengrafo, que os relaciona a partir de um
argumento proposto realizao do acontecimento teatral. Estes componentes so
tambm relacionados ao universo referencial do homem em seu contexto. A
especificidade de criao da Cenografia teatral est vinculada e em constante dilogo
com um projeto amplo, que trata, alm das visualidades, com o argumento, com a
presena, a ao, o ator, um lugar, a recepo, o espectador.
Em relao s Artes Plsticas podemos dizer que, esta a princpio, encerra nas
visualidades o seu argumento, podendo utilizar outros elementos, mas no
necessariamente. Nas Artes Plsticas, nem sempre temos o encontro presencial fsico
do artista e do espectador, o que temos a sua obra que o representa, a qual nem
sempre apresenta a possibilidade de se modificar atravs da presena do outro;
quando isto acontece, a ela podemos pensar em atribuir a qualidade de performance.
Nesta linguagem de expresso artstica iremos encontrar a maior proximidade da
26 Paulo Sergio Duarte, curador geral da 5 Bienal do Mercosul. Texto extrado do catlogo da mostra: Rosa-dos-Ventos, Histrias da Arte e do Espao; Posies e Direes na Arte Contempornea.
Fundao Bienal do Mercosul - Porto Alegre, Setembro de 2005.
30
cenografia com as Artes Plsticas; reforo esta aproximao com a definio de
Patrice Pavis:
A Performance, ou performance art, expresso que poderia ser traduzida por teatro das artes visuais,
associa, sem preconceber idias, artes visuais, teatro, dana, msica, poesia e cinema... O performer no
tem que ser um ator desempenhando um papel, mas sucessivamente recitante, pintor, danarino, ..., um
autobigrafo cnico que possui uma relao direta com os objetos e com a situao de enunciao27.
A Performance28 no se utiliza, a priori, do edifcio teatral para sua
apresentao, dando preferncia a galerias, museus, rua, etc. O teatro, por sua vez,
tambm j no d necessariamente preferncia ao edifcio teatral, nem galeria, nem
ao museu, podendo se valer de espaos e paisagens que sejam apropriados
presena do artista e do espectador e, principalmente, ao desenvolvimento da
encenao. Na Cenografia, assim como nas artes plsticas, utilizamo-nos de sistemas artsticos e sistemas tcnicos atravs dos quais expressamos nossas idias. No teatro
estamos habituados a pensar que a metfora surge a partir de um argumento-texto;
mas podemos ampliar nossa perspectiva para a possibilidade de que surja atravs de
um argumento-ao, um argumento-sonoro, ou um argumento-imagem. Um exemplo
de argumento imagem como ponto de partida pode ser identificado em alguns
trabalhos do grupo XPTO nos processos desenvolvidos por seu diretor e cengrafo
Osvaldo Gabrielli.
A Cenografia, a meu ver, mantm alguma proximidade das Artes Plsticas, e
muitas vezes confundida com Instalao, o que me leva a tomar a seguinte posio: a
Cenografia no uma instalao, porque mesmo que o argumento seja um som ou
uma imagem, h a priori a determinao da presena do humano em uma relao de
ao e recepo; por outro lado, poderamos considerar que a instalao a
ocupao de um espao ou paisagem, sua composio, aliada presena da
performance - pode adotar qualidades de Cenografia.
27 Patrice Pavis, Dicionrio de Teatro, Perspectiva, 1999, p.284. 28 Performance, ainda por Patrice Pavis, Dicionrio de Teatro, apresenta um resumo de um artigo de Andra Nouryeh, que distingue cinco modalidades de performance, dentre elas uma delas que
pertinente ao trabalho: Explorao de espao e tempo atravs de deslocamentos, em cmera lenta, das
figuras: como em Walking in na Exaggerated Manner Around the Perimeter of a Square, de Rinke(1968).
31
Cenografia e Arquitetura
Cenografia a soluo dramtica do espao; se a
arquitetura uma gigantesca escultura tridimensional ao
ar livre, ento a cenografia para mim, uma forma de
transformar do avesso o interior de uma escultura em
qualquer espao concreto29 Jaroslav Malina Tendo o componente espao, no trabalho do cengrafo, ampliado para alm
dos limites da ao do ator; passando este profissional a preocupar-se com a maior
amplitude de um espao dado, poderamos pensar que, nesta medida, o cengrafo
assume um papel prximo ao de um arquiteto ao deparar-se com a elaborao de um
todo espao. Da mesma forma, o arquiteto pode passar a acreditar que pode assumir
o papel de cengrafo. Existem de fato diferenciais relevantes entre o papel do
cengrafo e do arquiteto no que concerne criao de um espao.
Isoladamente, pode-se pensar que no h diferenciais. No entanto, o espao
para a Cenografia existe necessariamente como um espao de interlocuo entre o
artista e a audincia, durante um acontecimento teatral; trata-se portanto, de espao
que existe na durao de um acontecimento em um dado contexto pr-determinado
para tal. A Arquitetura, por sua vez, organiza o espao que ser posteriormente
utilizado pelo homem. Quando este espao j no for mais passvel de adaptaes,
ento chega o momento para que o homem trate de estabelecer o seu dilogo com
ele. O projeto arquitetnico, na maioria das vezes est submetido a um cliente, a uma
condio scio-econmica.
O argumento mais imediato, que colabora para uma discusso superficial na
comparao entre as duas linguagens, o carter efmero do espao na Cenografia,
e o carter de sua permanncia na arquitetura. Ao propormos uma locao como
espao de ao: um prdio, uma vila, um hospital, um hospcio, uma rua, e at mesmo
um edifcio teatral escolhido por sua tipologia, no temos a garantia de que faremos
alguma modificao concreta nestes espaos. A arquitetura presente poder servir de
cenrio, assim como o palco vazio. O que neste caso efmero? O espao? Ou a
ocupao eventual deste espao durante um determinado tempo, com a presena do
29 Jaroslav Malina citado por Pamela Howard, What is Scenography?, London, Routledge, 2002, pg.XIV.
32
humano e da relao propagada neste espao-tempo? E afinal qual a atribuio do
cengrafo neste evento? Poderamos dizer que ao recortar o olhar do espectador para
uma determinada arquitetura ou para uma determinada organizao espacial do palco,
ele, o cengrafo, estar responsvel por propor uma ou mais imagens que sero
relacionadas visualmente quele evento especfico. O espao para o cengrafo,
efmero e provisrio, s tem sentido quando da presena do humano, da ao e
interlocuo que este prope em relao aos demais seres humanos, o que
complementar sua existncia, sua organizao, conferindo-lhe sentido e vice-e-versa.
A criao de um espao efmero, por sua vez, no d garantias de que se trata de
uma Cenografia. A Cenografia trata do espao que tem qualidade efmera, provisria,
mas que, anteriormente forma, configura-se como espao cnico, diante da
presena de uma interlocuo entre seres humanos no contexto de um acontecimento
teatral. O espao, para o cengrafo, est necessariamente relacionado a esta
interlocuo.
Cenografia, Espao e Tempo
Cenografia o mundo da imaginao, o lugar onde eu posso
viajar atravs do futuro e do passado e trazer meu prprio
mundo para o palco30. Georgi Alexi-Meskhishvili
Os conceitos de Espao e Tempo esto, desde sempre nesse projeto, sob
investigao, por se tratarem no apenas de componentes do pensamento e da
criao cenogrfica, mas tambm por serem fortes orientadores do processo do
aprendizado, segundo Kant. O caminho que me levou melhor compreenso destes
conceitos passou pela fsica, pela filosofia e me levou de volta arte. A intuio em
associar a cincia arte me fez pesquisar e refletir sobre a influncia da fsica nuclear
na Arte Moderna. A idia de transposio do tempo-espao pela matria, sua
composio e seu estado mutvel, os conceitos de massa, energia, partculas,
propondo uma nova ordem, e possibilitando conceitualmente o rompimento com a
concretude da matria, com a realidade visvel. Como conseqncia das descobertas
na fsica nuclear, por detrs deste mundo visvel emergiu, nas Artes Plsticas, a
possibilidade de um mundo imaginrio - o Pontilhismo, a Arte Abstrata, o Surrealismo, 30 Georgi Alexi-Meskhishvilin citado por Pamela Howard, What is Scenography?, London, Routledge, 2002 ,pg.XVI..
33
etc. Coincide tambm com a redescoberta do inconsciente, no campo da Psicanlise,
proposto por Freud. Nas Artes Cnicas, o Teatro descortinou o teatro, trazendo vista
do espectador o seu processo, revelando o que antes estava por trs do visvel - a
maquinaria, infra-estrutura, equipamentos de iluminao, tudo vista, sem truques. O
mundo representado pelo Teatro tornou-se realidade imaginada, carregada de
simbolismos, contemplada pela abstrao. Neste contexto, a noo de espao-tempo
contnuo tambm se modificou, dando lugar idia de dimenses e desdobramentos
destas dimenses de espao e tempo. Os tratamentos conferidos ao espao e ao
tempo libertam-se para uma reordenao: fragmentam, sobrepem espaos; invertem
e suspendem o tempo. Ao mesmo tempo em que aproximam fisicamente os humanos
presentes, rompem a quarta parede, criam um todo, uma unidade que abrange os
espaos destinados ao e recepo.
A Linguagem do Espao e do Tempo, e o Teatro Espao e Tempo so conceitos fundamentais no campo da fsica, onde no
existe apenas um conceito para defini-los. Os conceitos so construdos ao longo da
histria e da forma como as teorias os absorvem, ou seja, dependem essencialmente
do contexto e do modo como nele se manifestam. Quando perguntamos: onde algo
est? Ou onde algo aconteceu? Para onde algo/algum vai? De onde algo/algum veio? estamos evidentemente nos remetendo idia de espacialidade. A idia de
tempo, por sua vez, aplica-se a qualquer objeto que contenha informao sobre, ou
esteja situado em relao a alguma localizao temporal, algum evento, momento,
data, etc. Neste caso perguntamos: Quando algo aconteceu? Com relao ao espao
o que pode parecer contraditrio, na verdade uma questo de posicionamento, de
ponto de vista; o tempo, ao contrrio, no dispe de recursos para impedir uma
contradio. A diferena basicamente reside no fato de que o espao tem trs
dimenses e o tempo apenas uma. Enquanto espaos distintos acontecem
simultaneamente e um dado objeto pode mover-se entre eles, o tempo no est em
relao a alguma outra coisa, a uma ou outra pessoa, o tempo nico, os diversos
tempos acontecem sucessivamente, segundo Reichenbach:
Se no h mudana, no existe tempo; esta dimenso do tempo, no trata de mutao, mas de
movimento, uma questo de ordenao31.
31 Hans Reichenbach, citado por Lacey, Hugh M. A Linguagem do Espao e do Tempo, traduo a partir do original Space and Time, Editora Perspectiva SP, 1972, pg. 24.
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Frase que pode ser ilustrada com o pensamento: uma causa nunca posterior
ao seu efeito ou que um evento no pode ocorrer em dois instantes diferentes. Ainda
do ponto de vista da fsica, temos a afirmao de que um objeto no ocupa dois
espaos, pois mesmo que imaginemos um espao contido dentro de outro e o tal
objeto relacionando-se com ambos, o que teremos ser um objeto em relao aos
limites de um espao que ocupa em determinado momento. Suprimir o espao no
parece possvel por este olhar; imaginemos que estamos diante de um espao repleto
de coisas, como seria este espao vazio? Somos capazes de visualiz-lo vazio, sem
todas as coisas, talvez faltem alguns detalhes, mas ainda sim, ser possvel inclusive
estimar sua dimenso p-direito (altura), profundidade, largura. Se depois disto,
tentarmos excluir o espao como um todo, conseguimos imagin-lo? E com relao
ao Tempo, como seria suprimi-lo? A percepo que temos do espao provm de uma
mesma natureza que a nossa percepo sobre o tempo?
O Espao soa, para mim, como um elemento mutvel, capaz de ser
transformado, o Tempo, por outro lado, ao qual percebemos passar na vida real no
se transforma, no podemos aceler-lo ou suspend-lo, a no ser atravs da
imaginao. Enquanto a fsica nos limita a definir o conceito de espao a partir de um
evento concreto e no a eventos subjetivos como, por exemplo, percepes,
lembranas, desejos, sensaes, experincias, as Artes Cnicas nos conferem a
possibilidade de manipular, de certa forma, esta ordem, para dizer e mostrar ao
espectador, ainda que aparentemente, que um mesmo elemento possa ocupar dois
lugares distintos, ou dimenses distintas simultaneamente, apresentar espaos e
elementos que suscitem lembranas, sensaes. Permite ainda situar um mesmo
elemento em pocas tempos diferentes e mais, apresentar a conseqncia antes
da sua causa, permite inclusive suspender o Tempo e suprimir o Espao.
Espao e Tempo no contexto teatral so somados narrativa, ao e
movimento, como componentes atravs dos quais podemos propor alguma
transformao, ou seja, so elementos que permitem a transposio do argumento e
da ao a uma outra localizao temporal e espacial. Consente inclusive a
justaposio dos tempos e espaos propostos pela obra inicial e pela sua
interpretao, desde, claro, que lhe sejam conferidos intenes e significados
expressos na relao estabelecida para com o pblico. A Cenografia trata, portanto,
de olhar atravs de diferentes janelas espaciais e temporais, para criar ou produzir
sentido atravs dos componentes visuais que ir orquestrar, considerando possveis
transformaes para os personagens/atores, como tambm para os espectadores.
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O Tempo e o Espao, no contexto teatral, no so restritos a quando e onde
aconteceu. Importa alm da dimenso do espao e o tempo de durao do evento, o
momento, a referncia que se faz a um determinado espao e tempo. O tempo assim
se divide em: tempo real e tempo dramtico. A proposio sobre o tratamento do
espao e do tempo pode ser construda pelo roteiro ou dramaturgia, pela direo,
pelos elementos visuais da obra, pelo espao em si. Isso pode ser exemplificado
considerando uma dada situao: um espao inusitado, uma rua, onde o
acontecimento teatral ter lugar luz do dia, situao na qual no h controle sobre
esta iluminao. Neste caso ser difcil propor a existncia de tempo dramtico, ou
seja, levar o espectador a transcender a percepo de tempo, ficando assim ele, o
espectador, retido na dimenso de tempo real, o que pode ser, em alguns casos, parte
da inteno cnica. Mas ainda assim, o movimento que ter lugar neste espao
poder colaborar para conduzir o espectador a distanciar-se por um momento da
realidade.
No espao, unidades de tempo so expressas pela sucesso de formas, portanto pelo movimento. No
tempo, espao expresso pela sucesso de palavras e sons, ou seja, por duraes de tempo variados
que prescrevem a extenso do movimento . Deste modo, tempo definido pelo movimento atravs do
espao, e o espao definido pelo movimento atravs do tempo 32. Adolph Appia
O espao teatral no se limita ao cenrio ou ao edifcio teatral. Ele um
conjunto vivo e orgnico que resulta do dilogo com a luz, o som, o movimento, a
presena humana, que se modifica porque se modificam as relaes e intenes
atravs dos diferentes contextos culturais, temporais, histricos e polticos. O Tempo
teatral por sua vez tambm no se limita a uma seqncia de unidades de tempo
somadas que resultam em passado ou futuro. Ele , da mesma forma que o espao,
um elemento vivo e orgnico, no qual as dimenses temporais se fundem, se
sobrepem e o ritmo percebido atravs das imagens reveladas pelo espao. So
fundamentalmente Espao e Tempo os aspectos que revelam nossa percepo que
estamos diante de uma fbula, ou iluso.
32 Jay M. King, Rets in Time and Space, tese de mestrado, Universidade da Flrida, Escola de Teatro, 2004, pg. 8 cita Adolph Appia. The Work of Living Art, 1960.
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Espao Cnico, Espao Teatral e Cena
O espao dramtico possui as mesmas caractersticas que a
imagem potica. Sua propriedade inseparvel o esp