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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS (MESTRADO)
ADEL FERNANDA LOURENZI FRANCO ROSA
O item porem em contextos diversos nos sculos XIII-XV: anlise de
condicionantes morfossintticos para sua gramaticalizao
Maring
2010
ADEL FERNANDA LOURENZI FRANCO ROSA
O item porem em contextos diversos nos sculos XIII-XV: anlise de
condicionantes morfossintticos para sua gramaticalizao
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Letras (Mestrado), da
Universidade Estadual de Maring, como
requisito parcial para obteno do grau de Mestre
em Letras, rea de concentrao: Estudos
Lingusticos.
Orientadora: Prof. Dr.
MARIA REGINA PANTE
MARING
2010
ADEL FERNANDA LOURENZI FRANCO ROSA
O item porem em contextos diversos nos sculos XIII-XV: anlise de
condicionantes morfossintticos para sua gramaticalizao
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Letras (Mestrado), da
Universidade Estadual de Maring, como
requisito parcial para obteno do grau de
Mestre em Letras, rea de concentrao:
Estudos Lingusticos.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. MARIA REGINA PANTE
Universidade Estadual de Maring - UEM
- Presidente
Profa Dr. ANA CRISTINA JAEGER HINTZE
Universidade Estadual de Maring UEM
Profa Dr. VANDERCI DE ANDRADE AGUILERA
Universidade Estadual de Londrina UEL/Londrina-PR
AGRADECIMENTOS
A Deus, por me dar foras em todos os momentos e por ter permitido que eu vencesse mais
uma etapa de minha vida;
Aos meus pais, Francisco e Cyntia, que sempre me incentivaram e apoiaram na busca pelo
conhecimento e, s minhas irms, Tatiana e Cassia, que me ajudaram a perceber que
conseguiria vencer os desafios;
Aos meus sogros Jos e Denair e, a minha cunhada, Eliane, pelo apoio e incentivo em todas as
situaes;
Ao meu marido Jean, que compreendeu os meus momentos de ausncia e que acreditou em
mim;
Prof. Dr. Maria Regina Pante, pela dedicao, pela pacincia e pela disponibilidade como
orientadora, e tambm pela generosidade em compartilhar comigo seus estudos e
conhecimentos;
Prof. Dr. Ana Cristina J. Hintze, pelo carinho e pelas leituras e sugestes apontadas no
exame de qualificao;
Prof. Dr. Vanda de Oliveira Bittencourt, pelas crticas pertinentes e pelas observaes
sugeridas no exame de qualificao;
Prof. Dr. Vanderci de Andrade Aguilera, pelas observaes sugeridas na defesa;
amiga Adriana dos Santos Souza, que sempre se mostrou disposta a ajudar;
A todos da Escola Municipal Victor Beloti, em especial, a Neuza Gomes Cazeta e a Amlia
Bovolin, pela torcida;
Andrea Previati, pelas conversas e esclarecimentos.
"No me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero o esplndido caos de onde emerge a sintaxe;
os stios escuros onde nasce o de, o alis,
o o, o porm e o que, esta incompreensvel
muleta que me apia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho o Verbo. Morre quem entender.
A palavra disfarce de uma coisa mais grave, surda-
muda, foi inventada para ser calada.
Em momentos de graa, infreqentssimos,
se poder apanh-la: um peixe vivo com a mo.
Puro susto e terror."
(Adlia Prado)
RESUMO. Esta pesquisa examinou o percurso de mudana lingustica do item porem, em
textos dos sculos XIII, XV e XV, e observou, mediante levantamento exaustivo do item em
quatro obras (Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence (sc. XIII-XIV), Virgeu de
Consolaon (final do sc. XIV e incio do XV), Orto do Esposo (fim do sc. XV) e Leal
Conselheiro (sc. XV)), quais fatores puderam ser apontados como gatilhos para essa
mudana. Ou seja, o item porem, originariamente advrbio, com valores semntico-textuais
de por isso, por esse motivo, por essa razo, por causa disso, provenientes de seu
timo latino, passa a exercer o valor hoje utilizado, de conjuno, com valor adversativo. A
fim de identificar o perodo em que isso pode ter ocorrido, adotamos a anlise de frequncia,
apontada por Bybee, que se divide em frequncia token, referente ao nmero de ocorrncias
do item nos corpora, e a frequncia type, que aponta as funes exercidas pelo item em
estudo. Os objetivos especficos foram: a) estudar o item porem em relao s frequncias
token (nmero de ocorrncias) e type (quais as funes que o item apresentou nas obras
selecionadas; b) investigar quais os fatores que possivelmente representaram o gatilho da
gramaticalizao do item porem; c) analisar o estgio de gramaticalizao no qual o item se
encontrava at o sculo XV. Concluda a pesquisa, identificamos que, embora o valor
explicativo ainda fosse o valor predominante nas sincronias pesquisadas, houve um nmero
considervel de contextos negativos (o item negativo antecedia o item porem, negando-o),
bem como contextos nos quais o item porem sucedia clusulas causais, adversativas e
concessivas, o que passou a favorecer, de fato, uma interpretao adversativa para o item.
Palavras-chave: item porem; gramaticalizao; frequncias token e type.
ABSTRACT. The present research examined the linguistic change path of the item
porm from the Brazilian Portuguese language in texts from the 13th, 14
th and 15
th centuries
and observed which factors could have been pointed out as triggers to this change. In order to
achieve this goal, the item porm was exhaustively scanned in four pieces of written texts
that were: Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence 13th-15
th centuries; Virgeu de
Consolaon 14th century end and 15
th century beginning; Orto do Esposo 15
th century end;
and Leal Conselheiro 15th century. The item porm was originally used as an adverb with
the textual-semantic values coming from its Latin etymon of this way, for this reason,
because of that and has started to exercise the value of conjunction with an adverse meaning
as it is used nowadays. In order to identify the period of time in which that change might have
happened, we adopted the analysis of frequency studied by Bybee that is divided into token
frequency the one that refers to the number of occurrences of the item researched in the
corpora and the type frequency the one that points out the functions exercised by the item
studied. The specific objectives of this study were: a) studying the item porem in relation to
the token and type frequencies (respectively the number of occurrences and what were the
functions presented by the item into the selected texts); b) investigating the factors that have
possibly represented the triggers for the gramaticalization of the item porm; c) analyzing the
gramaticalization stage in which the item was until the 15th century. When the research was
concluded, we observed that even though the explanatory value was predominant in the
synchronies studied there was a significant number of negative contexts in which the negative
item came before the item porm negating it, and contexts in which the item porem came after
the causative, adversative and concessive clauses as well, and that was what favored an
adversative interpretation for the studied item.
KEY-WORDS: item porem; gramaticalization; token and type frequency.
LISTA DE QUADROS
Quadro 1. Ocorrncias de poren nas Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (sculo
XIII~XIV)
Quadro 2. Ocorrncias de poren no Virgeu de Consolaon (sculo XIV~XV)
Quadro 3. Ocorrncias de poren nOrto do Esposo (sculo XV)
Quadro 4. Ocorrncias de poren no Leal Conselheiro (sculo XV)
Quadro 5. Ocorrncias de poren nos sculos XIII~XIV
Quadro 6. Ocorrncias de poren nos sculos XIV~XV
Quadro 7. Ocorrncias de poren no sculo XV
Quadro 8. Dados totais de ocorrncias de poren nos sculos XIII, XIV e XV
SUMRIO
INTRODUO ......................................................................................................................... 1
1. GRAMATICALIZAO .................................................................................................... 4
1.1 Breve histrico ................................................................................................................ 4
1.2 Conceitos de gramaticalizao ..................................................................................... 5
1.3 Princpios, processos, mecanismos e parmetros ....................................................... 10
1.4 Gramatizalizao de conjunes ................................................................................. 13
1.5 O item porem: etimologia e definies ........................................................................ 17
2. MATERIAL E METODOLOGIA ..................................................................................... 23
2. 1 Material ........................................................................................................................ 23
2. 2 Metodologia .................................................................................................................. 23
3. ANLISE ............................................................................................................................ 31
3.1 Anlise sincrnica: token e type .................................................................................... 31
3.2 Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence ......................................................... 31
3.3 Virgeu de Consolaon ................................................................................................... 34
3.4 Orto do Esposo ............................................................................................................. 42
3.5 Leal Conselheiro ........................................................................................................... 56
3.6 Aplicao dos princpios de Hopper ........................................................................... 63
3.7 Discusso dos dados ..................................................................................................... 64
CONSIDERAES FINAIS .................................................................................................. 69
REFERNCIAS ..................................................................................................................... 71
ANEXO .................................................................................................................................. 77
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Os estudos que abordam a histria da Lngua Portuguesa se tornaram frequentes a
partir do fim do sculo XIX e se estende at os dias de hoje. No apenas em Portugal, mas
tambm no Brasil, inmeros estudos tm trazido riqussimas contribuies para o
conhecimento e a observao do processo de constituio histrica da lngua, de suas
transformaes morfolgicas, semnticas, sintticas e pragmticas, que ocorreram do perodo
arcaico at o portugus contemporneo.
No Brasil, o trabalho pioneiro da prof Dr Rosa Virgnia Mattos e Silva, que deu
incio a esses estudos, com a publicao de Estruturas trecentistas: elementos para uma
gramtica do portugus arcaico, em 1989. Em fins de 1990, iniciou o Programa para a
Histria da Lngua Portuguesa (Prohpor), grupo de pesquisa vinculado ao Departamento de
Letras Vernculas do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, integrado linha
de pesquisa Constituio Histrica da Lngua Portuguesa do Programa de Ps-Graduao em
Lngua e Cultura, do qual coordenadora at o momento. Este grupo estuda a lngua
portuguesa desde suas origens at meados do sculo XVI, perodo arcaico, e, a partir da,
aborda questes para a histria do portugus brasileiro.
H outros linguistas que vm dedicando suas pesquisas ao estudo de nosso idioma, a
saber: o Grupo de Estudos Funcionalistas (GREF) da Pontifcia Universidade Catlica de
Minas Gerais, no interior do qual a Prof. Dr. Vanda de Oliveira Bittencourt coordena o
projeto Histria do Portugus: uma abordagem lingustica e sociocultural, que descreve
nossa lngua em suas variaes brasileira e europia.
Alm desses trabalhos, citamos o grupo Discurso & Gramtica, que se distribui em trs
sedes: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN) e Universidade Federal Fluminense (UFF), de que fazem parte, entre outros,
Maringela Rios de Oliveira, Maria Luiza Braga, Sebastio Josu Votre, Maria Anglica
Furtado da Cunha, Mrio Martelotta, Maria Maura Cezrio, grupo de So Jos do Rio
Preto/SP: Sebastio Carlos Leite Gonalves, Sanderlia Roberta Longhin-Thomazi, Maria
Clia Lima-Hernandes, Vnia Cristina Casseb-Galvo, da Universidade de So Paulo Ataliba
Teixeira Castilho, dentre outros linguistas renomados em todo o pas.
Um dos interesses desses grupos de estudo a investigao histrica das mudanas e
dos fatos lingusticos. Dentre essas mudanas, uma ainda pouco estudada o percurso do item
2
porem, que apresenta estatuto gramatical que tangencia entre as categorias de advrbio e
conjuno. A esse respeito, citamos dois trabalhos significativos divulgados em forma de
artigo: o de Mattos e Silva, publicado j h algum em tempo em Portugal, e o de Longhin-
Thomazi, ambos com referncias completas no final desta dissertao.
Com a finalidade de verificar e explicar essas mudanas lingusticas, optamos por
empregar os estudos sobre gramaticalizao, pelo fato de ter se apresentado como um dos
mecanismos mais contemplados, uma vez que a lngua est em constante processo de
mudana. A gramaticalizao constitui um tipo especial de mudana que explicita como
unidades ou construes de base lexical, em certos contextos lingusticos, passam a apresentar
funes gramaticais e, se j gramaticalizadas, podem vir a demonstrar funes ainda mais
gramaticais.
Nesta pesquisa, tivemos como objetivo geral investigar a ocorrncia do item porem em
trs sincronias do portugus com o intuito de identificar em quais contextos era possvel
apontar interpretaes semnticas diversas daquelas apontadas pela sua etimologia. Para
tanto, examinamos textos na ntegra de trs sincronias do portugus. Trata-de se de obras de
carter religioso, como as Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence (sc. XIII-XIV), o
Virgeu de Consolaon (final do sc. XIV e incio do XV) e o Orto do Esposo (1380-1390 ou
fim fim do sc. XV) e/ou moralizante, como o caso do Leal Conselheiro (1428-1435 ou sc.
XV). Os objetivos especficos foram:
1. estudar o item porem em relao frequncias token (nmero de ocorrncias) e a type
(quais as funes que o item apresenta) nas obras selecionadas;
2. investigar quais os fatores que podem representar o gatilho da gramaticalizao do
item porem;
3. analisar o estgio de gramaticalizao em que o item se encontrava at o sculo XV.
Utiliza-se, para tanto, pressupostos de base funcionalista, mais especificamente os
princpios de Hopper (1991), para a investigao do estgio de gramaticalizao do item e,
ainda, os trabalhos de Bybee (2003, 2001 e 1994) sobre os tipos de frequncia token e type.
O trabalho se divide em 3 captulos, assim distribudos:
Captulo 1: conceitos, princpios, processos, mecanismos e parmetros que norteiam o
processo de gramaticalizao, os quais foram suporte para anlise, especialmente, por meio
dos princpios de Hopper.
3
Captulo 2: procedimentos metodolgicos empregados na elaborao e realizao da
pesquisa.
Captulo 3: comentrios aos gneros textuais para justificarmos a escolha dos corpora
selecionados para nossa pesquisa anlise dos corpora e discusso dos resultados obtidos.
Nas consideraes finais, retomamos os objetivos gerais e especficos propostos e a
perspectiva para novos estudos.
CAPTULO 1. GRAMATICALIZAO
1. 1 Breve histrico
Ao verificarmos que o sistema lingustico est em constante renovao, que novas
funes e formas surgem at mesmo para algumas j existentes, nota-se que a preocupao e
o interesse de alguns linguistas tm se voltado para a emergncia dessas alteraes
lingusticas. Um dos mecanismos de estudo a gramaticalizao (doravante GR).
A gramaticalizao inicialmente considerada a partir do momento em que uma
unidade lingustica comea a adquirir propriedades de formas gramaticais e, caso j tenha o
estatuto gramatical, esta amplia sua gramaticalidade.
O estudo do processo de GR tem como um dos seus norteadores o Funcionalismo, que
reflete a influncia do sistema gramatical do funcionamento discursivo, ou seja, explica a
interao entre as motivaes internas ao sistema e as motivaes externas a ele, chegando a
postular que a GR um fator de equilbrio entre tais foras em competio, equilbrio esse
que permite a prpria existncia da gramtica (DUBOIS, 1985).
Alm disso, o panorama funcionalista de anlise de fenmenos lingusticos tem se
estabelecido como um importante paradigma para estudos que investigam o conhecimento de
fenmenos ligados ao uso da lngua, abrangendo aspectos evidentes, tais como: a variao, a
mudana, a emergncia das funes e a organicidade das formas que as realizam.
Ao se falar em GR, alguns pontos causam controvrsias, que acabam por classificar,
de certa forma, os estudiosos do assunto, de acordo com o tipo de trabalho ou metodologia
que adotam em seus estudos. Para alguns, a GR dita processo, para outros, paradigma; para
uns pode ser um fenmeno diacrnico, para outros, sincrnico.
Os linguistas que tratam a GR como processo abordam a identificao e a anlise de
itens que se tornam mais gramaticais. Os que a consideram paradigma se centram no modo
como as formas gramaticais e construes surgem e como so usadas. Tambm podem adotar
as perspectivas diacrnica e sincrnica, a primeira volta-se para a explicao do surgimento e
desenvolvimento na lngua de formas gramaticais e a segunda busca em uma forma lingustica
seus graus de gramaticalidade a partir dos deslizamentos funcionais que so atribudos a ela,
por meio do uso. H ainda uma terceira possibilidade de anlise: a pancrnica, que abrange as
duas perspectivas anteriores.
5
Ao adotarem uma ou outra abordagem, os estudiosos apontam muitas formas de tratar
a GR, desde os que a restringem mudana de itens lexicais at os que preferem abord-la
acima do nvel da palavra; e, ainda, h as diferenas de conceitos, definies, estgios,
princpios, mecanismos e motivaes, que contriburam e contribuem para a fixao de um
estatuto terico.
Dada a complexidade do estudo do processo de GR, pela diversidade de estudiosos, de
conceitos e de princpios, a fim de contemplar os objetivos deste trabalho, sero abordados
alguns pontos pertinentes GR, a saber: conceitos, princpios, processos, mecanismos e
parmetros.
1.2 Conceitos de gramaticalizao
H diversos conceitos de GR na literatura pertinente ao assunto, da a dificuldade em
apresentar uma nica forma de definir esse fenmeno. Dessa forma, sero apresentadas as
mais difundidas.
A obra de Meillet (1912) referncia praticamente obrigatria em qualquer trabalho
que se dedique GR, especialmente por ser a primeira a enfocar claramente esse processo,
retomando, como ponto de partida, a perspectiva diacrnica. Em seus estudos, o autor
estabelece trs classes de palavras as principais, as acessrias e as gramaticais e prope
haver entre elas uma transio gradual. As palavras gramaticais seriam resultado de um
processo originado sobre as principais. A esse processo, Meillet se referiu com o rtulo de
GR, que seria, ento, a atribuio de um carter gramatical a um termo anteriormente
autnomo. (Meillet, 1912, p. 131)
Em sua obra de 1912, Linguistique Historique et Linguistique Gnrale, Meillet
apresentou o que mais se aproxima da concepo atualmente aceita do processo de GR:
processo de mudana lingustica pelo qual itens lexicais, com referentes extralingusticos, vo
gradativamente assumindo sentidos e funes intralingusticas, at que, aps percorrer um
pressuposto continuum de conceptualizaes e de funes lingusticas, paralelamente ao
desgaste fnico, podem vir a desaparecer enquanto formas. Meillet cunhou a denominao
Gramaticalizao e a focalizou, no motivado pela tipologia lingustica, e sim pelos estudos
de Lingustica Histrica, visto que a aplicava a fatos da histria do indo-europeu. Outra
contribuio de Meillet foi o estabelecimento de distines importantes entre os conceitos de
6
renovao e de analogia, alm de ter ampliado o sentido de gramtica ao incorporar-lhe a
questo da ordem das palavras nas frases.
Meillet (1975), ao citar a analogia como processo de criao de formas, retoma
Hermann Paul (1889), o qual j havia tecido reflexes acerca desse tipo de mudana,
observada principalmente na linguagem infantil. Para Paul (1889),
uma forma j existente, com significao idntica, no desaparece
subitamente com o aparecimento do neologismo anlogo. No
concebvel que a primeira empalidea simultaneamente em todos os
indivduos, de forma que a palavra formada por analogia possa impor-
se sem obstculos. Muito mais frequentemente acontece que alguns
indivduos conservam sempre a velha frmula enquanto outros se
servem j do neologismo. Mas continuando a haver entre uns e outros
um convvio constante, acabar por dar-se um ajustamento. Portanto
ambas as formas tm de tornar-se correntes para um nmero maior ou
menor de indivduos. S depois de longa luta entre ambas as formas
que o neologismo pode reinar sozinho. (PAUL, 1889, pp.125-126)
Para Meillet (1975), o segundo procedimento, a GR, o mais importante, pois pode
mudar o sistema lingustico, ao criar formas que substituem as existentes ou introduzir
categorias para as quais no havia expresso lingustica antes. (Apud LONGHIN, 2003, p.
9)
Para o pesquisador, o processo considerado principalmente diacrnico e gradual e
haveria trs classes de palavras: palavras principais (um verbo locativo, por exemplo),
palavras acessrias (um verbo de ligao) e palavras gramaticais (um verbo auxiliar), entre
as quais h uma transio gradual que estaria relacionada ao esvaimento de sentido e de
forma. Essa transio decorre da unidirecionalidade do processo. Dessa maneira, do ponto de
partida da GR, haveria um item lexical e, no ponto de chegada, um item gramatical.
Os estudos sobre GR foram esquecidos por dcadas, mesmo com os trabalhos de
Meillet, devido publicao da obra de Saussure, Curso de Lingustica Geral (Cours de
Linguistique Gnrale), publicada em 1915.
Apenas a partir na dcada de 70 o princpio de GR foi retomado por outros linguistas
que fizeram surgir novas pesquisas sobre o tema. Entre eles citamos, principalmente, os
alemes Lehman, Heine, Claudi, Hunnemeyer, os norte-americanos Givn, Hopper, Traugott,
Bybee, Pagliuca. Esses autores fazem uso de diferentes perspectivas e de nomenclaturas
http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Curso_de_Lingu%C3%ADstica_Geral&action=edit&redlink=17
distintas para conceituar esse processo. Por isso, so encontradas designaes diversas, tais
como: gramaticalizao, gramaticizao, descoramento semntico, sintaticizao,
enfraquecimento semntico, desvanecimento semntico, condensao e reanlise. Optamos
por adotar o termo GR, por ser o mais recorrente.
Ao lado da definio clssica de Meillet (1975), est a de Kurylowicz, tambm
assumida por Lehmann (1995):
processo em que se verifica a ampliao dos limites de um morfema,
cujo estatuto gramatical avana do lxico para a gramtica, ou de um
nvel menos gramatical para mais gramatical, isto , de formante derivatio para formante flexional. (apud NEVES, 2004, p.115)
Heine adota essa mesma linha para definir o processo de GR:
[a gramaticalizao consiste n]o crescimento dos limites de um
morfema que avana de um item lexical para um valor gramatical ou
do menos para o mais gramatical, i.e., de um formante derivatio para
formante flexional. (Heine et al. (1991a, p. 3)
Diante disso, pode-se dizer que, nessa fase, a GR era tida, como afirmam Heine et al.
(1991, p. 2),
um processo que pode ser encontrado em todas as lnguas conhecidas
e que pode envolver qualquer tipo de funo gramatical, quando uma unidade ou estrutura lexical assume uma funo gramatical, ou
quando uma unidade gramatical assume uma funo ainda mais
gramatical.
As definies at ento apresentadas tinham como base a de Meillet (1912), no
entanto, os estudos de GR passaram a examinar fenmenos at ento no-discutidos, como o
caminho percorrido por certas formas lingusticas e tambm as construes gramaticais
emergentes. Dessa forma, o alcance do termo GR se expandiu e novas definies foram
necessrias.
8
Podemos dividir os novos estudos de GR a partir do enfoque dado na anlise dos
fenmenos: o recorte temporal, a direo de mudana e o discurso.
No primeiro ponto, o recorte temporal: diacronia, sincronia e pancronia, autores como
Traugott & Heine (1991) defendem que a GR remete a um processo lingustico diacrnico e
sincrnico (o primeiro volta-se para a explicao do surgimento e desenvolvimento na lngua
de formas gramaticais e o segundo busca em uma forma lingustica seus graus de
gramaticalidade a partir dos deslizamentos funcionais que so atribudos a ela, por meio do
uso); anteriormente os estudos se voltavam apenas para a diacronia.
Quanto direo da mudana, os estudos de GR partem do discurso para a sintaxe.
Temos nos estudos de Givn (1979), adotados por Genetti (1991), Haiman (1994), Herring
(1991), Hook (1991), Hopper (1991), Lichtenberk (1991) e Shibatani (1991), a apresentao
de um processo cclico: discurso > sintaxe > morfologia > morfofonmica > zero.
Votre (1999) prope uma nova concepo:
Processo de regularizao que se verifica num fenmeno qualquer,
medida que a generalizao progressiva do uso vai fazendo com que ele passe do nvel do discurso, em que h ampla liberdade de
variao, para o nvel da gramtica, em que se regulariza e em que
diminui ou cessa a liberdade de variao. O conceito aplica-se
tambm aos itens j presentes na gramtica, que evoluem para uma conformao ainda mais gramatical, se admitimos que os itens da
gramtica no so entidades discretas, e sim plos de um contnuo,
em que certas classes de itens esto mais prximas do lxico, enquanto outras ocupam diferentes posies no continuum da
gramtica. (VOTRE, 1999)
Passando para uma nova fase, a GR vinculada aos estudos da lingustica descritiva e
histrica, indo a investigao para alm do lxico e da morfologia. Givn (1979) quem
primeiro apresenta em suas anlises o discurso, aqui entendido como macrossintaxe, e no no
sentido de interao, ao utilizar a frase de Hodge (1970) a morfologia de hoje a sintaxe de
ontem, afirmando que a sintaxe de hoje o discurso pragmtico de ontem.
A partir dos trabalhos de Givn, um campo de pesquisa foi aberto, surgindo os estudos
de Bybee (1994), que trata das categorias de tempo e aspecto, de Hopper & Traugott (1993),
que consideram a coordenao e a subordinao.
9
Um dos conceitos imprescindveis para o estudo relacionado ao processo de GR a
possibilidade de um elemento lexical, que assumia uma determinada classificao, passar a ter
um atributo gramatical diferenciado - recategorizao.
Na recategorizao de categorias lexicais, Hopper & Traugott (1993, p. 104)
observam o seguinte continuum:
Categoria maior Categoria mediana Categoria menor
[Nome, Verbo, Pronome] [Adjetivo, Advrbio] [Preposio, Conjuno]
No Brasil, muitos estudos sobre GR tm sido realizados, dentre os quais citamos os de
Martelota (1996), Cunha, Costa e Cezario (2003).,
Martelotta (1996, p.59) define a gramaticalizao como
um processo de mudana unidirecional, segundo o qual elementos
lexicais e construes passam a desempenhar funes gramaticais,
tendendo, com a continuidade do processo, a assumir novas funes
gramaticais. Com a gramaticalizao, o elemento tende a se tornar
mais regular e previsvel em termos de uso, pois perde a liberdade
sinttica caracterstica dos itens lexicais, quando penetra na
estrutura tipicamente restritiva da gramtica. (MARTELOTTA,
1996, p. 59).
O processo de GR singulariza, segundo Furtado, Costa e Cezario (2003, p. 51), a
trajetria
a) dos elementos lingusticos do lxico gramtica (ex.: verbo pleno > verbo auxiliar: o
verbo ir pleno no sentido de movimento, passa a verbo auxiliar em construes como vou
fazer, em vez de farei);
b) de categorias menos gramaticais para categorias mais gramaticais, como o de categorias
invariveis para categorias flexionais (ex.: menos > menas).
Como apontado anteriormente, os estudos sobre GR continuam sendo de interesse
para muitos linguistas, da o alargamento do campo dos fenmenos que tm sido analisados.
10
Embora ainda haja dificuldade em se apresentar um nico conceito para GR, os estudos atuais
comprovam que muito se tem a ser explorado nessa rea de conhecimento.
1.3 Princpios, processos, mecanismos e parmetros
Assim como a definio, os princpios, os processos, os mecanismos e os parmetros
da GR no so ainda apresentados com exatido e clareza pelos autores.
De acordo com Gonalves et al. (2007), as alteraes sofridas pela gramtica,
verificadas na GR, ocorrem na fonologia, na morfologia, na semntica e na sintaxe em todas
as lnguas naturais.
Lehmann (1995[1982]) o que, primeiramente, melhor simplificou os estgios da
gramaticalizao, levando em considerao as categorias lexicais: sintatizao,
morfologizao e desmorfologizao. No primeiro estgio, os itens ou construes passam a
adquirir propriedades que no as de origem, procedendo a uma recategorizao; no segundo,
h o surgimento, na lngua, das formas presas, sejam elas afixos flexionais ou derivacionais e,
no terceiro estgio pode ocorrer o desaparecimento por completo do morfema, sendo sua
nova funo assumida por outros itens com os quais ele co-ocorre. Segundo Martelotta et al.
(1996), difcil encontrar um consenso no estabelecimento dos mecanismos referentes ao
processo de GR. No entanto, pode-se dizer, segundo os autores, que a GR pode ocorrer tanto
por processos de natureza metafrica quanto de natureza metonmia.
Quanto GR por meio do processo metafrico, um dos exemplos mais utilizados o
das mudanas que fazem o percurso ESPAO > (TEMPO) > TEXTO, em que elementos
designativos de espao passariam a ser usados como organizadores do universo discursivo,
podendo, em um estgio intermedirio, expressar noo temporal.
Para Dubois et al. (1978, p. 56), o processo de metonmia ocorre quando
uma noo designada por um termo diferente do que seria
necessrio: as duas noes esto ligadas por uma relao de causa e
efeito (a colheita pode designar o produto da colheita e no a prpria
ao de colher), por uma relao de matria a objeto ou de continente
a contedo (beber um copo), por uma relao da parte ao todo (uma
vela no horizonte).
11
No que diz respeito fixao de princpios para a GR, Heine e Reh (apud HOPPER e
TRAUGOTT, 1991) so os primeiros a estabelecer parmetros para estudos posteriores. Os
estudiosos apresentam sete princpios, a saber:
a) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais ela perde em
complexidade semntica, significncia funcional, e/ou valor expressivo;
b) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais ela perde em pragmtica
e ganha em significncia sinttica;
c) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais reduzido o nmero de
membros que pertencem ao mesmo paradigma morfossinttico;
d) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais sua variabilidade
decresce, isto , sua posio se torna fixa na orao;
e) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais seu uso se torna
obrigatrio em alguns contextos e agramatical em outros;
f) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais ela se funde semntica,
morfossinttica e foneticamente com outras unidades;
g) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais ela perde na substncia
fontica.
No texto clssico On some principles of gramaticalization (1991), Hopper prope
outros princpios. O linguista ressalta, ao estabelecer as etapas desse processo de mudana
lingustica, o seu objetivo em suplementar a caracterizao proposta por Lehmann (apud
CASTILHO, 1997a), cujas proposies explicam a GR de formas em estgios bem
avanados, nos quais o reconhecimento do processo inegvel. Para Hopper (1991), os
princpios devem buscar responder questo do mais ou menos gramaticalizado,
identificando fases anteriores ao estgio, em que as formas seriam consideradas parte da
gramtica.
Hopper (1991) aponta cinco princpios:
a) estratificao: dentro de um domnio funcional amplo, novas camadas emergem
continuamente. Quando isso ocorre, as camadas mais antigas no so necessariamente
descartadas, mas podem continuar a coexistir e a interagir com as camadas mais novas; esse
12
princpio aponta para a gradualidade do processo e para a polissemia das formas. O autor
apresenta um exemplo de formas verbais do ingls: take/took (camada mais antiga), em que
ocorre alternncia das vogais para distinguir presente e passado, que coexiste com a
alternncia em walk/walked, (camada mais recente), em que ocorre a alternncia /t/ e /d/; ou
seja, o surgimento de uma camada mais recente no implicou o desaparecimento da camada
mais antiga;
b) divergncia: ocorre quando a forma lexical se gramaticaliza em um cltico ou em um afixo
e a forma lexical original permanece como um elemento autnomo e sofre as mesmas
mudanas que um item lexical comum. Embora Hopper (1991) mencione que a divergncia
um caso especial de estratificao, entre ambas h diferentes graus de gramaticalizao: a
divergncia se aplica aos casos em que um item lexical autnomo torna-se gramaticalizado
apenas em determinados contextos, ao passo que a estratificao atua nas codificaes de uma
mesma funo. Ou seja, a divergncia resulta da multiplicidade de funes: duas formas
idnticas do ponto de vista fonolgico apresentam funes e significados distintos. Exemplos
de divergncia so o verbo de movimento to go, do ingls, que sofreu o processo de
gramaticalizao e ganhou o valor semntico de futuro (going to); em portugus, o verbo ir,
ainda com valor semntico de movimento, gramaticalizou-se, adquirindo tambm o valor
semntico de futuro: Eu vou sair; no francs, o nome pas (passo) gramaticalizou-se na
partcula negativa pas e ambas coexistem no francs atual com funes distintas;
c) especializao: dentro de um domnio funcional, possvel haver, em determinado estgio,
uma variedade de formas com nuanas semnticas diferentes. Quando a gramaticalizao
ocorre, estreita-se essa variedade de escolhas formais, e um nmero menor de formas
selecionadas assume significados semnticos mais gerais; esse princpio, portanto, est
relacionado restrio de escolhas para uma dada construo, a partir do momento em que
uma forma gramatical vai se tornando obrigatria em determinados contextos de uso. O
exemplo do emprego de pas no francs, acima mencionado, exemplifica bem esse princpio:
inicialmente, pas gramaticalizou-se como partcula negativa de reforo de estrutura com
verbo de movimento: Il ne va (pas). Posteriormente, estendeu-se a outros tipos de verbos e foi
reanalisada como partcula obrigatria para construes de negao em geral (ne V pas);
d) persistncia: quando uma forma se gramaticaliza, passando de uma funo lexical para
uma funo gramatical, tanto quanto isso seja gramaticalmente vivel, alguns traos do seu
13
significado lexical original (forma fonte) tendem a aderir nova forma gramatical e detalhes
de sua histria lexical podem refletir-se na sua distribuio gramatical. Esse princpio auxilia
na compreenso de alguns traos sinttico-semnticos que persistem da forma fonte na forma
gramaticalizada. Exemplos desse princpio no portugus so as conjunes coordenativas
embora e todavia, as quais ainda apresentam mobilidade sinttica, trao de sua origem
adverbial (em + boa + hora e toda + via);
e) descategorizao: formas em processo de gramaticalizao tendem a perder ou a
neutralizar as marcas morfolgicas e as propriedades sintticas das categorias plenas Nome e
Verbo e a assumir atributos caractersticos das categorias secundrias, tais como: o adjetivo, o
particpio, a preposio, entre outros.
Diante desses princpios, pode-se dizer que eles ajudam na compreenso da GR, mas,
dado o seu carter dinmico e histrico, preciso considerar, ao se analisar um item em
processo de mudana gramatical, a impossibilidade de assegurar a determinao de uma nica
fase.
1.4 Gramaticalizao de conjunes
Uma das categorias lingusticas que tem sido investigada sob o prisma da
gramaticalizao a das conjunes, visto que o seu conceito nas gramticas do portugus
frequentemente esbarra na falta de critrios claros e explcitos de delimitao e na indicao
de categorias bem definidas.
Percebe-se que os estudos referentes s conjunes tm prescindido de uma anlise
calcada no contexto e no processo de interao verbal entre os indivduos para se deter em
mecanismos que no acrescentam um conhecimento mais amplo ao estudo da lngua
portuguesa, da a extrema importncia de estudos relacionados a conjunes. Neste trabalho,
privilegiamos a conjuno porm, por se tratar de interessante fonte de pesquisa, uma vez que
etimologicamente o item era um advrbio e, que em um dado momento, passou a conjuno.
O que as gramticas tm feito, salvo raras excees, a exemplo de Said Ali (2001) e
Bechara (2004), listar uma infinidade de conjunes vinculadas a uma construo
lgico/semntica. E, quando mencionam as aplicabilidades dessas conjunes, em grande
14
parte das vezes, valem-se de exemplos cannicos retirados de grandes autores da Literatura ou
j veiculados em outras gramticas. Poucas so as discusses crticas acerca de certos
empregos e, at mesmo, a negao de outras possibilidades.
Um retorno rpido histria do portugus nos permite compreender o porqu dessa
falta de critrio para classificar essa categoria. Segundo Said Ali (s/d, pp. 255-256),
Obscura a origem de certas conjunes latinas; porem, a julgar por
aquellas cujo historico se conhece, a linguagem no teria creado vocabulos especiaes para constituir a nova categoria. Serviram a este
fim adverbios que, de modestos determinantes de um conceito nico,
se usaram como determinantes de toda uma sentena; e serviram
tambem pronomes do typo relativo-interrogativo, ou themas pronominaes accrescidos de novos elementos.
Da respeitavel serie de conjunes que faziam parte do idioma latino
muito poucas passaram s linguas romanicas. Em portuguz existem e (et), ou (aut), nem (nec), quando, se (si), como (tem o sentido de quum
e de quomodo, posto que pelas leis da phonetica s se filie ao segundo
destes vocabulos), e que, usada no latim vulgar. A substituio de sed,
autem, por mais (depois mas), do adverbio ma(g)is, data do periodo pre-lusitano.
A falta das demais particulas supprem-na creaes novas, isto ,
adverbios, que se adaptaram ao papel de conjuno, assim como o amplo emprego de que, simples, ou combinado com preposies e
com adverbios ou locues de caracter adverbial, e, ainda, a forma
verbal quer (em quer...quer..., onde quer que, quando quer que) para expressar o conceito optativo.
Segundo Meillet (1912), as conjunes tm em sua formao um campo riqussimo de
estudos, uma vez que estiveram sempre suscetveis renovao. Pesquisas sobre a
gramaticalizao de conjunes tm favorecido a expanso de formas de observao e a
reconstruo das mudanas sofridas ou em andamento dessas palavras.
Entre os trabalhos significativos encontrados na literatura de GR de conjunes,
destacam-se os de Traugott (1982, 1999), Knig (1984), Sweetser (1988, 1990), Traugott e
Knig (1991).
Com relao mudana semntica, esses autores concordam em que as alteraes so
conduzidas por dois mecanismos: a metonmia, de natureza pragmtica e a metfora, de
natureza cognitiva.
15
Traugott (1982, p. 256) destaca o mecanismo da cmetonmia e prope uma tipologia
das mudanas semntico-pragmticas no processo de GR. Para a autora, a mudana de
significado se d de maneira unidirecional e pode ser demonstrada pelo cline1, a seguir:
PROPOSICIONAL > TEXTUAL > EXPRESSIVO
Entende-se por componente proposicional os recursos da lngua pertencentes ao
mundo extralingustico, ou seja, dos quais fazem parte elementos relacionados ao discurso,
por exemplo, os pronomes diticos, de tempo, de pessoa, de espao, relacionados
localizao e orientao. O componente textual, por seu turno, refere-se a recursos como
conectivos e elementos anafricos, os quais possibilitam a coeso do discurso. Por sua vez, o
componente expressivo possibilita a expresso de atitude pessoal sobre o que se pretende ou
sobre aquilo que se diz no discurso.
Enquanto Traugott destaca a metonmia, Sweetser considera a metfora a responsvel
pelas mudanas semntico-pragmticas, pois por meio dela que conseguimos entender algo
em termos de outro, sem ao menos termos conscincia de que ambos tm a mesma base
semntica.
A abordagem de Sweetser (1988 e 1990) cognitiva e envolve trs reas distintas: a
polissemia, a mudana semntica lexical e a ambiguidade pragmtica, para tratar da mudana
semntica. Ela afirma que nenhuma mudana semntica ocorre sem haver um estgio de
polissemia, uma vez que se uma palavra uma vez significou A, e agora significa B, certo que
houve um momento na histria desse item em que ele significou AB, e o significado primeiro
foi perdido (SWEETSER, 1991, p. 9).
Conforme Sweetser (1988), na maioria das vezes a polissemia ocorre devido aos usos
metafricos, pois nossa cognio e nossa linguagem operam metaforicamente. A metfora nos
permite compreender uma coisa em termos de outra sem ter a conscincia que elas tm a
mesma base semntica. Quando um uso, baseado em uma estrutura metafrica, se torna
conscientizado pelos falantes, essa forma lingustica passa a ter um novo sentido por meio de
motivaes metafricas.
A estudiosa prope trs domnios de conceituao, com relao ao desdobramento
polissmico de uma forma, a saber: o domnio de contedo (sociofsico), o epistmico
1 Cline: (item lexical > item gramatical > cltico > afixo) defendido por aqueles que acreditam em um canal
unidirecional dos mecanismos de mudana sinttica, tidos por estes como previsveis (Hopper e Traugott, 1993).
16
(raciocnio lgico), e o conversacional (ato de fala). Entende-se os domnios cognitivos,
epistmico e atos de fala, pelo menos em parte, em termos do domnio externo, fsico e social.
Alm disso, os falantes usam os mesmos termos, em muitos casos, para expressar relaes no
ato de fala e no mundo epistmico, assim como para expressar relaes paralelas no domnio
do contedo. Segundo Sweetser (1990), a relao entre esses domnios cognitiva, e eles
influenciam na polissemia, na mudana semntica e na interpretao de uma orao.
De acordo com a autora, a fora atuante nesses trs domnios de natureza metafrica,
ou seja, h uma conexo entre eles, com base na metfora, que faz que o falante,
inconscientemente, reconhea essa relao entre os domnios, da mesma forma que ele, de
certa forma, reconhece a relao entre o conhecimento e a viso entre o tempo e o espao e
recorra a um para falar do outro.
Sweetser (1988) se preocupa em definir quais os significados que so perdidos e quais
so preservados em GR, uma vez que na transferncia de sentidos algumas caractersticas
semnticas so preservadas da fonte, e outras so acrescentadas ao domnio alvo.
A proposta de Sweetser (1988) amplia os estudos sobre GR de conjunes quando
sugere que devem ser levados em considerao tanto os significados que so perdidos quanto
os que so preservados no processo de GR.
Para Traugott e Knig (1991),
a metfora est largamente correlacionada com mudanas de
significados localizados na situao descrita externa para
significados referentes a situaes avaliativas, perceptivas e
cognitivas, e para significados fundados na marcao textual. A
metonmia, por sua vez, est amplamente correlacionada com as
mudanas de significados centrados na crena ou atitude subjetiva
dos falantes, em direo situao, incluindo a lingustica.
(TRAUGOTT e KNIG, 1991, p.213)
Feitas as consideraes sobre a gramaticalizao de conjunes, de um modo geral,
analisar-se- a etimologia e as definies de gramticas e dicionrios sobre o item de interesse
deste trabalho, o porm.
17
1.5 O item porm: etimologia e definies
O perodo arcaico apresenta um conjunto de caractersticas lingusticas, representadas
na documentao escrita remanescente, que o faz diferir do portugus moderno. A questo
que nos interessa identificar o momento em que essas caractersticas que tipificam o perodo
arcaico deixam de ocorrer na documentao escrita.
Para Mattos e Silva (1989),
a histria das lnguas no acompanha a par e passo a histria scio-
poltica das sociedades que usam essas lnguas. Seus ritmos so
distintos. Se um evento histrico significativo pode ser tomado como
um marco delimitador de um perodo histrico para a histria de uma
sociedade, a lngua dessa sociedade continuar o seu ritmo
constitutivo e pode disso sofrer o efeito com o passar do tempo.
Decorre desse desemparelhamento entre a histria da sociedade e a
histria da lngua dessa sociedade o fato de no encontrarmos
consenso, nos estudos pertinentes, na delimitao dos finais do
perodo arcaico e dos incios do perodo moderno da lngua
portuguesa.
Segundo Hopper e Traugott (1991), no se pode reconstruir nenhuma regra ou
gramtica para uma lngua morta que no seja atestada em lngua viva. H razes, portanto,
para se postular que a GR ocorreu em lnguas faladas h 10 mil anos de modo bastante
semelhante ao que se verifica hoje.
Silva Neto (1970, p. 52) afirma que
a histria de uma lngua no um esquema rigorosamente
preestabelecido, no um problema algbrico. No se pode partir do
latim e chegar diretamente aos dias de hoje, saltando por sobre vrios
sculos de palpitante vida.
A evoluo complexa e melindrosa, relacionada com mil e um
acidentes, cruzada, recruzada e entrecruzada porque no representa
a evoluo de uma coisa feita e acabada, mas as vicissitudes de uma
atividade em perptuo movimento.
18
Etimologicamente, segundo Cunha (1997), o item porm proveniente de por + ende
(< lat. nde), frequente no port. med., desde o sculo XIII. XIV, porende XIII, poren XIV etc.
No dicionrio Houaiss da lngua portuguesa, registra-se a seguinte etimologia: lat. proinde
'assim, portanto, pois, por conseguinte', pelo arc. por ende; f. hist. sXIII poren, sXIII pore,
sXIV porem, sXIV por em, 1502-c1536 perem. Segundo o dicionrio Aurlio, porm origina-
se do lat. proinde, 'por conseguinte', pelo arc. porende, 'por isso', com apcope.
As gramticas histricas apresentam o item porm e sua variante arcaica porende
como provenientes de pro nde. Coutinho (1973) em sua Gramtica Histrica,aponta que os
compostos pero e porende eram sinnimos e significavam por isso. Ele tambm aponta que,
em certos casos, o em apresenta-se como conjuno concessiva, uma vez que era um vestgio
do arcaico ende, cuja origem o pronome latino nde.
Segundo Said Ali (2001), na antiga lngua portuguesa, usam-se as formas porende e
porm com sentido de por isso, expressando a noo de causa determinante de certo ato.
O autor afirma que o elemento porm sofre uma transformao semntica na linguagem da
Renascena: do sentido de por isso, por essa razo, passa a expressar o mesmo que
mas, apesar disso, contudo , indicando oposio de idias. O primitivo advrbio
transmuda-se em conjuno adversativa (Said Ali, 2001, p. 143) e permanece at os dias de
hoje.
Em Histria e estrutura da lngua portuguesa (1975), Mattoso Cmara Jr. realizou
pioneiro trabalho entre os estruturalistas: aplicou diacronia do portugus os princpios de
anlise estrutural, sobretudo nos nveis fonolgico e morfolgico. De acordo com Mattoso, o
porm, no portugus arcaico, era uma partcula explicativa, equivalente a por isso,
proveniente da forma latina per nde ou pro nde (nde da). O uso do porm com sentido
adversativo conjuno coordenativa de oposio desenvolveu-se desde o portugus
clssico e estava relacionado conjuno adversativa mas.
Nas gramticas normativas, o porm uma conjuno adversativa. Para Bechara
(2005), o porm considerado conjuno adversativa por excelncia, juntamente com o mas e
o seno, uma vez que unem unidades, atribuindo sentido de oposio entre elas. Segundo o
autor, ao contrrio das conjunes aditivas e alternativas, que podem unir duas ou mais
unidades, as adversativas se limitam a duas: mas e porm salientam a oposio, e o seno
acentua a incompatibilidade.
Pode-se verificar, ainda, o que Neves (2000) esclarece em sua Gramtica de usos do
portugus: o porm um advrbio juntivo de valor anafrico, indicador de contraste. Para a
19
autora, o advrbio juntivo adversativo determina a relao de desigualdade entre o segmento
em que ocorre (enunciado, orao ou sintagma) e um segmento anterior.
Borba (2002, pp. 1236-1237) apresenta o porm como conjuno coordenativa
adversativa que pode expressar uma contraposio entre dois elementos de uma mesma
orao ou entre duas oraes de mesmo gnero, em que o segundo constituinte representa
uma frustrao de expectativa, um desvio em relao ao que se esperaria; pe em contraste
duas oraes; todavia; contudo: introduz um argumento que representa uma ressalva ao que se
disse; entretanto: introduz um argumento que representa um acrscimo ao que se disse antes.
Alm dessas definies apresentadas acima, oportuno elencar aqui algumas
definies do item porem em dicionrios para que possamos ter uma viso ampla dos
significados apresentados pelo item ao longo da histria do portugus, principalmente em
obras que reportam a esse perodo, como o caso do Vocabulrio histrico-cronolgico do
portugus medieval, obra publicado em formato digital e que contempla, em sua estrutura, um
vasto nmero de obras.
Michaelis. Moderno Dicionrio da Lngua Portuguesa
po.rm: conj (arc por ende, do lat proinde). Denotativa de oposio, restrio ou diferena e
equivale a mas, contudo, todavia; apesar disso, no obstante.
Dicionrio HOUAISS da Lngua Portuguesa
Porm: conjuno coordenativa. 1. conjuno adversativa: introduz ou finaliza uma orao
ou um perodo cujo contedo faz oposio ou restrio ao que foi dito na orao anterior;
mas, contudo, todavia, apesar disso, no obstante. Ex.: . s.m. 2 empecilho, bice, obstculo 3 aspecto negativo; inconveniente, seno ter (os)
seus p. ter seu seno, seu lado negativo ETIM lat.
proinde 'assim, portanto, pois, por conseguinte', pelo arc. por ende; f.hist. sXIII poren, sXIII
pore, sXIV porem, sXIV por em, 1502-c1536 perem PAR porem // (fl.pr).
20
Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa
Porm: [Do lat. proinde, 'por conseguinte', pelo arc. porende, 'por isso', com apcope.]. Conj.
1. Contudo; mas; todavia. [Corretssimo o emprego da conjuno porm em comeo de
perodo. fato da lngua, facilmente documentvel desde a fase arcaica (p. ex., Joam Roiz de
Castel Branco em Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, III, p. 122; e Gomes Eanes de
Azurara, Crnica do Descobrimento e Conquista de Guin, pp. 3, 38, 70, 80) at os nossos
dias. S em uma das obras do seiscentista Manuel Bernardes, clssico dos maiores (Nova
Floresta, 5 vols.), podem encontrar-se mais de 300 exemplos; s vezes vm dois exemplos, e,
muito raro, trs, numa mesma pgina.]. S. m. 2. Bras. Empecilho, obstculo, bice. 3. Bras.
Lado mau; aspecto negativo; inconveniente: & [Nesta acep., ger. us. na loc. ter o seu porm
(como se v no exemplo citado) ou ter os seus porns.] [Cf. porem (), do v. pr.]
Vocabulrio histrico-cronolgico do portugus medieval
Porm: conjuno atual: porm sc. XV, TERS, 56.26. 1. Porm, como, per processo de
tempos, passados muitos annos, ho sobre dito Leodobollo passasse desta vida [...] ho dito
Numollo abbade [...] achou nos livros [...]. sc. XV, LOPF, P.63; 2. E porm nunca el-rrei hia
vez algua aa caa que sempre em ella nom houvesse grande sabor e desenfadamento. sc.
XIV, LOPP, P.40; 3. E porm a justia he muito necessaria, assi no poboo como no rrei,
porque sem ella nemha cidade nem rreino pode estar em assessego [...]. porm conjuno
Medieval: por sc. XIV, EUFR, 25 filho meu a tua fae he fremosa aos frades fermos e
fracos por quero que estes soo em tua ela [...]. Medieval: por em sc. XIV, EGIP, 3; 1. Tal
era a vida do santo hom que nunca leixava de cuidar e meditar nas santas pallavras e nom
mguava por em de fazer obras de suas maos. Sc. XIV, EUFR, 20; 2. [...] por em te fige
tomar affam de viires aca pera conprires o meu desejo [...]. Sc. XIV, PELA, 23; 3. E por em
te rogo e amoesto que de todo todo n desprezes [...] minha humildade [...]. Medieval: por;
Sc. XIV, BENT, 23.22; 1. Por o abade nha cousa ctra o comdamto de nostro Senhor
n deve a ssinar [...]. Sc. XV, ZURG, 13.9; 2. E por sam Tomas [...] diz [...] que toda obra
se torna naturalmte aa cousa de que primeiramente procede. Sc. XV, SOLI, 13.6; 3. E por
partirse o hom de ty n he outra cousa sen seer sem carreira e sem verdade e sem vida. Sc.
XV, IMIT, 19.11; 4. Esforemosnos, empero, quanto podermos, e, ainda que levemente
desfaleamos em muitas cousas, sempre, por, algua cousa em erto he de propoer [...]. Sc.
XV, COND, 4c25; 5. [...] e por vos peo por meree que me dees lugar pera em ello cuidar
21
[...]. Sc. XV, VIRG, V.1987; 6. E por raz he e dereyto que aquel que esto fez seja privado
da tua muy doce companhia [...]. Sc. XIV, ORTO, 200.9; 7. E como assy seia que o Padre
celestrial sabe dar boas coussas aos seus filhos, segundo diz o Saluador, por deu elle aos seus
mais chegados amigos e muyto mais a seu filho Jhesu Christo [...]. Sc. XV, SBER, 47.12; 8.
[...] (o que tu, por, Ssenhor, per virtude das obras milhor fazes) [...]. Sc. XIV, JERO, 21; 9.
E por se he algu pequeno seguramente venha a ty [...]. Sc. XIV, BARL, 1.12; 10. E por
Rey auenir comeou muy grande persigui contra os sanctos homes. Sc. XIV, AVES,
XXII.22; 11. E por o propheta ensina os fiees de Deus como respd aos ereges [...]. Sc.
XIII, FLOR, 111; 12. por uos quero dizer destes persoeyros que s ditos en latin
procuratores. Medieval: porem sc. XV, ZURG, 15.2; 1. Ca s embargo de se em todollos
Regnos fazer jeeraaes cronicas dos Rex delles / n se leixa porem descreuer apartadamente
os fectos dalgus [seus] vassallos. Sc. XV, OFIC, 4.3; 2. Porem a mim parece que os outros
sem este podem trazer pena e doesto. Sc. XV, VIRG, I.260; 3. E porem cpre muito que
aqueles que tom sanha de amor que n passen os termos da razon [...]. Sc. XIV, BENT,
42.18; 4. [...] porem ordamos e estabelecemos que [...]. Sc. XIV, SOLI, 31.10; 5. Ca a luz da
tua vista, que se n muda, n he porem acreentada por tu oolhares ha cousa soo; n he
mguada por tu veres assadamte muytas cousas e desvayradas sem conto. Sc. XV, ZURD,
50.1; 6. [...] Jsto porem tenho que [...]. Sc. XV, CATI, 3; 7. E porem nos dha el ha partida
de que falamos em enxenplo. Sc. XIV, BARL, 1.7; 8. [...] mais c todo esto n leixau
porem os sanctos monges de preegar a saude e o nome de Jhesu christo a todos abertamte
[...]. Sc. XV, SBER, 55.20; 9. Este primeiramente duvidou hu pouco, mais logo entendendo
e cuidando na cousa qual era, deu consintimento aa conversom, asy porem se a sua molher
proouvese e outorgase. Sc. XV, ANTI, 73.7; 10. Porem te digo que todo o homem [...] pode
gardar e cumprir e fazer estes mandamente [...]. Sc. XV, CAVA, 2.11; 11. [...] e desy que
esta manha cada hu per sy a deprende, e porem era scusado sobr'ello screver. Sc. XV,
LOPJ, II.3.9; 12. [...] mas nunca porem sua praziuell bemquerena reebeo rogos nem prezes
della aerca dos feitos da justia [...]. Sc. XV, IMIT, 13.16;13. E, porem, he de vigiar
prinipalmente logo no comeo da tptaom, porque ent mais ligeiramente he venido ho
imigo [...]. Sc. XIV, ORTO, 42.25; 14. [...] e porem (no ms. A: perem) diz S Paulo: Tomade
a espada do spiritu, que he a palaura de Deus. Medieval: porm. Sc. XV, TERS, 56.26; 1.
Porm, como, per processo de tempos, passados muitos annos, ho sobre dito Leodobollo
passasse desta vida [...] ho dito Numollo abbade [...] achou nos livros [...]. Sc. XV, LOPF,
P.63; 2 E porm nunca el-rrei hia vez algua aa caa que sempre em ella nom houvesse
grande sabor e desenfadamento. Sc. XIV, LOPP, P.40; 3. E porm a justia he muito
22
necessaria, assi no poboo como no rrei, porque sem ella nemha cidade nem rreino pode estar
em assessego [...]. Medieval: poren Sc. XV, VIRG, I.372; 1. Cobija he raiz de todolos
maaes [...] e poren devemos a talhar a raiz dos peccados [...]. Sc. XIII, CSM, B.4; 2. Porque
trobar cousa en que jaz / entendimento, poren queno faz / -o d'aver e de razon assaz.
Dicionrio AULETE DIGITAL
(po.rm) conj. 1. Palavra us. para indicar uma restrio ou uma condio para alguma coisa;
CONTUDO; MAS; TODAVIA: Podem sair, porm voltem s cinco. 2. Palavra tb. us. para
expressar uma relao de contraste, de oposio entre duas idias, situaes, fatos etc.:
Chovia, porm fomos praia. sm. 3. Bras. Aspecto ruim ou imprprio de algo, de algum ou
de uma situao: Sempre encontra um porm nos candidatos. 4. Bras. Impedimento, estorvo,
obstculo, bice. [Pl.: -rns] [F.: por + ende, freqente no port. medv., desde o sc. XIII.
Hom./Par.: porm (conj./sm.), porem (fl de pr).]
CAPTULO 2. MATERIAL E METODOLOGIA
2.1 Material
Segundo Bybee et al. (1994), a importncia da pesquisa diacrnica se deve a quatro
motivos, a saber: (i) a dimenso diacrnica demonstra como uma forma ou construo passa a
ter uma determinada funo na lngua; (ii) fatores cognitivos e comunicativos que subjazem
significados gramaticais so mais claramente revelados, quando verificados em um perodo de
transio, e no em uma situao esttica; (iii) a dimenso sincrnica no nos permite
entender e explicar a escala de significado coberta por um item gramatical, uma vez que o
significado gramatical est em constante mudana; e, (iv) generalizaes diacrnicas
fornecem indcios mais significativos e mais reveladores sobre a correlao entre
forma/significado.
Para tanto, foram utilizados textos integrais de temtica religiosa e/ou moralizante, dos
sculos XIII/XV e XV, com a finalidade de traar a trajetria de mudana do item porem
nessas sincronias. Esses textos foram extrados do Corpus Informatizado do Portugus
Medieval (CIPM), disponvel em http://www.cipm.fcsh.unl.pt, com exceo do Virgeu de
Consolaon, cuja obra impressa foi consultada manualmente, visto que no consta do acervo
digitalizado. Tambm consultamos as obras impressas dos corpora, para confirmao de
leitura, com exceo das Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence, cuja verso
impressa no possumos.
Essas obras, que fazem parte de uma produo escrita em Portugal, do fim do sculo
XIV e incio do XV, bem como de todo o sculo XV, compreende um perodo de produo
literria original na histria da literatura portuguesa, que pode ser destacada como a produo
de uma histria oficial de Portugal.
Aps a ascenso da dinastia de Avis ao Poder, os livros passaram a ser status de maior
instrumento de veiculao dos saberes, ainda que com uma circulao que se restringia a reis,
prncipes e nobres ricos. Entre os livros escritos por membros dessa dinastia, esto quatro
tratados: O Livro da Montaria, escrito pelo rei Dom Joo; O leal conselheiro e o Livro da
ensinana de bem cavalgar toda sela, ambos do rei Dom Duarte; e o Livro da Virtuosa
Bemfeitoria do Infante Dom Pedro.
Alm desses tratados, o sculo XV tambm remete histria da literatura portuguesa
como um perodo de produo literria original, no qual se destacam obras relacionadas
http://www.cipm.fcsh.unl.pt/24
histria oficial portuguesa as crnicas e aos mistrios da igreja e da f, entre os quais
figuram O Boosco deleitoso, O Orto do Esposo, A corte Imperial e o Virgeu da Consolaon.
Apresentamos, a seguir, os dados do material que foi consultado na ntegra para
efetuarmos o levantamento total do nmero de ocorrncias do item analisado.
DOCUMENTOS DO SCULO XIII/XIV
Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (Morte de S. Jeronimo)
FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).
Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (Vida de Tarsis)
FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).
Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (Vida de Eufrosina)
FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).
Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (Vida de Santa Pelgia)
FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).
Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (Vida de Santa Maria Egipciaca)
FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).
Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (Viso de Tndalo)
FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).
DOCUMENTOS DOS SCULOS XIV ~ XV
Virgeu de Consolaon
FONTE IMPRESSA: Virgeu de Consolaon. Edio crtica de um texto arcaico indito por
Albino de Bem Veiga. Porto Alegre: Livraria do Globo S. A. 1958.
Orto do Esposo
FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).
25
FONTE IMPRESSA: Orto do Esposo. Texto indito do fim do sculo XIV ou como do
XV. Edio crtica com introduo, anotaes e glossrio por MALER, B. Rio de Janeiro:
Instituto Nacional do Livro, 1956.
DOCUMENTO DO SCULO XV
Leal Conselheiro:
FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).
FONTE IMPRESSA DUARTE, D. Leal Conselheiro. Edio crtica, introduo e notas de
LOPES e CASTRO, M. H. Prefcio de BOTELHO, A. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1998. (Coleo Pensamento Portugus)
SCULO XIII/XIV: Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense
Segundo Massaud Moiss (1978), o termo hagiografia vem do grego hagiografia e
significa escritos relativos aos santos; sinnimo de hagiologiae serve para designar os
textos que relatam a vida dos santos - foi utilizada desde a Idade Mdia nos pases catlicos
ou que receberam influncia da Igreja at o sculo XVIII.
A literatura hagiogrfica crist teve incio ainda na Igreja Primitiva quando, a partir de
documentos oficiais romanos ou do relato de testemunhas oculares, eram registrados os
suplcios dos mrtires. A hagiografia, porm, desenvolveu-se e consolidou-se somente a partir
da Idade Mdia, com a expanso do cristianismo e com a difuso do culto aos santos. Durante
a Idade Mdia, foram produzidas muitas obras desse gnero, as quais possuam carter
privado e foram redigidas, principalmente, pelos eclesisticos.
Em um primeiro momento, foi utilizada a lngua latina, j que era a lngua dos cultos e
da igreja e o seu pblico era formado prioritariamente por clrigos regulares e seculares. A
partir dos sculos XI, XII e XIII, devido a transformaes que ocorreram na Europa ocidental,
as hagiografias foram sendo escritas, ou traduzidas, nas diversas lnguas vernculas, passando
a atingir, assim, um pblico maior.
Verifica-se, dessa forma, que esses textos eram importantes meios para a propagao
de concepes teolgicas, modelos de comportamento, padres morais e valores. Quanto
forma, organizao ou processo de construo, as hagiografias medievais no apresentam
unidade. No s privilegiam aspectos diferenciados da vida dos santos, enfatizando a morte, a
26
vida, ou os milagres, mas tambm sofrem adaptaes em funo de novos critrios estticos e
diferentes necessidades literrias. Cabe apontar que muitas obras foram reescritas e adaptadas,
outras foram compiladas ou traduzidas.
Pode-se dizer que os traos comuns dos textos hagiogrficos so: as aes realizadas
em vida pelo santo e que retratam o seu desejo pela santidade, a morte vista como processo de
aperfeioamento e, por fim, os milagres ps-morte, como indcio de xito e a comprovao da
santidade almejada pelo santo.
relevante ressaltar que, para compreendermos e analisarmos uma hagiografia
medieval, necessrio que nos coloquemos no momento em que o texto era lido, narrado por
um indivduo e, ao mesmo tempo, ouvido por um ou mais indivduos e registrado na
memria.
As seis Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense estudadas datam do sculo
XIII/XIV, isto , final do sculo XIII e incio do sculo XIV: vida de Tarsis, vida de Santa
Pelgia, morte de S. Jeronimo, viso de Tundalo, vida de Eufrosina, vida de Santa Maria
Egipcaca.
Sculo XIV ~ XV: Virgeu de Consolaon e Orto do Esposo
O Virgeu de Consolaon, livro sobre os pecados e as virtudes, tem como argumento
moralizante o conhecimento sobre os males dos vcios e os proveitos de uma vida virtuosa.
A obra se divide em cinco partes, distribudas em 78 captulos. As duas primeiras
comentam sobre os pecados e os vcios. Mais especificamente, na primeira parte, o autor trata
dos sete pecados capitais, ou seja, da soberba, da inveja, da ira, da preguia, da avareza, da
gula e da luxria e, na segunda, dos demais pecados que surgem dos pecados capitais, como a
arrogncia e a hipocrisia, entre outros. As outras trs partes comentam sobre as virtudes: f,
sabedoria, justia, caridade, temperana etc.
Com a leitura dessa obra, o leitor conheceria os males, os vcios e as virtudes da vida, e,
consequentemente, o caminho para a salvao.
O Orto do Esposo uma obra literria de carter religioso, escrita nos finais do sculo
XIV ou incio do sculo XV, por um annimo monge portugus. Trata-se de uma importante
fonte para a compreenso da espiritualidade e do pensamento no Portugal da Idade Mdia.
uma alegoria originria do Cntico dos Cnticos, de onde provm duas metforas: a de que
Jesus o esposo de todo cristo e a de que o Paraso das Almas um horto onde as virtudes
so cultivadas.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Portugalhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Idade_M%C3%A9dia27
O livro defende, do ponto de vista filosfico e espiritual, a renncia aos bens terrenos
e aos prazeres mundanos, ligados fortuna, com a consequente exaltao contemplao e
busca pessoal da salvao e da verdade eterna.
Divide-se em quatro partes: a primeira retrata o poder e a beleza do nome de Jesus
Cristo, as duas seguintes dizem respeito s Santas Escrituras e a quarta trata da vaidade
humana. O autor utiliza narrativas exemplares a fim de reforar e tornar mais convincente os
preceitos cristos que pretende expor.
SCULO XV: Leal Conselheiro
O Leal Conselheiro foi escrito por Dom Duarte, provavelmente entre os anos de 1428
e 1435. Nesse perodo, Portugal iniciava sua expanso martima, e com isso, segundo o
prprio autor, o livro um verdadeiro "ABC da lealdade", que deveria ser como um manual
prtico de orientao tica para a monarquia e os demais membros da nobreza. Versava sobre
temas to diversos como a vida matrimonial e familiar, os pecados, os vcios e como
aprimorar os sentimentos e as virtudes.
O ncleo central da obra a lealdade. Inicialmente, entende-se que D. Duarte se
afirma como um conselheiro que tem na lealdade uma de suas qualidades, da sua obra se
chamar leal conselheiro. Assim, a lealdade do conselheiro o contedo da obra. Uma
leitura mais atenta nos permite entender que a metfora , na verdade, um tratado sobre a
lealdade, atributo principal de um conselheiro.
A obra apresenta 103 captulos, estruturalmente, com uma srie de reflexes sobre
ndole moral e tica realizadas pelo rei em vrias ocasies e sobre vrios assuntos, incluindo
cartas e "conselhos" escritos e dirigidos a membros de sua famlia. Embora apontada como
uma obra que no apresente uma estrutura rgida, pela falta relativa de unidade de estrutura,
que acaba por afast-la dos tratados morais tradicionais, ela se destaca pela linguagem
simples e coloquial, pelo tom intimista e pelo carter profundo dos pensamentos de D. Duarte.
2.2 Metodologia
O primeiro critrio de anlise deste trabalho foi a frequncia nos moldes de Bybee et
al. (1994), Heine et al. (1991) e Bybee (2003). De acordo com esses autores, nos estudos
lingusticos h dois mtodos relevantes para apurar a frequncia: frequncia token ou textual,
que diz respeito frequncia de ocorrncia de um item/construo, independentemente da
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fortuna_(mitologia)28
funo; e a frequncia type, que se refere frequncia com que um padro particular ocorre,
podendo ser avaliada por meio da considerao das diferentes funes assumidas pelo item ou
construo.
Segundo os autores, quando h o aumento da frequncia token, tem-se o indcio de que
o item um forte candidato a sofrer gramaticalizao; quando h o aumento da frequncia
type, consequncia do primeiro, h indcio da expanso dos contextos em que o item
apropriado. Conforme Bybee e Hopper (2001), o aumento de frequncia implica os seguintes
processos:
(i) enfraquecimento semntico por habituao;
(ii) reduo fonolgica e fuso de construes gramaticais;
(iii) condicionamento da autonomia da construo;
(iv) perda da transparncia semntica;
(v) preservao de caractersticas morfossintticas mais antigas.
Bybee, em sua teoria, estabelece a distino entre type frequency e token frequency. A
primeira (type frequency) a frequncia de um determinado padro na lngua, por exemplo: o
plural em -s, um padro bastante frequente na lngua portuguesa (livros, meninas, povos), ao
passo que o plural em -es um pouco menos frequente (mulheres, cartazes, rapazes).
O segundo tipo de frequncia (token frequency) a frequncia de um item especfico
na fala de um determinado indivduo: por exemplo, pessoas que tm o hbito de usar a palavra
coisa com significados amplos; assim, na fala dessas pessoas especficas, essa palavra teria
alta frequncia de ocorrncia.
Pode-se dizer que as palavras de alta frequncia no so as mais produtivas pelo fato
de serem mais autnomas, menos analisadas e por participarem menos de esquemas. Por outro
lado, as palavras pouco frequentes precisam ser ligadas a um paradigma, o que enriquece as
redes de palavras e gera maior produtividade. Desse modo, um item frequente no contribui
para a produtividade da classe da qual faz parte e, por isso, no a frequncia de ocorrncia
que gera produtividade, mas sim a frequncia de tipo.
A autora prope um modelo de lxico mental no qual as palavras esto organizadas de
maneira ordenada e agrupadas conforme a identidade ou a similaridade fonolgica ou
semntica. Essas palavras formam esquemas de interconexes a partir de traos
29
compartilhados. Um item ser mais ou menos prototpico dentro do esquema de acordo com
sua frequncia de ocorrncia. Dessa forma, se as propriedades do esquema forem muito
especficas, ele se aplicar a uma quantidade menor de itens e, em consequncia disso, ser
menos produtivo; por outro lado, se o esquema for bastante aberto, poder abranger mais
itens, tornando-se cada vez mais produtivo. Levando-se em considerao a fora do esquema,
quanto maior a frequncia de determinado padro, maiores as chances de ele se aplicar a
novos itens.
O que a autora prope uma concepo de lxico baseada no uso da lngua, pois
somente por meio dos usos concretos dela que alguns conceitos, como frequncia e
produtividade, podem ser realmente analisados.
De acordo com Gonalves (2004, p.2),
uma propriedade muito notada de construes gramaticalizadas o
seu aumento em frequncia type. Como consequncia, a frequncia
token tambm cresce. To importante quanto o crescimento em frequncia type, a alta freqncia token das formas, uma das causas
de mudanas na sua forma e de diversidade de suas funes.
Com a finalidade de explicitar o papel da frequncia na gramaticalizao do item
porm, consideramos suas frequncias de uso, ao longo nos sculos XIII, XIV e XV, tambm
como um dos parmetros responsveis pelo reconhecimento de construes com significados
cada vez mais assentados nas atitudes subjetivas do falante.
O segundo critrio de anlise foi a aplicao dos cinco princpios de Hopper:
estratificao, divergncia, especializao, persistncia e descategorizao, j apresentados
no item 1.3, para verificar a fase de GR atingida pelo item no no perodo analisado.
Hopper (1991) afirma que a gramtica de uma lngua nunca estvel e que todas as
partes da gramtica esto continuamente sofrendo transformaes, razo pela qual novas
funes para formas j existentes na lngua esto emergindo.
Para o linguista, o importante no saber o que faz parte da gramtica da lngua, mas
sim o processo pelo qual as formas atingem a gramtica, ou a gramaticalizao. Dada essa
noo de gramtica emergente, o autor afirma que possvel reconhecer quando uma forma
est mais ou menos gramaticalizada e, para isso, lana mo de alguns critrios que permitem
30
identificar os primeiros estgios de GR e, por consequncia, a emergncia de novas formas e
construes gramaticais. Da a escolha desse critrio como um dos parmetros de anlise do
presente trabalho.
Fez-se necessria tambm a verificao da coocorrncia do item porm com as
locues como quer que, ainda que, posto que, de valor concessivo, com o conectivo porque,
de valor causal, alm da sua ocorrncia com elementos de negao, ou seja, a ocorrncia do
item em frases negativas, questes apontadas como possveis causas da gramaticalizao do
item com valor semntico adversativo.
Dessa forma, os resultados que apresentamos evidenciam a forte correlao entre a
mudana de estatuto gramatical do item em anlise e suas alteraes morfolgicas e
semnticas referentes expresso de adversidade.
CAPTULO 3. ANLISE
3.1 Anlise sincrnica: token e type
A fim de verificar o percurso de mudana semntica do item porm, analisamos, em
textos dos sculos XIII, XIV e XV, j citados na seo 3.1, as ocorrncias do item com o
intuito de verificar as etapas dessa mudana no perodo especificado. Ressaltamos que no
consideramos os sculos posteriores ao XV porque, a gramaticalizao do item j se
encontrava a ratificada, o que no exclui a possibilidade de que esse elemento ainda
apresentasse, nesse perodo, valores mais prximos do seu significado fonte.
Primeiramente, apresentamos ocorrncias por sculo e por tipo, seguidos de suas
anlises. Em seguida, apresentamos um quadro geral dos dados obtidos.
Para o levantamento das ocorrncias de porem (e suas variantes grficas2 poren, por
en, por em, porende), nas obras analisadas, apontamos, para cada sincronia, as frequncias
token e type. Na frequncia token, verificamos o nmero de vezes que o item apareceu no
texto e, na frequncia type, observamos o valor semntico-textual e o funcionamento
gramatical do item.
3.2 Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense
Nos textos dos sculos XIII~XIV, o item se apresenta apenas com valor explicativo
(por isso, por esse motivo, por essa razo), mas sua funo se divide em advrbio
juntivo e conjuno coordenativa.
Como advrbio juntivo, porem est precedido pela conjuno aditiva e na
coordenao de oraes. Nesse caso, ele caracterizado como advrbio juntivo pelo fato de
estabelecer relao frica e pela possibilidade de estabelecer relaes de sentido.
Como a obra analisada de curta extenso, apresentando apenas 10 ocorrncias,
optamos pela enumerao de todas elas. Os fragmentos de (01) a (09) exemplificam o item
como advrbio juntivo:
2 Consideramos como variantes grficas as demais formas de porem que apareceram nos textos
analisados, a saber: poren, por em, porende, por ende, ende, por.
32
1. ...o partimento da alma e do corpo non he morte mas he pasar da morte aa vida. E porende
os que dignamente te receben quando aquy morrem contigo comecam de viver.
[...pois a partida da alma e do corpo no morte, mas passar da morte para a vida. E por
isso os que dignamente te recebem quanto aqui morrem contigo comeam a viver.]
2. ...e non ha hy cousa que possa contradizer aa tua vontade e en ty e de ti e por ty som todalas
cousas feytas e sem ty non ha hy nenha cousa. E porende tu minha alma fiel alegra-te e nom
tardes...
[...e a no h coisa que possa contradize a tua vontade e em ti e de ti e por ti so todas as
coisas feitas e sem ti a no h coisa alguma. E por isso tu, minha alma fiel, alegra-te e no
tardes...]
3. Muytas e grandes graas devemos dar ao Senhor, que nom quer a morte dos pecadores mas
quer e cobiia que sse convertan e faam penitenia. E por ende ouvide hu millagre que foy
fecto em nossos dias.
[Muitas e grandes graas devemos ao Senhor, que no quer a morte dos pecados, mas quer e
cobia que se convertam e faam penitncia. E por isso oua um milagre que ocorreu em
nossos dias.]
4. E porem Senhor nom ey, nen he a myn esperana em meus fectos e obras, mais a minha
alma e a minha esperana, ssoo esta he, e porende na tua muito e mui grande misericordia e
piedade...
[E por isso, Senhor, no tenho, nem a mim esperana em meus feitos e obras, mas a minha
alma e a minha esperana, sob esta , e por isso na tua e grande misericrdia e piedade...]
5. ...sen ty non pode nenhuun viver han hora, tu soo ds vida a todalas cousas. E porende oo
meu senhor e meu coracom ja falece a mynha carne...
[...sem ti ningum pode viver uma hora, tu s ds vida a todas as coisas. E por isso, meu
Senhor e meu corao, j falece a minha carne...]
6. E o bispo sancto Nono a este scripto respondeo asy: - Qual quer que tu es e quem es ao
Senhor Deos claro, certo e manifesto he. E por em te rogo...
[E o santo bispo Nono respondeu assim ao que estava escrito: - Quem quer que tu sejas e
quem s ao Senhor Deus claro, certo e manifesto . E por isso te rogo...]
33
7. Rrogo-te que ajas b galardom de Deos e folganca com os santos, que nom tardes nen
negues saude aa minha alma, nem per ventuyra en este spao ho enmiigo cruel me revolva e
faa husar de meos maaos feitos que ante husava. E porem te demando e rogo que oje en este
dia...
[Rogo-te que tenhas boa recompensa e alegria de Deus com os santos, que no tarde nem
negues sade minha alma, e nem que por ventura o cruel inimigo me revolte e me faa usar
de meus maus feitos que antes usava. E por isso peo e rogo que hoje, neste dia...]
8. ...e ella o que prometeo aos homens conprio e fez de toda voontade con gram plazer e
alegria. E porem Senhor nom ey...
[...e ela cumpriu o que prometeu aos homens e fez toda a vontade com grande prazer e
alegria. E por isso, Senhor, no tenho...]
9. Oo quanto he muy avondante a ta grande largueza ca noon despreas a nenhuun se
primeyramente non desprear de viir a ty. E poren se he alguun pequeno seguramente venha
a ty e se receber o teu corpo seera feito grande.
[, quo abundante tua grandeza, porque no desprezas ningum que vem antes a ti. E por
isso, seguramente, se algum pequeno e vem a ti e se receber o teu corpo ser feito grande.]
Como conjuno coordenativa, o item ocupa posio fixa no incio da clusula, aps
uma pausa, e estabelece relao de sentido com a clusula anterior. Ou seja, ele tem como
funo articular unidades autnomas do ponto de vista gramatical, ocupando posio inicial e
fazendo referncia ao contedo que o precede. H, nesse sentido, uma ponderao em relao
ao contedo precedente e, em seguida, a introduo de uma explicao/concluso (10):
10. Estas som as riquezas per as quaes me o diaboo por os meos pecados e maldades tragia
emganada, por em as dou e cometo aa tua santidade e arbitrio.
[Estas so as riquezas pelas quais o diabo me trazia enganada pelos meus pecados e
maldades, por isso as dou e coloco sua santidade e escolha.]
34
Nessa sincronia, no houve registro de ocorrncias do item com outro valor
semntico-textual, nem de ocorrncias com outra funo que no a de advrbio juntivo ou a
de conjuno coordenativa. A construo mais frequente foi a de advrbio juntivo com o
coordenador e, e, em todos os casos, porem apresentou valor explicativo, sentido que
provm do timo latino. Ainda no h registro desse item como conjuno coordenativa em
diferentes posies no interior da clusula.
Quadro. 1: Ocorrncias de poren nas Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence
(sculos XIII~XIV)
Frequncia token Frequncia type
10 (100%) 03
Valor Funo Totais
Explicativo Advrbio juntivo 9 (90%)
Explicativo Conjuno coordenativa 1 (10%)
3.3 Virgeu de Consolaon
Neste texto, que se situa entre os sculos XIV e XV, ainda so frequentes as
construes do item (e de suas variantes grficas) em funo de advrbio juntivo, precedido
pela conjuno aditiva e na coordenao de oraes (com ou sem pausa). Ele continua a
estabelecer relao frica com o contedo precedente (exemplos de (11) a (15)):
11. Diz san Gregrio: Os que fazen o que non sabem non peccan pelo non saber, mais por
soberva e porende son cegos que non saben o que fazen.
[Diz So Gregrio: Os que fazem o que no sabem no