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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO
ANDRÉ GONÇALVES ZIPPERER
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCI EDADE LIMITADA EMPREGADORA
CURITIBA 2009
CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO
ANDRÉ GONÇALVES ZIPPERER
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCI EDADE LIMITADA EMPREGADORA
CURITIBA 2009
ANDRÉ GONÇALVES ZIPPERER
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCI EDADE LIMITADA EMPREGADORA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba, como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito. Orientador: Profº Dr. Eduardo Milléo Baracat
CURITIBA 2009
ANDRÉ GONÇALVES ZIPPERER
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCI EDADE LIMITADA EMPREGADORA
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitib a Presidente: _________________ __________________ Eduardo Milléo Baracat ___________________________________ Aldacy Rachid Coutinho
(MEMBRO EXTERNO) ___________________________________ Luiz Eduardo Gunter (MEMBRO INTERNO)
Curitiba, de de 2 009.
RESUMO
Este trabalho tem como escopo analisar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade limitada empregadora a partir de valores e princípios constitucionais. O estudo se inicia pela conceituação da pessoa, personalidade e personalidade jurídica até a própria sociedade limitada quando empregadora. Considerando a ausência de legislação específica no Direito do Trabalho e o permissivo legal trazido pelo artigo 8º. da CLT a partir do uso da analogia como técnica adequada de integração da norma, é feita uma investigação nas legislações existentes para que se demonstre dentre aquelas que prevêem a utilização do instituto da desconsideração, a que mais se mostre adequada as necessidades de efetivação do processo trabalhista com a concretização dos direitos do trabalhador. Especial atenção é dedicada ao microcosmo consumerista diante de sua identificação com o Direito do Trabalho. Há o reconhecimento da Constituição como norma ápice e suprema do ordenamento jurídico, exigindo a sua preliminar observância quando da análise de qualquer norma, conforme demonstrar-se-á. Três valores e princípios constitucionais, de forma mais detida são analisados diante de sua comunicabilidade com a natureza do crédito trabalhista e a sua importância para a subsistência do trabalhador e sua família. São eles o da dignidade da pessoa humana, o da duração razoável do processo e da função social da propriedade. Por fim, a partir das críticas feitas à opção legislativa, procura-se justificá-la. Palavras-chave: Desconsideração da Personalidade Jurídica; Sociedade Limitada Empregadora; Direito do Trabalho; Código de Defesa do Consumidor
ABSTRACT
This present article aims to make an analysis of the legal nature of the disregard doctrine first, and after to investigate the application in the Labor Law, especially concerning constitutional principles and values, whose supremacy in the legal system is recognized, like the principle of human dignity, reasonable duration of the litigation, and social use of the property as constitutional target to attract the necessary protection to the credit of the worker. This study starts searching for the real meaning of person, personality, legal entity, and finally private limited company. This one as an employer. Because of the absence of specific rule of law regarding the matter in the Labor Law field, it must be searched, according to principles and values that conduct this field, a norm that approaches to these as it is foreseen in the article # 8o. of Brazilian Labor Relations Code. Especially concerning the Brazilian Consumers Code. By the end, this study uses the critical made by some writers to the option to justify that. Keywords: Disregard of Legal Entity; Private Limited Company as an Employer; Labor Law System; Brazilian Consumers Code
LISTA DE SIGLAS
CC – Código Civil
CCB – Código Civil Brasileiro
CDC – Código de Defesa do Consumidor
CF – Constituição Federal
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho
ONU – Organização das Nações Unidas
OIT - Organização Internacional do Trabalho
PL – Projeto de Lei
STF – Superior Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
SUS – Sistema Único de Saúde
TRT – Tribunal Regional do Trabalho
SUMÁRIO
RESUMO.....................................................................................................................6
ABSTRACT........................................... ......................................................................7
LISTA DE SIGLAS.................................... ..................................................................8
1 INTRODUÇÃO .........................................................................................................9
2 PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCIEDADE LIMITADA EMPREGADORA E A SUA DESCONSIDERAÇÃO ................ ................................13
2.1 A PERSONALIDADE JURÍDICA .........................................................................13
2.1.1 Do Conceito de Pessoa....................................................................................13
2.1.2 Personalidade ..................................................................................................15
2.1.3 Capacidade ......................................................................................................17
2.1.4 Pessoas Naturais .............................................................................................18
2.2 A PESSOA JURÍDICA.........................................................................................20
2.2.1 Conceitos .........................................................................................................20
2.2.1.1 Notícia histórica, evolução da construção dogmática....................................22
2.2.1.2 Natureza jurídica ...........................................................................................25
2.2.1.3 A personificação e seus efeitos.....................................................................29
2.2.1.4 Classificação das pessoas jurídicas..............................................................30
2.3 A SOCIEDADE LIMITADA EMPREGADORA .....................................................34
2.3.1 As Sociedades: Conceito e Classificação ........................................................34
2.3.1.1 Sociedade por quotas de responsabilidade limitada .....................................38
2.3.2 O Empregador..................................................................................................43
2.4 RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL DO SÓCIO ...........................................48
2.5 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA como modelo de responsabilidade externa. .........................................................................................50
2.6 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. FORMAÇÃO HISTÓRICA...............................................................................................................53
2.7 A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA..........59
2.7.1 O Desenvolvimento da Disregard Doctrine no Brasil .......................................59
2.8 A TEORIA E SUA POSITIVAÇÃO ATUAL NO DIREITO BRASILEIRO..............61
2.8.1 Natureza Jurídica do Instituto...........................................................................68
3 VALORES CONSTITUCIONAIS DO TRABALHO SOB A ÓTICA D A INTERPRETAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCIEDADE EMPREGADORA .................. .....................................74
3.1 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ..................................................................74
3.1.1 A Dignidade da Pessoa Humana como Princípio.............................................78
3.1.2 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana do Trabalhador ........................83
3.1.2.1 Do reconhecimento da dignidade humana do trabalhador............................83
3.1.2.2 Vertentes do respeito à dignidade humana do trabalhador...........................86
3.2 O DIREITO FUNDAMENTAL À DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO DO TRABALHO...............................................................................................................97
3.2.1 O processo e seus objetivos ............................................................................97
3.2.1.1 A morosidade processual e suas conseqüências..........................................99
3.2.1.2 Causas da morosidade................................................................................102
3.3 O DIREITO FUNDAMENTAL À DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO: CONCEITO E LEGISLAÇÃO ..................................................................................104
3.3.1 O status de Direito Fundamental....................................................................104
3.3.2 Conceituação no processo do trabalho ..........................................................107
3.4 PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA: ORIGEM, CONCEITO E FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS...................................................................110
4 FUNDAMENTOS LEGAIS DA DESCONSIDERAÇÃO: A INTERPRE TAÇÃO SEGUNDO VALORES E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS, ENTROSAMENTO DE SISTEMAS JURÍDICOS E INTEGRAÇÃO DA NORMA TRABALHISTA........................................ ...............................................................118
4.1 A ANALOGIA COMO MÉTODO DE INTEGRAÇÃO DA NORMA .....................118
4.1.1 A Interpretação da Expressão “Direito Comum” presente no Artigo 8º da Norma Celetária..................................................................................................................120
4.2 O ENTROSAMENTO COM O MICRO-COSMO CONSUMERISTA..................129
4.3 O JURISTA E A ESCOLHA LEGISLATIVA. O RESPEITO AO TRABALHADOR E VALORES CONSTITUCIONAIS .............................................................................134
4.4 A APLICAÇÃO DA DISREGARD DOCTRINE E AS PECULIARIDADES DO CRÉDITO TRABALHISTA: A EFETIVAÇÃO DE PRECEITOS E VALORES CONSTITUCIONAIS ...............................................................................................140
4.5 A ASSUNÇÃO DOS RISCOS DA ATIVIDADE ECONÔMICA PELO EMPREGADOR COMO FUNDAMENTO DA DISREGARD ....................................148
4.6 A DISREGARD E O DIREITO FUNDAMENTAL CONSTITUCIONAL A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO...............................................................151
4.7 O PROBLEMA DO SÓCIO EMPREGADO (E O MINORITÁRIO) .....................153
4.8 AS CRÍTICAS A APLICAÇÃO DA TEORIA MENOR: A VISÃO EMPRESARIAL E O MITO DA DESCONSIDERAÇÃO COMO INIMIGA DA ATIVIDADE PRODUTIVA................................................................................................................................159
5 CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS................. .....................................166
REFERÊNCIAS.......................................................................................................170
9
1 INTRODUÇÃO
Impactado com o súbito desconto em sua conta corrente o empresário vê-se
diante da responsabilização pessoal, através de seus bens, por dívida advinda de
uma execução trabalhista decorrente de reclamatória movida contra pessoa jurídica
da qual é sócio.
Por outro lado também, não raro situações nas quais, após anos de uma
desgastante batalha judicial, o trabalhador encontra enorme dificuldade em receber
os direitos reconhecidos judicialmente em razão da ineficiência do processo de
execução que esbarra em situações de ausência de bens da empresa para a qual
prestou serviços.
Persistem dificuldades com que se deparam o juiz e as partes litigantes. Tais
problemas são relevantes, pois podem atingir a efetividade do processo e, por
conseqüência, o próprio ideal de justiça a ele subjacente.
Considerando que o propósito de que um processo judicial seja instrumento
hábil capaz de sustentar o exercício da jurisdição, não se pode negar que o
processo trabalhista justo se relaciona com a necessidade de sua efetividade
através de instrumentos existentes para sua concretização em fase executória.
O tema da desconsideração da pessoa jurídica ganhou larga dimensão e
importância, mormente após a inserção no processo do trabalho do BACEN-JUD1,
sistema pelo qual o Juízo trabalhista pugna pelo auxílio do sistema integrado do
banco central para realizar penhoras diretamente em todas as contas correntes em
nome da pessoa.
O modo pelo qual a responsabilidade dos sócios é determinada, o
levantamento do véu da pessoa jurídica com a invasão direta do patrimônio
daqueles requer aprofundamento da matéria, notadamente a justificar a utilização do
instituto da desconsideração de forma ampla ou restrita na justiça do trabalho.
O tema é de solar relevância, pois trata de instrumento eficaz para a
concretização de direito buscado através do processo judicial trabalhista, assim
como para sua própria efetivação o que se confunde com a efetivação de princípios
constitucionais.
1 Resolução Administrativa TST 73/2005.
10
O objetivo deste trabalho é realizar uma análise do instituto, seus aspectos
técnicos jurídicos para, a partir de uma análise sob a ótica constitucional de proteção
ao trabalhador e dos frutos percebidos através do seu trabalho, justificar a ampliação
das possibilidades de desconsideração da pessoa jurídica e aplicação analógica dos
termos previstos no código consumerista sobre a matéria.
A ausência de legislação própria no Direito do Trabalho, e do permissivo legal
existente no artigo 8º. da CLT para, através da utilização do instituto da analogia,
preencher a lacuna com textos legais de outros códigos e leis, suscita acalorada
discussão entre doutrinadores e Juízes.
As opções que se apresentam trazidas do universo consumerista e do Direito
Civil, principalmente (embora não as únicas, mas as mais importantes) divide
opiniões. As posições são defendias com importantes e relevantes argumentos, os
quais pretendemos expor neste trabalho, sempre tendo como norte interpretativo a
Constituição Federal.
O presente trabalho delimita-se na análise do instituto da desconsideração da
personalidade jurídica, tão somente. Embora existam instrumentos que permitam a
responsabilização direta dos sócios, o que não se nega, este não é o entendimento
da jurisprudência que de forma praticamente unânime, faz uso da disregard doctrine
como fundamento legal para o levantamento do véu da pessoa jurídica.
Também, optou-se por concentrar o exame do instituto em sociedades
limitadas por se tratar da modalidade mais comum de empresas no Brasil. Não se
tratará, portanto, de Sociedades Anônimas, ou quaisquer outros.
A opção pela aplicação analógica do artigo 28 do Código do Consumidor é
desde já assumida e justificada, razão pela qual, também, não irá se tratar dos
requisitos para aplicação da forma restritiva de aplicação do instituto da
desconsideração conforme previsão do artigo 50 do Código Civil, tais como, fraudes,
abusos, falta de liquidação regular, sub-capitalização, elusão do poder de controle, e
confusão patrimonial.
Por se tratar de uma análise do instituto no Processo do Trabalho sob a ótica
Constitucional, assim como seus pressupostos diante da proteção constitucional do
salário, o presente trabalho não tem como escopo entrar em questões processuais,
tais como necessidade de intimação, recursos cabíveis, ou aplicação ex oficio que
não serão tratadas.
11
Em relação à matéria de ordem constitucional, opta o presente trabalho de
Mestrado, por abranger dois princípios que entende relacionados com a matéria,
quais sejam o princípio da dignidade da pessoa humana, intimamente vinculado ao
caráter alimentar da parcela retributiva salarial, e o da duração razoável do
processo, direito fundamental constitucional ligado à situações que privilegiem
opções para a rápida efetivação do processo.
O objetivo, então, é definir de que forma o instituto da desconsideração da
personalidade jurídica da sociedade empregadora limitada deve ser aplicado no
processo, respeitando as características e o arcabouço normativo e principiológico
do ramo do Direito do Trabalho, em contraposição a uma visão exclusivamente
economicista, com vistas a plena efetividade aos princípios constitucionais de
proteção ao salário, valorização do trabalho e proteção à dignidade da pessoa
humana.
Na primeira parte do trabalho, far-se-á análise do conceito de pessoa,
personalidade e personalidade jurídica, chegando à sociedade limitada, como
personalidade jurídica empregadora. A partir daí, passa a analisar a
desconsideração da personalidade jurídica como modelo de responsabilização
externa, sua evolução histórica, positivação e natureza jurídica.
Na segunda parte será feita análise da escolha do jurista e sua escolha
legislativa, através da opção pelo texto constitucional como norte interpretativo. Dois
princípios específicos serão abordados por guardarem conexão com o instituto da
desconsideração, o da dignidade da pessoa humana em razão de sua íntima ligação
com o caráter alimentar do crédito e o da duração razoável do processo por servir de
fundamento constitucional a opções que privilegiem a rapidez processual e
efetivação do processo.
No terceiro capítulo, analisar-se-á como a desconsideração da personalidade
jurídica age na concretização dos valores e princípios constitucionais quando
aplicado no Processo do Trabalho, em especial os dois princípios explicados no
capítulo anterior. Diante da ausência de norma específica no campo juslaboral, faz-
se necessário estudo sobre o método de integração da norma no momento de sua
aplicação, mediante permissivo do artigo 8º. da CLT, através do uso da analogia. A
opção pela norma insculpida no Código de Defesa do Consumidor por sua amplitude
é, então, justificada.
12
Não se deixa de lado também, sob pena de omissão, as críticas à aplicação
da chamada teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica no Direito
do Trabalho, em especial por parte de respeitáveis juristas ligados ao direito
empresarial.
A vinculação necessária a valores e princípios constitucionais, colocados em
primeiro plano, através de considerações sobre separação patrimonial entre sócio e
sociedade limitada, desaguando na necessidade de, a partir deste estudo, expor
critérios para aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no
Processo do Trabalho leva à aderência à linha 2, proposta pelo programa do
Mestrado “Atividade empresarial e constituição: inclusão e sustentabilidade.”.
13
2 PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCIEDADE LIMITADA EMPR EGADORA E A
SUA DESCONSIDERAÇÃO
2.1 A PERSONALIDADE JURÍDICA
2.1.1 Do Conceito de Pessoa
A idéia de personalidade está umbilicalmente ligada à idéia de pessoa. Um
estudo sobre a personalidade jurídica deve estar intimamente ligado a um conceito
próprio de pessoa.
A palavra pessoa advém do latim persona, trazida da linguagem teatral
romana. Significava máscara, uma vez que os atores as adaptavam ao rosto de
modo a dar eco às palavras. Personare quer dizer, pois, ecoar, fazer ressoar. O
termo evoluiu passando a significar o próprio ator que dava voz à máscara e mais,
tarde, passou a se confundir com o próprio homem; depois passou o conceito a
referir-se ao sujeito de direito, nos moldes do sentido como hoje é aplicado. Excluía-
se na época, entretanto, os escravos pois estes eram res.2 3
Monteiro4 ensina que a palavra em questão pode ser tomada em três
diferentes acepções: vulgar, filosófica e jurídica.
Na acepção vulgar é sinônimo de ser humano, empregada de modo
inconsciente, acepção que não se coaduna com a técnica jurídica. Na acepção
filosófica, pessoa é o ente que realiza seu fim moral e emprega sua atividade de
modo consciente, ou seja, pessoa é homem.
Por fim, na acepção jurídica, pessoa “é o ente físico ou moral, suscetível de
direitos e obrigações”. Assim esclarece o autor, que pessoa é, neste sentido,
sinônimo de sujeito de direito ou de relação jurídica.5
2 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil : Parte Geral. Revista e atualizada por Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 61. Neste mesmo sentido 3 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil .. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996. p. 282. 4 MONTEIRO, op. cit., p. 62. 5 MONTEIRO, loc. cit.
14
Miranda6 pontua em eu Tratado que “ser pessoa é apenas ter a possibilidade
de ser sujeito de direito. Se sujeito de direito é estar na posição de titular de direito.
Não importa se esse direito é subjetivado, se é munido de pretensão e ação, ou
exceção.”
Conclui-se, portanto, que todo ser humano é pessoa, no sentido jurídico.7
Assim, de se admitir, forçosamente, que a de existir um sujeito que lhe
detenha a titularidade. Esse sujeito pode ser o homem, individualmente, ou
agrupamento destes inspirados por fins e interesses comuns.8
Logo se nota, portanto, que a idéia de homem, independe do conceito de
pessoa, constituindo conceitos absolutamente distintos. O professor Caetano
Foschini apud Márcio André Medeiros de Moraes demonstra a bipartição do termo
pessoa, demonstrando que este se reporta também ao homem, primeiramente com
sendo sujeito de direito inteligente, parte passiva e ativa da relação jurídica que
produz direito de uma parte e dever de outra.
Este homem deve ser considerado na sua individualidade corpórea, bem
como uma faculdade natural ao querer da qual possa ter origem o direito e o dever.
Não se limita, no entanto ao homem, tanto que também criou uma maneira
artificial, uma faculdade de querer para a qual, através de um artifício legal, atribuiu-
se capacidade de direito a um ente que não é homem. 9
Tem-se então que o conceito abrange necessariamente a chamada pessoa
natural, também chamada de pessoa física e a pessoa jurídica, denominada da
mesma forma de pessoa moral ou coletiva (agrupamento humanos visando a fins de
interesse comum).
6 MIRANDA. Pontes de. Tratado de direito privado : parte geral. Campinas: Bookseller, 1999. p. 207. 7 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito . 4. ed. Trad. João Baptista machado. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 188. Kelsen apresenta uma concepção um pouco diferente da descrita. Para o autor é sujeito jurídico quem é sujeito de uma pretensão ou titularidade jurídica. Explica o autor que o conceito de sujeito de direito é auxiliar à descrição do direito, desta forma o conceito de sujeito de direito não é necessário para a descrição do direito, é um conceito auxiliar que facilita a exposição do direito. Assim, a pessoa, seja ela natural ou jurídica, é a unidade personificada que representa um complexo de direitos e deveres; é a unidade personificada das normas jurídicas que lhe impõe deveres e lhe conferem direitos. Logo, sob o prisma Kelseniano é a pessoa uma construção da ciência do direito, que com esse entendimento afasta o dualismo: direito objetivo e subjetivo. 8 MONTEIRO, 2003, p. 62. 9 FOSCHINI, Caetano. Delle Persone e del Loro Stato secondo el Codice Ci vile Italiano, 1886 apud MORAES, Márcio André Medeiros. A desconsideração da personalidade jurídica no códi go de defesa do consumidor . São Paulo: LTr, 2002. p. 19.
15
A doutrina italiana, no mesmo sentido, também destaca ser o conceito de
pessoa diferente do homem singular, mas sim como destinatário da regulação de
conduta.10
Alpa11 enfatiza que o conceito de pessoa apresenta uma interpretação mais
complexa, pois exige uma premissa de fato (no caso de pessoa física, ou natural, a
existência de um homem, e no caso da pessoa jurídica a existência de um
ordenamento) e uma premissa de direito, que reclama a conexão entre fato e
comportamento através de uma referência comum.
Por este motivo, parece ser esta a razão de o legislador de 2002, ter se
decidido pela substituição da terminologia homem pela pessoa.12 13
2.1.2 Personalidade
Amaral14 ensina que no direito romano a personalidade jurídica do homem
dependia de requisitos físicos (nascimento com vida, separação do ventre materno e
forma humana) assim como da existência de três estados: de liberdade (status
liberatis), cidadania (status civitatis) e de família (status familiae). Assim, desta
interpretação, pode-se dizer que o reconhecimento da personalidade, com os
10 ALPA, Guido. Trattato di dirito Civile: Storia, fonti, interpret azione . Milano: Giuffrè editore, 2000. p.332. O autor ensina: La riflessione storica mostra cosi l’opportunitá dello sforzo diretto a separare Il concetto di persona dall’imagine Del protagonisa dela scena giuridica. E a tale obiettivo è dedicata La parte analítica dell’opera. Le premesse teroiche accolte da P. Zatti sono da um lato La redifinizione del concetoo di persona come concetto di genere proposta da Uberto Scarpelli, dalláltro l’analisi dei concetti Del tipo “diritto soggesttivo”, e dell’escrizione di diritti ed obblighi., secondo Alf Ross. 11 Ibid., p 332. “il concetto di persona ha però più complesse condizioni d'uso: esso riassume una premessa di fatto nel caso della persona fisica, l'esitenza di un uomo, nel caso della personna giuridica, l'esistenza di un ordinamento, ed una premessa di diritto, che richiama il collegamento di fatto e comportamenti tramite ir loro comune referimento, nel caso della persona fisica, all'uomo, nel caso della personsa giurudica, all'ordinamento. 12 No mesmo sentido NAHAS, Thereza Christina. Desconsideração da pessoa jurídica: reflexos civis e empresariais no direito do trabalho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 13. 13 GONÇALVES, 2009, p. 75, observa que: No relatório sobre o texto do novo Código Civil aprovado pelo Senado Federal constava ter sido operada a substituição, no artigo correspondente ao supratranscrito, da palavra homem por ser humano. Nova modificação ocorreu posteriormente, na Câmara dos Deputados, consagrando-se a expressão toda pessoa, com o objetivo de adequar a redação à nova ordem constitucional, de modo evitar eventuais dúvidas de interpretação. Trocou-se, também, a palavra obrigações pro deveres, considerada mais apropriada e mais ampla, pois estes podem decorrer da lei ou do contrato. 14 AMARAL, Francisco. Direito civil : introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 253.
16
direitos da plena capacidade jurídica exigia que o sujeito fosse livre (não escravo),
cidadão (não estrangeiro) e sui iuris ou chefe de família.
Já no direito moderno, “extinta a escravidão, reconhecido aos estrangeiros o
gozo dos direitos civis, e admitindo que a situação familiar não altera a capacidade
jurídica, a personalidade surge como projeção da natureza humana.”15
O mesmo autor, baseado na doutrina italiana apresenta duas concepções de
personalidade jurídica do homem advindas da evolução doutrinária do tema: Para a
concepção naturalista, “todos os indivíduos têm personalidade, considerada inerente
à condição humana como atributo essencial do ser humano, dotado de vontade,
liberdade e razão.”16
Já para a concepção formal, própria da ciência jurídica positivista, “a
personalidade é a atribuição ou investidura do direito.”17 Assim pessoa e ser humano
não coincidiriam. Para Amaral, a pessoa não seria o ser humano dotado de razão,
mas simplesmente o sujeito de direito criado pelo direito objetivo.18
Esta concepção formal é a adotada pela doutrina, segundo a qual, a idéia de
pessoa está intimamente ligada à idéia de personalidade, exprimindo a aptidão
genérica para adquirir direitos e contrair obrigações.19
É pressuposto para a inserção e atuação da pessoa na ordem jurídica. É,
portanto, a personalidade, qualidade ou atributo do ser humano.20 21
A personalidade é, desta forma, um conceito básico da ordem jurídica, que a
estende a todos os homens, consagrando-a na legislação civil e nos direitos
constitucionais de vida, liberdade e igualdade. 22
15 AMARAL, 2008, p. 253. 16 AMARAL, loc. cit. 17 AMARAL, loc. cit. 18 AMARAL, loc. cit. Completa o autor: “Com uma visão mais atualizada, pode-se dizer que pessoa traduz a qualificaçãO jurídica da condição natural do indivíduo, em uma transposição do conceito ético de pessoa para a esfera do direito privado, e no reconhecimento de que são inseparáveis as construções jurídicas da realidade social, na qual se integram e pela qual se justificam.” 19 SOUZA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade . Coimbra: Coimbra, 1995. p. 117. A doutrina portuguesa define, a partir do texto do artigo 70 do Código Civil daquele país, personalidade como bem tutelado pelo direito, numa concepção humana sendo “...o real e o potencial físico e espiritual de cada homem em concreto, ou seja, o conjunto autônomo, unificado, dinâmico e evolutivo dos bens integrantes da sua materialidade física e do seu espírito reflexivo, sócio-ambientalmente integrados.” Tal conceito aproxima-se da concepção naturalista descrita por Amaral (2008). 20 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro : teoria geral do direito civil. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 114. 21 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro . 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 70. 22 VALLADÃO, Haroldo. Capacidade de direito . Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva. v. 13. 1977. p. 34.
17
Beviláqua23 a define como “a aptidão, reconhecida pela ordem jurídica a
alguém, para exercer direitos e contrair obrigações.”
É, portanto, pressuposto de direitos e deveres.
O direito reconhece a personalidade também a certas entidades chamadas
morais, denominadas pessoas jurídicas, compostas de pessoas naturais que se
agrupam, com observâncias das condições legais ou constituídas de um patrimônio
destinado a um fim determinado.24
2.1.3 Capacidade
A Capacidade é elemento da personalidade, sendo definida por Monteiro25
como “a aptidão para adquirir direitos e exercer, por si ou por outrem, atos da vida
civil.” O conjunto desses poderes constitui a personalidade, que, localizando-se ou
concretizando-se num ente, forma a pessoa.26
Assim, pode-se dizer que a capacidade é a “medida jurídica da
personalidade”, ou seja, o limite da potencialidade de adquirir direitos ou contrair
obrigações.27
Enquanto a personalidade é um valor, a capacidade é a projeção deste valor
que se traduz num quantum. Existe, portanto, a possibilidade de medida, de
graduação.
E justamente neste fato que está o desencontro entre os dois conceitos que,
apesar de umbilicalmente interligados, não são expressões sinônimas. Pode-se ser
mais ou menos capaz, mas não se pode ser mais ou menos pessoa.28 29
23 BEVILÁQUA, 1916 apud GONÇALVES, 2009, p. 70. 24 GONÇALVES, 2009, p. 71. 25 MONTEIRO, 2003, p. 64. 26 MONTEIRO, loc. cit. 27 GONÇALVES, op.cit. p. 71. 28 AMARAL, 2008, p. 254. 29 ALVES, José Carlos Moreira. A parte geral do Projeto do Código Civil brasileiro . São Paulo: Saraiva, 1986.
18
As duas, entretanto, se completam, pois a capacidade se ajusta ao conteúdo
da personalidade. Tais institutos interpenetram-se, sem se confundirem.30
O próprio Código Civil em seu artigo 1º faz a simbiose entre personalidade e
capacidade ao declarar que toda “pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem
civil”. Assim, afirmar que o homem tem personalidade é o mesmo que dizer que ele
tem capacidade para ser titular de direitos.31
Nem todas as pessoas, no entanto, possuem capacidade de fato, ou
capacidade de exercício ou ação, que se traduz na capacidade para exercer os atos
da vida civil.
Por faltarem alguns requisitos (maioridade, saúde, desenvolvimento mental,
etc.), a lei sonega-lhes o direito de autodeterminação, de exercer os direitos pessoal
e diretamente, exigindo sempre a participação de outra pessoa ou assistente.32
2.1.4 Pessoas Naturais
No direito francês, assim como no italiano, utiliza-se o termo pessoa física
para referir-se à pessoa humana. No direito nacional tal expressão é utilizada no
direito tributário. Caio Mário da Silva Pereira, por exemplo, utiliza-se do termo
pessoa natural, mesmo termo ao qual aderiram Gonçalves e Diniz, sob a justificativa
que este designa o ser humano tal como ele é.33
30 [...] os institutos da personalidade e da capacidade jurídicas interpenetram-se, sem se confundirem, com o bem da personalidade humana juridicamente relevante, na medida em que os valores jurídicos que aqueles institutos incorporam são reabsorvidos também no bem jurídico da personalidade, enquanto objecto da tutela geral referida. Concretizando, o bem jurídico da personalidade reivindica e incorpora um direito ao bem da personalidade jurídica plena e clama, conseqüência ou postula o bem de uma capacidade jurídica extensa. (SOUSA, 1995, p. 106). 31 GONÇALVES, 2009, p. 71. 32 Ibid.,.p. 72. 33 DINIZ, 2008, p. 145.
19
Este é o posicionamento de nossa legislação civil, empregada no Código Civil
e da grande maioria dos civilistas nacionais.34
O Código Civil, em seu artigo 1º., trata de reconhecer a toda pessoa a
capacidade para a aquisição de direitos e obrigações. No art. 2º. determina que a
personalidade inicia com o nascimento com vida.35
A expressão pessoas naturais do modo como é empregada no Código Civil,
reporta-se tanto ao sujeito ativo como ao sujeito passivo da relação jurídica. Esta
tecnicidade atribuída a um ser humano, entretanto, é criticada por parte da doutrina.
Meirelles36 lembra que “esse mesmo sujeito que a lei civil define como tal é o
homem, mas esse mesmo homem definido como sujeito de direito muitas vezes
passa pelo mundo sem ter tido o mínimo de condições necessárias à sua
sobrevivência.”
Coutinho37, na esteira de Lorenzetti, acrescenta que a parte geral do direito
civil, no entanto, apresenta-se hoje uma crise no que diz respeito a esta noção de
pessoa natural.
Avanços genéticos trazem ao lume situações não imaginadas ou previstas
como a concepção intra e extra-uterina, ou o status jurídico do embrião e dos genes.
Mesmo diante das hipóteses como a do nascituro, do ausente, para assegurar
direitos, se nascer com vida.
Acrescenta-se aí, situações como de fetos nascidos acéfalos, situações de
barriga de aluguel, criação de espermatozóides a partir de células tronco, clonagem,
e outros tantos advindos da evolução da ciência.
34 Alguns autores, no entanto, como Sílvio Venosa e Miranda utilizam-se indiscriminadamente as terminologias pessoa humana e pessoa física para indicar o Homem como sujeito de direitos e obrigações na esfera jurídica e social. (NAHAS, 2007. p. 11). Diniz, 2008, p. 144, lembra que Teixeira de Freitas discorda da expressão porque tal denominação dá a entender existem “pessoas jurídicas não-naturais”, o que não corresponde à realidade, pois os entes criados pelo espírito humano também são naturais, por serem idéias personificadas; são, portanto, tão naturais quanto quem os gerou. Propôs o autor a denominação “ser de existência visível” em oposição a “seres de existência ideal”, este último a designar os entes coletivos, nomenclatura adotada pelo Código Civil argentino que aceitou essa inovação. 35 Mesma linha adotada pelo Código Civil Alemão. 36 MEIRELLES, Jussara. O Ser e o Ter na Codificação Civil Brasileira: do Sujeito Virtual à Cláusula Patrimonial. In: PATRIMONIAL, Luiz Edson Fachin (coord.). Repensando fundamentos de Direito Civil Brasileiro Contemporâneo . Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 94. 37 COUTINHO, Aldacy Rachid. Aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no processo de execução trabalhista. In: NORRIS, Roberto (coord). Execução Trabalhista: visão atual. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p 217.
20
Assim, conclui a autora, “categorias jurídicas do arcabouço do direito privado,
concretadas pelo ordenamento jurídico, devem ser revisitadas e reconstruídas.”38
Lembrando a desumanização com que as tais pessoas naturais são por vezes
tratadas pelo direito e seus aplicadores, arremata lembrando que essa pessoa
natural, “quando chega como parte em uma reclamatória trabalhista, em geral é um
não-ser, um desempregado. [...] É para o que não mais tem, o que entregou a sua
força de trabalho e nada recebeu em troca que o processo do trabalho deve ter
efetividade.”39
2.2 A PESSOA JURÍDICA
2.2.1 Conceitos
Além da consideração da personalidade jurídica aos seres humanos, a ordem
jurídica atribuiu a um conjunto de bens ou de pessoas personalidade jurídica.
Por analogia com as pessoas físicas, a ordem jurídica disciplina o nascimento
desses grupos, reconhecendo-os como sujeito de direito.40
Os sujeitos de direto podem ser, portanto, naturais ou físicas, se coincidentes
com o ser humano, ou pessoas jurídicas, quando “entidades ou organizações
unitárias de pessoas ou de bens a que o direito atribui aptidão para a titularidade de
relações jurídicas”.41
O termo “pessoa jurídica”, no entanto, é contestado por muitos, pois no
sentido de construção jurídica e seus atributos, toda pessoa é jurídica.42
A justificativa encontrada para a existência destas entidades está vinculada à
deficiência da pessoa natural e na impossibilidade ou dificuldade que esta tem de
38 COUTINHO, 2001, p 217. 39 COUTINHO, loc.cit. 40 AMARAL, p. 312. 41 AMARAL, loc. cit. 42 Sobre essa opinião: DINIZ, 2008. p. 114 e GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1974. p. 208.
21
“realizar certos fins que ultrapassam suas forças e os limites da vida individual”.43
Havia, portanto, a necessidade de os indivíduos unirem esforços e utilizarem
recursos coletivos para a realização de objetivos comuns.44
Ao unir esforços a seus semelhantes, o homem multiplica suas possibilidades,
propiciando a execução de obras extraordinárias e duráveis. 45 Isso ocorre tanto em
empreendimentos econômicos como sociais, filantrópicos e culturais.
Há de se ter em mente, ainda, que essa limitação da capacidade individual de
há muito existe e se torna mais forte a cada dia, na medida em que a sociedade
humana se torna cada vez mais complexa, sob todos os aspectos, impondo a
coletivização para o desenvolvimento das pessoas.46
Tal constatação, portanto, motivou a organização de pessoas e bens, bem
como o reconhecimento do direito, que atribuiu a este grupo uma personalidade,
distinta de cada um de seus membros (sendo esta a sua principal característica),
passando este a atuar na vida jurídica com personalidade própria.
Assim, surgem as chamadas pessoas jurídicas, também designadas como
pessoas morais em países com França e Suíça e pessoas coletivas em Portugal. 47
Em Portugal ainda, apesar de se admitir a denominação pessoa coletiva diversas
vezes lê-se a referência à personalidade jurídica da pessoa coletiva.48
A Argentina adotou a expressão proposta por Teixeira de Freitas, entes de
existência ideal.49
No Brasil, assim como em países como Alemanha, Espanha, Uruguai, Grécia,
antiga União Soviética e Itália, optou-se pela expressão “pessoas jurídicas”.50
43 MONTEIRO, 2003, p. 120. 44 GONÇALVES, 2009, p.182. 45 MONTEIRO, op. cit., p. 120. 46 SANTOS, Hemelino de Oliveira. Desconsideração da personalidade jurídica no proces so do trabalho: diretrizes à execução trabalhista : artigo 50 do Código Civil e sua aplicação trabalhista. São Paulo: Ltr, 2003. p. 19. 47 A doutrina portuguesa de Mota Pinto (2005) defina a pessoa colectiva como “organizações constituídas por uma colectividade de pessoas ou por uma massa de bens dirigidos à realização de intresses comuns ou colectivos, às quais a ordem jurídica atribui a personalidade jurídica. Trata-se de organizações integradas essencialmente por pessoas ou essencialmente por bens, que constituem centros autônomos de relações jurídica – autônomos mesmo em relação aos seus membros ou às pessoas que actuam como seus órgãos.” 48 MOTA PINTO, Carlos Alberto. Teoria Geral do Direito Civil. 3. Ed. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 268. 49 Artigo 33 do Código Civil Argentino. 50 No Brasil, o termo foi adotado no Código Civil (arts. 40 a 69) assim como outros povos. Na Alemanha arts. 21 a 89, na Itália arts. 11 a 42. O Código Civil espanhol adotou a expressão no artigo 35. No Uruguai o artigo 21 do Código Civil, segunda alínea, adota a expressão. O Código Civil da antiga União Soviética utiliza pessoa jurídica em seu artigo 14 e seguintes.
22
Inúmeras outras designações, entretanto, são lembradas tais como pessoas
civis, místicas, abstratas, compostas, universidade de bens e de pessoas.51 52 O
papa Inocêncio IV batizava tais entidades com o nome expressivo, de corpus
mysticum, falando, ainda, os canonistas de antanho em persona universitatis,
persona invisibilis, persona representata e persona collegi. 53
A expressão pessoa jurídica, sem ser perfeita, é reconhecida por diversos
autores como a menos imperfeita, pois designa como vivem e agem essas
agremiações, pois acentua o ambiente que possibilita a sua existência.54
Foi a doutrina alemã, entretanto, que atingiu a moderna concepção de pessoa
jurídica, sistematizando a matéria de direito civil elaborando uma teoria geral
reunindo noções, elementos e categorias jurídicas comuns a todos os ramos do
direito.55
Surge, então, decorrente desta existência concreta de grupos humanos e de
bens para a satisfação de interesses e necessidades coletivas, com individualidade
própria e distinta da de seus membros, impunha o seu reconhecimento ao direito.
A par de toda essa tecnicidade envolvendo o conceito de pessoa jurídica deve
se ter em mente principalmente que a entidade jurídica é constituída e criada pelo
ser humano, para a ele servir dentro dos parâmetros de respeito à sua dignidade.
Oliveira56 bem destaca que a pessoa jurídica “dele depende, que deve sua
existência ao ordenamento jurídico e que é o que o ordenamento deseja que ela
seja, pois que não é, no âmbito da vida jurídica, fenômeno natural pré-existente, mas
mera criação do pensamento humano para a consecução de determinados fins.”
2.2.1.1 Notícia histórica, evolução da construção dogmática
Como dito alhures o termo pessoa jurídica, com seu significado atual é
elaboração moderna, advinda da dogmática alemã dos séculos XVIII e XIX que se
51 DINIZ, 2008, p. 114. 52 GONÇALVES, 2009, p. 182. 53 SILVA, Wilson Melo da. Pessoas jurídicas : separata da Revista da Faculdade de Direito da U.F.M.G. Belo Horizonte: UFMG, 1966. p. 67. 54 DINIZ, op. cit., p. 23. 55 AMARAL, 2008, p. 318. 56 OLIVEIRA, José Lamartine Correia de. A dupla crise da pessoa jurídica . São Paulo: Saraiva, 1979. p. 329.
23
integrou definitivamente na terminologia jurídica como produto de notável abstração
jurídica dos juristas deste período.
Tal construção resulta, assim como diversos outros conceitos e categorias
jurídicas, de um longo processo evolutivo que apresenta três períodos distintos: o
romano, o medieval e o moderno.57
No direito romano, a pessoa jurídica não existia. Práticos, os romanos sempre
se mostraram sóbrio e parcimoniosos sobre o tema, avesso a abstrações
metafísicas. Os textos jurídicos desta época traziam o termo persona geralmente
como sinônimo de homem.58
Na primeira fase do Império Romano, conhecia-se, entretanto, certas
associações de interesse público como universitates, sodalitates, corpora e
collegia.59
Foi no pensamento medieval, mormente no século XIV, com a contribuição do
direito canônico que, reunindo elementos do direito romano pós-clássico, do direito
germânico antigo e do próprio direito canônico, chega-se ao núcleo central do
conceito de pessoa jurídica através do incremento das fundações, então
denominadas corpus mysticum.
Qualquer ofício eclesiástico, provido de patrimônio próprio, era considerado
ente autônomo. Essas fundações que, a princípio, eram subordinadas à Igreja, mais
tarde tornaram-se independentes. (pium corpus, sancta domus, hospitalis).60
Foi somente na idade média a partir do pensamento de Sinaldo de Fleschi,
que se chega a uma conceituação da pessoa ficta, consagrando a expressão
“Universitas fingatur esse uma persona”.61
A questão era decidir a cidade que se revoltava contra um soberano, o papa
ou o imperador poderia ser castigada como um todo.62
Até então, a resposta era positiva uma vez que condenava-se, excomungava-
se ou interditava-se cidades e vilas inteiras como se fossem uma só pessoa.
57 AMARAL, 2008, p. 318. 58 MONTEIRO, 2003, p. 121. 59 A referência é feita por Monteiro (2003) em seu Curso de Direito Civil com base na lição de Calogero Gangi em Persone Fisiche e Giuridiche. Amaral (2008, p. 316), no entanto, destaca que expressões como universitas e corpus, figuras posteriormente consideradas jurídicas. 60 MONTEIRO, op. cit., p. 121. 61 A universalidade é tida como uma pessoa. 62 AMARAL, op. cit. p. 316.
24
Sinibaldo de Fieschi, que depois seria papa sob o nome de Inocêncio IV,
defendia então a tese de que são diferentes a pessoa do homem, pois não tem
alma, corpo, assim como os homens. Não se pode, portanto, uma universitas
incorrer em pecado, conseqüentemente, ser excomungada ou, sequer cometer
pecato.63
Desta idéia, chegou-se a verificação de que a universitas exercitam direitos e
deveres, devendo ser consideradas pessoas fictas.
A concepção deste canonista se consolida-se quando ele, já como papa
Inocêncio IV, consegue que o Concílio de Lyon, em 1245 proíba a excomunhão dos
collegia e universitas, com base nos seus argumentos, consagrando a sua teoria nos
meios jurídicos medievais, tendo sido ele o verdadeiro iniciador da teoria da pessoa
jurídica.64
Na época moderna, com o jusnaturalismo passa a denominar a persona ficta
como pessoa moral designando “comunidades ou corporações”. Adotam tal
denominação os códigos da Prússia e da Áustria.
Amaral65 ressalta que o Código francês, no entanto, “não reconhecia a
doutrina da existência de corpos ou entes morais intermédios entre os Estado e o
indivíduo, amparados e nascidos de normas estranhas ao poder do Estado, como
eram as de direito natural.”
A doutrina alemã, por fim, determinou os atuais contornos do que
modernamente vem a ser a pessoa jurídica.
No Brasil, reconheceu-se ampla personalidade às sociedades, quer civis quer
comerciais.66
Teixeira de Freitas, no famoso Esboço do Código Civil, apresentou a
regulamentação das pessoas jurídicas, incluindo as sociedades na categoria de
pessoas, com a advertência de que pela primeira vez tentou-se a temerária empresa
de reunir em um todo “o que há de mais metafísico na jurisprudência”.67
63 AMARAL, p. 316. 64 AMARAL, loc. cit. 65 Ibid. p. 318. 66 O decreto no. 2.427, de 17/12/1997, promulgou a Convenção Interamericana sobre personalidade e capacidade das pessoas jurídicas no direito internacional privado, estabelecendo que elas são toda entidade que tenha existência e responsabilidades próprias, distinta da de seus membros, e que seja qualificada como pessoa jurídica segundo a lei do lugar de suas constituição. 67 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 373.
25
O Esboço previa que as pessoas “ou são de existência visível ou são de
existência ideal”. Elas podem adquirir os direitos, que o presente Código regula, nos
casos e pelo modo e forma, que, no mesmo se determinar.68
Essa matéria, no entanto, não é pacífica, sendo inúmeras as controvérsias
sobre a natureza jurídica destes entes, sendo campo aberto à discussões e
polêmicas entre civilistas, romanistas, criminalistas e trabalhistas.
2.2.1.2 Natureza jurídica
A doutrina está longe a apresentar um consenso sobre a natureza jurídica da
pessoa jurídica, sendo que várias teorias foram elaboradas sobre o tema.
As teorias são quatro: a) da ficção legal e da doutrina; b) teoria da
equiparação; c) teoria orgânica ou da realidade objetiva; d) da realidade das
instituições jurídicas.69
A primeira teoria, teoria da ficção, sustentada por Savigny, constitui-se na
doutrina tradicional, originando-se no direito canônico e prevalecendo até o século
XIX.70 Hoje encontra-se em descrédito, não sendo mais aceita por praticamente
68 O conceito de Teixeira de Freitas era oferecido no art. 272 do seu Código: “Todos os entes suscetíveis de aquisição de direito, que não são pessoas de existência visível, são pessoas de existência ideal”. 69 Estas quatro denominações são igualmente lançadas por Diniz (2008, p. 232) e por Monteiro (2003, p. 123). Já Amaral (2008) cita dois grandes grupos ao enumerar estas teorias sendo eles o da ficção e o da realidade, cada um com subdivisões doutrinarias. Sendo estas duas teorias antagônicas. 70 Essa teoria como as demais, liga-se a interesses político-econômicos que lhe configuram o fundamento ideológico. Representando o espírito da época, o individualismo, para quem somente o ser humano pode ser, como pessoa, titular de direitos subjetivos, a pessoa jurídica seria mera construção ou ficçao do direito pela conveniência do Estado. Ao atribuir-se a este o poder de conferir titularidade jurídica a grupos de pessoas ou a organização de bens, conceder-se-ia também u poder de intervenção no domínio privado, a seu arbítrio exclusivo. Esse é o motivo da aceitação dessa teoria, extremamente útil tanto aos que visavam impedir a implantação do Estado Liberal (os adeptos do Antigo Regime francês) como aos próprios Estados liberais nascentes, que precisavam impor a sua autoridade, por meio do controle da conveniência e oportunidade de organização das pessoas jurídicas. (AMARAL, 2008, p. 319). Na mesma linha, e de certa forma “absolvendo” Justen Filho, justifica no pensamento da época a adoção desta teoria: " Vale dizer, se o núcleo do direito subjetivo (e, por decorrência, do direito objetivo) residia na vontade, o único resultado cabível seria o de a pessoa jurídica não ser realmente um sujeito de direitos. E isso pela impossibilidade de localizar vontade senão no ser humano. E isso, pela impossibilidade de localizar vontade senão no ser humano. Atribuir a condição de pessoa (na acepção de titular de direitos) a quem não possa ter vontade, como seria o caso das pessoas jurídicas, significaria um falseamento da realidade. A teoria da ficção é uma resposta coerente para o problema da pessoa jurídica, desde que uma das balizas do raciocínio seja uma filosofia voluntarista.” (JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro . São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 21).
26
nenhum doutrinador brasileiro.
Ela dá conta de que somente o homem é capaz de ser sujeito de direitos,
concluindo que a pessoa jurídica é uma ficção legal, ou seja, “uma criação artificial
de lei para exercer direitos patrimoniais e facilitar a função de certas entidades.”
Vereilles-sommières defende o mesmo raciocínio afirmando que a pessoa
jurídica apenas tem existência na imaginação dos juristas, não tendo qualquer
objetividade, simples efeito de ótica, simples projeção.71 72
A justificativa mais forte para a não aceitação desta teoria é justamente a
aceitação do próprio Estado como pessoa jurídica, pois se concluirmos ser este
mera ficção doutrinária, o direito que dele emana também o será.73 74
A aceitação desta teoria traria problemas no caso concreto, como aponta
Márcio André Medeiros Moraes75. O autor lembra que antes do Código Civil
Brasileiro, no artigo 20, houvesse estabelecido que a pessoa jurídica não se
confunde com a pessoa de seus membros, adotando a teoria orgânica, os julgados
dos nossos tribunais encontravam dificuldades para explicar certos fatos.
Indaga o autor: Se uma sociedade anônima vem a falir, a falência, a princípio,
não atinge a pessoa dos acionistas. Como justificar tal fato com base na mera
ficção?76
A segunda teoria, formulada por Windscheid e Brinz, chamada teoria da
equiparação também nega qualquer personalidade jurídica como substância.
Admite, tão somente, a existência de certas massas de bens, determinados
patrimônios equiparados, no seu tratamento jurídico, às pessoas naturais.77 78
Da mesma forma que a anterior, é inaceitável pois “eleva os bens à categoria
de sujeito de direitos e obrigações, confundindo pessoas com coisas.”79
Para a teoria da realidade objetiva ou orgânica, formulada por Gierke e
Zitelmann, pessoa não é somente o homem, pois junto destes há entes dotados de
existência real, tão real quanto a das pessoas físicas. Assim, as pessoas jurídicas
constituem realidades vivas, que têm existência e vontade própria. 71 MONTEIRO, 2003, p. 124. 72 DINIZ, 2008, p. 233. 73 MONTEIRO, op. cit., p. 124. 74 DINIZ, op. cit., p. 233 75 MORAES MAM, 2002. p. 31. 76 MORAES MAM, loc. cit. 77 MONTEIRO, op. cit. p. 124.. 78 DINIZ, op. cit. p. 233. 79 DINIZ, loc. cit.
27
Tal teoria não se suporta, na opinião de respeitáveis doutrinadores, pois
admite que a pessoa jurídica tem vontade própria, sendo que o fenômeno volitivo é
peculiar ao ser humano e não do ente coletivo.80 81
Alguns escritores a criticam também por reduzir o papel do Estado a mero
conhecedor de realidades já existentes, desprovido de maior poder criador. 82
A quarta teoria é a chamada da realidade das instituições jurídicas, defendida
por Hauriou, admite parcela de verdade em cada uma dessas concepções.
É eclética e admite que do ponto físico e natural só a pessoa física é
realidade. Sob este aspecto, portanto, a pessoa jurídica não passará de ficção.
Entretanto, toda ciência aprecia os fenômenos de forma diversa definindo-os
mediante critérios próprios.83
Assim, como a personalidade humana deriva do direito (tanto assim que já
privou seres humanos de personalidade – os escravos p.ex.), “da mesma forma ele
pode concedê-la a agrupamento de pessoas ou de bens que tenham por escopo a
realização de interesses humanos.”84
Logo, a personalidade jurídica não é, pois, ficção, mas um atributo que a
ordem jurídica estatal outorga a agrupamentos de pessoas ou de bens que tenham
por escopo a realização de interesses humanos, mediante preenchimento de
determinados requisitos. Não de maneira arbitrária, mas sim tendo em vista
determinada situação que já encontra devidamente concretizada.85
Justen Filho também não concorda com a idéia de que a pessoa jurídica seja
uma falsidade, criação arbitrária do direito. Entende que a expressão “pessoa
jurídica”, é empregada pelo direito para indicar certas situações jurídicas. Logo, é
uma expressão vocabular, lingüística. Assim “exatamente por se acatar um conceito
relativo e histórico para pessoa jurídica, é que concluímos ser impossível desvincular
80 MONTEIRO, 2003. p. 124. DINIZ, 2008. p. 233. 81 Da mesma forma como havia feito com a teoria ficcionista, Justen Filho descreve o momento histórico desta teoria, de forma a adaptá-la ao contexto vivido esclarecendo que “também incoerente não era o pensamento de Gierke, muito embora também se tratasse de um voluntarista, Gierke não assumiu, em momento algum, posição assemelhável a realistas subseqüentes (tais como, verbi gratia, os pensadores institucionalistas). Gierke afirmou a realidade da pessoa jurídica na concepção de sua identidade ao ser humano. Ou seja, a pessoa jurídica não era uma ficção. Não porque correspondesse a um substrato real etc., mas acentuadamente porque seria figura identificável ao homem. Construiu a primeira teoria antropormófica da pessoa jurídica, buscando defender nela a existência de uma vontade idêntica à vontade humana.” (JUSTEN FILHO, 1987. p. 21). 82 GONÇALVES, 2009, p. 185. 83 MONTEIRO, 2003, p. 124. 84 DINIZ, 2008, p. 233. 85 MONTEIRO, 2003. p. 125. DINIZ, loc. cit.
28
tal conceito da pluralidade das disposições normativas e das concepções
dogmáticas acerca de pessoa, sujeito de direito, relação jurídica etc.”
Arremata da seguinte forma: “A pessoa jurídica, enquanto expressão técnico
jurídica, refere-se a conceitos e a situações jurídicas que se inserem dentro de
contextos históricos e com os quais estabelecem interação.”86
Apesar da crítica que se faz à esta teoria, de ser positivista e assim
desvinculada de pressupostos materiais, é a que melhor explica o fenômeno pelo
qual um grupo de pessoas, com iguais objetivos, pode ter personalidade própria,
mas não se confunde com seus membros, oferecendo segurança.87
É a teoria adotada pelo direito brasileiro, como se depreende do art. 45 do
Código Civil, que disciplina o começo da existência legal das pessoas jurídicas do
direito privado, bem como dos artigos 52, 54, VI, 61, 69 e 1033 do mesmo diploma
legal.
Note-se que a pessoa jurídica em sua essência, ou seja, a partir da análise de
sua natureza jurídica é apenas um atributo conferido pelo Estado, um benefício
tendo em vista uma determinada situação. Um expediente de ordem técnica para
realização de determinados fins bens descritos por Maria Helena Diniz como de
caráter humanístico.
Sendo assim, há de se ter em mente que este atributo é concedido
tecnicamente e, pode também ser afastado quando do impedimento da consecução
dos fins buscados.
As teorias são muitas e nem sempre tem uma mesma denominação. Alguns
autores inclusive negam qualquer importância prática da elaboração de uma
natureza jurídica para a personalidade jurídica.
Rubens Requião defende que o problema da personalidade jurídica das
sociedades comerciais comporta um tratamento prático, motivo pelo qual se afasta
das abstrações das inúmeras teorias e preocupações científicas e doutrinárias sobre
o tema. Assim, filiado ao posicionamento de Messineo, considerou de menor
importância o problema sobre a realidade ou ficção das pessoas jurídicas,
satisfazendo-se com a circunstância de possuírem elas uma realidade no e para o
mundo jurídico.88
86 JUSTEN FILHO, 1987, p. 31-36. 87 GONÇALVES, 2009, p. 186. 88 REQUIÃO, 2003, p. 373.
29
2.2.1.3 A personificação e seus efeitos
Amaral89 enumera alguns efeitos da personalização destacando que a pessoa
jurídica existe no mundo e para o mundo das relações jurídicas sendo, portanto,
uma realidade qualquer que seja a fundamentação teórica.
Estes efeitos, enumerados, tem grande importância prática e deles surgem
vários efeitos:90
a) Com a constituição da pessoa jurídica forma-se um novo centro de direitos
e deveres, dotado de capacidade de direito e de fato;
b) Esse novo centro unitário passa a ter direitos, deveres e interesses
distintos dos direitos deveres e interesses das pessoas que dele
participam individualmente;
c) O destino econômico e jurídico do novo centro é totalmente diverso do de
seus membros participantes;
d) A autonomia patrimonial da pessoa jurídica é completa em face de seus
membros, implicando no fato de que o patrimônio da pessoa jurídica é
totalmente independente do patrimônio das pessoas que a constituem;
e) Passa a existir independência das relações jurídicas da pessoa jurídica
relativa à dos seus membros, de modo que direitos ou dívidas desses não
são direitos ou dívidas daquele. (um credor de sócio não pode compensar,
com a dívida deste, a sua dívida para a sociedade);
f) A responsabilidade civil da pessoa jurídica é independente da das pessoas
que a formam, de modo que os bens da pessoa jurídica não respondem
pelas obrigações de seus membros e vice-versa;
g) A pessoa jurídica não tem responsabilidade penal, embora a Lei 9.605, de
12 de fevereiro de 1998, que dispões sobre as sanções penais e
administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio
ambiente, estabeleça, no art. 3º., que as pessoas jurídicas serão
89 AMARAL, 2008, p. 322. 90 Ibid. p. 322-323.
30
responsabilizadas administrativa, civil, penalmente conforme o disposto
nessa lei. A questão, entretanto, é controversa.91
Tais efeitos, entretanto, não são absolutos.
Na análise do caso concreto pode o magistrado, diante da presença de
alguns requisitos, afastar essa autonomia da pessoa jurídica possibilitando a
responsabilização dos sócios.
Essa doutrina chamada de disregard doctrine, tem por escopo responsabilizar
os sócios pela prática de atos abusivos sob o manto da pessoa jurídica, coibindo
manobras fraudulentas e abuso de direito, mediante equiparação do sócio e da
sociedade, desprezando-se a pessoa jurídica, temporariamente, para alcançar as
pessoas nela contidas.92
Este é o objeto deste estudo, mormente no que diz respeito a sociedades
limitadas empregadoras, justamente a porosidade dos efeitos da personalização
destes entes diante da existência de preceitos constitucionais de proteção a
dignidade do homem enquanto trabalhador.
Ultrapassada a análise da pessoa jurídica, seus aspectos conceituais e
natureza jurídica, necessária se faz o estuda da classificação das pessoas jurídicas
eis que somente as sociedades limitadas serão objeto deste estudo.
Também faz-se necessário diagnóstico dessa figura na condição de
empregadora, isto é, responsável direta por créditos e direitos trabalhistas
decorrentes de prestação de trabalho.
2.2.1.4 Classificação das pessoas jurídicas
No direito brasileiro as pessoas jurídicas são dividias em dois grande grupos,
De um lado, as pessoas jurídicas de direito público, tais como União, Estado, 91 No capítulo próprio de sociedade empresariais Campinho apresenta uma descrição mais simplificada dos efeitos da personificação: Partimônio próprio; Nome próprio; Nacionalidade pópria e domicílio próprio. (CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo código civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 67-68). Da mesma forma, ao se referir a sociedades empresariais Coelho enumera da seguinte maneira as conseqüências da personalização destas sociedades, conseqüências estas que eleva ao grau de “verdadeiros princípios de direito societário”: a) Titularidade negocial; b ) Titularidade processual; c) Responsabilidade patrimonial. (COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial : direito de empresa. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 114.) 92 DINIZ, 2008. p. 313-314.
31
Municípios, o Distrito Federal, os Territórios e as autarquias; de outro, as de direito
privado, compreendendo todas as demais. O que as diferencia é o regime jurídico a
que se encontram submetidos.
Já as pessoas jurídicas de direito público se subdividem em direito público
interno e de direito público externo ou internacional.
No caso das pessoas de direito público interno, a União, os Estados e os Municípios
são reconhecidos como pessoas jurídicas, assim como o Distrito Federal. São
consideradas também como de direito público interno organismos paraestatais
criados pela Administração Pública, tais como as autarquias93 e “demais entidades
de caráter público criadas por lei” (art. 41, incisos IV e V do novo Código Civil.) como
agências reguladoras por exemplo.
Autarquias são entes com personalidade pública que desfrutem de certa
autonomia. Embora ligada umbilicalmente ao Estado, suas atividades podem ser
mais ou menos vinculadas, dependendo de cada caso, sendo os limites de sua
atividade definidos pela lei que as institui.94 Surgem quando a lei individualiza um
patrimônio a partir de bens pertencentes a uma pessoa jurídica de direito público
afetando-o à realização de um fim administrativo, e dotando-o de organização
adequada.95
Podem ser criadas pelos três níveis administrativos, União, Estados e
Municípios
As agências reguladoras ou executivas (autarquias federais criadas pela lei
9.649/98, art. 51), são dotadas de poder regulador e deve, atribuído pelo sistema
legal, para atuarem administrativamente dentro dos limites autorizados por lei,
criando regulação para a consecução de uma relação entre usuários e agentes
econômicos.
A classificação da pessoa jurídica pode se dar quanto à sua nacionalidade,
sua estrutura interna e função (ou órbita de atuação).96
Quanto à nacionalidade, divide-se em nacional ou estrangeira. A pessoa
jurídica nacional é aquela definida pelo art. 1126 do Código Civil, assim como arts.
93 Definidas no artigo 5º. Do Decreto-lei n. 200, de 25/2/67, com alteração do Decreto 900, de 29/9/69: “o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.” 94 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil : parte geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 262-263. 95 DINIZ, 2008. p. 218. 96 GONÇALVES, 2009, p. 196.
32
176, § 1º. e 222 da Constituição Federal como a sociedade organizada em
conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua administração.
Já a sociedade estrangeira, qualquer que seja o objeto, não pode, sem
autorização do Poder Executivo, funcionar no País, ainda que por estabelecimentos
subordinados, podendo, todavia, atuar como acionista de sociedade anônima
brasileira (art. 1134).
Quanto à sua estrutura interna, a pessoa jurídica de direito privado pode ser
corporação (universitas personarum) e fundação (universitas bonorum).
A corporação se caracteriza pelo aspecto pessoal, constituindo um conjunto
de pessoas, reunidas para melhor consecução de seus objetivos, visando a
realização de fins internos, estabelecidos pelos sócios. Seus objetivos são voltados
para o interesse e o bem estar de seus membros, visando atingir, fins comuns. 97
Se subdividem em associações e sociedades, podendo estas últimas serem
simples e empresárias (art. 982 do CC). As associações não tem fins lucrativos, mas
religiosos, morais, culturais, assistenciais, desportivos ou recreativos. As sociedades
simples têm fim econômico e visam lucro, distribuídos entre os sócios. As
sociedades empresárias distinguem-se da primeira pois têm por objetivo o exercício
de atividade próprio de empresário sujeito ao registro previsto no art. 967 do Código
Civil.
As pessoas jurídicas de direito privado são instituídas por iniciativa de
particulares e tem sua positivação no art. 44 do Código Civil, com redação dada pela
Lei 10.825 de 22 de dezembro de 2.003 dividindo-se em: fundações, associações,
sociedades (simples e empresárias) e, ainda partidos políticos.
As fundações tem como aspecto dominante o material, pois compõe-se de um
patrimônio personalizado, destinado a um determinado fim e tem objetivos externos,
estabelecidos pelo instituidor.
As fundações particulares são universalidades de bens, personalizadas pela
ordem jurídica, em consideração ao fim estipulado pelo fundador, sendo este
objetivo imutável e sues órgãos servientes, pois todas as resoluções estão delimitas
pelo instituidor. Não tem fins econômicos nem fúteis, deve almejar fins nobre, para
proporcionar a adaptação à vida social.
97 GONÇALVES, 2009, p. 196.
33
As associações podem ser civis, religiosas, pias, morais, científicas ou
literárias e as de utilidade pública. Constituem, portanto, uma universitas
personarum, ou seja, um conjunto de pessoas que colimam fins e interesses não
econômicos (CC, art. 53), que podem ser alterados, pois seus membros deliberam
livremente.98
Dever-se-á efetuar o registro do estatuto e a autorização governamental para
que a associação seja uma pessoa jurídica (Lei n. 6015/73, arts. 114 a 121). Se não
houver o registro será considerada uma associação irregular, não personificada, não
tendo, portanto, personalidade jurídica.99
As associações podem ser de diversos tipos dependendo das atividades
exercidas por elas.100
Neste ponto, a doutrina e a lei distinguem as associações e as sociedades,
sendo que “as disposições concernentes às associações aplicam-se,
subsidiariamente, às sociedades que são objeto do Livro II, da parte especial do
código” (CC, art. 44, parágrafo único). O traço marcante distintivo entre uma e outra
é justamente o fato daquelas não visarem lucro.101
Tem-se como associação quando não há fim lucrativo ou intenção de dividir o
resultado, “embora tenha patrimônio, formado por contribuição de seus membros
para obtenção de fins culturais, educacionais, esportivos, religiosos, recreativos,
morais, etc.”102
98 Plena é a liberdade de associação para fins lícitos (CF/88, art. 5º., XVII). 99 Da mesma forma, alguns autores trazem no estudo do tópico de pessoas jurídicas os grupos com personificação anômala. São entidades com muitas das características das pessoas jurídicas, mas que não chegam a ganhar personalidade, por lhe faltarem requisitos imprescindíveis à personificação, embora, na maioria das vezes, tenham representação processual. São citados como exemplos destes grupos a família, a massa falida, a herança jacente vacante, o espólio, as sociedades sem personalidades jurídicas (irregulares) e o condomínio. 100 Filantrópicas, de assistência social, de utilidade pública, religiosas, espiritualistas, secretas, estudantis, formadas para manutenção de escolas livres ou de extensão cultural, culturais, de profissionais liberais, desportivas, organizadoras de corrida de cavalos, de amigos de bairro, caixas de socorro, para exercício de atividade de garimpagem, cooperativas, de poupança ou empréstimo, coletiva de consumo, trustes, de usuários do serviço público. (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro : teoria geral do direito civil. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 225-238) 101 O artigo 53 do Código Civil, e, sua parte final, faz menção a “fins não econômicos” o que é criticado pela doutrina, que julga tal expressão como imprópria. Projeto de Lei n 7.160 de 27 de agosto de 2002 propõe a modificação da expressão para “fins não lucrativos”. 102 DINIZ, 2008, p. 222.
34
Campinho destaca que anteriormente não se justificava a distinção entre
Associação e Sociedade. O próprio Código Civil de 1916, em seu inciso I, não
autorizava tal discriminação.103
A utilização indiscriminada destas expressões justificava-se em função da
ligação íntima entre os conceitos de ambas, pois a sociedade está para a
associação como uma espécie de gênero..104
A técnica jurídica adotada pelo novo código, entretanto, as expressões
associação e sociedade querem impor definições autônomas de espécies de do
gênero pessoa jurídica de direito privado.
2.3 A SOCIEDADE LIMITADA EMPREGADORA
2.3.1 As Sociedades: Conceito e Classificação
Até o Código Civil de 1916, inexistia norma legal que admitisse a sociedade
como pessoa jurídica. Em seu art.16, II, reconheceu então personalidade jurídica
aos grupos coletivos, sejam de pessoas, sejam de capital (na Itália e na Alemanha a
personalização é reconhecida apenas às sociedades de pessoas). 105
Assim quando da constituição de uma pessoa jurídica, transforma-se num
novo ser, individualmente considerado, com patrimônio próprio, com órgãos em um
novo ser, com seus próprios órgãos de administração.
A partir de sua inserção no mundo jurídico, passa a ter obrigações e direitos
perante terceiros, coletividade e até mesmo perante a comunidade internacional.
O novo Código Civil unificou as obrigações civis e comerciais no Livro II,
concernente ao chamado direito de empresa, disciplinando as sociedades, em suas
diversas formas, no Título II (arts. 981 e ss.)
103 O próprio Código Comercial, na sua parte revogada, em diversas passagens fazia uso do vocábulo associação para espelhar sociedade (arts. 305, 5, 311,319,325, p. ex.). 104 CAMPINHO, 2007, p. 34. 105 GRASSELI, Odete. Desconsideração da personalidade jurídica in: COUTINHO, Aldacy Rachid, WALDRAFF, Célio Horst (coord.). Direito do Trabalho & Direito Processual do Trabalh o: temas atuais. Curitiba: Juruá, 1999. p. 430.
35
A sociedade pode ser definida como:
O resultado da união de duas ou mais pessoas, naturais ou jurídicas, que, voluntariamente, se obrigam a contribuir, de forma recíproca, com bens ou serviços para o exercício proficiente de atividade econômica e a partilha entre si, dos resultados auferidos nessa exploração.106
Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam
a contribuir, com bens, para o exercício da atividade econômica a partilha, entre si,
dos resultados. A atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios
determinados (art. 981 e § único).
O que aproxima, ou motiva a aproximação dos integrantes de uma sociedade,
chamados tecnicamente de sócios, é o escopo de partilhar lucros.107
A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro
próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (artigos 985 e 45 do CC).
As sociedades podem ser simples e empresárias.108 Como é a própria pessoa
jurídica a empresária – e não seus sócios – o correto é falar em sociedade
empresária, e não sociedade empresarial. (isto é, “de empresários”).109
Tal divisão se dá em função de seu objeto ou da forma societária adotada.110
Sociedades simples são normalmente constituídas por profissionais da
mesma área e tem fim econômico e lucrativo que deverá ser repartido entre os
sócios.111 Mesmo que eventualmente venham a praticar atos próprios do exercício
de uma empresa, tal fato não a desnatura, pois o principal é a atividade principal por
ela exercida.112 113
106 CAMPINHO, 2007, p. 36. 107 Ibid. p. 34. 108 Expressões que substituíram a antiga divisão entre civis e comerciais. 109 GONÇALVES, 2009, p. 205. 110 Diferenciação adotada por CAMPINHO, op. cit. p. 36. 111 São exemplos de sociedade simples: As cooperativas (Código Civil, § único do artigo 982), certas sociedades dedicadas à atividade agrícola ou pastoril e as sociedades de advogados (art. 966 do Código Civil c/c art. 15 da Lei n. 8.906/94). 112 GONÇALVES, op. cit. p. 206. 113 DINIZ, 2004, p. 238.
36
Foram criadas pelo Código Civil de 2002, definindo-a o legislador por
exclusão no artigo 982. Mais a frente, entre os artigos 997 e 1038, criou normas de
regência desta espécie societária.114
As sociedades empresárias também visam o lucro, mediante exercício de
atividade mercantil115, e distinguem-se das sociedades simples porque têm por
objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito ao registro previsto no
art. 967 do Código Civil.116
Coelho, numa linha semelhante, ensina que a diferenciação se encontra
predominantemente no modo de explorar seu objeto.
O objeto explorado sem empresarialidade (isto é, sem profissionalmente organizar os fatores de produção) confere à sociedade o caráter de simples, enquanto a exploração empresarial do objeto social caracterizará a sociedade como empresária.117
Acerca do conceito de empresa, este estudo optará por uma visão trazida
pelo direito do trabalho, utilizando-se subsidiariamente dos conceitos do direito
empresarial, pois de acordo com os princípios protetivos deste ramo do direito, como
se verá mais a frente.
Considera-se empresário, nos termos do artigo 966 “quem exerce
profissionalmente atividade econômica organizada para produção ou a circulação de
bens ou de serviços.”118
Trata-se, pois, daquela sociedade que tem por objeto “a exploração habitual
de atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens e
serviços, sempre com o escopo de lucro. Explora, pois, de forma profissional a
empresa, resultado da ordenação do trabalho, capital, e porque não, da
tecnologia”119120
114 TOKARS, Fábio. Sociedades Limitadas. São Paulo: LTr, 2007. p.37- 38, destaca que existe uma cisão conceitual no código que criou dois significados para a sociedade simples. Segundo ele, “uma leitura atenta do art. 983, segundo a qual a sociedade que tenha por objeto atividade que não seja própria de empresários sujeito a registro (sociedade simples gênero) pode se estruturar nos termos dos artigos 997 e seguintes (sociedade simples espécie) ou n a forma de sociedade em nome coletivo, em comandita simples ou limitada”. 115 DINIZ, 2004, p. 238. 116 GONÇALVES, 2009, p. 206. 117 COELHO, 2009, p. 111. 118 Os conceitos de direito do trabalho serão tratados num tópico mais a frente. 119 CAMPINHO, 2007, p. 38. 120 “A pessoa jurídica de direito privado não-estatal, que explora empresarialmente seu objeto social ou a forma de sociedade por ações”. (COELHO, 2009, p. 111)
37
Equipara-se também a sociedade que tenha por fim exercer atividade própria
de empresário rural, que seja constituída de acordo com um dos tipos de sociedade
empresária e que tenha requerido sua inscrição no Registro das Empresas de sua
sede (Código Civil, arts. 968 e 984).
Ao adquirir a condição de empresárias, estarão sujeitas a registro na Junta
Comercial (artigo 982), submetem-se à falência, podem requerer recuperação
judicial e negociar com credores plano de recuperação extrajudicial (art. 1º. Caput do
artigo 48 e caput do artigo 161 da Lei no. 11.101/2005), bem como devem manter
escrituração especial (artigos 1.179 e 1.180). Esses são os efeitos que se projetam
sobre as sociedades empresárias consoante estabelece o Código Civil de 2.002 e a
Lei no. 11.101/2005.121
As sociedades empresárias podem assumir formas diferentes, quais sejam:
sociedade em nome coletivo, sociedade comandita simples, sociedade em
comandita por ações, sociedade anônima ou por ações (arts. 1039 a 1092).122 O
Código Civil, no entanto, não disciplinou estas sociedades.
A classificação destas sociedades pode se dar, conforme ensina Sérgio
Campinho, de acordo com a responsabilidade dos sócios pelas dívidas contraídas
pela sociedade. A própria definição dos tipos societários tem por arrimo este
princípio.123
Tem-se, portanto, três grupos de sociedades: As de responsabilidade ilimitada
(sociedades em nome coletivo, N/C), as de responsabilidade mista (sociedades em
comandita por ações, C/A e em comandita simples C/S) e as de responsabilidade
limitada (as sociedades limitada, Ltda. e anônima ou companhia S/A).
Quando se fala em sociedades de responsabilidade limitada, o foco da
limitação se refere ao sócio e não à sociedade. Explica Sérgio Campinho que “como
pessoa jurídica que é, a sociedade irá sempre responder, seja qual for o tipo de que
venha a se revestir de forma ilimitada por suas obrigações”. O mesmo autor, em
121 CAMPINHO, 2007, p.48-49. 122 O novo Código Civil não manteve o tipo de sociedade capital e indústria que vinha prevista nos artigos 317 e 324 do Código Comercial. 123 Além dessa definição pode-se ainda classificá-las tendo em consideração a pessoa de seus sócios (sociedades de pessoa e de capital), em razão da natureza de seu ato constitutivo (contratuais e institucionais), pela definição de seu capital (capital fixo e capital variável) e ainda sua personificação (sociedades personificadas e não personificadas). (CAMPINHO, 2007, p. 54-61).
38
razão deste fato critica a designação de sociedade de responsabilidade limitada ou
ilimitada, pois a responsabilidade da sociedade é sempre ilimitada.124
A sociedade limitada é o tipo societário de maior presença na economia
brasileira. Introduzida no direito pátrio em 1919, representa hoje mais de 90% das
sociedades empresariais registradas nas Juntas Comerciais. Coelho125 identifica o
sucesso a duas características: a limitação da responsabilidade dos sócios e a
contratualidade.
Não diferente, numa proporção idêntica, a grande maioria dos empregadores
também se enquadram neste tipo de pessoa jurídica, razão pela qual maior atenção
é dedicada a esta pessoa jurídica.
2.3.1.1 Sociedade por quotas de responsabilidade limitada
Regulado precipuamente pelo Decreto no. 3.708 de 10 de janeiro de 1.919,
sofreu alterações pelo Código Civil, passando a ser regida, também, pelos artigos
1.052 a 1.087, além de diplomas legais.
A deste tipo de personalidade jurídica se deu para suprir uma lacuna de uma
forma societária que atendesse aos interesses dos pequenos e médios
empreendedores.126
No campo jurídico esta forma societária foi inicialmente verificada na prática
comercial na Inglaterra, mas sua regulamentação de forma completa ocorreu com a
edição de lei específica no âmbito do direito alemão, sendo em seguida
regulamentadas em Portugal, disseminando-se desde então não se pela Europa
como também nas Américas.127
Em nosso país, após a edição do Código Civil de 1916, assumiu-se como
função legislativa a criação normativa das sociedades por quotas de
responsabilidade limitada desaguando na edição do já citado Decreto 2379 de 4 de
janeiro de 1919.
124 CAMPINHO, 2007, p. 55. 125 COELHO, 2009, p. 152. 126 TOKARS, 2007, p. 26. 127 Ibid., p. 26-27.
39
O sistema apresenta vantagens, pois, além da limitação da responsabilidade,
não ficam as empresas sujeitas ao complexo sistema reservado às sociedades
anônimas.
A sociedade limitada poderá ser de pessoas ou de capitais. Caso o contrato
social não disser ou dele não for possível deduzir qual o tipo, incidirá a regra geral
do Código Civil, ou seja, será de pessoas.
Quando adotar expressamente normas relativas às sociedades anônimas
certamente será sociedade de capitais, uma vez que é da natureza das S.A. ser
indiferente a pessoa dos sócios, prevalecendo a impessoalidade, sendo assim, de
capital.
O fato do legislador do novo Código Civil ter previsto várias situações que
antes estavam dispostas apenas na Lei das S.A. não significa que, mesmo para
aqueles casos em que não se opte pelas regras desta sociedade, a lei inteiramente
se aplique.128
Assim, caso não haja previsão expressa no contrato, as fontes normativas
são: o Decreto no. 3.708/19, o Código Civil e as normas sobre sociedade simples.129
A responsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade limitada, como
o próprio nome diz, está sujeita, a priori, a limite. Se o patrimônio social é insuficiente
para responder pelo valor total das dívidas que a sociedade contraiu na exploração
da empresa, os credores poderão responsabilizar os sócios, executando bens de
seus patrimônios individuais, até o limite do total do capital social subscrito e não
integralizado. (art. 1.052 do Código Civil)130
Em outra órbita, perante a sociedade, cada sócio é individualmente
responsável pela integralização da cota por ele subscrita.
A limitação da responsabilidade, no entanto, não é absoluta, comportando
exceções. Em hipóteses de caráter excepcional, os sócios responderão de forma
subsidiária, mas ilimitadamente pelas obrigações da sociedade. Coelho131 enumera
algumas destas estas hipóteses:
128 NAHAS, 2007, p. 53. 129 As normas do Decreto no. 3.708/19 que se refiram ao Código Comercial estão todas revogadas (art. 2.045 do Código Civil) 130 “Capital subscrito é o montante de recursos que os sócios se comprometem a entregar para a formação da sociedade; integralizado é a parte do capital social que eles efetivamente entregam.” (COELHO, 2009, p. 155). 131 Ibid., p. 157.
40
a) Os sócios que adotarem deliberação contrária à lei ou ao contrato social
responderão ilimitadamente pelas obrigações sociais relacionadas às
deliberação ilícita. Os sócios que dela dissentirem deverão acautelar-se,
formalizando sua discordância, para se assegurar quanto a esta
modalidade de responsabilização (CC, art. 1.080);
b) A sociedade marital, isto é, aquela composta exclusivamente por marido e
mulher, inobstante jurisprudência pacificada no STF tem, por vezes, sido
entendida como nula, porque importaria, segundo certas lições, em fraude
contra o direito de família. O Código de 2.002, inclusive, proíbe a
sociedade marital se o regime de bens no casamento for o da comunhão
universal ou separação obrigatória (art. 977). Assim, se, a despeito da
proibição legal, for registrada na Junta Comercial sociedade composta
exclusivamente por marido e mulher, os seus sócios responderiam
ilimitadamente pelas obrigações sociais;
c) Por determinação da Justiça do Trabalho em proteção ao crédito do
hipossuficiente na relação de emprego;132
d) Havendo fraude contra credores valendo-se do expediente da separação
patrimonial em decorrência da aplicação da desconsideração da pessoa
jurídica contida no Código Civil em seu artigo 50;
e) Em razão de débitos junto à Seguridade Social (INSS), face disposição do
artigo 13 da Lei n. 8.620/93, podem ser cobrados de qualquer sócio da
responsabilidade limitada.
A responsabilidade pode ser dirigida ao sócio ainda em outras situações. Sob
este aspecto, soma-se à lista acima as seguintes hipóteses:133
a) Quando agirem os sócios com excesso de mandato ou violação do
contrato ou da lei (art.10 do Decreto n. 3.078/19); o excesso somente
poderá ser oposto a terceiros se: a limitação de poderes estiver inscrita ou
averbada no registro próprio da sociedade; provando que era conhecida
do terceiro; tratando-se de operação evidentemente estranha aos
negócios da sociedade (art. 1.015 do CC);
132 Tal fato é criticado pelo autor em diversas passagens de seu Manual de Direito Comercial. Ao referir-se a tal possibilidade, observa que tal orientação é “de base legal questionável”. Entretanto, admite esta possibilidade quando a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica decorrente das hipóteses de aplicação do artigo 50 do Código Civil. (COELHO, 2009, p. 158). 133 NAHAS, 2007, p. 55-56.
41
b) Quando usarem indevidamente da firma ou dela abusarem (art. 11,
Decreto no. 3.078/19)
c) Quando não averbarem o ato de nomeação de administrador à margem da
inscrição da sociedade (art. 1.012, Código Civil);
d) Quando agirem com culpa no desempenho de suas funções (at. 1.016 do
Código Civil);
e) Quando não restituírem à sociedade as aplicações de crédito ou bens
sociais que tenham aproveitado a si próprios ou a terceiros (art. 1.017,
CC);
f) Pelas obrigações tributárias nos casos dos arts. 134 e 135 do Código
Tributário Nacional.
Vale destacar que as quotas indicam o patrimônio da sociedade representado
por tudo aquilo que cada sócio contribui para sua formação, não se podendo
contribuir para a sociedade com prestação de serviços.134
Poderá haver condômino de cota, sendo cada condômino solidariamente
responsável pela integralização da mesma. O artigo 1.056 do Código Civil
estabelece a regra de indivisibilidade da quota, admitindo a sua divisão somente nos
casos de condomínio, ocasião em que os direitos a ele inerentes somente podem
ser exercidos pelo condômino representante, ou pelo inventariante do espólio do
sócio falecido.
A cessão da quota é permitida desde que: não haja previsão contratual
expressa em sentido contrário; quando feita a terceiro, estranho à sociedade , haja
audiência prévia sem oposição dos titulares que representem ¼ ao menos do capital
social. Se a cessão for realizada a quem já participa da sociedade, poderá ser
concretizada independentemente da audiência com os demais titulares. A cessão
poderá, ainda, ser total ou parcial (artigo 1.057).
A cessão somente produz efeitos após a averbação ao contrato.
É de importante constatação que pelo prazo de dois anos, o cedente responde
solidariamente com o cessionário, perante a sociedade e terceiros pelas obrigações
que tinha como sócio, prazo este que, igualmente, se conta da data da averbação da
modificação (art. 1.003 c/c 1.057 do Código Civil).
134 NAHAS, 2007, p. 52.
42
Os sócios serão obrigados à reposição dos lucros e das quantias retiradas, a
qualquer título, ainda que autorizados pelo contrato, quando tais lucros ou quantia se
distribuírem com prejuízo do capital (art. 1.059, CC).
A administração da sociedade será feita por sócio, sendo permitido que o
contrato preveja a possibilidade de se dar por terceira pessoa, entranha ao quadro
social. Neste caso a designação deles dependerá de aprovação da unanimidades
dos sócios, enquanto o capital não estiver integralizados, e de 2/3, no mínimo, após
a integralização. (arts. 1.060 e 1.061).
No tocante aos débitos da sociedade enquadráveis como dívida ativa, de
natureza tributária ou não, os administradores, sócios ou não, respondem por
inadimplemento da sociedade limitada. É o que dispõe o art. 135, III, do CTN.
Coelho esclarece que sendo ato administrativo e, portanto, presumivelmente
verdadeiro, a Certidão de Dívida Ativa emitida contra a sociedade pode ser
executada diretamente no patrimônio particular do administrador.135
Muitos julgados oriundos da Justiça do Trabalho aplicam o artigo 135 do CTN
como fonte analógica para decretar a desconsideração da personalidade jurídica.
Em que pese os respeitáveis argumentos em contrário, permitimo-nos discordar,
uma vez que o referido dispositivo legal claramente não se refere ao instituto mas
sim a uma punição ao administrador, que pode, inclusive, não ser sócio.
Neste caso, pode, inclusive, a sociedade vir a exigir judicialmente do seu
administrador que ele responda pelos atos praticados em seu prejuízo.
Ou seja, trata-se claramente um instituto que visa proteger a sociedade que
fica protegida assim como seu patrimônio dos atos praticados pelo seus
administradores, assim, a utilização analógica deste texto legal não é de correta
técnica jurídica. A frente tal fato será melhor explorado.
Sob o mesmo argumentos as hipóteses descritas acima das letras f em diante
também não servem de tratamento analógico para a desconsideração da
personalidade jurídica.
A sociedade dissolve-se na forma do artigo 1.044 do CC (art. 1.087), sendo
possível a exclusão do sócios que estiver colocando em risco a continuidade da
empresa em virtude de atos de inegável gravidade.
135 COELHO, 2009.p. 162.
43
As sociedades limitadas, juntamente as sociedades anônimas são as que
ensejam, por excelência, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica. Faz-se necessário, no entanto, em se tratando de técnica aplicada no direito
do trabalho, de realizar uma análise da pessoa jurídica enquanto empregadora.
2.3.2 O Empregador
O artigo 2º. Da CLT considera empregador136 a empresa individual ou coletiva
que, assumindo os riscos do empreendimento econômico, contrata assalaria e dirige
a prestação pessoal de serviços.
Este conceito é criticado pela doutrina sob o argumento de que assimila o
empregador à empresa que não é sujeito de direito, salvo empresa pública por força
do Decreto-Lei n. 200. De fato, ao levarmos em conta o conceito técnico trazido pelo
direito empresarial, a empresa é um elemento abstrato, fruto da ação intencional do
seu titular, o empresário em promover o exercício da atividade econômica de forma
organizada.
Não é, sozinha, detentora de personalidade jurídica, sendo o empresário,
titular da empresa, quem ostenta a condição de sujeito te direito.137
Há, no entanto, quem não veja qualquer absurdo da idéia do legislador de 43,
pois, segundo se sustenta, quando o legislador considera empregador a empresa,
não está subjetivando-a, apenas esclarecendo que o empregado ao contratar seus
serviços não o faz com a pessoa física do empregador, por ser efêmera, mas com
organismo duradouro.138
Delgado139 por exemplo, filia-se à primeira corrente sustentando que tanto o
caput quanto o parágrafo único do art. 2º. Da CLT são falhos tecnicamente, pois, no
caso do parágrafo único, claramente tautológico.
136 No México, utiliza-se a denominação patrão; na Itália dador de trabalho; na França chefe de empresa. Os espanhóis e hispano-americanos preferem o nome principal. (CHAMMA, Ísis Sucessão de Empregadores. In: COUTINHO, Aldacy; DALLEGRAVE NETO, José Affonso; GUNTHER, Luiz Eduardo (orgs.). Transformações do Direito do Trabalho: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor João Regis Fassbender Teixeira. Curitiba: Juruá, 2000. p. 252) 137 Art. 966 do Código Civil (CAMPINHO, 2007, p. 11; REQUIÃO, 2003. p. 59) 138 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho . 4. ed. São Paulo: LTr, 2008. p. 366. 139 DELGADO, 2004, p. 389.
44
Para ele o termo empresa, pela CLT, para designar a figura do empregador
apenas denuncia, mais uma vez, a forte influência institucionalista e da teoria da
relação de trabalho que se fez presente no contexto histórico de elaboração desse
diploma justrabalhista.
Cita então, como exemplo de evolução do conceito, aquele trazido pela Lei do
trabalho rural (n 5.889 de 1973), construída num período em que já não vigorava
significativa influência dessas velhas correntes teóricas trabalhistas, que já não
define empregador rural como empresa, mas como pessoa física ou jurídica (caput
do art. 3º.).140
Coutinho141, da mesma forma, destaca que a existe, diante da falha do texto
do art. 2º. Da CLT, uma necessidade de correção da regra jurídica, tarefa esta que
cabe a doutrina e a jurisprudência que fazem uma readequação ao sistema jurídico
pelo que o empregador passa a ser recebido como pessoa jurídica ou natural, se
empregador por equiparação.
Cita como exemplo dessa correção feita pelo legislador outra lei posterior – A
Lei 8.036-90, art. 15, Lei previdenciária - que, assim como aquela de 1973, também
adota uma versão tecnicamente mais correta de empregador.142
A “correção” feita pela doutrina se reflete nos conceitos estabelecidos pelos
autores do Direito do Trabalho.
Coutinho143 traz o seu conceito de empregador como sendo “A pessoa
jurídica que organizando capital e trabalho, incorpora para desenvolvimento da
atividade econômica a força de trabalho de uma pessoa natural, de forma contínua e
mediante remuneração, com subordinação”
Já Alice Monteiro de Barros, de forma mais ampla, conceitua empregador
como “a pessoa física, jurídica ou ente que contrata, assalaria e dirige a prestação
pessoal de serviços do empregado assumindo os riscos do empreendimento
econômico”.144
Maurício Godinho Delgado, amplia ainda mais o conceito, definindo
empregador como “a pessoa física, jurídica ou ente despersonificado que contrata
140 DELGADO, 2004, p. 390. 141 COUTINHO, 2001, p. 224. 142 Ibid. p. 224-225. 143 COUTINHO, op. cit. p. 225. 144 Esta última característica, trazida no conceito da Professora Alice é de suma importância ao se analisar a norma a ser utilizada pelo direito do trabalho no momento da desconsideração da personalidade jurídica. (BARROS, 2008, p. 366)
45
uma pessoa física a prestação de seus serviços efetuados com personalidade,
onerosidade, não-eventualidade e sob sua subordinação.”145
A última característica trazida no conceito da Professora Alice é de suma
importância ao se analisar a norma a ser utilizada pelo direito do trabalho no
momento da desconsideração da personalidade jurídica.
O fato é que o que se vê em todos os conceitos é que para a caracterização
do empregador, é necessário partirmos da caracterização de empregado, a partir do
qual temos, por via reflexa, o empregador. 146
Cassar147, ao contrário de todos estes autores, críticos da redação do artigo
2º. Da CLT, defende uma outra idéia, de que agiu bem o legislador.
Conclui que a real intenção deste foi a de proteger o empregado em razão
das possíveis alterações no controle e transferência da empresa, optando assim
pela despersonificação do empregador.148 149 150
145 DELGADO, 2004, p. 389. 146 Defendem a idéia Delgado (2004) e Nascimento (2009). 147 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho . Niterói: Impetus, 2008. p. 424 148 Explica a autora que outra corrente aponta a teoria institucionalista para explicar a definição de empregador, pois dois membros da comissão elaboradora da CLT, Rego Monteiro e Dorval Lacerda, defendiam a corrente institucionalista para explicar a natureza jurídica da relação de emprego. Esta teoria prega o interesse exclusivo da instituição em detrimento dos interesses individuais do que nela ingressarem. Neste caso, a empresa seria uma instituição pessoa com atividade normativa, “emitindo regras , as quais, o empregado ao ingressar na instituição ,e estaria automaticamente vinculado. Sob o argumento de que o legislador consolidado adotou a corrente anticontratualista, da qual a institucionalista é espécie, a corrente explica que a utilização do vocábulo “empresa” foi proposital, pois teve a nítida intenção de demonstrar a teoria a que se filiava. 149 Ao dizer que o empregador é a empresa, o legislador institucionalista quis dizer que o empreendimento é comum, onde empregador e empregado se unem em um só fim. Não se pretendeu dar a cootação de que a relação de emprego decorre de um contrato, onde há sujeitos de direito, mas sim do mero engajamento no empreendimento, pois o fim é comum” (CESSAR, 2008. p. 424). 150 Em uma pesquisa feita para uma tese de doutorado, Magda Barros Biavaschi entrevistou o professor Arnaldo Süssekind que assim, segundo descreve, se manifestou sobre o fato: “Quanto ao instituto da despersonalização do empregador, lembra que o conceito de empregador que a Consolidação veio a adotar suscitou controvérsias na Comissão. Havia nela uma disputa entre duas correntes: a contratualista e a institucionalista. Eram então membros da comissão Ministro Marcondes Filho (Ministro do Trabalho), Luiz Augusto de Rego Monteiro, José Segadas Vianna, Dorval Lacerda e Arnaldo Süssekind. Oscar Saraiva havia sido deslocado para auxiliar a comissão da Previdência Social. Rego Monteiro era institucionalista, com tendências corporativas. Ele, Süssekind, e Segadas Vianna eram contratualistas. Já Dorval Lacerda dividia-se, ficava lá e cá. Rego Monteiro havia proposto o reconhecimento da empresa como sujeito de direitos na relação de emprego. A adoção da despersonalização do empregador (artigo 2º) e a configuração do contrato por ajuste tático (artigo 442) fizeram com que alguns doutrinadores concluíssem que a CLT acabara adotando a teoria institucionalista (ato-condição ou ato-inserção, e não contrato). Mas não. A comissão, por maioria, com o voto do Ministro Marcondes Filho – apesar da grande influência de Rego Monteiro –, decidiu pela contratualidade (acordo de vontades constitutivo do negócio jurídico). Mas essa situação, diz ele, acabou por justificar a construção de um conceito capaz de refletir o estágio vigente das relações entre empregado e empregador – salvo nos pequenos empreendimentos, em que já era nula a interferência do proprietário do empreendimento –, que conciliasse essas duas tendências. Daí
46
Assim, optou a CLT por “equiparar a empresa a um bem e o contrato de
trabalho a uma obrigação de ônus reais ou propter rem, ou seja, o contrato de
trabalho acompanha a empresa, e não o titular desta, em face do efeito seqüela
inerente do direito real.”151
Delgado152 reconhece a funcionalidade desta despersonalização, pois ao
enfatizar a empresa como empregador, a lei já indica que a alteração do titular da
empresa não terão grande relevância na continuidade do contrato, dado que à
ordem justrabalhista interessaria mais a continuidade da situação objetiva da
prestação de trabalho empregatício ao empreendimento enfocado,
independentemente da alteração de seu titular. É o que preceituam os artigos 10 de
448 da mesma CLT.
A despersonalização do empregador também tem como escopo harmonizar a
rigidez com que o Direito Individual do Trabalho trata as alterações objetivas do
contrato empregatício (p.ex. vedando alterações prejudiciais ao empregado) com o
dinamismo próprio ao sistema econômico contemporâneo, “em que sobreleva um
ritmo incessante de modificações empresariais”.153
Essa despersonalização do empregador tem, também, despontada como
importante fundamento para desconsideração da pessoa jurídica, no qual se busca a
responsabilização subsidiária dos sócios da entidade societária, em contexto de
frustração patrimonial do devedor principal.
Delgado154 destaca que “pela despersonalização inerente ao empregador,
tem-se compreendido existir intenção da ordem juslaborativa em enfatizar o fato da
organização empresarial, enquanto complexo de relações materiais, imateriais e de
resultou uma redação meio mista, meio híbrida e, quem sabe, um tanto incompreendida e criticada, que acabou recebendo o caput do artigo 2º da CLT ao definir a figura do empregador. Logo a seguir adianta que, quando criticam esse artigo (art. 2º) pela confusão que gera, trata de justificá-lo: ao equiparar o empregador à empresa o artigo está, na realidade, dizendo que o contrato de trabalho se forma em função da empresa, e não de seu proprietário, ou seja, da pessoa, física ou jurídica, titular do empreendimento. Assim redigido, adota a figura da despersonalização do empregador, representando grande novidade à época. E complementa: o artigo não atribui à empresa personalidade jurídica – nem poderia, porque ela não a detém –, reconhecendo-a, porém, como empregador; como elemento básico dos respectivos contratos. (BIAVASCHI, Magda Barros. O Direito do Trabalho no Brasil – 1930-1942 : a construção do sujeito de direitos trabalhistas. São Paulo: LTr/Jutra, 2007. p. 133). 151 CESSAR, 2008. p. 423 - 424. 152 DELGADO, 2004, p. 390. 153 Ibid., p. 392. 154 Ibid., p. 392-393.
47
sujeitos jurídicos, independentemente do envoltório formal a presidir sua atuação no
campo da economia e da sociedade.”
Coutinho apud Delgado155 arremata mais a frente: “com isso, a
desconsideração societária, em quadro de frustração da execução da coisa julgada
trabalhista, derivaria das próprias características impessoais assumidas pelo sujeito
passivo no âmbito da relação de emprego”.
O fato de a lei ter reconhecido a despersonalização do empregador,
entretanto, não afasta o fato do artigo 2º. da CLT ainda não ter estabelecido de
modo preciso quem, exatamente, pode ser considerado empregador diante do
emaranhado de entes jurídicos que exercem atividade econômica no Brasil. Tal
precisão nos parece de inquestionável importância.
O fato é que, o que se vê atualmente, é um alargamento da figura do
empregador. No início, na época da manufatura, a pessoa física, a figura pessoal do
dono da oficina, depois a pessoa jurídica, a empresa. Atualmente como fazem os
defensores da solidariedade ativa das empresas, começa-se a considerar
empregador também o grupo de empresas, como se fosse uma “grande
empresa”.156
A esta observação acrescemos os novos tipos de subordinação jurídica
geradas pelo desenvolvimento da tecnologia. Empregos da era digital, a distância,
virtuais, geram relações de trabalho e emprego que antes não existiam. O mundo do
trabalho é mutante e em constante evolução.
O conceito de empregador nestes casos redefine-se, fazendo com que
entendamos o rol elencado no parágrafo único do artigo 2º., que trata de
empregadores por equiparação, de modo exemplificativo.157
Amauri Mascaro observa que empregador e empresa são conceitos que, na
verdade, guardam uma relação de gênero e espécie entre si, em face da grande
amplitude da qualificação jurídica de empregador, sendo empresa uma de suas
formas.
Na verdade, o que se vê, é que a pessoa jurídica ainda se apresenta como a
principal figura de empregador e sob o ângulo trabalhista interessa, na condição de
155 COUTINHO, 2001 apud DELGADO, 2004, p. 393 156 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Trabalho . 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 641. 157 Amauri Mascaro admite expressamente ser o referido instituto legal exemplificativo. (NASCIMENTO, 2009, p. 642.)
48
empresa, apenas de um modo: como a organização que tem empregados e que,
portanto, deve cumprir não apenas fins econômicos mas também sociais,
aparelhando-se para que cumpra sua função social numa sociedade democrática.158
A personificação da pessoa jurídica, no entanto, tem permitido a prática de
diversos atos lesivos a interesses de terceiros, empregados, com a subtração de
suas garantias, através da separação patrimonial.159
As características da relação laboral como a hipossuficiência do empregado
faz com que o direito do trabalho adote normas para que a blindagem característica
da pessoa jurídica, quando esta assume a posição de empregadora, não possa
servir como obstáculo para o atingimento de direitos fundamentais decorrentes do
trabalho, inclusive admitindo a superação da pessoa jurídica com a
responsabilização pessoal dos sócios diante da insuficiência de bens daquela.
A esta técnica jurídica dá-se o nome de desconsideração da personalidade
jurídica.
2.4 RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL DO SÓCIO
Não se confunde a responsabilidade com a noção de obrigação, pois esta
assume caráter pessoal, representado pelo dívida objeto de uma relação jurídica de
direito material.160
A responsabilidade, como sujeição dos bens do devedor à sanção, é noção
ligada ao terreno processual. Nessa linha, obrigação e responsabilidade são
conceitos inconfundíveis.161
A responsabilidade do sócio surge como conseqüência do não-cumprimento
de uma obrigação, caso em que o credor pode mover a execução contra o devedor,
operando-se a possibilidade de alcançar os bens daquele até a satisfação total do
crédito.
158 NASCIMENTO, 2009, p. 645. 159 COUTINHO, 2001. p. 227. 160 SITTA, André Luiz Gonçalves. Penhora de bens do sócio quotista : execução trabalhista. Curitiba: Juruá, 2006. p.52. 161 SHIMURA, Sérgio. Titulo Executivo . São Paulo: 1997. p 53-54.
49
A responsabilidade, na forma como vamos estudá-la, restará caracterizada
sob o ponto de vista patrimonial, com a sujeição dos bens do devedor à sanção
imposta pela sentença. Assim, a execução do comando imposto pelo título executivo
judicial dar-se-á através da sujeição do patrimônio do devedor, aos efeitos da
sanção aplicada ao caso concreto.162
Teixeira Filho163 conceitua execução forçada no processo do trabalho como “a
atividade jurisdicional do Estado, de índole essencialmente coercitiva, desenvolvida
por órgão competente, de ofício ou mediante iniciativa do interessado, com o
objetivo de compelir o devedor ao cumprimento da obrigação contida numa sentença
condenatória transitada em julgado, em acordo judicial inadimplido ou em título
extrajudicial previsto em lei”.
O nosso estudo trata da chamada responsabilidade externa do sócio, ou seja,
a responsabilização do sócio perante os credores sociais.164
Em nosso ordenamento jurídico, duas espécies de responsabilidade
patrimonial estão previstas na lei adjetiva. A primeira é a chamada responsabilidade
primária, prevista no artigo 591, do CPC.
O efeito da responsabilidade primária sujeita os bens presentes e futuros do
devedor de forma ilimitada, ou seja, sem restrições, até o cumprimento integral da
dívida contraída.
A segunda espécie de responsabilidade é a chamada secundária, prevista no
artigo 592 do CPC, que sujeita o patrimônio de uma determinada pessoa às
obrigações do responsável primário.
Os bens do sócio se enquadram nessa hipótese, ressalvando-se que na
hipótese da constituição societária há expressa previsão legal de que os bens
particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos
casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a
exigir que sejam primeiro executivos os bens da sociedade (artigo 596, do CPC).
162 SITTA, 2006, p.52. 163 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. Curso de direito processual do trabalho . São Paulo: LTr, 2009. p. 1845. 164 A doutrina portuguesa nos ensina, sobre a responsabilidade patrimonial do sócio, que “a grande distinção que, neste âmbito, cumpre operar é a que existe entra a chama ´responsabilidade interna´, ou seja, responsabilização do sócio (como sócio ou enquanto dirigente, de direito ou de facto) perante a própria sociedade, em cujo patrimônio deverá ingressar o montante que vai visar a reparação do dano causado, e a chamada ´responsabilidade externa´, enquanto responsabilização directa do sócio perante os credores sociais” (RIBEIRO, Maria de Fátima. A tutela dos credores da sociedade por quotas e a desconsideração da personalidade jurídic a . Coimbra: Almedina, 2009. p. 58)
50
Como já dito alhures a responsabilidade executória poderá se dar de modo
secundário, através da sujeição do patrimônio pessoa ao processo de execução,
não se tratando de legitimidade passiva para o processo de execução, mas de
responsabilidade executória secundária de um terceiro.
Não se pode misturar a noção de sujeito passivo (art. 568) com a de
responsável patrimonial (art. 592). Sitta destaca que “o sujeito passivo é o
executado; é o responsável pelo pagamento; é parte portanto. O responsável
patrimonial é o terceiro; somente seus bens ficam sujeitos à execução.”165
A doutrina tem denominado essa regra de responsabilidade subsidiária, na
qual o sócio pode invocar o benefício de ordem, o mesmo previsto para o fiador,
para o fim de indicar bens da sociedade empresarial antes que seu patrimônio
pessoal seja afetado.
De igual modo, em harmonia a esse princípio, o artigo 1024, do Código Civil,
também estabelece esse beneficum excussionis personalis, que, sem dúvidas,
garante a segurança jurídica ao sócio.
Mas a responsabilização do sócio não é automática, e necessita do
pronunciamento do juiz, porquanto apenas na esfera judicial é possível a
desconsideração da personalidade jurídica.
O modelo utilizado pelos Tribunais para este fim tem sido a chamada
“desconsideração da personalidade jurídica” para fazer responder os sócios, pelas
obrigações da sociedade, enquanto modelo de responsabilidade externa.
2.5 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA COMO MODELO DE
RESPONSABILIDADE EXTERNA.
Nos modelos de responsabilidade externa, o sócio vai responder diretamente
perante os credores sociais (e não perante a sociedade).
165 Não obstante o posicionamento defendido por Araken de Assis, no sentido de que a sujeição do patrimônio dos sócios os caracteriza como partes legitimadas extraordinariamente para o processo de execução, certo é que a responsabilidade executória se dará apenas do ponto de vista patrimonial e de modo secundário, pois não se trata do devedor reconhecido pelo título executivo. (SITTA, 2006, p.57).
51
Aspecto importante a ser destacado, já no início de nossa exposição, é que a
responsabilidade patrimonial do sócio, a ser explicada na teoria da penetração,
objeto deste estudo, é sempre subsidiária, devendo surgir somente quando o fundo
social é insuficiente.166
No mesmo sentido concordamos com a importante lição da portuguesa Maria
de Fátima Ribeiro segundo a qual:
De todo modo, a esta solução – e dadas as suas características – sempre se atribuiu o carácter de “subsidiária”, no sentido de que só se coloca a questão do recurso à ‘desconsideração da personalidade jurídica’ da sociedade por quotas se os problemas em análise não encontrarem resposta directa nas soluções legais vigentes no domínio societário.167
Assim, havendo no direito meios de responsabilização direta dos sócios
perante os credores sociais, deve determinar-se o respectivo âmbito de aplicação
assim como se deve identificar os problemas de tutela dos credores sociais a quais
se pode dar resposta.168
Com todo respeito à outras opiniões em contrário, a teoria da penetração não
pode nem deve ser confundida com outras formas de responsabilidade dos sócios
previstas no direito empresarial.
Muitos textos legais que admitem a responsabilidade dos sócios por dívidas
contraídas pela sociedade são comumente citados como exemplos de
desconsideração da personalidade jurídica. Estes, no entanto tratam de instituto
diverso.
Quando a lei responsabiliza gerentes, administradores, controladores ou
sócios ela já está autorizando o comprometimento direto do patrimônio particular do
sócios, seja de forma subsidiária, seja de forma isolada ou solidária.169
166 Ferri destaca: Anche nella società organizzata su base pernsonale è principio fondamentale che per Le obbligazioni socieali risponda anzitutto il fondo sociale, formato com i confirimenti: la responsabilità del socio há sempre carattere sussidiario, e cioè funziona in quanto El fondo socialesia insufficiente. Ocorre pertanto ditinguere La responsabilità Del sócio dalla sua obbligazione di conferimento. L`assunzione di um obbligo di conferimento è presupposto indispensabile della pearticipazione come sócio; La responsabilità è uma conseguenza, a seconda dei tipo, necessária o eventuale di tale participazione. (FERRI, Giuseppe. Manuale di diritto commerciale. 10. ed. Torino: UTET, 2006. p. 230). 167 RIBEIRO, 2009, p. 62. 168 RIBEIRO, loc. cit. 169 CESSAR, 2008, p. 423-424.
52
Conforme já dito acima, muitos julgados oriundos da Justiça do Trabalho
aplicam, por exemplo, o artigo 135 do CTN como fonte analógica para decretar a
desconsideração da personalidade jurídica.
O referido dispositivo legal, no entanto, claramente não se refere à disregard
instituto, mas sim a uma punição ao administrador, que pode, inclusive, não ser
sócio.
Neste caso, pode, inclusive, a sociedade vir a exigir judicialmente do seu
administrador que ele responda pelos atos praticados em seu prejuízo
(responsabilidade interna).
Ou seja é, claramente, um instituto que visa proteger a sociedade e os demais
sócios que fica protegida assim como seu patrimônio dos atos praticados pelo seus
administradores.
Outro exemplo de responsabilidade dos sócios por dívidas da sociedade
comumente citado no estudo da disregard, o artigo 10 do Decreto 3.708 de 10 de
janeiro de 1.919 que dispõe: “Os sócios gerentes ou que derem nome à firma não
respondem pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, mas
respondem para com esta e para com terceiros solidária e ilimitadamente pelo
excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei.”
Ora, a lei já está autorizando o comprometimento do patrimônio particular dos
sócios, sem a utilização de nenhum instituto. Também, diferentemente da disregard
que visava proteger os credores da sociedade contra o uso nocivo da pessoa
jurídica, o referido texto legal tem como escopo a proteção também da própria
sociedade e dos demais sócios, preservando-a perante a sociedade na
demonstração de que o mau administrador pagou pelos atos.
Da mesma forma, e sob fundamentos parecidos, outros textos prevêem a
responsabilização dos sócios que não podem ser confundidos com a
desconsideração da personalidade jurídica. O artigo 158 da Lei 6.404/76 é um deles
(Lei das sociedades anônimas), o artigo 314 do Código Comercial, o artigo 130, in
fine, do Código Comercial, os artigos 316, 320 e 321 também do mesmo código.
O próprio artigo 2º. da CLT em seu parágrafo 2º. não trata da
desconsideração da personalidade jurídica, mas sim da responsabilização de outras
empresas que, coligadas ao devedor principal, na forma de grupos de empresas.
Ora, em momento algum admite-se qualquer superação de uma personalidade
53
jurídica mas tão somente, que outras pessoas jurídicas respondam também por uma
dívida contraída por outrem.
A responsabilização do grupo de empresas, nos moldes como previsto no
artigo 2º. da CLT, não está condicionada à insuficiência de patrimônio da sociedade
empregadora e à dependência financeira de uma em relação à outra, bastando que
se comprove a existência do grupo.
Neste sentido ousamos discordar da opinião de Rubens Requião, o
verdadeiro introdutor da disregard no Brasil, segundo o qual foi no artigo 2º. da
Consolidação das Leis do Trabalho que se viu a primeira manifestação do instituto
no Brasil.170
É importante que realizemos tal observação antes de entrarmos no estudo
sobre o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, pois o presente
estudo não tratará de outros tipo de responsabilização societária que não sejam
aqueles que entenda representativos do instituto a ser estudado.
2.6 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. FORMAÇÃO
HISTÓRICA
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica teve seu início e
desenvolvimento a partir do sistema da common law, partindo, como ensina
Tokars171, de um debate inicial, de cunho econômico, para a proteção de uma
economia sólida construída não só pela mão do Estado como também pelas mãos
dos empreendedores.
Surgiu então na virada do século XIX para o século XX, a figura da sociedade
por quotas de responsabilidade limitada, até então maior estímulo ao
empreendedorismo, afastando o medo do empresário da época de responder com
170 Quando a Consolidação das Leis do Trabalho, por exemplo, no art. 3º, concebe como uma única entidade econômica a união de empresas, ou entre a empresa “mater” e suas filiadas, para os efeitos do direito social, nada mais está admitindo senão aplicação da doutrina, pois despreza e penetra o “véu” que as encobre e individualiza, desconsiderando a personalidade independente de cada uma das subsidiárias. (REQUIÃO, Rubens. Abuso de Direito e fraude através da personalidade jurídica . São Paulo: Revista dos Tribunais., v.410, p.20, dez.1969.) 171 TOKARS, 2007, p. 449.
54
seu patrimônio pessoal pela dívidas adimplidas pela sociedade, pois limitou a
responsabilidade do empreendedor ao montante investido na empresa.
Os sócios, então, obtém a distinção entre os seus patrimônios e aqueles da
pessoa jurídica reunindo seus esforços para alcançarem resultados que o
isolamento impediria, ao mesmo tempo em que passaram a visar também fins
atípicos, egoísticos e que não foram levados em consideração pelo ordenamento
jurídico ao criar as sociedades comerciais172. Não demorou para que
empreendedores utilizassem desta forma de atuação na sociedade para fins
escusos.173
Assim, surge a Disregard Doctrine, como recurso jurídico contra a utilização
indireta das sociedades comerciais para o abuso de direito, desvio de função, ou o
“mau uso” do direito, desviado do fim econômico social para o qual aquele direito foi
criado.174
A primeira manifestação que se tem conhecimento a respeito dessa doutrina,
conforme ensina Koury175, é o caso Bank of United States v. Deveaux, originando
forte repúdio dos doutrinadores da época (As cortes levantaram o véu e
consideraram as características dos sócios individuais”, dizia-se).
Tal decisão, entretanto, não aplicou exatamente a teoria da desconsideração,
havendo nítida intenção de preservar a jurisdição das cortes federais sobre as
corporations apesar da limitação imposta pela Constituição Federal Americana.176
A decisão quase que unanimemente aceita pelos doutrinadores como a
primeira a tratar especificamente da disregard doctrine, deu-se na Inglaterra em
1897.
172 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da Personalidade Jurídica (disre gard doctrine) e os Grupos de Empresas . Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 70. 173 Gonçalves Neto destaca que: [...] sendo a pessoa jurídica uma ficção, uma técnica que o direito coloca à disposição das pessoas humanas para facilitar suas relações, sua personalidade não pode ir além disso. A ficção legal existe para possibilitar o preenchimento da função que lhe é reservada pelo ordenamento; fora de sua função tal ficção deve ser desconsiderada para que apareça a realidade que lhe está subjacente, sendo assim evitadas eventuais ilicitudes que poderiam estar aí encbertas. O regime jurídico previsto para preencher um determinado papel, não pode ser utilizado para contornar ou encobrir ilegalidades. (GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Manual de Direito Comercial . Curitiba: Juruá, 2003. p.124) 174 KOURY, op. cit., p. 71. 175 WORMSER, 1912 apud KOURY, 1997, p.71. 176 BRUSCHI, Gilberto Gomes. Aspectos Processuais da Desconsideração da Personal idade Jurídica. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p.13.
55
Trata-se do caso Salomon v. Salomon, utilizado pelo pioneiro da teoria no
Brasil, Requião em seu pioneiro trabalho “Abuso do direito através da personalidade
jurídica”.177
Note-se que desde seu início a teoria foi usada para proteger o crédito do
trabalhador. No próprio case citado, a superação da personalidade jurídica deu-se
em proteção a créditos trabalhistas.
177 Assim Requião narra o caso: “O comerciante Aaron Salomon havia constituído uma Company, em conjunto com outros seis componentes de sua família, e cedido o seu fundo de comércio à sociedade assim formada, recebendo 20.000 ações representativas de sua contribuição ao capital, enquanto para cada um dos outros membros foi distribuída uma ação apenas; para a integralização do valor do aporte efetuado, Salomon recebeu ainda obrigações garantidas de dez mil libras esterlinas. A companhia logo em seguida começou a atrasar pagamentos, e um ano após, entrando em liquidação, verificou-se que seus bens eram insuficientes para satisfazer as obrigações garantidas, sem que nada sobrasse para os credores quirografários. O liquidante, no interesse desses últimos credores sem garantia, sustentou que a atividade da company era ainda a atividade pessoal de Salomon para limitar a sua própria responsabilidade; em conseqüência Aaron Salomon devia ser condenado ao pagamento dos débitos da company, vindo o pagamento de seu crédito após satisfação dos demais credores quirografários. O magistrado que conheceu do caso em primeira instância, secundado depois pela Corte de Apelação, acolheu essa solicitação, julgando que a company era exatamente apenas uma fiduciária de Salomon, ou melhor, um seu agent ou trustee, que permanecera na verdade o efetivo proprietário do fundo de comércio. Nisto ficou a inauguração da doutrina da disregard, pois a Casa dos Lordes, acolheu o recurso de Aaron Salomon, para reformar aquele entendimento das instância inferiores, na consideração de que a company tinha sido validamente constituída, pois a lei simplesmente requeria a participação de 7 pessoas, que no caso não haviam perseguido nenhum intuito fraudulento. Esses acionistas, segundo os Lords, haviam dado vida a um sujeito de direito de si mesmos, e em última análise não podia julgar-se que a company fosse um agent da Salomon. Em conseqüência não existia responsabilidade de Salomon para a company, e seus credores e era, conseqüentemente, válido o seu crédito privilegiado”. (REQUIÃO, 1969, p.12-24.). Para explicar o caso, Requião (1969) baseou-se na monografia do professor Piero Verrucolio, da Universidade de Pisa, intitulada “ Superamento della Personalitá Giuridica delle Soceitá de Capitali”. Para um maior detalhamento do caso faz-se válido diante de sua importância para o tema, a explicação que nos traz a própria doutrina inglesa: “Mr. Salomon had conducted his bootmaking business as a sole trader, and He sold it to a company incorporated for the purpose called A. Salomon and Co. Ltd whose only members were himself, his wife, a daughter and four sons. These seven individuals were the subscribers of the company´s memorandum and took one £1 share each. The business was sold to the company for over £ 39,000. Part of the purchase price was used by Mr. Salomon to subscribe for a further 20,000 £1 shares in the company, but £ 10,000 of the purchase price was not paid by the company, wixh instead issued Mr Salomon with a series of debentures (written acknowledgements of indebtedness) for £10,000 and gave him a floting charge on its assets as security for the debt . Unfortunately the company´s business failed and the company went into liquidation. AS will be explained in 11.6, the holder of a floating charge on a company´s assets in entitled, on the liquidation of the company, to have the assets covered by the charge applied to the payment of the debt secured by the charge. If Mr. Salomon had been able to enforce him floating charge, the company´s other creditors would have nothing. The company´s liquidator took a stand on behalf of the other creditors, resisted Mr Salomon´s claim and suggested that, rather than take money from his company, Mr Salomon should be made responsible for paying all its debts, just as he would have if he had continued to conduct the business as a sole trader. The liquidator wanted somehow to ignore the fact that Salomon had sold the business to a separate person, A. Salomon and Co. Ltd, and that Mr Salomon now had only limited liability to that company instead of the unliminted liability he had had when he conducted the business as a sole trader. At first instance (sub nom Broderip v Salomon 1895) Ch 323), it was held that the company had conducted the business as agent for Mr Salomon, so that he was responsible for all debts incurred in the course of the agency for him. The house of Lords rejected his approach.” (MAYSON, Stephen W., FRENCH, Derek, RYAN, Christopher L.. Mayson, French & Ryan on Company Law . 19. ed. Oxford: University Press, 2003. p. 142-143.)
56
Este leading case é até o hoje o mais famoso caso do direito empresarial
inglês. Seguiram-se a este caso, e em razão dele, diversos atos do legislativo
britânico para que se evite fraudes no uso da pessoa jurídica.178
Com base neste mesmo caso, que ao final, por decisão da House of Lords
inglesa, decidiu pela não responsabilização do Sr. Salomon optando pela
manutenção da separação das personalidades, esta mesma Casa decidiu que em
casos de declarações difamatórias em razão do negócio atingiriam a própria
empresa como pessoa, devendo assim, nesta condição, ela responder como autora
num processo judicial.
Decidiu-se também que em razão da autonomia da pessoa jurídica esta pode
inclusive processar seus próprios sócios, assim como constituir uma empresa de
administração de bens juntamente com seus sócios.179
Ainda sob a sombra de Salomon a partir dos anos 60, no mesmo direito inglês
passou-se com maior força a discutir-se forma de levantar-se o véu da pessoa
jurídica, permitindo o acesso ao seu conteúdo.180
No direito inglês e norte-americano a teoria foi intitulada como além de
disregard of legal entity, disregard of corporate entity, lifting the corporate viel,
piercing the corporate viel, cracking open the corporate shell.
Ao estudo deste e de outros tantos casos do direito anglo-saxônico
dedicaram-se juristas europeus, em especial o renomado doutrinador alemão ROLF
SERICK que, ainda na década de 50, sistematiza pela primeira vez a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica tendo como parâmetro a teoria
178 “Following the case, Parliament enacted provisions in the Companies Act 1900 requiring the public registration of charges on company property and in the Companies Act 1907 enabling liquidators to avoid floating charges given to secure pre-existing debts.” (MAYSON; FRENCH; RYAN, 2003, p. 144). 179 “It is the company as a separate person that conducts the company´s business and so any defamatory statement made about the business defames the company as a separate person, which may sue for libel or slander (Metropolitan Saloon Omnibus Co. Ltd. V Hawkins (1859) 4 Hurld & N 87; South Hetton Coal Co. Ltd v North-Eastern News Association Ltd (1894) 1 QB 133). A company, as a person separate from its members, may even sue one of its own members for liebel (Metropolitan Saloon Omnibus Co. Ltd. V Hawkins). (MAYSON; FRENCH; RYAN, loc. cit.). 180 A metáfora levantamento do véu por vezes foi criticada por ser um tanto imprecisa, sendo difícil precisar o seu alcance. Em caso de 1991 trouxe alguma clareza: “To Pierce the corporate viel is na expression that I would reserve for treating the rights or liabilities or activities of a company as the rights or liabilities or activities of its shareholders. To lift the corporate veil or look behind it, on the other hand, should mean to have regard to the shareholding in a company for some legal propose.” (Ibid, p. 149).
57
denominada “durchgriff der juristchen Personen”. Bruschi resume a obra do
eminente alemão nos seguintes conceitos:181
� A pessoa jurídica quando manipulada, se agir abusivamente, fugindo às
obrigações legais ou contratualmente assumidas, lesando terceiros, é
simplesmente posta de lado, descartada. Entretanto, se não houver abuso
não há que se cogitar de desconsideração; 182
� O princípio da autonomia da pessoa jurídica deve prevalecer repudiando-
se qualquer forma de desvirtuamento ou má utilização. Somente se houver
a ocorrência de ilicitude, é que pode haver a desconsideração da
personalidade jurídica;
� As normas jurídicas aplicáveis aos indivíduos isoladamente considerados
são em tese também aplicáveis à pessoa jurídica;
� Nos negócios em que são partes a pessoa jurídica e seus integrantes
deve haver nítida distinção e plena identidade entre eles.
Na Espanha, o trabalho de Serick foi traduzido pelo professor Antônio Pólo,
de Barcelona e tem o significativo título de “Aparencia y Realidade em las
Sociedades Mercantiles – El abuso de derecho pormedio de la persona jurídica”.183
Salomão Filho184 destaca a importância da obra de Serick para o atual estágio
da desconsideração da personalidade jurídica, colocando que o autor alemão adota
um conceito unitário de desconsideração ligado a uma visão unitária da pessoa
jurídica como ente dotado de uma essência pré-jurídica, que se contrapõe ao valor
específico de cada norma, o que, segundo o professor da USP, trata-se do que
Schanze chama de “definição qualificada da essência da pessoa jurídica”. Na
mesma obra, Salomão Filho critica o exagero de Schanze quando de suas duras
181 BRUSCHI, 2004. p.16. 182 Comparato e Salomão Filho destacam que “toda pessoa jurídica é criada para o desempenho de funções determinadas, gerais e especiais. A função geral da personalização de coletividades consiste na criação de um centro de interesses autônomo, relativamente ás vicissitudes que afetam a existência das pessoas físicas que lhe deram origem, ou que atuam em sua área: fundadores, sócios, administradores. As funções específicas variam, conforme as diferentes categorias de pessoa jurídica e, ainda, dentro de cada categoria, de coletividade a coletividade, em razões de seus atos constitutivos, estatutos ou contratos sociais. A desconsideração da personalidade jurídica é operada como conseqüência de um desvio de função, ou disfunção, resultante sem dúvida, no mais das vezes de abuso ou fraude, mas que nem sempre constituiu um ato ilícito. Daí por que não se deve cogitar da sanção de invalidade, pela inadequação de sua excessiva amplitude, e sim da ineficácia relativa.” (COMPARATO, Fabio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O Poder de Controle na Sociedade Anônima . 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 361.) 183 REQUIÃO, 2003, p. 378. 184 SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p. 211.
58
críticas à obra de Serick, demonstrando que ao final de suas conclusões chega
praticamente a resultados muito semelhantes da teoria por ele criticada.185
De fato, o direito alemão teve importante contribuição para o desenvolvimento
da teoria.
Sob influência do direito britânico, o direito norte-americano deu a sua
contribuição ao estudo da disregard com o desenvolvimento acentuado da teoria
através de diversas decisões jurisprudenciais. Parte-se da situação peculiar do
sistema normativo americano, no qual cinqüenta estados federados e a própria
União tem leis específicas. 186
185 Segundo Salomão Filho, Schanze critica Serick que “vê na personalidade jurídica um fenômeno unitário, ou seja, a regra, e na sua desconsideração, a exceção. Argumenta que esse tipo de raciocínio regra/exceção, sem uma conveniente crítica conceito de pessoa jurídica, levaria a admitir a desconsideração com base em princípios vagos e de difícil determinação como os de equidade e justiça”. Ocorre, que, explica o autor, quando chega o momento não mais de criticar, mas, sim de definir o conteúdo normativo de seu conceito de pessoa jurídica o autor cria o seu próprio unitarismo. (SALOMÃO FILHO, 2006, p. 213). 186 Pode-se afirmar, assim, que o conceito de pessoa jurídica varia muito de acordo com o momento histórico e a ideologia adotada pela ordem jurídica, de tal forma que só se pode conhecer o que um determinado ordenamento considera como pessoa jurídica através da verificação das normas por ele consagradas a esse respeito. Decorre disso o caráter de relatividade da personalidade jurídica que segundo Verrucoli, corresponde à relatividade de atribuição do privilégio de existir e agir notoriamente como grupo , sendo, então, um reflexo da própria relatividade do reconhecimento. Ao referir-se à personalidade como privilégio, Verrucoli não se restringe ao sistema da common Law, no qual esta característica decorre da própria consideração da acentuada, no sistema continental ou romano germânico. Na verdade, quer afirmar que o reconhecimento da personalidade jurídica é sempre uma criação do direito na medida em que é consentida, reconhecida e tutelada esta liberdade de formação e expressão coletiva. Este caráter relativo da personalidade jurídica, ressaltado também por Serick, é que permite compreender a idéia de desconsideração pois, como ensina Verrucoli, [...] a superação, que realiza esta relatividade da pessoa jurídica, mostra-se em toda evidência como um dos possíveis instrumentos através dos quais o poder central contém e corrige a força dos grupos, restaurando um equilíbrio comprometido, combatendo os abuso do privilégio concedido, realizando completamente os fins perseguidos que se tenham tornado, de qualquer maneira, comprometidos por um rígido respeito formal ao privilégio da pessoa jurídica. (KOURY, 1997, p. 06-07).
59
2.7 A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
2.7.1 O Desenvolvimento da Disregard Doctrine no Brasil
O artigo 20 do Código Civil de 1.916. já previa a existência distinta entre a
pessoa jurídica e seus membros, o que, segundo alguns autores, era empecilho
para a aplicação da disregard doctrine. 187
O jurista paranaense Requião, entretanto, sofrendo nítida influência dos
escritos de Serick, de forma pioneira tratou do assunto no Brasil no já citado
artigo188, inclusive traduzindo a expressão “disregard of legal entity” para
“desconsideração da personalidade jurídica”.
Nesta obra coloca a fraude e o abuso de direito como elementos essenciais a
autorizar o juiz a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica em relação às
pessoas que a contrapõe. Como conseqüência poder-se-ia atingir o patrimônio dos
sócios, quando do uso indevido da sociedade.
Para Requião,189 ainda, a teoria não visava a anulação da personalidade
jurídica, mas tão somente a declaração de ineficácia da mesma para determinado
efeito, em razão do desvio do uso legítimo da mesma para prejudicar credores ou
violar a lei em benefício de seus membros.
187 O atual Código Civil não se preocupou com tal distinção, deixando de fazer expressa alusão quanto à diferenciação entre pessoa jurídica e pessoa física. Permite, assim, entretanto, um melhor enquadramento das pessoas jurídicas que se constituem pela união comum de idéias, forças econômicas e sociais, interesses e finalidades, permitindo o nascimento de um ente que possui uma vida interior – respondendo os sócios pelas perdas da sociedade formada (art. 1008 do Código Civil) – e uma vida exterior, o que lhe permite agir de forma autônoma, em nome próprio. (NAHAS, 2007, p. 92-93.) 188 REQUIÃO, 1969, p. 12-24. 189 REQUIÃO, loc. cit.
60
O surgimento da teoria em seus estudos deu-se em grande monta através da
constatação de que a teoria da personalidade jurídica aplicada às sociedade
comerciais, não deixa de criar sérios problemas, razão pela qual pressente a sua
decadência.190
Em destes problemas apontados pelo mestre paranaense, foram as fraudes
promovidas através da personalização de sociedades anônimas, seja em problemas
de âmbito privado, seja em relações de direito público. Em análise da doutrina da
Disregard of Legal Entity, constatou seu nascimento no direito anglo-saxão,
espraiando-se para o direito germânico e mais recentemente repercussão na
doutrina jurídica italiana.
Grande importância para o tema teve a obra de Comparato191, que adotou
critérios objetivos em seus estudos dando maior segurança à matéria retirando o
caráter subjetivo do julgamento.
Apesar de muitos doutrinadores fixarem o artigo 28 do Código de Defesa do
Consumidor como marco legislativo inicial da teoria (Lei n. 1.078/1.990), o próprio
Requião admite a existência de diversos outros dispositivos anteriores a permitir a
utilização do instituto, reconhecendo ele mesmo no artigo 2º, parágrafo 2º. da
Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei 5.452 de 1º. de maio de 1.943),
verdadeiro introdutor da teoria da desconsideração da personalidade jurídica de
forma positivada no Brasil, opinião da qual ousamos discordar.
A primeira manifestação, de fato, no direito brasileiro da desconsideração da
personalidade jurídica foi sim o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor.
190 Em sua obra Rubens Requião, com absoluta propriedade, apresenta diversos problemas decorrentes da personificação. Vê, por exemplo, incompreensão na antiga lei de falências quando esta determinava que a falência da sociedade acarretava a do sócio. Ou seja fatos da vida societária envolviam a pessoa física do sócio, comprometendo sua vida social. Também, lembra do sério confronto da teoria da personalidade jurídica em relação à morte ou interdição do sócio. Sobre o tema cita Manara quando este reagia contra a personificação argumentando que “fazer depender a existência da pessoa jurídica da existência, da capacidade e do estado de certas pessoas físicas seria certamente coisa anormal, porque, se de pessoa jurídica se trata, vale dizer de um sujeito de direito diverso da pessoa física, criada e reconhecida pela lei, fatos concernentes exclusivamente à existência, à capacidade ou ao estado das pessoas físicas não deveria repercutir sobre os sujeito de direito diverso deles.” (REQUIÃO, 2003. p. 377). 191 COMPARATO, 2008.
61
2.8 A TEORIA E SUA POSITIVAÇÃO ATUAL NO DIREITO BRASILEIRO
Nos países em que este problema tem merecido maior atenção, a solução é
designada como superamento dello schermo della personalitá giuridica,
levantamiento Del velo, disregard of corporateness, durchgriff bei juristischen
person, durchgriff auf die Gesellschaft, Durchbrechung der eigenen
Rechpersönenlichkeit der jurstischen Perón, levée Du voile social.192
Entre autores de língua portuguesa proliferam diversas denominações como
levantamento da pessoa colectiva, desconsideração da personalidade jurídica, teoria
da penetração, superação da personalidade jurídica, desconhecimento da
personalidade, levantamento do véu, rompimento do véu.
A denominação comumente mais utilizada é a desconsideração da
personalidade jurídica, utilizada também na identificação deste estudo.
A expressão despersonalização da pessoa jurídica deve ser evitada pois é
equivocada, sendo que designa outro fenômeno que não é objeto deste estudo.
Não se pode confundir a desconsideração com as hipóteses em que a pessoa
jurídica é constituída de forma irregular, situação em que certamente não chega a se
constituir de forma válida ou adquirir personalidade.193
Justen Filho194, de forma precisa, lembra que a despersonalização é um
abuso permitido por lei. É tolerável que se incentive a personalização de certos
entes a fim de que a atividade empresarial seja cumprida, trazendo vários benefícios
para o desenvolvimento econômico e social.
A teoria deve ser analisada a partir dos conceitos feitos pelos doutrinadores.
Os conceitos trazidos pela doutrina guardam uma proximidade entre si e
podem ser resumidos nas palavras de Justen Filho195 como sendo “a ignorância,
para casos concretos e sem retirar a validade de ato jurídico especifico, dos efeitos
da personificação jurídica validamente reconhecida a uma ou mais sociedade, a fim
de se evitar um resultado incompatível com a função da pessoa jurídica”.
192 RIBEIRO, 2009, p. 67. 193 NAHAS, 2007, p. 95. 194 JUSTEN FILHO, 1987, p. 120-121. 195 Ibid., p. 57. Lamartine Corrêa, no entanto, por adotar uma posição filosófica da pessoa jurídica (como realidade extrajurídica), apresenta uma proposição dissonante da propugnada por Justen Filho (pessoa jurídica como imputação ).
62
Ribeiro196, com maior influência dos ensinos alemães, entende por
desconsideração da personalidade jurídica “uma operação pela qual a personalidade
jurídica de uma pessoa é afastada, retirada”, visando assim destruir ou evitar as
conseqüências que decorrer da afirmação da autonomia jurídica da pessoa coletiva
(jurídica), enquanto titular de personalidade jurídica.
Também lembra a autora, que o principal problema do recurso a esta técnica
está em definir, precisamente, as premissas que permitam, com segurança, uma
imputação que ultrapasse a autonomia e os limites impostos pela personalidade
jurídica.
Deve-se, então, atentar-se ao fato de o recurso à técnica da desconsideração
vira determinada finalidade que pode mudar de acordo com cada caso, pois trata-se
de uma operação com um alcance relativo, uma vez que a sua aplicação tem em
vista a produção de um resultado concreto.197
É por isso que as peculiaridades dos créditos devem ser observadas tanto
pelos construtores legislativos como pelos aplicadores da lei.
Com grande razão, Ribeiro198 destaca que:
o resultado que se pretende atingir-se pela via do recurso à aplicação da técnica de ‘desconsideração da personalidade jurídica’ pode ser alcançado, em muitos casos, através da aplicação de normas jurídicas especificamente formuladas pelo legislador para obviar aos – ou corrigir os – efeitos de uma actuação que se mostre apenas aparentemente compatível com o instituto da personalidade jurídica e a conseqüente separação entre a pessoa colectiva e seus membros. (grifo nosso)
Arremata dizendo que:
[...] nestes casos, a personalidade jurídica aparece de certo modo relativizada, dotada de um conteúdo normativamente definido em termos menos amplos, o que evita que venha a ser colocada para resolver o concreto problema visado pela lei, a questão de sua desconsideração.199
Assim, cumpre a função o legislador quando observa normas que são
formuladas de forma específicas para cada caso e de acordo com a
196 RIBEIRO, 2009, p. 70. 197 Baseada na Piero Verrucoli (RIBEIRO, 2009, p. 70) 198 RIBEIRO, op. cit., p. 73. 199 RIBEIRO, loc. cit.
63
incompatibilidade que a atuação do instituto da personalidade jurídica tenha com a
função que deva cumprir.
Atualmente, como regra geral, a desconsideração da personalidade jurídica
está prevista no artigo 50 do Código Civil, que expressamente estabelece “em caso
de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela
confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério
Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e
determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos
administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
O legislador de 2002 acolheu a denominada “teoria maior” da
desconsideração, também conhecida como teoria subjetiva, sustentada no Brasil por
Rubens Requião com base nos estudos de Rolf Serick, que condiciona a
desconsideração com a ocorrência de critérios subjetivos como a fraude ou abuso
de direito.
O tema exposto por Rubens Requião no famoso artigo de 1.969 mereceu
atenção da Comissão Revisora do Código Civil, presidida pelo professor Miguel
Reale, inspirando o artigo 49 do Anteprojeto.
O dispositivo em questão pretendia, à época, “radical medida de dissolução
da pessoa jurídica”, quando for ela desviada dos fins que determinam a sua
constituição200, enquanto a doutrina exposta objetiva somente que o juiz
desconsiderasse episodicamente a personalidade jurídica, para evitar a fraude ou
abuso do sócio que dela se vale como escudo.201
Rubens Requião na época então, sugere alteração no artigo 49, sendo em
razão desta sugestão o mesmo alterado (segundo o autor, “não ainda de forma
satisfatória”) passando a constar o texto que posteriormente iria ser promulgado já
como artigo 50 do mesmo código.202
Como já visto, mesmo antes do advento do artigo 50 do Código Civil de
2.002, a idéia da desconsideração da personalidade jurídica já havia sido concebida
pela ordem jurídica positiva através da jurisprudência e regras específicas.
De fato, anteriormente a esta norma, já havia a possibilidade de se
desconsiderar a personalidade por previsão do artigo 28 do Código de Defesa do
200 Os chamados atos ultra vires. 201 REQUIÃO, 2003. p. 379. 202 REQUIÃO, loc. cit.
64
Consumidor (Lei 8.078/90), assim como em razão das Leis 8.884 de 11 de junho de
1994, que estabelece sansões para disciplinar a livre concorrência (art. 18).
Também admite a desconsideração a Lei 9.695 de 12 de fevereiro de 1998,
regulamentada pelo Decreto 3.179 de 21 de setembro de 1999, que dispõe sobre a
tutela do meio ambiente, em seu art. 4º.
Afora esses preceitos específicos, a teoria da disregard já era aplicada pelos
juízes e tribunais, em situações específicas analisadas pela prudência exigida em
cada caso e quando a situação fática permitia vislumbrar a fraude.
Ainda em outras situações era possível legitimar a desconsideração da
pessoa jurídica a partir dos chamados “princípios gerais do direito”, aos quais faz
menção o art. 4º. Da Lei de Introdução ao Código Civil.203 204
Alguns autores, principalmente aqueles ligados ao direito civil vêem no artigo
50 do Código Civil, entretanto, a positivação da “velha figura da desconsideração da
personalidade jurídica”.205
Vieira Silva206, na mesma linha, em trabalho escrito mesmo antes da sanção
do projeto de Lei que deu origem ao Código Civil de 2002, afirmou que o projeto
(que na época tinha a mesma redação com que foi sancionado) “reflete com
fidelidade e precisão o espírito da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica”, arrematando em seguida “enfim, passando a vigorar o artigo 50, do Projeto,
com a mesma redação acima, estará definitivamente introduzida no ordenamento
jurídico brasileiro a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, exatamente
da forma como delineada por seus estudiosos”.
No mesmo sentido Couto Silva207, afirmou que o preceito em questão tinha o
mérito de diferenciar despersonificação e desconsideração, mas “restringe a
possibilidade de aplicação da teoria da desconsideração às hipóteses de abuso e de
confusão patrimonial, sem acrescentar a fraude no seu sentido mais amplo”.
Atualmente, os tribunais britânicos admitem, da mesma forma que o texto do
artigo 50 do Código Civil, o levantamento do véu da pessoa jurídica, quando a
203 ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Desconsideração da personalidade jurídica no novo Código Civil . São Paulo: MP Editora, 2005, p. 69. 204 COMPARATO, Fábio Konder. Direito Empresarial. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 63. 205 ANDRADE FILHO, op. cit., p. 69 206 VIEIRA SILVA, Osmar. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 146. 207 COUTO SILVA, Alexandre do. Aplicação da desconsideração da personalidade juríd ica no direito brasileiro . São Paulo: LTr, 1990. p 90.
65
empresa é vista como mero boneco (puppet) de outra pessoa, ou ainda um clone de
seu controlador, atuando como seu verdadeiro alter ego.208
A partir da edição deste dispositivo do Código Civil, em 2002 (com vigência a
partir de 10 de janeiro de 2003), o debate sobre a aplicação da desconsideração da
personalidade nas lides trabalhistas, que antes já era fervoroso, agora ainda mais é
objeto de diferentes interpretações.
Requião, um dos primeiros juristas a tratar sobre a então teoria da
desconsideração da personalidade jurídica em clássico artigo escrito em 1969209,
admite que o artigo 2º, § 2º, da CLT210, é o verdadeiro introdutor dessa teoria de
forma positivada no país.
A partir do estudo de Rubens Requião, e em apego ao mega-princípio
protetivo do Direito do Trabalho, a doutrina juslaboralista passou a adotar a posição
de que o empregador, ao assumir os riscos da atividade econômica, em momento
algum poderá transferir ao empregado os eventuais prejuízos de sua atividade
empresarial. Nada obstante, a responsabilização do sócio, quando da existência de
empresa devidamente constituída, decorre de lei.
Até a edição do Código de Defesa do Consumidor (CDC), essa era a
posição dominante na doutrina, ressalvando que muitos doutrinadores apontaram no
artigo 28, do CDC211, e seu § 5°212, o verdadeiro marco legislativo inicial da teoria da
desconsideração no ordenamento jurídico pátrio.
De fato, somente a partir do Código de Defesa do Consumidor é que o
fenômeno da desconsideração da personalidade jurídica tomou corpo e passou a
208 MAYSON; FRENCH; RYAN: 2003, p. 150-152. 209 REQUIÃO, 1969, p. 12-24. 210 Art. 2º. Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços. § 1º. Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados. § 2º. Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas. 211 Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. 212 § 5º. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
66
ser o ponto de referência normativo, aplicado supletivamente no processo do
trabalho por força dos artigos 8° e 769, ambos da C LT.213
A compatibilidade do dispositivo do CDC com o Processo do Trabalho decorre
a aplicação da chamada “teoria menor” da desconsideração, segundo a qual não se
preocupa em distinguir a utilização fraudulenta da regular do instituto, sendo
indiferente ter havido ou não abuso de forma.214
O caput do artigo 28, do CDC, adotou a “teoria maior” da desconsideração,
enquanto o § 5° do mesmo artigo realmente adotou a “teoria menor”.
A teoria menor também foi recepcionada por outras legislações como as leis:
8.884 de 11 de junho de 1994, que estabelece sansões para disciplinar a livre
concorrência (art. 18). Também admite a desconsideração a Lei 9.695 de 12 de
fevereiro de 1998, regulamentada pelo Decreto 3.179 de 21 de setembro de 1999,
que dispõe sobre a tutela do meio ambiente, em seu art. 4º.
O Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 2.004 explica a teoria menor
como aquela acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito
do Consumidor e no Direito Ambiental a qual incide com a mera prova de insolvência
da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da
existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.
Segundo o STJ, ainda, a aplicação da teoria menor da desconsideração às
relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do
CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração
dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar,
213 Neste sentido, o Tribunal do Trabalho do Paraná assim se posicionou: ILEGITIMIDADE DA EMPRESA PARA DEFESA DE BEM DE SÓCIO-RESPONSABILIDADE DO SÓCIO-DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA – A pessoa física da embargante é que detém legitimidade para recorrer, haja vista que, tendo seu bem sofrido penhora, possui legitimidade para recorrer e porfiar por seus eventuais direitos, o que, em última análise, torna a empresa parte ilegítima. De outro lado, sua legitimidade é evidenciada quando a empresa não tem ativo para suportar a execução de crédito de natureza alimentar. Portanto, o sócio desde que tenha integrado a sociedade à época em que não foram pagos os direitos trabalhistas ao exeqüente, responde pelos créditos reconhecidos no título executivo, sobretudo quando a executada não possui outros bens passíveis de penhora que possam garantir a execução. A propósito do disregard of legal entity, a despersonalização foi albergada pelo Código Tributário Nacional (art. 135) e pelo Código de Defesa do Consumidor, cabendo sua aplicação analógica (art. 8º da CLT) ao Processo do Trabalho nos casos omissos, segundo estabelece o parágrafo único do art. 769 da CLT. (TRT-PR. Tribunal do Trabalho do Paraná. Proc. 02482-1998-003-09-00-5. (5-2004). Rel. Juiz Luiz Celso Napp . J. 17 set. 2004) 214 VIEIRA SILVA, 2002, p. 103.
67
a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados aos consumidores.215
A interpretação dada ao artigo 28, e seu § 5°, do C PC, foi no sentido de
tutelar o crédito de terceiro, sobretudo o privilegiado. A fraude e o abuso de direito
não carecem de prova por parte do credor, mas se presumem cada vez que a
autonomia patrimonial da sociedade represente obstáculo ao ressarcimento de
prejuízos ou à percepção de crédito de terceiros.
Como bem destacado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do
RESP 279273, repita-se, o risco empresarial normal às atividades econômicas não
pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos
sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta
administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de
identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da
pessoa jurídica.
215 RESPONSABILIDADE CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR – RECURSO – Especial. Shopping Center de Osasco-SP. Explosão. Consumidores. Danos materiais e morais. Ministério Público. Legitimidade ativa. Pessoa jurídica. Desconsideração. Teoria maior e teoria menor. Limite de responsabilização dos sócios. Código de Defesa do Consumidor. Requisitos. Obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Art. 28, § 5º. - Considerada a proteção do consumidor um dos pilares da ordem econômica, e incumbindo ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, possui o Órgão Ministerial legitimidade para atuar em defesa de interesses individuais homogêneos de consumidores, decorrentes de origem comum. - A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração). - A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. - Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica. - A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. - Recursos especiais não conhecidos. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp. 279273. SP. 3 T. Responsabilidade Civil e Direito Do Consumidor. Recurso. Rel. p/o Ac. Min. Nancy Andrighi. DJU 29 mar. 2004, p. 00230).
68
Com essa construção hermenêutica, a doutrina juslaboralista, bem como a
jurisprudência dos Tribunais do Trabalho216, se identificaram com os motes impostos
pelo Código de Defesa do Consumidor, que, assim como o microssistema
trabalhista, também tem por objetivo a proteção ao hipossuficiente, e,
conseqüentemente, ao seu crédito.
Entretanto, com o advento do Código Civil, fomentou-se uma nova postura em
boa parte da doutrina, com base no artigo 50, tendo em vista as sérias críticas do
comportamento adotado pela magistratura trabalhista em desconsiderar a
personalidade jurídica sem critérios (geralmente aplicando de ofício, sem
requerimento da parte credora), acarretando, de acordo com a visão destes críticos,
desestímulo na geração de novos empreendimentos no país.
2.8.1 Natureza Jurídica do Instituto
A construção de um conceito sobre a natureza jurídica do instituto da
desconsideração passa pela análise de seu conceito.
Nas palavras de Maria Helena Diniz a doutrina da desconsideração da pessoa
jurídica visa impedir a fraude contra credores, “levantando o véu corporativo,
desconsiderando a personalidade jurídica num dado caso concreto, ou seja,
declarando a ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados
efeitos.”217
Para os demais, portanto, permanecerá incólume.
216 Para ilustrar, veja-se a seguinte ementa do Tribunal do Trabalho do Paraná: EXECUÇÃO – RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS – A responsabilidade pessoal dos sócios encontra respaldo na teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, recepcionada pela legislação civil por força do Código de Defesa do Consumidor (art. 28). A qual vem sendo aplicada no Direito do Trabalho em face da prevalência do interesse social sobre o individual e da necessidade de proteção ao hipossuficiente, preservando a regra de que ao empregado não cabe arcar com os riscos da atividade econômica. Como corolário, não obstante seja a pessoa jurídica dotada de personalidade própria e distinta da pessoa de seus sócios, sempre que estes últimos busquem refúgio naquele instituto em preJuizo de terceiros, atraem a aplicação da 'disregard of legal entity" com o intuito de impedir o aperfeiçoamento de fraude e o êxito do ardil, independentemente de ostentarem ou não a qualidade de gerente. Não encontrados bens da executada passíveis de satisfazer o crédito exeqüendo, respondem os sócios pelo crédito do empregado que contribuiu para o desenvolvimento empresarial. (TRT-PR. Tribunal do Trabalho do Paraná. Proc. 02928-1997-660-09-00-4. (01185-2006). Relatora Juíza Rosemarie Diedrichs Pimpão. DJPR 20. jan. 2006). 217 DINIZ, 2008, p. 304-305.
69
Vale dizer, o juiz ou tribunal não determina o rompimento da separação que
existe entre a pessoa jurídica e seus membros, ou seja, essa separação permanece.
A opção pela ineficácia, também é trazida em julgados do próprio STJ, em
decisão unânime sobre o tema, em acórdão que constou como relator o Ministro Ruy
Rosado de Aguiar que se pronunciou no sentido de que “a aplicação da doutrina da
desconsideração, para julgar ineficaz a personificação societária sempre que for
usada com abuso de direito, para fraudar a lei ou prejudicar a terceiros.”218
Desta forma, conclui-se que, o que se busca ao se utilizar a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica é a sua ineficácia para aquele
determinado caso, e não a invalidade daquele ente.219
Neste mesmo sentido, ensinam Calixto Salomão e Konder Comparato que
toda pessoa jurídica é criada para o desempenho de funções determinadas, gerais e
especiais.
A função geral da personalização de coletividades consiste na criação de um
centro de interesses autônomo, completam, relativamente ás vicissitudes que afetam
a existência das pessoas físicas que lhe deram origem, ou que atuam em sua área:
fundadores, sócios, administradores.
A desconsideração da personalidade jurídica, portanto, é operada como
conseqüência de um desvio de função, ou disfunção, resultante sem dúvida na
maioria das vezes de abuso ou fraude, mas que nem sempre constituiu um ato
ilícito. “Daí por que não se deve cogitar da sanção de invalidade, pela inadequação
de sua excessiva amplitude, e sim da ineficácia relativa.” 220 (grifo nosso)
Na mesma linha Rubens Requião, o precursor da teoria no Brasil destaca
com propriedade que a disregard doctrine não visa a anulabilidade da pessoa
jurídica, mas tão somente objetiva desconsiderar, no caso concreto, dentro de seus
limites, a pessoa jurídica em relação às pessoas e bens que atrás dela se
escondem.
218 Recurso Especial 86.502/SP, decisão de 21 maio 1996, 4ª. Turma. 219 BRUSCHI, 2004, p. 33. 220 COMPARATO; SALOMÃO FILHO, 2005, p. 361.
70
Completa “É o caso de declaração de ineficácia especial da personalidade
jurídica para determinados efeitos prosseguindo, todavia, a mesma incólume para
seus outros fins legítimos.”221
Para uma correta configuração da natureza jurídica da desconsideração como
ineficácia da personalidade jurídica, convém que se faça a distinção entre a
ineficácia e invalidade.
Esclarece Theodoro Júnior222, que aplicação da ineficácia é uma sanção, e
decorre de uma “valoração da lei em torno dos interesses a regulamentar numa
prevista conjuntura em que certo negócio jurídico se desenvolve.”
Quando acontece no mundo real, aquilo que previsto estava na norma, esta
cai sobre o fato, qualificando-o como jurídico, tem ele então a sua existência jurídica.
Quando o fato jurídico entra no mundo jurídico para produzir efeitos, tem ele eficácia
jurídica.223
Como os efeitos do negócio jurídico estão na dependência dos efeitos que
foram manifestados como queridos, o direito, para realizar essa atribuição, exige que
a declaração tenha uma série de requisitos, ou seja, exige também uma declaração
que seja válida. Neste fato reside uma peculiaridade do negócio jurídico como
espécie especial de fato jurídico, um plano de exame peculiar, qual seja o plano da
validade, que se interpõe entre o plano da existência e o plano da eficácia.224
Assim, a ineficácia da personalidade jurídica é relativa e não se confunde com
a anulabilidade, porquanto o ato anulável é dotado de eficácia até instante em que
for desconstituído (com efeitos ex tunc). No caso da eficácia relativa, o ato jurídico
produz os seus efeitos, embora não sejam efeitos estes que se produzam perante
terceiro, ilimitadamente. Vale dizer, o direito estatui validade do ato, mas sua eficácia
subjetiva é delimitada.225
Quando relativamente eficaz, portanto, o ato não é privado de validade, sendo
ineficaz apenas a um ou outro interessado em razão de uma deficiência sua. O ato
foi devidamente concluído, não perdendo a sua substância. Seus elementos 221 REQUIÃO, 1986 apud ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de Bens dos Sócios : Obrigações Mercantis, tributárias, trabalhistas da desconsideração da personalidade jurídica (doutrina e jurisprudência). 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 162. 222 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Negócio jurídico. Existência. Validade. Eficácia. V ícios. Fraude. Lesão. Revista dos Tribunais . São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 780, out. 2000. p. 17. 223 AZEVEDO. Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico : existência, validade e eficácia. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 23. 224 Ibid., p. 24. 225 JUSTEN FILHO,1987, p. 85.
71
essenciais e pressupostos de validade estão presentes. A sua eficácia, entretanto,
ficará limitada em razão de fato a ele extrínseco.226
A ineficácia seria absoluta se não produzisse efeitos em relação a ninguém e
não somente a determinadas partes.
Já para Venosa227 a ineficácia adquire um sentido geral, segundo o qual:
É a declaração legal de que os negócios jurídicos não se amoldam aos efeitos que ordinariamente produziriam. Sem dúvida, a ineficácia, por qualquer de suas formas, tem sentido de pena, punição pelo fato de os agentes terem transgredido os requisitos legais.
O ato ineficaz é, portanto, diferente do ato inexistente, no qual falta um
elemento essencial à sua formação, sequer chegando a constituir-se (puro fato, sem
existência legal), assim como não se confunde com o ato inválido, este de existência
presumida, mas que não preenche os requisitos do artigo 104 do Código Civil
(agente capaz, objeto lícito e possível e forma prescrita ou não proibida em lei).228
Assim, o negócio jurídico válido pode ser eficaz ou não. Francisco Amaral nos
dá alguns exemplos: O testamento válido que não produz efeitos enquanto a pessoa
estiver viva; atos praticados por incapazes perante a massa falida; A ineficácia
perante terceiros do contrato de compra e venda sem o registro imobiliários que, no
entanto, produz efeitos entre as partes. Neste caso, assim como na
desconsideração da pessoa jurídica, a eficácia é relativa, pois não produz efeitos
somente em relação a algumas pessoas.229
Completa o autor:
Se a validade do negócio significa a sua conformidade com o ordenamento jurídico, a invalidade é, portanto, uma irregularidade jurídica. O ato, não se pratica de acordo com o que a lei estabelece. A conseqüência imediata é a ineficácia, a impossibilidade de produzir os efeitos pretendidos.230
Assim a declaração da desconsideração da personalidade jurídica de
determinado ente se traduz, portanto, num fenômeno de ineficácia relativa do
226 THEODORO JÚNIOR, 2000, p. 17. 227 Tal tratamento dado pelo autor tem um sentido genérico englobando fenômenos como inexistência, nulidade e anulabilidade, como específicos da ineficácia. (VENOSA, 2003, p. 570) 228 AMARAL, 2008, p. 528-529. 229 Ibid., p. 529. 230 AMARAL, loc. cit.
72
contrato ou ato constitutivo societário para determinados fins, mantendo-se para
todos os outros válidos perfeitamente intocável.
É importante também destacar que dentro da análise no plano da eficácia
(assim como os demais planos e na relação entre eles), existe um importante
princípio fundamental que domina a matéria da inexistência, invalidade e ineficácia.
O princípio da conservação.
Azevedo231 explica que de acordo com este princípio tanto o legislador quanto
o intérprete da norma “devem procurar conservar, em qualquer um dos três planos –
existência, validade e eficácia - o máximo possível do negócio jurídico realizado pelo
agente.”
A manutenção ou conservação do máximo dos efeitos tem a sua função
social e econômica. Em especial no que diz respeito à pessoa jurídica diante da sua
importância na sociedade como gerador de empregos, e principal ator da atividade
econômica. Assim, deve o julgador orientar-se por este princípio ao tornar ineficaz a
pessoa jurídica, procurando conservá-la.
No caso da ineficácia da pessoa jurídica, no momento da declaração de sua
desconsideração mantém-se todas as suas características integrais intactas,
havendo somente a ineficácia relativa quanto àquele caso em específico, ou seja a
pessoa continua existindo, sendo válida, e eficaz quanto a todos os outros atos da
sua existência jurídica.
Tal fato, da mesma forma, demonstra o acerto da teoria institucional ao
explicar a natureza jurídica da própria pessoa jurídica pois indiscutivelmente
existente no mundo jurídico, uma realidade institucional, capaz de emanar os efeitos
de sua atuação, podendo estes serem declarados ineficazes.
De se notar ainda a ineficácia não é pré-existente ao seu reconhecimento.
Em outros exemplos do direito civil como os citados acima nos quais a
ineficácia já é pré-existente a sua declaração pelo juiz, ou seja, o testamento é
231 O princípio da conservação consiste, pois, em se procurar salvar tudo que é possível num negócio jurídico concreto, tanto no plano da existência, quanto da validade, quanto da eficácia. Seu fundamento prende-se à própria razão de ser do negócio jurídico; sendo este uma espécie de fato jurídico, de tipo peculiar, isto é, uma declaração de vontade (manifestação de vontade a que o ordenamento jurídico imputa os efeitos manifestados como queridos), é evidente que, para o sistema jurídico, a autonomia da vontade produzindo auto-regramentos de vontade, isto é, a declaração produzindo efeitos, representará algo de juridicamente útil. A utilidade de cada negócio poderá ser econômica ou social, mas a verdade é que, a partir do momento em que o ordenamento jurídico admite a categoria negócio jurídico, sua utilidade passa a ser jurídico, visto vez que somente em cada negócio concreto é que adquire existência a categoria negócio jurídico. (AZEVEDO, 2000. p. 64-65)
73
ineficaz enquanto vivo seu signatário, o ato do incapaz é ineficaz em relação a
massa falida, cabendo ao juiz apenas constatar o fato e declará-lo mediante pedido
de pronunciamento.
No caso da desconsideração da personalidade jurídica, a ineficácia relativa
passa a existir somente a partir da declaração pelo juiz, ou seja, a ineficácia do
contrato societário não é pré-existente passando a ser reconhecida através da
declaração, mas nasce a partir desta declaração judicial.232
O fato é que ainda mais importante do que se estabelecer a sua natureza
jurídica, é delinear os requisitos para sua aplicação.
A Constituição como norma ápice e suprema do próprio ordenamento jurídico
exige a sua preliminar observância quando da análise de qualquer norma.
Os princípios e valores jurídicos assim ganham especial relevância pois
acabam por estabelecer verdadeiro norte interpretativo visando a máxima
efetividade do texto constitucional.
O direito buscado num processo judicial trabalhista, via de regra, tem caráter
alimentar, estando intimamente ligado à subsistência do trabalhador. Assim o
princípio da dignidade da pessoa humana, até pela sua característica de mega-
princípio jurídico, adquire especial importância.
Não se pode olvidar que o instituto também pode vir a ser janela que faz
transparecer valores e direitos fundamentais como a razoável duração do processo
e a própria função social da empresa, esta vista como empregadora.
232 Pode-se dizer que a declaração do juiz nos outros exemplos citados se dá por reconhecimento de uma ineficácia que já era pré-existente não tendo sido apenas “enxergada” pelo juiz, enquanto que no caso da desconsideração o juiz faz com que a ineficácia “nasça” a partir dali.
74
3 VALORES CONSTITUCIONAIS DO TRABALHO SOB A ÓTICA D A
INTERPRETAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE J URÍDICA
DA SOCIEDADE EMPREGADORA
3.1 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A palavra dignidade tem sua raiz etimológica no latim: dignus que significa
“aquele que merece estima e honra, aquele que é importante”233, usada na
antiguidade referindo-se à espécie humana como um todo sem personificação. Foi
apenas com o advento do cristianismo que a idéia de uma dignidade da pessoa
atribuída a cada indivíduo.234
Rizzatto Nunes salienta que, para definir dignidade, é preciso levar em conta
todas as violações que foram praticadas, para, contra elas, lutar. Na seqüência de
seu pensamento, acrescenta que “se extrai dessa experiência histórica o fato de que
a dignidade nasce com o indivíduo. O ser humano é digno porque é.” 235
Recorrendo a Heiddgger, que paradoxalmente em vida chegou a sonhar com
o nacional-socialismo alemão como elemento de construção do ser, defende que a
formulação do ser é de conjugação única e tautológica: “O ser é. Ser é ser. Logo,
basta a formulação: sou. Então, a dignidade nasce com a pessoa.” 236
Ou seja, é-lhe inata. Inerente à sua essência. Há de se considerar também
que nenhum indivíduo é isolado. Ele nasce, cresce e vive no meio social. Assim, é
nesse contexto, sua dignidade ganha ou, tem o direito de ganhar, um acréscimo de
dignidade física e psíquica.237
Ressalta que chega um momento do seu desenvolvimento que o pensamento
do indivíduo tem de ser respeitado, suas ações e seu comportamento - isto é, sua 233 Nos textos de filosofia, a unanimidade há apenas, em relação a origem latina do termo. Cleber Francisco Alves, por exemplo, ensina que a palavra dignidade tem origem em dignitas significando respeitabilidade, prestígio, consideração, estima, nobreza, excelência, o que indicaria “qualidade daquilo que é digno e merece respeito ou reverência”. 234 MORAES, Maria Celina Bodin. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado . 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 112-113. 235 NUNES, Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa h umana . São Paulo: Saraiva, 2004. p. 49. 236 NUNES, loc. cit. 237 NUNES, loc. cit.
75
liberdade - sua imagem, sua intimidade, sua consciência - religiosa, científica,
espiritual - etc., tudo compõe sua dignidade. 238
Maria Celina Bodin de Moraes traça um perfil filosófico da dignidade, a partir
de Kant.
Lembra ela que no mundo social existem duas categorias de valores: o preço
(preis) e a dignidade (Würden). “Enquanto o preço representa um valor exterior (de
mercado) e manifesta interesses particulares, a dignidade representa um valor
interior (moral) e é de interesse geral.” 239
As coisas têm preço; as pessoas, dignidade. O valor moral se encontra
infinitamente acima do valor de mercadoria, porque, ao contrário deste, não admite
ser substituído por equivalente.240
Existe, portanto, uma exigência de jamais transformar o homem em meio para
alcançar quaisquer fins. Em conseqüência, a legislação elaborada pela razão
prática, a vigorar no mundo social, deve levar em conta, como sua finalidade
máxima, a realização de valor intrínseco da dignidade humana.241
Ainda, sobre o pensamento Kantiano, observa Gláucia Correa Retamozo
Barcelos Alves que a dignidade de uma pessoa independe do seu status social, ou
do cargo que ocupa, ou da sua popularidade ou de sua utilidade para os outros.242
Esses fatores podem mudar, mas a dignidade atribuída ao ser humano
enquanto agente moral não. Por isso não se pode dizer que uma pessoa tenha mais
dignidade que outra.243
Ao afirmar que a dignidade não admite equivalente, Kant afirma também que
aquele que é dotado de dignidade não pode ser trocado ou sacrificado sob qualquer
pretexto. O que tem dignidade não tem preço e não pode ser mensurado. 244
Lembra bem ainda Maria Celina Bodin de Moraes, que compõe imperativo
categórico a exigência de que o ser humano jamais seja visto, ou usado, como um
238 NUNES, 2004. p. 49 239 MORAES MCB 2006.p. 115-116. 240 MORAES MCB, 2006. p. 112-113. 241 MORAES MCB, op. cit. 242 ALVES, Gláucia Correa Retamozo Barcelos. Sobre a dignidade da pessoa. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexo dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: RT, 2002. p .221-222. 243 ALVES, op. cit. 244 ALVES, op. cit.
76
meio para atingir outras finalidades, mas sempre seja considerado um fim em si
mesmo. A dignidade, portanto, inspira a regra ética maior: o respeito pelo outro.245
Já Alexandre de Moraes salienta que a dignidade é, na verdade, “valor
espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na
autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a
pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”.246
Percebe-se, portanto, que os conceitos todos convergem para considerar que
a dignidade humana é um valor moral, inerente à pessoa humana e dela
indissociável. Raimundo Simão de Melo destaca que esse valor “se manifesta na
autodeterminação consciente e responsável da própria vida.”247
Josiane Cristina Cremonizi de Paula observa que o que o ser humano
concebe com tranqüilidade não é exatamente o significado de dignidade da pessoa
humana em toda sua extensão, mas tão somente, a existência de uma especial
valorização do ser humano e a superioridade desde sobre as criaturas. Assim,
destaca se a idéia kantiana, historicamente assimilada na cultura ocidental de
vedação de instrumentalização do ser humano é algo até de fácil compreensão e
aceitação, a extensão tal proposição não é tão simples nem consensual.248
Dinaura Godinho Pimentel Gomes, por exemplo, destaca a concepção
teológica, envolvida no conceito valorativo de dignidade humana (um tanto
distanciada da técnica jurídica de identificação de valores) ressaltando que o valor
da dignidade da pessoa humana, resultante do traço distintivo do ser humano,
vincula-se à tradição bimilenar do pensamento cristão, ao enfatizar cada Homem
relacionado com um Deus que também é pessoa. Caminhando por uma outra
realidade, quase religiosa, destaca Gomes ainda que dessa verdade teológica, que
identifica o homem à imagem e semelhança do Criador, derivam sua eminente
dignidade e grandeza.249
245 2006 MCB, p. 115. 246 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional . 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 50. 247 MELO, Raimundo Simão de. Direito Ambiental e saúde do trabalhador : responsabilidades legais, dano material e moral, dano estético, indenização pela perda de uma chance, prescrição. 3. ed. São Paulo: LTr, 2008. p. 52. 248 GONÇALVES, Josiane Cristina Cremonizi. Reflexões acerca do conteúdo e significado do princípio da dignidade da pessoa humana. In: PAULA, Alexandre Sturion (et. al.). Ensaios Constitucionais de direitos fundamentais . São Paulo: Servanda Editora, 2006. p. 372. 249 GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. Direito do trabalho e dignidade da pessoa humana, no contexto da globalização econômica: problemas e perspectivas. São Paulo: LTr, 2005. p. 95.
77
Desta forma, identifica que a dignidade humana não é nem nunca foi uma
criação constitucional, mas um dado que preexiste a toda a existência especulativa,
razão por que, no âmbito do Direito, só o ser humano é o centro de imputação
jurídica, valor supremo da ordem jurídica.250
O fato é que, conforme bem destaca Moraes251, este valor deve constituir, de
acordo com a técnica jurídica "um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico”, de
modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício
dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que
merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
Sarlet252 também fazendo referência a direitos fundamentais do ser humano,
e ressaltando o dever do Estado de respeito a estes direitos, conceitua dignidade da
pessoa humana como sendo uma “qualidade intrínseca e distintiva de cada ser
humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade.”
Tal atenção do Estado implica, neste sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação
ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos.253
Tal conceituação é de extrema importância pois traça um vetor da atividade
legislativa do Estado e, porque não dizer, também para interpretação da lei pela
doutrina.
Ou seja, mais importante do que se estabelecer o exato substrato conceitual é
delimitar o seu alcance.
250 GOMES, 2005, p. 95. 251 MORAES A, 2003, p. 50. 252 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 . 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 62. 253 SARLET, loc. cit.
78
3.1.1 A Dignidade da Pessoa Humana como Princípio
Ao se estabelecer a dignidade humana como princípio do ordenamento
jurídico tem-se a referência para determinar seus efeitos no ordenamento jurídico.
Para Bester254 o princípio da dignidade da pessoa humana é “o valor supremo
que norteia e atrai o conteúdo de todos os demais direitos fundamentais em nosso
ordenamento; é o princípio que se sobrepõe a tudo e em primeiro lugar”. Acrescenta
a autora tratar-se de um “megaprincípio” ou um “superprincípio”.
Sobre essa importância do princípio da dignidade humana, Zulmar Fachin
destaca ainda que a dignidade da pessoa humana é o valor fundante do Estado
brasileiro (art. 1º. Inciso III) e “inspirador da atuação de todos os poderes do Estado
e do agir de cada pessoa”, um valor nuclear no ordenamento jurídico brasileiro.
Constata não ser por acaso que tal valor está justamente no pórtico da Constituição,
evidenciando o seu conteúdo axiológico.255
Sarlet256 afirma que a dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não
apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem jurídica (constitucional e
infraconstitucional), razão pela qual denota que para muitos, se justifica plenamente
sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológica-
valorativa.
A importância do referido princípio é inegável e, como visto, exaltada pela
doutrina. Barroso257, na mesma linha de Zulmar Fachin, considera o princípio da
dignidade da pessoa humana um princípio fundamental por considerá-lo o centro
axiológico da concepção de Estado democrático de Direito e de uma ordem mundial
idealmente pautada pelos direitos fundamentais.
Já Barcellos258 ensina que o conteúdo jurídico da dignidade se relaciona com
os chamados direitos fundamentais ou humanos. Isto é, terá respeitada a sua
254 BESTER, Gisela Maria. Direito Constitucional : fundamentos teóricos. São Paulo: Manole, 2005. p. 289-290. 255 FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 3. Ed.. São Paulo: Método, 2006. p.220 256 SARLET, 2007, p. 72. 257 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição : fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 375. 258 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro, 2002. p. 110-111.
79
dignidade o indivíduo cujos direitos fundamentais forem observados e realizados,
ainda que a dignidade não se esgote neles.
Os direitos fundamentais, salienta Luiz Edson Fachin259, neles incluídos os
direitos sociais, são invioláveis e inerentes à dignidade da pessoa humana; neles se
traduzem e concretizam as faculdades que são exigidas pela dignidade, assim como
circunscrevem o âmbito que se deve garantir à pessoa para aquela se torne
possível.
Luiz Edson Fachin, ainda, destaca que o referido princípio é estruturante,
constitutivo e indicativo das idéias diretivas básicas de toda a ordem constitucional
que ganha concretização por meio de outros princípios e regras constitucionais
formando um sistema interno harmônico, e afasta, de pronto, a idéia de predomínio
do individualismo atomista do Direito.260
Aplica-se como leme a todo o ordenamento jurídico nacional compondo-lhe o
sentido e fulminando de inconstitucionalidade todo preceito que com ele conflitar. É
um princípio emancipatório.261
A concretização do referido princípio, portanto, se dá por meio de princípios e
garantias constitucionais.
Bester262 enumera as condições para a efetivação do supra-princípio: o
respeito à vida digna (condição esta que se liga de forma inarredável do meio
ambiente sadio e equilibrado); limites ao desenvolvimento da ciência (clonagem
humana, por exemplo); uma ordem econômica que assegure a todos uma existência
digna; uma ordem social que vise a realização da justiça social; a função social da
propriedade, entendendo aí incluída também a função social da propriedade
intelectual, embora não prevista expressamente na Constituição; a função social do
contrato; a impenhorabilidade do bem de família; a educação e preparo da pessoa
para o exercício da cidadania. 263
Trata-se de um supra-princípio que se sobrepõe a todos os demais para
permear o ordenamento jurídico e servir de linha-mestra na condução da legislação
pátria.
259 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 181. 260 FACHIN, loc. cit. 261 FACHIN, loc. cit. 262 BESTER, 2005, p. 260. 263 Aqui nos filiamos para também incluir a função social do contrato de trabalho.
80
Somente reconhecido e positivado a partir da Constituição de 5 de outubro de
1988, erigiu a pessoa humana como valor supremo deste ordenamento e sua
escolha refletiu a prevalência da concepção humanista.
No decorrer do século XX, os princípios fundamentais de diversos ramos do
direito, assim como princípios fundamentais do direito privado, passaram, ensina
Maria Celina Bodin de Moraes, nos países de tradição romano germânica, a fazer
parte dos textos constitucionais.264
A preocupação com a dignidade da pessoa humana, a partir de então, tem
encontrado ressonância nestes textos, assumindo o status de norma estruturante de
todo o ordenamento jurídico. Os Estados, por seus respectivos poderes
constituintes, conferem um tratamento diversificado à dignidade da pessoa humana.
A positivação de tal princípio se deu, com maior força, na Europa do pós
guerra como reação às atrocidades do nazi-facismo. A Constituição Italiana de 1947
proclamava também no seu artigo 1º. que “todos os cidadãos tem a mesma
dignidade e são iguais perante a lei”, texto este que praticamente repetiu o artigo 1º.
da Declaração Universal do Direitos Humanos segundo o qual “todas as pessoas
nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.265 266
A doutrina comumente aponta a Lei Fundamental de Bonn, de maio 1949,
como a primeira a consagrar o princípio em termos mais incisivos. A Grundgesetz
alemã principia o seu texto com o título "Os Direitos Fundamentais" (Die
Grundrechte), nele proclamando que "A dignidade do homem é intangível.”
Os poderes públicos estão obrigados a respeitá-la e a protegê-la" (art. 1º, 1).
Resultando, pois, que "o povo alemão proclama a sua adesão aos direitos
invioláveis e inalienáveis do homem como fundamento de toda comunidade humana,
da paz e da justiça no mundo" (art. 1º, 2).
A Constituição portuguesa, por sua vez, considerou a dignidade da pessoa
humana um princípio fundamental (art. 1º), remetendo à lei o estabelecimento de
"garantias efetivas contra a utilização abusiva ou contrária à dignidade humana, de
informações relativas às pessoas e famílias" (art. 26, 2) e a obrigação de garantia da
264 MORAES MCB, 2006, p. 108. 265 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constituci onal dos danos morais . Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 82. 266 Anteriormente a este período, no entanto, já na Constituição Alemã de 1919 (Constituição de Weimar) aludia a dignidade da pessoa humana como objetivo maior da ordem econômica, bem como também já se referiam a ela as Constituições Portuguesa e Irlandesa de 1933 e 1937.
81
dignidade pessoal e da identidade genética do ser humano, em especial nas áreas
tecnológica e de experimentação científica, bem como estatuiu o dever de o Estado,
para a proteção da família, regulamentar a procriação assistida de modo a
salvaguardar a dignidade da pessoa humana (art. 67, 2, e). O texto português ainda
determina que as normas relativas aos direitos do homem devem ser interpretadas e
integradas em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.
16, 2).267
A Constituição espanhola de 1978, adotada logo após a revolução franquista
estabelece no seu artigo 10º., 1: “A dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que
lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos
direitos dos demais são fundamentos da ordem política da paz social.”
Em âmbito internacional ainda, podemos mencionar ainda o Convênio
Europeu para proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais, firmado em
Roma em 1950, o Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, para os Estados
americanos, assim como a constituição da Organização da Unidade Africana, em
1963.268
A Carta de Viena, de 1993, redigida após a Conferência Mundial sobre
Direitos Humanos, reconheceu e reafirmou que “todos os direitos humanos têm
origem na dignidade e nos valores inerentes a pessoa humana”.269
Recentes desdobramentos se deram também nas Constituições dos novos
Estados independentes e do Leste Europeu: Constituição da Croácia (art. 25), da
Bulgária (Preâmbulo), da Romênia (art. 1º.), da Letônia (art. 1º.), da Estônia (art.
10º.), da Estônia (art. 10º.), da Lituânia (art. 21), da Eslováquia (art. 12) e da
Federação Russa (art. 21).270
A positivação do princípio da dignidade da pessoa humana no direito
brasileiro se deu somente na constituição de 1.988, através do artigo 1º. III, e atuou
como verdadeiro elo de concretude dos direitos fundamentais, do qual resulta a
cláusula geral de tutela humana.
De se notar que, assim como nos exemplos examinados, a condição de
respeito à dignidade humana e sua positivação constitucional se deu após períodos
267 MORAES MCB, 2003, p. 83. 268 GONÇALVES JCC, 2006, p. 367. 269 GONÇALVES JCC, loc. cit. 270 GONÇALVES JCC, loc. cit.
82
de grande opressão sobre a sociedade e talvez até como resposta a este
autoritarismo.
Sarlet271 destaca que a decisão do constituinte de 1988 em positivar o
princípio da dignidade da pessoa humana, além de ter sido fundamental a respeito
do sentido, finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio
Estado, reconheceu, de forma categórica que é o Estado que existe em função da
pessoa e não o contrário. Desta forma, ressalta lição que poderia muito bem resumir
grande parte dos ensinamentos sobre este princípio: “o ser humano constitui a
finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”.272
Tal previsão constitucional, nas palavras de Tepedino273 é cláusula geral,
remodeladora das estruturas do Direito Civil brasileiro, e representa o principal
instrumento de tutela da pessoa nas relações entre particulares, representando um
valor máximo do nosso ordenamento pátrio e ponto de referência para a defesa da
pessoa.
Ressalta a sua importância de significar uma verdadeira inclusão social com a
ascensão à realidade normativa dos interesses coletivos, direitos de personalidade e
renovadas situações jurídicas existenciais, desprovidas de titularidades patrimoniais,
independentemente destas ou mesmo em detrimento destas.
Assim, conclui que “e o direito é uma realidade cultural, o que parece hoje
fora de dúvida, é a pessoa humana, na experiência brasileira, quem se encontra no
ápice do ordenamento, devendo a ela se submeter o legislador ordinário, o intérprete
e o magistrado [...]”.274
Nas palavras de Sarmento275 : “O reconhecimento de que tal princípio situa-se
no vértice axiológico da ordem jurídica vai acarretar a consagração dos valores
existenciais da pessoa humana sobre os patrimoniais no Direito Privado.”
É inegável, portanto, que esta cláusula se destine acima de tudo ao homem
como trabalhador, considerando que é do seu trabalho que tira o seu sustento que
lhe garantirá a concretização de uma vida digna.
271 SARLET, 2007, p. 60. 272 SARLET, loc. cit. 273 TEPEDINO, Gustavo. Do sujeito de direto à pessoa humana. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 342. 274 TEPEDINO, loc. cit. 275 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas . Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 90.
83
Tal princípio não pode ser relativizado posto que exerce papel de vetor
hermenêutico para todas as normas jurídicas constitucionais e infraconstitucionais,
sendo postulado absoluto.
Sua concretização depende da atuação do Estado em criar situações legais
para que se dê a ele a força legislativa irradiadora necessária.
3.1.2 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana do Trabalhador
3.1.2.1 Do reconhecimento da dignidade humana do trabalhador
A Constituição Federal prevê, como fundamentos da República Brasileira a
dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (art. 1º.) e ao
estabelecer que a ordem social tem como base o primado do trabalho (art. 193), o
constituinte de 1988, reconheceu a superioridade destes princípios e a proeminência
do ser humano trabalhador276.
No capítulo da ordem econômica faz menção novamente a finalidade de
“assegurar a todos existência digna” (artigo 170, caput).
Grau277 identificando esta dupla presença do princípio da dignidade humana,
em especial no Capítulo próprio, reputa que no Brasil este princípio representa não
somente um fundamento da República, mas também indica o fim da ordem
econômica.
Ledur, 278 a partir dos ensinamentos de Alexy e Hesse, propugna por uma
concreção dos direitos do trabalho pelo Estado e pela sociedade civil. Segundo
leciona o artigo 170, caput, da Constituição relaciona diretamente a existência digna
ao princípio da valorização do trabalho humano.
276 SIMM, Zeno. O acosso psíquico no ambiente de trabalho: manifestações, efeitos, prevenção e reparação. São Paulo: LTr, 2008. p. 32. 277 GRAU, Eros. A ordem econômica na constituição de 1988: interpretação e crítica. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 249. 278 LEDUR, José Felipe. A realização do direito do trabalho . Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editora, 1988. p. 58.
84
Conclui assim que “o confronto entre ambas as normas evidencia que a
dignidade da pessoa humana é inalcançável quando o trabalho humano não
merecer valorização adequada”.279
Essa valorização do ser humano em relações privadas, como as de trabalho,
por exemplo, reflete o que Sarmento, parafraseando o professor italiano Carmini
Donisi chama de “despatrimonialização” do direito privado .280
Essa despatrimonialização segundo o autor carioca implica no
“reconhecimento de que os bens e direitos patrimoniais não constituem fins em si
mesmos, devendo ser tratados pela ordem jurídica como meios para a realização da
pessoa humana.”281
Há então, segundo a obra de Sarmento, a superação do paradigma
individualista.
O reconhecimento da pessoa como ser social, titular de direitos e deveres
para com o seu semelhante, destacando ainda que a socialização, neste sentido,
relaciona-se com a crescente infiltração de valores solidarísticos no Direito Privado,
assim como o reconhecimento da desigualdade de fato entre os sujeitos de direito, e
a conseqüente preocupação com a proteção da parte mais fraca nas relações
intersubjetivas”282
Exemplo clássico neste sentido e de posição firme na doutrina é justamente o
reconhecimento da hipossuficiência do trabalhador.
Sebastião Geraldo de Oliveira ensina que “a dignificação do trabalho inverte a
ordem de apreciação, colocando o homem como valor primeiro, em função do qual
está estruturada a ordem econômica e social”.283
279 LEDUR, 1988, p. 58. 280 O termo “despatrimonialização” foi adotado também por Perlingieri, civilista italiano, que defende nova roupagem do direito privado, devendo prevalecer a “pessoa” sobre qualquer “valor patrimonial”. Assim se posicionou: “[...] com o termo, certamente não elegante, “despatrimonialização”, individua-se uma tendência normativa-cultural; se evidencia que no ordenamento se operou uma opção, que, lentamente, se vai concretizando, entre o personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade fim a si mesma, do produtismo, antes, e do consumismo, depois, como valores). (PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil : Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 135.) 281 SARMENTO, 2006, p. 91. 282 Ibid. p. 93. 283 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção Jurídica à saúde do trabalhador . 4 ed. São Paulo: LTr, 2002. p. 53.
85
Acrescenta que “a primazia do trabalho sobre a ordem econômica e social
privilegia o trabalhador antes de avaliar sua atividade; valoriza o trabalho do homem
em dimensões éticas que não ficam reduzidas a meras expressões monetárias.”284
É absolutamente inegável a condição de proteção e valorização do trabalho
do trabalho como condição para a real concretização do princípio da dignidade da
pessoa humana, seja na proteção ao seu salário, do qual retira meios para a sua
subsistência e vida digna, seja na proteção à saúde do trabalhador ou contra atos de
discriminação no trabalho.
Bem destaca Delgado “o núcleo basilar dos princípios gerais aplicáveis ao
ramo justrabalhista especializado inicia-se como o princípio da dignidade da pessoa
humana”.285
A valorização do princípio dignificador da pessoa humana do trabalhador é
reflexo, inclusive do princípio constitucional da função social da propriedade.
O artigo 5º., inciso XXIII da CRFB impõe que a “propriedade atenderá a sua
função social”. Também reaparece com princípio da ordem econômica (art. 170, III)
atingindo, portanto, a empresa, “uma das unidades econômicas mais importantes no
hodierno sistema capitalista”.286
Dallegrave Neto287 leciona que a imposição de comportamento positivo ao
titular da empresa, quando manifestada na esfera trabalhista, significa um atuar em
favor dos empregados, “o que, na prática, é representado pela valorização do
trabalhador, por meio de um ambiente hígido, salário justo e, acima de tudo, por um
tratamento que enalteça a sua dignidade enquanto ser humano (arts. 1º., 3º., 6º., 7º.
170 e 193, todos da CF).”
Como resultado desse agir de acordo com sua função social, propõe o
juslaboralista paranaense que é válido afirmar que se a empresa vai mal, é preferível
ver seus lucros diminuírem a implementar o corte de empregados. Deve também
partilhar seus lucros com os empregados que para ele concorrem, assegurando um
284 OLIVEIRA, 2002. p. 53. 285 DELGADO, Maurício Godinho. Princípios de direito individual e coletivo de trab alho . São Paulo: LTr, 2001. p. 118. 286 DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Responsabilidade civil no direito do trabalho . 2. Ed. São Paulo: LTr, 2007. p. 335 287 DALLEGRAVE NETO, loc. cit.
86
ambiente de trabalho seguro e digno, mesmo que isso implicar decréscimo de sua
rentabilidade. 288
Também, segundo Dallegrave, deve o legislador impor imitação à atividade
empresária, tais como a disregard doctrine e ultra vires societatis.
Na órbita trabalhista ainda, o empresário deve dar efetividade ao cumprimento
da legislação pertinente, não podendo atos que atentem contra à dignidade do
trabalhador, tais como mobbing, o assédio sexual, as dispensas discriminatória ou
mesmo os abusos decorrentes de seu poder de direção.289
Gomes, em profícuo trabalho sobre o tema, conclui que a atividade
empresarial, nessa conjuntura, necessita muito mais da colaboração econômico-
social entre as partes envolvidas, patrão e empregados, que manter a clássica
relação de trabalho, voltada à mera prestação de serviços, em vista de uma
contraprestação salarial que não leva em conta a dignidade da pessoa humana e os
valores sociais do trabalho, sem os quais nunca será possível construir uma
sociedade livre, justa e solidária.290
A valorização do trabalhador na empresa, de acordo com a função social da
propriedade vem a partir de uma “concepção solidarista – reconhecimento do outro
(alteridade) – e não uma visão isolada – mas relacionada – o trabalho há que ser
tutelado como valor supremo. 291
3.1.2.2 Vertentes do respeito à dignidade humana do trabalhador
O professor argentino Ruprecht292, ao versar sobre o assunto, esclarece que
o respeito à dignidade humana do trabalhador tem diversas vertentes citando
especificamente: a) controles pessoais sobre o empregado não podem ser
efetuados em desrespeito à sua dignidade; b) respeito à liberdade de opinião dos
empregados; c) deve ser garantida a ocupação durante a jornada d) proteção ao
288 DALLEGRAVE NETO, 2007. p. 335-336. 289 Ibid., p. 335-338. 290 GOMES, 2005, p.135. 291 DALLEGRAVE NETO, op. cit., .p. 335. 292 RUPRECHT, Alfredo J. apud ENGEL, Ricardo José. O jus variandi no contrato individual de trabalho . São Paulo: LTr, 2003. p. 40.
87
salário do trabalhador; e) que o empregado possa usufruir dos repousos legais; f)
respeito à condição da mulher; g) respeito a dignidade no exercício do jus variandi;
h) direitos sindicais devem ser respeitados para que possam ser livremente
manifestados.
Analisemos alguns destes aspectos a seguir.
Maria Celina Bodin de Moraes293 lembra que o princípio da solidariedade
(através do qual se alcance o objetivo da “igual dignidade social”), inserido no
princípio geral, instituído na Constituição de 1988, caracteriza-se pelo “conjunto de
instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos em uma
sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados”.
Ao analisar este princípio Baracat294 conclui que “não terá o empregado
existência digna se não auferir os meios necessários à sua subsistência, sendo que
estes meios, em regra, são os únicos que dispõe o trabalhador.”
Com efeito, dá-se a um crédito trabalhista, o caráter de “alimentar”,
vinculando-o à possibilidade de a partir dele prover as necessidades básicas suas e
as de sua família.
Delgado295 destaca que a noção de natureza alimentar é simbólica e parte do
suposto de que a pessoa física vive fundamentalmente de seu trabalho empregatício
que proverá suas necessidades básicas com o ganho advindo deste.
A essencialidade dos bens a que se destinam o salário do empregado, por
suposto, é que induz à criação de garantias fortes e diversificadas em torno da figura
econômico-jurídica.296
Mais a frente completa Delgado, que:
A força do princípio da proteção do salário (intangibilidade salarial), não está somente estribada no Direito do Trabalho, porém nas relações que mantém como o plano externo (e mais alto) do universo jurídico. Tal princípio ata-se até mesmo a um princípio jurídico geral de grande relevo, com sede na Carta Magna: o princípio da dignidade da pessoa humana” 297.
293 MORAES MCB, 2006, p. 114. 294 BARACAT, Eduardo Milléo. Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Limitada no Processo do Trabalho: Interpretação à Luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana in SANTOS, José Aparecido dos (org.). Execução Trabalhista : homenagem aos 30 anos da AMATRA IX. São Paulo: LTr, 2008. p. 331. 295 DELGADO, 2004, p. 206. 296 DELGADO, loc. cit. 297 DELGADO, loc. cit.
88
E continua: “...o trabalho é importante meio de realização e afirmação do ser
humano, sendo o salário a contrapartida econômica dessa afirmação e
realização”298.
Assim, protegendo o salário, tem-se como via direta a tutela da dignidade da
pessoa do trabalhador.299
O princípio da proteção ao salário está consagrado constitucionalmente no
artigo 7º., VI da CRFB e no artigo 462 da CLT.
De acordo com tal princípio, protege-se o salário contra reduções, descontos
indevidos não previstos em lei e ainda, de acordo com a intangibilidade salarial, a
proteção do salário do trabalhador contra seus credores.300
A Lei 10.820 de 17 de dezembro de 2.003 também estabelece uma forma de
proteção ao salário ao prever uma limitação de 30% nos descontos efetuados em
folha de pagamento decorrentes de empréstimos, financiamentos e operações de
arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de
arrendamento mercantil, quando previsto nos respectivos contratos.
O texto constitucional (art. 7º., IV) ao prever que salário mínimo deverá ser
capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com 298 DELGADO, 2004, p. 207. 299 Nesse sentido: ADICIONAIS SALARIAIS. REDUÇÃO. NORMA COLETIVA. INVALIDADE. É contrário aos próprios fins constitucionais, de assegurar direitos mínimos para preservar a condição social do trabalhador, que a redução salarial possa ser imprimida em instrumento coletivo, por representante de determinada coletividade de trabalhadores, sem que haja uma justificativa extremamente importante e real, como por exemplo, a possibilidade de que não reste outra saída, a não ser a redução, para evitar prejuízos maiores, como a própria perda do emprego. Permitir redução salarial ou de parcelas salariais sem outra compensação significaria desprestigiar relevantes princípios fundamentais de índole constitucional, como a dignidade humana e o valor social do trabalho. Não demonstrada justificativa relevante para supressão ou redução dos adicionais em alguns meses, conclui-se que a hipótese é de alteração prejudicial ao empregado, vedada pelo Direito do Trabalho, além de afrontar a garantia constitucional de irredutibilidade do salário. Recurso a que se nega provimento, no particular, para manter a decisão que deferiu diferenças dos adicionais de produtividade e de assiduidade. (PARANÁ (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (9ª Região). TRT-PR-01798-2007-411-09-00-9-ACO-32589-2008. Adicionais Salariais. Redução. Norma Coletiva. Invalidade 2. Turma. Relator: Marlene T. Fuverki Suguimatsu. Lex: Jurisprudência TRT/PR. Curitiba. Publicado no DJPR em 09 set. 2008. Disponível em <www.trt9.jus.br>. Acesso em: 9 set. 2009.) 300 Existem exceções previstas em lei tais como pagamento de pensão alimentícia, dedução de imposto de renda, contribuição previdenciária, contribuição sindical, empréstimos bancários, utilidades e outros. Sobre isso decide-se: “MANDADO DE SEGURANÇA-IMPENHORABILIDADE DOS SALÁRIOS - Refluindo do posicionamento anterior, esta d. Seção Especializada entende atualmente pela absoluta impenhorabilidade do salário, na forma prevista pelo artigo 649, IV, do Digesto Processual Civil, sem que se viabilize qualquer Juízo de ponderação acerca de eventual proporcionalidade no apresamento do salário, cuja natureza alimentar, por excelência, exterioriza-se em valor fundamental preponderante, como corolário do princípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CF). (PARANÁ (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (9ª Região). TRT-PR-00198-2006-909-09-00-7-ACO-02223-2007. Mandado De Segurança-Impenhorabilidade dos Salários. Seção Especializada. Relator: Rosemarie Diedrichs Pimpão. Lex : Jurisprudência TRT/PR. Curitiba. Publicado no DJPR em 30 jan. 2007. Disponível em <www.trt9.jus.br>. Acesso em: 9 set 2008.)
89
moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e
previdência social, pode ser interpretado como condição para a efetivação do
princípio do artigo 1º. do mesmo texto legal pois enumera condições para uma vida
digna.
Esta proteção ao salário do trabalhador, baseado nesta lógica humanista,
solidarista, dá-se não só de forma direta, mas também na interpretação de outros
institutos, inclusive da técnica processual, como por exemplo o da desconsideração
da personalidade jurídica que ao ser aplicado no Direito do Trabalho, deve levar em
consideração sempre a interpretação à luz do conceito constitucional do princípio da
proteção à dignidade humana.
Para Sarlet, com base nas lições de Günter Dürig, uma das dimensões da
dignidade humana é vedar que o ser humano seja tratado como um objeto. Continua
o raciocínio da seguinte maneira:
[...] o desempenho de funções sociais em geral encontra-se vinculado a uma recíproca sujeição, de tal sorte que a dignidade da pessoa humana, compreendida como vedação da instrumentalização humana, um princípio proíbe a completa e egoísta disponibilização do outro, no sentido de que se está a utilizar outra pessoa apenas como meio para alcançar determinada finalidade [...].301
Assim identifica Sarlet como critério decisivo para identificação de uma
violação da dignidade (pelo menos em muitas situações, convém acrescer) o do
objetivo da conduta, isto é, a intenção de instrumentalizar (coisificar) o outro”.302
Baseado em tal interpretação de Sarlet, Baracat conclui pela aplicação ampla
do instituto da desconsideração atestando que “inviabilizar o recebimento do salário
pelo trabalhador que contribui com o seu trabalho para a atividade egoísta do
empresário – protegendo o patrimônio – é “coisificar” o trabalhador, tratando-o como
objeto, similar a qualquer outro meio de produção (capital ou matéria-prima), já que
não se permite a retribuição do trabalho prestado.”303
Além da própria proteção ao salário, o princípio da dignidade da pessoa
humana, manifesta-se também com grande força na proteção à saúde do
301 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: MEURER Beatrice..et al. SARLET, Ingo Wolfgang. (org.). Dimensões da dignidade. Ensaios de filosofia do dir eito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 36. 302 SARLET, loc. cit. 303 BARACAT, 2008, p. 330.
90
trabalhador. Sendo o princípio insculpido no artigo 1º. da Constituição Federal elo de
concretude e efetivação dos direitos fundamentais, não se pode olvidar sua íntima
ligação com o direito fundamental à saúde.
A Constituição Federal estabelece o direito o direito à saúde no artigo 6º., no
Capítulo dos direitos sociais.
Já o artigo 225 assegura uma vida com qualidade e, conforme defende Simão
de Melo, para que o trabalhador tenha vida com qualidade, é necessário que se
assegurem os seus pilares básicos: trabalho decente e em condições seguras e
salubres.304
O artigo 170 da Lei Maior dispõe que a ordem econômica deve fundar-se na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e tem por fim assegurar a todos
uma vida digna observada a defesa do meio ambiente, podendo se extrair daí a
defesa ao meio ambiente do trabalho.
Já o artigo 7º. Da Constituição Federal, no qual constam os direitos dos
trabalhadores, prevê no seu inciso XXII expressamente o direito à redução dos
riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança,
deixando claro a insuficiência do pagamento de adicionais de insalubridade e
periculosidade, também direitos previstos constitucionalmente no inciso XXIII do
mesmo artigo, ressaltando a valorização da dignidade humana e a não
“monetarização” da saúde e da vida.
O artigo 200 ao fixar a competência do SUS305, fixou relação entre saúde
pública e meio ambiente do trabalho. No seu inciso VIII, relacionou entre as suas
atribuições o dever de “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido
o do trabalho”.
Também importante inovação trazida pela Constituição Federal de 1.988 que
ao manter o seguro de acidentes de trabalho a cargo do Estado, passou a prever
também cumulativo a este a responsabilidade do empregador “quando incorrer em
dolo e culpa” (artigo. 7º., XXVIII).
304 SIMÃO DE MELO, 2008, p. 31. 305 Sistema Único de Saúde
91
Assim, destaca Machado306 “não basta ao empregador contribuir para o
seguro obrigatório, mas cabe-lhe a responsabilidade civil pelos danos à integridade
física ou à saúde do trabalhador em caso de acidente.”
Além da norma constitucional, a própria CLT307 e inúmeros normativos infra-
constitucionais308 cuidaram da proteção à saúde do trabalhador.
Em âmbito internacional existem várias Convenções da Organização
Internacional do Trabalho – OIT, ratificadas pelo Brasil sobre proteção à saúde do
trabalhador.309
Também, quando se trata da efetivação do princípio da dignidade humana
através da proteção à saúde do trabalhador, fundamental enfatizar a proteção à sua
saúde mental.
A Jurisprudência e em especial a doutrina têm se debruçando sobre o tema,
que ganhou força nos últimos anos em razão da globalização e do neo-liberalismo
desenfreado.
Empresas à procura de lucro a todo custo diante da necessidade de
sobrevivência em um mercado perverso dominado por grandes corporações,
passam a exigir de seus empregados imensa sobrecarga de serviços, atingimento
de metas impossíveis.
306 MACHADO, Sidnei. O direito à proteção ao meio ambiente de trabalho n o Brasil . São Paulo: LTr, 2001. p. 91. 307 Artigo 156, art. 157, art. 158, art. 160, art. 161, art. 184, art. 200, art. 201. 308 Exemplos podem ser encontrados na Lei 6.938/81 que define a Política Nacional de Meio Ambiente, a Portaria 3.214/77 do Ministério do Trabalho e Emprego que por meio de várias Normas Regulamentadoras (NRs) regulamenta o meio ambiente laboral no que dz respeito à segurança, higiene e medicina do trabalho, 309 Convenções 12, 16, 19, 42,45, 81, 113, 115, 136, 139, 148, 152, 155, 159,161, 162, 164, 167,170 e 176.
92
Com isso multiplicam-se os casos de perseguição, humilhação, vigilância
excessiva, rebaixamento funcional. Todos estes fatos causam imensa violação
psíquica ao empregado, caracterizando o assédio moral por parte do empregador.310
Além da proteção ao salário e à saúde do trabalhador, o princípio da proteção
à dignidade humana ainda se manifesta como subsídio para a proteção contra a
discriminação no trabalho. O princípio da não-discriminação é desdobramento do
princípio da igualdade (artigo 5º., caput da CF), intimamente ligado ao princípio da
dignidade humana.
Neste sentido, Moraes311 destaca que o fundamento jurídico da dignidade
humana manifesta-se em primeiro lugar, no princípio da igualdade, isto é, no direito
de não receber qualquer tratamento discriminatório, no direito de ter direitos iguais
aos de todos os demais.
Segundo Bester, ainda, “em face da inelutável necessidade de tratar
diferentemente os seres humanos para igualá-los, tendo em vista suas diferenças
culturais e econômicas, a impossibilidade de discriminar somou-se à igualdade de
oportunidades, ficando assim por completo o princípio da igualdade.”312
310 Sobre este tema, o acórdão da lavra de Alice Monteiro de Barros é verdadeira lição: “ASSÉDIO MORAL. CARACTERIZAÇÃO. O termo "assédio moral" foi utilizado pela primeira vez pelos psicólogos e não faz muito tempo que entrou para o mundo jurídico. O que se denomina assédio moral, também conhecido como mobbing (Itália, Alemanha e Escandinávia), harcèlement moral (França), acoso moral (Espanha), terror psicológico ou assédio moral entre nós, além de outras denominações, são, a rigor, atentados contra a dignidade humana. De início, os doutrinadores o definiam como "a situação em que uma pessoa ou um grupo de pessoas exercem uma violência psicológica extrema, de forma sistemática e freqüente (em média uma vez por semana) e durante um tempo prolongado (em torno de uns 6 meses) sobre outra pessoa, a respeito da qual mantém uma relação assimétrica de poder no local de trabalho, com o objetivo de destruir as redes de comunicação da vítima, destruir sua reputação, perturbar o exercício de seus trabalhos e conseguir, finalmente, que essa pessoa acabe deixando o emprego" (cf. Heinz Leymann, médico alemão e pesquisador na área de psicologia do trabalho, na Suécia, falecido em 1999, mas cujos textos foram compilados na obra de Noa Davenport e outras, intitulada Mobbing: Emotional "Abuse in The American Work Place"). O conceito é criticado por ser muito rigoroso. Esse comportamento ocorre não só entre chefes e subordinados, mas também na via contrária, e entre colegas de trabalho com vários objetivos, entre eles o de forçar a demissão da vítima, o seu pedido de aposentadoria precoce, uma licença para tratamento de saúde, uma remoção ou transferência. Não se confunde com outros conflitos que são esporádicos ou mesmo com más condições de trabalho, pois o assédio moral pressupõe o comportamento (ação ou omissão) por um período prolongado, premeditado, que desestabiliza psicologicamente a vítima. Se a hipótese dos autos revela violência psicológica intensa sobre o empregado, prolongada no tempo, que acabou por ocasionar, intencionalmente, dano psíquico (depressão e síndrome do pânico), marginalizando-o no ambiente de trabalho, procede a indenização por dano moral advindo do assédio em questão” (GOIÁS (Estado). Tribunal Regional do Trabalho de Goiás (18º Região). TRT-RO-01292-2003-057-03-00-3. 2. Turma. Assédio Moral. Caracterização. Relatora Juíza Alice Monteiro de Barros. Lex: Jurisprudência TRT/GO. Goiânia. Publicado no DJ em 11 ago. 2004.) 311 MORAES MCB, 2006, p. 125. 312 BESTER, 2007, p. 115.
93
Bester313 explica que a ligação entre a não-discriminação e igualdade se
estabelece na procura e definição dos fatores externos mediante os quais se pode
ter uma ‘moeda’ política que permita igualar homens essencialmente diferentes.
Assim a discriminação é a utilização de ‘moeda falsa’ para esse intercâmbio
jurídico político, que está vetado pelo princípio da não discriminação”314
Na mesma linha Brito Filho315 leciona que discriminar é “atentar contra o
princípio da igualdade muito embora não só contra ele, como também contra o
princípio da dignidade do ser humana [...]”
Já, no ambiente de trabalho, discriminar “é negar ao trabalhado a igualdade
necessária que ele deve ter em matéria de aquisição e manutenção do emprego,
pela criação de desigualdades entre as pessoas”.316
O legislador preocupou-se em vedar a discriminação no trabalho
constitucionalmente e também ordinariamente.
O artigo 7º, inciso XXX da Constituição Federal proíbe a diferença de salários,
de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou
estado civil.
A CLT em seus artigos 5º e 461 trouxe a proibição da discriminação por
motivo de sexo, nacionalidade e idade. O artigo 7º, inciso III da Constituição Federal
determina que a discriminação pelo estado civil é violação ao preceito constitucional,
sendo a mulher uma das maiores vítimas desse preconceito, uma vez que ela,
quando casada, tem maiores possibilidades para a maternidade.
O artigo 7º, inciso XXXI da Constituição Federal trouxe a proibição de
qualquer ato discriminatório no tocante a salário e critérios de admissão do
trabalhador portador de deficiência.
313 PASSOS, 2001 apud BESTER, 2007, p. 115. 314 PASSOS, 2001 apud BESTER, loc. cit. 315 BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Discriminação do trabalho . São Paulo: LTr, 2002, p.42. 316 Ibid., p.43.
94
Sobre o tema, ainda, de grande importância as Convenções 111 e 159 da
OIT. Recentes julgados têm utilizado como subsídio estas convenções para reverter
dispensas discriminatórias de portadores de HIV.317
Recente fenômeno de discriminação no acesso ao emprego, dá-se através da
inclusão de trabalhadores nas chamadas “listas negras”.
Assim as empresas distribuem entre elas, listas nas quais constam nomes de
trabalhadores ditos “conflituosos”.
Estes, lá incluídos, ficam impedidos de conseguir emprego, pois são
discriminados na hora da contratação por possuírem ações trabalhistas.318
Os dois últimos casos analisados (HIV e listas negras) revelam grave
problema, qual seja a invasão pelo empregador da esfera privada do trabalhador,
esfera esta representada pelo direito fundamental à intimidade e da vida privada
(artigo 5º., X da CF) e se dão tanto na fase contratual quanto na fase pré-contratual
do contrato de trabalho.
Nesta última, lembra a portuguesa Teresa Alexandra Coelho Moreira, é que
se produzem as violações mais flagrantes da lei e dos direitos fundamentais dos
trabalhadores uma vez que se encontra fragilizada devido a sua inferioridade 317 REINTEGRAÇÃO. PORTADOR DO VÍRUS HIV. DISCRIMINAÇÃO PRESUMIDA. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. CONVENÇÕES 111 E 159 DA OIT. É discriminatória a dispensa de empregado portador do vírus HIV por empregador que tem ciência dessa circunstância quando comunicado da rescisão. Não se exige prova de qualquer outra atitude discriminatória, pois a possibilidade de rever a intenção da dispensa cria a presunção de que houve discriminação no ato da dispensa. A reintegração no emprego é medida que se impõe como forma de assegurar o respeito à dignidade humana e ao valor social do trabalho, fundamentos do Estado Democrático de Direito e princípios constitucionais de observância obrigatória. Da mesma forma, atende-se à Convenção 111 da OIT, ratificada pelo Brasil, que contém o compromisso de abolir qualquer prática tendente a destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou tratamento em matéria de emprego ou profissão. O empregado portador do vírus HIV enquadra-se, ainda, na definição de pessoa deficiente, para efeito de aplicação da Convenção 159 da OIT, também direcionada à eliminação de desigualdades, no que se refere a emprego. Recurso provido para determinar a reintegração do autor no emprego, com pagamento de salários e vantagens do período de afastamento. (PARANÁ (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (9ª Região).TRT-PR-00188-2006-025-09-00-7-ACO-11621-2008. Reintegração. Portador do Vírus HIV. Discriminação Presumida. Princípios Constitucionais. Convenções 111 e 159 da OIT 2. Turma. Relatora Marlene T. Fuverki Suguimatsu. Lex : Jurisprudência TRT/PR. Curitiba. Publicado no DJPR em 15 abr. 2008. Disponível em: <www.trt9.jus.br>. Acesso: 9 set. 2008) 318 TRT-PR-19-10-2007 DANO MORAL - LISTAS DISCRIMINATÓRIAS - Comete ato ilícito a empresa que elabora lista discriminatória ou fornece dados para alimentá-la, com objetivo de barrar a contratação de trabalhadores que ingressaram com ação trabalhista ou serviram de testemunhas na Justiça do Trabalho, ficando obrigada a reparar o dano, nos termos dos arts. 186 e 927 do Código Civil vigente, e art. 5º, inciso V, da Constituição Federal. A inclusão de nomes de trabalhadores nessas listas atenta contra a dignidade humana, princípio fundamental, inscrito no inciso III do art. 1º da Constituição da República e fere o livre exercício do direito de ação. (PARANÁ (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (9ª Região). TRT-PR-00129-2007-091-09-00-5-ACO-30320-2007. 3. Turma. Dano Moral - Listas Discriminatórias. Relator: Cássio Colombo Filho. Lex : Jurisprudência TRT/PR. Curitiba Publicado no DJPR em 19 out. 2007. Disponível em: <www.trt9.jus.br>. acesso em: 9 set. 2008.)
95
derivada da sua “singular debilidade econômica e da escassa expectativa de
emprego, o que o induz a abdicar parcialmente de sua personalidade [...] em
garantia de adesão.”319
Infelizmente, hoje é comum que empresas exijam dos candidatos à vaga
informações sobre antecedentes criminais, estado civil, gravidez320, conduta e
orientação sexual, ações trabalhistas, doenças e informações genéticas e outras que
em nada influem para a boa condução das atividades laborais, que são utilizados de
modo meramente discriminatório para a escolha do empregado.321
O ilegal desrespeito e a invasão à esfera íntima e privada do trabalhador são
lesões a direito fundamental do trabalhador e conseqüentemente à sua dignidade.
Assim, também, é absolutamente vedada a verificação pelo empregador de
aspectos da vida privada do trabalhador visando discriminações injustas.
Verificação de estado civil, ambiente familiar do empregado, da conduta
sexual, do estado de saúde do mesmo, de crimes cometidos fora do trabalho,
investigação sobre consumos e situação financeira, convicções religiosa, políticas,
ideológicas, sindicais, são, via de regra e com poucas exceções, absolutamente
proibidas.
Também atinge a dignidade do trabalhador a verificação pelo empregador de
correspondência eletrônica pessoal do trabalhador e a vigilância eletrônica
indiscriminada e desproposital.
319 MOREIRA, Teresa Alexandra Coelho. Da esfera privada do trabalhador e o controle do empregador . Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 148. 320 Prática definida como crime pela lei 9029/95. 321 Existem situações que se admite a tomada de informações por parte do empregador. No caso de trabalho com raio X, por exemplo, em razão de possíveis danos à saúde da gestante, admite-se que se pergunte sobre o seu estado. No caso da atividade de educador infantil, parece-nos seja compreensível a verificação de antecedentes sobre pedofilia. Nestes dois casos existe um bem maior a ser protegido que é a segurança da gestante e das crianças. Não se trata, portanto, de discriminação, mas sim de proteção à própria pessoa do empregado.
96
Revistas pessoais nos empregados (com exceções admitidas apenas em
casos de conflitos valorativos de direitos como o da prevalência à segurança
pública), por exemplo, também são vedadas por ofenderem a dignidade dos
mesmos.322
Sobre o tema, na palavra de Dallegrave Neto “em tempos de pós-
modernidade, jamais se viu tanta interferência patronal na vida íntima e privada do
empregado, o qual já nos seu exame admissional, submete-se a exames de
caligrafia e de DNA.” Assim, defende que diante deste quadro de invasão de
privacidade, “o operador jurídico precisa estar atento não só à lesão aos direitos
322 Tem se admito a revista pessoal no caso de agentes penitenciários, por exemplo, por se tratar de tutela ao bem maior, no caso, a segurança de toda a sociedade. No caso aonde a revista pessoal visa proteger somente o patrimônio do empregador, o direito a intimidade deve prevalecer sob pena de abuso do direito fiscalizatório. Sobre isso: REVISTA PESSOAL. ABUSO DO PODER FISCALIZATÓRIO. LESÃO AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE. Quando presentes abusos e excessos, a revista pessoal dirigida contra os pertences (extensão da intimidade da pessoa humana) do empregado causa gravame à sua integridade moral, configurando lesão aos direitos da personalidade. Em face da colisão entre os princípios constitucionais da intimidade do empregado e da tutela patrimonial do empregador, verifica-se que, no presente caso, ocorreu abuso do poder fiscalizatório do Reclamado. Tem-se, assim, que a revista se fundamenta no poder de direção patronal (direito de propriedade), mas não pode afrontar outros direitos constitucionalmente assegurados, tais como o princípio da presunção de inocência (art. 5°, LVII, da Constituição Federal - aos acusados são assegurados o contraditório e a ampla defesa, não havendo como excluir os suspeitos) e da igualdade (art. 5°, "caput", da Car ta Magna - o empregador resta privilegiado com a revista, em defesa de seu patrimônio, enquanto o empregado prejudica-se, pois se encontra em relação de subordinação). Recurso do Reclamado a que se nega provimento, neste ponto. (PARANÁ (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (9ª Região).TRT-PR-10264-2005-006-09-00-3-ACO-21665-2007. 1. Turma. Revista Pessoal. Abuso do Poder Fiscalizatório. Lesão aos Direitos da Personalidade Relator: Ubirajara Carlos Mendes. Lex: Jurisprudência TRT/PR. Curitiba. Publicado no DJPR em 14 ago. 2007. Disponível em: <www.trt9.jus.br> . Acesso em: 9 out. 2008.) Sobre revistas em ambiente prisional: TRT-PR-06-07-2007 REVISTA PESSOAL. RAZÕES DE SEGURANÇA PÚBLICA. INOCORRÊNCIA DE DANO MORAL. O procedimento de revista pessoal encontra vedação no ordenamento jurídico, pelo art. 373-A, da CLT que, por isonomia, estende-se ao trabalhador do sexo masculino. A vedação decorre, também e especialmente, do art. 5º, X da Constituição Federal, que assegura serem invioláveis a intimidade e a vida privada dos cidadãos. Mesmo quando feitas a pretexto de resguardar o patrimônio do empregador, as revistas devem respeitar a dignidade e a intimidade do empregado, sob pena de configurar-se o abalo moral. No ambiente de trabalho, onde prepondera o poder do empregador, o trabalhador não dispõe de meios de recusa, o que torna a submissão ainda mais afrontosa à honra. Situação diversa é a da revista feita em empregado de estabelecimento prisional, em virtude da suspeita de que portasse correspondência entregue por um detento. Trata-se de preocupação com a segurança pública, em nada comparável à do empregador com seu patrimônio. A particularidade da situação permite que se afastem os parâmetros comumente utilizados na análise de revistas rotineiras e que se abrandem os critérios para análise da ocorrência de dano moral, que deverão considerar a natureza da atividade, o local de trabalho, a função desempenhada e principalmente a necessidade de resguardo da tranqüilidade dos cidadãos. Constatada a necessidade da revista e o respeito à dignidade do empregado, é indiferente que as suspeitas não se tenham confirmado. Recurso a que se nega provimento para manter a rejeição ao pedido de indenização por danos morais. (PARANÁ (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (9ª Região). TRT-PR-09585-2005-013-09-00-3-ACO-17802-2007.2. Turma. Revista Pessoal. Razões de Segurança Pública. Inocorrência de Dano Moral. Relator: Marlene T. Fuverki Suguimatsu. Lex : Jurisprudência TRT/PR. Curitiba. Publicado no DJPR em 06 jul. 2007. Disponível em: <www.trt9.jus.br> . Acesso em: 9 out 2008.)
97
trabalhistas, mas também aos direitos de personalidade e todos aqueles atinentes à
dignidade do trabalhador”, pugnando por uma repersonalização do sujeito de direito,
baseado na ordem constitucional que lhe assegura a dignidade, bem estar e justiça
social.323
Os limites impostos pela defesa da dignidade da pessoa do trabalhador
também importam na redução em razão do próprio jus variandi324 do empregador.325
Todos estes aspectos demonstram, portanto, a importância da valorização do
referido princípio para proteção da pessoa do trabalhador.
Por todo o exposto, diante de sua importância, e até mesmo pela sua
configuração de mega-princípio constitucional, deve o intérprete da lei tê-lo como
norte unificador do ordenamento jurídico, observando a melhor interpretação legal
para concreção do seu conteúdo quando se deparar com situações concretas que
coloquem em risco a dignidade do trabalhador.
3.2 O DIREITO FUNDAMENTAL À DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO DO
TRABALHO
3.2.1 O processo e seus objetivos
As condições de trabalho sofreram modificações ao longo dos anos. De um
início aonde o trabalho era visto como atribuições de escravos e servos, sendo
abominável a nobres dedicar-se ao mesmo, a um período atual aonde é visto como
forma de dignificação do ser humano.
323 DALLEGRAVE NETO, 2007, p. 335. 324 Jus Variandi é o “poder discricionário do empregador, fundado no seu poder diretivo, de introduzir unilateralmente e continuamente, modificações circunstanciais ou rotineiras referentes à execução da atividade laboral e à organização empresarial e necessárias ao desenvolvimento regular dos trabalhos na empresa, observados certos limites.” (ENGEL, 2003, p. 144) 325 Ressalta o autor que “esse limite implica em toda modificação que se introduza unilateralmente no trabalho, sobretudo envolvendo fatores de conteúdo, modo e lugar de prestação laboral, por qualquer razão que seja, e notadamente se favorável à entidade patronal deve, antes de tudo, tomar em consideração o trabalhador em sua dignidade e subsistência”. (ENGEL, 2003, p. 121)
98
Com a revolução industrial começaram a surgir novas condições de trabalho.
A utilização do tear causou desemprego à época e conseqüente aumento da mão-
de-obra disponível e a diminuição dos salários pagos aos trabalhadores.
Com este cenário os operários passaram a se reunir para reivindicar boas
condições de trabalho, salários justos, surgindo assim conflitos, normalmente
resolvidos com mecanismos de auto-defesa visto que inexistiam normas para
resolução destes conflitos.326
Mais tarde o Estado passou a intervir para solucionar estes conflitos, pois tais
controvérsias trabalhistas geravam conturbações sociais, prejudicando a ordem
interna.
Tal intervenção iniciou-se por uma conciliação obrigatória nascendo a
necessidade de um processo do trabalho e do próprio Direito Processual do
Trabalho, este considerado como “conjunto de regras e princípios, regras e
instituições destinado a regular a atividade dos órgãos jurisdicionais na solução dos
dissídios, individuais ou coletivos, entre trabalhadores e empregados.”327
Já o processo em si, como “exercício através da qual a jurisdição se opera”,
“cuja finalidade é a atuação da lei, mediante a solução de litígios, e que tem no
procedimento o seu caminho, é o meio abstrato pelo qual se viabiliza o direito
público subjetivo de ação.”328
A principal função do processo, desde seu início, portanto, sempre foi a
pacificação, conforme bem destaca Cândido Rangel Dinamarco, Ada Grinover e
Antônio Cintra uma vez que todo ele pode ser definido como disciplina jurídica de
jurisdição e seu exercício.329
É para a consecução dos objetivos da jurisdição, portanto, e particularmente
daquele relacionado com a pacificação com justiça, que o Estado institui o sistema
processual, ditando normas e a respeito (direito processual) criando órgãos
jurisdicionais, fazendo despesas com isso e exercendo através deles o poder.330
326 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito processual do trabalho : doutrina e prática forense de petições, recursos, sentenças e outros. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p.31. 327 MARTINS, 2001, p.45. 328 POPP, Carlyle. A efetividade da tutela jurisdicional, a dignidade humana e a independência do juiz. in: GUNTHER, Luiz Eduardo (coord.). Jurisdição : Crise, efetividade e Plenitude Jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2008. p. 100. 329 GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 24. 330 GRINOVER, loc. cit..
99
Os mesmos autores, destacam que, prevalecendo as idéias de Estado social,
em que ao Estado se reconhece a função fundamental de promover a realização de
valores humanos, deve ser para destacar a função jurisdicional pacificadora dos
conflitos que afligem pessoas e trazem angústias sempre visando a realização da
justiça. O Estado deve ter sempre como objetivo-síntese o bem comum. Assim
podemos falar de pacificação com justiça.331
Para se atingir essa pacificação é necessário que se atinja os fins colimados
no processo e se dê efetividade à tutela jurisdicional.
Para Moreira332 a efetividade do processo é representada pelos seguintes
pontos:
a) o processo deve dispor de instrumentos de tutela adequados, na medida do possível, a todos os direitos (e outras posições jurídicas de vantagem) contemplados no ordenamento, quer resultem de expressa previsão normativa, quer se possam inferir do sistema; b) esses instrumentos devem ser praticamente utilizáveis, ao menos em princípio, sejam quais os supostos titulares dos direitos (e das outras posições jurídicas de vantagem) de cuja preservação ou reintegração se cogita, inclusive quando indeterminado ou indeterminável o círculo dos eventuais sujeitos; c) impende assegurar condições propícias à exata e completa reconstituição dos fatos relevantes, a fim de que o convencimento do julgador corresponda, tanto quanto puder, à realidade; d) em toda a extensão da possibilidade prática, o resultado do processo há de ser tal que assegure à parte vitoriosa o gozo pleno da específica utilização a que faz jus segundo o ordenamento; e) cumpre que se possa atingir semelhante resultado com o mínimo dispêndio de tempo e energia.
Como bem destaca o processualista, o resultado deve ser atingido com o
mínimo de dispêndio de tempo e energia para se evitar as nefastas conseqüências
da morosidade processual.
3.2.1.1 A morosidade processual e suas conseqüências
A morosidade processual não é só um problema das partes envolvidas que
podem inclusive verem-se obstadas do acesso à justiça, mas é um fator que pode,
inclusive, frear o crescimento do país, ao desestimular investimentos pela falta de
331 GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 2003, p. 25. 332 MOREIRA, 1997 apud POPP, 2008, p. 101.
100
eficiência e segurança jurídica, extrapolando os limites do jurídico, atingindo toda a
sociedade com importantes repercussões.333
Adverte Ramos334 que “O tempo pode causar o perecimento das pretensões,
ocasionar danos econômicos e psicológicos às partes e profissionais, aos
operadores do direito, estimular composições desvantajosas e conseqüentemente
gerar descrédito ao Poder Judiciário e ao Estado como um todo.”
Tal problemática é mais crítica ainda quando se trata de processos
trabalhistas, envolvendo uma parte mais fraca, hipossuficiente. Observam
Cappelletti e Garth apud Righi335 que em os efeitos dessa delonga, especialmente
se considerados os índices de inflação, podem ser devastadores. “Ela aumenta os
custos para as partes e pressiona os economicamente mais fracos a abandonar
suas causas, ou aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles a que teriam
direito.”
De se notar que os autores, ao fazerem esta constatação, espantam-se com
demoras de dois ou três anos. Sua lição ganha mais relevo num país aonde um
único recurso junto ao Tribunal Superior do Trabalho leva de quatro a seis anos para
ser julgado.
Os critérios de justiça estão cada vez mais se aproximando dos conceitos de
efetividade dos processos.
333 RAMOS, Carlos Henrique. Processo Civil e o princípio da duração razoável do processo . Curitiba: Juruá, 2008. p. 49. 334 Ibid, p. 50. 335 CAPPELLETTI; GARTH, 1998 apud RIGHI, Eduardo. Direito fundamental ao justo processo nas tutelas de urgência . Curitiba: Juruá, 2007. p. 97.
101
Exemplo disso é o artigo 111 da Constituição italiana, reformado para
substituir a clássica expressão de “devido processo legal” para “processo justo”,
fazendo referência à necessidade de adequação da tutela jurisdicional ao princípio
da economia processual em sintonia com os mecanismos de aceleração do
processo.336
Marinoni337 destaca:
Si el proceso civil es un instrumento para la adecuada tutela de los derechos y si, en esta línea, el procedimiento constituye apenas una técnica para la buena y correcta prestación del servicio jurisdiccional, es lógico que el procedimiento no pueda distanciarse de los derechos a los que debe proteger y, mucho menos, de las necesidades de la sociedad contemporánea, bajo pena de no poder atender los derechos y así transformarse en una especie de técnica inútil para realizar las finalidades que el Estado tiene la misión de cumplir.
336 Nesta mesma seara defendem Marinoni e Arenarti (2004): “Em outras palavras, se o particular foi proibido de exercer a ação privada, o Estado, ao assumir a função de resolver os conflitos, teria que propiciar ao cidadão uma tutela que correspondesse à realização da ação privada que foi proibida. O direito de acesso à justiça, atualmente, é reconhecido como aquele que deve garantir a tutela efetiva de todos os demais direitos. A importância que se dá ao direito de acesso à justiça decorre do fato de que a ausência de tutela jurisdicional efetiva implica a transformação dos direitos garantidos constitucionalmente em meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores. Por essas razões, a doutrina moderna abandonou a idéia de que o direito de acesso à justiça, ou o direito de ação, significa apenas direito à sentença de mérito. Esse modo de ver o processo, se um dia foi importante para a concepção de um direito de ação independente do direito material, não se coaduna com as novas preocupações que estão nos estudos dos processualistas ligados ao tema da "efetividade do processo", que traz em si a superação da ilusão de que este poderia ser estudado de maneira neutra e distante da realidade social e do direito material. Quando se pensa em tutela jurisdicional efetiva, descobre-se, quase por necessidade, a importância da relativização do binômio direito-processo. O processo deve estar atento ao plano do direito material, se deseja realmente fornecer tutela adequada às diversas situações concretas. O direito à preordenação de procedimentos adequados à tutela dos direitos passa a ser visto como algo absolutamente correlato ao direito de acesso à justiça. Sem a predisposição de instrumentos de tutela adequados à efetiva garantia das diversas situações de direito substancial não se pode conceber um processo efetivo.O direito de acesso à justiça, portanto, garante a tutela jurisdicional capaz de fazer valer de modo integral o direito material. Lembre-se, aliás, que a Corte Constitucional italiana já afirmou que "o direito à tutela jurisdicional está entre os princípios supremos do ordenamento constitucional, no qual é intimamente conexo com o próprio princípio democrático assegurar a todos e sempre, para qualquer controvérsia, um juiz e um juízo em sentido verdadeiro". A doutrina processual civil e os operadores do direito estão obrigados a ler as normas infraconstitucionais à luz das garantias de justiça contidas na Constituição Federal, procurando extrair das normas processuais um resultado que confira ao processo o máximo de efetividade, desde, é claro, que não seja pago o preço do direito de defesa. É com esse espírito que o doutrinador deve demonstrar quais são as tutelas que devem ser efetivadas para que os direitos sejam realizados, e que a estrutura técnica do processo está em condições de prestá-las. (MARINONI, Luiz Guilherme, ARENART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento : a tutela jurisdicional através do processo de conhecimento. 2. ed. Rev. Atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 30) 337 MARINONI, Luiz Guilherme. La efectividad de los derechos y la necesidad de un nuevo proceso civil. Jus Navigandi: Teresina, ano 9, n. 646, 15 abr. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6516>. Acesso em: 03 mar. 2009.
102
O tempo processual, portanto, deve ser reduzido para que este não corra o
risco de se transformar numa peça inútil não cumprindo com a sua missão de
constituir instrumento positivo de realização de direito, por meio de sua dialética e
mediante a superação do problema da justiça e da utilidade de suas decisões.338
O quadro é preocupante, pois a demora exagerada dos processos exige a
utilização de medidas urgentes que por sua vez geram efeitos provisórios, o que
também não contribui para a segurança jurídica.
Soluções como a sumularização geram outros riscos, podendo comprometer
o contraditório e a segurança do processo. Assim faz-se necessário procurar meios
de se evitar a morosidade processual sem comprometer a segurança jurídica.339
Necessário se faz, portanto encontrar um meio termo.
3.2.1.2 Causas da morosidade
Cruz e Tucci apud Ramos340, num exercício de apertada síntese procura
alinhavar aqueles que seria causadores da morosidade na justiça os quais seriam a)
institucionais, b) de ordem processual e subjetiva e c) derivados da insuficiência
material.
Os fatores institucionais são associados à falta de criação de políticas
públicas.
Os fatores de ordem técnica são sempre debatidas (reforma do processo de
execução, redução do número de recursos etc.). As reformas quase sempre nunca
se mostram suficientes para oferecer uma melhoria na morosidade processual.
Já os fatores de ordem subjetivas dizem respeito ao material humano que
opera a máquina judiciária (juízes, serventuários da justiça e advogados), o que
torna necessária, portanto, a formação de profissionais críticos, preparados e de
boa-fé.341
338 POPP, 2008. p. 101. 339 RIGHI, 2007, p. 85-86. 340 CRUZ; TUCCI, 1997 apud RAMOS, 2008, p. 51-54. 341 RAMOS, 2008, p. 53
103
Fatores de insuficiência material ocupam lugar de destaque no que se refere
à configuração da excessiva demora dos processos, e se referem, basicamente às
condições de trabalho e à relação entre o volume de trabalho e o quadro de
funcionários (serventuários, juízes) disponível.342
José Carlos Barbosa Moreira também procura sistematizar o que seriam as
causas da excessiva demora dos processos: falhas da organização judiciária,
deficiências na formação profissional de juízes e advogados, precariedade nas
condições sob as quais se realiza a atividade judicial no país, uso arraigado de
métodos de trabalho obsoletos e irracionais, escasso aproveitamento de recursos
tecnológicos.343
Já Boaventura Souza Santos344, em estudo sobre a morosidade do processo
em conjunto com outros autores estabelece importante e didática classificação,
fundamental para se entender possíveis conseqüências da morosidade.
Quanto ao modo de configuração a morosidade pode ser necessária ou legal.
Necessária coadunada com o tempo ideal do processo. “Tal modalidade realça a
importância do tempo no processo, exatamente em virtude da necessidade de
cumprimento de certas etapas fundamentais para que as partes formulem suas
teses, o juiz forma seu convencimento de forma madura e um sistema eficiente de
busca da verdade possa ser bem manipulado”345
A morosidade legal é aquela que decorre dos cumprimentos dos prazos
legais, estabelecidos na lei processual e que deve se aproximar da duração
necessária.
Quanto ao momento de sua configuração a morosidade pode ser pré-judicial,
judicial e pós-judicial.
A morosidade pré-judicial é aquela que antecede as ações judiciais, por
exemplo, do tempo de negociação entre as partes. A judicial é aquela própria que o
nome sugere enquanto que o a pós-judicial seria aquela relativa ao tempo
transcorrido entre a decisão judicial e o seu efetivo cumprimento.
342 RAMOS, 2008, p. 54. 343 MOREIRA, José Carlos Babosa Moreira. Notas sobre o problema da efetividade do processo. in: Temas de Direito Processua l. São Paulo: Saraiva, 1984. p.31. 344 SANTOS, 1996 apud RAMOS, 2008, p. 73. 345 RAMOS, op. cit., p. 73.
104
Em relação a esta última, fazendo a execução parte do processo judicial,
parece-nos que esteja incluída dentro do próprio processo judicial.346
Em relação à sua causa, esta pode ser classificada como endógena ou
funcional. A primeira relaciona-se normalmente com o volume de serviços, ou o
déficit entre este volume e o serviço judiciário oferecido. Já a segunda é aquela
provocada pelas partes, em consonância com seus interesses. 347
Seja qual for a classificação verifica-se que a lentidão processual está sempre
ligada ao comportamento indesejável das partes envolvidas e a deficiências na
prestação jurisdicional do estado, seja por problemas estruturais ou de legislação
falha.
3.3 O DIREITO FUNDAMENTAL À DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO:
CONCEITO E LEGISLAÇÃO
3.3.1 O status de Direito Fundamental
Até dezembro de 2.004, quando a Emenda Constitucional de número 45
erigiu a duração razoável do processo ao status de direito fundamental, o problema
da morosidade processual era tratado com medidas paliativas que se destinavam a
dar tramitação acelerada ao processo em determinados casos específicos que
tinham efeito localizado.
Podemos citar a legislação falimentar, o estatuto da criança e do adolescente,
a criação dos juizados especiais, e, mais recentemente, o estatuto do idoso que
admite a tramitação preferencial.
346 RAMOS, 2008, p. 74. 347 RAMOS, loc. cit..
105
Em âmbito supranacional, o Brasil é signatário da Convenção Americana
sobre Direitos Humano, de 1969, que em seu artigo 8º. 1348, o direito à duração
razoável do processo, mais especificamente ligado à acusação penal.349
Antes dela, também a Declaração Universal dos Direitos do Homem,
proclamada pela ONU, garante, em seu art. VIII que “todo homem tem direito a
receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que
violem os diretos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou
pela lei”.350
Posteriormente foi adicionado pela Convenção Européia dos Direitos
Humanos um plus de maior relevância: a imposição de um prazo razoável para o
julgamento da causa (art. 6º, inc.I).351
Tais normatizações já integravam o ordenamento jurídico brasileiro, por força
do §2º do artigo 5º da Constituição Federal, que elenca que “os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”, sendo assim adeptos ao Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos que trazia o referido princípio em seu texto.
Sobre o tema destaca Nicolitt352:
348 In verbis: “Toda a pessoa tem o direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, no apuramento de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para se determinem os seus direitos ou obrigações de natureza civil, de trabalho, fiscal ou de qualquer outra natureza.” 349 Também conhecido como pacto de São Jose da Costa Rica. Sobre isto: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia. O sistema interamericano de proteção dos direitos h umanos e o direito brasileiro . São Paulo: RT, 2000. Cap. 1. 350 Em âmbito internacional ainda, vale destacar que a importância do tema fez com que “o Conselho Europeu também proclamasse, no artigo 47 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia (07.12.2000), o direito fundamental de todos a um julgamento equitativo, público e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido em lei. Relembra-se, deste modo, que a proteção dos direitos fundamentais é anorma estrutural e legitimadora desde a instituição da União Européia. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos tem, inclusive, imposto várias condenações aos Estados-membros da União Européia, por descumprimento do prazo razoável para tramitação do processo. A Itália tem sido um dos países europeus com maiores condenações ocupando recentemente a Corte de Estrasburgo com a estatística de 85% de causas pendentes, contra 15% de todos os Estados-membros da comunidade.” (RIGHI, 2007, p. 165-166). 351 RIGHI, 2007, p. 163. 352 NICOLITT, André Luiz. A Duração Razoável do Processo . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 19
106
Desta forma, o princípio já se encontrava expressamente no ordenamento jurídico brasileiro como garantia fundamental por força do parágrafo segundo do art. 5º da CRF/88, que acolhe os direitos fundamentais consagrados em tratados internacionais que o Brasil fizer parte. Em outros termos, a previsão derivada da combinação do art. 5º, §2º, com os artigos 9 e 14 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, sem olvidar o Pacto São José, que ingressou no Brasil em 1992. Todavia, com a sua adoção expressa pela Constituição, não resta dúvida sobre o relevo e realce que ganhou, significando um verdadeiro convite ou exigência constitucional à comunidade jurídica, a fim de dar efetividade ao princípio.
No Brasil, quando se pensou que muito se havia avançado no estudo do
processo com a implementação dos processos de conhecimento, execução e
cautelar, cada qual com sua função, o legislador, no entanto, deparou-se com
situações jurídicas novas, com a necessidade de se garantir novos direitos insertos
no rol de fundamentais e atender eficientemente à demanda que se trazia ao
judiciário.353
A evolução de novas tecnologias, a inserção da mulher no mercado de
trabalho e busca incansável pela melhor qualidade de vida, assim como se
assegurar a dignidade da pessoa humana acabou por afetar a relação processual.354
Assim, diante dos clamores da sociedade e das críticas ao Judiciário diante
na necessidade de se imprimir ao processo um menor tempo de duração para o seu
desenvolvimento, desencadeou uma série de estudos e projetos que foram desde a
alteração Constitucional verificada em 2004, até a reforma de 2005 no Código de
Processo Civil.
Houve, portanto, ambiente histórico e político que ensejou na Constituição do
princípio da duração razoável do processo o qual é reservado aos direitos individuais
e coletivos, no rol do Título II que se destina aos Direitos e Garantias Fundamentais.
A superioridade hierárquica, entretanto, só ganhou especial realce quando da
elevação da norma ao status de direito e garantia fundamental constitucional, o que
foi consolidado com a Emenda Constitucional de número 45, que inseriu o inc.
LXXVII no art. 5º. da Constituição Federal, assegurando a todos “a razoável duração
do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
353 NAHAS, Thereza Christina. Princípio da razoável duração do processo. In: NAHAS, Thereza Christina. (coord.). Princípios de direito e processo do trabalho : questões atuais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 66. 354 Ibid, p. 67.
107
A expressa previsão denota especial atenção da comunidade jurídica ao
tema. Na própria EC 45/04 foram previstos mecanismos visando a aceleração do
curso dos feitos, tais como súmula vinculante, abolição de férias coletivas,
distribuição imediata de processos e a redução do número de recursos através do
instituto da repercussão geral no Recurso Extraordinário.
A partir de então inúmeras são as iniciativas que visam acelerar o andamento
dos processos.355
3.3.2 Conceituação no processo do trabalho
Não há como se estabelecer um conceito preciso de duração razoável do
processo, pois se deve sempre considerar também que a entrega da prestação
jurisdicional deva ser entregue com qualidade, sendo assegurado o exercício de
defesa das partes.
O conceito é, portanto, indeterminado cabendo uma análise de cada caso
concreto.
Para o conceito do princípio deve-se analisar pormenorizadamente o próprio
inciso LXXVIII da Constituição Federal que narra que “a todos, no âmbito judicial e
administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação”.
Nicolitt356 conceitua como “um direito que corresponde a um dever jurídico do
Estado, consistente em prestar jurisdição em tempo razoável”.
O princípio da razoável duração do processo abrange características de
direito processual e material, conforme bem destaca Nahas357 que num explicação
conceitual destaca que:
[...]a tutela necessária e dispensada aos direitos materiais deve ser de tal forma eficaz que o Estado no seu poder-dever-função jurisdicional tem de viabilizar a proteção e eficiência de decisão em situações onde se verificar a ameaça ou violação daquilo que a norma material garantiu a cada um dos jurisdicionados, seja no âmbito individual ou coletivo.
355 RIGHI, 2007, p. 165. 356 NICOLITT, 2006, p. 22. 357 NAHAS, 2009, p. 66.
108
A menção a direitos coletivos é especialmente importante no direito do
trabalho aonde a defesa de interesses difusos ou comuns a uma classe é comum
através da atuação dos sindicatos e utilização de meios processuais de solução de
conflitos tais como o dissídio coletivo.
Como se vê, não há como se estabelecer um critério pré-determinado de
razoabilidade da duração do processo, havendo a necessidade premente da
utilização do princípio da razoabilidade de caso a caso.358
Daí ser bastante prudente o legislador ter utilizado-se do termo “razoável),
pois deixa a cada situação trazida uma porta aberta para se usar um tempo maior ou
menor, necessário e suficiente para a decisão justa.359
Para aferição dessa razoabilidade Carlos Henrique Ramos lembra que a
Corte Européia de Direitos Humanos que também adota a chamada “teoria do não
prazo”, vem realizando uma análise a partir de alguns parâmetros objetivos, para
que não haja uma avaliação meramente casuística que, em síntese, são:360:
� complexidade da causa, relacionado as diversidades procedimentais e as
expectativas das partes;
� o comportamento das partes e de seus procuradores, questão relacionada
ao abuso dos direitos processuais;
� o comportamento das autoridades judiciárias, ligado principalmente ao
regular exercício dos poderes do juiz para dar rápido andamento ao litígio;
358 Aqui vale menção de Acórdão do STF: “Habeas Corpus. Writ impetrado no Superior Tribunal de Justiça. Demora no julgamento. Direito à razoável duração do processo. Natureza mesma do Habeas Corpus. Primazia sobre qualquer outra ação. Ordem concedida. O habeas corpus é via processual que tutela especificamente a liberdade de locomoção, bem jurídico mais fortemenete protegido por uma dada ação constitucional. O direito à razoável duração do processo, do ângulo do indivíduo, transmuta-se em tradicional garantia de acesso eficaz ao Poder Judiciário. Direito, esse, a que corresponde o deve estatal de julgar. No habeas corpus, o dever de decidir se marca por um tônus de presteza máxima. Assim, o Supremo Tribunal Federal determinar aos Tribunais Superiores o julgamento de mérito de habeas corpus, se entender irrazoável a demora no julgamento. Isso, é claro, sempre que o impetrante se desincumbir do seu dever processual de pré-constituir a prova de que se encontra padecente de ‘violência ou coação de sua liberdade de locomoção’, por ilegalidade ou abuso de poder’ (inciso LXVIII do art. 5º. Da Constituição Federal). Ordem concedida para que a autoridade impetrada apresente em mesa, na primria sessão da Turma que oficia o writ ali ajuizado (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus. HC 91.041/PE. Pernambuco. Relatora: Mina. Carmen Lúcia. Rel. p/Ac.Min. Carlos Brito; 05 de junho de 2007. Lex : jurisprudência do STJ e Tribunais Regionais Federais, Pernambuco, jun 2007.) in NAHAS, 2009, p. 75-76. 359 NAHAS, 2009, p. 76-77. 360 RIGHI, Eduardo, Direito fundamental ao justo processo nas tutelas de urgência. Curitiba: Juruá, 2007. p. 166.
109
Ao transladarmos isso para um caso concreto trabalhista vemos que as
próprias características do Direito do Trabalho e do próprio Processo do Trabalho já
apontam para uma conceituação um pouco mais ampla deste direito fundamental no
caso concreto.
O processo do trabalho é regido pelos princípios da simplicidade e da
informalidade, existindo, inclusive, a previsão de da capacidade postulatória à
própria parte (ainda que a utilização de advogado seja amplamente recomendável).
“Isso significa que as normas do processo laboral, particularmente as
referentes ao ingresso em juízo e participação em audiências, num primeiro
momento, foram concebidas para leigos.”361
Assim não é razoável que se exija excesso de conhecimentos técnicos,
formalismos e técnicas processuais apuradas.
A simplificação dos atos processuais é uma característica que distingue o
processo do trabalho, assim como irrecorribilidade de decisões interlocutórias e
inexistência de agravo de instrumento como recurso.
Além disso são características do processo trabalhista a maior concentração
de atos em audiência, recursos, como regra geral, não dotados de efeito suspensivo,
alargamento das possibilidades de conciliação, contestação verbal, menor número
de testemunhas, exceção por impulso do juiz caso as partes não o façam ou mesmo
se o juiz quiser antecipar-se às partes.362
Assim, tais características apontam para um preenchimento mais amplo da
norma cláusula geral que prevê o direito fundamental constitucionalmente, levando
em contar tais fatores que colaboram para a exigência de um procedimento mais
célere do que em outros ramos do direito como cumprimento de um direito
fundamental previsto constitucionalmente.
Como direito fundamental previsto constitucionalmente, há de se considerar
também que alcança a interpretação da norma infra-constitucional, como se verá
mais a frente.
361 PAROSKI, Mauro Vasni. Reflexos sobre a morosidade e o assédio processual na justiça do trabalho. In: GUNTHER, Luiz Eduardo (coord.). Jurisdição : Crise, efetividade e Plenitude Jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2008. p. 607. 362 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito processual do trabalho . São Paulo: Saraiva, 2008. p.104.
110
3.4 PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA: ORIGEM, CONCEITO E
FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS
A origem do princípio da função da empresa decorre do desenvolvimento e
compreensão da função social à propriedade como um dos resultados dos efeitos do
Estado Liberal do século XVIII, também conhecido como “Estado Gendarme” na
acepção de Kant, segundo informa Bester363, uma vez que um dos seus princípios
fundamentais implicava na proteção dos direitos individuais e à limitação do poder
estatal.364
Já no final do século XIX e início do século XX houve uma crise existencial,
decorrente de vários fatores sociais. A Revolução Industrial transformou o modo de
vida dos trabalhadores, antes artesanais durante a Idade Média, vinculados
monetariamente ao empregador, privados do acesso aos meios de produção e
reduzidos à mera condição de vendedores de força de trabalho.
O emprego de mulheres e crianças era assustador, trabalhando cerca de 14 a
18 horas diárias, até caírem exaustas.365 O liberalismo, no entanto, mostrava-se
insensível à sorte dos trabalhadores.366
Para Bester, o Estado Liberal, sem se importar com as necessidades
prementes das parcelas mais desfavorecidas da população, garantia e fazia valer os
direitos à liberdade e à propriedade, sendo estes aqueles que mais interessavam à
classe burguesa. Previa apenas uma igualdade formal, mera igualdade de todos
perante a lei em detrimento da efetiva realização material dos direitos ligados ao
princípio da igualdade.367
Isso levou à insuficiência de igual tratamento entre desiguais, notadamente na
primeira metade do século XX: ‘na ironia de Anatole France, a lei reconhece
igualmente a pobres e ricos o direito de dormir debaixo das pontes de Paris’.368
363 BESTER, Gisela Maria. Quando, por que, em que sentido e em nome de que tipo de empresa o estado contemporâneo deixa de ser empresário?. In: TONIN, Marta Marília; GEVAERD, Jair (Coord.). Direito empresarial e cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004. p. 128. 364 FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional . 3. ed.. São Paulo: Método, 2006b. p. 167. 365 HUNT, E.K; SHERMAN, Howard J. Historia do pensamento econômico . Petrópolis: Vozes, 1978. p. 73-74. 366 HUNT; SHERMAN, 1978, p. 88-89. 367 BESTER, op. cit., p. 128-129. 368 BESTER, loc. cit.
111
Como reação a essa insensibilidade do capitalismo liberal (output369),
exsurge uma nova ideologia que pudesse enfrentar o excesso de individualismo e os
abusos contra a classe operária.
A severidade da Grande Depressão na década de 30 e as duas Guerras
Mundiais levaram muitos economistas a romperem com a visão liberal, adotando-se
as idéias do economista britânico John Maynard Keynes: da intervenção
governamental em escala maciça para assegurar o emprego.
Nos Estados Unidos da América, as idéias de Keynes influenciaram o
presidente Franklin Roosevelt que, em 1933, implementou o chamado “new deal”,
um programa econômico e social que visava principalmente a ajuda aos carentes e
o subsídio à geração de empregos.
Os direitos sociais passam a ser protegidos e tutelados, de forma que a
economia deveria agir para o bem-estar da sociedade, e não vice-versa. As
primeiras Constituições a inserirem em seus textos os direitos sociais, buscando a
chamada “justiça social”, foram a do México de 1917 e a da Alemanha de 1919
(Constituição de Weimar). Iniciou-se a era do denominado “Constitucionalismo
Social”, que teve sua primeira manifestação no Brasil na Constituição de 1934,
estando presente em todas as Constituições posteriores370.
A Igreja Católica também exerceu importante papel ao endossar na Encíclica
Rerum Novarum (de 15 de maio de 1891, que trata sobre a condição dos operários),
do Papa Leão XIII, a preocupação com problemas sociais decorrentes do
capitalismo monopolista, sugerindo sugestões.371
369 O termo output é extraído da linguagem sistêmica de Niklas Luhman. Dallegrave Neto explica da teoria sistêmica depreende-se que, sendo o Direito um subsistema da sociedade global, sua manifestação é sempre cíclica, através da demanda (input), respostas (output) e retroalimentação (feedback). (DALLEGRAVE NETO, 2000, p. 52). 370 ZULMAR FACHIN, 2006, p. 43. 371 Na parte final da Encíclica, constou: “Tome cada um a tarefa que lhe pertence; e isto sem demora, para que não suceda que, adiando o remédio, se tome incurável o mal, já de si tão grave. Façam os governantes uso da autoridade protectora das leis e das instituições; lembrem-se os ricos e os patrões dos seus deveres; tratem os operários, cuja sorte está em jogo, dos seus interesses pelas vias legítimas; e, visto que só a religião, como dissemos no princípio, é capaz de arrancar o mal pela raiz, lembrem-se todos de que a primeira coisa a fazer é a restauração dos costumes cristãos, sem os quais os meios mais eficazes sugeridos pela prudência humana serão pouco aptos para produzir salutares resultados.”. (VATICANO. Documentação . Disponível em: <http://www.vatican.va/ holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html>. Acesso em: 9 jul. 2008.
112
Forma-se o chamado Estado Social, também chamado de Estado Social de
Direito, ou Estado Intervencionista, Estado Providência ou ainda Welfare State
(Estado do Bem-Estar Social).372
Com efeito, a partir da Encíclica Rerum Novarum de 1931 (visava refrear a
livre concorrência e o monopólio, promover a correta distribuição dos bens, de sorte
que uma classe não excluísse a outra e buscando suprir as deficiências do contrato
de trabalho e ainda reconheceu a função social do capital, declarando que este nada
vale sem o trabalho, nem o trabalho sem o capita)373, e com a assunção do Estado
Social, três importantes feições passaram a influenciar os novos valores jurídicos: 1)
função social da propriedade; 2) mitigação da autonomia da vontade e 3) igualdade
material.
Especificamente com relação à função social da propriedade tem por escopo
legal o artigo 5°, inciso XXIII 374 e o artigo 170, inciso III375, ambos da Constituição da
República de 1988.
Segundo Grau, a função social da propriedade trata de um princípio
impositivo pois impõe ao empresário, ou a quem detém o poder de controle da
empresa o dever de exercê-lo em benefício de outrem. Trata-se, portanto, de fonte
de imposição de comportamento positivos, prestação de fazer e não, meramente, de
não fazer ao detentor do poder que deflui da propriedade.376
372 Lenio Streck e José Luis Bolzan de Morais identificam com exatidão o que caracteriza um Estado como intervencionista, embora o seja desde sempre: “A intervenção estatal no domínio econômico não cumpre papel socializante; antes, muito pelo contrário, cumpre, dentre outros, o papel de mitigar os conflitos do Estado Liberal, através da atenuação de suas características – a liberdade contratual e a propriedade privada dos meios de produção -, a fim de que haja a separação entre os trabalhadores e os meios de produção.Decorre daí a necessidade de impor uma ‘função social’ a estes institutos e a transformação de tantos outros. Da propriedade com direito de pleno uso, gozo e disposição, passamos a uma exigência funcional da propriedade, sendo determinante sua utilização produtiva e não mais seu título formal. Igual sentido perpassa pela liberdade contratual, hoje condicionada por um dirigismo econômico estatal.” (STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do estado . Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 64.) 373 OLIVEIRA, Eloete Camilli. A função social da empresa. In: HASSON, Roland (Coord.). Direito dos trabalhadores & direitos fundamentais . Curitiba: Juruá, 2003. p. 191. 374 XXIII - a propriedade atenderá a sua função social. 375 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...]; III - função social da propriedade;” 376 GRAU, 2000, p. 259.
113
A chamada função social da empresa não está expressamente prevista na
Carta Magna de 1988, mas, conforme adverte Evaristo de Moraes Filho, a empresa
é um exemplo de propriedade privada, no meio de muitas mais377.
Explica, na seqüência, que a função social não cabe só a empresa e sim a
qualquer espécie de propriedade que tenha relações com a coletividade e que possa
ser utilizada em prejuízo de muitos. 378
Ora, se isso se aplica à propriedade em termos gerais, com mais razão cabe
ser aplicado à empresa verdadeira célula de produção econômica, em torno da qual
começa a organizar-se a própria vida econômica e profissional.
Dallegrave Neto leciona que quando o constituinte estabeleceu que a ordem
econômica deve se atentar para o princípio da função social da empresa, atingiu a
empresa que é uma das unidades econômicas mais importantes no hodierno
sistema capitalista379.
Arremata, na mesma linha de Eros Grau que tal função social impõe não só
proibições, mas, sobretudo, um comportamento positivo da empresa.
Quando manifestada na esfera trabalhista:
significa um atuar em favor dos empregados, o que, na prática, é representado pela valorização do trabalhador, por meio de ambiente hígido, salário justo e, acima de tudo, por um tratamento que enalteça a sua dignidade enquanto ser humano (CF, arts. 1°, 3°, 6° , 7°, 170 e 193). 380
A função social, portanto como princípio constitucional tem por objetivo
respeitar a dignidade da pessoa humana, e encontra-se inserida de forma intrínseca
à propriedade privada.381
Para Modesto Carvalhosa a empresa tem uma óbvia função social, nela
sendo interessados os empregados, os fornecedores, a comunidade em que atua e
o próprio Estado, que dela retira contribuições fiscais e parafiscais.382
Expõe então o que considera três as modernas funções sociais da empresa:
377 MORAES FILHO, Evaristo. Do contrato de trabalho como elemento da empresa . São Paulo: LTr, 1993. p. 257. 378 MORAES FILHO, loc. cit. 379 DALLEGRAVE NETO, 2007, p. 335. 380 DALLEGRAVE NETO, loc. cit. 381 Ibid., p. 204-205. 382 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 276.
114
A primeira refere-se à condições de trabalho e às relações com seus
empregados, em termos de melhoria crescente de sua condição humana e
profissional, bem como dos seus dependentes.
A segunda volta-se aos interesses dos consumidores, diretos e indiretos, dos
produtos e serviços prestados pela empresa, seja em termos de qualidade, seja no
que se refere a preços.
A terceira volta-se ao interesse dos concorrentes, a favor dos quais deve o
administrador da empresa manter práticas eqüitativas de comércio, seja na posição
de vendedor, seja na de comprador.383
Em outro ponto de vista, Tokars384, analisando o contexto neoliberal, entende
que, por inexistir sanção para o descumprimento da função social da empresa,
torna-se tal fenômeno completamente estéril.
Por isso a referida função social deve ser vista como uma válvula de escape
psicossocial, ou seja, um instrumento de aparente conquista social que, em
realidade, acaba por atuar exatamente de forma oposta, mantendo privilégios ou
impedindo a real conquista de interesses sociais.385
Traz como exemplo clássico de válvula de escape psicossocial é a
Consolidação das Leis do Trabalho que, segundo entende, atualmente é vista muito
mais como um instrumento de limitação do que de concessão dos direitos
trabalhistas sendo que, à época de seu lançamento, atuou socialmente como
mecanismo de estabilização, impedindo a potencialização dos movimentos
trabalhistas.386
Conclui, então, que, ainda que seja socialmente exigida uma atuação
empresarial que apresente preocupação social, a mera previsão normativa não se
faz capaz de garantir materialmente os interesses da sociedade.387
José Afonso da Silva, em sentido contrário, realça a importância da função
social da propriedade (assim considerada toda e qualquer tipo de propriedade)
383 CARVALHOSA, 2003, p. 276. 384 TOKARS, Fabio Leandro. Função social da empresa. In: RAMOS, Carmem Lucia Silveira (Coord.). Direito civil constitucional : situações patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2002. p. 84. 385 Ibid., p. 95. 386 Ibid., p. 95-96. 387 Ibid., p. 96.
115
porque, além de prevista entre os direitos individuais, ela não mais poderá ser
considerada puro direito individual, relativizando-se seu conceito e significado388.
Ao tratar da função social da empresa, que, para ele, também pode se
denominar “função social da propriedade dos bens de produção” ou, ainda, “função
social do poder econômico”, em cotejo com o disposto no artigo 5°, XXIII, inciso da
Constituição de 1988, ensina que o art. 170, III, ao ter a função social da
propriedade como um dos princípios da ordem econômica, reforça essa tese.389
Segundo ele, ainda, a principal importância disso está na sua compreensão
como um dos instrumentos destinados à realização da existência digna de todos e
da justiça social.
A correlação dessa compreensão com a valorização do trabalho humano (art.
170, caput), a defesa do consumidor (art. 170, V), a defesa do meio ambiente (art.
170, VI), a redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, VII) e a busca do
pleno emprego (art. 170, VIII), configura a sua direta implicação com a propriedade
dos bens de produção, especialmente imputada à empresa pela qual se realiza e
efetiva o poder econômico, o poder de dominação empresarial.390
Com efeito, a Constituição de 1988 não nega o direito de propriedade, ou
como afirma Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “o direito exclusivo do dono sobre a
coisa”391, mas exige que o uso da coisa seja condicionado ao bem-estar geral392.
No que diz respeito à atividade empresarial e utilização da força laboral, onde
atua como ator principal o empregado, fica evidente a necessidade de as empresas
contemporâneas observarem a sua função social, consubstanciada no respeito ao à
dignidade da pessoa humana, não privando o trabalhador do percebimento de seus
proventos que garantiram vida digna. Tal fato deve ser considerado, inclusive, por se
tratar de norma constitucional, na interpretação legal.
Lima393 informa que as idéias de Hayek implementaram uma nova ordem
global que se exteriorizou no denominado “Consenso de Washington”, que
consubstanciava três medidas básicas: 1) acabar com a inflação; 2) privatizar; 3) 388 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 812. 389 Ibid., p. 814. 390 SILVA, loc. cit. 391 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 353. 392 FERREIRA FILHO, loc. cit. 393 LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito : análise das mazelas causadas no plano político-jurídico. Porto Alegre: SAFE, 2002. p. 159.
116
deixar o mercado regular a sociedade, através da redução do papel do Estado,
sendo os seus principais protagonistas as grandes corporações internacionais,
sobretudo as norte-americanas.
Tais idéias configuraram norte ideológico na Inglaterra de Margareth Tatcher
(1979) e nos EUA, de Ronald Reagan (1980) sendo estes os primeiros Estados
capitalistas a adotarem o neoliberalismo. No Brasil, o primado do neoliberalismo
chegou no ano de 1990, com a assunção de Fernando Collor de Mello na
Presidência.
Tais tendências foram levadas ainda mais a frente durante o governo de
Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) que adotou medidas para flexibilizar as
condições de trabalho, e na mudança da Constituição para adaptação do novo
pensamento econômico394.
Trata-se na visão de Boaventura Souza Santos395 do terceiro período do
capitalismo conhecida como capitalismo desorganizado, começa nos finais dos anos
60 e ainda continua.
É caracterizado pelo surgimento de empresas multinacionais
(transnacionalização da economia), que tornam possível a redução da capacidade
estatal de regular a economia (vigora o princípio do mercado); pelos mecanismos
corporativos de regulação de conflitos entre capital e trabalho; pela redução dos
salários, pela flexibilização e automação dos processos produtivos; pela
industrialização no terceiro mundo; em suma, o Estado Providência entra em crise,
havendo um certo regresso ao período do capitalismo liberal396.
Nasce a globalização econômica que acarretou uma severa mudança de
comportamento da sociedade.
Alguns primados do liberalismo clássico ressuscitam, como o individualismo e
o incentivo à abertura de mercados, buscando-se a maximização do lucro.
Dallegrave Neto397 aponta a financeirização e mundialização do capital, a
globalização da mídia, do consumo e da mão-de-obra e a perda da soberania
394 Através do poder constituinte derivado, promulgando Emendas Constitucionais, como exemplo, as de n° 19 e 20, ambas de 1998. 395 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de alice : o social e o político na pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 79. 396 Ibid., p. 87. 397 DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Análise de conjuntura socioeconômica e o impacto no Direito do Trabalho. In: DALLEGRAVE NETO, José Affonso (Coord.). Direito do trabalho contemporâneo : flexibilização e efetividade. São Paulo: LTr, 2003. p. 12.
117
nacional em face da hegemonia dos blocos regionais como características na
sociedade pós-moderna. Para o mesmo jurista, são três os reflexos dos novos
valores da sociedade pós-moderna nas relações de trabalho: a) aumento de
desemprego mundial, b) reestruturação do sistema produtivo e c) precariedade nas
condições de trabalho.398
O problema do desemprego ganhou contornos ainda mais preocupantes
depois da crise financeira de outubro de 2.008.
A reestruturação do sistema produtivo, com a adoção de novos métodos
gerenciais de recursos humanos, como as chamadas readministração e a
reengenharia (maior produção, maior produtividade, com menor custo
operacional399), mudaram o panorama do mundo, com vistas à maximização dos
lucros e, frise-se, sem a intervenção do Estado.
O empregado deve ter uma resistência mínima à mudança (RM), sob pena de
ser excluído do mercado400.
A função social da empresa é, portanto, colocada em xeque, uma vez que
segundo a filosofia neoliberal, a liberdade de atuação no mercado não admite
intervenções do Estado, o que de fato atinge as relações trabalhistas, que são
normas de ordem pública originadas de um Estado atuante e protetor.
Embora não se negue que as transformações do mundo do trabalho atingiram
o Brasil, e não há como voltar atrás, a função social da empresa não pode ser
olvidada, ainda mais quando se procura garantir a existência digna do trabalhador
com o garantimento da percepção de seus salários.
Ao considerarmos então a propriedade como empresa - empregadora, núcleo
principal da atividade econômica, que assume os riscos da atividade econômica,
admite, assalaria e que assume a prestação pessoal de serviços, os contornos da
chamada função social devem ser delineados como forma de proteção ao
trabalhador e principalmente a sua dignidade.
A interpretação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica,
portanto, quando aplicado a Direito do Trabalho deve observar a função social da
empresa.
398 DALLEGRAVE NETO, 2003, p. 17. 399 Ibid., p. 20. 400 DALLEGRAVE NETO, loc.cit.
118
4 FUNDAMENTOS LEGAIS DA DESCONSIDERAÇÃO: A INTERPRE TAÇÃO
SEGUNDO VALORES E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS, ENTRO SAMENTO DE
SISTEMAS JURÍDICOS E INTEGRAÇÃO DA NORMA TRABALHIST A
4.1 A ANALOGIA COMO MÉTODO DE INTEGRAÇÃO DA NORMA
Como já defendido anteriormente, não existe no Direito do Trabalho norma
específica para aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
Assim, estamos diante de uma lacuna.
Encontrando-se o aplicador do direito diante de situação que requeira a
aplicação do instituto da desconsideração deverá proceder a integração de uma
norma ao direito do trabalho para resolução da questão que se apresenta.
O direito, conforme bem lembra Diniz401, “é lacunoso, sob o prisma dinâmico,
já que se encontra em constante mutação, pois vive com a sociedade, sofre com ela,
recebendo a cada momento o influxo de novos fatos.”
Por mais que o legislador seja hábil, não há como produzir comandos
suficientes às necessidades do momento, abrangendo todos os casos emergentes
da vida social que peçam a intervenção do direito.
Entretanto, sob o ponto de vista dinâmico, o da aplicação da lei, destaca
Carlos Roberto Gonçalves, pode ela ser lacunosa, mas o sistema não.402 Isto porque
o juiz deverá utilizar-se de mecanismos para promover a integração das normas
jurídicas, não deixando nenhum caso sem solução.403
Lembra Nascimento404 que “a plenitude da ordem jurídica é mantida, sempre
que inexistente norma jurídica adequada ao caso concreto, mediante adoção de
técnicas destinadas a coibir as eventuais lacunas decorrentes da falta de preceito.”
Assim, para se manter a integralidade do direito positivo, promove-se a
integração do ordenamento jurídico. Trata-se, portanto do princípio da plenitude da
401 DINIZ, 2004, p. 68. 402 Neste sentido, Maria Helena Diniz defende que o direito apresenta lacunas, porém é, concomitantemente, sem lacunas, o que poderia parecer paradoxal se se captasse o direito estaticamente. (DINIZ, 2004, p. 69-70) 403 GONÇALVES, 2009, p. 49. 404 NASCIMENTO, 2009, p. 377.
119
ordem jurídica, informador de que a ordem jurídica “sempre terá uma resposta
normativa para qualquer caso concreto posto ao exame do operador do Direito.”405
França406 estabelece três fases distintas para se realizar a integração, que
deverão se dar após estabelecida a norma jurídica, que tendo incidido em meio à
vida real, algum problema com ela relacionado:
A primeira concerne ao conhecimento da hermenêutica, isto é, “do conjunto
de regras que norteiam a arte de averiguar o direito contido nas leis e nas demais
formas de que o mesmo se reveste”407
A segunda, respeita à utilização dessas regras com referência ao
conhecimento da norma que se tenha em vista, fase esta de mera interpretação do
direito.
A fase final e propriamente de integração dos resultados do trabalho
interpretativo, no caso concreto, com o fito de lhe dar a melhor solução jurídica.408
A analogia é o instrumento central da auto-integração do direito409 e é a ela
que o juiz recorre preliminarmente (e também nos casos que autorizem e requeiram
a utilização do desconsideração da personalidade jurídica).410
Analogia consiste, segundo ensina Maria Helena Diniz411 “em aplicar a um
caso não previsto de modo direto ou específico por uma norma jurídica uma norma
prevista para uma hipótese distinta mas semelhante ao caso não contemplado”.
Há dois tipos de analogia, a analogia legis, a aplicação da lei, e a analogia
júris, a aplicação do princípio do direito.
O fundamento da analogia, conforme ensina França em importante lição,
calçado nas lições de Ferrara, “repousa sobre a idéia de que os fatos de igual
natureza devem possuir igual regulamente e, se um destes fatos encontra já no
sistema a sua disciplina, esta constitui o tipo de onde promana a disciplina jurídica
geral que deve governar os casos afins”.412
405 DELGADO, 2004, p. 241. 406 FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica Jurídica . 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 41-42. 407 FRANÇA, loc. cit. 408 Ibid., p. 42 409 DELGADO, op.cit., p. 242. 410 A analogia, conforme destaca Limongi França não pode ser considerada uma fonte formal do direito, sendo este um erro comum entre os doutrinadores, pois se trata de mero método de aplicação do direito. (FRANÇA, 2009. p. 44). 411 DINIZ, 2004. p. 70. 412 FRANÇA, 2009, p. 46.
120
Para emprego da analogia requer-se a presença de três requisitos: a)
existência de dispositivo legal prevendo e disciplinando a hipótese do caso concreto;
b) semelhança entre a relação não contemplada e outra regulada na lei; c)
identidade de fundamentos lógicos e jurídicos no ponto comum das situações.413
O direito do trabalho permite expressamente o uso desta técnica de
integração da norma, através do comando normativo previsto no artigo 8o. da
CLT414, no qual deve socorrer-se o aplicador da norma, trazendo ao mundo do
direito do trabalho uma norma do direito geral fazendo-a aplicável respeitando todo o
arcabouço principiológico e normativo deste ramo e principalmente os valores
constitucionais.415
Isso, conforme exposto acima, respeitando as fases e observando-se a
presença dos requisitos exigidos pela doutrina, o que se passará a observar na
seqüência do trabalho.
4.1.1 A Interpretação da Expressão “Direito Comum” presente no Artigo 8º da Norma
Celetária
A CLT, em seu artigo 8o, estabelece que o direito comum será fonte
subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os
princípios fundamentais.
Sendo assim deve-se, ab initio, estabelecer a amplitude da expressão direto
comum, posto que é importante para determinarmos a lei a ser utilizada de forma
analógica.
413 GONÇALVES, 2009, p. 50. 414 Art.8º. As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e por princípios e normais gerais de direito, principalmente de direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, com o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. Parágrafo único. direto comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste. 415 Também, no Código de Processo Civil existe norma a autorizar o uso da analogia conforme ditames insertos no Art. 126, que determina: "Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide, caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito".
121
A questão é tormentosa pois não encontra unanimidade na doutrina.
Uma interpretação mais restritiva da expressão limitando seu alcance ao
direito civil poderia conduzir forçosamente a conclusão de que o artigo 50 do Código
Civil é que se presta a integração da norma, através da analogia.
Entretanto, a despeito de ser esta a opinião de alguns doutrinadores, não nos
parece a mais correta.
Martins416, por exemplo, advoga no sentido de ser o direito comum tanto o
direito civil quanto o comercial. Para ele não se pode entender por direito comum
qualquer ramo do direito vigente, mesmo outros especiais, porque, segundo
defende, o Direito Processual Civil não se aplica ao Direito do Trabalho, mas apenas
na omissão do Direito Processual do Trabalho, havendo dispositivo na CLT a tratar
do assunto, que é o artigo 769.
Defende também que o direito comercial é aplicado de forma subsidiária ao
Direito do Trabalho quanto ao conceito de empresa, à questão das sociedades
comerciais, à falência, etc. Para, Martins, o Direito do Trabalho desenvolveu-se dos
contratos civis e comerciais, na modalidade de contrato.417
Na mesma linha, Saad418 defende que o direito comum que subsidia o direito
do trabalho abrange o direito civil e o comercial. Esta subsidiariedade é observada
também, no que se refere ao Direito Processual Civil. Dele se serve o Direito
Processual do Trabalho.
Com respeito às respeitáveis posições citadas, temos que concordar que a
defesa de tais idéias, no entanto, conforme bem defende Magano, ladeado por
Carrion419 420, significa o repúdio de cavar um fosso isolacionista em torno do direito
do trabalho.
Ensina Carrion, opinião com a qual concordamos, que por direito comum deve
se entender qualquer ramo do direito vigente, mesmo os outros especiais, quando
aplicáveis a certas hipóteses.421
416 MARTINS, Sérgio Pinto. Comentários à CLT . 12. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.35. 417 Ibid., p.35-36. 418 SAAD, Eduardo Gabriel. CLT comentada. 34. ed. São Paulo: LTr, 2002. p. 48. 419 CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho . 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 66. 420 MAGANO, Octávio Bueno. Manual de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1988. p. 108. 421 CARRION, 2004, p. 66.
122
Tal opinião merece uma análise mais detida, pois não se trata tão somente de
eleger um ou outro lado por mera conveniência, tendo em vista que a explicação
passa por um exame histórico das origens normativas.
Ensina Baracat que a CLT pertence ao ordenamento jurídico brasileiro e, por
outro lado, é um microssistema formando um todo significativo e autônomo, capaz
de expressar princípios próprios e gerais.422
A CLT, quando foi escrita, tinha como fonte subsidiária principal o Código Civil
de 1916 que, tal como os demais códigos oitocentistas, consagrava os valores da
burguesia triunfante.423
O indivíduo, ao exercer uma atividade, avaliando vantagens e inconvenientes,
precisa ter segurança que as regras do jogo não vão mudar, segurança esta
fornecida pelo direito através de um âmbito jurídico estático, rígido e previsível.424
Tal previsibilidade, no direito brasileiro, foi garantida pelos códigos
oitocentistas, dentre os quais o brasileiro (embora somente promulgado no século
XX).
O Código Civil oitocentista, portanto, teve a finalidade de fornecer um sistema
completo, harmônico e fechado, não permitindo que o intérprete buscasse fora
daquele conjunto de normas válidas outras regras e valores para solução das
controvérsias.425
A partir da Primeira Guerra mundial, lembra Baracat baseado na lição de
Irti426, os problemas sociais e econômico levaram a uma intervenção estatal na
economia, limitando os poderes dos particulares. Os Códigos já não podiam mais
resolver o crescente surgimento de necessidades e problemas das novas classes e
grupos. A lei especial torna-se o instrumento mais adequado para preservar a
ideologia dos códigos.
Diante do multiplicar de leis especiais, os códigos civis assumem função
diferente, passando a representar o direito comum, ou seja transformam-se em
princípios gerais dos quais as leis especiais podem se completar, porém não
422 BARACAT, Eduardo Milléo. A boa-fé no direito individual do trabalho . São Paulo: LTr, 2003. p. 57. 423 BARACAT, loc. cit. 424 Ibid. p. 58. 425 BARACAT, loc.cit. 426 IRTI, 1992 apud BARACAT, 2003, p. 57.
123
desconsiderar. O direito comum, por conseqüência o Código Civil, torna-se fonte
subsidiária das leis especiais.427
A CLT de 1.943, tida então como lei especial trabalhista tem como fonte
subsidiária o direito comum constante do Código Civil, conforme permissivo previsto
no artigo 8º., § único da Consolidação.
A relação do direito geral com o direito especial nasce então da confrontação
entre duas normas jurídicas, que têm o mesmo suposto de fato. A norma mais ampla
compreende em seu conteúdo o suposto de fato da menos ampla.428
Baracat429 observa, no entanto, que a CLT não possui o mesmo suposto de
fato que o CCB, pois enquanto a primeira disciplina relações individuais e coletivas
de trabalho, o segundo regulamenta outros inúmeros fatos jurídicos.
Movimento contrário, entretanto, passou a ser percebido com a Constituição
de 1.988 quando esta passou a ser entendida como única fonte da validade do
sistema jurídico, atribuindo-se, por conseguintes, função decisiva a valores e
princípios constitucionais.430
A partir da Constituição temos o surgimento de vários micro-sistemas, sendo
que a utilização das técnicas de interpretação a partir das cláusulas gerais e
conceitos jurídicos indeterminados permitiu a comunicação entre os diversos
sistemas.
O Código Civil era visto como a constituição da vida privada, referência esta
que passou a ser da própria Constituição. Principalmente, pela constatação de que a
codificação não é, por si só, compatível com o dinamismo da norma necessário às
constantes mudanças da relações sociais.
Lembra Perligieri431, que o papel unificador do sistema, tanto em seus
aspectos civilistas, quanto naqueles de relevância publicista, é exercido, cada vez
mais incisivamente, pela Carta Constitucional.
O autor italiano, ao dissertar sobre um caminho de um novo “direito comum
leciona no sentido de que no uso e na compreensão das técnicas legislativas deve
prevalecer o perfil funcional: “as frias estruturas nominalísticas são obrigadas a
427 BARACAT, 2003, p. 57 428 ibid, p. 58. 429 BARACAT, loc. cit. 430 Ibid, p. 63. 431 PERLINGIERI, Pietro.O direito civil na legalidade constitucional . Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 186.
124
satisfazer novas funções, individuadas pelo intérprete mediante uma exegese
iluminada criticamente voltada a elaborar e utilizar instrumentos conceituais mais
adequados aos modernos princípios e valores”.432
O mesmo autor ensina que toda questão jurídica é sempre o momento de
fusão entre o ordenamento, que é um dado, e a atividade interpretativa, a qual, em
função dos fatos concretos, tende a conhecê-lo e aplicá-lo. Conclui dizendo que “o
sistema não pode ser considerado fora do sistema e o sistema, renovando-se
sempre, não possa ser construído em função da resolução do problema”. 433
Diante desta constatação, revela que, por conseguinte, fica redimensionado o
aspecto da colocação topográfica da indicação legislativa – se o código ou a lei
orgânica – devendo-se, preferencialmente, individuar as razões de sua co-
existência.
Traça-se, então, uma importante meta: a necessidade e a possibilidade de
fundar um novo direito comum, que saiba afastar dos interesses de categorias e dos
privilégios estatutários, “mesmo através do sábio uso das normas e dos princípios
contidos nos chamados microssistemas legislativos, aos quais, de qualquer modo,
não se pode reconhecer autonomia do sistema do qual são partes integrantes.”434
Supera-se assim, também a disputa sobre o que um código deveria conter: se
alargar o seu conteúdo ou restringi-lo ainda mais, de maneira a identificá-lo de forma
exclusiva com institutos patrimoniais, como se fosse possível exaurir o direito civil,
no Código Civil.435
Essa constatação, somada-se a outros fatores, inegavelmente tornam o
chamado direito comum sob uma ótica moderna suscetível de uma interpretação
ampla o suficiente a ponto de abarcar todos os demais ramos do direito, inclusive os
especiais.
A consolidação da Constituição como norma mater suprema de todo o
ordenamento jurídico brasileiro, em substituição ao Código Civil após a
democratização do país contribui para a consolidação desta visão.
O direito comum passa a ser, portanto, todo tipo de norma justificável na
Constituição.
432 PERLINGIERI,2008, p. 235. 433 PERLINGIERI, loc. cit. 434 Ibid., p. 236-237. 435 Ibid., p. 237.
125
O próprio Pietro Perlingieri propõe a constitucionalização do Direito Civil, de
modo a atender à complexidade das relações sociais do terceiro milênio, segundo o
qual uma coisa é ler o Código numa ótica produtivista, outra é relê-lo à luz da opção
ideológico-jurídica constitucional, na qual a produção encontra limites insuperáveis
no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.
Assim, tem-se importante lição no sentido de que a interpretação dá-se de
acordo com o momento e não conforme sua origem histórica, pois só se pode avaliar
a complexidade do ordenamento, no momento de sua efetiva realização, isto é, “no
momento hermenêutico voltado a se realizar no caso concreto”.436
Streck437 bem destaca ao dissertar sobre a interpretação constitucional de
uma norma vai mais além. Segundo ele se o dispositivo legal for incongruente com a
Constituição e não havendo o legislador tomado as necessárias providências de
adaptação daquela a esta, “o Tribunal necessariamente tem o dever de realizar a
correção. Não importa, assim, por exemplo, a intenção do legislador de 1940;
importa a ‘intenção’ do legislador constitucional de 1.988.”
Para o autor, ainda, a impossibilidade de reprodução do sentido querido pelo
legislador está assentada na historicidade e temporalidade incida a todo ato de
interpretação. “Não há sentido imanente à lei, pois isto seria admitir um sentido-em-
si-mesmo, dos textos jurídicos.”438
O sentido da norma deverá, a partir desta nova hermenêutica proposta, ser
buscado a partir da sua condição de ser-no-mundo, o sentido atribuído/adjudicado
pelo intérprete a partir de seus pré-juízos.439
Não se pode olvidar as relações do direito do trabalho com outras disciplinas.
Bem destaca Delgado440, que neste período de crise e transição da área
juslaborativa, o reporte permanente à Constituição e princípios do direito
Constitucional, é veio condutor fundamental para o operado do Direito do Trabalho.
As ligações são mais do que óbvias e aqui expostas.
436 PERLINGIERI, 2008, p. 200. 437 STRECK, Lenio Luís. Jurisdição Constitucional e hermenêutica : uma nova crítica ao Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 460. 438 Ibid., p. 461. 439 STRECK, loc.cit. 440 DELGADO, 2004, p. 76.
126
Além disso, outros ramos como o direito penal, direito processual penal,
tributário, previdenciário, internacional tem suas inter-relações com o Direito do
Trabalho.
O Direito do Trabalho, como ramo jurídico especial, porém não singular,
integra-se ao universo jurídico, submetendo-se a vínculos com o núcleo jurídico
principal.
Não há como deixar de lado as intrínsecas co-relações com o Direito
Internacional, não só através da elaboração normativa da OIT mediante Convenções
Internacionais do Trabalho441, mas também as Declarações Internacionais, como a
Declaração Universal dos Direito do Homem, a Carta Social Européia, a Carta
Interamericana de Direitos Sociais, etc.. Todas estas constituem objeto de abertura
internacional do direito do trabalho.442
O direito administrativo também tem suas penetrações no mundo no trabalho.
Vale lembrar que o Ministério do Trabalho e Emprego443 é competente para apreciar
procedimento administrativo de anotação de carteira de trabalho e previdência social
quando a relação de emprego é comprovada de modo incontroverso.
Nas hipóteses em que houver dúvida o Ministério encaminhará o processo à
Justiça do Trabalho.
Além disso, após alterações feitas na Constituição (inciso VII do artigo 114)
pela Emenda de número 45, compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as
ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos
441 DISPENSA ABUSIVA – EMPREGADO DOENTE EM GOZO DE LICENÇA MÉDICA, DETENTOR DA ESTABILIDADE DECORRENTE DE ACIDENTE DO TRABALHO – Se a empresa pretendeu se livrar de empregado doente em pleno gozo de licença médica, detentor de estabilidade decorrente de acidente do trabalho (art. 118, da Lei nº 8.213/91), a dispensa se revela abusiva e discriminatória, o que é suficiente para, à luz do disposto no art. 187 do Código Civil e das normas constantes da Convenção 111 da OIT, combinadas com o art. 118 da Lei nº 8.213/91, anular-se o ato empresarial com a determinação de reintegração do prestador ao emprego e condenação da empregadora ao pagamento dos salários do período de afastamento. (MATO GROSSO DO SUL (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (24ª Região). TRT-MS. Proc. 00461/2008-001-24-00. 2. Turma. Dispensa Abusiva – empregado doente em gozo de licença médica, detentor da estabilidade decorrente de acidente do trabalho. Rel. Des. Francisco das C. Lima Filho. Lex: Jurisprudência TRT/MS. DO 02 fev.2009.) 442 NASCIMENTO, 2009, p. 206. 443 A Administração Pública tem como atribuição central organizar, manter e executar a inspeção do trabalho (CF, art. 21, XXIV), organizar o sistema nacional de empregos e condições para o exercício das profissões (CF, art. 22, XVI) e desenvolver, por meio do Ministério do Trabalho e Emprego, inúmeras atribuições relacionadas com o trabalho nas áreas da migração da mão-de-obra, treinamento, colocação de desempregados e mediação de conflitos, sendo atualmente vedada a sua intervenção ou interferência na organização sindical (CF, art. 8º., I).
127
órgãos de fiscalização das relações de trabalho.444
Isto atrai para a aplicação no Direito do Trabalho de uma infinidade de
normativos de ordem fiscal.
Sustenta-se a aplicação por analogia do Processo Penal quando da inquirição
das testemunhas, e deste e do Direito Penal quando do julgamento de Habeas
Corpus em decorrência de prisão civil do depositário infiel julgados por Tribunais
Trabalhistas.445
444 AGRAVO DE PETIÇÃO – EXECUÇÃO DE PENALIDADE ADMINISTRATIVA NA FALÊNCIA – EXIGIBILIDADE DO TÍTULO – Em se tratando de execução fiscal decorrente de penalidade administrativa, contra massa falida, a competência é da Justiça do Trabalho, nos termos dos artigos 114, VII, da CF, e 5º da lei 6.830/1980. Porém, como não se pode exigir na falência penas pecuniárias por infração das leis administrativas (art. 23, III, do DL 7.661/45, norma vigente quando da falência e da lavratura da certidão de dívida ativa; Súmula 565/STF), o título não é exigível- ART. 586, CPC. E, à míngua da exigibilidade do título, a parte carece de interesse de agir, devendo ser extinta a execução. (GOIÁS (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (18ª Região). TRT/GO. AP 00741-2007-054-18-00-9. Agravo de petição. Execução de penalidade administrativa na falência. Exigibilidade do título. Rel. Des. Platon Teixeira de Azevedo Filho. Lex: Jurisprudência TRT/GO. J. 14 maio 2008.) 445 HABEAS CORPUS PREVENTIVO – DEPOSITÁRIO INFIEL – A prisão civil do depositário infiel, por tempo não superior a um ano, está autorizada excepcionalmente no artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição da República, com vista a compelir o depositário infiel a cumprir sua obrigação, encontrando previsão também no Código Civil Brasileiro, em seu artigo 1.287, vez que a jurisprudência do Excelso Supremo Tribunal Federal vem afirmando que a ratificação pelo Brasil, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e do Pacto de São José da Costa Rica, não revogou a possibilidade de se decretar a prisão civil do depositário infiel. Frise-se que a possibilidade de compensação entre as dívidas, requerida pelo Impetrante na petição inicial, não pode ser considerada, vez que se trata de hipótese vedada de forma expressa pelos artigos 1.015, inciso II e 1273, do Código Civil Brasileiro. O depositário é o credor dos bens depositados e, em tal condição, conforme manifesta o Ministério Público do Trabalho "faz pressupor, de acordo com os cânones da razoabilidade, que ele é o maior interessado na conservação dos bens depositados, eis que os mesmos visam garantir o seu próprio crédito. Tal interesse, aliás, é reforçado pelo conteúdo da petição já mencionada, na qual o executado se queixa do 'zelo' do ora paciente". Desta forma, verificada a hipótese de caso fortuito ou força maior (artigo 1.277, do Código Civil Brasileiro), tem-se que o habeas corpus deverá ser concedido, em face da inexistência de justa causa, a teor do artigo 648, inciso I. do Código de Processo Penal. (MATO GROSSO (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (23ª Região).TRT/MT. HC 00439.2002.000.23.00-7–(3141/2002). Habeas Corpus preventivo. Depositário infiel. Cuiabá. TP Rel. Juiz Bruno Weiler. Lex : Jurisprudência TRT/MT. DJMT 28 jan. 2003. p. 22)
128
Do próprio Direito do Consumidor vem outras situações que permeiam a
realidade trabalhista como, por exemplo, no estabelecimento da competência para
julgamento de ação proposta por associação ou sindicato profissional visando à
tutela de interesses individuais homogêneos.446 Neste caso atrai-se a aplicação
analógica do artigo 93 do CDC.447
Ainda, em casos de ações coletivas tem-se a aplicação supletiva do artigo 81,
III do mesmo código.448
Nos casos de anúncios ou ofertas de emprego, as mesmas passam a vincular
a empresa que oferece a oportunidade com o texto da oferta, que passa a ser
obrigado a cumpri-la, através de aplicação analógica do artigo 30 do CDC.449
Desta feita, não há como entender a melhor interpretação da expressão
direito comum como sendo restrita ao direito civil ou ao direito comercial tão
somente, sob o fundamento que destes surgiu o ramo especial do trabalho.
Desta feita concluímos, na linha de Magano e Carrion, por direito comum
qualquer ramo do direito, inclusive os especiais, devendo o intérprete ao fazer uso
da analogia como método de integração e preenchimento de lacunas no Direito do
Trabalho procurar em qualquer um destes ramos aquele mais adequado.
446 COMPETÊNCIA EM RAZÃO DO LUGAR – ASSOCIAÇÃO PROFISSIONAL – DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS – Associação profissional que, mediante a autorização dos representados, propôs ação trabalhista visando à tutela de interesses individuais homogêneos. Aplicação analógica do art. 93, do Código de Defesa do Consumidor, bem como da OJSBDI 2 nº 130. (DISTRITO FEDERAL (Estado). Tribunal Regional do Trabalho. Brasília (10ª Região. TRT/DF. RO 00499-2007-009-10-00-2. 2. Turma. Competência em razão do lugar. Associação Profissional. Direitos individuais homogêneos. Rel. Juiz João Amílcar. Lex: Jurisprudência TRT/DF. J. 28 jan. 2009) 447 Art. 93. Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local: I - no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local; II - no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente. 448 Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em Juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica-base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. 449 Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.
129
4.2 O ENTROSAMENTO COM O MICRO-COSMO CONSUMERISTA
Conforme destacamos acima, de acordo com a lição de Carlos Roberto
Gonçalves, para emprego da analogia requer-se a presença de três requisitos: a)
existência de dispositivo legal prevendo e disciplinando a hipótese do caso concreto;
b) semelhança entre a relação não contemplada e outra regulada na lei; c)
identidade de fundamentos lógicos e jurídicos no ponto comum das situações.
Pois bem, identificamos primeiramente no capítulo 1 desta dissertação os
dispositivos legais existentes prevendo e disciplinando a hipótese do caso concreto.
Partindo então da idéia de temos liberdade para identificá-lo em qualquer ramo do
direito, inclusive os especiais, faz-se necessário apontar a identidade de
fundamentos lógicos e jurídicos no ponto comum das situações contempladas.
Lembramos a importante lição de Perlingieri450 neste sentido: “O juiz aplica a
norma mais adequada ao caso concreto: deve realizar a busca normativa a ser
aplicada na totalidade do ordenamento jurídico.”
Baseado na lição de Túlio Ascareli, proclama que a lacuna, se houver, é do
sistema inteiro, e não dos possíveis níveis de normas que a compõe.451
A teoria da interpretação, mais do que técnica voltada a esclarecer os
significados das normas individualizadas, assume, num ordenamento aberto, a
função delicada de individualizar a norma a ser aplicada ao caso concreto,
combinando-a e coligando-a a outras disposições de mesmo nível para conseguir
extrair do casos legislativo a melhor solução.452
Lembramos que, a aplicação dos cânones da razoabilidade e equidade das
normas, por vezes representam a própria razão justificadora da norma escrita,
especialmente se lida à luz da Constituição, como aqui se propõe.
Dallegrave Neto453 classifica a teoria da disregard quanto aos seus
fundamentos em três correntes doutrinárias:
450 PERLINGIERI, 2008. p. 221. 451 Ibid. p. 221-222. 452 Ibid. p. 222. 453 DALLEGRAVE NETTO, José Affonso. A execução dos bens dos sócios em face da disregard doctrine . Disponível em: <http://www.apej.com.br/artigos_doutrina_jadn_06.asp>. Acesso em: 23 jan. 2008.
130
A primeira, encabeçada pelo introdutor da doutrina no Brasil, Rubens
Requião, é a teoria denominada subjetiva. Esta teoria tem inspiração norte-
americana e limita a teoria à comprovação do animus fraudulento ou de abuso de
direito.
Dallegrave Netto454 destaca, porém, que o conceito norte-americano de
fraude é muito mais amplo que o nosso e que o próprio Requião denota que os
tribunais norte-americanos alargaram ainda mais o conceito.
A segunda corrente é a finalística e aplica a teoria do disregard com o objetivo
exclusivo de tutelar o crédito de terceiro, sobretudo o privilegiado.
A fraude e o abuso de direito não carecem de prova por parte do credor, mas
se presumem cada vez que a autonomia patrimonial da sociedade represente
obstáculo ao ressarcimento de prejuízos ou à percepção de crédito de terceiros.455
Tal teoria é fundamento do criticado § 5o. do art. 28 do Código de Defesa do
Consumidor.456
A terceira teoria é a objetivista que propugna pela ampla aplicação do
disregard não em proveito exclusivo do credor, mas em qualquer hipótese de
separação patrimonial obste algum interesse pretensamente tutelado pelo direito.457
Ante a omissão da legislação específica, a Justiça do Trabalho tem se
identificado primordialmente com a segunda corrente, mormente após edição do
Código de Defesa do Consumidor, cujos fundamentos se harmonizam com o ramo
laboral.
Ressel e Santos458 enumeram alguns princípios comuns aos dois ramos do
direito:
454 DALLEGRAVE NETTO, 2008. 455 DALLEGRAVE NETTO, loc. cit. 456 Artigo 28. O Juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houve abuso de direito, excesso de poder, ingração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocada por má administração. Par. 1º. Vetado Par. 2º. As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código. Par. 3º. As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código. Par. 4º. As sociedades coligadas só responderão por culpa. Par. 5º. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. 457 DALLEGRAVE NETTO, 2008.
131
a) responsabilidade objetiva (art. 12/14 e 23/25 do CDC), assimilada da teoria
do risco da atividade contida no art. 2o. da CLT;
b) interpretação favorável ao consumidor (art. 47), decorrente do princípio da
norma mais favorável, amplamente aplicada no Direito do Trabalho;
cláusulas nulas porque prejudiciais (art. 51 do CDC e 468 da CLT);
c) inversão do ônus da prova (art. 6o,, VIII e 38, do CDC) aplicável ao
processo trabalhista, vg: na exigência de recibos de pagamento e cartões
ponto, no princípio da continuidade do contrato e da irrenunciabilidade dos
direitos trabalhistas;
d) dispensa da antecipação de custas processuais;
e) possibilidade de substituição processual;
f) desconsideração da personalidade jurídica (art. 28, CDC), adotado pela
doutrina e jurisprudência trabalhistas.
Bem ressalta Márcio André Medeiros Moraes459 que, assim como no direito do
trabalho, estamos frente a um novo microssistema, com regras e princípios próprios,
que conflitam muitas vezes com os tradicionais.
Da mesma forma que no Direito do Trabalho, o objetivo é equilibrar as
relações, e para tanto, respeitando-se o princípio da isonomia, tratar desigualmente
os desiguais.
Busca-se total ressarcimento da parte hipossuficiente, exigindo maior
responsabilidade da parte adversa.460
O Código de Defesa do Consumidor e a Consolidação das Leis do Trabalho
têm base de princípio a proteção da parte mais fraca da relação, motivo pelo qual
em ambos o legislador lança mão de traçar normas visando o re-equilíbrio da
relação.
Nahas461 lembra que os princípios protetivos dos dois institutos acabam por
ser idênticos, guardadas as diferenças relacionadas ao objeto da relação jurídica,
uma de consumo, outra de trabalho. Ambas, tidas pelo legislador constitucional
458 RESSEL, Sandra Maria da Costa; SANTOS, José Aparecido dos. Ações Coletivas e o código de defesa do consumidor. In: DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Direito do Trabalho : São Paulo: LTr, 1997. p. 615. 459 MORAES MAM, 2002. p. 128. 460 MORAES MAM, loc. cit. 461 NAHAS, 2007, p.106.
132
como necessárias ao desenvolvimento da ordem econômica (art. 170 da
Constituição Federal).
De se notar, ainda, que ambos fazem parte do direito privado tendo-se
desmembrado do Código Civil para ganhar autonomia. Portanto, nada mais certo
que se entrosem.
Tanto a CLT quanto o Código de Defesa do Consumidor trazem no seu bojo
hipóteses tratadas pela lei ambiental, outras mais que podemos considerar
abrangidas pelo princípio protetivo. “Dispensa-se, assim, o recurso a ordenamentos
que partem do fato de serem as partes iguais no momento da negociação, no seu
curso ou após o seu encerramento.”462
Também, característica que muito tem aproximado os dois ramos do direito é
a defesa dos direitos nas fases pré e pós contratual. Inclusive com a utilização por
meio da analogia de preceito consumerista como aspecto normativo a calçar um
direito trabalhista.
O direito do trabalho guarda parentesco com o direito do consumidor também
por estar ligado à luta, a grandes movimentos sociais e populares, sendo
conseqüência direta destes.
Grandes movimentos consumeristas e organizações sindicais se formaram
por uma mesma razão, ou seja, reação contra o desequilíbrio. Os fatos têm
confirmado esta proximidade, inclusive com o exemplo de grandes boicotes ou quais
efetuaram-se, destaca Márcio André Medeiros Moraes463, em paralelismo com as
greves dos trabalhadores.
A sensibilidade dos juízes trabalhistas, portanto, é fundamental para, fazendo
uso da equidade, dar efetividade à justiça, buscando os meios cabíveis para
atender, de forma ampla ao hipossuficiente lesado no seu direito.464
O fato é que, o artigo 28 do Código de defesa do Consumidor e,
especialmente o seu parágrafo 5º., origem de tantas críticas pela doutrina, veio em
boa hora para o resplendor deste novo direito, pois busca harmonizar as relações de
consumo e, da mesma forma que o direito do trabalho, respeitar o princípio da
isonomia reconhecendo a vulnerabilidade de uma das partes.465
462 NAHAS, 2007, p.107. 463 MORAES MAM, 2002, p. 183. 464 Ibid., p. 142. 465 Ibid., p. 178.
133
Neste parágrafo 5º. está expresso pressuposto que encontra similaridade no
direito do trabalho, pressuposto este apontado por Marçal Justen Filho como sendo
a verificação do sacrifício de faculdade assegurada ao trabalhador.466
Ressalta Justen Filho, ainda, que não é que se ignore o conceito de ‘pessoa
jurídica’ (por ele próprio em outra passagem já relativizado) no direito do trabalho. O
que se conclui é que basta a possibilidade do sacrifício de uma faculdade
asseguradora ao trabalhador para que se produza a desconsideração.467
Ora, a pessoa jurídica é absolutamente respeitada no direito do trabalho e a
personificação absolutamente eficaz, desde que o trabalhador perceba os frutos que
permitiram a efetivação de valores constitucionais, como se verá mais a frente.
Assim, enquanto em outros ramos, apenas determinados abusos é que levam
à desconsideração, no direito do trabalho (e no direito do consumidor) qualquer
abuso pode conduzir à disregard.
Ainda que tenha origens no direito societário, não se pode deixar de lado que
os valores e bens tutelados são diversos, protegidos de forma diversa, em situações
de hipossuficiência de uma das partes para com a outra, característica principal de
ambos os ramos.
Lembra bem Márcio André Medeiros Moraes,468 ao analisar a teoria da
desconsideração sob a ótica do direito do consumidor (a qual optamos neste
trabalho) que devemos nos desligar de conceitos tradicionais que não se encaixam
dentro dos princípios que estão embutidos na lógica Consumerista (e aqui, da
mesma forma, dentro da lógica do Direito do Trabalho).
Devemos, portanto, nos apegar aos princípios festejados dentro de cada
realidade para entendermos a função da disregard em cada um dos contextos sob a
luz constitucional manifestada pela unicidade do ordenamento.469
466 JUSTEN FILHO, 1987, p. 106. 467 JUSTEN FILHO, loc. cit. 468 MORAES MAM, 2002, p. 128. 469 “Se então os modelos de validade dos atos devem se confrontar com o modelo constitucional de legitimidade, este primado não pode deixar de se traduzir também como centralidade” (PERLINGIERI, 2008, p. 207)
134
4.3 O JURISTA E A ESCOLHA LEGISLATIVA. O RESPEITO AO TRABALHADOR E
VALORES CONSTITUCIONAIS
O brilhante Perlingieri470 lembra que “o jurista é aquele que interpreta,
individua e aplica as leis: no momento em que as desaplica, exerce uma atividade as
vezes, historicamente louvável, mas diversa daquela de jurista.”
O comentário é feito parar ressaltar a importância do respeito à pessoa
humana, mesmo quando isso leva a considerar a não sujeição de alguns juristas ao
poder Legislativo quando este não atendeu esta necessidade.
Propõe, portanto, uma releitura do Código Civil sob a luz da opção
“ideológico-jurídica” constitucional, na qual “a produção encontra limites insuperáveis
no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana”.471
A Constituição ocupa lugar de supremacia entre as normas pátrias e, em
razão disso, a obrigação, e não simplesmente a livre escolha, imposta aos juristas
de se considerar a sua prioridade hierárquica quando da aplicação das normas.472
Perlingieri473 ensina ainda que a solução para cada controvérsia, não pode
ser encontrada simplesmente através da análise pura e simples do artigo de lei que
parece contê-la, mas, “antes à luz do inteiro ordenamento jurídico, e, em particular,
de seus princípios fundamentais, considerados como opções de base o que
caracterizam.”
O papel unificador do sistema passa a ser do texto constitucional orientando a
detectar e irradiar seus princípios nas legislações especiais reconduzindo-as a
unidade perante uma cobertura constitucional.
A Constituição de 1988 exerce papel importante, posto que após 30 anos de
Constituições promulgadas sob a chancela do regime militar, temos uma linha
condutora feita sob regime democrático, cuja validade é inquestionável.
Existe a necessidade premente de que o conteúdo da norma atenda a valores
presentes e organizados na própria Constituição. As normais constitucionais, que
ditam princípios de relevância geral são, segundo ensina Perlingieri, de direito
470 PERLINGIERI, 1999, p. 3 471 Ibid., p. 4. 472 Ibid., p. 5 473 PERLINGIERI, loc. cit.
135
substancial e não meramente interpretativas. Completa o raciocínio defendendo que
“o recurso a elas, mesmo em sede de interpretação, justifica-se, do mesmo modo
que qualquer outra norma, como expressão de um valor do qual a própria
interpretação não pode subtrair-se.”474
Da mesma forma e neste mesmo sentido deve atuar o intérprete da norma
quando faz uso de métodos de integração da norma jurídica. Os princípios
constitucionais são, portanto, os fundamentos de um sistema concebido
hierarquicamente.475
No caso em estudo, a aplicação analógica da norma, sem qualquer sombra
de dúvida e seguindo a orientação exposta acima, deve pautar-se pelo respeito a
valores de ordem Constitucional e em obediência aos princípios da Carta Magna.
Conforme bem defende Perligieri476, a Constituição não é ponto de chegada
de nossa sociedade, “mas um modelo ao qual é obrigatório se inspirar para
compreender as escolhas de fundo que o legislador é obrigado a respeitar, para que
não sobrevenha um processo de revisão constitucional [...]” (grifo nosso)
Vale aqui lembrar alguns traços acerca dos cânones de hermenêutica
constitucional que assim são descritos por Paula477:
O primeiro cânone é o Princípio da Supremacia Constitucional, segundo o
qual a Constituição representa a norma ápice e suprema do próprio ordenamento
jurídico, exigindo-se, portanto, a sua preliminar observância quando da análise de
qualquer norma ou do próprio sistema jurídico.
Ato contínuo, temos o Princípio da Unidade da Constituição que traduz a
interpretação sistemática da Constituição com a do sistema jurídico, vez que tal
princípio requisita do intérprete constitucional a compreensão de que a constituição
não pode ser interpretada como normas isoladas, mas como sistema de regras.478
Intimamente ligado está outro cânone, aquele que talvez mais justifique o
presente trabalho, o Princípio da Máxima Efetividade da Constituição, em que o
operador jurídico é chamado a concretizar os preceitos e valores constitucionais,
474 PERLINGIERI, 1999, p. 11. 475 Id., 2008. p. 205. 476 Ibid., p. 191. 477 PAULA, Alexandre Sturion. Hermenêutica Constitucional: Instrumento de efetivação dos direitos fundamentais. In: PAULA, Alexandre Sturion; et. al. Ensaios Constitucionais de direitos fundamentais . Campinas: Servanda Editora, 2006. p. 61 478 Ibid., p. 62.
136
atribuindo com esta máxima efetividade da Constituição a sua própria força
normativa.479
Medeiros explica que a supremacia da Constituição, sua força normativa e
seu papel de topos conformador da atividade hermenêutica pode ser entendida sob
quatro diferentes funções:
1º. Uma função de apoio ou de confirmação de um sentida da norma já sugerido pelos restantes elementos de interpretação; 2º. Uma função de escolha entre várias soluções que não se mostram incompatíveis com a letra da lei, servindo para excluir um sentido possível e para optar por outro igualmente compatível com a letra da lei; 3º. Uma função de correção dos sentidos literais possíveis; 4º. Uma função de revisão da lei através da atribuição da Constituição de um peso decisivo superior aos demais elementos tradicionais de interpretação.480
A interpretação conforme a Constituição na Alemanha alcança o status de
princípio constitucional (verfassungskonforme Auslegung) segundo o qual uma lei
não deve ser declarada nula quando pode ser interpretada em consonância com a
Constituição.481
Streck482 vai mais além. Segundo ensina, a interpretação conforme a
Constituição é mais do que um princípio, “é um princípio imanente da Constituição,
até porque não há nada mais imanente a uma Constituição do que a obrigação de
que todos os textos normativos do sistema sejam interpretados de acordo com ela”.
A sonegação de sua aplicação pelos juízes portanto, implicaria violação da
própria Constituição.
A grande produção jurisprudencial de STF em matéria de jurisdição
constitucional à luz da Constituição de 1988 demonstra avanço significativo do
sentimento constitucional no país. Como ilustração do fato, em pesquisa realizada
em maio de 2.000, o Supremo Tribunal Federal havia julgado, desde a promulgação
da Carta Constitucional (12 anos, portanto) 2.212 ações diretas de
inconstitucionalidade, enquanto que nos 22 anos anteriores, entre 1966 e 1987
julgara apenas 726 processos de igual natureza.483
479 Paula, 2006, p. 63 480 MEDEIROS, Ruy. A decisão de inconstitucionalidade apud STRECK, 2002, p. 445. 481 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 474. 482 STRECK, 2002, p. 443 483 BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional : Legitimidade democrática e instrumentos de realização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 132-133.
137
Aliás, ressalte-se que a interpretação constitucional não é prerrogativa
exclusiva dos juízes.
Ao propor o que chamou de sociedade aberta de intérpretes da Constituição,
Häberle484 propugna que “todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma
e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete
desta norma”. Com propriedade ressalta que, o destinatário da norma é participante
ativo do processo hermenêutico.
A necessidade da interpretação do instituto da desconsideração, deve se dar
de forma diferenciada de outros campos do direito que o tratam sob o prisma
econômico, financeiro, pelo simples fato que o bem tutelado não é mais crédito
bancário, mas sim a sua dignidade como pessoa além de outros valores
constitucionais intimamente ligados a subsistência do trabalhador.
Entendem alguns juristas que a disregard se trata de instituto eminentemente
de direito societário, o qual não deva ser permeado pelas características do crédito
trabalhista (alimentar) devendo ser aplicado da mesma forma, portanto.
Há a necessidade de remeter o instituto ao caso em concreto, aonde o bem a
ser tutelado é, como visto, a dignidade da pessoa humana ligada ao princípio da
intangibilidade do salário.
Com efeito, o intérprete ou aplicador da lei, a partir da situação hermenêutica
encontrada deve, portanto, a partir de seus pré-juízos, conformar o sentido do texto
a partir do confronto com o texto constitucional.485
Neste sentido, como bem lembra Streck486, a Constituição não pode ser
entendida como um simples topos conformador de uma atividade subsuntiva,
atuando como repertório de conceitos abstratos à espera de uma acoplagem
proveniente da infraconstitucionalidade. Isto seria resvalar em direção à metafísica
separando o ser do entre “Constituição” do ser dos entes “textos infraconstitucionais”
Perlingieri487 ensina que posições de liberdade em matéria não patrimonial
ocupam uma posição mais elevada na hierarquia constitucional o que os atos de
484 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A Sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997. p. 15. 485 STRECK, 2002, p. 455. 486 Ibid.. p. 446. 487 PERLINGIERI, 1999, p. 19.
138
negócio devem ser dirigidos à realização de interesses e de funções que merecem
tutela e que são socialmente úteis.
O Direito Civil é muitas vezes criticado por manter distância do mundo real.
Fachin488 critica o modo pelo qual o Direito Civil se fez sobre um conteúdo e
apreendeu categorias abstratas, imprimindo forma jurídica e desenho normativo às
relações entre pessoas, fazendo uma censura a apreensão jurídica do que chamou
de “sujeito insular, abstrato, atemporal e despido de historicidade” sem qualquer
conexão direta e imediata com a realidade histórica.
Esta desconexão criticada por Fachin, revela a necessidade do Jurista, ao
fazer uso da norma, interpretá-la sempre levando-se em conta situações fáticas, que
envolvem pessoas reais em situações fáticas que podem colocar em jogo valores e
direitos constitucionais dos quais é titular.
Assim, é preciso ter consciência e escolher, pelo menos como tendência, a
contínua adequação da realidade social e econômico-política à realidade jurídica e
vice-versa.489
Assim, não se pode interpretar uma norma como se por trás de uma situação
fática não houvesse um trabalhador que retira dos seus ganhos do trabalho e
daquilo que recebe por ele.
Ressalta Fachin490, com absoluta propriedade, que “a força construtiva dos
fatos, somada à eficácia geradora dos comportamentos, são situações suficientes
para impugnar a dependência dos direitos subjetivos ao Direito objetivo”
Ora, nesta mesma linha lembra Perlingieri491 que o trabalho subordinado é
hoje ligado às exigências pessoais e familiares do trabalhador. Lembra também que
a jurisprudência dos valores tem necessidade afinal as técnicas de prevenção do
ano, da restituição in integro e ter à disposição uma legislação de prevenção social.
A norma constitucional que protege a pessoa humana é princípio geral que permeia
todo o mundo jurídico.
Assim deve levar em conta que a proteção aos meios de subsistência do
trabalhador que contam inclusive com impenhorabilidade protegida legalmente.
Segundo o mestre italiano ainda, o respeito à dignidade da vida de cada homem
488 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil . Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 80-82. 489 PERLINGIERI, 1999. p. 31 490 FACHIN, op. cit., p. 83. 491 PERLINGIERI, op. cit.. p. 32
139
deve ser visto em grau de superioridade em relação ao outros valores de razão
política da organização da vida em comum.
Não se pode, como bem observou Fachin simplesmente se excluir do “real
impresso a vivência efetiva das pessoas e seus vínculos”.
A leitura do instituto deve levar em conta as necessidades de quem é o titular
do crédito que retira deste a sua subsistência.
Aqui, analogicamente, pode-se citar Perlingieri492 que, ao comentar o Código
Italiano de 1942, que colocava no centro a atenção à empresa, a atividade produtiva,
lembra que a Constituição por sua vez, assumiu uma posição diversa, pugnando
pela releitura do código à luz da opção que chamou de “lógico-jurídica”
constitucional, na qual a produção encontra limites insuperáveis no respeito aos
direitos fundamentais da pessoa humana.
A utilização de modelos, que deixam de lado a situação fática que nele vem a
se enquadrar recai no que inteligentemente ensina “como se a resposta sempre
estivesse formulada antes da elaboração da pergunta”.493
Faz-se necessário inclusive visualizar as normas no contexto histórico em que
são criadas, pois este é constantemente mutável, e os fatos, por sua força, acabam
se impondo frente à norma.
Não se pode permitir, que em situações fáticas caracterizadas pela sua
subjetividade a norma se afaste do caso em concreto, impedindo ou simplesmente
ignorando fatos. Faz-se necessário se pensar o sistema jurídico como um sistema
que se reconstrói cotidianamente.
Deve-se buscar uma harmonização com princípios fundamentais e em
especial, às necessidades existenciais da pessoa, devendo-se levar em
consideração que as expressões de liberdade em matéria não-patrimonial ocupam
posição mais elevada na hierarquia constitucional.
A interpretação de acordo com a realidade fática é uma realidade premente
pois conforme destaca Streck:494
Esta astúcia da razão dogmática põe-se, assim, a serviço do enfraquecimento das tensões sociais [...].E o faz, ao torná-los, conflitos
492 PERLINGIERI, 1999, p. 34 493 FACHIN, 2000, p. 83. 494 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise : uma exploração hermenêutica da construção do direito. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 74.
140
abstratos, isto é, definidos em termos jurídicos e em termo juridicamente interpretáveis e decidíveis.
Propõe-se, portanto uma interpretação da norma, através do respeito a
valores constitucionais, a características do crédito alimentar, princípios do Direito do
Trabalho, tudo de acordo com a realidade fática encontrada.
4.4 A APLICAÇÃO DA DISREGARD DOCTRINE E AS PECULIARIDADES DO
CRÉDITO TRABALHISTA: A EFETIVAÇÃO DE PRECEITOS E VALORES
CONSTITUCIONAIS
Quando se fala da desconsideração da personalidade jurídica no direito do
trabalho em ações decorrentes de relação de trabalho e/ou emprego, deve se ter em
mente que tal fato processual decorreu, via de regra, de uma mal remunerada
relação que desemboca num processo judicial que tem seu termo numa mal
sucedida execução na qual o trabalhador busca verba de caráter salarial não paga
na época própria.
Toda essa relação jurídica de trabalho e de emprego (e posteriormente
processual) é regida por um “conjunto de princípios e regras jurídicas aplicáveis às
relações individuais e coletivas que nascem entre empregadores privados – ou
equiparados – e os que trabalham sob sua direção e de ambos com o Estado, por
ocasião do trabalho ou eventualmente fora dele”495.
A CLT, conforme já dito anteriormente, pertence ao ordenamento jurídico
brasileiro, e, por outro lado, é um microssistema, pois forma um todo significativo e
autônomo, capaz de expressar princípios próprios e gerais.496
Apenas o indivíduo elege os fins, e, desse modo, exercita o poder e assume a
responsabilidade da iniciativa.
O direito, por sua vez, não elege fins nem os determina ou sugere aos
indivíduos, mas apenas deve proporcionar os instrumentos necessários para que
cada um possa conseguir os objetivos desejados.
495 Conceito de Direito do Trabalho por GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Élson. Curso de direito do trabalho . São Paulo: Saraiva, 1979. p. 6. 496 BARACAT, 2003, p. 57.
141
Justen Filho497 muito bem observa que, em relação a interpretação da
disregard no campo do Direito do Trabalho em que é no sentido de que “o direito
privado, especialmente o comercial, regula a conduta intersubjetiva a partir de um
enfoque do proprietário, enquanto o direito do trabalho fá-lo a partir de um ângulo do
empregado.”
Desta forma, ao se analisar todo e qualquer aspecto nas relações de emprego
e de trabalho ou ainda nos processos judiciais decorrentes destas relações há que
se considerar todo o arcabouço normativo e principiológico que estão inseridas e a
sua dependência e interdependência com os demais ramos do direito.
O Direito do Trabalho, portanto, rege-se por princípios próprios, além
daqueles comuns a outros ramos do direito.
Devemos observar que o fundamento da obrigação trabalhista é, portanto,
diferente das relações econômicas, negociais, uma vez que, conforme observa Saad
Diniz498, o vínculo entre empregado e empregador é de consagração de
subordinação de uma parte em relação à outra, em uma prestação de serviços
habitual e remunerada.
Reale499 destaca que as pessoas jurídicas, como entidades histórico-culturais
que são, desde o seu nascimento até a sua extinção, vivem no Direito e em função
dos fins que este protege.
O conceito de pessoa jurídica no entanto, não é absoluto, como bem lembra
Justen Filho: “há que se ter em vista que ‘pessoa jurídica’ nem é conceito absoluto
nem é conceito unitário. Igualmente, ‘desconsideração da personalidade jurídica’
não é conceito absoluto nem unitário”.500
Completa o autor que o passo indispensável para a construção da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica é, portanto, a assunção da relatividade e
da multiplicidade.501
Assim, “por decorrência não existe pressuposto da desconsideração, mas há
pressupostos da desconsideração, variáveis na medida em que variam as ‘pessoas
jurídicas’ de que se cogita os ramos do direito, os interesses tutelados etc.”502
497 JUSTEN FILHO, 1987, p. 104. 498 DINIZ, Gustavo Saad. Responsabilidade pessoal do administrador de socied ade limitada no âmbito trabalhista: restrição de critérios pelo art igo 50 do CC/2002 . [s.i]:Revista Síntese Trabalhista, n. 169, 2003. p. 25. 499 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito . 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 224. 500 JUSTEN FILHO, 1987, p. 95. 501 JUSTEN FILHO, loc. cit.
142
A teoria da desconsideração deve ser analisada à luz do ramo do direito que
está a lhe empregar, pois sequer podemos dizer que o conceito de pessoa jurídica é
absoluto.503
Coutinho lembra que não há resposta jurídica factível para empresas virtuais
no e-commerce, empresas com atividade econômica e sem empregados, empresas
sem capital e só com trabalho autônomo, terceirizado ou cooperado, por exemplo.504
Esta é a razão pela qual a técnica jurídica abre exceções ao princípio.
Baseado nessa idéia, deve-se portanto, respeitar os fins colimados num processo
judicial que busca reparação de uma situação de prejuízo do trabalhador.
O alicerce de sustentação dos adeptos ao artigo 50, do Código Civil, como
fonte normativa única de aplicação da regra da desconsideração da personalidade
jurídica, encontra ressonância mais em aspectos econômicos do que em aspectos
principiológicos.
Embora inegável a consistência jurídica daquela tese, não se pode olvidar
que o Direito do Trabalho se manteve vivo exatamente em razão do conflito
existente entre “capital e trabalho”.
O Direito do Trabalho, de característica eminentemente protecionista, é
resultado de conflitos sociais, de manifestações populares contra os abusos e
descasos dos patrões, para os quais o proletariado prestava serviços em jornadas
de trabalho de 14 a 16 horas seguidas, sem descanso, sem oportunidades de
desenvolvimento intelectual, em um meio ambiente do trabalho insalubre e indigno,
ainda com a percepção de um baixo salário.
Em represália a essa situação, como uma reação ao menoscabo do Estado
Liberal, abrolha o Direito do Trabalho, e, lado a lado, o princípio tuitivo que lhe é
base vital de sua sustentação existencial.
Nesta tessitura, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de
raiz solidarista, propugna pelo “valor social do trabalho” como um dos princípios
fundamentais ao lado da “dignidade da pessoa humana” (artigo 1°, incisos III e IV).
No Direito do Trabalho, é impossível desvincular o trabalhador do princípio da
dignidade da pessoa humana.
502 JUSTEN FILHO, 1987, p. 95. 503 Ibid. p. 30-35. 504 COUTINHO, 2001, p 226-227.
143
Outrossim, há de se destacar os novos estudos dos movimentos jurídicos em
defesa do existencialismo, decorrente da “despatrimonialização”, ou também
chamado de “constitucionalização” do direito privado, conexionado ao princípio da
dignidade da pessoa humana.
Para Perlingieri505, deve ocorrer uma passagem da jurisprudência civil
baseada nos interesses patrimoniais para uma mais atenta aos valores existenciais.
Segundo ele, com este termo, individua-se uma tendência que chama de normativa-
cultural, evidenciando que no ordenamento se operou uma opção entre o
personalismo (caracterizado pela superação do individualismo) e o patrimonialismo
(superação da patrimonialidade fim a si mesma, do produtismo, antes, e do
consumismo, depois, como valores).
Nessa quadra, é pertinente relembrar a já citada lição de Maria Celina Bodin
de Moraes, ao parafrasear Kant, atesta existirem no mundo duas categorias de
valores: o preço (preis) e a dignidade (Würden).
As coisas têm preço; as pessoas, dignidade, lembramos.
Daí a exigência de jamais transformar o homem em meio para alcançar
quaisquer fins.
Em conseqüência, a legislação elaborada pela razão prática, a vigorar no
mundo social, deve levar em conta, como sua finalidade máxima, a realização de
valor intrínseco da dignidade humana.506
Por isso, é mister dar tratamento adequado aos instrumentos de efetivação
dos direitos que poderão realmente garantir a dignidade da pessoa, assim
considerada a preocupação sobre a pessoa humana (valor existencial - “ser”) e não
sobre o patrimônio (valor monetário - ”ter”), como era propugnado pelos códigos
oitocentistas (liberal-individualista).
Considerando que, na quase totalidade das ações trabalhistas, o crédito é
alimentar, remete-se imediatamente à proteção de um bem infinitamente maior, que
é a dignidade humana.
Maria Celina Bodin de Moraes507 lembra que o princípio da solidariedade
(através do qual se alcance o objetivo da “igual dignidade social”), inserido no
princípio geral, instituído na Constituição de 1988, caracteriza-se pelo “conjunto de
505 PERLINGIERI, 1999. p. 33. 506 MORAES MCB, 2006, p. 115-116. 507 MORAES MCB, 2003, p. 114.
144
instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos em uma
sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados”
Ao analisar este princípio Baracat508 conclui que “não terá o empregado
existência digna se não auferir os meios necessários à sua subsistência, sendo que
estes meio, em regra, são os únicos que dispõe o trabalhador.”
Com efeito, dá-se a um crédito trabalhista, o caráter de “alimentar”,
vinculando-o à possibilidade de a partir dele prover as necessidades básicas suas e
as de sua família.
A regra da desconsideração da personalidade jurídica, portanto, não pode se
aforar longe do viés axiológico adotado pela Carta Magna de 1988.
O crédito trabalhista, como é cediço, tem caráter alimentar, que garante a
sobrevivência – e a existência – do trabalhador como contraprestação pelo serviço
prestado.
Assim, a força do princípio da proteção do salário, não está somente
estribada no Direito do Trabalho, porém nas relações que mantém como o plano
mais alto do universo jurídico tendo conexão próxima com o princípio da dignidade
da pessoa humana 509.
Lembra Delgado que “princípio jurídico maior e mais abrangente que o
trabalho é importante meio de realização e afirmação do ser humano, sendo o
salário a contrapartida econômica dessa afirmação e realização”510.
Esta proteção ao salário do trabalhador, baseado nesta lógica humanista,
solidarista, dá-se não só de forma direta, mas também na interpretação de outros
institutos, como o da desconsideração da personalidade jurídica que ao ser aplicado
no direito do trabalho, deve levar em consideração sempre a interpretação à luz do
conceito constitucional do princípio da proteção à dignidade humana.
Para Sarlet511, uma das dimensões da dignidade humana é vedar que o ser
humano seja tratado como um objeto.
Continua o raciocínio lembrando que tal princípio está compreendido como
vedação da instrumentalização humana e proíbe a completa e egoísta
disponibilização do outro, a instrumentalização (coisificação) do outro..512
508 BARACAT, 2008, p. 331. 509 DELGADO, 2004, p. 207. 510 Ibid., p. 207. 511SARLET, 2005 apud BARACAT, 2008, p. 330. 512SARLET, loc.cit.
145
Baseado em tal interpretação de Sarlet, Baracat513 conclui pela aplicação
ampla do instituto da desconsideração atestando que “inviabilizar o recebimento do
salário pelo trabalhador que contribui com o seu trabalho para a atividade egoísta do
empresário – protegendo o patrimônio desde – é “coisificar” o trabalhador, tratando-o
como objeto, similar a qualquer outro meio de produção (capital ou matéria-prima), já
que não se permite a retribuição do trabalho prestado.”
Coutinho514 nesta mesma linha, destaca com propriedade que nenhum
objetivo é mais relevante do que a tutela do trabalhador, a dignidade humana e o
valor do trabalho. O direito do trabalho, segundo ela, na sua destinação e
principiologia, obstaculiza o “formalismo” impeditivo de sua concreção.
A pessoa jurídica deve ser interpretada e tomada no aspecto funcional como
meio jurídico fornecido pelo Estado para incentivar as pessoas a desenvolverem a
atividade econômica, fomentar a produção e distribuir riquezas. Desta forma, não há
como instrumento de processo econômico capitalista colidir com interesses
inafastáveis do ser humano.515
A partir do momento que o resultado da utilização da pessoa jurídica é o
sacrifício de interesses valorados como insacrificáveis, indisponíveis, esta deve ser
desconsiderada.516
Só se sacrifica um bem jurídico por outro que possa trazer maiores
benefícios, fundamento este da própria personalização legal.517
Ainda também com base na lição de Marçal Justen Filho, a professora
paranaense destaca que a função da propriedade hoje não se restringe mais ao
aspecto econômico devendo ser levado em conta a sua função social. Para ela, no
específico aspecto do processo do trabalho “deve ser levado em consideração que a
organização do capital e trabalho não é criada tão-só na perspectiva egoísta de seus
empreendedores na busca de lucro” mas também para garantir postos de trabalho
se obrigando com o seu próprio patrimônio pela utilização da mão-de-obra de
outrem.518
513 BARACAT, 2008, p. 330. 514 COUTINHO, 2001. p. 223. 515 Ibid., p. 235. 516 Ibid., p. 238. 517 NAHAS, Thereza Christina. Desconsideração da pessoa jurídica: reflexos civis e empresariais no direito do trabalho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 96. 518 COUTINHO, loc.cit, p. 229.
146
Na conclusão de Justen Filho, portanto, “basta a possibilidade do sacrifício de
uma faculdade asseguradora ao trabalhador para que se produza a
desconsideração”.
Sob outro aspecto, em estudo proficiente, Fabio Konder Comparato e Calixto
Salomão Filho ressaltam a necessidade de análise diferenciada do instituto quando
em um dos lados da relação está trabalhador e neste diapasão fazem distinção entre
“credores”, pois um princípio geral da maximização de riqueza leva necessariamente
à transferência de riquezas àqueles que possuem maior poder de barganha nas
transações, ou seja, àqueles que já possuem riqueza519.
Assim, existem aqueles (primeiro grupo), denominados “profissionais” ou
“institucionais” (e.g., as instituições financeiras), que se podem exigir a diligência
normal do bom comerciante, atento às fraudes e que exigem garantias de
pagamento.
A desconsideração, neste caso, deve ser restrita (apenas com base em um
aumento superveniente e imprevisível dos riscos, de modo a modificar
substancialmente a situação inicial).
Já para os credores “não profissionais” (segundo grupo), quais sejam, os
pequenos fornecedores e os empregados, podem requerer a desconsideração com
base no abuso de personalidade sem as mesmas restrições aos credores impostas
aos chamados profissionais.
Quanto a estes, afirmam que claramente não lhes é possível informar-se nem
muito menos negociar taxas de risco com os empregadores.520
Mesmo em presença de poderosos sindicatos, que podem fazer presumir a
possibilidade de negociação coletiva, a íntima ligação entre sucesso da empresa e
destino dos empregados faz com que a negociação de uma taxa de risco seja pouco
provável.521 Ao contrário, a experiência demonstra que, em situações de crise, é
comum a concordância dos sindicatos com mudanças desfavoráveis aos
trabalhadores.522
Segundo eles, há a necessidade de se individualizar dois grupos de credores,
cada um deles internamente heterogêneo, de forma a impor a limitação da
519 COMPARATO; SALOMÃO FILHO, 2005, p. 486. 520 Ibid., p. 493. 521 COMPARATO; SALOMÃO FILHO, op. cit., p. 493. 522 COMPARATO; SALOMÃO FILHO, loc. cit.
147
desconsideração. A distinção tem influência direta na teoria da desconsideração,
pois, em relação ao segundo grupo, a idéia da desconsideração como forma de
redistribuição de riscos objetivada pelo legislador ganha plena aplicação, ou seja,
nas suas palavras
[...] a desconsideração enquadra-se em uma regra geral de repressão ao comportamento free-rider. Como free-rider define-se o agente que quer gozar das vantagens, mas não dos custos da responsabilidade limitada, ou seja, aquele agente que usa a responsabilidade limitada não passivamente, como um meio de salvação no caso extremo de falência, mas ativamente, como elemento estratégico para externalização de riscos em maneira diversa daquela prevista no ordenamento. O ordenamento deve intervir, conseqüentemente, para eliminar esses abusos e repristinar a distribuição de riscos originais. Essa perspectiva intervencionista (que vê no direito não um corpo de regras que devam buscar a neutralidade do ponto de vista econômico, mas sim que devam influir nos desequilíbrios naturalmente criados pelo mercado) facilita a aplicação mais ampla da desconsideração. A própria desconsideração atributiva torna-se aceitável, desde que existam razões econômicas (v.g. a proteção dos interesses de grupos particularmente fracos etc.) a justificar uma diversa distribuição de riscos (o que claramente não seria aceitável na visão liberal).523
Comparato e Salomão Filho524 asseveram que essa versão diferenciada da
desconsideração da personalidade jurídica foi recepcionada pelo artigo 50 do
Código Civil (chamada de teoria maior), pois a expressão abuso de personalidade é
plena de conteúdo.
No caso dos credores do segundo grupo, que não conhecem ou não
negociam os riscos, para eles qualquer infringência à separação patrimonial sócio-
sociedade caracterizará abuso da personalidade jurídica.
Ribeiro525, no mesmo sentido, lembra que a análise puramente econômica do
direito não fornece uma resposta satisfatória quando estamos perante a
necessidade de encontrar uma tutela eficiente dos credores involuntários, chamados
por ela de credores fracos por, precisamente, não terem a oportunidade de avaliar
os riscos e agir em conformidade com eles.
Lembra a autora portuguesa que a distinção entre os credores fortes e fracos
é recorrente na doutrina alemã com o objetivo de considerar inadequada a tutela
que, para os credores fracos (ou involutários), resulta das possíveis hipóteses de
recurso a uma responsabilidade interna. 523 COMPARATO; SALOMÃO FILHO, 2005, p. 488-489. 524 Ibid., p. 494. 525 RIBEIRO, 2009, p. 61.
148
4.5 A ASSUNÇÃO DOS RISCOS DA ATIVIDADE ECONÔMICA PELO
EMPREGADOR COMO FUNDAMENTO DA DISREGARD
Embora expressamente não mencionem o artigo 2°, da CLT – o empregador
assume os riscos da atividade econômica – o fato é que a posição adotada por
Fabio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho reconhece a condição de
hipossuficiente do trabalhador e, ipso facto, a ampla aplicação da regra da
desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho em razão da
“redistribuição de riscos”.
Com efeito, a legislação brasileira, atribui ao empregador os riscos da
atividade econômica, ex vi do disposto no artigo 2o da CLT.
Sobre o assunto ensina Delgado526 que a característica da assunção dos
riscos do empreendimento ou do trabalho “consiste na circunstância de impor à
ordem justrabalhista à exclusiva responsabilidade do empregador, em contraponto
aos interesses obreiros oriundos do contrato pactuado, os ônus decorrentes de sua
atividade empresarial.”
De se notar ainda que o diploma legal trabalhista fala em riscos da atividade
econômica no mesmo preceito em que define empregador como empresa.
A tal característica dá-se a denominação de alteridade (alter – outro, idade –
qualidade). Sugere a expressão que o contrato de trabalho transfere a uma única
das partes todos os riscos a ele inerente.
Destaca Delgado527 que a interpretação lógico-sistemática e teleológica do
artigo segundo conduz à conclusão de que também ao empregador se impõe,
juridicamente, os riscos do trabalho prestado, ainda que não tenha intuito econômico
para seu tomador (caso do trabalhador doméstico).
Desta feita, não se trata de admitir que o empresário, o sócio, está lucrando
com a falta do repasse do dinheiro que deveria ir ao empregado, fortalecendo-se
financeiramente através do enfraquecimento de sua pessoa jurídica, injetando
valores na sua própria conta pessoal ao invés de capitalizar-se para cumprir suas
obrigações. 526 DELGADO, 2004, p. 393 527 DELGADO, loc.cit.
149
A responsabilização se dá com fundamento, previsto em lei, de que ao
empregador cabe arcar com todos os riscos da atividade econômica exercida, seja
por má-administração ou simplesmente por conjunturas da atividade empresarial
que levaram àquela situação.
Tal característica é ínsita ao direito trabalhista e tem sua origem justamente
no fato anteriormente exposto de que o valor tutelado é o bem maior da dignidade
da pessoa humana.
Este argumento tem sido comumente trazido pelos Tribunais trabalhistas
como fundamento da desconsideração.528
Note-se que o próprio STJ, em Acórdão já citado neste trabalho no primeiro
capítulo, ao interpretar o instituto na forma na qual foi proposto no código
consumerista ensina que para a teoria menor, “o risco empresarial normal às
atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a
pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes
demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer
prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou
administradores da pessoa jurídica”.
Ainda, não se pode olvidar que hoje vivemos a pós modernidade aonde o
mundo do trabalho apresenta novas formas de organização da produção, de gestão
interna e a nova divisão do trabalho.
528 EXECUÇÃO-RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS. A responsabilidade pessoal dos sócios encontra respaldo na teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, recepcionada pela legislação civil por força do Código de Defesa do Consumidor (art. 28)- a qual vem sendo aplicada no Direito do Trabalho em face da prevalência do interesse social sobre o individual e da necessidade de proteção ao hipossuficiente, preservando a regra de que ao empregado não cabe arcar com os riscos da atividade econômica. Como corolário, não obstante seja a pessoa jurídica dotada de personalidade própria e distinta da pessoa de seus sócios, sempre que estes últimos busquem refúgio naquele instituto em prejuízo de terceiros, atraem a aplicação da 'disregard of legal entity" com o intuito de impedir o aperfeiçoamento de fraude e o êxito do ardil, independentemente de ostentarem ou não a qualidade de gerente. Não encontrados bens da executada passíveis de satisfazer o crédito exeqüendo, respondem os sócios pelo crédito do empregado que contribuiu para o desenvolvimento empresarial. (PARANÁ (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (9ª Região). TRT-PR-02928-1997-660-09-00-4. ACO-01185-2006. Execução-responsabilidade dos sócios. Relator: Rosemarie Diedrichs Pimpão. Lex : Jurisprudência TRT/PR. Curitiba. Publicado no DJPR em 20 jan.2006.); EMENTA: DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EMPRESA. A aplicação da teoria da despersonalização da pessoa jurídica e redirecionamento da execução aos bens dos sócios que compunham o quadro societário da sociedade executada visa garantir a efetiva prestação jurisdicional, porquanto não se pode deixar a descoberto do manto do direito o empregado em detrimento do sócio da sociedade executada, o qual deve suportar os riscos do empreendimento econômico. Agravo de petição parcialmente provido. (RIO GRANDE DO SUL (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (4ª Região) TRT/RS. 7. Turma. Autos 00074-2000-021-04-00-3. Ementa: Desconsideração da Personalidade Jurídica da Empresa. Relatora: Flávia Lorena Pacheco; j. 10 dez. 2008). Disponível em: <www.trt4.jus.br>. Acesso em: 03 out. 2009)
150
Vivemos uma era de mega-fusões, incorporações e concessões que se
justificam na mobilidade geográfica, sem determinação fixa de um centro de
poder.529
A constante modificação estrutural das empresas, as terceirizações,
quarteirizações, especialização flexível da produção e concentração de poder sem
centralização, tornam cada vez mais difícil a efetivação dos direitos trabalhistas, e a
relativização da pessoa jurídica conduz os riscos cada vez mais para o lado do
trabalhador.
Alves530 atenta para uma fragmentação sistêmica representada pela
constituição do que chama de uma empresa-rede, cuja principal característica é a
externalização de suas atividades produtivas.
Surge então uma miríade de pequenas empresas, subcontratadas e
fornecedores em vários graus na cadeia produtiva, que instauram uma relação de
longo prazo com a empresa central, via de regra um conglomerado ou corporação
transnacional que permanecem com o coração da atividade produtiva sublocando o
restante.531
Objetiva-se construir o que se chamou “fábrica magra” e “flexível”, através de
uma busca incessante pela redução de custos e aumento da produtividade e do
ganho, quase sempre em detrimento do bem estar do trabalhador.
O resultado é, de forma imediata a precarização do trabalho, uma vez que a
distribuição de funções de forma fragmentada em tantas outras empresas que
competem para o fornecimento desse tipo de trabalho, fatalmente coopera para a
redução dos salários, a diminuição dos benefícios, dos direitos, e principalmente
fragmentando a representação sindical, já que a classe principal passa a encolher
perdendo membros para outros sindicatos.
Conforme aponta informação vinculada na imprensa estes são trabalhadores
com médias salariais mais baixas que as dos não-terceirizados e que convivem com
altas taxas de rotatividade, em torno de 84%. Em média, os salários dos
529 ANDRADE, 2005, p 253. 530 ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho : Reestruturação produtiva e crise no sindicalismo. São Paulo: Bomtempo editorial, 2000. p. 57. 531 Ibid., p. 58.
151
terceirizados no estado de São Paulo, valem 2,3 salários mínimos (R$ 874)
enquanto os dos não-terceirizados, 4,6 (R$ 1.748)532.
Some-se a isto o fato que nem mesmo a Administração Pública, aquela
deveria ser a primeira a zelar pelo bem estar do trabalhador, sua dignidade, e pelo
bem estar social, utiliza-se de terceirizações transferindo ao trabalhador a alta conta
das más administrações.
Desta forma, diversas são as razões para se concluir que a utilização da
desconsideração de forma ampla no direito do trabalho em ações envolvendo
créditos alimentares tem particularidades que a justificam.
A ampliação da teoria de desconsideração da personalidade jurídica nestes
casos, destarte, tem por base fundamental o princípio da dignidade da pessoa
humana, como elo de harmonização e ponto de referência do nosso ordenamento
jurídico, da qual decorre a cláusula geral de tutela da pessoa humana.533
Tal fundamento encontra espelho também na lição de Miguel Reale para que
as pessoas jurídicas, como se vê, “como todas as estruturas que a experiência do
Direito vai modelando através da história, têm por pressuposto a boa fé e por fim a
satisfação de reais interesses privados e coletivos.”534
4.6 A DISREGARD E O DIREITO FUNDAMENTAL CONSTITUCIONAL A
RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO.
Como visto, a interpretação do instituto tem que ser feita sempre levando em
consideração a proteção direta da dignidade humana do trabalhador.
532 FOLHA DE SÃO PAULO. Terceirização . Folha UOL. São Paulo. Disponível em: <http://www1.folha. uol.com.br/fsp/dinheiro/fi1008200723.htm.> Acesso em: 15 ago. 2007. 533 Para Tepedino, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2° do art. 5°, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento (TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional b rasileiro : Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 50). 534 REALE, 1990, p. 244.
152
Como já ressaltado no presente trabalho, os apontamentos para um critério
de aferição do direito à duração razoável do processo devem ser feitos de acordo
com o caso concreto variando de acordo com o tipo de processo.
Também fica claro que o processo judicial trabalhista é dotado de
determinadas características e princípios que apontam para uma maior celeridade.
Pois bem, ao atingirmos um ponto no processo no qual faz-se necessária a
desconsideração da personalidade jurídica da sociedade limitada empregadora para
cumprimento de uma obrigação, devemos levar em conta também as garantias e
preceitos constitucionais.
O direito fundamental à duração razoável do processo envolvendo crédito
alimentar intimamente ligado a provisão das necessidades básicas do trabalhador e
de sua família (e portanto à sua dignidade humana – meta-princípio formador da
ordem jurídica), deve ser interpretado de forma mais ampla do que num processo
que se discute crédito bancário, por exemplo.
Tal direito fundamental vincula não somente o legislador, mas também o juiz
exigindo que ele interprete as normas infraconstitucionais em conformidade com a
Constituição e com os direitos fundamentais.
Havendo, portanto, omissão na legislação, como é o caso do instituto da
desconsideração no processo do trabalho deve prevalecer aquela interpretação mais
adequada a concretização dos direitos fundamentais, sempre é claro, de acordo com
a constituição.
Canotilho e Moreira535 neste sentido esclarecem que a interpretação de
acordo com a Constituição significa:
Interpretação mais favorável aos direitos fundamentais. Significa isto que, em caso de dúvida, deve prevalecer a interpretação que, conforme os casos, restrinja menos o direito fundamental, lhe dê maior protecção, amplie mais o seu âmbito, o satisfaça em maior grau.
Em diversas situações o Judiciário Trabalhista tem admitido interpretações
legais que privilegiam a razoável duração do processo como modo de aplicação do
princípio trabalhista da celeridade na fase de execução,como, por exemplo, na
535 CANOTILHO; MOREIRA, 1991 apud RIGHI, 2007, p. 195.
153
aplicação das penas do artigo 475, J do CPC também trazido ao processo do
trabalho para aplicação subsidiária.536
Assim, não há dúvidas que a desconsideração prevista do artigo 28 do CDC é
aquela, portanto, mais adequada à concreção da duração razoável do processo na
busca do ressarcimento de um crédito alimentar intimamente ligado à dignidade
humana do trabalhador estando plenamente de acordo com a busca do direito
fundamental previsto constitucionalmente.
Inegável que a referida interpretação amplia o seu âmbito, satisfaz em maior
grau, dá mais proteção e restringe menos a satisfação de um direito fundamental.
Assim na ausência da norma, deve o juiz supri-la aplicando subsidiariamente
aquela que mais admite a incidência direta do direito fundamental sobre o caso
conflitivo, não havendo dúvidas, por todo o exposto, que a o atendimento ao direito
fundamental da razoável duração do processo justifica a utilização subsidiária do
dispositivo consumerista em detrimento daquele previsto no código civil, mais
restrito, portanto.
4.7 O PROBLEMA DO SÓCIO EMPREGADO (E O MINORITÁRIO)
Nas Sociedades de responsabilidade limitada é comum a existência de sócios
minoritários que apenas integralizam pequeno capital, em pequenos percentuais,
536 EMENTA: MULTA DO ART. 475-J DO CPC. A aplicação subsidiária do artigo 475-J do CPC no processo do trabalho atende às garantias constitucionais da razoável duração do processo, efetividade e celeridade, tendo, assim, pleno cabimento na execução trabalhista. A executada foi citada para pagamento sob as cominações do artigo 475-J do CPC. Nesse caso, tal critério deve nortear todo o processo de execução, já que não houve insurgência da agravada em momento processual oportuno. (RIO GRANDE DO SUL (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (4ª Região). TRT/RS. 9. Turma. Autos 00572-2008-511-04-00-7. Relator Marçal Henri Figueiredo. Lex : Jurisprudência TRT/RS. j. 15 abr. 2009). Disponível em: <www.trt4.jus.br>. Acesso em: 03 out. 2009.). EMENTA: PENHORA. SISTEMA BACEN/JUD. Execução definitiva. Possibilidade da penhora recair sobre valores depositados em conta corrente, por atender ordem preferencial do Código de Processo Civil e aos princípios de celeridade e da razoável duração do processo. (RIO GRANDE DO SUL (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (4ª Região). TRT/RS. 1. Turma. Autos 00380-2005-027-04-00-2. Ementa: Penhora. Sistema Bacen/Jud. Relatora: Vânia Cunha Mattos Marçal Henri Figueiredo. Lex : Jurisprudência TRT/RS. j. 16 abr. 2009). Disponível em: <www.trt4.jus.br>. Acesso em: 03 out. 2009)
154
que o fazem por diversos motivos, como, por exemplo, ajudar um amigo ou parente,
obter investimento rentável, tornar-se sócio do empregador, etc.537
Este sócio minoritário, em tese, não terá qualquer influência nas deliberações
e andamentos da empresa.
Tal fato ganhou realce após o advento do Código Civil de 2.002 que adotou a
opção, como regra geral, do princípio da aprovação do ponto de alteração por
deliberação de sócio ou sócios representantes, no mínimo , de ¾ do capital social
(artigo 1.076, I). 538
Explica Coelho539, neste sentido que:
A vontade do sócio que mais contribui para formação do capital social da sociedade limitada, deve ter (e tem) maior influência sobre os rumos da empresa que a dos demais” de modo que as “relações intra-societárias, em suma, são anti-democráticas.
Desta feita, o que se vê, é que o sócio minoritário, além de ter integralizado
valor inferior aos majoritários, tem pouco influência no destino da atividade
econômica.
Por este motivo, Baracat lembra que, ao se interpretar o risco da atividade
econômica do empregador, conforme previsto no artigo 2º. da CLT, não se pode
dizer que seja daquele que integralizou o contrato social, como pequeno
investidor.540
Lembra bem que “conquanto a empregadora seja a sociedade, quem a
personifica é o sócio majoritário, ou o administrador por ele constituído. É o sócio
537 BARACAT, 2008, p. 66. 538 Tal regra, contempla 3 exceções em situações especial, conforme explica Campinho “: 1ª. ) designação de administrador não sócio, se o contrato permitir que a administração seja exercida por terceiros estranhos ao corpo social, quando a alteração depende de aprovação da unanimidade de sócios, enquanto o capital não estiver integralizado, e de 2/3, no mínimo, após a integralização (artigo 1.061); 2º.) destituição de sócio administrador nomeado no contrato, para a qual se exge a provação de titular ou titulares de quotas correspondentes a, pelo menos, 2/3 do capital social, salvo disposição contratual diversa, contemplando quorum maior o menor (§ 1º. Do artigo 1.063); e 3º. ) exclusão extrajudicial de sócio, na hipótese de sócio remisso ou naquela em que a maioria dos sócios entender que um ou mais sócios minoritários estiverem ponto em risco a continuidade da empresa e o procedimento vier previsto no contrato social, quando a alteração exige, em ambos os casos a deliberação de sócio ou sócios representativos de mais da metade do capital social (artigo 1.085 c/c parágrafo único do artigo 1.004)”. O mesmo autor critica severamente a opção pelos 2/3, manifestando sua preferência pelo princípio da maioria, cuja vontade deve dirigir o curso da vida social (CAMPINHO, 2007, p. 155-156) 539 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de de direito comercial . 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 362. 540 BARACAT, Eduardo Milléo Desconsideração da personalidade jurídica da socied ade limitada empregadora: o problema do sócio minoritário . São Paulo: Revista de Direito do Trabalho, v. 129, 2008b. p. 66.
155
majoritário que, de fato, exerce real poder de direção e que, nesse sentido,
transforma-se no empregador real”.541
Assim, não se pode dizer que o risco da atividade econômica seja o mesmo
entre sócios minoritários e majoritários, já que se trata de posições jurídicas
diferentes.
Assim, defende Baracat542 que, enquanto o sócio majoritário ou o
administrador por ele indicado devem responder ilimitadamente pelo crédito
trabalhista contraído pela sociedade (CC/2002, art. 1.016), o sócio minoritário deve
responder no limite da quota integralizada (CC/2002, art. 1.023).
Coelho543 vai mais além defendendo inclusive que a própria lei deveria
dispensar-lhes atenção diferenciada, uma vez que o empregados têm, para ele,
condições de negociar a incorporação aos seus salários de uma taxa de risco
relacionada à limitação da responsabilidade dos sócios.
A Justiça do Trabalho de uma maneira geral tem executado indistintamente o
patrimônio dos sócios.544 Poucas e tímidas exceções, no entanto, já são verificadas.
O ante-projeto do Código do Consumidor continha regra neste sentido,
estendendo os efeitos da desconsideração apenas ao patrimônio pessoal do
acionista controlador, regra esta que foi vetada pela Presidente da República.
Situação ainda mais sui generis é a do sócio empregado.
541 BARACAT, 2008b, p. 66. 542 Ibid., p. 66-67. 543 COELHO, 2007, p. 408. 544 EMENTA: BENS DO SÓCIO. PENHORA. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE. ART. 596, parágrafo 1º, DO CPC. Inexistindo bens da sociedade executada que possam servir de forma adequada à garantia da execução, correta a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, para que sejam excutidos bens do sócio, pouco importando que seja sócio minoritário, pois também foi beneficiário dos serviços prestados pelo ex-empregado à sociedade, mormente quando não aponta bens da sociedade livres e desimpedidos que possam garantir o processo executório, nos termos do art. 596, parágrafo 1º, do CPC. Agravo de Petição em Embargos de Terceiro a que se nega provimento. (SÃO PAULO (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (2ª Região). TRT/SP. 5. Turma. Acórdão Num: 20080297832. Número Único Proc: AP02 - 00715-2007-445-02-00-0. Relatora Anelia Li Chum. Lex: Jurisprudência TRT/SP. DOE SP 25 abri. 008. Disponível em: <www.tst.jus.br>. Acesso em: 3 out. de 2009.
156
A condição de sócio ou empregado deverá ser vista com base no caso
concreto, no qual dever-se-á aferir a intensidade de cada uma.545
Barros546 bem ensina que:
A personalidade jurídica da sociedade não se confunde com a de seus sócios, logo, é possível a coexistência da condição de sócios com a de empregado, desde que a responsabilidade daquele seja limitada, o que ocorre, em geral, nas sociedades por ações ou limitadas.”
Lembra ainda a autora que nas sociedades por ações, ou limitadas, a
condição de sócio, animada pela affectio societatis547, de modo excepcional, poderá
ser afastar a de empregado, quando aquele possuir a maioria das ações, for
acionista controlador ou detiver a maioria das quotas de uma sociedade de
responsabilidade limitada.548 Inviabiliza-se, assim, a condição de empregado.549
Bom exemplo nos traz o direito britânico. Trata-se do caso de Lee v Lee´s Air
Farming Ltda. de 1961.
545 Sobre o tema, interessante posição é trazida na seguinte ementa: “Reclamante. Relação de emprego. Sócio. Sócio e empregado. A pessoa jurídica constitui, obviamente, por sua natureza, entidade distinta daquela consubstanciada por seus membros. desse modo, não há, em princípio, qualquer incompatibilidade entre as figuras do sócio e do empregado, que podem se encontrar sintetizadas na mesma pessoa física. é o que se passa em sociedades anônimas, sociedades limitadas (ou por cotas de responsabilidade limitada) ou sociedade em comandita por ações. a regra geral é, pois, a plena compatibilidade entre as duas figuras jurídicas (sócio/empregado; empregado/sócio). em determinados casos concretos, entretanto, envolvendo relações fático-jurídicas fronteiriças, há que se aferir a intensidade de afirmação de uma figura sobre a outra.” (BRASIL. Tribunal. 1ª Região. Acórdão Num: Decisão: 08 11 2005; Número Único Proc 01263-2002-421-01-00. 4. TURMA; DORJ, III, DE 11 jan.2006; Relatora Desembargadora Dóris Luise De Castro Neves. Disponível em: <www.tst.jus.br>. Acesso em: 3 out. 2009) 546 BARROS, 2008, p. 298 547 Ressalte-se, entretanto, que a condição de affectio societatis não pode mais ser evocada como condição para a existência da sociedade limitada, conforme explica Fábio Tokars: “a vinculação pessoal entre os sócios não é necessária como elemento de validade do contrato social”, pois a validade do contrato, cobra-se a manifestação validade de vontade por parte dos sócios e não alguma espécie de vínculo entre os mesmos. (TOKARS, 2007, p.94) 548 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 4ª ed. São Paulo: LTr, 2008. p. 298. 549 EMENTA: VÍNCULO DE EMPREGO. Ainda que figure, o autor, como sócio minoritário na sociedade por quotas, a inexistência da affectio societatis, e a particularidade da prestação de serviços típicos de empregados, revela o vínculo de emprego alegado na inicial. Provimento ao recurso que se impõe. Caso em que os sócios minoritários, detentores de 0,5% do capital social, prestavam serviços na condição de socorristas e motoristas de ambulâncias, ora em nome de uma, ora em nome de outra empresa, nas quais figuravam como sócios, sempre de acordo com o ajuste firmado com a tomadora dos serviços. (RIO GRANDE DO SUL (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (4ª Região). TRT/RS. 7. Turma. Autos 00199-2006-461-04-00-0. Vínculo de Emprego Relatora Maria Inês Cunha Dornelles. Lex : Jurisprudência TRT/RS. j. 10 out. 2007. Disponível em: <www.trt4.jus.br>. Acesso em: 03 out. 2009.
157
A empresa empregou o Sr. Lee que na época detinha 2.999 das 3.000 ações
da empresa, como seu único diretor. Este se auto nomeou “diretor regente perpétuo”
da empresa.550
Ocorre que o Sr. Lee foi morto enquanto trabalhava para a empresa. As
seguradoras da empresa responsáveis pelo pagamento do seguro, alegaram então
que não havia contrato de serviços e, sendo assim, nenhum pedido poderia ser feito
de acordo com a legislação que torna os empregadores responsáveis por pagar
compensações em razão de acidentes de trabalho sofridos pelos empregados
durante o trabalho.
As seguradoras alegaram então que era impossível que o Sr. Lee pudesse
em nome da empresa contratar sendo ele o beneficiário. A corte, no entanto, não
aceitou o argumento das seguradoras julgando improcedente o seu pleito.551
Em casos similares, o Direito do Trabalho pode ser evocado e a relação
jurídica sujeita-se à apreciação da Justiça do Trabalho. Barros552 lembra que “a
relação jurídica está definida pelo seu conteúdo, pouco importando o nome que lhe
venha a ser dado pelas partes, pois os efeitos jurídicos são extraídos da forma como
se realiza a prestação de serviços.”
É, conforme visto, perfeitamente possível que o empregado venha a ser o
sócio da empresa.
Diante deste fato, pode-se perceber que haveria confusão entre o crédito e o
débito do sócio empregado, acarretando-se, por conseguinte, a extinção da
obrigação trabalhista, e em decorrência, ficando o sócio empregado sem receber
salários.553
O artigo 381 do Código Civil de 2.002 prevê que a obrigação extingue-se
quando na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e devedor.
Estar-se-ía, portanto, diante de situações no mínimo curiosas, pois a situação
narrada se dará mesmo que o crédito trabalhista seja 10 vezes superior que aquele
que fora integralizado pelo sócio empregado.554
Mais esdrúxula ainda, é a hipótese de o sócio-empregado, por força da
desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empregadora, ter seu
550 MAYSON; FRENCH; RYAN, 2003, p. 146. 551 MAYSON; FRENCH; RYAN, loc. cit. 552 BARROS, 2008. p. 299. 553 BARACAT, 2008, p. 68. 554 Ibid., p. 66-67.
158
patrimônio pessoal utilizado para saldar créditos trabalhistas dos colegas de
trabalho. Isso em situações nas quais tenha integralizado 1% do capital social, por
exemplo.555
Em casos como este, haverá a negação do próprio princípio de que o risco da
atividade econômica é sempre do empregador, expresso no art. 2º. da CLT.
Assim, teríamos um gritante contra-senso: o empregado que suporta o risco
da atividade econômica.556
Em situações como esta, Baracat557 bem lembra que “também se estaria
negando o princípio da dignidade da pessoa humana.”
555 BARACAT, 2008. p. 66- 67. 556 Existem algumas situações nas quais a Justiça do Trabalho tem adastado a responsabilidade do sócio minoritário: “EMENTA: Agravo de Petição. Redirecionamento da execução contra sócio minoritário. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, e o conseqüente redirecionamento do processo de execução contra os sócios, erigida à preceito legal, na forma do art. 25, (sic) § 5º, do Código de Defesa do Consumidor e, posteriormente, do art. 50 do Código Civil, bem assim pela lei adjetiva do art. 596 do CPC, não exclui a imperiosidade de que, inicialmente, a execução judicial seja voltada contra aqueles que detenham o capital majoritário, bem assim contra os que tenham exercido a administração ou o controle da sociedade, notadamente quando tenham incorrido na prática de atos que caracterizem abuso da personalidade jurídica, tais como o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Diante de prova inequívoca de que o agravante deteve apenas 1% do capital social da empresa executada e que não se enquadra nas hipóteses acima aventadas, somando-se a isso o fato de que ele informa os nomes e endereços dos sócios majoritários, sendo que o Juízo da execução direcionou contra um deles a execução judicial, não há o que alterar no julgado. Agravo não-provido.” (RIO GRANDE DO SUL (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (4ª Região). 8. Turma. Autos 305-2000-411-04-00-4. Agravo de Petição. Relatora Carmen Gonzáles. Lex: Jurisprudência TRT/RS. j. 24 abri. 2008. Disponível em: <www.trt4.jus.br>. Acesso em: 03 out. 2009). EMENTA: AGRAVO DE PETIÇÃO DA EXEQÜENTE. REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO CONTRA SÓCIA MINORITÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. Em que pese tenha integrado o quadro social da empregadora durante o contrato de trabalho da obreira, a sócia cujas quotas correspondiam a 2,51% da sociedade limitada não responde pela dívida, mormente quando ainda não frustrada a execução direcionada ao sócio-gerente. Provimento negado. .” (RIO GRANDE DO SUL (Estado). Tribunal Regional do Trabalho (4ª Região). 7. Turma. Autos 00122-1998-403-04-00-9. Agravo de petição da exeqüente. Redirecionamento da execução contra sócia minoritária. Impossibilidade. Relatora Vanda Krindges Marques. Lex: Jurisprudência TRT/RS. j. 12 mar.2008) . Disponível em: <www.trt4.jus.br>. Acesso em: 03 out. 2009). 557 BARACAT, op. cit., p. 69.
159
4.8 AS CRÍTICAS A APLICAÇÃO DA TEORIA MENOR: A VISÃO EMPRESARIAL E
O MITO DA DESCONSIDERAÇÃO COMO INIMIGA DA ATIVIDADE
PRODUTIVA
Existe uma corrente doutrinária, ligada principalmente ao direito empresarial e
tributário que vem criticando severamente a ampliação da utilização do instituto da
desconsideração da personalidade jurídica, principalmente na Justiça do Trabalho.
Os questionamentos passam pela própria redação do artigo 28 do CDC,
envolvendo questões sobre a sua validade no ordenamento jurídico, sua utilização
analógica em outros micro-sistemas, ou simplesmente por inconformismo.
A crítica inicia-se pela própria gênese do artigo 28 do CDC, pois este,
segundo parte da doutrina, não teria seguido a filosofia que informou a aplicação da
teoria da disregard nos sistema de origem.
Neste sentido Szatjn558 afirma que “ou o legislador não entendeu a função da
teoria da desconsideração, ou ao que parece, desejou banalizar, vulgarizar a
técnica, para torná-la panacéia nacional na defesa do consumidor.”
Há corrente doutrinária que vem sustentando, inclusive, a revogação do artigo
28, do CDC, pelo artigo 50, do Código Civil, bem como de todos os outros
dispositivos que tratam do tema.559
Fundamenta-se que a responsabilidade dos sócios por débitos trabalhistas,
sejam eles quais forem, não tem disciplina legal sistematizada no Direito do
Trabalho e por isso deve ser aplicado a regra geral da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica prevista no artigo 50 do Código Civil.
Tokars560, sob outra ótica, defende que o artigo 28 do CDC simplesmente foi
revogado pelo novo Código Civil. Fundado em preceito hermenêutico específico,
propõe a adoção de outra leitura, que parte da noção de que o art. 28 do Código de
Defesa do Consumidor não se tratava de disposição normativa de caráter especial,
aplicável somente às relações de consumo.
558 SZTAJN, Raquel. Desconsideração da personalidade jurídica . Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 71. 559 Artigo 28 do CDC, artigo 18 da Lei n° 8.884/94 e a rtigo 4° da Lei n° 9.605/98. 560 TOKARS, 2007, p. 448-469.
160
Defende que o texto legal haver sido repetido, ipsis litteris, em outras
legislações (entre as quais podemos citar o art. 18 da Lei n. 8.884/94, que trata das
infrações à ordem econômica, e o art. 4º da Lei n. 9.695/98, que tutela o meio
ambiente), construindo-se assim entendimento doutrinário no sentido de que esta
norma havia se constituído na regra geral sobre a desconsideração.
Ou seja, para ele, ampliou-se tanto o âmbito de aplicação da regra insculpida
no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor que esta deixou de ser considerada
como norma de caráter especial, tomando o corpo de regra geral em relação à
desconsideração. Desta feita, tornando-se o artigo 28 do CDC regra geral para a
desconsideração este teria sido revogado por outra norma, igualmente de caráter
geral, constante do art. 50 do Código Civil.561
Tokars562 critica as posições doutrinárias que sustentam a harmonização
entre a regra estabelecida pelo Código de Defesa do Consumidor e a novel regra do
artigo 50 do Código Civil de 2002, a teoria (e atualmente regra prevista no Direito
Positivo) da desconsideração da personalidade jurídica.
Afirma que não se pode ficar alheio às questões econômicas. O
empreendedor não investe seu dinheiro se, em contrapartida, não houver a
segurança que seu patrimônio pessoal seja afetado. Para ele as sociedades
limitadas, como ficção jurídica, possuem autonomia patrimonial e a responsabilidade
do sócio é restrita à integralização das suas cotas.
Na hipótese de aplicação desordenada, aleatória e abusiva da doutrina da
desconsideração da personalidade jurídica, inibir-se-iam novos investimentos, não
porque o empreendedor já esteja de “caso pensado” para fraudar terceiros (e aí é
evidente a aplicação da doutrina), mas porque o risco do negócio pode afetar o seu
patrimônio pessoal e por isso garantias legais são absolutamente necessárias.563
O artigo 50 do Código Civil, portanto, para Tokars564, é o diploma mais
aceitável e veio em ótima hora para suspender o desenvolvimento da corrente da
ampliação da desconsideração, que, não pode ser utilizado de forma aleatória e
assistemática, e muito menos de ofício pelo magistrado.
561 TOKARS, 2007, p. 448-469 562 Ibid., p. 448 563 TOKARS, loc. cit. 564 TOKARS, loc. cit.
161
Especificamente quanto ao processo laboralista, alega que a ampla
desconsideração da personalidade jurídica é medida geradora de efeitos negativos
na esfera social, na medida em que a extrema elevação dos riscos pessoais
impostos aos empreendedores em face de débitos trabalhistas causa uma natural
retração no nível de oferta de emprego565.
Ao analisar a teoria do interesse social no Direito do Trabalho, conclui que
além de inexistir o substrato normativo que sustente a tese de que o interesse social
seria mais um fundamento para a desconsideração da personalidade jurídica, não se
pode deixar de destacar que a aplicação desta tese é contraditória também no plano
lógico. 566
Lembra que a consagração do princípio da autonomia patrimonial decorreu
primordialmente de um interesse social, consistente na redução dos riscos impostos
aos empreendedores como forma de incentivo à aplicação de recursos na atividade
produtiva. Tal opção, geraria claros benefícios de ordem social, tais como a geração
de empregos, o aumento na arrecadação tributária e o alavancamento da circulação
de riquezas.567
Por fim, arremata dizendo que na desconsideração, não há a oposição clara
entre um interesse social e um privado, havendo uma teia de interesses sociais que
somente com muito cuidado pode ser alterada.
Reafirma então o entendimento de que a desconsideração da personalidade
jurídica somente pode ser buscada quando houver a evidenciação de atuar
fraudulento na origem da imposição de prejuízo indevido aos credores, não sendo
possível a adoção de interesse social como fundamento complementar à
desconsideração.568
No mesmo sentido, Frederico Silveira e Silva adverte que o artigo 50 do
Código Civil é regra geral do sistema jurídico nacional para implementar a técnica da
desconsideração da personalidade jurídica.
De forma textual, e alheio a assunção dos riscos por parte do empregador
determinado pela lei trabalhista, defende que por faltar previsão expressa na
Consolidação das Leis do Trabalho, em qualquer outro diploma legal, o trabalhador
565 TOKARS, 2007, p. 466. 566 Ibid., p. 461. 567 TOKARS, loc. cit. 568 TOKARS, loc. cit.
162
terá que arcar com a perda do montante não coberto pelo patrimônio da empresa,
caso não seja provada a insuficiência patrimonial para saldar a dívida e o abuso de
personalidade, configurado pela confusão patrimonial ou desvio de finalidade.569
Admite que a situação que soa injusta – e até certo ponto o é -, mas isto é o
estabelecido na atual sistemática do ordenamento jurídico. 570
Gonçalves Neto571, de modo mais até mais incisivo, revela sua discordância
com a interpretação da Justiça do Trabalho no sentido de que, segundo ele, a falta
de pagamento de salário do trabalhador permite responsabilizar os sócios à luz de
regras do Código de Processo Civil ou desconsiderar a pessoa jurídica. Diante de tal
assertiva conclui que diante de tal entendimento, “deve-se convir, é não ter a menor
noção deste instituto.”
Atento ao regramento do direito empresarial defende que “tendo sido
integralizado o capital social e não existindo bens superavaliados para sua
formação, os sócios nada mais devem à sociedade nem nada deles pode ser exigido
por terceiros, tenha o crédito a natureza e a origem que tiver (aí incluídos os
trabalhistas, previdenciários e fiscais)”.572
Campinho573, após esmiuçar a desconsideração da personalidade jurídica no
ordenamento pátrio, preocupado com a falta de zelo e parcimônia na utilização do
instituto pelos magistrados, o que segundo ele pode vir a vulgarizar a sua utilização,
conclui que a desconsideração deve se dar somente na hipótese de haver prova
cabal e incontroversa de fraude ou abuso de direito, perpetrado pelo desvio de
finalidade da pessoa jurídica, como forma de reprimir o uso indevido e abusivo da
entidade jurídica.
Martins Filho, embora não tenha se manifestado pela aplicação ou não do
artigo 50 do Código Civil, também perfilha uma posição moderada pela magistratura
trabalhista na responsabilização do sócio.
569 SILVA, Frederico Silveira. A responsabilidade dos sócios de sociedade limitada em relação às verbas de natureza trabalhista . Revista de Direito Social. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano VI, n. 24, out/dez. 2006. p. 42. 570 SILVA, loc.cit. 571 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário . São Paulo: Juarez de Fretas, 2004. p. 260 572 Ibid., p. 234 573 CAMPINHO, 2007, p. 77.
163
Afirma que o simples insucesso da atividade econômica, por razões alheias à
vontade do empresário, não pode importar na sua responsabilização ilimitada, pois,
conforme diz o adágio latino, summum jus, summa injuria574.
Ainda, em descompasso com a maioria da doutrina e jurisprudência
trabalhista, Grandra Filho deixa claro que esta mesma responsabilidade somente
poderá ocorrer quando demonstrada fraude na constituição, administração ou
desfazimento da sociedade e comprava a insuficiência patrimonial.575
Assim, segundo ele, querer extrapolar tal responsabilidade com base no
caráter protetivo do Direito do Trabalho, é ir além do que a lei permite.576
Tais entendimentos, no entanto, , parecem deixar de lado a importância do
crédito alimentar advindo do trabalho humano e sua vinculação com a dignidade da
pessoa humana para dar maior importância ao aspecto econômico do valor advindo
com o lucro proporcionado pelo trabalho.
A divergência entre o artigo 50 do Código Civil e o artigo 28 do CDC decorre
de opção valorativa. Os Comercialistas ainda têm uma visão de sistema fechado e
não constitucionalizado. A CLT é vista por eles como mero capítulo do Código Civil.
O rompimento com a concepção anti-sistêmica tendente a romper a unidade
do ordenamento ou a projetá-lo como um conjunto de microssitemas do mesmo
nível ou em nível diverso, não organizados sob o guarda-chuva constitucional
parece ser de difícil ou quase impossível alcance.
Além disso, não podemos concordar com as críticas que se faz ao artigo 28
do Código de Defesa do Consumidor no sentido de que o mesmo afastou-se da
doutrina consolidada até então da disregard theory ampliando de forma exacerbada
o instituto sem representa aquilo que se tinha até então.
Vale lembrar que o embrião do Código de Defesa do Consumidor se deu em
atendimento ao art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais transitórias, pelo qual
o Ministério da Justiça nomeou uma comissão de profissionais do direito para
materializarem essa determinação .
574 MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. A responsabilidade solidária dos sócios ou administradores ante as dívidas trabalhistas da sociedade. In: NASCIMENTO, Amauri Mascaro; SILVESTRE, Rita Maria. Os novos paradigmas do direito do trabalho : homenagem a Valentin Carrion. São Paulo: LTr, 2001. p. 458. 575 MARTINS FILHO, loc. cit. 576 MARTINS FILHO, loc. cit.
164
Com a base pronta, a partir deste ato, Senadores e Deputados Federais
apresentaram projetos de lei instituindo o Código. Nery Júnior577 destaca que
“recebeu sugestões de todo o país, apresentadas por entidades do setor produtivo e
de defesa do consumidor.” Foram realizadas sessões públicas, nas quais
exaustivamente se discutiu todos os pontos do Código.
Foram colhidos depoimentos públicos da FIESP, CNI, ANFAVEA, ABINEE,
ABRAS, CONAR, Conselho Federal da OAB, dos PROCONs, do Ministério Público,
etc.578
Assim, não se pode tomar o texto do Código Consumerista como algo que
tenha “caído no colo” da doutrina, como se essa tivesse sido tomada de surpresa
com o texto que lá consta.
Conforme bem destaca Márcio André Medeiros Moraes579 dissertando sobre o
artigo 28 deste Código “...é importante acentuarmos que fica caracterizada a sua
legitimidade e que, conforme verificamos [...], ela está em harmonia com o espírito
do Código.”
Destacando algo que podemos trazer à realidade trabalhista, o autor ressalta
que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica há de ser analisada
dentro do novo contexto sociopolítico-econômico e cultural que se depara com esse
novo direito.580
O direito é ciência em constante mutação, análises devem se dar de acordo
com a realidade vicenciada em cada ramo sob pena de uma interpretação torta
distante da realidade.
Uma interpretação legalista, kelseniana, ainda mais quando se trata de um
instituto de aplicação analógica é inegavelmente desaconselhável. A realidade, o
fato, a vida social são partes integrantes da estrutura do direito e não pode ser
deixada de lado quando de sua interpretação.
Marçal Justen Filho bem coloca a questão referente ao sentido da disregard
em consonância com o ramo do direito no qual se encontra pois, segundo defende,
o direito privado, em especial o direito comercial (ou empresarial) “regula uma
577 NERY JÚNIOR, Nelson. Os princípios gerais do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor . Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos tribunais, 1992. p. 45 578 NERY JÚNIOR, loc.cit. 579 MORAES MAM, 2002. p. 84. 580 MORAES MAM, loc.cit.
165
conduta intersubjetiva a partir do enfoque do proprietário, enquanto que o direito do
trabalho fá-lo a partir de um ângulo do empregado.”581
Assim, existe, segundo ensina, uma diferença de propostas ideológicas posto
que, em termos distintos, a proposta do direito do trabalho é privilegiar sempre os
valores do empregado (e aqui acrescentamos do trabalho), enquanto que no direito
privado é privilegiar os valores do proprietário.582
A simples idéia de que nenhum poder jurídico constituído possa frustrar a
consecução de uma condição humana forçosamente realizável através do trabalho e
dos frutos que este possa trazer é incabível a realidade do direito empresarial, posto
que existe uma diferença de valores que deve ser superada por valores
constitucionais.
Reale583 concebeu a estrutura dimensional do direito a demonstrar os três
aspectos básicos, discernentes em todo e qualquer momento da vida jurídica: um
aspecto normativo (um direito como ordenamento); um aspecto fático (direito como
fato, história, efetividade social); aspecto axiológico (o direito como valor de Justiça).
Tais fatores não existem separados um dos outros, mas coexistem numa
unidade concreta atuando como elos de um processo de tal modo que a vida do
direito resulta da integração dinâmica dos três elementos.584
Assim não há como se interpretar a norma (ordenamento) deixando de lado a
relação de trabalho (fato) e seu valor na sociedade. As peculiaridades do crédito
trabalhista e a valoração do trabalho devem, portanto, assumir primeiro plano
quando da utilização do instituto como recurso para se atingir a satisfação do direito
do trabalhador.
581 MORAES MAM, 2002. p. 104. 582 MORAES MAM, loc. cit. 583 REALE, 1990. p. 65. 584 REALE, loc .cit.
166
5 CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
A efetivação do processo judicial trabalhista em tempo razoável com o
garantimento dos direitos do trabalhador é algo que deve ser buscado pela Justiça
do Trabalho.
O processo de execução sempre foi medida violenta. O Estado deve
garantir que os créditos sejam satisfeitos. O sistema BACEN possibilita o bloqueio
de contas correntes e aplicações financeiras de qualquer pessoa dentro do território
nacional.
Diante deste cenário, o instituto da desconsideração da personalidade
jurídica da sociedade limitada empregadora ganham contornos até então nunca
vistos, fazendo com que o empresário, administrador ou sócio deva ter plena
consciência de que qualquer ato praticado que obstacularize o garantimento pelo
trabalhador da efetivação de suas condições de sobrevivência, e concretude de
princípios constitucionais, poderá atingi-lo.
A Justiça do Trabalho, de forma praticamente unânime, tem se utilizado da
técnica da desconsideração da personalidade jurídica quando confrontada com
situações nas quais os bens da empresa são insuficientes para que a execução seja
satisfeita, tornando-se assim, o mais importante modelo de responsabilização
externa dos sócios.
A responsabilidade do sócio é sempre subsidiária e decorre do não
cumprimento da obrigação pelo devedor principal.
Outras técnicas de responsabilização direta dos sócios existem e são
importantes (inclusive com base legal na própria CLT – art. 2º.) porém a aplicação
do instituto da desconsideração da personalidade jurídica é aquela com a qual o
Judiciário Trabalhista tem trabalhado em sua quase totalidade.
Surgida no direito anglo-saxão a disregard theory foi trazida ao direito pátrio
por Rubens Requião em 1969 e positivada em diversas legislações. Sua gênese
legislativa se deu no Código de Defesa do Consumidor de 1990 em seu artigo 28. A
opção deste legislador foi pela aplicação ampla do instituto, bastando para a sua
aplicação que a pessoa jurídica fosse obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos
causados.
167
A chamada teoria menor era solitária no ordenamento jurídico nacional até a
promulgação do Código Civil de 2.002. Seu artigo 50 consagra a chamada teoria
maior, prevendo a desconsideração da personalidade jurídica somente em casos
específicos de comprovado mau uso da pessoa jurídica. Trata-se, portanto, de uma
interpretação bem mais restritiva do instituto.
O Direito do Trabalho não possui legislação específica sobre o tema,
valendo-se da técnica da analogia, prevista no permissivo legal do artigo 8º. da CLT,
como técnica de integração da norma.
Importante, se faz, desta forma, que se estabeleça qual a legislação mais
adequada à efetivar o direito buscado no processo judicial trabalhista.
O artigo 8º. da CLT faz menção a direito comum como fonte primordial na
qual deverá se alimentar. Conclui-se que esta expressão direito comum deve ser
interpretada como todo e qualquer ramo do direito diante da mudança de paradigma
na legislação e da supremacia constitucional.
À época da redação do texto Celetário admitia-se o Código Civil como fonte
principal, pois este tinha como finalidade fornecer um sistema completo, harmônico e
fechado, representando a segurança buscada pelo indivíduo num âmbito jurídico
estático. O Código Civil era, portanto, o direito comum, fonte subsidiária das leis
especiais.
Movimento contrário observou-se a partir da Constituição de 1988 quando
esta passou a ser entendida como única fonte da validade do sistema jurídico,
atribuindo função decisiva a valores e princípios constitucionais. Surgiram a partir de
então vários microssistemas e técnicas de interpretação a partir de cláusulas gerais
que permitiu a comunicação entre estes sistemas.
Assim, o papel unificador passou a ser da Constituição.
Diante desta comunicação, o chamado direito comum passou a ser qualquer
ramo do direito, que serve de fonte subsidiária a outros. Toda questão jurídica passa
a ser considerada a partir do caso concreto e da análise interpretativa.
Diante deste papel reconhecido pela constituição, de vetor normativo pelo
qual toda a atividade jurídica deverá ser pautar, são reconhecidos princípios e
valores constitucionais ligados ao crédito alimentar buscado nas ações trabalhistas,
tais como da dignidade da pessoa humana, ligado de forma umbilical à percepção
pelo trabalhador dos seus salários que permitem a sua subsistência e de sua família
dentro de condições dignas.
168
Outros direitos fundamentais trazidos pela Constituição que guardam
conexão com o instituto da desconsideração da personalidade jurídica e merecem
citação. A duração razoável do processo garantida elevada à direito fundamental
constitucionalmente protegido reflete o anseio da sociedade por um processo judicial
mais célere, em especial no processo trabalhista, no qual é buscada sob pena de
causar perecimento das pretensões e estimular composições desvantajosas.
Some-se a isto o fato de que o crédito discutido em uma ação trabalhista
tem caráter alimentar, o que torna ainda mais urgente o pleito do trabalhador.
Não se pode olvidar, ainda, que hoje a propriedade deve ser utilizada
observando sua função social, segundo a qual, em decorrência de valores
humanísticos, deve o empresário fazer o seu uso tendo como norte a o bem estar da
sociedade e especialmente dos próprios empregados. Estes não podem ser
privados de seus proventos sob pena de coisificá-los. Tratá-los como mera peça da
engrenagem produtiva.
A supremacia destes valores constitucionais, portanto, intimamente ligados
ao trabalho e suas valorização da dignidade do trabalhador, assim como a
proximidade entre os microssistemas consumerista e trabalhista faz com que seja
justificável a eleição pelo texto do artigo 28 do CDC (teoria menor), de maior
amplitude, como o mais adequado à concretização dos direitos do trabalhador.
A facilitação ao atingimento dos bens do sócio, que se aproveitaram da
utilização da força laboral do empregado, e são portadores dos riscos da atividade
econômica, justificam também desta forma a ampliação das possibilidades da
desconsideração.
Não se olvide também que a dignidade da pessoa humana do trabalhador
deve ser considerada ainda quando este atua na condição de sócio-empregado, pois
via de regra, não tem qualquer influência das deliberações e andamento da
empresa, não se podendo dizer que efetivamente assume os riscos da atividade
econômica.
Desta feita, em relação a este não se justifica a ampliação da utilização do
instituto sob pena de gritante contra-senso. O empregado suportando riscos da
atividade econômica e a negação do próprio princípio.
Por fim, e até sob pena de omissão, faz-se necessária análise detida das
críticas feitas a utilização pela Justiça do Trabalho do artigo 28 do CDC, ao até
mesmo ao próprio texto legal.
169
Os argumentos são no sentido de que a o texto legal desconsiderou toda
construção doutrinária feita pela doutrina sobre a disregard theory até então, dando
à separação patrimonial uma excessiva porosidade, impondo riscos aos
empreendedores e desestimulando a atividade produtiva.
Entretanto, não se pode deixar de lado que o Código de Defesa do
Consumidor não foi elaborado de uma hora para outra, sendo resultado de intensas
discussões na sociedade organizada, passando inclusive por depoimentos públicos
em Federações das Indústrias. O texto é absolutamente legítimo e decorre de forte
atividade doutrinária.
Já a opção entre o texto do Código Civil e o do Código de Defesa do
Consumidor decorre de opção valorativa, pois a opção é pelo sistema aberto de
predominância do texto constitucional e proteção ao trabalho e os proventos
advindos deste.
Desta forma, considerando que, o bem jurídico buscado não é somente um
crédito financeiro, mas a garantia da subsistência do trabalhador e de toda sua
família, subsistência esta que lhe garante a sua dignidade, temos que uma ampla
interpretação da teoria da desconsideração é necessária inclusive para a efetivação
do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, macro-princípio que
rege todo o ordenamento jurídico brasileiro.
170
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Agendamento de data de defesa perante Banca Examinadora
Curitiba, ________/________/________
Horário:____________
Indicação dos professores membros titulares e suplente: Membro Externo:____________________________________
Membro Interno:_____________________________________
Suplente (Interno):___________________________________
Deposite-se na Secretaria do Mestrado.
_______________________ Professor (a) Orientador (a) Curitiba, ____/_____/________
Recebido em: _______/________/________
______________________________________
Secretaria