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Raquel Alves Ishii
Viagens do “homem que virou rio”: narrativas, traduções e
percursos de William Chandless, pelas Amazônias, no século XIX
Rio Branco 2011
2
Raquel Alves Ishii
Viagens do “homem que virou rio”: narrativas, traduções e percursos de
William Chandless, pelas Amazônias, no século XIX
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Letras, sob a orientação do Professor Doutor Gerson Rodrigues de Albuquerque. Linha de Pesquisa: Cultura e Sociedade.
Rio Branco 2011
3
ISHII, R. A., 2011.
ISHII, Raquel Alves. Viagens do “homem que rio”: narrativas, traduções e percursos de William Chandless, pelas Amazônias, no século. Rio Branco: UFAC, 2011. 121f.
Ficha catalografica elaborada pela Biblioteca Central da UFAC
Marcelino G. M. Monteiro – CRB 11ª - 258
I79v Ishii, Raquel Alves, 1985-
Viagens do “homem que virou rio” narrativas, traduções e percursos de William Chandless, pelas Amazônias, no século / Raquel Alves Ishii -- Rio Branco : UFAC, 2011.
121f. : il.; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade) – Centro de
Educação, Letras e Artes da Universidade Federal do Acre - UFAC. Orientador: Prof. Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque. Inclui bibliografia 1. Chandless, William, 1829-1896 – Relatos de viagem. 2. Amazônia –
Descrições e viagens. 3. Discurso etnocêntrico. 4. Mediação cultural. 5. Amazônia acreana. I. Título.
DD: 918.112 CDU: 811.52(811.2)
4
Banca Examinadora
__________________________________________________
Professor Doutor Gerson Rodrigues de Albuquerque (Universidade Federal do Acre)
Presidente
________________________________________________________
Professora Doutora Luciana Marino do Nascimento (Universidade Federal do Acre)
Membro interno
________________________________________________________
Professor Doutor Francisco Bento da Silva (Universidade Federal do Acre)
Membro externo
________________________________________________________
Professor Doutor Agenor Sarraf Pacheco (Universidade Federal do Pará)
Membro externo
APROVADA EM 26 DE OUTUBRO DE 2011
5
Aos silenciados de ontem e de hoje,
aos que tiveram suas identidades obturadas,
aos que permanecem anônimos em
nossas literaturas e imaginações.
Enfim, aos que não tiveram direito ao seu próprio
tempo e espaço na história,
dedico este estudo.
6
AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal do Acre que possibilitou o financiamento desta
pesquisa durante todo o período do curso de mestrado, através de concessão de
bolsa de estudos CAPES/REUNI.
Ao Professor Alceu Ranzi por permitir o primeiro acesso aos relatos e ao
retrato de William Chandless e por ser a ponte inicial com a Royal Geographical
Society.
À Sara Strong, Arquivista da Sala de Leitura Foyle da Royal
Geographical Society de Londres, Inglaterra, e, Craig Fuller, Editor Associado da
Utah State Historical Society, Estados Unidos, pelo suporte durante a pesquisa
virtual.
A Jonathan Smith, Arquivista e catalogador de Manuscritos Modernos da
Trinity College Library, meu especial agradecimento, pois mais do que orientação
sobre a localização de documentos, atuou como um pesquisador para mim, além de
ter se dado o trabalho de esclarecer minhas dúvidas a respeito da formação
acadêmica de William Chandless.
Aos Professores Vicente Cruz Cerqueira, Francisco Osvanilson Dourado
Veloso, Verônica Maria Elias Kamel e Henrique Silvestre Soares pela possibilidade
de ampliar horizontes.
Ao Professor Hideraldo Lima da Costa (UFAM) e Professora Luciana
Marino do Nascimento (UFAC), pela leitura criteriosa e atenção dedicada a esta
pesquisa e pelas valorosas contribuições quando do exame de qualificação.
Ao Professor Agenor Sarraf Pacheco (UFPA), por generosamente ter
aceitado a compor a banca de defesa e se deslocar ao Acre num espaço de tempo
tão exíguo.
Ao professor e amigo Francisco Bento da Silva (UFAC), que me valeu
também na composição da banca de defesa e que, no processo de seu doutorado,
nunca deixou de ter ouvido para lamentações, café e disponibilidade para indicar
bibliografias. Devo a ele também a possibilidade de dispor dos mapas produzidos
por Chandless em formato digital e com resolução aceitável. Grata pelas numerosas
colaborações.
7
À amiga Marly dos Santos Araújo pelas longas confidências via e-mail e
pela valiosa parceria na tradução dos relatos.
Ao Mestre André, amigo presente nos bons e maus momentos.
À Ana Carla Lima e Gracione Teixeira pelos desabafos, pelos encontros
etílicos, por incentivarem a continuidade sempre, mas, principalmente, pela amizade.
À Patrícia Redigolo e aos nossos alunos da disciplina “Culturas e
Identidades Contemporâneas”: Vanessa Nogueira, Lindembergue Ricarte, Andrea
Nascimento, Jaqueline Rosa, Gilvânia Evangelista, José Paulo, Valter Frazão,
Sandra Buh, Kariane Lins e Leylane Gomes, pela fundamental interlocução durante
o Estágio Docência. “Estruturas de sentimento” nos ligarão para sempre.
À Francemilda Lopes, Luciana Sarquiz, Écio Rogério, Myully Sousa,
Maria da Luz, Pâmela Clívela e Guadalupe Rivasplata, colegas de mestrado e de
simpósios. Espero tê-los sempre em meu caminho acadêmico.
À minha mãe Alice, meu pai Alberto, meus irmãos Marcelo e Marcos.
Finalmente vocês saberão por que dediquei tanto tempo à Universidade e tão pouco
a vocês nos dois últimos anos. Obrigada pelo apoio incondicional nesses momentos
tão tortuosos para nossa família.
Por fim, agradeço àquele que deu razão à existência dessa pesquisa:
meu companheiro e orientador Gerson Albuquerque. Impossível medir sua
contribuição durante esse processo complexo “invenção do conhecimento”. Suas
reflexões, sugestões, críticas estão presentes a cada página. Nas trincheiras
amazônicas em que tem atuado organicamente como um intelectual, eu estarei
sempre ao seu lado, na tentativa de acompanhar a sua incansável produção, no
dizer de Boaventura Santos e Maria Meneses, em obra homônima, de outras
“epistemologias do sul”.
8
A tradução ocupa um espaço de passagem,
no qual não se fixam momentos cristalizados,
identidades absolutas, mas se aponta continuamente
para a condição diferencial que a constitui.
Simultaneamente excessivo e carente,
poderoso e impotente, sempre o mesmo texto
e sempre um outro, o texto de uma tradução
ao mesmo tempo destrói aquilo que o define
como original – a língua – e o faz reviver
por intermédio de uma outra língua,
estranha, estrangeira.
Susana Kampff Lages,
Walter Benjamin: tradução e melancolia, 2002.
Caminhante, são teus rastos
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se há-de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar.
António Machado,
poeta servilhano
9
RESUMO
ISHII, Raquel Alves. Viagens do “homem que virou rio”: narrativas, traduções e percursos de William Chandless, pelas Amazônias, no século XIX. 121f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Acre, Rio Branco, 2011.
O objetivo desta pesquisa foi analisar o discurso etnocêntrico, bem como aspectos
de mediação cultural presente nos relatos sobre rios da “Amazônia” brasileira de
autoria do viajante inglês William Chandless (1829-1896). Os relatos de viagem
analisados, publicados em meados do século XIX pela Royal Geographical Society,
foram: Notes on the Rivers Arinos, Juruena, and Tapajós (1862); Ascent of the River
Purus (1866); Notes on the River Aquiry, the principal Affluent of the River Purus
(1866); Notes of a Journey up the River Jurua (1869) e; Notes on the Rivers Maué-
assú, Abacaxis e Canumá (1870). A partir de reflexões de autores como Edward
Said, Mary Louise Pratt, Michel de Certeau e Hideraldo Costa, o discurso
etnocêntrico presente nos relatos de William Chandless é definido como parte de um
discurso expansionista europeu que, por sua vez, classifica e/ou categoriza as
culturas não-européias como não-civilizadas. A mediação cultural, ao analisar a
relação “estrangeiro” e “não-estrangeiro”, é compreendida conforme as
compreensões suscitadas, principalmente, por Stuart Hall, Eni Orlandi. Nesse
sentido, o elemento principal de mediação entre culturas dá-se através da
linguagem, mais especificamente, por meio do discurso, ou seja, por meio da
relação entre sujeito e história. Os relatos de William Chandless inscrevem-se no
discurso científico oriundo do século XIX, que reproduz uma visão hegemônica a
respeito da inferioridade das culturas amazônicas em relação às européias, mas
também permite, ainda que de forma paradoxal, compreender o aspecto dialógico
inerente a toda relação de interação ou contato cultural, ou seja, a relação
“estrangeiro” e “não-estrangeiro” constitui-se de uma base subjetiva em que “um” é
constituído pelo seu relacionamento com o “outro”.
Palavras-chave: William Chandless, relatos de viagem, discurso etnocêntrico,
mediação cultural, Amazônia acreana.
10
ABSTRACT
ISHII, Raquel Alves. Travels of the "man who became a river": narratives, translations and journeys of William Chandless, in the Amazons, in the nineteenth century. 121f. Thesis (Master) - Federal University of Acre, Rio Branco, 2011.
The purpose of this study was to analyze the ethnocentric discourse, as well as
aspects of cultural mediation in the reports on the "Amazon" Brazilian rivers written
by the English traveler William Chandless (1829-1896). The travel accounts
analyzed, published in mid-nineteenth century by the Royal Geographical Society,
were: Notes on the Rivers Arinos, Juruena, and Tapajós (1862); Ascent of the River
Purus (1866); Notes on the River Aquiry, the principal Affluent of the River Purus
(1866); Notes of a Journey up the River Jurua (1869) and; Notes on the Rivers
Maué-assú, Abacaxis e Canumá (1870). Considering the reflections of authors like
Edward Said, Mary Louise Pratt, Michel de Certeau and Hideraldo Costa, the
ethnocentric discourse in William Chandless’ accounts is defined as part of a
European expansionist discourse that, in turn, classifies and / or categorizes the non-
European cultures as uncivilized. The cultural mediation, in analyzing the relationship
between "foreign" and "non-foreign" is mainly understood as the insights raised by
Stuart Hall, Eni Orlandi. In this sense, the major element of mediation between
cultures takes place through language, more specifically, through discourse, that is,
through the relation between agency and history. William Chandless’ accounts enroll
in scientific discourse coming from the nineteenth century that
reproduces an hegemonic view about the inferiority of Amazonian cultures in relation
to Europe, but also allows, albeit paradoxical, understanding the dialogical aspect
inherent in every relationship of interaction or cultural contact, that is, the
relation "foreign" and "non-foreign" consists of a subjective basis that "one"
is constituted by its relationship with the "other".
Keywords: William Chandless, travel accounts, ethnocentric discourse, cultural
mediation, Amazon Acrean.
11
SUMÁRIO
Considerações iniciais – A escrita da escrita: reflexões sobre o processo ..........12
Capítulo I – Do diário ao relato científico: Chandless e os percursos historiográficos
e ficcionais ...............................................................................................................24
Capítulo II – Os habitantes do “inferno amazônico”: etnocentrismo e silenciamento
..................................................................................................................................51
Capítulo III – Práticos negros, guias, remadores e viajantes: oralidade, escrita e
encontros culturais nas “Amazônias acreanas”........................................................84
Considerações finais – Urdiduras do olhar: transgredindo o “eu” e o “outro” .... 109
Fontes documentais ............................................................................................116
Referências bibliográficas ..................................................................................118
12
A escrita da escrita: reflexões sobre o processo
Quem viaja larga muita coisa na estrada. Além do que larga na
partida, larga na travessia. À medida que caminha, despoja-se.
Quanto mais descortina o novo, desconhecido, exótico ou
surpreendente, mas liberta-se de si, de seu passado, do seu modo de
ser, hábitos, vícios, convicções, certeza.
Octavio Ianni
Enigmas da Modernidade-Mundo
O interesse pelo estudo dos relatos de William Chandless surgiu no ano de
2006, a partir de meu envolvimento nas atividades do Grupo de Pesquisa História e
Cultura, Linguagem, Identidade e Memória (GPHCLIM). Tal interesse também
contemplava um projeto de tradução comentada – ainda não concluído – da
importante obra desse viajante inglês. Àquela época, eu tinha pouca ou quase
nenhuma intimidade com literatura de viajantes e, somente após meu ingresso no
Programa de Pós-Graduação em Letras – da Universidade Federal do Acre (UFAC),
no ano de 2009, passei a ter um maior contato com essas leituras e a adquirir certa
maturidade para discutir a temática, enquanto uma proposta de pesquisa.
Possuindo uma formação pela Universidade Federal do Acre, no curso de
licenciatura na área de Letras, com habilitação em Língua e Literatura Inglesa,
admito ter tido sérios “bloqueios” durante o contato com a literatura que versava
sobre a Amazônia, tendo em vista que, nos meus quatro anos de formação
acadêmica, o mais próximo que cheguei da literatura amazônica foi através de uma
disciplina optativa intitulada “Literatura Latino-Americana”, ministrada no último ano
da graduação (2006-2007) pela Professora Dra. Margarete Edul Prado de Souza
Lopes. À professora Margarete Lopes, devo meu contato mais aprofundado com
autores literatos como: Miguel Jeronymo Ferrante, Abguar Bastos, Horácio Quiroga,
Luís Sepúlveda, entre outros, além de teóricos vinculados aos estudos de “literatura
pós-colonial” como Silviano Santiago, Thomas Bonnici, Eduardo Coutinho, Bella
Josef e José Luis Salcedo-Bastardo.
13
Entre os anos de 2007 e 2008, a experiência como professora substituta do
Curso de Letras/Inglês da Ufac me permitiu aprofundar questões teóricas que seriam
posteriormente a base sob a qual produziria meu engajamento na pesquisa. As
leituras de autores como Stuart Hall, Homi Bhabha e Edward Said, somente para
citar alguns, contribuíram para que eu, ao trabalhar com literatura inglesa nas
disciplinas de Cultura da Língua Inglesa e Panorama da Literatura Inglesa,
despertasse para necessidade de olhar criticamente as representações ou “modelos
comportamentais” de “culturas colonizadas” que estão presentes – não
exclusivamente – na literatura.
Assim, no final do ano de 2008 e início do ano de 2009, me vi diante da
possibilidade de aliar discussões sobre discurso, identidade, representação,
“literatura colonial”, estratégias de “descolonização” na literatura e imperialismo
cultural, com o contexto amazônico. Tal possibilidade se colocava primeiro, como um
desafio, tendo em vista meu raso conhecimento da história e da literatura
amazônica1 e, segundo, como uma oportunidade de conjugar vários conhecimentos,
além da literatura e da história, a antropologia, geografia e a etnologia, no intuito de
realizar um “acerto de contas” com minha própria formação básica – tão
ensimesmada.
Poder dedicar meus esforços intelectuais a uma leitura dos aspectos culturais
advindos de uma localidade em que resido atualmente e que tal leitura fosse capaz
de, na melhor das hipóteses, intervir de alguma maneira no modo como nós,
habitantes de uma parte da “Amazônia”, nos identificamos ou somos identificados
ou, no dizer de Eni Orlandi, capaz de produzir conhecimentos que pudessem “virar o
Atlântico na direção inversa das descobertas”,2 tornou-se, assim, a maior motivação
para a realização desta pesquisa.
1 Embora nascida e criada na Amazônia, convivi com essa contradição durante meus anos de formação inicial. Não que a história do Acre, ou do Estado de Rondônia, local em que nasci, não tivessem seu lugar na escola, na igreja ou na família, mas essa “história” não conseguiu criar sentimentos de identificação, pertencimento a um local, região ou cultura. A história da região é, de certo modo, “engolida” pela história do sul e sudeste do país e esta, por sua vez, pela história das “grandes civilizações européias”, sendo com estas últimas que nossa “mente colonizada” se identifica. 2 Orlandi, Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo mundo, 1990, p.18. Para Orlandi, a América ou o “Novo Mundo” é produzido historicamente mediado por um imaginário constituído pelo discurso das descobertas, ou discurso das conquistas, ou discurso da dominação.
14
Meu ponto de partida, portanto, foi uma perspectiva de estudo em que a
literatura não estivesse “apartada” da história, geografia, antropologia, filosofia,
etnografia. Essa foi uma das primeiras rupturas com a qual tive que lidar. Por isso
mesmo, nesse processo, desde a fase inicial do meu projeto, muita coisa mudou.
Nesse longo percurso, eu mudei. A própria compreensão de seus objetivos somente
ganhou mais clareza e forma concreta, após o primeiro ano de mestrado.
Essas constantes mudanças em muito se devem às discussões promovidas
pela disciplina “Linguagem, Sociedade e Diversidade Amazônica”, no âmbito do
curso de mestrado em letras. No transcorrer dessas novas leituras e reflexões, um
alargamento dos horizontes ocorria ao mesmo tempo em que se definia melhor o
campo de ação da pesquisa, as problemáticas conceituais e os posicionamentos
político-epistemológicos que deveriam ser tomados sobre as questões teóricas e
metodológicas a serem defendidas ou enfrentadas.
A partir dessa disciplina, foi possível compreender melhor o conceito de
“cultura” que, como todo conceito, no dizer de Williams, é um “problema”. E não um
problema analítico, mas um movimento histórico indefinido.3 Nesse mesmo caminho,
dialoguei com a perspectiva da compreensão dialética proposta por Stuart Hall sobre
o conceito de “cultura” – concebida num diálogo paradigmático com E.P Thompson e
Raymond Williams –, na qual não se permite excluir das reflexões sobre as “práticas
culturais”, as tensões ou conflitos de interesses, as questões de hegemonia e a
experiência.4
A própria noção de “Amazônia” como um dado objetivo, um todo homogêneo,
passível de uma catalogação universalizadora de sua paisagem, de seus aspectos
econômicos, relações de parentesco, concepções religiosas, características
linguísticas, entre outros, caiu por terra em decorrência de leituras e debates que se
seguiam ao longo do curso. Essa região, comumente tratada de forma dicotômica
pelos cânones literários e históricos, passou a ser encarada como uma categoria
histórica, e não como um termo naturalizado, um dado à priori, sob pena de pouco
3 Williams, Marxismo e literatura, 1979, p. 17. 4 Sobre esses aspectos do debate teórico a respeito do conceito de “cultura”, ver Stuart Hall, Estudos Culturais: dois Paradigmas e Notas sobre a desconstrução do “popular” em Hall, Da Diáspora: identidades e mediações culturais, 2003.
15
ou nada dizer a respeito da multiplicidade cultural, étnica e linguística que nela
convive.5
Nesse mesmo movimento, se romperam as fronteiras que separavam as
“áreas do conhecimento” em campos estritamente definidos. Este ambiente de
“fronteiras porosas” entre as disciplinas – visto ainda por muitos no meio acadêmico
como “sintoma de fraqueza científica” –, somente teve lugar devido à característica
multidisciplinar do Mestrado em Letras – Linguagem e Identidade da Universidade
Federal do Acre. Característica essa que, longe de prejudicar a fundamentação
teórica de uma pesquisa, possibilitou exatamente lançar mão de outros conceitos,
argumentos ou “ferramentas de análise”, de modo a ampliar as perspectivas de
compreensão das diferentes realidades humanas.
Inserido na linha de pesquisa “Cultura e Sociedade”, o objetivo primeiro deste
estudo era verificar a “produção de identidade” presente nos relatos de viagem do
naturalista inglês William Chandless, centrado no levantamento das descrições feitas
por esse viajante acerca das “culturas amazônicas”. No entanto, entendendo que os
relatos de Chandless participam, juntamente com outros relatos produzidos em
diferentes épocas, da formulação histórica de um certo discurso sobre a região, no
qual predominam vozes etnocêntricas, precisei tomar o elemento discursivo desses
textos como o fio que segue alinhavando – e sendo alinhavada por – suas
historicidades, pois, no dizer de Orlandi, não “há história sem discurso”6 e, como
lembra Agenor Pacheco, tampouco existe discurso sem história.
A partir daqui, a fim de dar conta dessas historicidades, acompanhando a
perspectiva de que, “para quem analisa discursos”, a história “não são os textos em
si, mas a discursividade”,7 compreendi que não mais seria possível continuar a
pesquisa sem estabelecer as problemáticas existentes entre homem e natureza,
entre ciência, política e estado, entre linguagem e identidade, além de relacionar
outros relatos de viajantes que também escreveram sobre a Amazônia durante o
5 Como parte das leituras que me ajudaram a pensar a questão da definição histórica do conceito de “Amazônia”, ressalto as leituras de Freire, Rio Babel: a história das línguas na Amazônia, 2004; Gondim, A invenção da Amazônia, 1994; Euclides da Cunha, Um paraíso perdido, 1986; Ferreira Reis, História do Amazonas, e O seringal e o seringueiros; Costa, Costa, Cultura, trabalho e luta social na Amazônia: discursos dos viajantes – século XIX, 1995; Tocantins, O rio comanda a vida, 1952; e Albuquerque, Trabalhadores do Muru, 2005. 6 Orlandi,Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo mundo, 1990, p. 14. 7 Ibidem, p. 18.
16
século XIX, como forma de tentar compreender as razões pelas quais, em seus
textos, predominaram determinados discursos e não outros.
Existe uma vasta, rica e interessante literatura sobre o tema dos relatos de
viajantes na América, no Brasil ou na Amazônia. Sua extrema relevância para
compreensões, em diferentes áreas do conhecimento, os tornou objeto de longos e
continuados estudos, sob diversas abordagens, porém, por razões que têm a ver
com próprio formato do texto – exigido pelo programa de pós-graduação – e pela
necessidade de dar maior atenção aos relatos de Chandless – visivelmente ignorado
nos estudos sobre esse tipo de narrativa – escolhi não lhes dar maior espaço no
corpo deste estudo.
No entanto, com relação às discussões locais, ou seja, produzidas no âmbito
da Universidade Federal do Acre, não poderia deixar pontuar alguns aspectos
constantes das abordagens de estudos que antecederam minha pesquisa,
principalmente, porque esses estudos, partindo de diferentes referenciais teóricos,
abordaram os relatos de viagem como suas fontes principais, dialogando com o
“espaço amazônico” como seu lócus de discussão.
Como parte da produção acadêmica oriunda do Programa de Mestrado em
Letras da Ufac, duas pesquisas merecem ser ressaltadas, o primeiro intitulado
Microfísicas do imperialismo: a Amazônia da década de 80 em relatos de viagem, de
Eliomar Rodrigues da Rocha; e o segundo, Gosto, sabores e dissabores: contatos
culturais, de Francemilda Lopes do Nascimento.
Eliomar Rodrigues da Rocha traz importantes contribuições aos estudos de
relatos de viajantes, destacando, no panorama das discussões de seu objeto de
pesquisa, a constituição do discurso etnocêntrico formulado sobre a “Amazônia
brasileira”, ou mais especificamente, a “Amazônia rondoniense”, registrada por
jornalistas “estrangeiros”, do final do século XX. No entanto, na ânsia de tornar
explícita a “intenção imperialista” presente nos relatos estudados, o autor trata dos
escritos “estrangeiros” como pertencentes a um bloco hegemônico, formado por
pessoas “de fora”, predestinadas a relatar seres e culturas não civilizadas. Em
outros termos, condena sumariamente os viajantes “estrangeiros” a um
determinismo ideológico, cuja base é o “imperialismo norte americano”, anulando
qualquer possibilidade de trocas culturais entre os diferentes grupos que se
17
encontram, produzindo, desse modo, um retorno à dicotomia
colonizador/colonizado.8
Nas considerações de Francemilda Lopes do Nascimento, os relatos de
viagem de Frei Gaspar de Carvajal e de Frei Cristóbal de Acuña compõem apenas
uma parte de suas fontes de pesquisa. A outra parte é constituída por entrevistas,
realizadas no mês de junho de 2008, na fronteira entre as cidades de Brasiléia –
Brasil, e Cobija – Pando/Bolívia. O objetivo principal foi desenvolver uma reflexão
acerca dos aspectos alimentares na “região amazônica”, presentes tanto nos relatos
citados quanto nas entrevistas. Em que pese uma certa fragilidade nas formulações
ou embasamentos teóricos, que buscam fundamentar o “recorte” temporal da
pesquisa, que compreende os séculos XVI e XVII e depois salta para o XXI, as
conclusões da autora apontam para uma interessante compreensão acerca dos
“contatos culturais” em regiões de fronteira (ocorridos entre o europeu e o não-
europeu e/ou entre o “acreano” e o “boliviano”), como sendo mediado pelo conflito
de valores, em que a alimentação “serve para estabelecer identidades e definir
grupos” .9
Mais recentemente, em pesquisa de pós-doutoramento, a professora Simone
de Souza Lima fez uso das “ferramentas de análise” disponíveis no campo da
literatura comparada e da teoria crítica pós-colonial com o objetivo de, a partir,
principalmente, de relatos de viagem produzidos no período colonial do Brasil, mas
também, de textos literários do século XX que versam a respeito do “espaço
amazônico”, refletir sobre como foi “inventado” ou “fabricado” o “Mito das
Amazonas”.10
Epistêmes não sistêmicas: as fontes, a teoria e o método
De um modo geral, minhas fontes constituem-se em quatro relatos de viagem
de William Chandless sobre rios da “Amazônia”, todos publicados na Revista da
Royal Geographical Society de Londres, Inglaterra. São eles: Notes on the Rivers
8 Rocha, E. R. Microfísicas do Imperialismo: a Amazônia da década de 80 em quatro relatos de viagem. Dissertação (Mestrado). 2008. 9 Nascimento, F. L. Gosto, sabores e dissabores: contatos culturais entre as fronteiras da Amazônia acreana. Dissertação (Mestrado). 2010, p. 106. 10 Lima, S. de S. Literatura & Meio Ambiente – ficção, corpos e nomadismos na pan-amazônia. Tese (Pós-Doutorado). 2010.
18
Arinos, Juruena, and Tapajos (1862); Ascent of the River Purus (1866); Notes on the
River Aquiry, the principal Affluent of the River Purus (1866); Notes of a Journey up
the River Jurua (1869) e; Notes on the Rivers Maué-assú, Abacaxis e Canumá
(1870).
Além desses relatos tive acesso a um artigo de Chandless A visit to the india-
rubber groves of the Amazons, publicado durante o ano de 1869, em uma coletânea
organizada pelo naturalista inglês Henry Walter Bates, cujo título é Illustrated travels:
a record of discovery, geography, and adventure. No entanto, por uma questão de
recorte metodológico, preferi deixá-lo de lado durante o processo de reflexão e
escrita do texto final.
Inspirada nas inquietantes discussões produzidas por Edward Thompson,
sobre as “idealizações marxistas” de Louis Althusser, no fazer e re-fazer das muitas
leituras das fontes da pesquisa, atentando sempre para o que está dito/escrito como
“central”, mas, também, para o que está oculto/não revelado como “periférico”, foi
possível apreender que, nas “margens” ou nas “fronteiras do desconhecido”, resta-
nos
interrogar os silêncios reais, através do diálogo do
conhecimento. E, à medida que esses silêncios são
penetrados, não cosemos apenas um conceito novo ao
pano velho, mas vemos ser necessário reordenar todo o
conjunto de conceitos.11
O papel, portanto, de quem “explora”, segundo Thompson, é a interrogação
dos “silêncios reais” e, no diálogo com esses “silêncios”, estar disposto a abrir mão
da estabilidade de determinados conceitos, entendendo-os como que num
permanente estado de transição. Nesse diálogo com as fontes, em que precisei
deixar “em suspenso” alguns conceitos, pude aos poucos produzir outras tramas,
11 Thompson, A miséria da teoria, 1981, p.185. A propósito da escrita da história, do ofício do historiador, E. P. Thompson critica àqueles que supõem que tudo que se pode saber sobre a história pode ser construído a partir de um aparelho mecânico conceitual, em que se busca uma causa para os acontecimentos e realiza-se uma posterior descrição de sua conseqüência, produzindo um sistema finito de relações. Creio que é possível estender essa crítica a respeito do ofício do historiador à produção de qualquer tipo de conhecimento, pois, no dizer de Thompson, devemos lembrar que não há sistemas finitos.
19
também, conceituais que promovessem aberturas reflexivas, impossíveis de serem
pré-vistas.
Durante minha busca, no desgastante, perigoso e inibidor diálogo com os
“silêncios reais”, por várias vezes, ao ler os relatos, me surpreendi necessitando de
outra compreensão do espaço geográfico amazônico e confesso que, somente com
auxílio de mapas, fruto também de construções mentais/conceituais e subjetividades
diversas, consegui embarcar nos vapores, batelões e canoas que conduziram
viajantes europeus, norte-americanos e brasileiros pelos rios das Amazônias,
durante o século XIX.
Nesse sentido, a narrativa geográfica se tornou importante no diálogo
proposto, sem deixar de atentar que ela é parte substancial da “narrativa da
conquista”, como adverte Edward Said,12 em tensa leitura de seus diferentes
aspectos/abordagens literárias. De posse dos mapas, visualizei imagens – leituras,
traduções ou interpretações dos lugares e gentes – que os viajantes compuseram
em seus relatos, à medida que seguiam seu curso em rios de águas “barrentas”,
“escuras” ou “claras”. A partir dessas experiências de leituras, diálogos e
interrogações, os rios, regiões, cidades e inúmeras localidades indígenas, passaram
a ter novos significados – diante de meus olhos –, principalmente, os significados
que lhes atribuem, ao mesmo tempo, existência diversificada e única, embora dentro
de um contexto que tende à homogeneização de rostos, cores, árvores, rios e
animais.
Ainda que tenha tido, em alguns momentos desse processo de investigação,
o vício do olhar “clinicamente direcionado” a determinados aspectos previamente
levantados, passei algumas tardes imaginando a forma das aves descritas por
Robert Avé-Lallemant, para depois colori-las conforme suas anotações; as longas
viagens de canoa e as variadas temperaturas dos rios medidas por Chandless; ou
mesmo montando um quebra-cabeça mental e variegado das borboletas de Henry
Bates.
Assim fazendo, me permiti entender o fascínio que estes escritos a respeito
de regiões “inexploradas” ou “desconhecidas” exerciam e ainda exercem em seus
leitores, tanto pelo seu valor histórico quanto pela forma que se apresentavam ou se
12 Said, Cultura e Imperialismo, 1995.
20
apresentam. O estilo peculiar de cada viajante-escritor incorporado a uma narrativa
linear, aos moldes de um romance tradicional, provida de uma sucessão de
acontecimentos que saltam aos olhos de quem os lê, como “descobertas”
inesperadas que surgem a cada frase, provocam um amontoado de sentimentos
instigantes no leitor – que precisa estar vigilante, mesmo nos momentos mais lentos
da narrativa.
Ser guiada através dos olhos de quem se deslumbra com imagens
“diferentes” de tudo aquilo que estava acostumada a ver é, inevitavelmente,
deslumbrante, pois, ao ler os escritos, não há como não se colocar no lugar do
viajante “desbravador”, principalmente, quando se trata de ler a “descrição de
lugares e gentes” que viveram nas proximidades ou nos mesmos “espaços
geográficos” daquele que lê os relatos. Não obstante, é preciso ressaltar que novos
significados foram atribuídos ou re-significados num choque conceitual à medida que
as visões – do viajante e da leitora – se (des)encontravam.
Talvez, o fascínio que exerciam e exercem ainda tais relatos, segundo
Octavio Ianni, deve-se a um aspecto característico da viagem, que atravessa a
história dos povos, seja na forma de “realidade”, seja na forma de metáfora. Para ele
é
como se a viagem, o viajante e sua narrativa, revelassem todo
o tempo o que se sabe e o que não se sabe, o conhecido e o
desconhecido, o próximo e o remoto, o real e o virtual, (...) a
viagem compreende várias significações e conotações,
simultâneas, complementares ou mesmo contraditória.13
No aspecto da viagem, pondera o autor, podemos encontrar o jogo das
oposições, complementações, coexistências, principalmente, no que diz respeito à
compreensão das noções de “igual” e de “diferente”. Isso implica em reconhecer que
“descoberta” e “auto-descoberta” fazem parte desse mesmo processo: ao ler os
relatos, no momento em que descobrimos o “outro”, descobrimos o “eu” e vice-versa.
13 Ianni, Enigmas da Moderninade-Mundo, 2003, p. 13.
21
No fazer da pesquisa, busquei ao máximo percorrer um caminho que
passasse longe de determinismos ou reducionismos conceituais e que não
estabelecesse relações causais para as “descobertas”, sob pena de “encapsular”
não somente as fontes, mas os sujeitos que produziram o discurso em questão, em
“formas interpretativas” dadas à priori. Tais “formas interpretativas” movem-se dentro
de uma espécie de maniqueísmo sistêmico, excluindo o acaso e as contradições
que são inerentes aos mais diversos modos de vida e de relações humanas.
Assim, no percurso de “observar” como os “homens de ciência”, do século
XIX, “observaram” os homens e mulheres da “Amazônia”, precisei descobrir de que
modo fazê-lo. Partindo da percepção de que toda “reflexão metodológica enraíza-se,
com efeito, numa prática histórica particular, num espaço de trabalho específico”,14 o
método que adotei nesse percurso não poderia ser, de forma alguma, um dado
anterior, uma “receita prescritiva” universalizadora do mundo e das relações
humanas; uma antecipação à experiência, mas sim uma prática reflexiva localizada
em espaço específico, inserida num particular da história.
Esta reflexão, portanto, somente poderia se fazer-fazendo, tendo direito a
uma abordagem própria, pois uma metodologia pré-estabelecida para analisar as
fontes de pesquisa, com as quais me propus a dialogar, conteria um final objetivo e
certo e, conseqüentemente, resultaria num monólogo pré-estabelecido. Não haveria,
assim, espaço para a “arte de inventar” o conhecimento ou a preocupação heurística
de que nos fala Paul Gilroy,15 cuja orientação teórica e metodológica, ao analisar
culturas modernas, mais do que apresentar respostas está voltada para o próprio
processo de perceber o que, até então, não se percebia.
Nesse sentido, fez-se necessário romper com os “sistemas de pensamento”
ou os “pensamentos-sistema”, como sugere Edouard Glissant, para quem, produzir
outra forma de conhecer a “realidade”, requer abrir mão das formas que estruturam
e/ou sistematizam o “modo interpretativo” dessa “realidade”.16
Na direção apontada por esse intelectual afro-caribenho é necessário produzir
uma “poética da diversidade” que leve em consideração um modo não binário de 14Chartier, O mundo como representação, 1991. Ao tentar compreender como a escrita modificou as sociedades do Antigo Regime entre os séculos XVI e XVIII, Chartier estabelece seu método próprio de estudo baseado em três pólos: o estudo crítico dos textos, a história dos livros e a estudo das práticas que se apreendem dos bens simbólicos com seus diferentes usos e significações. 15 Gilroy, O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência, 2001, p. 35. 16 Glissant, Introdução a uma poética da diversidade, 2005.
22
compreender a experiência humana, ou seja, que nos permita ser nós mesmos e ser
o outro, sem que isso signifique diluir-se por completo no outro. As estruturas ou
sistemas estabelecem limites, ordenam e fixam seus elementos; determinam,
pasteurizam, universalizam suas relações e, além disso, estão sempre prontas para
expurgar de seu interior qualquer manifestação que não esteja, previamente,
categorizada ou catalogada.
É nesse sentido que, ao propor uma descrição e análise do discurso
etnocêntrico presente nos relatos de William Chandless, intento em não opor de
modo binário o papel do “estrangeiro” diante do “nativo” amazonida.
O entendimento dos múltiplos significados dos relatos de viagem resultou
numa abertura epistemológica, no que se refere à abrangência do valor histórico
desses documentos enquanto fontes de pesquisa; de sua constituição enquanto
“representação do real” e de sua articulação com temporalidades presentes através
do discurso que os atravessa. Os relatos são, portanto, ao mesmo tempo, produtos
da linguagem e produtores de linguagem. Eles pertencem a um determinado
momento na história, mas se movimentam nela enquanto enunciados que
constituem um ou vários discursos.17
Inevitavelmente, realizar uma pesquisa a partir dos relatos de William
Chandless, com o objetivo de analisar o discurso etnocêntrico produzido acerca das
“culturas amazônicas”, me levou a seguir a trajetória de vida desse viajante e a
tentar compreender o imaginário e as subjetividades que povoavam o contexto
histórico em que viveu e produziu seus escritos.
Nesse processo, além dos autores já citados, mantive conflituosos e
inspiradores diálogos com Keith Thomas, Walter Benjamin, Mary Louise Pratt, Sérgio
Cardoso, Michel de Certeau, Lilia Moritz Schwarcz, Hideraldo Costa, José Carlos
Barreiro e Agenor Pacheco, que exerceram significativa influência na orientação de
meu olhar ou minha reflexão sobre as fontes de pesquisa. A influência das leituras e
construções mentais desses intelectuais não se encontra de maneira isolada em um
determinado capítulo, mas diluída nas articulações/desarticulações,
injunções/disjunções feitas entre as minhas ponderações e os relatos de viagem.
17 Orlandi, op. cit., 1990.
23
Ao lidar com os relatos, não pretendi, como observa Victor Leonardi, inverter
os pólos dos preconceitos, de modo a conferir ao modelo de “civilização” ocidental
todos os males antes atribuídos aos “indígenas” e a outros “personagens locais”,
com suas diferentes culturas, pois esse “etnocentrismo oposto” ou essa “simples
reinversão do preconceitos (...) apenas contribui para ocultar, mais uma vez, a
diferença e a contradição...”.18 Busquei assim, lançar aos relatos de viagem o “olhar
político” de Walter Benjamin, para “profanar” as sacralizações historicamente
constituídas, procurando encontrar nas “margens”, nas “sombras”, nos “rastros” ou
nos “esquecimentos”, uma outra reflexão histórica e discursiva de uma parte das
muitas e desconhecidas Amazônias.
A partir dessa perspectiva, o presente estudo está dividido e estruturado da
seguinte maneira: Considerações iniciais – A escrita da escrita: reflexões sobre o
processo; Capítulo I – Do diário ao relato científico: Chandless e os percursos
historiográficos e ficcionais; Capítulo II – Os habitantes do “inferno amazônico”:
etnocentrismo e silenciamento; Capítulo III – Práticos negros, guias, remadores e
viajantes: oralidade, escrita e encontros culturais nas “Amazônias acreanas”; e
Considerações finais – Urdiduras do olhar: transgredindo o “eu” e o “outro”.
18 Leonardi, Os historiadores e os rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira, 1999, p. 23.
24
Capítulo I
Tanto se perde como se encontra, ao mesmo tempo que se
reafirma como se modifica. No curso da viagem há sempre
alguma transfiguração, de tal modo que aquele que parte não
é nunca o mesmo que regressa.
Octavio Ianni
Enigmas da Modernidade-Mundo
Viajar, sabemos, não é dado a todos.
Há homens acomodados, caseiros e sedentários, que
parecem ignorar as divisões do espaço e pouco prezam a
geografia. (...)
Mas há também homens inquietos – curiosos ou insatisfeitos
– aos quais o ponto cego do horizonte obseda,
constantemente fustiga e desafia. (...) Sua compleição e
disposição de geógrafos – seduzidos que são pelos
elementos da topologia – quase os sempre impelem para o
espaço aberto, e os levam a afrontar montanhas e areias,
obstáculos e vazios.
Sérgio Cardoso
O olhar viajante (do etnólogo)
25
Do diário ao relato científico: William Chandless e os percursos
historiográficos e ficcionais
Nascido em 07 de novembro de 1829, em Londres, Inglaterra, William
Chandless era o mais novo dos herdeiros de uma família de quatro filhos: três
homens e uma mulher. Herdou, de seu avô paterno, juntamente com seus irmãos e
irmã, bens e fortuna que lhe garantiram uma vida abastada e o consequente
financiamento de suas expedições pelo continente americano. Estes e outros
aspectos da trajetória desse viajante podem ser encontrados em seu obituário,
escrito por George Earl Church, e publicado no The Geographical Journal.19 Além do
obituário, o artigo de Edwina Jo Snow, intitulado “William Chandless: British
Overlander, Mormon Observer, Amazon Explorer”,20 publicado na Revista Utah
Historical Quarterly: roads less traveled, é uma importante fonte de acesso à vida
pessoal de Chandless. A respeito de detalhes sobre sua origem e formação, cremos
não haver outra fonte, exceto o contato direto com seus descendentes que,
conforme a atual arquivista da Royal Geographical Society - RGS, Sara Strong,
ainda detêm a posse de seus manuscritos, além de instrumentos científicos
utilizados em suas viagens.
Chandless residiu na cidade de Manaus, entre os anos de 1861 e 1868.
Segundo Snow, há uma “lenda da família Chandless” sobre a real motivação para
que o viajante inglês se aventurasse pelo continente americano, por lugares muito
pouco conhecidos na Inglaterra. A lenda conta que Chandless, “que nunca casou,
tornou-se um explorador porque se apaixonou por uma moça com quem não poderia
casar – sendo ela católica e já casada”.21 Assim sendo, restou ao Mestre em Artes
dedicar-se às suas viagens e cumprir o papel que cabe aos viajantes: apresentar a
seus leitores, as “realidades” que presenciou, vivenciou ou ouviu, acompanhada das
“análises” e traduções que fez sobre essas mesmas “realidades”.
19 Church, Obituary: William Chandless, 1896, p. 77-79. 20 Snow, William Chandless: British Overlander, Mormon Observer, Amazon Explorer, 1986, p. 116-136. 21 Snow, E. J, op. cit., p. 133-134. No original: “(…) who never married, turned to exploration because he fell in love with a lady he could not marry – she being a Catholic and already married.”.
26
Suas viagens pela América compreenderam os anos de 1855 a 1868, treze
anos, portanto, incluindo alguns retornos pontuais à Inglaterra. Quando fixou
residência no Brasil, em 1861, mais especificamente em Manaus, à época cidade
localizada na província do Amazonas, Chandless tinha 32 anos. O viajante viveria
ainda pouco mais que o dobro dessa idade, quando em 05 de julho de 1896, em
Londres, sua “cidade natal”, faleceu em decorrência de uma inflamação nos
pulmões,22 aos 67 anos.
Não obstante as dificuldades de acesso a fontes de pesquisa, que nos
possibilitassem mergulhar no imaginário acerca das condições e motivações de
Chandless em viajar para a América do Sul, as publicações de seus relatos sobre
rios da “Amazônia”, na revista da RGS, permitem acompanhar os dados
cronológicos, a relação e as distâncias temporais entre suas viagens. Os extratos
das reuniões da Sociedade, momentos em que geralmente se apresentavam os
relatos enviados por colaboradores e membros viajantes dos cinco continentes,
também nos oferecem caminhos para contextualizar as discussões em que suas
descobertas se inseriam.
Chandless “era de classe alta, rico e bem educado, com uma inclinação para
a escrita”,23 diz Snow, comparando-o com outros viajantes ingleses, do século XIX,
que cruzaram o oceano Atlântico em direção ao “Novo Mundo”. Tornou-se, em 1852,
Bacharel em Artes pelo Trinity College da Universidade de Cambridge,24 atingindo o
quinto melhor lugar entre os alunos de sua turma. Oriundo da Shrewsbury School,
Chandless foi admitido no Trinity College como um pensioner, um equivalente para
aluno pagante, em 05 de julho de 1848. Através da mesma universidade, em 1855,
recebeu o título honorífico de Mestre em Artes. Interessava-se sobremaneira pelos
estudos do grego e do latim e possuía facilidades com a escrita. Assim como seu
pai, Thomas Chandless, detentor do título de Queen’s Counsel, o mais alto posto
para um advogado, começou a se profissionalizar em direito após sua graduação e,
assim o fez durante dois anos. No entanto, nunca chegou a atuar como advogado,
22 Church, op. cit., p. 79. 23 Ibidem, p. 118. No original: “he was upper class, wealthy, and well-educated, with a bent for writing”. 24 Estas informações foram coletadas por intermédio de Jonathan Smith, Arquivista e Catalogador de Manuscritos Modernos da Trinity College Library.
27
pois, no dizer de Snow, “afastou-se do caminho da família e fez o seu próprio
caminho, como um viajante e explorador”.25
Durante a segunda metade do século XIX, Chandless percorreu e estudou
diferentes rios que cortam a região que hoje se configura como o Estado do Acre.
Provavelmente, por esse feito mereceu como homenagem ter seu nome celebrado
em um rio, o Rio Chandless (antes denominado Araçá, último afluente do Rio Purus)
e, mais recentemente, no Parque Estadual Chandless, o segundo maior parque
natural da Região Norte,26 além de uma escola municipal criada no ano de 2002 e
localizada dentro no referido parque.27
No entanto, após 150 anos de sua vinda ao Brasil e à “Amazônia acreana” o
viajante ainda não obteve um estudo mais aprofundado sobre sua trajetória de vida,
de seus escritos sobre a Amazônia, tampouco uma reflexão crítica de suas
abordagens. As referências ao seu legado, no que se referem aos registros da
historiografia amazônica, incluem exaltações incondicionais, descrições ou notas de
rodapé pouco reflexivas. Suas informações serviram a historiadores, geógrafos,
antropólogos, linguistas e a tantos outros pesquisadores, como fonte de dados
objetivos acerca de aspectos fluviais, econômicos, linguísticos ou arqueológicos das
regiões por ele “exploradas”.28
Todavia, a variada contribuição científica de Chandless será de fato, não
somente reconhecida pela historiografia da Amazônia brasileira, mas propagada em
ampla escala a partir das leituras elaboradas pelo engenheiro Euclides da Cunha
que, no ano de 1904, recebe a missão de percorrer o mesmo trajeto exploratório de
Chandless no Rio Purus, como Chefe da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de
Reconhecimento do Alto Purus.
Ao falar das viagens de Chandless, pelos rios da “Amazônia” brasileira, é
inevitável falar de Euclides da Cunha, que recorreu ao viajante inglês para conhecer
o Rio Purus. Por sua vez, inúmeros historiadores, sociólogos, literatos e
25 Snow, op. cit., p. 118. No original: “departed the family path and made his own way as a traveler and explorer”. 26 Criado pelo decreto 10.670, de 02 de setembro de 2004, o parque possui uma aérea de 695.303 hectares, cerca de 4% da área do Estado do Acre. A área abrange parte de três municípios: Santa Rosa do Purus, Manoel Urbano e Sena Madureira. 27 Brasileiro, Chandless: gigante pela própria natureza, p. 42. 28 Dentre os autores que estudaram as expedições de Chandless, ver: RICARDO, C. O Tratado de Petrópolis, 1954; TOCANTINS, L. Formação Histórica do Acre, 1961; FERREIRA REIS, A. C, História do Amazonas. 1989.
28
antropólogos amazônicos recorreram a Euclides da Cunha para conhecer
Chandless. No entanto, é possível dizer que, tanto o Rio Purus quanto Chandless,
são, ao mesmo tempo, conhecidos e desconhecidos nas muitas leituras feitas sobre
eles.
Euclides da Cunha dedicou-se à leitura do relato intitulado Ascent of the River
Purús e passa a reconhecer a notabilidade “científica” contida nele, mesmo quando
encontra as inverossimilhanças presentes nas cartas geográficas de Chandless. A
respeito dessas questões, o autor de Os Sertões atribui as divergências ou “erros
inevitáveis” entre as suas leituras e a do naturalista inglês às erosões nas margens
do rio ou à “intensa degradação das partes côncavas onde se aprumam os
barrancos coincidindo com os aterros das partes convexas onde se dilatam as
praias”.29
Os muitos contrastes nos aspectos geográficos ou cartográficos entre os
apontamentos de Euclides da Cunha e os de William Chandless, sobre o leito do rio
Purus, em muito se devem, como assinalou o próprio Euclides da Cunha, às
mudanças naturais ocorridas nas margens do referido rio, ao longo dos 40 anos que
separaram as duas expedições. Vale ressaltar, ainda que Euclides da Cunha era
engenheiro de formação e Chandless um Mestre em Artes; ou, o que considero mais
importante, que Euclides da Cunha vinha em missão oficial numa comissão de
demarcação/reconhecimento de fronteiras, enquanto Chandless viajava por
“interesse científico”, em seu amplo aspecto.
Não obstante a tais especificidades das áreas do conhecimento de ambos os
viajantes, Euclides não deixa de exaltar e, por vezes, justificar os feitos de
Chandless:
Dificilmente se encontra um outro tão pertinaz, tão
consciencioso, tão lúcido e tão modesto. A sua viagem
penosíssima, de oito meses que teve como únicos auxiliares os
índios bolivianos e os ipurinãs, que lhe impeliam a canoa, é
talvez a mais tranqüila das grandes expedições geográficas.
(...) É assombroso e interessante apenas pelos grandes
29 Cunha, Um Paraíso Perdido, 1986. p. 122.
29
resultados que teve, desdobrados com raro rigorismo das mais
simples leituras barométricas às mais sérias determinações de
coordenadas.30
Ao desvendar a falha do viajante inglês em seu objetivo de descobrir a
comunicação entre as bacias dos rios Madre de Dios, Ucaiale e Purus, “em virtude
de um ligeiro desvio em sua rota”, Euclides da Cunha conclui que isso não invalida
ou diminui “os esforços do notável explorador, traído nos seus últimos passos por
uma circunstância de todo fortuita.”31
Não há receio em afirmar que a re-leitura dos textos de Chandless, feita por
Euclides da Cunha, semeou no âmbito de diversos estudos e, em especial, da
historiografia amazônica, o valor das reflexões produzidas e dados coletados ao
longo dos percussos do viajante inglês, bem como seu local de destaque entre os
“exploradores pioneiros” sobre locais “desconhecidos” dessa “região”.
As sínteses elaboradas por Euclides da Cunha, sobre aspectos relativos não
somente à figura de William Chandless, mas também a respeito de suas
“descobertas”, serão reproduzidas, posteriormente, em documentos e revistas do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e em diversos outros textos sobre
as Amazônias acreanas dos séculos XIX e XX. Seguindo a esteira de Euclides da
Cunha, encontramos em vários textos de historiadores que escreveram sobre a
“História da Amazônia”, menções a Chandless e suas “descobertas” astronômicas,
hidrográficas, linguísticas, cartográficas, entre outras.
O próprio fato de se atribuir à Chandless a qualidade de “geógrafo” ou
“engenheiro” decorre de uma analogia feita a partir da informação de que seus
relatos foram publicados através da Royal Geographical Society – RGS, chegando
ao ponto do próprio Euclides da Cunha afirmar que a RGS comissionou o viajante
com o objetivo de resolver a “questão do Madre de Dios”:
Diante de juízos tão contrapostos, compreende-se que a Royal
Geographical Society, de Londres, comissionasse, em 1864,
um de seus membros, William Chandless, para resolver o
30 Cunha, Um Paraíso Perdido, 1986, p. 146. 31 Ibidem, p. 148.
30
contravertido assunto, ou, como se usou dizer por muito tempo
– o problema do Madre de Dios e do Purus.32
Porém, durante a análise das fontes desta pesquisa, fica evidente que
Chandless percorreu o Rio Purus no período compreendido entre os meses de junho
de 1864 a fevereiro de 1865 e que, embora a primeira publicação de sua autoria, na
Revista da RGS, datasse de 1862 (Notes on the Rivers Arinos, Juruena, and
Tapajós), sua vinculação àquela sociedade de pesquisa data de 1866, ano em que
publicou, além do relato sobre o Rio Purus, o relato sobre o Rio Acre (Aquiry). Desse
modo, pelo caráter da própria RGS, parece improvável que a mesma tenha
financiado alguém que não constava como membro dessa instituição – um não-sócio
–, com a missão de resolver qualquer questão obscura acerca de rios da
“Amazônia”.
Apreendemos a possibilidade do não financiamento das viagens de
Chandless, ao acompanharmos os registros das discussões feitas após as leituras
de relatos de diferentes viajantes – entre eles An Exploration of the River Aquiry: an
Affluent of the Purus, de Chandless – durante a sétima reunião da RGS, ocorrida em
25 de fevereiro de 1867. O registro é um relato em terceira pessoa, do qual
destacamos um trecho da fala reportada do Presidente da Sociedade, à época, Sir
Roderick I. Murchison:
... ele viajou pela América do Sul a partir do Paraguai até o Rio
Tapajós, no Amazonas. Em seguida, o Sr. Chandless dedicou
cerca de dois anos para a exploração que rendeu-lhe a mais
alta distinção da Sociedade, qual seja, a do rio Purus, afluente
do Amazonas, subindo o rio por mais de 1.800 milhas. Ao
mesmo tempo, previu várias sinuosidades nas curvas do rio por
meio de observações precisas. O Sr. Chandless fez este
trabalho inteiramente por meios próprios. O presidente [da
RGS] acreditava que não era exagero dizer que na Sociedade
32 Cunha, Um Paraíso Perdido, 1986, p. 143.
31
nunca houve alguém que, através de empenho próprio, tivesse
conquistado tanto como o Sr. Chandless.33
“A mais alta distinção da Sociedade”, conferida ao viajante inglês, era a Gold
Medal, também conhecida como Victoria Medal ou Patron’s Medal, obtida
justamente por seu mérito científico, após a publicação do relato sobre o Rio Purus,
no ano de 1866. Possivelmente, o fato de ter realizado suas expedições sem outras
fontes de recursos que não as suas próprias, deve ter colaborado para que
merecesse tamanha distinção entre os membros da RGS:
Chandless foi um cavalheiro inglês, que por sua própria conta e
risco conseguiu aquilo que os Reis de Espanha e das Índias e
os colonos da América do Sul foram incapazes de fazer. Ele
subiu o mais longo e interessante rio cerca de 1900 milhas
acima de sua confluência com o Amazonas. Sem aludir aos
detalhes científicos divulgados em seu valioso trabalho, diriam
que foi uma façanha digna da aprovação da Sociedade
Geográfica34
Desvendar comunicações entre rios ou resolver a “questão do Madre de
Dios”, no dizer de Euclides da Cunha, por certo, estava presente entre os objetivos
de Chandless, ao percorrer o Rio Purus, entre os anos 1864-65. Afinal, a
necessidade, principalmente, econômica de interligação e navegabilidade pelos rios
da região não emanava apenas do governo brasileiro. A Inglaterra vislumbrava, no
33 Proceedings of the Royal Geographical Society, 1867, p. 106. No original “he afterwards travelled through South America from the Paraguay to the Amazons down the Tapajos River. Mr. Chandless then devoted about two years to the exploration which gained for him the highest distinction of this Society, namely, that of the river Purus, a tributary of the Amazons, which he ascended for more than 1800 miles. He at the same time laid down the various windings of the river by accurate observations. Mr. Chandless had performed this labour entirely at his own expense. He (the President) believed that it was no exaggeration to say that the Society had never previously had before it any one who, at his own instance, had accomplished so much as Mr. Chandless.” 34 Proceedings of the Royal Geographical Society of London, 1866, p. 105. No original “Chandless was an English gentleman who at his own expense and risk had accomplished what the Kings of Spain and the Indies and the South American colonists had been unable to do. He had ascended this long and most interesting river for nearly 1900 miles above its junction with the Amazons. Without alluding to the scientific details communicated in his valuable paper, they would say it was an exploit worthy of the approbation of the Geographical Society”
32
mesmo período, o potencial econômico da região amazônica, assim como
vislumbrava a abertura dos sete mares aos seus empreendimentos expansionistas:
Depois da África e da Austrália, a América do Sul parece
oferecer o melhor campo para geógrafos ambiciosos. Neste
continente, o imenso rio Amazonas oferece um meio de
comunicação com os limites extremos do interior e um meio de
comunicação que, provavelmente, em breve será aberto a todo
o mundo. O privilégio exclusivo concedido a uma Companhia
Brasileira de Navegação está prestes a ser retirado. Este
grande rio não poderia, naturalmente, penetrar em todas as
partes do interior, mas tem se esperado que os seus afluentes
possam suprir as necessidades do canal principal. Com o
objetivo de tornar este meio de transporte disponível para as
pessoas oriundas do leste dos Andes, o Sr. W. Chandless
(M.A) tentou explorar o Rio Purus, um afluente do Amazonas,
que tem confundido comerciantes nativos. Ele foi inteiramente
bem sucedido na detecção do fluxo do rio desde sua foz até
sua nascente e descobriu que não havia, como esperava
provar, conexão com o rio peruano Madre de Dios (...). Após a
leitura do documento que descreve as descobertas do Senhor
Chandless, manifestou-se o Senhor Bates dizendo que um rio
tão tortuoso cuja boca estava a uma distância de 1.100 milhas
do Atlântico, com uma população tão pequena em seus
bancos, nunca serviria para o comércio.35
35 The Quarterly Journal of Science, 1866, p. 276. No original: “After Africa and Australia, South America seems to offer the best field for ambitious geographers. In this continent the huge river Amazons affords a means of communication with the extreme limits of the interior, and a means of communication that is soon likely to be opened to all the world; the exclusive privilege granted to a Brazilian Steam Navigation Company being about to be withdrawn. This great river could not of course penetrate all parts of the interior; but it has been hoped that its tributaries might supply the wants of the principal channel. With a view of making this means of transit available to the people immediately to the east of the Andes Mr. W. Chandless, M.A., has attempted to explore the River Purus, a tributary of the Amazons, that has previously baffled native traders. He was entirely successful in tracing this stream from the parent river to its source, and discovered that it was not, what he had hoped it might prove, in connection with the Peruvian river, Madre do Dios, (…). After the reading of the paper which described Mr. Chandless's discoveries, the opinion was expressed by Mr. Bates that a river so
33
Em que pesem as ponderações de Henry Bates sobre a “não serventia
comercial” do Rio Purus, a pressão interna e externa ao Brasil pela abertura dos
Portos do Rio Amazonas, “à navegação de navios mercantes de todas as nações”,
veio lograr êxito através de um decreto imperial, em dezembro de 1866,36 incluindo
também os portos dos Rios Tocantins, Tapajós, Madeira, Negro e São Francisco.
Nesse mesmo ano, o detentor do “privilégio exclusivo” de navegação do Rio
Amazonas, Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, manifestava-se em
reunião ordinária da RGS, realizada no dia 26 de fevereiro, pelo reconhecimento das
descobertas do inglês William Chandless e pela abertura dos portos à navegação
estrangeira:
O Barão de Mauá, na condição de um brasileiro que possui
grande interesse na prosperidade e bem estar de seu país,
demonstrou-se profundamente grato pelos serviços que o Sr.
Chandless prestou à ciência e pela luz por ele lançada à
navegação deste importante afluente do Amazonas. Este fato
evidenciou que os portos do Rio Amazonas podem em breve
ser abertos a todas as nações do mundo.37
Nesse mesmo período, sob administração de Dom Pedro II, havia no Brasil
uma preocupação com a “imagem externa do país”:
O Brasil, que já era conhecido como lugar privilegiado para a
visita de viajantes naturalistas, passa a pedagogicamente
apresentar-se como ‘novo’. Não mais a “mata e a selvageria”
tortuous, whose mouth was at a distance of 1,100 miles from the Atlantic, with such a small population on its banks, could never be made available for commerce (…).” 36 Decreto Imperial, nº 3749, de 7 de dezembro de 1866, que abre a navegação no rio Amazonas e em seus principais afluentes aos navios mercantes de todas as bandeiras. Ver Colleção das leis do Império do Brasil, de 1866, Tomo XXVI, Parte I. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, Rua da Guarda Velha, 1866. 37 Proceedings of The Royal Geographical Society, 1866. p. 106. No original: “Baron de Mauá felt deeply grateful as a Brazilian who took great interest in the prosperity and welfare of his country for the services which Mr. Chandless had rendered to science and for the light which he had thrown on the navigation of this important tributary of the Amazons. That the Amazons might be soon thrown open to the commerce of the world was shown by this fact.”
34
deveriam ser a carta de apresentação da nação, mas uma
imagem moderna, industriosa, civilizada e científica.38
O imperador Dom Pedro II, membro honorário de várias instituições de
pesquisa na Europa, o que incluiu a Royal Geographical Society, de Londres, tinha
no Barão de Mauá o seu representante para as relações exteriores, ou seja, Mauá
era o incumbido de “apresentar” ao mundo essa “nova imagem” do Brasil. Suas
palavras, certamente levaram o escritor do obituário de Chandless, George Earl
Church, a afirmar:
É provável que as explorações do Sr. Chandless nos Rios
Tapajós e Purus e a conseqüente atenção destinada a eles por
parte da Sociedade, muito influenciaram a emissão do decreto
do Governo Brasileiro (7 de dezembro de 1866) abrindo grande
parte do Rio Amazonas à todas as nações.39
Na Europa ocidental vivia-se uma espécie de apogeu de uma era em que, no
dizer do historiador britânico Eric Hobsbawm, “a criação de uma economia global
única”, atingia rápida e “progressivamente as mais remotas paragens do mundo”,
com a “civilização” se espraiando para lugares “ermos” para – em meio a
“selvagens”, “bárbaros” e “sertões” – explorar sociedades e natureza, extraindo
matérias-primas “exóticas”, a seiva da qual o “desenvolvimento tecnológico agora
dependia”: borracha, petróleo, estanho, cobre, metais preciosos, frutas e outros
alimentos do mundo não-europeu.40
No entanto, mesmo que os interesses nacionais e internacionais – e essa é
também a perspectiva euclidiana – apontassem, como a principal motivação da
expedição de Chandless ao Purus, a necessidade de desvendar uma comunicação
entre esse rio, o Madre-de-Dios e o Ucayali, e consequentemente, uma ampliação
38 Schwarcz, L. M, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1993, p. 31-32. 39 Church, Obituary: William Chandless, 1896, p. 79. No original: “It is probable that Mr. Chandless' explorations of the Tapajos and Purus, and the attention which the Society called to them, largely influenced the issue of the decree of the Brazilian Government (December 7,1866), opening a great part of the Amazon river to all flags.” 40 Hobsbawm, A Era dos impérios, 1989, p. 96-97.
35
das expectativas comerciais na região, a “exploração científica” da região, em seu
amplo sentido, configura-se como seu principal objetivo, não somente em relação à
ida ao Purus, mas em todas as suas viagens fluviais.
Sua formação humanística dá conta de que o olhar do viajante voltou-se para
questões que vão além da hidrografia como, por exemplo, os modos de viver ou as
práticas culturais “locais”. Suas observações a respeito dos habitantes das margens
dos rios, seus “costumes” e “aparência” são de ordem etnológica; sua preocupação,
ao coletar vocábulos de línguas indígenas dos Paummary, Hypurina, Manetenery,
Canawary, corresponde a uma ordem de interesse linguístico. Esses e outros
relevantes aspectos fizeram com que seus relatos sobre os rios da “Amazônia”,
embora relativamente curtos, tornassem-se importantes fontes de pesquisa para
diferentes áreas do conhecimento.
Questões referentes às motivações das viagens de Chandless, sua relação
com a RGS, o período de tempo em que permaneceu no Brasil, sua família,
formação acadêmica, condições econômicas, entre outras não foram, ainda, muito
bem esclarecidas. A isso, soma-se o fato de que seus relatórios sobre os rios
amazônicos nunca foram disponibilizados de maneira ampla aos pesquisadores
brasileiros. As únicas traduções para a língua portuguesa que existem, até hoje, são
as publicadas nos relatórios do Ministério da Agricultura do Império do Brasil: “Notas
sobre os rios Arinos, Juruena, e Tapajós”, (1862); “Apontamentos sobre o rio Aquiry:
afluente do Rio Purus”, (Relatório de 1865, publicado em 1866); “Apontamentos
sobre o Rio Juruá”, (Relatório de 1869, publicado em 1870); “Notas sobre os rios
Maué-assú, Abacaxis e Canumá”, (Relatório de 1869, publicado em 1870). Todos
esses relatos foram publicados originalmente nas Revistas da RGS, nos anos de
1862, 1866, 1869 e 1870, respectivamente.41
O relato sobre o rio Purus, por certo o de maior repercussão não apenas entre
os contemporâneos de seu meio científico, mas também entre as autoridades
administrativas do império do Brasil e, posteriormente, entre os historiadores, 41 Os relatos originais de William Chandless encontram-se disponíveis no acervo digital da ferramenta de busca eletrônica Google Books que, atualmente, dispõe, dentre outros títulos, uma grande quantidade documentos relativos à Royal Geographical Society, tais como os periódicos e atas das reuniões dessa instituição de pesquisa. O acesso aos relatos de Chandless publicados, em língua portuguesa, pelo Ministério da Agricultura do Império do Brasil, pôde ser feito através do site http://www.crl.edu/brazil do Center for Research Libraries, cujo acervo inclui documentos do governo brasileiro, como Relatórios dos Presidentes de Províncias (1830-1930) e Relatórios Ministeriais (1821-1960).
36
geógrafos e antropólogos do final do século XIX e início do XX, foi publicado pela
RGS, assim como o relato sobre o rio Aquiry, no ano de 1866. A publicação no
Brasil, em língua portuguesa – que tive acesso – trata-se mais de um extrato das
informações contidas no relato, escrito em terceira pessoa e publicado no ano de
1865, no Relatório Provincial do Amazonas, assinado pelo então presidente da
província: Adolpho de Barros Cavalcanti A. Lacerda.42
Do sudoeste norte-americano ao sudoeste amazônico
Embora tenha tido uma formação clássica, Earl Church assegura que
Chandless:
era um bom matemático e um observador perspicaz.
Generoso, calmo, singelo, inteiramente independente, sua mão
estava sempre aberta para ajudar aos outros sem ostentação.
A essas qualidades, adicionavam-se grande coragem,
prudência, paciência, tato e gosto pela aventura – o homem
certo para um explorador.43
Seguindo os passos de Church, poderíamos acrescentar que uma perspectiva
aventureira e um desprendimento romântico pareciam guiar os passos daquele
“explorador autônomo”. Os preparativos para suas primeiras viagens iniciam-se, no
ano de 1855 e, em julho daquele ano, William Chandless encontrou-se em Saint
Joseph, uma cidade a oeste do Estado de Missouri, Estados Unidos da América do
Norte:
Passei alguns dias lá, esperando por um barco que me levasse
rio acima. A minha intenção era viajar por rio para Council
42 LACERDA, A. de B. C. de A. Relatório com que o ilustríssimo e excelentíssimo Sr. Dr. Adolpho de Barros Cavalcanti de A. Lacerda entregou a administração da província do Amazonas ao illmo. e exmo. Sr. tenente coronel Innocencio Eustaquio Ferreira de Araujo. 1865, p. 30-34. 43 Church, op. cit., p. 78. No original: “he was a good mathematician and a keen observer. Generous, quiet, unassuming, and entirely regardless of self, his hand was ever open to unostentatiously assist others. To these qualities he added great courage, caution, patience, tact, and love of adventure – just the man for an explorer.”
37
Bluffs, uma cidade notável localizada ao sudoeste de Iowa, e
então virar para leste, cruzando este estado até o Rio
Mississipi em Keokuk, ou Muscatine.44
No entanto, “por acidente” ou pelo “capricho de um momento”45, ou mesmo
motivado como tantos outros viajantes envolvidos em um imaginário de “desbravar”
o “farwest”, Chandless modificou seu itinerário e acabou seguindo em direção ao
lado ocidental dos Estados Unidos, cruzando o continente durante seis meses e
meio:
(...) o catalisador para esta viagem atípica foi um vagão de trem
com destino a Salt Lake City, necessitando de mão de obra,
ainda que inexperiente. A idéia de cruzar as planícies
contaminou a imaginação de Chandless. Ele se candidatou
para um emprego como carroceiro e foi contratado no local.46
Na cidade de Salt Lake, Utah, o viajante conviveu durante dois meses,
especificamente, novembro e dezembro, com os mórmons47. O resultado dessa
experiência rendeu a publicação, no ano de 1857, de seus relatos de viagem: “A visit
to Salt Lake: being a journey across the plains, and a residence in the Mormon
settlements at Utah”. Um estudo sobre essa publicação de Chandless pode ser
encontrado no artigo de Edwina Snow, que destaca as experiências vividas pelo
viajante, na cidade de Salt Lake, e as “impressões” ou “descrições” que o mesmo
produziu durante sua vivência junto a uma comunidade mórmon.
44 Chandless, A visit to Salt Lake: being a journey across the plains, and a residence in the Mormon settlements at Utah,1857, pp. 01. No original: “I passed a few days there, waiting for an up-river boat, my intention being to travel by water to Council Bluffs, a notable town in the S.W. corner of Iowa, and then turn eastward across that State to the Mississipi River at Keokuk, or Muscatine”. 45 Snow, op. cit., p. 119. 46 Idem. No original: “the catalyst for this atypical trip was a wagon train bound for Salt Lake City and needing hands, however inexperienced. The ideia of crossing the plains took Chandless's fancy. He applied for a job as a teamster and was hired on the spot.” 47 Os mórmons são pessoas adeptas ao mormonismo: “doutrina protestante, fundada nos E.U.A. por Joseph Smith (1805-1844) e disseminada pela América do Sul e Central, Europa e algumas regiões do extremo Oriente, que, entre outras coisas, admite o politeísmo, o fim do mundo, o batismo etc.” ver Houaiss, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
38
Edwina Snow acompanha e concorda com parte significativa das opiniões de
Chandless, a respeito dos mórmons. Não obstante, em sua acurada leitura sobre o
relato do viajante inglês, não deixa de pontuar as tensões presentes no modo como
o mesmo observou o cotidiano daquele grupo religioso. Esses últimos aspectos são
ressaltados ao longo da pesquisa de Snow, tendo em vista a própria linha editorial –
religiosa – da revista em que seu artigo foi publicado. Em seu texto, a autora traz
ainda uma extensa referência bibliográfica a historiadores americanos que discutem
o olhar de Chandless sobre os aspectos da cultura dos mórmons, além de
informações privilegiadas às quais teve acesso, através de entrevista com Cecil
Raymond Chandless, sobrinho-neto do viajante.
William Chandless, com suas próprias palavras, destaca o caráter das
observações que fez acerca do grupo religioso, asseverando que: “ficções
suficientes têm sido escritas sobre os mórmons. Desejo, portanto, da forma mais
breve e clara possível, dizer que nada aqui escrito é ficção”.48 Desse modo,
acreditando numa idealizada imparcialidade e crença na objetividade do testemunho
dos “fatos”, ao retornar para a Inglaterra, no outono de 1856, Chandless produz sua
mais extensa narrativa de viagem. A vasta referência acadêmica a essa obra, em
comparação aos seus relatos sobre os rios da Amazônia, dentre outros motivos,
pode ser justificada, como informa Snow,49 pelo prestígio de sua primeira editora:
Smith, Elder Publishers, que, durante os anos 1840, publicou os cinco volumes de
Zoology of the Voyage of the Beagle, de Charles Darwin.
Após levantar e analisar as críticas feitas a Chandless, por historiadores da
contemporaneidade e outros viajantes do século XIX, Snow escreve que “A visit to
Salt Lake...” tem sido condenada por demonstrar um ponto de vista favorável ao
modo de vida dos mórmons, principalmente, ao inserir uma defesa à cultura
polígama do grupo religioso. No entanto, o “pioneirismo” de Chandless, ao procurar
“descrever”, de maneira extensa e com riqueza de detalhes, a comunidade da
cidade de Salt Lake, é reconhecido pelos mesmos historiadores que o condenaram.
48 Chandless, op. cit., p. iii. No original: “Fictions enough have been written about the Mormons. I wish, therefore as briefly and plainly as possible, to say that nothing here written is fictitious”. 49 Snow, op. cit., p 119. Existe ainda, uma versão da obra em alemão, traduzida por Ferdinand G. Serensen e publicada através da editora Forlagtaf F. Woldife no ano de 1858 e uma edição datada de 1971, publicada por meio da editora nova-iorquina A.M.S. Press. Desde então, uma série de editoras têm disponibilizado na internet a versão em inglês da obra em formatos digitais.
39
Além de outros viajantes do século XIX, como Richard Burton (1821-1890),
Snow recorre a uma significativa lista de publicações de historiadores-pesquisadores
ingleses e norte-americanos do século XX que fazem referência ao relato de
Chandless, sobre a cidade de Salt Lake, a exemplo de Leonard Huxley (1923),
Andrew Love Neff (1940), Max Berger (1943), Richard L. Rapson (1971), John David
Unruh (1979), somente para citar alguns.
Necessário ressaltar que o modo como Chandless produz sua narrativa em “A
visit to Salt Lake...” difere, substancialmente, da forma como o faz em seus “relatos
sobre os rios” ou “river reports”, como afirma Edwina Snow, pois, naquele,
Chandless aborda aspectos como sua própria “vestimenta, dieta, hábitos pessoais e,
cuidadosamente, pondera sobre as decisões que contribuíram para o sucesso de
sua viagem”.50 Esses aspectos não estão presentes em seus “relatos sobre rios da
Amazônia”. Como um primeiro exercício de escrita, Chandless descreve sua viagem
a Salt Lake nos moldes de um diário no qual vai “narrando” sua visão sobre as
experiências vivenciadas, a partir da perspectiva de um “emigrante”.
Trata-se de uma “narrativa meramente pessoal”, afirma no prefácio ao texto
que foi publicado, e que:
independente de seus excessos ou defeitos, dificilmente tem
necessidade de um prefácio. É suficiente, deste modo, no que
diz respeito à primeira parte deste volume, dizer que nela há
uma tentativa de retratar a viagem através das planícies a
oeste, sob a ótica de um emigrante e um condutor de gado. (...)
A segunda parte tem outro caráter e, devido à natureza de seu
conteúdo, pode, talvez, ser lida com suspeita ou mesmo
tomada como falsa. (...) Pode haver erros nos fatos ou erros de
opinião. No entanto, nenhum incidente foi introduzido para
fundamentar qualquer opinião, ou como forma de ilustrar
costumes e sentimentos, ou mesmo para qualquer outra
finalidade, a menos que tenha ocorrido. Ademais, nenhuma
palavra foi colocada na boca de um Mórmon – isentando as
50 Ibidem, p. 135. No original: “describes dress, diet, personal habits, and carefully considered decisions that contributed to the success of his journey”.
40
imperfeições da memória – além daquelas que de fato foram
ditas. (...) Mais do que teorizar ou generalizar sobre eles, meu
objetivo foi, desde o início, mencionar fatos e incidentes da
forma como ocorreram.51
Interessante destacar que a forte conotação a favor da “objetividade dos
fatos” narrados, evidencia a perspectiva cientificista presente no discurso de
Chandless. Em seu relato, não isento de subjetividade, o viajante pretende “retratar
a viagem”, embora reconheça a possibilidade de “erros nos fatos” narrados ou
“erros” na leitura que faz desses “fatos” e, mais ainda, reconheça que a memória
não está isenta de “imperfeições”.
A “primeira parte” do volume, diz respeito ao trajeto percorrido pelo autor,
cruzando planícies, até chegar à cidade de Salt Lake. Um relato rico em detalhes a
respeito das situações que envolviam a sua viagem, com minuciosa “descrição” da
paisagem, do tempo, das distâncias, entre outras. A “segunda parte” da narrativa
trata então de sua residência junto à comunidade mórmon. A leitura “suspeita” –
possibilidade levantada pelo próprio autor – decorre das controvérsias existentes à
época concernente às práticas culturais dos mórmons, entre elas, a prática da
poligamia.
Nessa obra, Chandless não deixa de reservar espaço, ainda no prefácio, para
os “pré-conceitos” ou seus juízos de valores sobre os mórmons:
E agora, umas poucas palavras – e espero que não sejam
tomadas como egoísmo – sobre mim mesmo. (...) Minha
viagem a Salt Lake foi um acidente ou um capricho de um
momento. Antes disso, os mórmons eram, para mim, nada
51 Chandless, op. cit. No original: “A narrative merely personal, whatever its excesses or defects, hardly stands in need of a preface. It is enough, therefore, as regards the first part of this volume, to say that in it is attempted a picture of the journey across the Plains westward, as made by the emigrant and the cattle driver. The second part is of a different character, and, from the nature of its subject, may, perhaps, be read with suspicion, or even charged with untruthfulness. (…) Errors of fact there may be, and errors of opinion; but no incident is introduced, either in support of any opinion advanced, or in illustration of manners and feelings, or for any purpose, or in any way whatever, unless it actually occurred; and no words are put into the mouth of a Mormon but what – allowing for the inaccuracies of memory – were actually spoken by one. My object throughout has been rather to mention facts and incidents as they occurred, than to theorise, or even to any great extent generalize, upon them”
41
mais que sombras. Eu não possuía nenhuma opinião a respeito
deles. Havia visto dois, mas nunca conversei com nenhum
membro da seita. Do pouco que li, a maior parte continha
vagas informações; justas ou não, no mínimo, não foi fruto de
uma observação empírica, ou qualquer coisa que o valha.52
Informar ao leitor sobre seu “desconhecimento” prévio sobre aquele grupo
religioso, sua motivação indireta para a viagem, além de produzir sua narrativa
cronológica, consignando opiniões e impressões, registrando confissões ou
meditações durante a vivência a Salt Lake são, de fato, características das
anotações de diário. Embora tais características predominem em sua escrita, é
possível dizer que suas ponderações sobre determinados aspectos do modo de vida
dos mórmons, como por exemplo, o papel social da mulher ou mesmo a respeito das
leis, tradições, códigos morais em Salt Lake – semelhantes as que formulou durante
sua estadia nas cidades de Los Angeles e São Francisco –, são características do
gênero textual ensaístico que, nesse caso, versa sobre ética, política e religião em
uma comunidade religiosa.
Deliberadamente, Chandless excluiu essa forma de escrita ou esse tipo de
detalhamento de seus relatos sobre os rios da “Amazônia”. Ele próprio aborda essa
questão dizendo que “há pouco interesse e importância em relatar detalhes pessoais
em uma expedição sobre o rio Purus. Por isso mesmo, os omiti”.53 Desse modo, ao
optar por não datar ou registrar diariamente os acontecimentos ou detalhar em que
condições materiais e emocionais subiu e desceu os rios da “Amazônia” que
explorou, ofereceu aos seus leitores apenas um extrato dos “fatos” que, naquele
específico contexto e tipo de relato, para ele, eram mais relevantes ou importantes.
Com sua “ótica de condutor de gado”, ao deixar Salt Lake, Chandless decidiu:
52 Idem. No original: “And now a few words and they will not I hope be attributed to egotism about myself. My journey to Salt Lake was the accident or the whim of an hour. Previous to that, the Mormons were to me but mere shadows. I had no real opinions about them. I had seen but two and spoken to none of the sect. What little I had read was most shadowy; whether fair or unfair, at least evidently not taken from personal, or anything like personal, observation.” 53 Chandless, W. Ascent of the River Purús, Royal Geographical Society, 1866, p. 92. No original: “There is little of interest, and nothing importance, in the personal details of a journey up the Purûs; therefore I omit them.”
42
... cruzar as Rocky Mountains em direção a Los Angeles e São
Francisco – uma aventura perigosa naquela época. De São
Francisco, ele seguiu para Acapulco, o emporium Espanhol de
comércio com a Índia, durante o período colonial, e,
atravessando o México, retornou à Inglaterra.54
Em 1858, três anos após sua primeira viagem e um ano antes de outro
naturalista inglês, Henry Walter Bates, deixar o “Vale do Amazonas”, Chandless
inicia suas viagens pela América do Sul. No entanto, as condições, motivações,
lugares que passou, pessoas que conheceu, não estão registradas em seus relatos.
A rota que percorreu, até o momento de sua chegada e “fixação” na cidade de
Manaus, é exposta de maneira vaga por Church:
Em 1858 viajou para o Brasil. Porém, no ano seguinte, lá
estava ele na República da Argentina, chegando a Mendoza,
durante as séries de grandes terremotos que, por mais de um
mês, abalaram a cidade. Em seguida ele cruzou a Cordilheira
dos Andes até o Chile e, da cidade de Valparaíso,
provavelmente se dirigiu ao Peru e Equador, contudo, os
parcos fragmentos das informações obtidas fazem dessa sua
rota uma incerteza. Ainda assim, em 1861 ele atravessou os
limites do Equador com a Colômbia e então se entregou a um
de seus surtos revolucionários. A jornada era perigosa e o
viajante foi diversas vezes detido por grupos rivais. (...) Pouco
tempo depois, o encontramos em Manaus, a principal cidade
do Vale do Amazonas, local em que residiu por um longo
período de tempo, devotando-se ao estudo da grande rede de
rios que o convidou para examiná-la.55
54 Church, op. cit. No original: "(..) wandered across the Rocky mountains to Los Angeles and San Francisco - a dangerous venture in those early days. From the latter city, he went to Acapulco, the Spanish emporium of trade with India in colonial times, and, crossing Mexico, returned home.” 55 Idem. No original: “In 1868 he went to Brazil; but the following year was in the Argentine Republic, arriving at Mendoza during the series of great earthquakes which for over a month shook that city. Thence he crossed the Andes to Chile, and from Valparaiso probably went to Peru and Ecuador, although the few scraps of information obtainable make his route uncertain; but in 1861 he passed the
43
O que se depreende pela leitura dos documentos é que, de 1858 a 1861,
Chandless percorreu grande parte dos países da América Latina, passando por
terremotos na Argentina, cruzando os Andes, chegando a ser detido na Colômbia
por um suposto envolvimento com organizações paramilitares. Não há detalhes
maiores sobre essas experiências vivenciadas em seus “surtos revolucionários” ou
mesmo com “grupos rivais” nos países citados, pelo menos, não a partir do texto de
Church, que recorre sempre a informações lacônicas, faz uso de inferências e
apresenta, por diversas vezes, uma imagem romantizada desse viajante.
Entre escassas fontes de pesquisa, percorrendo pistas quase sempre
inseguras no tocante à rota de viagem de Chandless, por países da América do Sul,
antevemos que existe a probabilidade do mesmo ter cruzado as fronteiras com o
Brasil por meio da Argentina e, posteriormente do Paraguai. Essa possibilidade é
bem mais concreta, devido ao acesso fluvial à região do Mato Grosso, ponto de
partida de seu primeiro relato de viagem sobre os rios amazônicos, publicado pela
RGS.
Datado de maio de 1862, o primeiro dos cinco relatos sobre rios no Brasil,
intitula-se Notes on the Rivers Arinos, Juruena and Tapajos. Nele, o autor descreve
o trajeto fluvial que percorre desde a cidade de Diamantino, no Mato Grosso até
Itaituba, no Amazonas.
De junho de 1864 a fevereiro de 1865, explora o rio Purus, cujo relato foi
publicado em fevereiro de 1866, garantindo-lhe a mencionada Patron’s Gold Medal
ou a Victoria Gold Medal. Na ocasião de conferimento da honra, durante a décima
segunda reunião da RGS, ocorrida em 28 de maio do referido ano, o Presidente
Roderick Murchison dirigiu-se, com as seguintes palavras, a Cecil Long, irmão de
Chandless, para reconhecer-lhe os feitos:
… A nossa surpresa e satisfação, portanto, pode ser bem
compreendida quando recebemos então a notícia de que um
Ecuador boundary-line into Colombia, then indulging in one of its revolutionary outbreaks. Here travelling was perilous, and he suffered many detentions from the contending factions. Soon afterwards, we find him at Manaos, the central city of the Amazon valley, where he took up his residence for a long period of time, and devoted himself to the study of the grand network of rivers which there invited his examination.”
44
cavalheiro inglês, viajando pela América do Sul por puro amor
à ciência, dedicou-se, sem ostentação, à resolução desse
problema geográfico [comunicação entre rios] e que havia sido
inteiramente bem sucedido. Qualificou-se para tal
empreendimento em viagens anteriores por diferentes partes
da América do Sul e do Norte, em particular pela sua
exploração do Rio Tapajós, um relato enviado a esta
Sociedade em 1862, além de sua viagem pela América do
Norte, tal como narrada e publicada sob o título de A visit to
Salt Lake ...56
Cecil Long, que teve a honra de receber a insígnia, em meio aos ritos
protocolares e à audiência daquela reconhecida instituição, não apenas justifica a
ausência do irmão, mas reforça a aura altruística que estava sendo produzida em
torno daquele “pesquisador solitário”:
Lorde Murchison,
Em nome de meu irmão William Chandless eu aceito com
prazer a Medalha de Ouro que a Royal Geographical Society
lhe confere. (...) Embora de fato, junto com ele, tenham sido
realizados trabalhos por puro prazer e sem nenhum desejo de
recompensa, mas simplesmente por amor à investigação
geográfica. Na verdade, meu irmão, antecipa um pouco do que
ocorre atualmente, tão humilde é sua expectativa de
recompensas pelo interesse em suas descobertas. Por meio de
sua última carta da Amazônia, escrita após sua recente viagem
ao Rio Aquiry, ele diz: “devo enviar provavelmente um artigo de
cinco ou seis páginas sobre ele [o rio] à Royal Geographical 56 Proceedings of The Royal Geographical Society, 1866, p. 180-181. No original: “Our surprise and gratification may therefore be well conceived when we received the news that an English private gentleman travelling in South America for the pure love of science had applied himself unostentatiously to the solution of this geographical problem and had been completely successful He had qualified himself for such an undertaking by previous travels in different parts of both South and North America particularly by his exploration of the River Tapajos an account of which he communicated to this Society in 1862 and by his journey across North America as narrated in a work he published entitled A Visit to the Salt Lake”
45
Society, mas não se pode afligir por demais a paciência
deles”.57
Naquele específico contexto, a partir do reconhecimento de seus méritos
exploratórios, Chandless é eleito membro da RGS, ou seja, apenas a partir do ano
de 1866. Após a viagem realizada entre os anos de 1865-1866, ao Rio Aquiry ou Rio
Acre, como é conhecido na atualidade, Chandless publica seu relato não em cinco
ou seis, mas em dez páginas que incluem um mapa do curso do rio, com suas
localizações devidamente especificadas, trazendo ainda, como anexo, o relatório de
Manuel Urbano da Encarnação, que percorreu outros dois afluentes do Purus: o
Mucuim e o Ituxy, no ano de 1864. Por não saber ler nem escrever, o relatório do
“prático” Manuel Urbano foi escrito pelo Engenheiro João Martins da Silva Coutinho
e traduzido para a língua inglesa por Henry Walter Bates, à época Secretário
Assistente da RGS.
Talvez pela repercussão de suas “descobertas” no Purus, Chandless tenha
decidido apresentar, ele mesmo, o relato sobre o Aquiry à RGS. Na sétima reunião
da associação, ocorrida em 25 de fevereiro de 1867, o relatório intitulado An
Exploration of the River Aquiry: an Affluent of the Purus, seria lido pelo próprio
William Chandless, conforme registrado em ata da reunião:
O Presidente, cumprimentando o Sr. Chandless, lembrou aos
presentes que este era o primeiro comparecimento diante da
Sociedade, por parte deste viajante bem sucedido, desde o
recebimento da Royal Medal, na última sessão, devido a uma
das mais notáveis explorações geográficas já realizadas por
um indivíduo.58
57 Proceedings of The Royal Geographical Society, 1866, p. 181-182. No original: “Sir Murchison, - On behalf of my brother William Chandless I accept with heartfelt pleasure the Gold Medal that the Royal Geographical Society have conferred upon him (…). Although, indeed, with him they have been labours of love undertaken and prosecuted with no desire of reward but simply for the love of geographical investigation. In truth, so little does my brother anticipate what is passing here to-day, so humble is his estimate of the interest that will be taken here in his discoveries - that in his last letter from the Amazons written since his return from his recent visit to the River Aquiry, he says, ‘I shall probably send a paper of five or six pages about it to the Royal Geographical Society; but one must not try their patience too far.’” 58 Proceedings of The Royal Geographical Society, 1866, p. 106. No original: “The President, in returning thanks to Mr. Chandless, reminded the meeting that this was the first appearance before the
46
É interessante observar a discussão que se seguiu à leitura do relato sobre as
águas do Aquiry. Estavam presentes na reunião, além do também explorador, Lorde
Clements Markham, Secretário da RGS, os naturalistas Alfred Russel Wallace e
Henry Walter Bates, ambos exploradores da fauna e flora da região Amazônica,
durante o século XIX, entre outros reconhecidos cientistas e membros integrantes
daquela instituição de ciência. Após a leitura do relato de Chandless, Lorde
Markham destacou o vale do Amazonas como rota de passagem que tem
interessado aos viajantes de diversas nacionalidades, em diferentes períodos de
tempo, observando que o relato de Chandless:
... deve ter impressionado todos aqueles que leram trabalhos a
respeito do vale do Amazonas, tendo em vista quão
privilegiada a região tem sido por seus exploradores-cientistas.
No último século, houve o grande nome de La Condamine e
tivemos, neste século, muitos homens de reputação científica
que visitaram e escreveram sobre diferentes partes do vale do
Amazonas – Humboldt, Spix e Martius, Poeppig, Castelnau,
Smith e, nos últimos anos, Bates, Spruce e Wallace. A região
manifestou-se ainda mais próspera, com seu último explorador,
o Sr. Chandless.59
A maior parte das manifestações, comentários e perguntas feitas ao viajante
advinham, em sua maior parte, de outros “exploradores” da Bacia Amazônica. O
próprio Lorde Markham, posteriormente eleito Presidente da Sociedade, registrou
Society of this successful traveler, since receiving the Royal Medal last session for one of the most remarkable geographical explorations ever undertaken by one individual.” 59 Proceedings of The Royal Geographical Society, 1866, p. 106. No original: “it must have struck all those who had read works on the subject of the valley of the Amazons, how very fortunate that region had been in its scientific explorers. In the last century there was the great name of La Condamine, and we had had in this century many men of scientific reputation who had visited and written about different portions of the Amazons Valley – Humboldt, Spix and Martius, Poeppig, Castelnau, and Smyth, and, in later years, Bates, Spruce, and Wallace. That region had been most fortunate in its latest explorer, Mr. Chandless.”.
47
em várias publicações nas revistas da RGS sua viagem à “Amazônia Peruana”, em
meados do século XIX, “explorando” culturas andinas.60
Em seu retorno ao Brasil, ainda no ano de 1867, Chandless mencionara suas
intenções em dar seguimento às pesquisas de exploração de rios na “Amazônia”. Os
rios Madeira e Beni, dessa vez, seriam os alvos da “verificação científica”, devido à
crença de que poderiam levar à região dos Andes, como destaca com “satisfação”
Sir Roderick Murchison’s, ao anunciar:
o retorno, através do último Vapor Brasileiro, do mais
infatigável e preciso explorador científico, Sr. Chandless, que
segue em direção ao cenário de seus trabalhos e triunfos
anteriores. É sua intenção, nesta ocasião, subir os Rios
Madeira e Beni e, assim, finalmente, atingir os córregos que
descem pelas encostas da floresta do glorioso leste dos Andes,
antes procurado em vão nas cabeceiras do Purus e Aquiry.
Devemos aguardar com muito interesse os resultados das
próximas explorações de nosso medalhista.61
No entanto, em carta escrita na cidade Manaus, datada de 21 de março de
1868, e transcrita no volume de número 38 da revista da Royal Geographical
Society,62 publicada naquele mesmo ano, “já era muito tarde para subir o Beni com
perspectiva de sucesso e, sob as atuais circunstâncias, isso seria impossível”.63
60 Markham, entre os anos de 1852 e 1853, “explorou” florestas peruanas e durante sua viagem ao vale dos Andes, além de ter registrado aspectos da geografia local, coletou e posteriormente traduziu e publicou, em 1871, a peça teatral Apu Ollantay: A Drama Of The Time Of The Incas Sovereigns Of Peru About A.D. 1470. 61 Sir Roderick Murchison’s Address to the Royal Geographical Society: Delivered at the Anniversary Meeting on the 27th May, 1867. In: PROCEEDINGS… op. cit., p. 225-226. No original: “It is with great satisfaction that I have to announce the departure, by the last Brazilian Mail Steamer, of that most indefatigable and accurate scientific explorer, Mr Chandless, to the scene of his former labours and triumphs. It is his intention, on this occasion, to ascend the rivers Madeira and Beni, and thus at length to reach those streams flowing down the forest clad slopes of the glorious Eastern Andes, which he had previously sought in vain at the head waters of the Purus and Aquiry. We shall look with much interest to the results of our Medallist's further explorations.” 62 Extract of a Letter From Mr. W. Chandless, Gold Medallist R.G.S., now exploring the Tributaries of the Amazons. Manaos, March 21, 1868. 1868. p. 339-340. 63 Idem. No original “it was too late in the year to attempt ascending to the Beni with much hope of success, and under the circumstances impossible.”
48
Frente a essa, um tanto melancólica constatação, Chandless decide subir o
Amazonas, em um navio que o levaria até Tefé e, a partir daí, explorar o Rio Juruá.
As “atuais circunstâncias”, as quais o viajante se referia na carta, dizem
respeito ao agravamento das dificuldades em conseguir uma tripulação de “índios
bolivianos”, considerados por ele, “melhores” do que os brasileiros. Em suas
palavras:
Ao chegar aqui, por volta do fim de junho [1867], encontrei as
coisas muito mudadas, mas para pior. Não havia mais índios
bolivianos, cujos serviços puderam habilitar-me para subir o
Purus. O Cônsul [boliviano] emitiu ordens para detê-los sempre
que aparecerem por aqui e enviá-los para a Bolívia, sob o
pretexto de que há, atualmente, mais de 2000 índios
espalhados pela Amazônia e que, tanto o trabalho quanto o
recolhimento de seus impostos, fazem falta na Bolívia. As
autoridades brasileiras executaram rigidamente tais ordens, de
modo que não houve chance para que eu pudesse conseguir
uma tripulação de bolivianos.64
Sua dificuldade com a formação da tripulação, embora munido de várias
recomendações do Governo de Manaus e das autoridades locais da cidade de Tefé,
apenas é resolvida com o auxílio de João da Cunha Correia – também explorador de
rios – que “completa os homens” do viajante inglês, enviando-lhe um de seus
escravos. Desse modo, Chandless segue o curso do Rio Juruá, em busca de sua
nascente, ainda na expectativa de encontrar ligação com a região andina. Porém,
após cerca de 1600 a 1900 quilômetros percorridos – a maior distância “explorada”,
até então –, o “explorador” é impedido de prosseguir sua viagem, devido ao “ataque”
dos “Náuas”, historicamente tratados como um grupo indígena “temido”, habitantes
64 Extract of a Letter… op. cit., loc. cit. No original: “On arriving here about the end of June, I found things much changed for the worse: there were no Bolivian Indians, whose services would have enabled me to ascend the Purus; the Consul had given orders to have them laid hold of whenever they turned up here, and sent to Bolivia, on the plea that there are more than 2000 now scattered about the Amazons, and that the lack both of their labour and of their poll-tax was felt in Bolivia. The Brazilian authorities executed his orders pretty strictly; so I found I had no chance of a crew of Bolivians.”
49
das margens do rio Juruá, nos tempos da colonização e expansão das sociedades
nacionais brasileira e peruana para a região.65 Sobre a interrupção de sua
campanha, lamenta o viajante: “a expedição, mal sucedida em seu principal objetivo,
cujas anotações seguem neste relato, teve lugar durante os últimos cinco meses de
1867.”66
Com a interrupção da viagem, restou a Chandless ponderar sobre algumas
“hipóteses”, que hoje se verificam acertadas, como, por exemplo, o fato de que as
nascentes dos rios Purus, Javary e Juruá estariam, segundo suas coordenadas
geográficas, bem próximas do banco direito do Rio Ucayali.
Sobre os resultados de sua viagem, o presidente da RGS se manifestava em
fala oficial publicada no mesmo ano (1869) em que o relato de Chandless sobre o
Rio Juruá foi publicado:
Nosso incansável medalhista de ouro, Sr. Chandless, tendo
sido mal sucedido em sua tentativa de subir o Rio Beni, voltou
sua atenção para outros afluentes do Amazonas e concluiu a
verificação do Rio Juruá que, nasce nas densas florestas na
margem esquerda do Ucayali e desemboca no Rio Amazonas
entre a foz do Ucayali e do Madeira. O Sr. Chandless fez seu
trabalho com sua precisão científica habitual e fixou mais de
sessenta posições ao longo das margens do Juruá.67
Em retorno de sua abreviada viagem ao Juruá, realiza um percurso antes não
programado. A partir da cidade de Tefé, segue com o objetivo de “explorar” os rios
Maués, Abacaxis e Canumã. Chandless diz ter sido uma “viagem simples”, mas,
65 Interessantes reflexões sobre essa questão podem ser encontradas em “História, território e identidade étnica Naua no Juruá”, de Francisco Pereira da costa. Ver Bispo [et AL] Linguagens e identidades da/na Amazônia Sul-Ocidental – 2. Rio Branco: Edufac, 2010. p. 13-26 66 Chandless, W. Notes of a Journey up the River Juruá, 1869, p. 296. No original: “The journey, unsuccessful in its main object, of which the following notes are offered, was made during the last five months of 1867.” 67 Chandless, W. Notes of a Journey up the River Juruá, 1869, p. CLXXXV. Sir Roderick I. Murchison’s Address. No original: “Our indefatigable Gold Medallist, Mr. Chandless, having been unsuccessful in his attempt to ascend the Beni, has turned his attention to other affluents of the Amazon, and has completed the examination of the River Jurua, which, rising in the dense forests on the left bank of the Ucayali, falls into the Amazon between the mouths of the Ucayali and Madeira. Mr Chandless has done his work with his usual scientific accuracy, and has fixed upwards of sixty positions along the banks of the Juruá.”
50
mesmo assim, mapeou o rio Maués e fez “anotações até onde o clima permitiu”.68
Essas anotações constituíram-se em seu último relato de viagem sobre rios,
publicado no volume 40 da Revista da RGS, do ano de 1870, com o título: Notes on
the Rivers Maué-assú, Abacaxis and Canumá – Amazons.
Ainda durante o ano de 1869, em uma coletânea organizada por Henry Walter
Bates, sob o título Illustrated travels: a record of discovery, geography, and
adventure, Chandless publicou A visit to the india-rubber groves of the Amazons. O
artigo relata sua passagem pelo Rio Madeira, realizada, provavelmente, durante o
ano de 1868, apresentando, entre outras questões, um relato sobre o processo de
extração do látex pelos habitantes das localidades que percorreu.
68 EXTRACT OF A LETTER… op. cit., loc. cit. “(..) took observations so far as weather allowed.”.
51
Capítulo II
POEMA TIRADO DE “BREVE HISTÓRIA DA CIÊNCIA - a busca da verdade” do norueguês EIRIK NEWTH Aparentemente existe um número infinito de seres vivos que segue a lei da probabilidade. O astrônomo pode calcular onde se encontrará o planeta Júpiter em três mil anos. Mas nenhum biólogo pode prever
onde a borboleta pousará.
Affonso Romano de Sant’anna
Por que um conjunto de rios é de água escura e límpida e outro de água barrenta, é outra questão difícil responder, a não ser hipoteticamente. Assim como na fotografia: sabemos o que irá causar a velação, mas, geralmente, não o que a causou.
William Chandless (Notes on the Rivers Maué-assú, Abacaxis and Canumá – Amazons, 1870)
52
Os habitantes do “inferno amazônico”: etnocentrismo e
silenciamento
As fontes de pesquisa ou qualquer outra forma de expressão articulada pela
linguagem – e que chegam até nós, provenientes de diferentes tempos e espaços –
são interpretações que determinadas mulheres e homens, em determinados
contextos históricos fazem do mundo ou sobre o mundo e as coisas do mundo em
que vivem. Nessas interpretações atuam um conjunto de subjetividades que se
“apoderam” de suas imaginações e “governam” seus pensamentos,69 conferindo –
ao que registram/comunicam – formas e conteúdos, muitas vezes, encarados como
única possibilidade de percepção e compreensão de tudo o que envolve a vida
humana.
Leitura, tradução, interpretação e imaginação, atuando num tenso diálogo,
estão presentes na reflexão que desenvolvo a partir dos relatos de viagens de
William Chandless. Interpretar é traduzir. Aquele que narra sua própria trajetória,
está filosofando, diz Alessandro Portelli;70 ler é traduzir, afirma Jorge Larrosa.71
Clifford Geertz, ressalta, provocadoramente, que os
textos antropológicos são, eles próprios, interpretações, e,
ainda por cima, de segunda e terceira ordens. (Por definição,
só um “nativo” as faz de primeira ordem: é a cultura dele.)
Constituem “alguma coisa criada” – o sentido original de fictio –
, o que não significa que sejam falsas, distantes dos fatos ou
simplesmente experimentos mentais “como se”.72
A inquietante assertiva de Geertz, encontra eco nas palavras do próprio
Chandless, quando se dá conta de que “a memória tem falhas”. Essas “falhas”, a
rigor, seriam “preenchidas” por sua imaginação e “talento literário”, mesmo com toda
69 Hall, op. cit., 2003, p. 219. 70 Portelli, A filosofia e os fatos: Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais,1996. 71 Larrosa, Ler é traduzir, 2004, p.63. 72 Geertz apud Aletta Biersack, Saber local, história local: Geertz e além, 1992, p. 103.
53
a sua angustiada disposição em “revelar” uma “não-ficção”. As categorias clássicas
de uma ciência positiva, capaz de descortinar ou desvendar tudo pelo crivo da razão
e da objetividade compõem o “espírito” dos relatos de William Chandless. Percorrer
as “trilhas” desses relatos significa, portanto, caminhar na tênue linha que separa
“realidade” e ficção, tomada aqui em seu sentido original, no dizer de Geertz, como
“alguma coisa criada”.
Em certo sentido acompanho a percepção de Hideraldo Costa, que enfrentou
os relatos de diferentes viajantes a percorrerem as Amazônias do século XIX, como
“discursos escritos” por homens que:
ao entrarem em contato com outros homens diferentes,
registraram uma dada dimensão da realidade. E, se ainda hoje
parte de suas conclusões são tidas como verdadeiras, é
porque agentes sociais comprometidos com a dominação, no
passado e no presente, fizeram valer essa versão e tornaram
hegemônica essa memória.73
Nessa direção, os registros de William Chandless nos apresentam “uma dada
dimensão da realidade”, uma leitura, uma interpretação ou, inserindo questões que
não estavam presentes no horizonte de Costa, uma tradução. A partir dessa
perspectiva, assumo os riscos de perseguir as tramas de um discurso não
autorizado, presentes nos relatos do viajante inglês. Nesse caminho minha
disposição não é a de reforçar o discurso dominante sobre a ausência de civilização
nas localidades “amazônicas” e nos modos de vida – aqui entendidos como culturas
– de suas respectivas populações. Minha pretensão é de buscar no “não dito”, as
vozes silenciadas ou as presenças relegadas às margens das narrativas e do
discurso dominante nesses relatos.
Como apreender, no entanto, a realidade? De que maneiras é possível
descortinar os meandros das estruturas verbais, literárias, simbólicas, imaginárias
que procurarm apresentar relatos sobre a realidade? Como encontrar a objetiva
verdade do relato científico, se o mesmo é estruturado a partir de perspectivas
73 Costa, Cultura, trabalho e luta social na Amazônia: discursos dos viajantes – século XIX, 1995, p. 13.
54
seculares e comprometidas com causas de grupos humanos subordinando, aos
seus desígnios, os “mundos naturais” das plantas, animais e outros seres vivos?
No enfrentamento a essas problemáticas e tentando aproximar-me, o
máximo possível, de uma discussão que rompesse com a lógica binária de lidar com
o discurso do “outro” – nesse caso de um cientista inglês do século XIX – lancei mão
das significativas considerações de Stuart Hall, como elemento de inspiração para a
análise proposta. Para esse intelectual afro-caribenho, “somente podemos conhecer
o real através da linguagem, através da conceitualização”.74
Ao refletir sobre as narrativas e o discurso presentes nos relatos de
Chandless, aliado aos "acontecimentos" de seu percurso historiográfico – reportados
na forma de textos escritos em atas, jornais e revistas, cartas pessoais e livros –,
não busco oferecer qualquer suporte objetivo à pesquisa ou ao conhecimento de um
aspecto da história dessa ou daquela localidade ou sociedade, tampouco procuro
afirmar que minha leitura desses documentos ou, para utilizar um jargão dos
historiadores, "acontecimentos" seja a única possível.
Nesse ponto, partilho com Hall a ideia de que não há “distinção fixa” ou
“verificável” entre o “real” e o “discursivo”, ou entre o “discursivo” e o
“extradiscursivo”, posto que, não se pode pensar a prática discursiva
sem tocar em algum fundamento, com cada prática
sempre tocando nesse elemento basilar como algo
necessário, ainda que não suficiente – em algum lugar,
sempre há uma materialidade, um registro material.75
Nesse sentido, Hall reconhece a necessidade fazer referência a essa
materialidade, ou o que o próprio autor denomina “real histórico” ou “estruturas
históricas”, embora não seja possível denominar essas “estruturas” como “realidade”
em termos filosóficos, ou seja, elas ainda se dão, em primeira e última instância, na
forma de discurso.
74 Hall, op cit., 2003, p. 358. 75 Ibidem, p. 354.
55
As estruturas históricas podem não durar para sempre,
podem não ser transcendentais, mas enquanto existem,
de fato, estruturam um campo específico. Portanto, elas
significam que uma pesquisa já está sempre localizada
em um momento histórico, em uma conjuntura histórica.
(...) A conjuntura tem alguns efeitos de configuração sobre
como uma pesquisa será conduzida, como as questões
serão feitas e qual será o destino da pesquisa.76
Nessa perspectiva, a reflexão específica que proponho, a partir dos relatos de
Chandless sobre as Amazônias, não poderia – e nem pretende – ser o “real” ou o
“extradiscursivo”, como aponta Hall. Porém, no decorrer dessas páginas, procuro
fazer referências às razões históricas que o levaram a escrever o que escreveu.
Assim, referenciada em certa materialidade ou “estruturas históricas”, tento localizar
seus escritos em uma determinada conjuntura histórica que, por sua vez, exerce
efeitos sobre seu discurso.
Para situar um ponto de partida de minha análise, mas, nem por isso, um
“pasteurizador” de todas as coisas e possibilidades e, muito menos, da absoluta
imprevisibilidade da vida humana, devemos lembrar que William Chandless cresceu
e produziu seu “legado literário” num mundo que vivia a “era dos impérios”,77
consolidando em diversos sentidos pelas profundezas dos mundos não-europeus e
não-brancos, especialmente, as Áfricas e as Américas indígenas, negras, mestiças.
Nessa “era”, em que a construção de conhecimentos e a produção de
subjetividades estavam vinculadas às ambições econômicas e políticas das
metrópoles do norte, no dizer de Mary Pratt, desde La Condamine, em meados do
século XVIII, “o múltiplo perfil dos relatos de viagem”, se fizeram presentes “nas
fronteiras da Europa”. Mais que isso, a partir daquele contexto, seria dada a largada
para a “corrida” de homens de ciência rumo ao “desconhecido”. Nesse processo
a expedição científica tornar-se-ia um catalisador das energias
e recursos de intrincadas alianças das elites comerciais e
76 Hall, op cit., 2003, p. 354. 77 Hobsbawm, op. cit., 1988.
56
intelectuais por toda a Europa. Igualmente relevante é que a
exploração científica haveria de se tornar um foco de intenso
interesse público, e fonte de alguns dos mais poderosos
aparatos ideológicos e de idealização, por meio dos quais os
cidadãos europeus [passaram a se relacionar] com outras
partes do mundo.78
“Subjacentes ao espaço social estão territórios, terras, domínios geográficos,
as escoras geográficas concretas da luta imperial, e também cultural”, afirma Edward
Said, para quem o fundamento do império ou do imperialismo, era a “posse
geográfica efetiva da terra”.79 Leitora das fascinantes narrativas de viajantes ou da
vasta literatura que “sonhava” o mundo não-europeu, a geração de Chandless
experimentou as sensações e percepções de uma sociedade que mudara sua
mentalidade em relação ao “mundo natural”.
O extraordinário vigor dessa mudança pode ser apreendido a partir de Keith
Thomas, que em “O homem e o mundo natural” propõe reflexões basilares para a
compreensão de um certo tipo de mentalidade que se constituiu, principalmente,
entre as elites inglesas do início do século XIX. Ao analisar as mudanças de atitudes
dos homens para com a “natureza”, durante o período que compreendeu os anos de
1500 a 1800, esse autor reúne uma infinidade de fontes documentais que compõem
o mosaico de experiências referentes ao contexto pré-revolução científica, não
somente na Inglaterra, como também em grande parte da Europa Ocidental.
Tal contexto é de extremo significado para este estudo, tendo em vista a
relação que terá com os modos de se produzir ciência no Velho Continente e com as
motivações das expedições científicas no continente americano, afinal, “é impossível
desemaranhar o que as pessoas pensavam no passado sobre as plantas e animais
daquilo que elas pensavam sobre si mesmas”.80
No dizer de Thomas, “encher a terra e submetê-la”, como anuncia o livro do
Gênesis (I, 28), basicamente, era a “interpretação” reinante entre os séculos XVI e
fins do XVIII. Sob esse princípio “sagrado”, traduzido da “língua divina” para as
78 Pratt, Os Olhos do Império: Relatos de Viagem e Transculturação, 1999, p. 52-53. 79 Said, op.cit., 1995, p. 118. 80 Thomas, O homem e o mundo natural: mudança de atitude em relação às plantas e os animais (1500-1800),1988, p. 19.
57
“modernas” e seculares línguas das sociedades ou dos “estados-nação” do século
XVI, a Adão foi conferido o domínio de todas as coisas sobre a terra. Origina-se daí
uma série de atitudes antropocêntricas, bem como a “conversão da natureza em
‘cultura’”, em seu sentido primeiro de “cultivar”. Daí a compreensão de terra inculta,
ou seja, não cultivada. A terra inculta, portanto, seria sinônimo de homens incultos.81
O controle ou mesmo subjugação dos animais, com vistas a manter a estrita
distinção entre o comportamento animal e o comportamento dos homens, significava
a domesticação da natureza e o controle de atitudes humanas. Uma aparência ou
mesmo hábitos que aludissem ao animalesco, eram considerados moralmente
suspeitos. Até mesmo nadar era considerado bestial, por ser característica própria
de peixes e não de homens.82
Ao traçar uma sólida linha divisória entre o homem e os
animais, o principal propósito dos pensadores do início do
período moderno era justificar a caça, a domesticação, o hábito
de comer carne, a vivisseção (que se tornara prática científica
corrente, em fins do século XVII) e o extermínio sistemático de
animais nocivos ou predadores. Mas essa insistência tão
grande em distinguir o humano do animal também teve
conseqüências importantes para as relações entre homens.83
Estabeleceu-se, portanto, uma separação entre homens e homens, ou seja,
entre aqueles que possuíam a “essência da humanidade” e os que, na ausência
desse atributo, eram considerados sub-humanos ou semi-animais. Essa
diferenciação, por vezes, se expressava em maior escala, considerando diferentes
nações ou grupos humanos. Tal compreensão, segundo Thomas, ensejou discursos
ingleses a respeito dos negros, durante os séculos XVII e XVIII e, em menor escala,
dos indígenas da América; dos irlandeses e também com relação às mulheres, na
própria Inglaterra.84
81 Ibidem. p. 17 e 22. 82 Ibidem. p. 46. 83 Ibidem. p. 49. 84 Thomas, op. cit., p. 50.
58
Ainda mais bestiais eram os pobres – ignorantes, sem religião,
esquálidos em suas condições de existência e, mais
importante, não tendo elementos que se supunha
caracterizarem o ser humano: alfabetização, cálculo numérico,
boas maneiras e apurado senso de tempo. Os intelectuais
desde muito costumavam a encarar as pessoas não letradas
como sub-humanas. (...) Uma vez percebidas como bestas, as
pessoas eram passíveis de serem tratadas como animais.85
Sobre o tratamento destinado às pessoas consideradas não providas de
humanidade, Thomas pondera que:
a desumanização foi um pré-requisito necessário para os
maus tratos. Dentro do país, a domesticação dos animais
fornecia várias das técnicas para enfrentar a delinqüência:
freios para mulheres rabugentas; celas, correntes e palhas
para os loucos; cabrestos para mulheres vendidas no leilão do
mercado, num rito informal, porém, amplamente aceito no
divórcio. (...) A domesticação tornou-se, assim, padrão
arquetípico para outras formas de subordinação social. (...)
Dessa maneira, o ideal do predomínio humano também
repercutia no relacionamento dos homens entre si, não apenas
no modo de tratarem o mundo natural. Alguns homens eram
vistos como animais úteis, a serem refreados, domesticados e
tornado dóceis; outros eram daninhos e predadores, a serem
eliminados.86
Esta forma de compreender a relação entre os homens e a natureza, ou seja,
a relação entre os homens e os homens (ou sub-homens) não se deu de forma
hegemônica no âmbito da sociedade inglesa, como alerta do autor. As idéias
daqueles considerados como os “primeiros naturalistas” co-existiam, com menor
85 Ibidem. p. 52-53. 86 Thomas, op. cit., p. 54-56.
59
evidência, com àquelas de subjugação e domesticação. Partindo de um pressuposto
“menos antropocêntrico”, “mais imparcial e objetivo”, os sistemas de classificação –
em especial, o inspirado em Aristóteles – do reino animal adotados por “membros de
uma fraternidade científica mais ampla” vieram a se modificar, por volta de 1800.87
Há que se ressaltar ainda que, “por volta de 1700 todos os sintomas de uma
obsessão por animais domésticos já estavam evidentes”88 e, como propõe o autor, a
“observação dos animais de estimação” e a “experiência com animais domésticos”
alimentou a crença na possibilidade de inteligência animal. Assim sendo:
É no quadro dessa tradição de estima pelos animais que
devemos estudar como aumenta, no início do período
moderno, a tendência de cientistas e intelectuais a romper com
a rígida fronteira que os teóricos anteriores procuraram
construir entre homens e animais.89
Sentimentos de compaixão, pena, comiseração foram estendidos aos animais
considerados “repugnantes” como ratos e moscas, bem como a àqueles nocivos ou
perigosos como crocodilos e cobras. Do mesmo modo, em fins do século XVIII, a
paisagem “selvagem” do campo, jardim ou floresta era a única considerada capaz de
“inspirar emoção”.90
Nessa esteira, a invenção do microscópio, que revelou a existência de
milhões de seres vivos indiferentes às preocupações humanas, em fins do século
XVII e, ainda, a teoria de evolução de Charles Darwin, que defendia uma matriz
comum existente entre homens e animais, em meados do século XIX, foram fatores
que contribuíram para minar o argumento de superioridade dos homens sobre a
natureza.91
Em meio às suas viagens pelos rios amazônicos, William Chandless, sentiria
na pele os impactos dos dilemas daí advindos. Uma passagem de Notes on the
87 Ibidem. p. 62-63. 88 Ibidem. p. 141. 89 Ibidem. p 146. 90 Thomas, op. cit., p. 206, 207 e 307. 91 Ibidem. p. 200-201.
60
Rivers Maué-assú, Abacaxis and Canumá – Amazons (1870), é oportuna para
apreendermos essa questão:
As antas são extremamente numerosas nos riachos, além de
muito mansas. Exceto nos momentos de fome, sempre
lamentei matar essas criaturas que pareciam tão inofensivas,
desfrutando de seu banho. Nós matamos uma que,
provavelmente, deveria ter tido um encontro recente com uma
onça, pois o animal estava totalmente ferido com uma de suas
patas traseiras deslocada no joelho, além do osso quebrado.
Sem dúvida, resultado de sua exasperada e bem sucedida fuga
para livrar-se de seu predador. Logo seria vítima de outra onça,
se não a tivéssemos pegado antes.92
O problema colocado era: matar e maltratar animais em benefício dos
homens e, do mesmo modo, devastar florestas em prol de campos de agricultura ou
preservar e garantir a vida aos seres que possuíam, para alguns, além de
inteligência, até alma? Diante desse dilema, “os fundamentos materiais da
sociedade humana” estabeleceram um conflito com o crescimento de “novas
sensibilidades” para com o “mundo natural”. Constituiu-se, dessa maneira, “uma das
contradições sobre as quais se assenta a civilização moderna”.93
As reflexões de Keith Thomas ganham importância para apreendermos o
quanto os mecanismos e formas de conceituação e identificação do mundo, sob os
olhos dos viajantes, estavam impregnadas de ideias que, historicamente produzidas,
passaram a ser tomadas como “naturais” e a direcionar olhares, julgamentos e
narrativas sobre “mundos desconhecidos”. É sob o signo dessa construção histórica
que o viajante, William Chandless, percorre, analisa e “descreve” os rios da
“Amazônia”, entre 1861 e 1868.
92 Chandless, Notes on the Rivers Maué-assú, Abacaxis and Canumá – Amazons, 1870. pp. 423-424. No original: “Tapirs are extremely numerous in and about the small stream, and very tame. Except in moments of hunger, I always regret killing these inoffensive creatures, that seem so enjoying their bath. We killed one that must have had a recent encounter with a panther; it was clawed all over and one of its hind legs dislocated at the knee-joint and the bone also broken, no doubt in its mad and successful rush to shake off the panther. It must soon have fallen a prey to another, had it not to us” 93 Chandless, Notes on the Rivers Maué-assú, Abacaxis and Canumá – Amazons, 1870, p. 358.
61
Vivia-se, então, a “prolífica e altamente competitiva era do relato de viagem”,
segundo Mary Pratt, na qual “relatos românticos e vitorianos” cumpriam o papel de
“descobrir” lugares e gentes num “ato de conversão dos conhecimentos (discursos)
locais em conhecimentos europeus nacionais e continental, associados a formas e
relações européias de poder”. Paradigma da era vitoriana, insiste a autora,
a própria “descoberta”, mesmo dentro da ideologia da
descoberta, não existe em si mesma. Ela apenas se “torna”
real quando o viajante (ou outro sobrevivente) volta para casa e
a evoca através de textos: um nome num mapa, um relatório
para a Royal Geographic Society, para o Foreign Office
(Ministério das Relações Exteriores Britânico), para a London
Missionary Society, um diário, uma aula, um livro de viagem.
Eis aqui a linguagem encarregada por si só de fazer o mundo,
e com altos interesses em jogo.94
Naquela década dos “relatos de viagem”, no dizer de Pratt, enfatizando sua
força no contexto de expansão imperial, Richard Burton, faria ver ao mundo seu The
Lake Regions of Central Africa (1861); James Grant, A Walk Across Africa or,
Domestic Scenes from my Nile Journal (1864); John Speke, Journal of the Discovery
of the Source of the Nile (1863); Paul Du Chailu, Explorations and Adventures in
Equatorial Africa (1861); e William Chandless, Notes on the Rivers Arinos, Juruena,
and Tapajos (1862); Ascent of the River Purus (1866); Notes on the River Aquiry, the
principal Affluent of the River Purus (1866); Notes of a Journey up the River Jurua
(1869). Esses relatos – publicados – constituíram-se no objeto das “descobertas”
de culturas, rios, florestas, lagos e uma infinidade de seres do “mundo natural” – nas
Áfricas e nas Amazônias – que, transformados em “paisagens estetizadas”, seriam
adjetivados e traduzidos para “europeus” e “não-europeus” como aquilo que é; que
está; que deve ser. Esse é o jogo da linguagem que funda discursos de ordem,
espelhando as lógicas do poder político e cultural.
94 Pratt, op. cit., 1999, p. 341-343.
62
A força de tais ideias se “apoderaram” da imaginação de Chandless,
manifestando-se inquieta frente ao Purus, que seus olhos perscrutavam pela
“primeira vez” e, em meio à “densa” floresta, percorrendo as curvas de um dos mais
importantes afluentes do “rio mar”, lançaria as primeiras interpretações sobre sua
“descoberta”.
Ao longo da margem das praias, peixes são abundantes, em
particular, pirararas, surubins e peixes-lenha, todos da espécie
Pimelodus. Do mesmo modo, abundantes são os jacarés e
arraias, mas dentre esses últimos e as piranhas, tomar banho é
perigoso. Não haveria problema nisso se não houvesse pragas
piores. Em certos lugares, torna-se impossível descansar entre
os piuns durante o dia e os mosquitos durante a noite. Fica-se
indo de lá para cá, como se estivesse entre os portões do
Inferno e Aqueron.95
Frente a esse inusitado encontro surgia Ascent of the River Purús, cujas
condições de escrita, como enfatiza o próprio Chandless, não eram consideradas
ideais. As desfavoráveis condições do tempo, a presença de “perigosos” jacarés,
arraias e piranhas, além de “pragas piores”, como os piuns e as carapanãs,
compunham a “paisagem infernal” das beiras de barrancos amazônicos. Porém,
outras “ameaças” compõem o quadro inicial de sua narrativa:
O Rio Purus é hoje muito saudável. No entanto, oito anos atrás,
a malária foi tão predominante e severa, numa certa estação,
que apenas quatro ou cinco homens se aventuraram rio acima.
A malária predomina em todos afluentes de águas escuras.
Sua contaminação, por ingestão da água ou por outros meios,
ainda é discutível. No Alto Purus, os canoeiros que me 95 Chandless, Ascent of the River Purús, 1866, p. 91. No original: “Along the edge of the sandbanks fish are abundant, particularly of the kinds pirarara, surubim and peixe-lenha (or firewood fish), all species of Pimelodus; also alligators and ray-fish; so that between these and piranhas bathing is not very safe. It would be well if there were no worse plagues; but in parts, between pium-flies all day and mosquitoes all night, rest is almost impossible, and one is driven to and fro if between the gate of Hell and Acheron.”
63
acompanhavam, por acharem a água do rio um tanto salobra,
começaram a beber água dos riachos, e muitos foram
assolados pela malária que, por sua vez, os abandonou assim
que eles deixaram as águas escuras. 96
Não sabendo ao certo o que causava a doença, coube ao viajante formular
suas hipóteses que, embora não tenham sido confirmadas, possuíam fundamentos
na experiência do próprio viajante que, em seu relato sobre o rio Maués, aponta a
presença da malária como um dos problemas que surge durante o verão amazônico,
comparando-o com a febre amarela, em localidades ao sul dos Estados Unidos:
Todos concordam que a malária prevalece rio acima entre os
meses de junho a agosto, período no qual as águas baixam
rapidamente e continuam durante todo o outono, mas à
primeira cheia a doença desaparece. Situação similar
acontece em Nova Orleans, quando a primeira geada põe fim à
febre amarela. 97
John Hemming, historiador canadense que se interessou por mapear as
visões que predominaram a respeito dos indígenas da Amazônia, do final do século
XVIII e durante todo o século XIX, fez referência a Chandless e às suas hipóteses
sobre a origem da malária no Purus:
a origem da malária permaneceu um mistério em todo o século
XIX, e a maioria das teorias atribuía ao ar úmido e pútrido.
Assim, William Chandless tentou verificar se ela se relacionava
96 Chandless, Ascent of the River Purús, 1866, p. 92. No original: “The Purûs now is a very healthy river; but some eight years ago fever was so prevalent and severe one season, that the following year four or five men only ventured up the river. Ague is prevalent on all the black-water tributaries; whether from drinking the water, or from other causes is a disputed point. On’the upper Purûs the men of the canoe that accompanied me, fancying the water of the river brackish, took to drinking water from the small streams, and several were attacked with ague, which left them when they left off the black water.” 97 Chandless, Notes on the Rivers Maué-assú, Abacaxis and Canumá – Amazons, 1870, p. 424. No original: “All agree that ague prevails on the upper river, from June to August inclusive, that is when the water is falling fast, and continues throughout the fall, but that the first rise ends it; much as at New Orleans the first frost is considered to cut short yellow fever.”
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com a estação chuvosa, quando as águas dos rios subiam, ou
com os meses secos, quando elas baixavam.98
A comparação entre a situação da malária em rios da “Amazônia” e a febre
amarela em Nova Orleans, resulta numa explicação similar para ambas as
situações, por maiores que sejam suas diferenças. De passagem pela “Amazônia”,
muitos viajantes atribuíram ao “clima insalubre” a responsabilidade de muitas
doenças. Outros, no entanto, vão seguir caminhos completamente diferentes,
influenciando o pensamento de importantes setores da intelectualidade brasileira, ao
enfatizarem que a malária, assim como outras doenças tropicais, deveria ser
“atribuída aos próprios habitantes, aos seus costumes, à sua maneira de viver, ao
seu modo de alimentação, sobretudo, do que à natureza ou ao clima”, no dizer de
Tavares Bastos, em referência direta aos viajantes naturalistas Henry Walter Bates e
Louis Agassiz.99
Retornando a William Chandless, acompanhando suas leituras e
interpretações em diferentes rios amazônicos, veremos re-aparecer uma noção
recorrente em muitos relatos de “homens de ciência” que procuraram traduzir a
“Amazônia”, para “ela mesma” e para “o mundo”: a do “vazio demográfico” que, até
os dias atuais, provoca estragos nas mentes de estudiosos e nos projetos de
“integração” e “desenvolvimento” regional de governantes.
Na proporção em que singra o Purus e o Juruá, adentrando em seus
tributários, especialmente, à altura dos rios, várzeas e terras firmes que iriam
constituir, anos mais tarde, o “Território do Acre”, esse “solitário” viajante inglês,
ambientando-se estoicamente com a “paisagem infernal”, inicia um significativo
processo de traduzir a presença/ausência da “paisagem humana”. Processo esse,
no qual dialoga com suas leituras e subjetividades, mas, também, com os
conhecimentos orais de “homens de cor” que viviam em meio aos “homens da terra”,
como veremos mais a frente. Por enquanto, sigamos com Chandless e seus
remadores, guias, cozinheiros e práticos.
98 Hemming, Fronteira Amazônica: a derrota dos índios brasileiros, 2009, p. 353 99 Bastos, O vale do Amazonas, 1975, p. 212.
65
Próximo do grande Igarapé Jaraquí está uma vila de Catauixis,
a única dessa tribo no Juruá, com cerca de 20 homens,
incluindo neste número rapazes acima de quinze anos. Dizem
que são remanescentes de uma população numerosa. O
número de tribos indígenas existentes no Juruá – e o pequeno
número de seus representantes – é notável.100
Esse é um trecho de Notes of a Journey up the River Juruá, no qual,
Chandless, “descreve” sua passagem pelo Igarapé Jaraqui, que desemboca no rio
Juruá, à altura em que é possível transpor para o Paraná Mirim, através de um
“furo”, nas épocas de cheias, segundo a cartografia desse viajante.
Durante todo o percurso, exceto por cerca de uma milha do Rio
Aquiry, não vimos um sinal sequer de índios. Nenhuma
pegada, nenhum galho quebrado por homens, nenhuma sinal
de castanheiras (...) As únicas conclusões que pude obter a
partir desta viagem foram: primeiro – que a existência de
planície aberta por estas áreas é duvidosa; segundo – que
provavelmente há vastas extensões desabitadas e, até mesmo,
não freqüentadas por índios. 101
As noções de “inferno” e de “vazio demográfico” passam a guiar a
representação da região “explorada”. Subjacente ao texto de Chandless, tais
noções, mais que caracterizar geograficamente os “espaços amazônicos”, servem
como base sob a qual irá se assentar a produção das visões a respeito da “ausência
de civilização”, referindo-se não somente à “paisagem” local, mas também, aos
100 Chandless, Notes of a Journey up the River Juruá, 1869, p. 299. No original: “On the large Igarapé Jaraquí is a village of Catauixis, the only one of this tribe on the Juruá, with about 20 men; including in this number lads above fifteen. They are said to be the remnant of a much larger population. The number of Indian tribes represented on the Juruá, and the small number of the representatives is notable.” 101Chandless, Notes on the River Aquiry, the principal Affluent of the River Purûs, 1966. p. 124-125. No original “In the whole distance, except within a mile or so of the Aquiry, we saw not a sign of Indians; not a foot-print; not a bough broken, nor a single chestnut – by man.(…) The only conclusions I could draw from this journey were - 1st, That the existence of open plain in these parts is very doubtful, 2nd, That probably there are large tracts uninhabited, and even unfrequented, by Indians.”
66
modos de vida dos habitantes “locais”. Também sob esse aspecto, o autor dos
relatos em comento recorre a estereótipos que reforçam um cristalizado discurso
presente na narrativa de outros viajantes. Nessas narrativas, “os homens
amazônicos mereceram a atenção [dos] estrangeiros, muito mais como objeto de
análise de suas investigações, do que na condição de seres humanos que eram”.102
Em William Chandless os índios – fossem brasileiros ou bolivianos –, negros
– escravos ou não – e as poucas mulheres que surgem em seus relatos, são
apresentados a partir dos mesmos referenciais “científicos”, com que são
apresentados os aspectos astronômicos e hidrográficos. Assim, centenas de
comunidades de mulheres, homens e crianças são reificadas pela pena etnocêntrica
de Chandless que, ao “relatar” suas viagens, silencia outras vozes. No entanto, as
“vozes silenciadas”, repletas de saberes e conhecimentos sobre os caminhos e as
águas singradas pelo cientista europeu, paradoxalmente, insistem em se manifestar
no emaranhado das complexas teias em que o viajante interpreta e traduz ao
“mundo da ciência” o que “seus olhos viram”.
No que tange ao “contato” com grupos indígenas do rio Aquiry, o relato de
Chandless é marcado por passagens impressionantes. Esse relato é de grande
valor, para utilizar uma expressão de Bessa Freire, por possibilitar um constituir de
fontes de pesquisa para a história indígena da Amazônia acreana e, principalmente,
por permitir apreendermos quanto o processo de despovoamento da região, na
segunda metade do século XIX, já tinha fincado suas raízes.
Nesta parte do rio, no paralelo de 11º, encontramos duas tribos
distintas de índios, ambas aparentemente pequenas. A
primeira era muito tímida. Um dia encontramos uns dez índios,
incluindo duas ou três mulheres, descendo a correnteza em
algumas “ubás” (canoas). Ao nos verem, eles foram em direção
à margem do rio e depois entraram na mata, deixando tudo que
tinham para trás, exceto os arcos e flechas. Em vão, nós os
chamamos e mostramos facas e miçangas. Ou eles não nos
ouviram ou desconfiaram de nós. O mesmo aconteceu com
102 Costa, op. cit., 1995. p. 39.
67
uma única “ubá” mas, desta vez, os índios foram embora e
ainda alarmaram uma “maloca” vizinha, de modo que, com a
nossa chegada lá, descobrimos logo que ali acontecera um
êxodo generalizado. Como de costume, deixamos presentes
sem valor, os quais eles encontraram quando voltaram para
casa. Este acontecimento lhes produziu confiança ou seus
desejos superaram seus medos, pois nos seguiram por terra e
após três dias eles apareceram no barranco do rio nos
chamando. Eles são uma raça de índios elegantes, altos e
limpos, mas não são bonitos. As mulheres, no entanto, nunca
as vimos, exceto à distância, nas primeiras “ubás”. As casas
deles parecem, em geral, não estar muito distantes mata
adentro, talvez uma a duas milhas em média. São feitas com
esmero, mas, em sua maioria eram apenas barracões não
fechados dos lados, excetuando o depósito de tesouros e
ornamentos usados em festas – alguns muito curiosos. Em
suas plantações, vi bananas, milho, jerimum (ou “yuca”), mas
não mandioca, também coca, mamões, cana de açúcar, e
algodão. As mulheres vestem uma peça de tecido de algodão
ao redor da cintura, alcançando até metade da coxa – ao
menos se vestia assim uma menininha de sete ou oito anos, a
única criança que vi. Já os homens permanecem inteiramente
nus. A despeito de sua timidez, eles conversam bem alto e com
muita vociferação. Sua pronúncia é indistinta e um tanto
gutural. Palavras significando partes do corpo (as que eu
aprendi) começam todas com “n”, a vogal que se segue,
entretanto, parece variar. Havia uma terminação “rá” que eu
não pude entender. Ao perguntar a palavra para designar “rio”,
a resposta foi: “washirí,” “wasshirí-rá”, e assim seguia-se em
várias palavras, as quais eles repetiam uma segunda vez, com
este afixo. Eles possuíam poucos artigos de ferro, todos feitos
de peças quebradas, evidentemente trazidas de alguma tribo
melhor suprida, provavelmente aquela tribo rio acima, pois, de
68
fato, foi o que entendemos deles; uma peça tinha o nome do
fabricante nela, e outra tinha a marca, ambas são importadas
via Pará. Estes índios eram todos bem comportados, pois não
tentaram nos roubar ou mexer em qualquer coisa de nossas
canoas. Suas canoas são todas “ubás”, feitas da palmeira da
paxiúba.103
Chandless “recolhe” o que pode desses “contatos” cheios de desconfiança
mútua. Sua narrativa está impregnada de inferências, nas quais ganha evidência o
quanto atribui práticas semelhantes para grupos distintos, ou seja, o quanto sua
narrativa se assenta numa espécie de “totalidade humana”, hierarquizada a partir de
si próprio ou de sua cultura como topo mais alto. Noções estéticas e de higiene,
também vão compondo o relato, dando conta do quanto o “outro” era catalogado em
relação direta aos valores do viajante; do lugar social e político de onde o mesmo
escrevia.
Eles eram “uma raça de índios elegantes, altos e limpos, mas não são
bonitos”, escreve Chandless, cuja vista não alcança as casas do grupo a que se
refere, pois, segundo ele, as mesmas devem se localizar não muito distante do rio, 103 Chandless, Notes on the River Aquiry… 1966, p. 121-122 . No original: “On this part of the river, on the parallel of 11º, we found two distinct tribes of Indians, both apparently small. The first was very timid. One day we met some ten Indians, including two or three women, coming down-stream in a couple of "ubás;" at sight of us they made for shore, and went off into the wood, leaving all they had except bows and arrows; in vain we called to them and showed knives, beads, &c., either they did not hear or they distrusted us. The same happened a second time with a single ubá, but this time the Indians went off and alarmed a neighbouring “maloca”, so that, on our arrival there, we found there had been a general exodus. As usual we left trifling presents, which they found on their return. This bred confidence, or their desires overcame their fears, and they followed us by land, and three days afterwards came out on the river-bank calling to us. They are a fine, tall, clean race of Indians, but not good-looking; the women, however, we never saw, except at a distance in the first ubás. Their houses seem in general to be not very far inland, one to two miles on an average; they are neatly made, but for the most part mere sheds, not closed in at the sides, excepting a store-house of treasures and ornaments used in festivals, some rather curious. In the plantations I saw bananas, maize, aipim ( or "yuca"), but not mandioca, also coca, papaws, sugar-cane, and cotton.* The women wear a piece of cotton-cloth round their waist, reaching half way down the thigh; at least a little girl seven or eight years old, the only child I saw, was so clad. The men go entirely naked. Despite their timidity they talk very loud, indeed with much vociferation; their pronunciation is indistinct, and somewhat guttural. Words signifying parts of the body all (that I learnt ) begin with “n,” the vowel, however, following this seems to vary; there was a termination “rá” that I could not understand; thus on asking the word for “river” the answer was “washirí,” “washirí-rá,” and so in several words which they repeated a second time with this affix. They had some few articles of iron, all made of broken pieces, evidently bought from some tribe better supplied, probably that above, as indeed we understood from them; one piece had the maker’s name on it, and another the trade mark, both such as are imported by way of Pará. These Indians were all well behaved, and did not attempt to steal, or, indeed, to meddle with anything in our canoes. Their canoes are all ubás, made of paxiuba palm.”
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“mata adentro, talvez uma a duas milhas em média”. Não obstante, a imaginação do
cientista, as descreve como “feitas com esmero, mas, em sua maioria eram apenas
barracões não fechados dos lados, excetuando o depósito de tesouros e
ornamentos usados em festas – alguns muito curiosos”. A imaginação parece insistir
em trair-lhe a “objetividade científica”. Porém, nesse caso, trabalha a favor da lógica
de uma etnologia que busca “‘partes’, ‘etapas’, ‘modelos’, ‘homologias’, ou ‘grupos
de transformação’ que nos remetem à totalidade, como terreno de comunicação e
inclusão”.104
Merece destaque a referência que Chandless faz às mulheres desse grupo,
posto que, embora afirme que não as tenha encontrado, por inferência a partir de
uma criança – “uma menininha de sete ou oito anos –, as “descreve” como vestindo
“uma peça de tecido de algodão ao redor da cintura, alcançando até metade da
coxa”. Novamente o cientista lançava de sua imaginação para produzir o relato da
leitura do “outro”, mas, também, colocava ante os olhos e a imaginação de um leitor
atento aos inúmeros processos de exploração dos rios amazônicos, que os povos do
“washirí” ou “wasshirí-rá” haviam aprendido a proteger suas mulheres e crianças dos
olhos e da cobiça dos aventureiros que de passagem pelo Purus e seus afluentes
desde, pelo menos, um século antes, em busca das “drogas do sertão”.105
Saindo do Aquiry, com seus “vociferantes” e “guturais” grupos indígenas,
Chandles percorreria o rio Juruá, “descrevendo” e interpretando práticas alimentares
e religiosas dos “homens da terra” desse outro importante afluente do Amazonas.
Acima dos Catauixis, não há índios até latitude 5º 30’s, onde no
Igarapé Chiué, há uma única aldeia de Arauás. Encontrei-os
acampados ao longo de uma praia. Herndon106 os menciona
como traidores e, de fato, eles já mataram uma ou duas
104 Cardoso, O olhar viajante (do etnólogo), 1998, p.360. 105 Pimenta, castanha, urucum, pau-cravo, canela, baunilha, entre outras. José Moreira Brandão Castello Branco, em Caminhos do Acre, desenvolve uma detalhada “descrição” sobre o processo de exploração e “colonização” dos vales dos rios Madeira e principais afluentes; Purus e Juruá, com seus principais afluentes; Javari; Ucaiali e Amarumayo, pontuando os ricos processos históricos que escaparam à análise da maioria dos estudos sobre a região. Ver Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Rio de Janeiro, julho-setembro de 1947, volume 146, p. 75-225. 106 Referência ao Capitão William Lewis Herndon, que navegou o Rio Amazonas em 1851, por ordens da United States Naval Observatory da marinha Matthew Fontaine Maury. Ver: Junqueira, M. A. Ciência, técnica e as expedições da marinha de guerra norteamericana, U.S. Navy, em direção à América Latina (1838-1901).
70
pessoas de modo um tanto traiçoeiro, mas, talvez, não sem
provocação. Sempre tiveram relações com os comerciantes e
não parecem uma raça guerreira, mas sim uma raça tímida. Em
linguagem, eles são semelhantes aos Purû-Purûs (Pammarýs).
Uma boa parte deles fala a “língua geral” e todos que vi
estavam regularmente vestidos, ao estilo do povo do
Amazonas. Eu estava muito satisfeito com sua cortesia e
simpatia, embora curioso em saber se existia algo que não
mendigassem. Dois deles concordaram em me acompanhar e,
claro, eu os paguei com antecedência. Sua companhia durou
apenas cinco dias até o Rio Chiruan. Depois disso, eles foram
evidentemente relutantes em prosseguir. Portanto, vendo que
eles estavam dispostos a roubar e fugir durante a noite, disse
que eles estavam livres para ir embora de dia. Eles pareciam
gratos e voluntariamente me entregaram o pagamento deles de
volta e ofereceram até mesmo as roupas que vestiam. O
principal motivo foi o medo dos índios acima, os Culinos. Mas,
eles pareciam mesmo pouco habituados a um trabalho árduo,
como remar o dia inteiro, tendo em vista que as viagens
indígenas são muito curtas. Além disso, eles partiram muito
tristes, devido ao fato de que um deles tinha uma esposa
grávida em casa e o outro um filho pequeno. Nestas
circunstâncias eles iriam comer apenas determinados tipos de
alimentos. Nada de peixe de couro ou de escama, como, por
exemplo, tambaqui ou piranhas. Um não iria comer a tartaruga
macho e o outro não comeria a tartaruga fêmea, nem os ovos.
Não comeriam patos, nem porcos selvagens, nem antas. Na
verdade, eles não comeriam nada fácil de se conseguir, exceto
os mutuns. Até mesmo no Juruá, é difícil garantir um
suprimento inesgotável desses. Entendi que o motivo deste
jejum era de ordem religiosa e não física, mas eles eram
71
avessos a serem interrogados sobre o assunto. Assim sendo,
minha delicadeza prevaleceu sobre a minha curiosidade.107
Chandless compara diferentes grupos humanos dos vales do Purus e Juruá,
tratados em seu texto, em referência direta não com a cultura – atributo das
sociedades mais “evoluídas” e detentoras da escrita –, mas com a natureza – estado
“primitivo” e, também, “selvagem”; recorre aos escritos de outros viajantes e aos
dicionários e gramáticas das “línguas indígenas”, elaboradas por irmandades
religiosas. Nesse sentido, parece substituir o “olhar do estrangeiro” pelo “olhar do
etnólogo”, com sua narrativa de viagem mergulhando numa encruzilhada
desafiadora para o que escreve ou “descreve” e para o que deixa de escrever ou
“descrever”.
Nessa encruzilhada, o “olhar do estrangeiro” seria aquele “capaz de olhar as
coisas como se fosse pela primeira vez e de viver histórias originais”; um olhar capaz
de “livrar a paisagem da representação que se faz dela, retratar sem pensar em
nada já visto antes. Contar histórias simples, respeitando os detalhes, deixando as
coisas aparecerem como são”.108
Porém, em sua escolha, o viajante inglês, prefere catalogar espécies – fauna,
flora e seres humanos aí se confundem –, confirmar ou ampliar catálogos
elaborados por outros viajantes, sob a égide do “registro científico” ou, no dizer de
107 Chandless, Notes of a Journey up the River Juruá. 1869. pp. 299-300. No original “Above the Catauixis there are no Indians till lat. 5º 30's. where on the igarapé Chiué, is a simgle village of Arauas, I found them camped on a sand-bank hard by. Herndon mentions them as treacherous; and in fact they have killed one or two persons somewhat treacherously, but perhaps not without provocation. They have long had dealings with traders, and seem not a warlike, but a timid race. In language they are akin to the Purû-Purûs (Pammarýs). A good many of them now speak the "lingoa geral," and all I saw were regularly clothed, like ordinary Amazons-folk. I was much pleased with their courtesy and friendliness. Though curious to see things, they did not beg. Two of them agreed to accompany me, and of course I paid them in advance. Their companionship lasted 5 days only, up to the River Chiruan. Beyond this they were evidently unwilling to go; therefore, seeing that they purposed to steal away at night, I told them they were free to go by day. They seemed grateful, and voluntarily brought back to me such of their pay as they had with them, offering even the clothes they had on. Their chief reason was fear of the Indians above (Culinos); but they, seemed little accustomed to hard work, such as rowing all day, for Indian Journeys are very short. Moreover, they fared badly; for one of them had a pregnant wife at home, and the an infant child: and under these circumstances they will eat but of certain food; not of any skin-fish, nor of all scale-fish,; e.g., not of tambaqúi, nor piranhas: one would not eat of the male turtle, and the other neither of the female nor of the eggs; nor would they eat ducks, nor wild pigs, nor tapirs. In fact, they would eat nothing easily attainable, except curassow-birds; and even on the Juruá it is hard to ensure an unfailing supply of these. I understood the motive of this quasi-fast to be religious, not physical; but they were averse to being questioned on the subject, and my delicacy prevailed over my curiosity. 108 Peixoto, O olhar do estrangeiro, 1998, p. 363.
72
Michel de Certeau, de “‘lendas’ científicas”, indicando aos leitores aquilo que “devem
ler” em textos que “revelam ‘uma ciência dos sonhos’; formam ‘discursos sobre o
outro’, a propósito dos quais se pode perguntar o que se conta aí, nesta região
literária sempre decalada com relação ao que se produz de diferente”.109
Sem ingenuidade ou inocência, a partir de um imaginário fundado no “eu”
como medida das coisas e “satisfeito” com a “cortesia e simpatia” dos “Catauixis do
Igarapé Chiué”, William Chandless, os “descreve” sob o invólucro da “covardia”,
“traição” e “mendicância” – o oposto da “raça guerreira” “descrita” por outros
“desbravadores” –, sendo que, em matéria de “linguagem” seriam “semelhantes aos
Pammarýs, do Purus, embora falassem a “língua geral” e se vestissem “ao estilo do
povo do Amazonas”. Nesse aspecto seu relato vai re-editando visões sacralizadas
em textos escritos por diferentes “descobridores do Amazonas”, a partir de
diferentes interesses, épocas e contextos históricos.
Paradoxalmente, em determinada passagem do relato, a “delicadeza” de
Chandless fala mais alto que sua “curiosidade” impedindo-o de aventurar-se pelos
desconhecidos caminhos do “jejum” dos dois “Catauixis” que o acompanharam até o
“rio Chiruan”. Entre a motivação de “ordem religiosa” e a “física” estava o silêncio
dos “Catauixis” que, na pena do viajante, “eram avessos” a falar “sobre o assunto”,
numa recusa indecifrável à sua escrita. O “escriba” da expedição negava-se a
dialogar com o silêncio, embora, também, silenciasse.
A desconfiança, com relação aos “indígenas”, acompanha e sombreia as
narrativas de viagem de William Chandless, por rios amazônicos. Seus “registros” re-
encenam teatros, nos quais os “homens da terra” aparecem/desaparecem nas
“letras brancas” de sua escrita. Nessa escrita, a questão do sujeito – “do corpo e da
palavra enunciadora” –, retorno a Certeau, em diferentes “paisagens culturais” e,
para apegar-me às convicções de uma determinada linha do pensamento
geográfico, diferentes territórios e práticas de territorialização, vai sendo tratada ou
“reprimida ao nível da ficção ou do silêncio pela lei de uma escrita ‘científica’”.110 Em
busca de uma maior apreensão disso, deixemo-nos “guiar” pela escrita do viajante
inglês.
109 Certeau, A Escrita da história, 1982, p. 213. 110 Certeau, A Escrita da história, 1982, p. 11.
73
Acima do rio Chiruan, no lado direito do Juruá, encontramos o
território dos Culinos, uma tribo numerosa do interior da mata.
Dizem que não têm canoas e, por isso mesmo, durante a
desova das tartarugas, chegam às praias por terra.
Encontrados em grande número, são considerados traidores e
hostis, logo, neste trecho, é uma regra de viagem sempre
dormir nas praias do lado esquerdo do rio – uma necessidade
que, às vezes, nos induzia a parar mais cedo ou viajar mais do
que eu teria desejado. Não chegamos a ver nenhum deles.
Ouvimos de outros índios, rio acima, que os Culinos não são
vistos naquelas praias há cerca de dois ou três anos. Estão
presentes também no Rio Tarauacá e, provavelmente, ocupam
uma área considerável em direção ao sudoeste. Durante dez
dias de viagem, acima da foz do rio Chiruan, não há índios
ribeirinhos, em ambas as margens rio Juruá. A primeira aldeia
de Conibos surge apenas às margens do Igarapé Araçá, sendo
a única aldeia deles no Juruá. Esses Conibos são da mesma
tribo de índios que, no Rio Purus, tenho chamado de
Manetenerys e que o explorador brasileiro Serafim [dos Anjos]
erroneamente chamou de Cucamas, embora não exista
nenhuma palavra em comum entre eles. Se são Conibos, não
posso afirmar, mas eles assim chamam a si mesmos e são
reconhecidos por outros índios como tais. É possível que sejam
oriundos de uma colônia do Purus ou que os índios do Purus
sejam oriundos do Rio Juruá, sendo estes os remanescentes
deixados para trás. Quanto a isso nada pude verificar, exceto
que não são novos por aqui e que, em diferentes épocas,
ocuparam vários locais ao norte e ao sul de sua atual aldeia.
Hoje eles são uma espécie de entreposto comercial para o
restante de sua tribo, trabalhando para regatões e vendendo
instrumentos supérfluos de ferro a seus irmãos do Purus, de
quem eles compram os ponchos longos de algodão que estes
tecem e usam, tendo em vista que os Conibos usam, mas não
74
tecem. Quase todos os anos, enviam uma expedição ao Purus,
ou pelo menos a uma aldeia que fica há três dias de viagem,
mata adentro, segundo me contaram. Alguns deles,
encontrados aqui na minha viagem de volta, estavam agora
ausentes em uma dessas expedições. Todos sabiam da minha
expedição ao Purus – talvez eu tenha feito um péssimo
negócio para eles naquele ano –, e me informaram que meu
empregado foi morto por pessoas de sua tribo e não pelos
Hypurinas, como eu de fato previ, tendo inclusive registrado em
meu artigo sobre o Purus. Ao menos fiquei aliviado em saber
que os Hypurinás, uma encantadora raça guerreira, estavam
livres desta inadequada pecha de traidores. No entanto, devo
dizer que relatos que vêm através de índios, merecem um
pouco de confiança e nada mais, tendo em vista serem muito
circunstanciais. Uma catástrofe que jamais aconteceu pode ser
contada em seus mínimos detalhes.111
111 Chandless, Notes of a Journey up the River Juruá, 1869. p. 300-301. No original: “Above the River Chiruan on the right side of the Juruá is the country of the Culinos, - a numerous tribe of the interior, who are not to have canoes, but to come by land to the sand-banks at the time the turtles lay. They are considered treacherous and hostile if in sufficient numbers; consequently it is a rule of travel always to sleep on sand-banks on the left side of the river, in this part, - a necessity which sometimes induced us to stop earlier, sometimes to travel than I would have wished. We saw nothing of them; and, from other Indians above, heard that they had not been on the sandbanks for the last 2 or 3 years. They are met with also on the River Tarauacá, and probably extend a considerable distance S.W. For ten days' journey above the mouth of the River Chiruan there are no waterside Indians on either bank of the river (Juruá); the first village being one of Conibos, by the small Igarapé Acará, their only village on the Juruá. These Conibos are the same tribe of Indians that on the Purûs I have spoken of by the name of Manetenerýs, and which the Brazilian explorer Serafim erroneously called Cucamas, though they have not a word in common with the latter. Whether they are true Conibos or not, I cannot say; but they call themselves, and other Indians call them, such. They may have been originally a colony from the Purûs, or those of the Purûs may have passed to that river the Juruá, and these remained. As to this I could ascertain nothing, except that they are not new comers, but have at different times occupied various sites above and below their present one. Now they are a sort of trading-post for the rest of their tribe. They work more or less for traders, and sell their superfluous iron implements to their brethren of the Purûs, from whom they buy the long ponchos of cotton-cloth, which the latter weave and wear, and which these wear but do not weave. Almost every year they send an expedition to the Purûs, or rather to a village three days' journey inland from that river, as they told me. A number of them whom on my return I met with here, were now absent on such an expedition. They all knew of my journey up the Purûs - perhaps I made a bad market for them that year - and informed me that my servant was killed by people of their tribe, as I had originally believed, and indeed written in my paper on the Purûs, and not by Hypurinás. I was glad at least to find the latter, a fine warlike race, freed from this stain of treachery, which ill-suited their character. Reports that come through Indians, I may observe, merit little reliance; and not a whit more for being very circumstantial. A catastrophe that never happened is told in minute detail.”
75
“Covardes”, “hostis”, “traiçoeiros”, “ladrões”, “mentirosos”, os velhos adjetivos
desqualificadores dos grupos indígenas contrastando com outra visão, também,
idealizada nos séculos de contato, o de “raça guerreira”, ocupam as páginas do
relato de Chandless. Diferentes grupos de pesquisadores recorreram aos relatos
desse viajante – geralmente citado por outrem – para fazer referências aos grupos
indígenas do Juruá, ora manifestando o quanto representaram um entrave à
empresa extrativista e à expansão “civilizadora” da “sociedade nacional”; ora
tentando manifestar a “bravura” daqueles indômitos e livres “homens da floresta”.
Essas duas formas de abordagem, não obstante a rigidez das posições binárias que
lhes servem de suporte, quedaram-se ante as idiossincrasias de uma escrita que, do
“mundo indígena”, no dizer de Serge Gruzinski, somente apreende “reflexos, aos
quais se mescla invariavelmente, e de modo mais ou menos confuso, o nosso”.112
Lendo e relendo os relatos de Chandless, creio ser necessário ir mais longe e
ampliar as possibilidades de leitura e interpretação dos mesmos, a partir desse lugar
único em que nós, leitores/escritores/falantes/tradutores, nos encontramos. Edward
Said pontua, insistente, que ninguém tem o “privilégio epistemológico” ou o dom de
“julgar, avaliar e interpretar livre dos interesses, das emoções e dos compromissos
das relações em andamento”. 113 Sem deixar de acentuar a relevância dessa
observação, creio que é preciso estar atento para os pontos de
“articulação/desarticulação” em que nosso olhar se cruza/influencia no/pelo olhar do
“outro”. No âmbito do presente estudo, o viajante inglês escreve uma narrativa, na
qual enquadra o “outro” em sua perspectiva “civilizada” e “científica” que, não
obstante, também estrutura e confere sentido ao seu “eu civilizador”.
Em uma das pouco lidas, mas muito referenciadas passagens de Notes of a
Journey up the River Juruá, Chandless “descreve” aquilo que, segundo Francisco
Pereira da Costa, se consolidaria como a constituição de um discurso histórico que,
reproduzido em diversos estudos, tornou dominante a cristalizada imagem dos
“Nauas”, como “um povo agressivo e violento”. Para esse autor, por trás dessa
construção mental encontra-se a justificativa para toda sorte de “violência
112 Gruzinski, A Colonização do imaginário, 2003, p. 19. 113 Said, Reflexões sobre o exílio, 2003, p. 127.
76
empregada na ocupação” dos territórios daquele grupo étnico e, ainda, a busca de
legitimar a “ocultação dos povos indígenas” pela “história regional”. 114
... Eu contratei dois homens desta aldeia Conibo, para trabalhar
em minha canoa e achei-os bons homens para o trabalho, pois
eram muito diferentes dos pobres Arauás. Eles não tinham
hesitação alguma diante dos alimentos, mas possuíam uma
grande avidez por sal. Meu estoque de peixe salgado, que eu
mal havia tocado, e que os meus homens haviam desejado,
por mais de uma vez, jogar fora, era para eles o maior dos
deleites, pois houve momento que não descansaram até comer
o último. Na minha volta, esses dois homens permaneceram
em sua aldeia e outros dois me pediram para levar-lhes para
Paranary, local da casa do Senhor João da Cunha, um pouco
acima de Tefé. Ouvi dizer, tempos depois, que eles
permaneceram na casa dele. No entanto, após cerca de dez
dias, roubaram uma canoa, machados, armas e outros objetos
e voltaram para o Juruá. Após uma semana de viagem, desde
a aldeia Conibo, nós nos achamos entre um grupo de
Catuquenas que, por acaso estava em seu porto, já que sua
aldeia, disseram, ficava há um dia de viagem, mata adentro.
Eles são uma das tribos mais dispersas do Amazonas, embora
difíceis de encontrar nas margens dos rios de água branca,
devido à sua aversão aos insetos. Os homens pareciam
companheiros agradáveis, altos e fortes. Vestiam apenas uma
tanga. (...) Nenhum dos Conibos estava familiarizado com o
Alto Juruá. Embora rico em recursos naturais, nessa parte, não
existem coletores de drogas, pelo menos não nos últimos
tempos, devido, principalmente ao medo do Náuas. Medo esse
que logo começou a se manifestar em vários dos meus
homens. Por duas vezes, os remos foram jogados fora durante
114 Costa, História, território e identidade étnica, Naua no Juruá, 2010, p. 16-19.
77
a noite, na esperança de, assim, interromper a viagem, ou
talvez provocar um retorno. Na primeira e na segunda ocasião,
no entanto, todos os remos foram impelidos para a beira da
praia sobre a qual tínhamos dormido. Depois disso, não tendo
remos de reserva para perder, eu juntava todos à noite,
colocava-os na popa da canoa e dormia em cima deles. Em
seguida, uma caldeira desapareceu, porém eu disse a todos
que poderia viver muito bem apenas com assados e, assim
sendo, a última que havia foi poupada. Felizmente, não é fácil
inutilizar uma canoa de madeira sem fazer barulho. Seria
injusto dar a entender aqui, que todos os homens fossem
capazes de tais atos. Três deles eu sei que não foram. Talvez
tenha errado a respeito de um outro. Somente um, porém, era
corajoso e me acompanhou com boa vontade. Em sua
homenagem (si qua est ea cura – se é que existe dever nisso),
batizei o afluente seguinte de rio Gregório. (...) Enfim, à noite
chegamos a uma plantação dos Náuas. Seu tamanho mostrava
que eles eram um tanto numerosos e que, pela limpeza do
mesmo, que eles tinham estado ali, recentemente. Na manhã
seguinte, passamos por duas outras plantações e, ao redor de
um ponto, chegamos a uma aldeia com duas grandes casas.
Aparentemente estavam todos ausentes, mas, nesse
momento, avistamos uma canoa descendo o rio. Nós os
chamamos, mas eles retornaram. Cerca de três milhas, rio
acima, os encontramos nas margens do rio. Eles tinham três
canoas muito longas, embora estreitas e, de uma só vez,
correram em direção a elas, batendo no peito com as mãos e
com seus grandes escudos pretos de forma arredondada
(dizem que feitos de pele de anta), além de lanças, arcos e
flechas. Apenas duas canoas se lançaram ao rio, mantendo
uma boa distância entre elas. A que vinha à frente, não tinha
mais do que cinco ou seis homens. Pelos gestos que faziam,
não duvidei que viessem a combate, mas duvidaria muito se,
78
por acaso, soubessem que éramos brancos, o que até tentei
explicar mostrando-lhes miçangas, entre outras, com o intuito
de estabelecer uma negociação. Mas, quando eles já estavam
a oito ou nove jardas de distância e ainda fazendo sinais de
guerra, meus homens, relembrando o desastroso ataque do
ano anterior (1866), na expedição Brasileira-Peruana no rio
Javary, não iriam esperar mais tempo e, a despeito das minhas
ordens, dispararam antes que uma flecha fosse atirada contra
nós. O primeiro tiro se perdeu, e eles continuaram a prosseguir
em nossa direção, mas o segundo feriu um dos índios no
braço. E então eles pararam. Após um terceiro tiro, recuaram.
Nós os seguimos, mas como estavam correnteza acima e perto
da margem, alcançaram a praia. E lá, fora do abrigo da
floresta, havia cerca de trinta indígenas. Quantos eram
mulheres e quantos eram homens, eu não saberia dizer. A
única flecha que foi atirada em nossa direção, não passou nem
perto de nossas canoas. Nós ficamos cerca de meia hora
diante deles, fora do alcance das flechas, apenas para ver qual
era a reação deles. Talvez, tenham ficado diante de nós e
permanecido onde estavam com essa mesma intenção. Eles
não fizeram nada. Nós também não. Contudo, quando propus
dar seguimento à nossa expedição, houve um clamor geral de
todos os meus homens, com uma única exceção, para que
retornássemos. Não há dúvida de que havia certo perigo, tendo
em vista que uma canoa que segue correnteza acima deve
ficar próxima da margem, o que poderia favorecer emboscadas
indígenas. No entanto, levando em conta a coragem que
demonstraram, duvido que teriam feito isso. Para lutar
abertamente ou mesmo resistir a contínuos ataques
escaramuçados, éramos muito poucos. Ao todo estávamos em
oito, considerando os dois Conibos e um Miranha que, em
situação de perigo, não têm serventia. Todavia, deveríamos ter
ido e seguido até o fim. Se tivéssemos ido e, por conseguinte,
79
sido atacados novamente, eu retornaria de bom grado. Não
tendo isso acontecido, lembro deste dia com vergonha.
Flutuamos rio abaixo, até perdê-los de vista, de modo a não
parecer que fugíamos. Atingimos uma localidade onde alguns
deles devem ter estado, já que havia uma fogueira acesa.
Levamos um pouco de resina/breu que encontramos. Deixei
em troca, como pagamento, uma grande quantidade de
utensílios em ferro, na esperança que isto os fizesse perceber
que nosso objetivo não era causar-lhes mal.115
115 Chandless, Notes of a Journey up the River Juruá, 1869. p. 302-307. No original: “I engaged two men of this Conibo village to work in my canoe, and found them good men for work; very different from the poor Arauas. They had no scruples about food, but a great avidity for salt; so that my stock of salt fish, which we had scarcely touched, and which my men had wished more than once to throw away, was to them the greatest of treats, and one of which they did not tire to the last. On my return these two men remained at their village; and two others asked me to give them a passage to Paranarý, the house of Sr. João da Cunha a little above Teffé. As I afterwards heard, they stayed with him but about ten days, and then stealing a canoe and sundry axes, guns, and other loose articles, went back to the Juruá. A week's journey from this Conibo village we fell in with some Catuquenas, who chanced to be at their port: their village (maloca) was, they said, a day's journey inland. They are one of the most widely scattered tribes of the Amazons, but not often met with on the banks of white water rivers, owing to their aversion to the insect-plagues. The men seemed fine, tall, strong fellows; only apron-clad. (…) None of the Conibos were acquainted with the upper Juruá; nor have drug collectors, at any rate in recent times, been materially higher, chiefly from fear of the Nauas - a fear that soon began to show itself in several of my men. Twice the oars, or paddles, were thrown away at night, in the hope of thus stopping the journey, or perhaps causing a return. On the first occasion, however, all, and on the second two, of them drifted ashore at the lower end of the sandbank on which we had slept. After that, as I had no more spare oars to lose, I always at night collected all in use and put them in the stern, and slept on the top of them. Next a camp-kettle vanished; but I said I could live very well on roast, and the remaining one was spared. Fortunately it is not easy to injure a canoe of hard wood without making a noise. It would be unjust to imply that all the men were capable of such acts: three I am sure were not, and perhaps I wrong another; one only, however, was of good courage, and went with a good will. In his honour (si qua est ea cura) I called the next affluent River Gregorio. (…) At last, one evening, we reached a Naua plantation, the size of which showed they were somewhat numerous, and its cleanness that they had been recently there. The next morning we shortly passed two more plantations, and rounding a point reached the “maloca” of two large houses. The people were apparently all absent, but at this moment a canoe from above came in sight; we called to those in it, but they turned back up-stream. About three miles above we found them all on the river bank. They had three very long but narrow canoes, and at once ran to these, beating their breasts0 with their hands, and their large round black shields (of tapir-hide, it is said) with their spears - for they had spears as well - and bows and arrows. Only two of the canoes put out, and one kept a good way behind the other, the foremost having but five or six men in it. From their gestures I can scarcely doubt that they came out to fight, but I doubt a good deal whether at first they knew that we were white people, and I hoped by showing beads, &c., to bring them to a parley. But when they were eighty or ninety yards off, and still making signs of war, my men, recollecting the disastrous attack of the previous year (1866) on the Brazilian-Peruvian expedition up the river Javarý, would wait no longer, and despite my orders fired before an arrow had been shot at us. The first shot missed, and they still came on, but the second wounded one of the Indians in the arm, and then they stopped, and at a third shot retired. We followed, but as they were both upstream and in-shore of us they gained the bank; here there were about thirty Indians, just under cover of the wood, but of these how many were women I cannot say. One arrow only was shot at us, and that fell short. We stayed about half an hour
80
Mais uma vez tive que me alongar na “transcrição”, que é também “trans-
criação”, tradução/interpretação do relato de William Chandless, no corpo desta
dissertação. Ele, o viajante, traduz para o inglês – escrito – tudo o que vê e ouve das
ágrafas línguas116 dos indígenas com quem mantém contato – e consegue
compreender, na maioria das vezes, com a ajuda de tradutores. O que “registra” é
aquilo que é possível traduzir, ou que possa ser referenciado no inglês; que possa
ser dito; o dizível. O não dito ou o não reduzível, o indizível, é lançado nas margens
e nos silêncios que ecoam palavras perdidas.
A “invenção do selvagem”, segundo Certeau, data do século XVI e deriva de
um relato que fundamentaria as bases da etnologia, a “História de uma viagem à
terra do Brasil”, de Jean de Léry (1578). No âmago dessa “invenção” estaria aquilo
que conferiria“superioridade” aos “ocidentais” e os diferenciaria dos “povos do novo
mundo”: a escrita. “O poder cultural” dessa diferenciação está “referendado pelo
absoluto: isto não é apenas um fato, mas um direito, o efeito de uma eleição, uma
herança divina”.117 Certeau traduz Jean de Léry ao afirmar que a escrita é a
clivagem que separa os “de cá” dos “de lá”, e essa escrita “instrumento” é capaz de,
ao mesmo tempo, reter as coisas e de expandí-las, “até o fim do mundo”, sem
perder sua força.
O poder que seu expansionismo deixa intacto é, em seu
princípio, colonizador. Ele se estende sem ser mudado. É
tautológico, igualmente imunizado contra a alteridade que
opposite them, and out of arrow-shot, to see what they would do. Perhaps they stayed where they were with a corresponding intention. They did nothing; we the same. But at the proposition of continuing our journey, there was a general outcry of all my men, with one exception, against doing so. No doubt it involved a certain amount of danger, as an up-stream canoe must stick close to the bank, and it would have been easy for the Indians to plant ambuscades, but from their bold daring I doubt whether they would have done so. To fight our way, or even resist continual skirmishing attacks, we were too few being only eight in all, and the two Conibos and a Miranha could not he counted on in danger. But we should have gone and seen. Had we done so and been again attacked, I should have been content to turn back. As it is, I look back on the day with shame. We floated down stream till out of sight, that we might not seem to run away, and touched at the village (maloca) where some Indians must have remained, as a fire was alight. We carried off a little pitch we found, for which I left ample payment in iron implements, hoping that this might make the Indians understand that our object was not to harm them.” 116 Para maior compreensão sobre essas línguas, ver o significativo estudo de José Ribamar Bessa Freire, Rio Babel, a história das línguas na Amazônia, 2004. 117 Certeau, op. cit., 1982, p. 216-217.
81
poderia transformá-lo e contra aquele que poderia lhe resistir.
Está envolvido no jogo de uma dupla reprodução, uma histórica
e ortodoxa que preserva o passado, e outra missionária que
conquista o espaço multiplicando os mesmos signos. É a
época em que o trabalho crítico do retorno às origens,
exumando as “fontes” escritas, se articula com a instauração
do império novo o qual permite, com a imprensa, a repetição
indefinida dos mesmos produtos.118
O efeito do relato de Léry seria devastador para as narrativas daqueles
viajantes que, a exemplo de William Chandless, percorreriam as “distantes” regiões
do “fim do mundo”, entrelaçando – pela palavra escrita – os “de cá” (a Europa) aos
“de lá” (as Américas, as Amazônias, as Áfricas), numa lógica de fundação histórica –
a própria escrita marca seu início – capaz de tornar o “outro” visível. Visibilidade
essa marcada pela presença de um “eu” que detém o instrumento da escrita, essa
“redentora” possibilidade de conferir “visibilidade” ao outro, fundando-lhe um “tempo
histórico” e “universal” em detrimento de um “tempo da natureza”.
Na significativa análise da viagem de Léry, no entanto, Certeau destaca uma
dialética, necessária para a superação das visões binárias que embasam muitos
estudos sobre narrativas de viagem. Para ele, o movimento de deslocamento
daquele quinhentista viajante francês, seguiria uma forma circular que ia “de cima
(ici, a França para baixo (là-bas, os Tupi)” e, depois, de posse de um “objeto literário,
o selvagem”, retornar ao seu “ponto de partida”. Esse relato, afirma Certeau, “produz
um retorno, de si para si, pela mediação do outro”, sem, no entanto, ser capaz de
carregar consigo “aquilo que, do outro, não é recuperável”: sua palavra.119
Em suas viagens pelas Amazônias, Chandless se instala em Manaus, e
desde lá escreve cartas, apontamentos e ordena na forma de texto as muitas
anotações de suas experiências. Nos seus escritos, tempo e espaço são tecidos
pela lógica de instrumentos técnicos capazes de estabelecer coordenadas, latitudes,
longitudes, temperaturas, “verdades científicas”. Classifica plantas, animais, línguas
e homens. Nesse fazer “da ciência” não prescinde das literaturas e relatos de outros
118 Idem. 119 Ibidem, p. 214-215.
82
viajantes e, principalmente, dos conhecimentos e dos saberes daqueles que o
acompanham ou que encontra nas viagens, e que são portadores de um saber
produzido e transmitido pela oralidade.
Seu “encontro” com os “Nauas” é emblemático por colocar em evidência o
quanto a categoria “índios” se torna homogênea ante a sua escrita. Mais que isso, a
força de sua narrativa – força da palavra escrita – funda uma temporalidade e uma
espacialidade que ganham o estatuto de “verdade”. “Verdade” produzida no conflito
entre o “viajante” e o “outro”, quer esse “outro” sejam os “ávidos” “Conibos”, o
“imprestável” “Miranha” ou os demais membros da comitiva que, com ele, sobem o
Juruá; quer seja os “Nauas”, dos quais duvida da “coragem” descreve-os como
“traiçoeiros”. Na síntese de sua narrativa sobre aquele “insólito encontro” no alto
Juruá, reinou a “covardia” entre aqueles “seres da floresta”, “carentes de civilização”,
mas capazes de provocar um sentimento de “vergonha” no viajante inglês.
Mais do que a história de uma “gente inferior”, os relatos de Chandless, assim
como diversas outras narrativas, na estreita “zona” que define o “eu” e o “outro”
funda uma noção de “civilização” em terras longínquas. Porém, devemos ressaltar
com Said, que existe um elemento de convergência entre as extensões coloniais da
Europa oitocentista, com suas extensões geográficas e os “discursos culturais
universalizantes”. Para ele, é o poder que possibilita
essa convergência; com ele segue-se a capacidade de estar
em lugares distantes, de estudar outros povos, de codificar e
divulgar o conhecimento, de caracterizar, transportar, instalar e
apresentar exemplos de outras culturas (por meio de
exposições, expedições, pinturas, levantamentos, escolas), e
sobretudo de governá-los.120
Tudo em nome do “bem comum” daqueles que vivem em “ermas paragens”.
Tal ideal “civilizador” contrasta, no entanto, com temporalidades, espacialidades e
culturas locais que parecem e, muitas vezes, aparecem como que “petrificados” em
formas narrativas, ou melhor, em interpretações mimetizadas dessas narrativas.
120 Said, op. cit., 1995, p. 152.
83
Muitas vezes, diante daqueles que as “lendas” historiográficas e literárias
“encapsularam” como “índios brabos”, o tempo linear da investigação e da
catalogação científica é interrompido.
“O tempo” somente se torna humano, afirma Paul Ricoeur, quando articulado
pela narrativa.121 A narrativa tecendo o tempo, o tempo re-definindo a narrativa. É
Chandless e não um narrador “Naua” quem “descreve” a cena de uma
“temporalidade científica” que estancou em meio às águas e florestas do Juruá;
“evolução” interrompida frente a um “outro” do qual o “homem de ciência” somente
pode captar o pós-fixo étnico. Nada mais. É William Chandless quem escreve:
Nós ficamos cerca de meia hora diante deles, fora do alcance
das flechas, apenas para ver qual era a reação deles. Talvez,
tenham ficado diante de nós e permanecido onde estavam com
essa mesma intenção. Eles não fizeram nada. Nós também
não.
121 Ricoeur, Tempo e narrativa – a intriga e a narrativa histórica, 2010, p. 9.
84
Capítulo III
William Chandless (...), realizou a mais séria entre
todas as explorações do grande rio. Pela primeira vez
fixaram-se em coordenadas astronômicas os seus pontos
principais – e, quando muitas outras indagações ele não
fizesse, aquela simples circunstância bastava para dar-lhe
um dos primeiros lugares não já entre os cientistas que
estudaram a Amazônia senão entre todos os que têm
perlustrado o nosso país (...). Dificilmente se encontra um
outro tão pertinaz, tão consciencioso, tão lúcido e tão
modesto.
Euclides da Cunha,
Geografia do alto Purus
Passamos por vários pequenos rios, que deixei sem
nome, pois atribuir nomes incorretamente, dados pelos
índios, poderia somente levar a confusão depois. Para um
grande, de aproximadamente metade do tamanho do Purus,
dei o nome de Manoel Urbano (por falta de um melhor) e,
para um outro menor, de Rio dos Patos, porque, por acaso,
atiramos num casal de patos pretos precisamente dentro da
nascente.
William Chandless,
Ascent of the River Púrus
85
Práticos negros, guias, remadores e viajantes: oralidade, escrita e
encontros culturais nas “Amazônias acreanas”
A diferenciação dos estudos no campo da linguagem, de um modo em geral,
se dá pela própria noção de linguagem. No presente estudo, em particular, a
linguagem é considerada essencialmente política, “posto que o sentido tem sempre
uma direção, é sempre dividido”,122 como propõe Eni Orlandi, numa discussão
acerca do discurso presente nos textos de padres capuchinhos e outros viajantes
franceses que vieram para o Brasil entre os séculos XVI ao XVIII. O objetivo da
autora foi compreender como os europeus, em contato com os “indígenas locais”,
padronizaram um determinado modo de conhecer o “brasileiro” e,
consequentemente, como se funda o discurso sobre a origem da “brasilidade”. 123
A partir dessa compreensão de linguagem, a autora propõe ainda uma
definição e, ao mesmo tempo, uma diferenciação entre relatos de viagem e discurso.
Deslocando a “observação do produto para o processo”, os relatos são vistos “não
como memória, mas como lugar de constituição da memória”.124 Isso implica em
que:
tomar estes textos como documentos [capazes de expressar
objetivamente a “realidade”] é resultado de um efeito ideológico
discursivo elementar: toma-se como evidência o que na
realidade já é uma construção do imaginário discursivo. Tomar
esses textos como documentos é já alinhar-se numa
interpretação dada da história.125
Assumir o “documento” algo objetivo tem significado, no terreno de diferentes
áreas de estudo, a consolidação de uma visão sacralizada a respeito de
determinada interpretação da história, determinada leitura ou visão que vai sendo
“imposta” como a verdade. Daí a necessidade de destacarmos que os relatos devem
122 Orlandi, Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo mundo, 1990, p.49. 123 Ibidem, p.18. 124 Ibidem, p.124. 125 Idem.
86
ser referenciados apenas como textos, ou como enunciados (sentidos formulados),
constituindo, em primeira instância, uma manifestação da linguagem, podendo ser
atravessada por discursos os mais diversos.
Em seu estudo, Orlandi analisa relatos de viajantes e de missionários
capuchinhos, apontando para uma ampliação do significado dos mesmos, pois, em
se tratando de relatos produzidos por europeus que versam sobre “descobertas” ou
sobre missões religiosas entre grupos “indígenas” da América, ou mais
especificamente, do Brasil em diferentes contextos, trata-se de relatos que
apresentam o discurso da colonização, o discurso da dominação, o discurso das
descobertas. Discurso que, por sua vez, é “lugar de significação, de confronto de
sentidos, de estabelecimento de identidades, de argumentação”.126
Em As formas do silêncio, a autora define o discurso, enquanto categoria de
análise, como sendo o efeito de sentidos. O que exatamente isso quer dizer?
Significa dizer que o sentido
não está (alocado) em lugar nenhum, mas se produz nas
relações: dos sujeitos, dos sentidos, e isso só é possível, já
que sujeito e sentido se constituem mutuamente, pela sua
inscrição no jogo das múltiplas formações discursivas (que
constituem as distintas regiões do dizível para os sujeitos).127
Em outras palavras, o discurso é a relação, historicamente regulada, entre o
sujeito e o sentido. Um outro elemento característico do discurso, é a presença da
ideologia. O discurso é considerado a “materialidade específica da ideologia” e, ela é
fundamental para a constituição dos sentidos e dos sujeitos, ou seja, para a
constituição dos efeitos de sentidos. Diferentemente do modo como a ideologia é
concebida nas ciências sociais (dissimulação ou não da “realidade”), o conceito de
ideologia é aquele que a compreende como sendo “a direção nos processos de
significação, direção esta que se sustenta no fato de que o imaginário que institui as
relações discursivas (...) é político.” Assim sendo, a ideologia não é a dissimulação
do “real”, mas a “interpretação” deste:
126 Orlandi, Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo mundo, 1990, p. 14-18 127 Ibidem, p. 20.
87
O processo ideológico, no discursivo, está justamente nessa
injunção a uma interpretação que se apresenta sempre como a
interpretação. Esse é um dos princípios básicos do
funcionamento da ideologia, apreendido pelo discurso.128
Desse modo, um discurso (da colonização, neste caso) pode ser constituído
por uma infinidade de diferentes textos, ou melhor, de enunciados, em diferentes
épocas, em diferentes locais. Seus sentidos ou seu enfeito de sentido não está fixo a
um determinado texto/enunciado:
O espaço em que se espraiam os sentidos é o da
multiplicidade, da largueza, mas também da truncação: um
sentido se desdobra em outro, em outros: ou se emaranha no
seu mesmo e dele não se solta. Fica à deriva. Se perde em seu
mesmo ou se multiplica (...). O tempo é o da fugacidade. O
sentido não se deixa pegar. Instável, errático. O sentido não
dura. O que dura é seu “arcabouço”, a instituição que o fixa e o
eterniza. Ele, no entanto, se move em outros lugares.129
Outro aspecto importante em análise do discurso é a noção de dialogia: ou
seja, “a presença do ‘outro’ como constitutiva da fala de qualquer sujeito”.130 Há que
se considerar também “que a relação com a alteridade, longe de ser direta, unívoca
e clara, é con-fusa e des-organizadora do sujeito (...)”.131 Isso significa dizer que “o
sentido seria, em grande medida, des-controlado. Discursos como o discurso das
descobertas seriam uma forma de controlá-lo”.132 Esse controle, essa permanência
ou regularidade do sentido ocorre, principalmente, pela repetição, ocorrida no âmbito
128 Orlandi, Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo mundo, 1990, p.36. 129 Ibidem, p.43. 130 Ibidem, p.38. 131 Ibidem, p.42. 132 Orlandi, Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo mundo, 1990, p.44.
88
da “Instituição”, conforme aponta Orlandi, lendo Foucault. A “Instituição” é o “lugar
da regularidade, da normatividade que preside o discurso”.133
Ao analisar o modo como os viajantes e missionários europeus “denominam”
os “locais”, Orlandi, desenvolve sua reflexão no campo da dialogia:
O europeu nos constrói como sendo o seu “outro”, mas, ao
mesmo tempo, nos apaga. Somos o “outro”, mas o outro
“excluído” sem semelhança interna. Por sua vez, eles nunca se
colocam na posição de serem nosso “outro”. Eles são sempre o
“centro”, dado o discurso das des-cobertas que é um discurso
sem reversibilidade. Nós é que nos temos como nossos
“outros” absolutos.134
Assim, diante das questões sobre o europeu/não-europeu e sobre
cópia/simulacro, estas últimas, discutidas por Deleuze, a autora conclui:
Fica sempre como se só nós tivéssemos um “outro”. O nosso
outro é o português, o italiano, o francês, etc. como nos
constroem uma história em que somos apagados como
alteridade, somos apenas “singulares”, temos
“particularidades”. Não somos o outro constitutivo porque não
“somos” (seres históricos, etc).135
O “discurso sobre o Brasil”, presente no discurso das descobertas, analisados
por Orlandi,
ou determina o lugar que devem falar os brasileiros ou não lhes
dá voz, sejam nativos habitantes (os índios), sejam os que vão-
se formando ao longo da história. O brasileiro não fala, é
falado. E tanto há um silêncio sobre ele, como ele mesmo
significa silenciosamente, sem que os sentidos produzidos por
133 Idem. 134 Ibidem, p.47. 135 Ibidem, p.48.
89
essas formas de silêncio sejam menos determinantes do que
as falas “positivas” que se fazem ouvir categoricamente.136
A reflexão sobre o silêncio, parte das questões que giram em torno do “não-
dito” do discurso, não o “implícito”, a “falta”, mas um excesso, um “já-lá” do discurso,
dos processos de significação.137 Para Orlandi, “o silêncio não fala. O silêncio é. Ele
significa. Ou melhor: no silêncio, o sentido é. (...) Além disso, o silêncio, assim como
a linguagem, não é transparente”.138
Nesse sentido, a autora distingue três formas de silêncio: o silêncio fundador;
o silêncio constitutivo; e o silêncio local. Dentre essas três formas, as duas últimas
compõem a “política do silêncio” ou silenciamento. No caso particular deste estudo,
convém desenvolver uma reflexão mais detalhada a respeito do que Orlandi
compreende como o “silêncio constitutivo”, ou seja,
a parte do sentido que necessariamente se sacrifica, se apaga
ao dizer. Toda fala silencia necessariamente. A atividade de
nomear é bem ilustrativa: toda denominação circunscreve o
sentido do nomeado, rejeitando para o não sentido tudo o que
nele não está dito.139
Ou seja, utilizando o exemplo dado, o da denominação, se digo “‘selvagem’
para o índio, não posso dizer ‘cidadão’”, isto é, o que “é preciso não dizer para poder
dizer”. O mecanismo do silenciamento é, pois, “um processo de contenção de
sentidos e de asfixia do sujeito porque é um modo de não permitir que o sujeito
circule pelas diferentes formações discursivas”.140
No caso do discurso da colonização, o sujeito colonizado não
pode ocupar posições discursivas (com seus estatutos e
sentidos) que o colonizador ocupa. Mais do que isso, é a partir
136 Orlandi, Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo mundo, 1990, p.50. 137 Orlandi, As formas do silêncio, 2007. 138 Idem, p. 31 e 67. 139 Orlandi, op. cit.,1990, p.49. 140 Orlandi, Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo mundo, 1990, p.52.
90
das posições do colonizador que são projetadas as posições
possíveis (e impossíveis) do colonizado. Seu dizer está assim
predeterminado pela posição do colonizador.141
Essa relação entre a formação discursiva a qual pertence o “colonizador” e a
formação discursiva do “colonizado”, não deve, no entanto, ser compreendida de
forma dicotômica, pois, como exposto acima, o discurso que articula essa relação
deve ser compreendido levando em conta seu aspecto dialógico.
Se de um lado o silêncio serve para pôr em funcionamento o
apagamento de sentidos, ele serve também para produzir a
resistência. Em uma fala (a do colonizador) já vem o que o
outro não pode falar e assim conseguimos, através da
explicitação desses processos de significação, trazer para o
jogo da linguagem o “silenciado”. Para isso é preciso sempre
observar: o que o colonizador não está dizendo quando está
dizendo “x”?142
Novamente, é bom lembrar, que essa “explicitação” do que é silenciado, não
se trata do “implícito”, pelo contrário, “a política do silêncio como um efeito do
discurso” instala o “antiimplícito”:
se diz “x” para não (deixar) dizer “y”, este sendo o sentido a se
descartar do dito. É o não-dito necessariamente excluído. Por
aí se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que
poderiam instalar o trabalho significativo de uma “outra”
formação discursiva, uma “outra” região de sentidos.143
141 Idem. 142 Idem. 143 Orlandi, op. cit., 2007. p. 75
91
À luz dessas significativas reflexões sobre o campo da linguagem e sua
“capacidade de comunicar e ao mesmo tempo de não comunicar”,144 principalmente,
no que diz respeito à política do silêncio, a relação entre outros dois aspectos
presentes, especificamente, nos relatos de William Chandless devem ser
considerados: a ciência e a tradução.
A formação acadêmica de Chandless dá conta de seu conhecimento em
línguas consideradas “clássicas”, como grego e latim, bem como de seu trânsito no
campo da linguística. No contato com grupos “indígenas”, seu conhecimento
científico, a respeito de características das línguas dos “indígenas”, será posto em
prática em diversas passagens de seus relatos.
No rio Purus, assim como nos demais rios que “explorou”, Chandless realizou
a “coleta” de palavras “indígenas” das etnias que ele descreve como sendo os
grupos Pammary, Hypurina, Manetenery e Canawary. As palavras coletadas são
apresentadas em tabela, e organizadas a partir da versão inglesa, ou seja, a partir
da tradução das mesmas. São palavras isoladas, apresentadas como substantivos
como sol, lua, mãe, pai, entre outras.
Em Ascent of the River Purús, Chandless, destaca que as “línguas das tribos
do Purus parecem ter pouca semelhança uma com as outras, tal como demonstram
as palavras abaixo:”145
English Pammary Hypurina Manetenery Canawary Sun Safiný atocantí Cashí warí
Moon Massicú cassirí Síri Fire Sijú chaminá chi-chi chi-i
Water Pahá iborahai Húni wáka River Wainý Wéni Wéni Dog djuimayhí anguitý Kéwé
Tortoise ú-jurú chetu-yu Agapado
Tapir Damá chamá chemá
(German “ch”)
Hen Aracauá patarí Catautí Bananas Sepatihí chí-parí Sapaná
Star Boirí Wirikí Cataherí Father bi-ý Paté Mother Miá Natú These words in both
languages I did not verify with natives. Brother Adjiú Nabirí
144 Pêcheux apud Orlandi, op. cit.,1990, p. 28. 145 Chandless, Ascent of the River Purús, 1866, p. 118. No original: “The languages of tribes on the Purûs seem to have but little resemblance to one another, as will appear from the following words”
92
Woman gamú Setú Girl imainaurý setúruntim
O objetivo ou finalidade principal desse tipo de “coleta” era “didático”, e
deveria servir para “situações de contato” entre o viajante e os “indígenas”. O que se
constituía, no entanto, era um processo em que o viajante, ancorado nos ideais
teóricos das “hierarquias lingüísticas”,146 ia classificando palavras/vocábulos de
“línguas primitivas”, faladas por “homens primitivos”, enquadrando tudo isso nas
práticas de catalogação e “organização” do mundo pela lógica de um “olhar
superior”. As assimetrias daquela “zona de contato”,147 mediada pelo poder
catalisador e disciplinador da escrita se manifestariam de múltiplas formas.
Ao analisar o aspecto da tradução nos processos de elaboração de
gramáticas, dicionários “indígenas”, produzidos por missionários e viajantes
franceses em contato com “indígenas” no Brasil, Eni Orlandi, pontua que
os europeus quando transcrevem a língua indígena o fazem a
partir da oralidade; e, no entanto, eles não relatam em discurso
direto: eles transcrevem a partir da sua própria escrita
européia. Assim, eles produzem a elisão da história da relação
entre a oralidade e a escrita. Como resultado, fabricam uma
língua indígena que soa mal como se nós escrevêssemos
nossas línguas (ocidentais) diretamente a partir do oral, sem a
medição da historicidade da escrita. Elas se tornam simulacros
viesados.148
Desse modo, a “coleta” de vocábulos isolados, sem observação contextual e,
principalmente, levando em consideração o “transplante” da oralidade para a escrita,
se configuraria numa impossibilidade de equivalência entre os sistemas de
representação envolvidos no processo de “contato”, mais especificamente, na
suplantação de um (o oral) pelo outro (o escrito).
146 Burke & Porter, Linguagem, indivíduo e sociedade, 1993, p. 22-23. 147 Pratt, op. cit., 1999. 148 Orlandi, Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo mundo, 1990, p.89.
93
É esse efeito “caricatural” que nós temos, face a língua
indígena. Por tal procedimento eles [missionários e viajantes]
tornam natural aquilo que deveria se explicitar na sua
historicidade. Não fica se não o produto de uma simulação
específica: uma escrita para uma língua de tradição oral. Se
esquecermos que mesmo hoje, com os rigores da ciência da
linguagem, não temos senão aproximações mal feitas.149
Nesse sentido, ao transpor para os relatos a codificação das línguas
“indígenas”, retirando-lhes suas historicidades, os viajantes apresentam aos seus
leitores não mais que simulacros ou “caricaturas” dessas mesmas línguas. Há que
se ressaltar que “para os europeus dessa época, ‘conhecer’ é ‘saber os nomes’, é
dar os nomes, é nomear”,150 o que torna suas ações de “descrição” das línguas
“indígenas”, a marca fundante de suas identidades.
No rio Juruá, em contato com um grupo de “Canamarýs”, Chandless
questiona a identidade do referido grupo a partir do não reconhecimento de seu
vocabulário:
Estes Canamarýs não entendiam nenhuma das palavras (muito
poucas) que eu havia coletado dos Canamarýs do Purus. Do
mesmo modo, não encontrei nenhuma delas no glossário
Canamarý do “Glossaria Linguarum Brasiliensum”, mas sim nos
glossários dos Culinos ou Maxurunas. Uma palavra me parece
ser instrutiva: a resposta comum dos Canamarýs que eu
conheci no Purus, ao se perguntar por algo que eles não
tinham, era "Yamai," equivalente no espanhol a "No hay". No
catálogo Culino (Gloss Ling. Bras., p. 243) encontrei que
"morior” era igual a “yamai". No geral, estou inclinado a pensar
que no Purus há duas tribos de Canamarýs: a primeira, que eu
não conheci, seriam dos verdadeiros Canamarýs e, aqueles
149 Idem. 150 Ibidem, p.90.
94
acima, com quem eu me encontrei, seriam, mais
provavelmente, um ramo dos Culinos. Estes últimos, no
entanto, se chamavam – e os Manetenerýs (ou Conibos) assim
os chamavam também –, Canamarýs. 151
As referências a uma bibliografia “especializada”, somada às suas inferências
e sínteses a partir do “vocabulário coletado” junto aos “indígenas”, são as bases que
fundamentam as conclusões do viajante: a) a existência dos Canamarýs
“verdadeiros”, embora não os tenha conhecido, mas pela confiabilidade atribuída ao
conhecimento linguístico enciclopédico, o “Glossaria Linguarum Brasiliensum”, tudo
indicava que deveriam existir e; b) aos que se “diziam” Canamarýs, em verdade
seriam Culinos ou um “ramo dos Culinos”, conforme indicava seu referencial
linguístico. A auto-identificação dos grupos, diante da análise dos dados
linguísticos observados no rio Juruá, comparados então com os “muito poucos”
coletados no rio Purus, não era considerada ou era, no mínimo, colocada sob
suspeita. A informação obtida através dos “indígenas”, sobre suas próprias culturas,
não era confiável e precisavam ser “tiradas a limpo” por outro tipo de conhecimento
que garantisse seu estatuto de verdade, ou seja, o conhecimento científico. Ao
“descobridor”, portanto, cabia o poder da certificação da “língua”, definindo para
aquele “outro” – e para o “mundo da ciência” –, pelo “poder da palavra escrita”, sua
identidade étnica
Em interessante estudo sobre as formas de representação cultural entre
comunidades “indígenas” do “oeste do Brasil”, Donald Pollock, afirma que a
linguagem era um marcador elementar de identidade, para os
viajantes europeus do século XIX que primeiro adentraram na
151Chandless, Notes of a Journey up the River Juruá,1869. pp. 302. No original: “These Canamarýs did not understand any of the words (a very few) which I had obtained from those on the Purûs; nor do I find any of them in the Canamarý catalogue in the ' Glossaria Linguarum Brasiliensum,' but every one in that of the Culinos or Maxurunas. One word seems to me instructive: the common answer of the Canamarýs I met on the Purûs, if asked for something they had not, was "Yamai," equivalent to the Spanish "No hay;" in the Culino catalogue ('Gloss. Ling. Bras., p. 243) I find "morior = yamai." On the whole, I am inclined to think that on the Purûs there are two tribes of Canamarýs; the one, which I did not meet, true Canamarýs, and those above, whom I met with, more probably a branch of the Cutinos. The latter, however, called themselves, and the Manetenerýs (or Conibos) called them, Canamarýs.”
95
região. À medida que Chandless subia os rios Purus e Juruá
entre 1865 e 1867, um exemplar do Glossaria Linguarum
Brasiliensum passou a ser tão importante para determinar a
localização cultural dos índios, com os quais se encontrava,
quanto seus instrumentos mecânicos de medição foram para
determinar sua localização geográfica.152
Sob essa lógica, não há espaço para a “fala indígena”. Esta precisa ser
coletada, comparada e analisada pelo viajante cientista para que se possa
“determinar a localização cultural dos índios”. Chama atenção o fato de que,
seguindo a lógica do próprio viajante, a partir de apenas quatro palavras coletadas:
warí, chi-i, wáka e chemá, correspondentes, conforme sua tabela publicada no relato
sobre o rio Purus, a palavras da língua dos Canamarýs, Chandless deixe de
identificá-los como tais, a ponto de desconsiderar sua autodenominação. Tal
conclusão do viajante parte da premissa de que o sistema de representação dos
grupos “indígenas” é limitado em comparação ao seu, admitindo a possibilidade de
não haver variações linguísticas, bem como infinitas possibilidades de denominação
para sol, fogo, água e anta, a depender do contexto de realização da fala.
Em sua viagem ao Purus, William Chandless, obsessivamente, vai mapeando
os rios, as gentes e as “falas” das gentes dos rios e lugares que percorre. Em
determinado trecho lamenta ter deixado de dar nomes a “vários pequenos rios”, pois,
“atribuir nomes, incorretamente dados pelos índios”, poderia causar confusões
posteriores. No entanto, prossegue o viajante, ao passar por
um grande, de aproximadamente metade do tamanho do
Purus, dei o nome de Manoel Urbano (por falta de um melhor)
e, para um outro menor, de Rio dos Patos, porque, por acaso,
152Pollock, Regionalism and Cultural Identity in Western Amazonia, 2003, p. 65-66. No original: “Language was a primary marker of identity for the nineteenth-century European travelers who first penetrated the region. As Chandless ascended the Purús and Jurua Rivers between 1865 and 1867, a copy of the Glossaria Linguarum Brasiliensum was just as important for determining the cultural location of the Indians he met as his mechanical measuring instruments were for determining his geographical location.”
96
atiramos num casal de patos pretos precisamente dentro da
nascente.153
Em sua “dupla consciência”,154 o viajante inglês vai “despindo” de palavras,
seus interlocutores indígenas, negros, caboclos, mestiços ou afroindígenas,155 seus
“companheiros” de sua viagem. Essa mesma relação ambígua – de ser guiado e de
buscar informações em pessoas a quem “não confia” – aparece em significativos
trechos de Notes on the Rivers Maué-assú, Abacaxis and Canumá – Amazons
(1870).
Exceto no rio Guaranatuba (um afluente da margem direita do
rio Maué-Assú), local onde vivem os Maués, os índios de todos
esses rios são Mundurucús, uma tribo tão bem conhecida e
tantas vezes registrada que pouco tenho a dizer sobre eles.
Aqueles do rio Maué-Assú, abaixo das corredeiras, são
civilizados e vivem em famílias não como numa vida tribal. (...)
O rio Abacaxis é quase desabitado. Os Mundurucus do centro
já não têm mais caminhos para o rio. A casa mais distante (na
lat. 4º 47’ s.) foi abandonada recentemente. Em três ou quatro
dias viajando a partir da foz, nos encontrávamos para além da
população. Entre 17 de setembro a 10 de novembro, não vi
uma única alma sequer. Foi a sensação de solidão mais
completa que já vivi. (...) Os Mundurucus me parecem bastante
fracos em nomenclatura, pois os nomes Curanahý e Arupadý
aparecem como afluentes tanto do rio Abacaxis, quanto do rio
Maué-Assú. “Igarapé Grande” e “Lago Grande” também são
153 Chandless, Ascent of the River Púrus, 1866, p.107. No original: “(…) to a large one, about half the size of they Purûs, I gave the name of Manoel Urbano (for want of a better), and to another smaller one that of River de Patos, as we happened to shoot a couple of black ducks just inside the mouth.” 154 Expressão tomada, por empréstimo, de Paul Gilroy em O Atlântico negro, 2001. 155 Categoria que vem sendo empregada e analisada por Agenor Sarraf Pacheco, para dar conta das muitas misturas entre os “filhos da mãe África” com grupos indígenas das Amazônias Marajoaras.
97
freqüentes, porém muitos deles eu não registrei por acreditar
que davam esses nomes por ignorância do nome verdadeiro.156
Chandless navega – e pensa – na companhia de outros viajantes e, a
exemplo deles, sua narrativa é marcada por uma espécie de “edenização da
natureza” e “aversão” às “populações locais”.157 “Civilizados” e “selvagens”, a
imagem dos “Mundurucus” vai oscilando ante as “certezas” do viajante e de sua
escrita. Seus homens são “honestos”, “civilizados”, “generosos”, mas “fracos em
nomenclatura”, ou seja, “carentes de razão lógica”; suas mulheres são “gentis”,
“alegres”, “agradáveis”, mas, ao mesmo tempo, “inconscientes”, “tímidas” “apáticas”.
A oscilação com que esses adjetivos são empregados – a partir de uma instância
capaz de tudo ordenar – reforça a “re-invenção” do “selvagem” pelo discurso
científico que o condiciona àquele “lugar distante”, embora na condição de um ser
“incapaz de reconhecer” e referenciar as “coisas”, os “seres”, os “rios” e tudo o que
envolve aquele “mundo amazônico” em que vive.
A presença de William Chandless pelas “paragens” amazônicas não ocorre
como um primeiro contato entre homens de ciência e homens de rios de águas
escuras ou claras. O contato entre o “estrangeiro” e “comunidades locais”,
especialmente, as “indígenas” já estava colocado desde o início do período colonial.
O que significa dizer que não é possível tratá-las como “isoladas” ou “não
contatadas”. Isso implica em considerarmos que a presença do “outro”/”estrangeiro”
já estava inserida no horizonte cosmológico dos “homens da terra”. Torna-se
improvável, portanto, a possibilidade de “isolamento” ou a ausência de contatos, em
termos culturais, entre diferentes grupos de homens e mulheres nas fronteiras
amazônicas e pan-amazônicas.
156 Chandless, Notes on the Rivers Maué-assú, Abacaxis and Canumá – Amazons, 1870. p. 424-425. No original: “Except on the Guaranatuba (an eastern affluent of the Maué-assú) where the Maués live, the Indians of all these rivers are Mundurucús, a tribe so well known and so often written of that I need say little about them. Those on the Maué-assú, below the rapids, are civilized, and live in families not as in tribe-life; (…) The Abacaxis is all but uninhabited. The Mundurucús of the inland no longer have paths to the river; and the farthest house (in lat. 4º 47’s) had been recently abandoned. In three or four days travelling from the mouth we got beyond population; and from September 17th to November 10th did not see a soul. It is the most complete solitude. (…) The Mundurucús seem to me rather weak in nomenclature, as the names Curanahý and Arupadý occur as affluents both of the Abacaxis and Maué-assú. Igarapé Grande, Lago Grande are also frequent; but several of these I have not marked, believing them to have been given from ignorance of the true name” 157 Schwarcz, Viajantes em meio ao império das festas, 2001, p. 615.
98
É preciso reconhecer, ainda, que Chandless, ao dar início às suas
explorações científicas, se instala na cidade de Manaus, onde manteria contatos
com outros cientistas, a exemplo do casal suíço Agassiz e do naturalista inglês
Henry Bates. Com eles, obteve “informações” e compartilhou impressões e
conclusões de suas viagens. Nesse processo, a “imagem” do “caboclo” amazônico,
ganhou contornos no imaginário daquele viajante que, não obstante, havia mantido
contatos com “indígenas”, na América do Norte e acessado uma rica literatura a
respeito de aspectos geográficos das regiões que viria a explorar em terras
brasileiras.
Sobre as viagens de William Chandless, pelas Amazônias, Euclides da Cunha
é, talvez, o estudioso que mais lhe deu atenção e reconheceu os méritos. Na letra
desse renomado escritor brasileiro, ganha destaque a “penosíssima” viagem ao
Purus, na qual, o viajante inglês, “teve como únicos auxiliares os índios bolivianos e
os ipurinãs, que lhe impeliam a canoa...”158 Para Euclides da Cunha, que se
deslocara para a Amazônia acreana na condição de chefe da delegação brasileira
na Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, em 1904,
os resultados obtidos por Chandless, em “suas investidas” rumo ao “desconhecido”,
foram “assombrosos”.
Tal feito somente pode ser avaliado, segundo Euclides da Cunha, por alguém
que tenha viajado, subindo “um dos rios amazônicos”, imbuído de tarefa semelhante
àquela e, inevitavelmente, no contexto daquelas específicas condições. Troveja, nas
letras do viajante Euclides, a carga semântica do romantismo, desfiando suas
metáforas carregadas de significados e da inconfundível estética de sua prosa
literária.
Realmente, bem poucas regiões se lhe emparelham no criar
obstáculos a um observador: a umidade extrema imprópria,
geralmente, os céus, mesmo quando o tempo é constante e
claro, exatamente nas horas mais aptas às observações de
alturas; porque os melhores dias começam quase sempre
densamente bruscos, até às 8 horas, tornando indecisos os
158 Cunha, Um Paraíso Perdido, 1986, p. 146.
99
contatos do sol para as determinações horárias, e encerram-se
num misto de treva e neblina, através das quais mal palejam as
estrelas; nas cabeceiras, a estreiteza dos rios, afogados entre
as grandes árvores, reduz o campo para a escolha dos astros,
truncando o firmamento até 45º de altura, o que corresponde a
anular a maioria das situações mais propícias aos trabalhos; os
paus que da parte média para as nascentes atravancam o leito,
determinando continuados choques, determinam continuados
“saltos”, tão prejudiciais às marchas dos cronômetros, já
prejudicados pelos intermitentes transportes destes últimos por
terra, ao longo das barrancas, nas passagens dos rápidos e
das cachoeiras; as sinuosidades caprichosas dos traçados
exigem uma atenção permanente e exaustiva na leitura dos
rumos, que mudam a todo instante, e acumula-os,
numerosíssimos, nas cadernetas, aumentando todas as causas
de erro no desenho ulterior; as anomalias barométricas, ainda
hoje inexplicáveis, não só tornam duvidosas todas as altitudes,
senão diminuem a importância de uma das correções dos
cálculos de altura; e, ao cabo, como se não bastassem tantos
empecilhos, falta ao observador (obrigado não raro a empanar
as vistas com um véu) a serenidade indispensável que lha
tiram, na melhor ocasião, a sucção dos piuns durante o dia, as
ferroadas dos carapanãs durante a noite e os cáusticos das
mantas brancas e meruins invisíveis, torturas que às vezes têm
de suportar, estoicamente imóvel, para não perder no momento
preciso a passagem de uma estrela ou um contato do sol.159
“William Chandless”, desfecha Euclides da Cunha, “dominou isolado (nem
tinha quem lhe lesse o cronômetro) estas dificuldades”. “Estas dificuldades” são as
dificuldades de Euclides da Cunha, que, percorrendo o rio Purus, quarenta anos
depois, lê, interpreta e traduz o viajante inglês, imaginando e acrescentando os
159 Cunha, Um Paraíso Perdido, 1986, p. 146.
100
detalhes e pormenores sobre os quais Chandless preferiu silenciar, no ato de
“revelar ‘sua’ descoberta”: a escrita de Ascent of the River Purús. No transcurso de
quarenta anos muita coisa mudou, porém, a interpretação do viajante brasileiro,
possibilita a “atualização reveladora” de um relato produzido em outro contexto
histórico e sob outras condições. Mera ironia da história. Nela, o silêncio do viajante
inglês é lido, recolhido do leito de um rio que, em suas cabeceiras, parece se afogar
“entre as grandes árvores”.
Euclides da Cunha não apenas lê, interpreta e traduz as “linhas traçadas por
William Chandless” que “inscreveu” a geografia do Purus. Mais que isso, incorporou-
o em seu “espírito romântico” e seguiu a rota do “desconhecido”, “corrente acima”,
como resoluto a concluir a obra do viajante inglês, “descobrindo” aquilo que apenas
fora “deduzido” por seu predecessor que, “tendo estudado com segurança quase
todo o Purus e o Aquiri”, é Euclides quem escreve, “em virtude um ligeiro desvio de
sua rota, nas cabeceiras do primeiro, não pôde assegurar, de um modo decisivo, o
divortium entre elas e as dos mananciais do Madre de Dios e do Ucaiale”.160
Necessário ressaltar, seguindo as inquietantes formulações de Pratt, que,
“num gesto paródico e transculturador”, um dos maiores representantes de nossas
elites letradas, “descobre a passagem” que faria silenciar a Royal Geographic
Society. Desde Alexander Von Humboldt, as colonizadoras subjetividades científico-
civilizatórias continuam ecoando nas mentes – e nos corações – de nossos
melhores intelectuais. A “paisagem” das Amazônias acreanas, também, esperaria “o
século XIX [e o início do XX] para ser amorosa e ostensivamente descrita, primeiro
por viajantes estrangeiros e depois [sob as mesmas premissas] por escritores
nacionais”.161
Indiferentes aos rótulos e reducionismos com que eram classificadas,
centenas de comunidades humanas entrecruzavam-se cultural, linguística,
econômica e politicamente ao longo dos rios amazônicos. Durante o período colonial
e, fundamentalmente, desde o século XVII, “índios, mestiços, negros” e brancos
“trocaram experiências e bens”, afirma Bessa Freire, palmilhando seus diferentes
territórios e desenvolvendo “a maioria de suas práticas sociais, trabalhando,
160 Ibidem, p. 148. 161 Pascual Venegas Filardo, Viajeros a Venezuela en los siglos XIX e XX, apud PRATT, Os Olhos do império, 1999, p. 334.
101
narrando, cantando, rezando, amando, sonhando, sofrendo, reclamando, rindo, se
divertindo” e produzindo formas de comunicação e linguagens, dentre as quais se
destaca a Língua Geral Amazônica ou o “nheengatu.162
Esses grupos humanos, por processos históricos os mais diversificados,
espalharam-se e misturaram-se por infindáveis localidades e rios, essas importantes
unidades de referência para as populações amazônicas.163 Nesses processos,
marcados por impressionantes deslocamentos populacionais e diásporas étnicas de
proporções ainda não devidamente avaliadas e estudadas, as fronteiras nacionais,
especialmente, do Brasil, Bolívia, Peru, Venezuela, Colômbia e Equador, foram se
movimentando e colocando abaixo, no dizer de Ferreira Reis, “os termos do Tratado
de Tordesilhas”.164
Nesse sentido, é preciso ressaltar que, no início da década de 1860, ao
percorrer rios e florestas amazônicas, os caminhos do viajante inglês não se “abriam
sozinhos”. Não obstante o “filtro” de seu olhar para relatar as experiências vividas e
as projeções sobre aquilo que não conseguira, mas ouvira de seus “companheiros
de viagem”, era através das experiências dos guias, remadores e práticos165 que
seriam seus caminhos seriam abertos. O próprio Chandless, em um trecho de Notes
on the Rivers Maué-assú, Abacaxis and Canumá – Amazons, reconhece isso,
quando afirma que a julgar
apenas pelas aparências, sem referência a qualquer teoria
sobre a formação do Vale do Amazonas, certamente, devo
considerar que as partes mais baixas desses rios têm sido
estuários varridos e mais ou menos escavados pelas fortes
marés (como as do rio Guama, perto do Pará) e que, agora têm
sido gradualmente ocupados pela formação de ilhas, que se
unem entre si até atingir a margem. Quem poderia imaginar
que estas extensões mais baixas se formam devido aos
162 Freire, op.cit., 2004, p. 17. 163 Em Trabalhadores do Muru, 2005, Gerson Albuquerque, analisa parcialmente essa questão do rio, como unidade de referência na Amazônia acreana. 164 Nota de apresentação a Caminhos do Acre, de José Moreira Brandão Castello Branco, Revista do IHGB, v. 196, 1947. 165 A “praticagem”, como ficou conhecida o exercício de (re)conhecimento e navegação dos rios, foi primeiramente regulamentada no Brasil por meio do decreto nº 79 de 23 de novembro de 1889.
102
insignificantes fluxos de água? Especialmente em se tratando
do rio Guarana-tuba, um afluente da margem direita do Maué-
Assú, formado pela união de dois pequenos rios, dos quais o
rio Curauahy é o maior, conforme as descrições de suas
curvas. Em verdade, sem um guia, fui totalmente incapaz de
encontrar sua boca, ainda assim o rio Guarana-tuba possui a
largura de uma milha ou mais.166
Mais a frente, referindo-se ao “prático” Manoel dos Santos Caldeira, William
Chandless diz que se tratava de um:
homem inteligente e de cor, que reside na parte inferior do rio,
me disse que no Rio Machado, um rio de água escura, afluente
do Madeira, ele e seu grupo ficaram, completamente,
prostrados pela malária durante os meses de fevereiro e
março, quando o rio começa a encher. Não fosse por isso,
teriam feito uma fortuna: “a quantidade de óleo era abundante”.
Também no Rio Madeira se diz que a malária ocorre sempre
no período da cheia e que, durante o outono, ela desaparece
completamente. Isto, contudo, não é tão verdadeiro, pois pelo
menos entre as corredeiras, três dos meus homens tiveram
malária no mês de Junho.167
166 Chandless, Notes on the Rivers Maué-assú, Abacaxis and Canumá – Amazons, 1870, p. 419-420. No original: “Judging merely from appearances, without reference to any theory on the formation of the Amazon Valley, I should certainly consider the lower portions of these rivers to have been estuaries, swept through, and more or less excavated by strong (tides such as those of the river Guamá, near Pará), and now estuary channels, gradually being filled up by the formation of islands, and the joining of these to each other and to the shore. Who can think that these lower reaches are due to the present insignificant streams? Take especially the river Guarana-tuba, an eastern affluent of the Maué-assú; it is formed by the union of two small rivers, of which the Curauahy is the larger, the bends of this will show how small it is; in fact, without a guide I was wholly unable to find its mouth, yet the Guarana-tuba has a width of a mile or more.” 167 Chandless, Notes on the Rivers Maué-assú, Abacaxis and Canumá – Amazons, 1870, p. 424. No original: “(…) an intelligent man of colour settled on the lower river told me that on the River Machado, a dark-water affluent of the Madeira on the right, he and his party were completely prostrated by ague in February and March, when that river was rising; but for this they could have made a fortune; “oil was so plentiful”. On the River Madeira, too, it is always said that ague begins with the rise, and that during the fall there is absolutely none: this, however, is not strictly true, at any rate among the rapids, as three of my men had it there in June.”
103
Observa-se que o viajante inglês, a todo instante, vai traduzindo as falas e os
saberes não apenas de indígenas, mas, também, dos “homens de cor”, os
“mestiços”, “mulatos”, “cafuzos” ou negros com quem mantivera algum tipo de
contato. Nesse aspecto, seu relato se constitui como de grande relevância para as
pesquisas sobre a presença negra na Amazônia acreana, um verdadeiro tabu no
âmbito da produção historiográfica regional.
Na exploração do rio Purus ganhou destaque a presença e atuação do prático
afroindígena, Manoel Urbano da Encarnação, que realizou uma viagem oficial de
“reconhecimento” daquele rio, no ano de 1861. Segundo Chandless, “tudo o que se
sabe sobre os afluentes do rio Purus”,168 deve-se a esse “mulato”, possuidor de
“grande inteligência natural”. Em sua viagem, Manoel Urbano tinha como missão
descobrir uma saída do Purus para o rio Madeira. Na Falla dirigida à assembléia
legislativa da província do Amazonas, Manoel Clementino Carneiro da Cunha,
Presidente daquela província, assim define a incumbência do prático, no rio Purus:
... encarreguei ao cidadão Manoel Urbano de explorar o alto rio
Purús, e alguns dos seos affluentes para verificar, se há uma
communicação, que dé sahída para o rio Madeira salvando
suas caixoeiras. Elle hade também entender-se com as tribus
indígenas, que residem nos logares por onde passar, para se
informar de seos costumes, inclinações, e disposições para a
vida civilisada.169
Em seu retorno, embora tenha trazido informações sobre a navegabilidade do
rio Purus e sobre as comunidades indígenas, Manoel Urbano não conseguiu
completar sua missão. Desse modo, o presidente da província do Amazonas
encomendou nova expedição e decidiu “mandar explorar o rio Purûs por pessoa
competente”,170 qual seja, o Engenheiro João Martins da Silva Coutinho, a que
coube “tirar a limpo” as informações trazidas pelo prático. Essa expedição, no
168 Chandless, W. Ascent of the River Purús, 1866, p.86. No original: “all that is known of the tributaries of the Purûs, excepting the first three, is known from his information.” 169 Cunha, M. C. C. da. Falla dirigida à Assembléia Legislativa Provincial do Amazonas ...1861. p. 40. 170 Cunha, M. C. C. da. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa da Província do Amazonas,1862, p. 17
104
entanto, teve seu retorno abreviado devido à insuficiência de mantimentos a bordo
do vapor Pirajá, que levava, como parte da comitiva, além de Manoel Urbano, o
naturalista alemão Gustav Wallis.171
Em Ascent of the River Purús, Manoel Urbano da Encarnação, um “homem de
cor”, sem conhecimento algum das letras brancas, foi aos “olhos” de William
Chandless, “um homem de ciência”.
Nos últimos anos, ocorreram quatro explorações do Purus,
demandadas pelo governo brasileiro. A primeira delas foi
conduzida por João Cometá, atingindo apenas a foz do rio Ituxi,
cerca de 700 milhas. Tanto esta quanto a expedição seguinte,
devido à má administração e má conduta, obtiveram mais êxito
em ofender aos índios do que realizar qualquer propósito útil. A
segunda expedição, ocorrida em 1852, foi conduzida por um tal
de Serafim, um Pernambucano que, bem abastecido de
mantimentos e de homens, incluindo doze soldados, subiu o rio
por cerca de 1300 milhas, mas, exceto os nome e o tamanho
evidente de alguns dos afluentes, além do importante fato de
ter atestado a ausência de corredeiras, não trouxe nenhuma
informação de valor. Seu relatório se ocupa, principalmente,
com uma série de nomes indígenas atribuídos às diferentes
margens dos rios – totalmente inúteis – não havendo nenhuma
tentativa de determinar distâncias, exceto pelos dias das
viagens. A terceira expedição, em 1860, foi conduzida por
Manoel Urbano, um mulato de educação insignificante, mas de
grande inteligência natural. Como prova de sua acuidade posso
mencionar que ele descobriu por si mesmo que as pedras
foram depositadas pela água em um estado maleável, a partir
da observação de pegadas fossilizadas nas pedras das
margens do rio Amazonas, em Manacapuru, local em que vive.
Com grande tato, firmeza e coragem ele adquiriu uma
171 Coutinho, J. M. da S. Relatório da exploração do rio Purús, 1865, p. 07.
105
extraordinária influência entre os índios do rio Purus, e mantém
boa relação com muitas tribos e com suas línguas. Refiro-me a
esse homem até aqui, porque grande parte da informação,
especialmente sobre os índios, a que tive acesso foram
conseguidas através dele e absolutamente tudo que é
conhecido sobre os afluentes do rio Purus, excetuando os três
primeiros, foram conhecidas por meio dele.172
Chandless obteve informações diretas do prático Manoel Urbano da
Encarnação a respeito das características do rio Purus e das populações “indígenas”
que o habitavam. Além disso, o viajante inglês lançou mão, por diversas vezes, das
informações constantes no relato de viagem de Manoel Urbano sobre o Purus,
redigido pelo Engenheiro João Martins da Silva Coutinho e publicado no ano de
1862.173
Reside nessa “alquimia” da linguagem – e do discurso – um extraordinário
mecanismo de expropriação da palavra de um afroindígena, cujos saberes e
conhecimentos foram produzidos com base na forte tradição de oralidade das
populações amazônicas. Coutinho ouviu o relato oral de Manoel Urbano e o traduziu
para o português dos relatórios oficiais. Assinando-o, no ato de entrega ao
Presidente da Província do Amazonas; Chandless leu o relatório oral de Manoel
172 Chandless, Ascent of the River Púrus, 1866, p.86. No original: “In modern times there have been four explorations of the Purûs, ordered by the Brazilian Government. The first, many years ago, conducted by one João Cometá, reached only the mouth of the River Ituxy, about 700 miles up; and both this and the following expedition succeeded far more, by mismanagement and misconduct, in giving offence to the Indians than in accomplishing any useful purpose. The second, in 1852, conducted by one Serafim, a Pernambucano, Went well supplied with provisions and men, including twelve soldiers, and ascended the river for about 1300 miles, but, except the names and apparent size of a few of the tributaries, and the important fact of the absence of rapids, it brought back no information of value; the report being filled principally with a string of India names of the different sandbanks – utterly useless – and no attempt having been made to determine distances, except by days’ journeys. The third expedition, in 1860, was conducted by Manoel Urbano, a mulatto, a man of slight education, but great natural intelligence. As a proof of his acuteness I may mention that he had found out for himself that rocks were deposited by water in a soft state, from observing fossil foot-prints in the rocks on the banks of the Amazon, at Manacapuru, where he lives. By great tact, firmness, and courage he has acquired an extraordinary influence among the Indians of the Purûs, and is well acquainted with many tribes and their languages. I have said thus much about him, because a great deal of the information, especially about the Indians, which I have obtained has been gathered from him; and absolutely all that is known of the tributaries of the Purûs, excepting the first three, is known from his information.” 173 Cunha, M. C. C. da. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa da Província do Amazonas,1862, Anexo 3.
106
Urbano, escrito e assinado por Coutinho, traduzindo-o para a fundante linguagem
dos relatos de viagem. Retornamos a Certeau para quem o sujeito – “do corpo e da
palavra enunciadora” – vai sendo diluído ou “reprimido” no escopo de uma escrita
que é “ficção” ou pela “verdade” silenciadora de uma escrita “científica”.174
Seja através do relato de Coutinho, seja através do relato de Chandless, o
prático negro, Manoel Urbano da Encarnação, somente tem sua voz “ouvida” por
meio de homens “letrados”, ou seja, é apenas através da escrita – que inscreve o
corpo, a voz e o lugar do “outro” – que o “mulato” de “grande inteligência natural”
tem seu saber reconhecido. Essa escrita funda um tempo histórico, no dizer de
Michel de Certeau, inserindo o que e como as coisas devem estar aí ordenadas.
Um “homem inculto, apenas aparelhado de um tino admirável”.175 Assim, às
avessas, Euclides da Cunha destaca a capacidade de Manoel Urbano, que conhecia
as línguas e as “corpografias” do Purus. “Tino”, não capacidade reflexiva; não
cultura. Repertório rude anunciando a “natural” origem de saberes pelos quais
“homens de cor” misturando-se aos “homens da terra” e ligados pelas águas e pelas
florestas, “surpreenderiam” e fariam “vacilar” o “homem de ciência”, bem antes que a
“ficcional” narrativa da “indústria gumífera” ocupasse as páginas dos livros de
história e as letras idealizadas dos romances “de expressão amazônica”.
Para Certeau existe uma especificidade que caracteriza a “estrutura própria
da cultura ocidental moderna” e que se manifesta de forma latente em uma
percepção historiográfica que insiste em diferenciar/separar passado e presente. Por
essa característica, a
Inteligibilidade se instaura numa relação com o outro; se
desloca (ou “progride”) modificando aquilo de que faz seu
“outro” – o selvagem, o passado, o povo, o louco, a criança, o
terceiro mundo. Através dessas variantes, heterônomas entre
si – etnologia, história, psiquiatria, pedagogia, etc. – se
desdobra uma problemática articulando um saber-dizer a
respeito daquilo que o outro cala, e garantindo o trabalho
interpretativo de uma ciência (“humana”), através da fronteira
174 Certeau, op. cit., 1982, p. 11. 175 Cunha, op. cit., 1986, p. 145.
107
que o distingue de uma região que o espera para ser
conhecida.176
Nos relatos de Coutinho, Chandless e Euclides da Cunha, sobre o Purus,
Manoel Urbano e os grupos indígenas que passam silenciosos ou que “falam” sob a
mediação – permissividade, seleção, escolha – do agente da palavra escrita,
tornam-se emblemáticos para compreendermos essa inteligibilidade à qual Certeau
se refere. Embora tenha servido de guia das águas e tradutor de diversas línguas
indígenas, por não ser um “homem das letras”, restou ao negro Manoel da
Encarnação ser traduzido pelo “olhar do outro”.
Manoel dos Santos Caldeira, prático negro; Serafim da Silva Salgado, prático
negro; Manoel Urbano da Encarnação, prático negro. Esses homens, cuja negritude
foi “invisibilizada” nos relatos, ou suavizada nas muitas formas do “mulato”, um a um,
vão sendo tecidos como se fizessem parte daquele “mundo natural” amazônico;
quase uma “paisagem” um “fenômeno” da natureza. “Tino”, “inculto” (sem cultura),
“instinto”, “natural inteligência”, constituem não apenas um vocabulário de palavras
soltas, “ingênuas” ou “inocentes”, mas a sintaxe de um discurso que ordena esse
mundo de muitas misturas, desde o início dos “tempos modernos”. Por trás dessa
sintaxe foi “normalizado”, um “doloroso silêncio” sobre todas as formas de terror e
violências cometidas contra as Áfricas e os negros africanos, como parte mesmo,
intrínseca da “modernidade” ocidental.177
A lógica histórica – e literária – da cultura ocidental moderna, retorno a
Certeau, ao distinguir o passado do presente, “faz uma triagem entre o que pode ser
‘compreendido’ e o que deve ser esquecido para obter a representação de uma
inteligibilidade” única e aceitável por todos num presente que – à semelhança do
passado – é idealizado. Porém, o “não desejável”, “não pertinente”, “não
recomendável”, insiste em retornar “nas franjas do discurso ou nas suas falhas:
‘resistências’, ‘sobrevivências’ ou atrasos pertubam, discretamente, a perfeita
ordenação de um ‘progresso’ ou de um sistema de interpretação”.178
176 Certeau, op. cit., 1982, p. 14-15. 177 Impressionantes análises sobre essas violências podem ser encontradas em O Atlântico Negro, de Paul Gilroy, 2001; Os Jacobinos negros, de C.L.R. James, 2000; e Introdução a uma poética da diversidade, de Édouard Glissant, 2005. 178 Certeau, op. cit., 1982, p. 16.
108
Os remadores indígenas e mestiços, durante a noite, atiravam seus remos
nas águas dos rios; os “Mundurucus” não estavam preocupados com as
nomenclaturas de seus lagos e paranãs; as palavras dos “Canamarys” e
“Pammarys” não se encaixavam nos glossários dos cientistas e linguistas; os
“Ipurinãs” atiravam os fogareiros no rio; os “Conibos” e os “Miranhas” não queriam
guerrear pelo viajante; Manoel Urbano e outros “homens de cor” desafiam
Chandless, com o inesperado e a imprevisibilidade que estava fora do raio de
alcance da razão técnica do viajante; os “Nauas”, que não queriam as miçangas e
ninharias do colonizador, pararam o tempo da pesquisa e da viagem de exploração
de William Chandless.
As vozes silenciadas pela escrita do viajante manifestam-se gritantes nas
múltiplas expressões que a tradição oral engloba. É preciso ler os relatos de viagem,
afirma Lilia Schwarcz, “não a fim de encontrar documentos que funcionam tal qual
imagens petrificadas em sua verdade. Por eles descobrimos, sobretudo, estruturas
dialógicas”, imersas e latentes nos “confrontos de culturas e de cosmologias”.179 Por
entre as “estruturas dialógicas” do relato de William Chandless, “indesejáveis” e
“impertinentes” práticos e guias negros ou remadores indígenas insistem em
“desordenar” a lógica discursiva e o “sistema de interpretação” que preside a
narrativa do viajante. A história que se funda sob a supremacia da palavra escrita, é
velada pelos gestos, olhares e sons da palavra falada – e das tradições orais.
179 Lilia Moritz Schwarcz, op. cit., 2001, p. 416.
109
Urdiduras do olhar: transgredindo o “eu” e o “outro”
O homem, esse fenômeno dialético, é obrigado a estar
sempre em movimento. (...) O homem, assim, nunca
pode atingir um descanso final e fixar morada em Deus.
(...) Como são vergonhosos, então, todos os padrões
fixos. Quem jamais poderá fixar um padrão? O homem é
uma “escolha”, uma luta, um constante via a ser. Ele é
uma migração infinita, uma migração dentro de si
próprio, da argila de Deus; ele é um migrante dentro de
sua própria alma.
(Ali Shariati, On the sociology of Islam: Lectures by Ali
Shariati, apud Said, 1995, p. 408).
A primeira vez que ouvi a palavra “Chandless”, ela já era “apenas” uma
referência geográfica: o nome de um rio, da Bacia do Purus. Recordo – e é
engraçado como consegui recordar –, que foi durante uma aula de geografia,
quando eu cursava a quinta série do Ensino Fundamental, numa escola municipal
chamada Maria Lúcia Moura Marin, no Bairro “Morada do Sol”, na cidade de Rio
Branco. Era o ano de 1996, e eu acabava de chegar de Porto Velho, Rondônia, com
dez ou onze anos de idade, e não possuía a menor idéia de quem havia sido William
Chandless.
A professora de geografia, cujo nome não me recordo, mas a reconheceria se
a visse, limitou-se a informar que o rio foi assim batizado em homenagem a um
viajante inglês, e essa “informação” sobre sua existência bastou a mim e a meus
colegas, pois não me lembro de ninguém curioso em saber algo mais. Ficamos
todos satisfeitos com a “informação”. Em verdade, de lá para cá, eu não conheci
outro Chandless que não fosse o rio e, creio mesmo que muitos que residem
atualmente no Estado do Acre costumam associar seu nome, simplesmente, a um
rio e, mais recentemente, a um Parque ecológico. Devem também seguir satisfeitos
com a “informação”.
110
Contudo, ao realizar este estudo, sobre o “homem que virou rio”, precisei, em
primeiro lugar, que o rio virasse homem. Nesse processo, o homem ganhou rosto e
família, data de nascimento e morte, opiniões e contradições. Enfim, tornou-se
sujeito fazedor de história e sua história de “estrangeiro” em “terras distantes”.
História essa que, por sua vez, ao ser por mim estudada, acabou revelando a minha
história e as minhas contradições “estrangeiras”.
As suas viagens, de certo modo, colocaram em evidência as minhas viagens,
não as que se referem aos deslocamentos espaciais, mas aos deslocamentos no
tempo, como lembra Sérgio Cardoso. Ao final desses dois anos e meio, de tanto
buscar significar, circunscrever o “outro”, descobri a mim mesma, me tornando
“estrangeira” também.
Hoje, quando olho para trás, vejo as minhas certezas e convicções,
pavimentando o chão da viagem que empreendi, muitas vezes acompanhada, às
vezes sozinha. Uma viagem que, como definiu Cardoso, iniciou-se “interessada”, ou
seja, com objetivos claros, mas terminou (se é que somos capazes de finalizar
processos complexos como esses) com “objetivos menos nítidos”. Isso quer dizer
que pude mesmo me concentrar no ato específico de viajar, deslocando o foco do
resultado para o processo. Significa dizer que não vi, mas olhei, que descobri o
“outro” e ele me descobriu.
Diante disso, o fim, a conclusão, em verdade, é o que menos importa. Restou
apenas dizer o que em nós diluiu-se, bem como o que não se deixou cindir nesse
processo, relembrando as reflexões propostas por Édouard Glissant. Não obstante,
a primeira e última lição, a que mais significou em termos (políticos) acadêmicos,
pode ser sintetizada por Affonso Romano de Sant’anna, em seu poema “Linguísta”:
Diz o linguísta
- “a palavra cão não morde”.
Morde.
Saí com a perna sangrando depois da aula.
Diz o linguísta
- “a palavra cão não late”.
Late
111
e não me deixa dormir
com seus latidos.
Diz o linguísta
- “a palavra cão não come”.
Come
e se alimenta de minha carne.
As palavras, sejam “cães” ou não, não passam imunes aos processos de
(re)produção do discurso. Há sempre sujeitos, por trás delas, que as fazem
desprovidas de neutralidade e de transparência. As historicidades que as palavras
carregam podem, em diferentes tempos e espaços, na relação entre sujeito-sentido,
morder, latir e comer. Podem, sempre ao mesmo tempo, incluir e excluir, mostrar e
esconder, revelar e ocultar, ser o “eu” e ser o “outro”.
Desse modo, o “estrangeiro”, o viajante inglês, não poderia simplesmente ser
condenado a ser o “nosso” “oposto”, pois, no dizer de Julia Kristeva,
“estranhamente, o estrangeiro habita em nós”. Embora seja considerado
historicamente o “símbolo do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima
romântica de nossa preguiça habitual, nem o intruso responsável por todos os males
da cidade.”180
Paradoxalmente, os mesmos relatos de viagem que servem como fontes para
a identificação de um discurso etnocêntrico sobre habitantes da “Amazônia”, atuam
como meio pelo qual as vozes desses habitantes, ainda que silenciadas por diversos
mecanismos hierárquicos, são registradas pelas “estruturas históricas”. Essa
compreensão dialógica da relação entre o “estrangeiro” e o “local”, advém do
“deslocamento” da “divisão binária” do que Stuart Hall considera como “metáforas da
transformação”.
Hall, em artigo destinado às reflexões propostas por Allon White e Peter
Stallybrass n’A política e a poética da transgressão, dedica-se a expor a significativa
relevância das formulações que os autores fazem sobre a metáfora do “carnaval” de
Mikhail Bakhtin, de modo a propor uma apreensão dialógica das práticas culturais,
180 Kristeva, Estrangeiro para nós mesmos, 1994, p. 09.
112
possibilitando compreender a relação entre o “social” e o “simbólico”, a partir de um
viés não-reducionista.
Ao reler Stallybrass e White, Hall ressalta que o “carnaval” para Bakhtin, “é a
metáfora da suspensão e a inversão temporária e sancionada da ordem, um tempo
em que o baixo se torna alto e o alto, baixo, o momento da reviravolta, do “mundo às
avessas”.181 Contudo, Stuart Hall, salienta que o surpreendente na formulação de
Bakhtin é que o “carnavalesco”, enquanto “metáfora da transformação cultural e
simbólica (...) não é simplesmente uma metáfora da inversão – que coloca o ‘baixo’
no lugar do ‘alto’, preservando a estrutura binária de divisão entre os mesmos”182, ou
seja, uma visão clássica das metáforas de transformação, presente na relação
dialética entre o “senhor” e o “escravo”, “base” e “superestrutura”, entre “dominante”
e “dominado”, entre “erudito” e “popular”, etc., em que se opera um ato mecânico de
substituição de um pelo outro. Em Bakhtin,
... é precisamente a pureza dessa distinção binária que é
transgredida. O baixo invade o alto, ofuscando a imposição da
ordem hierárquica; criando, não simplesmente o triunfo de uma
estática sobre a outra, mas aquelas formas impuras e híbridas
do “grotesco”; revelando a interdependência do baixo com o
alto e vice-versa, a natureza inextricavelmente mista e
ambivalente de toda vida cultural, a reversibilidade das formas,
símbolos, linguagens e significados culturais; expondo o
exercício arbitrário do poder cultural, da simplificação e da
exclusão, que são os mecanismos pelos quais se funda a
construção de cada limite, tradição ou formação canônica, e o
funcionamento de cada princípio hierárquico de clausura
cultural.183
Nesse sentido, a ruptura com uma compreensão simplificadora entre o “alto” e
o “baixo”, nos moldes desenvolvidos por Bakhtin, em que não há um processo
181 Hall, Para Allon White: metáforas da transformação, 2003, p. 210 182 Ibidem, p. 211 183 Hall, op. cit., 2003, p. 212.
113
cultural substituindo o outro, mas sim uma “interdependência” entre “alto” e “baixo”,
uma “inextricável” relação de um com o outro, são as bases sobre as quais, segundo
Hall, White e Stallybrass, ao analisarem “a natureza contraditória das hierarquias
simbólicas”, desenvolvem uma reflexão sobre a “política da transgressão”,
promovendo um “deslocamento” na compreensão clássica das metáforas de
transformação, ou seja, àquelas em que ocorre a distinção binária das relações,
também denominadas de metáforas de condensação.
Todavia, Stuart Hall ressalta que, a partir das reflexões de White e
Stallybrass, “os conceitos de ambivalência, hibridismo, interdependência (...)
começaram a perturbar e transgredir a estabilidade do ordenamento hierárquico
binário do campo cultural em alto e baixo”, mas eles “não destroem a força
operacional do princípio hierárquico da cultura (...).”184 Isso que dizer que, embora o
“alto” e o “baixo” percam seu status de cânone e passem a ser considerados como
“interdependentes” e não como oposições binárias, eles continuam sendo
elementos de regulação das práticas culturais, ou seja,
“deslocá-los” não significa abandoná-los, mas mudar o foco da
atenção teórica das “categorias em si mesmas”, enquanto
repositórios de valor cultural, para o próprio processo de
classificação cultural. Este revela-se necessariamente arbitrário
– como uma tentativa trans-codificada de um domínio ao outro,
de fixar, estabilizar e regular uma “cultura” em uma ordem
hierárquica ascendente, utilizando toda a força metafórica “de
cima” e “de baixo”. 185
As constantes tentativas de fixação, regularização e estabilização das práticas
culturais, a insistência em mantê-las sob um status canônico, revelam que estas não
se situam “fora do jogo do poder”, como alerta Hall, relacionando tais operações
culturais com os “mecanismos de hegemonia cultural”186 que, como já foi dito, são
184 Hall, Para Allon White: metáforas da transformação. p. 224. 185 Idem. 186 Idem, ibidem, p. 225.
114
expostos no ato mesmo de “transgredir” a “pureza da distinção binária” das visões
clássicas da metáforas da transformação.
O “deslocamento” proposto por Allon White e Peter Stallybrass mantém
estreita relação no modo de conceber as muitas metáforas até aqui empregadas
neste estudo: o “eu” e o “outro”, o “colonizador” e o “colonizado”, o “estrangeiro” e o
“local”, o “europeu” e o “não-europeu”, o “civilizado” e o “não-civilizado”, entre outros.
A partir de outros termos e de outros autores, levando em consideração as
“afinidades eletivas” existentes entre eles, o exercício empreendido nesta pesquisa
foi o de não reduzir ao modo binário de classificação a relação entre o “eu” e o
“outro”. Seguindo a esteira de White e Stallybrass, tal relação, necessariamente,
precisa ser compreendida pelo viés da “transgressão” entre ambos, em que o
movimento dialógico constituinte dos sujeitos é feito de uma “interdependência” em
que um se “alimenta” do outro e vice-versa.
No entanto, ao focalizar esta relação, colocaram-se em evidência as relações
de poder entre sujeitos ou, nos termos de Stuart Hall, o “princípio hierárquico da
cultura”, em que se expõe o “exercício arbitrário do poder cultural, da simplificação e
da exclusão”. O “olhar europeu”, ou o “olhar etnocêntrico” exclui o “olhar do não-
europeu”, tendo em vista o caráter arbitrário do processo de classificação/mediação
cultural.
Desse modo, as viagens empreendidas neste estudo, trataram de considerar
as práticas culturais, entendidas também como práticas discursivas, sob a
perspectiva dialógica da relação do “eu” com o “outro”, buscando compreendê-las
dentro das relações de poder, mediadas pelos “mecanismos de hegemonia cultural”,
mas, também, pelas dimensões trans-culturais que se estabelecem, continuamente,
em meio às comunidades humanas pelas variadas formas de estranhamento e de
construções identitárias.
Nesse sentido, devo ressaltar que, mais que percorrer, extasiada, as
narrativas de William Chandless, procurei mapear as “vozes silenciadas” por suas
palavras escritas, acompanhando a instigante sugestão de Eni Orlandi, quando
afirma que “há silêncio nas palavras”.187 Nessa perspectiva, no processo de
pesquisa sobre o discurso do viajante, considerei os sentidos dos silêncios que
187 Orlandi, E. P. As formas do silêncio: no movimento do sentido. 2007. p. 11-12
115
acompanharam suas palavras e seu olhar, tentando constituir as historicidades que
formaram seu discurso como parte das ações que somente podem existir na
linguagem e através da linguagem.
116
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