Chevalard - transposição didática

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  • 3. Yves Chevallard e o conceito de transposio didtica

    Um contedo de saber que tenha sido definido como saber a ensinar, sofre, a partir de ento, um conjunto de transformaes adaptativas que iro torn-lo apto a ocupar um lugar entre os objetos de ensino. O trabalho que faz de um objeto de saber a ensinar, um objeto de ensino, chamado de transposio didtica. (Chevallard, 1991, p.39)1

    Assim como Bernstein concebeu o conceito de recontextualizao

    discursiva inserido em um modelo terico mais amplo de anlise das relaes

    pedaggicas, o conceito de transposio didtica faz parte tambm de um modelo

    terico proposto para anlise do sistema didtico, cujas linhas gerais sero

    apresentadas neste captulo.

    Yves Chevallard um didata francs do campo do ensino das matemticas,

    que leciona atualmente no Institut Universitaire de Formation des Matres de

    lAcadmie dAix-Marseille, onde coordena tambm a pesquisa na rea da

    formao docente em matemtica. No Brasil, seu trabalho conta com algumas

    apropriaes, tanto crticas, quanto favorveis, no representando, contudo,

    referencial terico marcante para a pesquisa educacional brasileira atual,

    conforme discutido no prximo captulo.

    Sua publicao mais difundida no Brasil a traduo para o espanhol e o

    original em francs do livro La Transposition Didactique, uma verso ampliada

    da primeira edio francesa de 1985. Essa primeira verso reunia notas para um

    curso de vero ministrado em 1980 que aparecem na edio de 1991 nos

    captulos 1 a 8 e o texto Por que a transposio didtica?2, originalmente uma

    comunicao apresentada no Seminrio de Didtica e Pedagogia das Matemticas

    da Universidade Cientfica e Mdica de Grenoble, onde responde s crticas

    suscitadas pelas formulaes apresentadas no curso de vero acima referido e

    difundidas tambm em encontros acadmicos e publicaes diversas. Na segunda

    edio de 1991, Chevallard atualiza esse texto e acrescenta um estudo de caso,

    desenvolvido em parceria com Marie-Alberte Joshua, intitulado Um exemplo de

    anlise de transposio didtica, onde a trajetria da noo matemtica de

    distncia investigada, desde sua proposio pelo matemtico francs Maurice 1 Traduzido do original em francs: Un contenu de savoir ayant t design comme savoir enseigner subit ds lors un ensemble de transformations adaptatives qui vont le rendre apte prendre place parmi les objets denseignement. Le travail qui dun objet de savoir enseigner fait un objet denseignement est appel la transposition didactique. 2 Traduzido do original em francs: Pourquoi la transposition didactique?.

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    Frchet, em 1906, at a sua incorporao, em 1971, ao sistema de ensino

    fundamental francs. Segundo o prprio autor, a apresentao de um estudo

    emprico proporciona importante testemunho da dinmica da evoluo da teoria

    (Chevallard, 1991, p.7), impulsionada pelo confronto com a prtica da pesquisa.

    Entretanto, da mesma forma que Bernstein, o desenvolvimento das suas

    formulaes tericas parece tambm motivado pelas crticas recebidas, como

    atesta o posfcio includo nessa segunda edio, onde desenvolve novas questes

    como a filiao antropolgica da sua teoria. Em publicaes mais recentes, as

    marcas do dilogo com seus crticos ainda esto presentes em conceitos como

    praxiologia e obra3, a meu ver, desenvolvimentos das proposies

    introduzidas no posfcio de 1991, em resposta s restries colocadas por outros

    tericos priorizao do saber sbio4 nos seus primeiros estudos. Nesses novos

    escritos que continuam a ser concebidos no contexto da prtica de formao de

    professores e da pesquisa no campo da didtica das matemticas Chevallard

    amplia seu escopo de investigao e trata mais diretamente de questes de

    currculo, dialogando com a produo anglo-sax desse campo (1997a, 1997c), do

    papel do professor no sistema didtico (1995) e dos problemas da sua formao

    (1999a, 2001a), do cotidiano escolar (2000a), e de questes gerais da didtica

    (1997d, 1998, 1999b, 2000b, 2001b). A teoria da transposio didtica, entretanto,

    permanece informando suas diversas anlises do sistema didtico, o que justifica a

    associao do nome desse autor problemtica das transformaes pelas quais

    devem passar os saberes para se tornarem escolarizveis, apesar de no podermos

    atribuir-lhe exclusividade de autoria, conforme discutido no item que se segue.

    3.1. O conceito de transposio didtica A idia da necessidade de algum tipo de adaptao do conhecimento quando

    se trata de ensin-lo pode ser considerada virtualmente unnime no meio

    educacional, tanto nos escritos tericos do campo5, quanto no senso comum dos

    que participam de relaes de ensino-aprendizagem:

    3 Cf. nota 54 deste captulo. 4 Utilizarei a traduo mais literal para savoir savant, posto que na verso da sua obra para a lngua espanhola, o tradutor informa que o autor solicitou que assim fosse feito (Chevallard, 1991, p. 11). Fica a questo, entretanto, acerca das conotaes que a palavra sbio assume nessas outras lnguas, possivelmente distintas daquelas percebidas na lngua portuguesa. 5 O que confirmado pela reviso realizada por Saviani (1998).

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    A idia de que existe um conhecimento escolar caracterstico no certamente nova. Precisamente, uma das razes de ser do saber-fazer pedaggico tem sido a de propiciar a elaborao da cultura transmissvel para que seja assimilvel por determinados receptores, desde que Comenius pensou a didtica como a arte de ensinar todas as coisas a todos. (Gimeno-Sacristn, 1996, p.42)

    Entretanto, a reflexo acerca dos desdobramentos dessa constatao foi

    desenvolvida por diferentes caminhos, com diversos graus de importncia e

    sentido atribudos a esse processo de transformao do conhecimento a ser

    ensinado.

    O termo transposio didtica, segundo Chevallard (1991), foi empregado

    inicialmente, no sentido aqui tratado, pelo socilogo francs Michel Verret, na sua

    tese de doutorado Le temps des tudes, publicada em 1975. Nesse trabalho, Verret

    prope-se a fazer um estudo sociolgico da distribuio do tempo das atividades

    escolares, visando contribuir para a compreenso das funes sociais dos

    estudantes.

    Foi para pensar o tempo das prticas escolares que o socilogo ocupou-se

    dos saberes que circulam nesse contexto, propondo que estes condicionariam o

    tempo dos estudantes em dois sentidos: haveria o tempo do conhecimento,

    regulado pelo prprio objeto de estudo, mas haveria tambm o tempo da didtica,

    definido em funo das condies de transmisso desse conhecimento. Para

    Verret, didtica a transmisso de um saber adquirido. Transmisso dos que

    sabem para os que ainda no sabem. Daqueles que aprenderam para aqueles que

    aprendem (Verret, 1975, p.139)6. Por essa razo, assim como o tempo, a prtica

    didtica tambm se desdobraria em duas: a prtica do saber e a prtica da sua

    transmisso.

    Na prtica da transmisso, as imposies de rotinizao e de

    institucionalizao estariam diretamente relacionadas com a estruturao do

    tempo escolar, mas tambm com a configurao dos contedos trabalhados na

    escola. Sempre buscando pensar o tempo da vida estudantil, Verret desenvolve,

    ento, uma abordagem epistemolgica do saber escolar, o que lhe permite

    articular as necessidades do processo de transmisso que devero considerar, ao

    mesmo tempo em que definiro, as posies daqueles que ensinam e daqueles que

    6 Traduzido do original em francs: est la transmission dun savoir acquis. Transmission de ceux qui savent ceux qui ne savent pas encore. De ceux qui ont appris ceux qui apprennent.

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    aprendem, assim como o locus dessa aprendizagem com as imposies do

    prprio saber a ser ensinado.

    Identifica, nesse sentido, dentro das formas temporais burocrticas

    impostas pela escola transmisso do saber (ibid., p.146)7, conformaes

    especficas desse saber: este deve tornar-se programvel, isto , deve ser

    passvel de recortes que possibilitem seqncias aceitveis, tanto por critrios

    pedaggicos como institucionais; passa tambm por um processo de

    dessincretizao, na medida em que as especializaes da prtica da criao

    terica so substitudas por especializaes pertinentes s prticas da

    aprendizagem; desliga-se dos vnculos autorais, apresentando-se como um saber

    despersonalizado; organiza-se de modo a permitir o controle social das

    aprendizagens, expresso nas prticas de avaliao para certificaes; precisa ser

    um conhecimento com um grau de publicidade que viabilize sua apropriao

    pelos que devero transmiti-lo e receb-lo (ibid., p.146).

    Essas imposies, portanto, tambm interfeririam na prpria seleo dos

    contedos a serem ministrados, pois definem quais so os conhecimentos

    escolarizveis. Estariam excludos: os saberes privados (esotricos, iniciticos);

    os saberes aristocrticos, que tambm no atenderiam s exigncias de

    publicidade, por se pretenderem exclusivos de um grupo social; os saberes

    totais, que, por definio, no permitem fragmentaes analticas, logo, no so

    programveis, inviabilizando, assim, as prticas de institucionalizao e de

    avaliao; os saberes pessoais, que no podem desvincular-se dos seus agentes

    diretos de criao; e os saberes empricos, intrinsecamente vocacionados para

    uma aquisio intuitiva e global.

    Entretanto, a conformao imposta pelos constrangimentos da prtica de

    transmisso no significa, para esse autor, o reconhecimento de uma autonomia

    seno relativa da possibilidade de criao de conhecimentos nos contextos

    escolares: a arte de ensinar no a arte de inventar ou pelo menos sua inveno

    concerne apenas ao ensino (ibid., p.140-141)8.

    Os leitores familiarizados com os escritos de Chevallard j devem ter

    identificado componentes centrais da sua teoria nas formulaes de Verret acima 7 Traduzido do original em francs: formes temporelles bureaucratiques imposes par lcole la transmission du savoir. 8 Traduzido do original em francs: Lart denseigner nest pas lart dinventer ou plutt son invention ne concerne que lenseignement.

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    expostas. De fato, a influncia desse autor est presente em diversas passagens do

    livro La Transposition Didactique, no somente na forma de citaes, como

    tambm na abordagem epistemolgica das suas anlises do saber escolar, referida

    prioritariamente a Bachelard, como o faz Verret. Incorpora, em linhas gerais, a

    proposio fundadora que define a instituio de uma necessria distncia entre a

    prtica da transmisso e a prtica da inveno (ibid., p.140), as caractersticas

    acima apontadas das transformaes por que passam os saberes para se tornarem

    ensinveis, e a preocupao com a dimenso temporal nas prticas didticas9.

    Diferencia-se, contudo, de Verret, pelo prprio lugar de onde fala e o qual

    pretende afirmar com o seu trabalho o campo da didtica das matemticas

    lugar esse que vem impor novas questes e novos referenciais tericos.

    Em que pese a relatividade das fronteiras disciplinares, destaco uma

    formulao que pode exemplificar a diferenciao que se impe quando da

    relocao da teoria de Verret nesse outro campo de reflexo: enquanto esse autor

    refere-se transmisso de saberes, Chevallard recusa essa terminologia,

    informado, a meu ver, pelos enfoques especficos e construes tericas do campo

    da didtica:

    Falar de um saber e da sua transmisso, com efeito, reconduzir a imagem da caixa preta, aquela da sala de aula onde supe-se a transmisso de um suposto saber, onde no iremos olhar e, se formos, veremos primeiro o professor, depois os alunos, e quase nunca o saber, sempre invisvel, como a filosofia medieval, segundo Alain de Libera10. De fato, carecemos cruelmente de conhecimento sobre a vida ntima dos saberes nas salas de aula: a metfora substancialista que comporta a pretensa transmisso do saber explica, em grande parte, esse desconhecimento. (Chevallard, 1997b, p.4)11

    Todavia, como ressaltado no comeo deste item, a reflexo sobre os

    processos de adaptao do conhecimento para se tornarem ensinveis no se

    limita aos trabalhos de Verret e Chevallard. Perrenoud (1998) afirma ter

    concebido a noo de transposio pragmtica em 1984, sem conhecimento da

    9 Cf. captulos 7 e 8 do livro La Transposition Didactique (Chevallard, 1991). 10 Chevallard refere-se aqui a uma iluminura, que havia descrito nesse mesmo texto, em que pode-se ver um mestre e um estudante, porm o texto do livro estudado no est visvel. 11 Em francs no original: Parler dun savoir et de sa transmission, en effet, cest reconduire limage de la bote noire, celle de la classe o le savoir suppos est suppos se transmettre, o lon nira pas voir, et o, si lon y va voir, on verra dabord le professeur, ensuite les lves, et presque jamais le savoir, toujours forcment invisible, comme la philosophie mdivale selon Alain de Libera. De fait, nous manquons cruellement de connaissances sur la vie intime des savoirs dans les classes: la mtaphore substantialiste qui porte la prtendue transmission du savoir explique en grande partie cette mconnaissance.

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    tese de Verret ou dos desenvolvimentos de Chevallard. Cita ainda Isambert-

    Jamati, Sirota e Tanguy, como exemplo de autores que tambm trabalham com

    essa noo, sem, no entanto, nome-la especificamente.

    No Brasil, Lopes (1999) props o conceito de mediao didtica em

    substituio nomenclatura transposio didtica, por avaliar que esta remete-

    se mais facilmente idia de reproduo, movimento de transportar de um lugar

    a outro, sem alteraes (p.208). Para essa autora, a expresso mediao didtica,

    concebida em um sentido dialtico, favoreceria o entendimento desse processo de

    transformao do conhecimento como um processo de constituio de uma

    realidade a partir de mediaes contraditrias, de relaes complexas, no

    imediatas (p.209). Sem discordar das possveis associaes apontadas por Lopes,

    ressalvo, apenas, que o prprio autor buscou esclarecer acerca da origem da

    escolha da palavra transposio para nomear o processo em questo, referindo-

    se ao sentido musical do termo, que designaria a passagem de formas meldicas

    de um tom para outro, ou seja, um processo de transformao adaptativa a um

    novo contexto (Chevallard, 1997b, p.4-5). Alm disso, acredito que os escritos de

    Chevallard concorrem para eliminar, na sua teoria, vestgios de outros empregos

    para a expresso cunhada por Verret, posto que tratam exatamente das mudanas

    que sofre o conhecimento nesse processo, partindo da premissa explcita da

    existncia de uma distncia entre o saber a ensinar e os objetos de ensino

    definidos enquanto tal. De todo modo, Lopes e Perrenoud propem terminologias

    alternativas que, apesar de pertinentes, no se desdobram em teorias

    significativamente diferenciadas.

    De fato, Bernstein e Chevallard no foram os primeiros, nem tampouco os

    nicos a ocuparem-se dessa dimenso da constituio dos saberes escolares.

    Acredito, entretanto, que a especificidade do trabalho de Chevallard reside no

    desenvolvimento de um modelo terico para a anlise dos sistemas de ensino,

    referido especificamente Didtica no sociolgico, psicolgico ou

    instrumental propondo como eixo estruturante para esse modelo, a discusso do

    saber escolar.

    3.2. A teoria da transposio didtica Para Chevallard, sua teoria vem corrigir um equvoco tradicional da reflexo

    pedaggica: a secundarizao da discusso dos saberes escolares. Assume, ento,

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    a representao triangular do sistema didtico (figura 1), destacando a

    complexidade das relaes estabelecidas entre os trs plos desse sistema: o saber

    (S), aquele que ensina/professor (P), aquele que aprende/aluno (A)12. Argumenta

    que o enfoque psicolgico dominou a anlise desse sistema, restringida assim

    relao professor-aluno. Dessa forma, o saber escolar no seria usualmente

    problematizado, o que contribuiria para sua naturalizao no entendimento

    daqueles que participam dessas relaes. A teoria da transposio didtica

    pretende desestabilizar esse entendimento, expondo enfaticamente a necessria

    distncia entre o saber ensinado e seus saberes de referncia. Mais do que isso,

    prope-se a pensar o sistema didtico a partir dessa dimenso, com base na

    abordagem epistemolgica do saber ensinado.

    S

    P A

    Figura 1

    Sistema didtico (Chevallard, 1991, p.23)

    Segundo Chevallard, tal abordagem encontrou inicialmente bastante

    resistncia, especialmente por parte dos professores. Em uma sociedade

    tradicionalmente marcada pela valorizao da esfera de produo dos saberes,

    compreensvel o fato de o saber ensinado ser igualmente valorizado pela sua

    proximidade com os saberes produzidos naquela esfera, aos quais o autor se refere

    como saber sbio. Essa fico de identidade do saber ensinado com o saber

    12 Chevallard utiliza os termos enseignant e enseign, e no professeur e lve, a meu ver, remetendo-se a um entendimento ampliado da teoria da transposio didtica, que se aplicaria no apenas ao contexto escolar, mas a qualquer situao didtica, isto , qualquer situao de estudo, conforme ser exposto ainda neste captulo. Por outro lado, dada a dificuldade de uma traduo mais direta dos termos escolhidos pelo autor e tambm devido ao recorte desta pesquisa, que se ocupa exclusivamente dos saberes escolares, utilizarei nesta dissertao apenas as palavras professor e aluno para traduzir, respectivamente, enseignant e enseign, advertindo os leitores de que se trata de uma aproximao, no de uma traduo literal.

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    sbio, tambm referida como mito da conformidade abalada pela teoria da

    transposio didtica, comprometendo a prpria identidade dos sujeitos do

    sistema didtico (ibid., p.16), o que explicaria a atitude de resistncia identificada

    por Chevallard.

    Assim como Verret, Chevallard no realiza qualquer tipo de juzo de valor

    ao apontar tal distncia: afirma a existncia do processo de transposio didtica e

    seu papel estruturante na prtica didtica, porm no o julga positiva ou

    negativamente, apenas necessrio. Para esses autores, o desdobramento da

    afirmao dessa distncia no a depreciao do saber escolar, mas sim o

    reconhecimento da sua especificidade epistemolgica.

    Para o reconhecimento dessa especificidade, Chevallard vale-se do conceito

    epistemolgico de problemtica: o conjunto de questes s quais um determinado

    saber busca responder, isto , sua problemtica, necessariamente diferenciado

    em contextos com demandas igualmente diferenciadas, como o so os contextos

    de produo dos saberes e os contextos das relaes didticas.

    Forquin (1993) destaca a importncia do resgate da dimenso

    epistemolgica na discusso do conhecimento escolar, especialmente

    desvalorizada pelas crticas ao currculo postuladas pela Nova Sociologia da

    Educao que, ao denunciar a arbitrariedade da seleo dos contedos

    curriculares, veio impor a razo sociolgica razo pedaggica. Sem negar o

    valor de ambas as ordens de explicao para as relaes pedaggicas, Forquin

    adverte que o maior peso dado primeira favorece um relativismo excessivo, que

    tende a igualar o valor de todos os contedos. Pessoalmente, acredito que a

    abordagem problematizadora do currculo, conforme afirmada pela NSE e pelas

    outras tendncias crticas da poca, significou importante avano na trajetria de

    discusso do saber escolar, porm, a secundarizao do enfoque epistemolgico,

    considerado exclusivamente na sua verso lgica tradicional, que se baseia na

    razo instrumental moderna e em uma concepo de conhecimento universalista,

    tendeu a excluir a possibilidade de uma abordagem epistemolgica crtica, que

    no nega a historicidade e o contedo social do saber, isto , no nega a dinmica

    conflitiva das relaes sociais de poder que perpassam a criao e distribuio do

    conhecimento. Concordo ainda com Lopes quando afirma que:

    Mas alm da crtica de Forquin, defendo que o papel da epistemologia no se resume discusso da validade epistemolgica dos saberes, mas na possibilidade

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    de introduzir uma nova forma de compreender e questionar o conhecimento, internamente, na sua prpria forma de se constituir. (1999, p.167)

    interessante observar que o trabalho de Verret uma tese de cunho

    sociolgico que busca incorporar a dimenso epistemolgica nas suas anlises das

    prticas pedaggicas, baseando-se nas proposies da epistemologia histrica de

    Gaston Bachelard. No chega a considerar uma razo pedaggica, nos termos

    de Forquin sua preocupao de fato sociolgica e no pedaggica , porm

    abre caminho para que Chevallard o faa.

    Quanto sua concepo de cincia, esta j esclarecida na introduo do

    seu livro: a cincia um acrscimo ao real, no um fac-smile do mundo

    (Chevallard, 1991, p.25)13 ou seja, se no chega a ter uma postura de ruptura

    caracterstica do pensamento ps-moderno, certamente no pode ser classificado

    como um defensor do conhecimento cientfico neutro e universal caracterstico

    das pretenses da modernidade. Em diversos momentos da sua obra, insiste sobre

    a historicidade dos saberes e sobre o processo de constituio da sua legitimao

    social como fruto das relaes de poder estabelecidas entre os diversos grupos

    sociais14. Reconhece tambm o momento de crise por que passa a cincia, porm,

    com a seguinte ressalva:

    Porque uma palavra [cincia] que a cultura no compreende mais muito bem; sobre a qual no sabe mais se convm utilizar com reverncia ou desprezo; diante da qual a vemos hesitar entre a comoo, a indiferena e a atribuio de importncia (...) a questo da cincia entre os saberes perdeu hoje em dia sua pertinncia cultural. Pretendo aqui que ela conserve toda a sua pertinncia epistemolgica. (ibid., p.229)15

    De fato, no abre mo desse paradigma, como fica claro quando percebemos

    a preocupao com o estatuto cientfico da didtica das matemticas ao longo de

    toda a sua obra o que por si j sinaliza a importncia que atribui a esse tipo de

    conhecimento ou quando afirma que a condio primeira de existncia de uma

    cincia que esta deve ocupar-se de um objeto real, que existe

    13 Traduzido do original em francs: la science est un ajout au rel, non un fac-simil du monde. 14 Argumenta nesse sentido em diversos artigos, mas destacaria o posfcio do livro La Transposition Didactique, onde se detm por vrias pginas nessa discusso. 15 Traduzido do original em francs: Car cest un mot que la culture ne comprend plus trs bien; dont elle ne sait plus sil convient den user avec rvrence ou ddain; devant laquelle on la voit hsiter entre moi, indifrence et emportement (...) la question de la science parmis les savoirs a perdu aujourdhui de sa pertinence culturelle. Je prtends ici quelle conserve toute sa pertinence pistmologique.

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    independentemente do olhar que a transformar em objeto de conhecimento

    (ibid., p.12)16.

    Contudo, a referncia a Bachelard ou as consideraes acima sobre a sua

    concepo de cincia no so suficientes para esclarecer sobre o sentido da

    abordagem epistemolgica proposta por Chevallard. Para tanto, podemos comear

    pelo seu entendimento de didtica, que nos conduzir ao que esse autor entende

    como abordagem antropolgica da problemtica dos saberes.

    Chevallard define o conhecimento17 como a prpria relao pessoal ou

    institucional estabelecida com os objetos do mundo. A busca individual ou

    coletiva desse conhecimento constituiria o estudo. A didtica, por sua vez, seria a

    cincia do estudo (id., 1998, p.5), ou ainda a cincia do didtico, posto que este

    entendido aqui como o adjetivo que corresponde ao substantivo estudo. Nesse

    sentido, o didtico no seria exclusivo dos processos escolares de ensino-

    aprendizagem, referindo-se a qualquer aspecto dos mltiplos processos de estudo

    ocorridos cotidianamente nas sociedades. Observe-se, entretanto, que nem toda

    relao com qualquer objeto constitui um estudo (ou o didtico), posto que este

    pressupe intencionalidade:

    Existe o didtico quando um sujeito Y tem a inteno de fazer com que nasa, ou que se modifique, de alguma maneira, a relao de um sujeito X com um objeto O (certamente, pode acontecer que Y=X) (id., 1991, p.207)18

    Citando Guy Brousseau, outro terico do seu campo de estudos, prope

    como princpio fundador da didtica das matemticas a afirmao de que no

    somente o saber estudado depende das ferramentas utilizadas com esse fim, mas

    tambm essas ferramentas e mesmo toda configurao das organizaes didticas

    dependem da estrutura desse saber (id., 2001a). Considera que este seria um ponto

    de vista antropolgico que, tomando como exemplo o caso dos estudos

    matemticos, apontaria para a impossibilidade de separao emprica entre o

    16 Traduzido do original em francs: Toute science doit assumer, comme sa condition prmire, de se vouloir science dun objet rel, existant dune existence indpendante du regard qui le transformera en un objet de connaissance. 17 Neste ponto da sua argumentao, Chevallard apresenta uma diferenciao entre conhecimento e saber, qual no retorna nos textos estudados para esta pesquisa, utilizando na maior parte dos seus escritos, o termo saber. Este seria mais amplo e abstrato que o conhecimento, uma organizao coerente deste ltimo. 18 Traduzido do original em francs: Il y a du didactique quand un sujet, Y, a lintention de faire que naisse, ou que change, dune certaine manire, le rapport dun sujet, X, a un objet, O (bien entendu, il se peut que Y = X).

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    didtico e o matemtico: todo fenmeno matemtico possui um componente

    didtico essencial e vice-versa (Chevallard, Bosch & Gascn, 2001, p.77).

    A referncia antropologia, acima mencionada, apresenta-se de forma

    bastante genrica nos textos pesquisados19. A opo por esse enfoque exposta,

    inicialmente, no posfcio do seu livro de 1991 e retomada nas suas reflexes

    posteriores, porm j no formato de aplicao dessa perspectiva, no mais se

    preocupando em discuti-la ou justific-la. Entretanto, cumpre reconhecer que esta

    pesquisa no pode ter a pretenso de qualquer afirmao mais conclusiva sobre a

    sua obra, posto no ter sido possvel o acesso totalidade das suas publicaes.

    Na introduo dessa idia, recomenda que no busquemos esclarecimento

    nos dicionrios, talvez sinalizando para uma utilizao mais pessoal do termo.

    Opta, ento, por recorrer etimologia para apresentar o sentido com que pretende

    operar: seria o estudo do homem descrio que o prprio autor questiona, porm

    no chega a complementar com outra definio mais elaborada ou qualquer

    referncia a autores do campo da antropologia, talvez esperando esclarec-la por

    meio do desenvolvimento terico que passo a relatar, em linhas gerais.

    Na continuidade da sua argumentao, postula a pertinncia de uma

    antropologia dos saberes, que abrigaria no seu campo as didticas especficas e,

    conseqentemente, a teoria da transposio didtica. Essa antropologia dos

    saberes poderia tambm ser referida como antropologia epistemolgica e, por fim,

    simplesmente como epistemologia. Afirma, ainda, que tais caminhos de raciocnio

    no devem ser tomados como malabarismo e sim como um desafio, pois o

    que defende a antropologizao da epistemologia (Chevallard, 1991, p.210).

    Em termos mais objetivos, argumenta que, tradicionalmente, a epistemologia tem

    se ocupado apenas da esfera de produo de saberes, desconsiderando as outras

    igualmente importantes instncias de manipulao desses saberes: as esferas da

    utilizao e do ensino desses saberes. Defende, ento, que a epistemologia se

    ocupe tambm dessas dimenses da vida dos saberes e que incorpore ainda uma

    quarta dimenso: a da transposio didtica20.

    19 Em um dos seus artigos mais recentes (1998b), menciona que tal enfoque antropolgico assumido por outros didatas do seu campo, porm no especifica autores que pudessem ser buscados para uma melhor compreenso dessa aproximao. 20 Ainda dentro do que Chevallard define como perspectiva antropolgica, destacaria dois conceitos que podem colaborar para o entendimento desse enfoque, porm no diretamente relacionados com a teoria em discusso: o de organizao praxiolgica ou praxiologia e o de obra, descritos e discutidos nos seus artigos mais atuais. A praxiologia responde a exigncias

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  • 56

    Discutir o sistema didtico em uma abordagem epistemolgica significa,

    para Chevallard, pensar as relaes que nele se estabelecem a partir da discusso

    dos saberes escolares. Para esclarecer quanto s potencialidades desse enfoque

    epistemolgico, exploro a seguir alguns desenvolvimentos da teoria da

    transposio didtica no campo da didtica das matemticas.

    Na definio do conceito de objetos de saber, distingue noes

    matemticas, paramatemticas e protomatemticas. As primeiras englobariam

    objetos facilmente reconhecveis nos contextos escolares, tais como as quatro

    operaes, a equao de primeiro grau, as figuras geomtricas etc. J as noes

    paramatemticas no seriam objeto de ensino explcito, nem tampouco seriam

    usualmente avaliadas: so saberes auxiliares, ferramentas de estudo (ibid.,

    p.50), como, por exemplo, as noes de demonstrao ou de parmetro. Enquanto

    as noes matemticas costumam ser construdas no espao escolar, as

    paramatemticas seriam geralmente esperadas como pr-construdas. Chevallard

    ressalva, porm, que essa distino no deve ser apriorstica, alterando-se

    conforme o nvel de ensino e o entorno sociocultural do sistema didtico em

    anlise: assim que uma mesma noo pode ser considerada paramatemtica no

    nvel fundamental de ensino, porm apresentar-se como noo matemtica em um

    curso universitrio de formao matemtica.

    O terceiro tipo de objeto de saber proposto por Chevallard pode ser definido

    por oposio aos dois primeiros: enquanto ambos so nomeados explicitamente

    o que evidencia a conscincia que deles tem o professor as noes

    protomatemticas apresentam-se mais implcitas, situadas em estratos mais

    profundos do funcionamento didtico do saber. A prtica didtica das prticas, fornecendo tcnicas que resolvero problemas e viabilizaro a realizao de tarefas. No entanto, tais respostas apenas se constituiro enquanto organizaes praxiolgicas na medida em que configurarem um discurso racional, que trar inteligibilidade s tcnicas mobilizadas. Uma praxiologia resulta, assim, da associao de um saber-fazer a um saber. (Chevallard, 1997b, p.5; traduzido do original em francs: Une praxologie resulte ainsi de lassociation dun savoir faire et dun savoir.). Prope tambm considerar o saber referido nessa definio de praxiologia, como uma subcategoria da noo mais geral de obra, termo que designaria toda produo humana cujo objetivo trazer uma resposta a uma ou mais questes, tericas ou prticas, que constituem as razes de ser da obra (id., 1997d, p.2; traduzido do original em francs: toute production humaine dont lobjet est dapporter une rponse une ou des questions, thoriques ou pratiques, qui sont les raisons dtre de luvre). O conceito de obra , portanto, prximo, porm mais amplo que o de organizao praxiolgica, que responde apenas a questes prticas. Por outro lado, as obras poderiam constituir saberes ou no: seriam obras, entre outras, a teoria do caos, o teatro (e tambm os teatros, recriados nas diferentes culturas), a navegao (idem), a teologia catlica, a informtica, o didtico etc. O vis antropolgico parece residir no entendimento de que as organizaes praxiolgicas constituem, ao mesmo tempo em que so constitudas, pelas muitas conformaes culturais possveis nas sociedades.

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  • 57

    matemticas supe capacidades, competncias, por parte dos alunos por

    exemplo, capacidade de reconhecimento, nas atividades propostas pelo professor,

    das ocasies de aplicao dos saberes estudados que podem eventualmente ser

    designadas como objetivos de ensino, porm no como objetos de ensino, no

    se adequando, assim como as noes paramatemticas, a procedimentos de

    avaliao objetiva (ibid., p.52-55).

    Coerentemente com a teoria da transposio didtica, Chevallard afirma que

    as noes matemticas (ou seja, o saber matemtico a ser ensinado) so dotadas

    de uma forma especfica para o trabalho escolar, constituindo o que chama de

    texto do saber (ibid., p.65). Para chegar a essa configurao, o saber designado

    como saber a ensinar deve passar pelos processos apontados por Verret21 e

    assumidos por Chevallard na sua teoria: dessincretizao, despersonalizao e

    formatao para programabilidade.

    O ltimo aspecto mencionado acima interessou especialmente Chevallard,

    na medida em que permite uma aproximao epistemolgica do tempo didtico e

    das relaes estabelecidas entre os sujeitos desse tempo.

    Nesse sentido, Chevallard aponta a especificidade do funcionamento

    didtico do saber na escola: enquanto a esfera da produo dos saberes move-se

    pela busca da resoluo de problemas colocados pela comunidade de

    pesquisadores, a esfera do ensino no impulsionada pela necessidade de soluo

    de problemas, mas sim pela contradio antigo/novo. Essa contradio

    antigo/novo a que se refere Chevallard explica-se pela necessidade de os objetos

    de ensino remeterem-se quilo que j conhecido pelo aluno, ao mesmo tempo

    que devem aparecer como novidade afinal, o novo, o no sabido que justifica

    a relao didtica. Porm, se o aluno no puder realizar algum tipo de

    reconhecimento ou identificao com os saberes que j domina, o estranhamento

    pode ocorrer em tais propores que inviabilize o aprendizado. O objeto de

    ensino, ento, tem o papel de objeto transacional entre passado e futuro22. A

    superao dessa contradio significa, portanto, o sucesso do processo de

    aprendizagem, que vem representar, por outro lado, o envelhecimento do saber

    21 Cf. item 3.1 deste captulo. 22 Traduzido do original em francs: objet transactionnel entre pass et avenir.

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  • 58

    que anteriormente apresentava-se como novo: nas palavras de Chevallard, os

    objetos de ensino so vtimas do tempo didtico (ibid., p.65-68) 23.

    Nessa interpretao da dinmica escolar, o professor tem o papel de garantir

    a continuidade deste processo, apresentando novos textos do saber e assegurando

    algum nvel de familiaridade nesses contedos. Pode faz-lo, porque ele quem

    sabe antes dos outros, que j sabe, que sabe mais24 (ibid., p.71). Controla,

    portanto, o que Chevallard chama de cronognese do saber, pois est sempre

    temporalmente adiante, em relao aos alunos, podendo prever e mesmo decidir

    sobre a introduo de novos objetos transacionais. Sua posio avanada

    assegurada a cada momento de introduo de um novo objeto de ensino, pois

    recupera a distncia temporal em relao aos alunos, que tende a diminuir quando

    da superao da contradio antigo/novo, isto , no decorrer do processo bem

    sucedido de aprendizagem. Nesse sentido, a diferena entre o professor e o aluno

    estaria no tempo de saber e no apenas na relao de cada um com o saber

    propriamente dito.

    No entanto, a possibilidade de controle da dimenso temporal do

    funcionamento didtico encontra na subjetividade de cada aluno um limite que

    inviabiliza a pretenso de um tempo didtico nico: o tempo de ensino, de carter

    flagrantemente normatizador, tende a no coincidir com os mltiplos tempos de

    aprendizagem, necessariamente subjetivos. Esse tempo de ensino, tambm

    referido por Chevallard como tempo legal, seria estruturado pelo ritmo didtico

    acima descrito saber antigo, saber novo, contradio, superao/aprendizagem,

    nova contradio, nova superao e se impe institucionalmente ao aluno. Este,

    por outro lado, traz a sua histria pessoal, que define, entre outras especializaes,

    uma bagagem determinada de noes proto e paramatemticas, que podero

    facilitar ou no a aprendizagem: em ambos os casos, a fico de um tempo de

    aprendizagem determinado exclusivamente pelo tempo de ensino

    desestabilizada, pois, para alguns, o tempo legal significar o fracasso escolar e,

    para outros, um freio, uma limitao das suas possibilidades de aprendizagem

    (ibid., p.68).

    23 Traduzido do original em francs: les objets denseignement sont victimes du temps didactique. 24 Traduzido do original em francs: qui sait avant les autres, qui sait dj, qui sait plus.

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  • 59

    Alm da questo temporal, Chevallard assinala outra diferena entre aluno e

    professor determinada pela relao que estes mantm com o saber a diferena

    em relao topognese do saber, ou seja, a diferena de lugar que ocupam

    em relao ao saber. Trata-se de uma distino no apenas quantitativa, como

    tambm qualitativa: o professor domina o saber a ensinar em um nvel mais

    abstrato do que seria possvel para o aluno atingir em um primeiro momento de

    estudo; alm disso, o professor precisa conhecer tambm a maneira de ensin-lo.

    Essa diferena explicitada e atualizada cotidianamente nas relaes didticas,

    por meio de atos concretos de poder, no nvel mesmo dos contedos de saber

    especficos (ibid., p.7425; cf. Chevallard, 1995).

    A posio diferenciada permite ao professor a construo da variante local

    do texto do saber, o que inclui no apenas a criao de estratgias concretas de

    abordagem do saber a ensinar, como tambm toda uma nova conformao

    personalizada.

    A maior parte do trabalho de transposio, no entanto, j se encontraria

    realizada quando da interferncia do professor na elaborao do texto do saber.

    Para Chevallard, esse trabalho j se inicia quando da sua formatao discursiva

    inicial, para apresentao ao meio cientfico, o que constituiria um primeiro passo

    do processo de despersonalizao apontado por Verret. Identifica, porm, agentes

    e agncias especializados no trabalho mais direto de transposio didtica,

    situados em uma dimenso que denomina como noosfera.

    Chevallard reconhece que o funcionamento didtico dispe do que chama de

    criatividade didtica (ibid., p.23), sendo capaz de desenvolver produes

    prprias, que no se restringem a estratgias de ensino, mas tambm conceitos

    originais, ainda que com esse objetivo. Diante desse quadro, os sujeitos do

    sistema didtico tenderiam a desenvolver o que chama de fechamento da

    conscincia didtica (ibid., p.22)26, supondo um isolamento, uma autonomia que

    o autor julga limitada. Chevallard questiona tal isolamento, ampliando a

    representao do sistema didtico tambm referido como sistema de ensino

    stricto sensu para evidenciar sua insero em um contexto social mais amplo:

    25 Traduzido do original em francs: actes concrets de pouvoir, au plan mme des contenus de savoir spcifiques. 26 Traduzido do original em francs: clture de la conscience didactique.

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  • 60

    entorno

    noosfera

    Sistema de ensino stricto sensu Figura 2

    Sistema de ensino (ibid., p.24)

    No entorno social, estariam includos os matemticos, as famlias dos

    estudantes, as instncias polticas de deciso; no sistema didtico stricto sensu,

    atuam professores e alunos; a noosfera seria encarregada de realizar a interface

    entre a sociedade e as esferas de produo dos saberes, dela participando, em

    posies diferenciadas:

    ... os representantes do sistema de ensino, com ou sem mandato (do presidente de uma associao de professores ao simples professor militante) encontram, de forma direta ou indireta (atravs do libelo da denncia, da presso da reivindicao, do projeto transacional, ou dos debates surdos de uma comisso ministerial), os representantes da sociedade (os pais de alunos, os especialistas da disciplina que militam pelo seu ensino, os representantes dos rgos polticos). (ibid., p.25)27

    Nesse trabalho de interface, a noosfera viabilizaria a manuteno da

    compatibilidade entre o sistema didtico e o seu entorno social, no plano do

    saber (ibid., p. 26). Para discutir esse processo, Chevallard prope o seguinte

    modelo de interpretao: tal compatibilidade dependeria da sustentao do saber

    ensinado em um ponto mais ou menos eqidistante entre o saber sbio e o saber

    banalizado, acessvel s famlias dos estudantes, sem a mediao escolar.

    Quando o saber ensinado se afasta demais do saber sbio, ocorre o que o autor

    chama de envelhecimento biolgico, passando a ter a legitimidade questionada 27 Traduzido do original em francs: les reprsentants du systme, mandats ou non (du prsident dune association denseignants au simple professeur militant) rencontrent, directement ou non (par le libelle dnonciateur, la requte comminatoire, le projet transactionnel, ou les dbats assourdis dune commission ministrielle), les reprsentants de la socit (les parents dlves, les spcialistes de la discipline qui militent autour de son enseignement, les missaires de lorgane politique.

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  • 61

    pelo entorno social devido sua obsolncia. Paralelamente, ocorreria o

    envelhecimento moral, causado pela perigosa aproximao com o saber

    banalizado, que tambm se d quando o saber ensinado se distancia em demasia

    do saber sbio: se o saber j de amplo domnio pblico, o que justifica a escola?

    Nesse caso, a necessria compatibilidade entre o sistema didtico e seu entorno

    social rompida e a escola denunciada pelas famlias, matemticos, alunos e

    mesmo professores, como uma instituio arcaica. o momento em que se

    impem as reformas de ensino, quando um fluxo de saber, proveniente do saber

    sbio, torna-se indispensvel (ibid., p.27)28. A noosfera atua, ento, na seleo e

    no trabalho de transposio didtica dos contedos de saber selecionados,

    restabelecendo a compatibilidade a que se refere o autor.

    Nesse ponto, Chevallard insiste no reconhecimento da assustadora

    complexidade (ibid., p.28) das relaes entre o sistema de ensino e o seu entorno,

    que no pretende simplificar com seu modelo terico. A noosfera seria, por

    definio, um espao de conflito, de disputa: a compatibilizao em questo

    uma construo social, no um movimento espontneo ou natural. Por isso

    mesmo, o trabalho da noosfera nem sempre ter um sentido de modernizao

    (ibid., p.36), posto que as mudanas que veicular respondem s mltiplas e

    contraditrias demandas da sociedade.

    A teoria da transposio didtica, portanto, vem trazer o enfoque

    epistemolgico como eixo central para as anlises da ordem didtica. Apesar de,

    na maior parte da sua obra, Chevallard referir-se mais diretamente didtica das

    matemticas, sua perspectiva de extenso da teoria da transposio didtica s

    outras didticas especficas foi reconhecida pelo prprio autor no posfcio da

    segunda edio do seu livro. Reconhece que a dubiedade dos ttulos da primeira

    edio no havia sido meramente acidental: o subttulo da capa dizia Do saber

    sbio ao saber ensinado, porm, na primeira pgina do livro o subttulo estava

    diferente, restringindo suas proposies ao ensino da matemtica Das

    matemticas sbias s matemticas ensinadas (ibid., p.199)29. Tal contradio

    parecia antecipar a polmica suscitada pela perspectiva de generalizao da sua

    teoria. 28 Traduzido do original em francs: un flux de savoir, en provenance du savoir savant, devient indispensable. 29 Traduzido do original em francs: Du savoir savant ou savoir enseign e Des matmathiques savantes aux mathmatiques enseignes.

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  • 62

    3.3. Polmicas Na verdade, as polmicas que cercaram a teoria da transposio didtica no

    se restringiram sua aplicabilidade s outras especializaes da didtica:

    Chevallard foi tambm criticado pela posio que teria concedido ao professor na

    sua teoria, pela suposta exclusividade do saber sbio como referncia para a

    construo do saber a ser ensinado e tambm pelo suposto no reconhecimento da

    autonomia criativa da escola. Visando confrontar a leitura que apresentei da teoria

    da transposio didtica com outras de cunho mais crtico, passo ento a discuti-

    las, centrando as duas ltimas questes nas formulaes dos autores cujas crticas

    so mais freqentemente citadas nas discusses sobre essa teoria no Brasil o

    didata francs do campo das cincias, Michel Caillot, e o historiador francs

    Andr Chervel, respectivamente.

    3.3.1. O professor e a teoria da transposio didtica A principal questo quanto ao papel atribudo ao professor na teoria da

    transposio didtica refere-se sua suposta passividade no processo

    transpositivo.

    De fato, Chevallard no atribui a esse sujeito do sistema de ensino

    exclusividade, ou sequer prioridade, na sua anlise. Contudo, minha leitura no

    confirmou o entendimento de que esse autor concebe um professor meramente

    reprodutor de saberes produzidos em outras esferas da sociedade. Uma passagem

    do seu trabalho mais divulgado no Brasil, o livro La Transposition Didactique,

    freqentemente citada para justificar a afirmao de que, para Chevallard, o

    professor no participa do processo de transposio didtica, pois seu papel

    trabalhar na transposio didtica (ou melhor, dentro da transposio didtica);

    no fazer a transposio didtica. (ibid., p.18)30. Entretanto, a contextualizao

    dessa citao permite outra interpretao. Entendo que Chevallard est, nesse

    momento do texto, discutindo uma apropriao da sua teoria que julga

    inadequada, como indica o trecho que antecede citao acima reproduzida:

    Operao de banalizao, na qual o conceito esvaziado, perde seu fogo, e utilizado de forma restrita, logo no tem mais aplicao. No limite, o significante se impe; somente o vocabulrio mudou. verdade, diro, verdade que existe a

    30 Traduzido do original em francs: travailler la transposition didactique (ou plutt, dans la transposition didactique); ce nest pas faire la transposition didactique.

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  • 63

    transposio didtica: organizemos, ento, essas transposies didticas! O ativismo esquece a anlise e a reflexo mais cuidadosa. Preparar uma lio sobre o logaritmo torna-se ento: fazer a transposio didtica da noo de logaritmo. (ibid., p.18)31

    Acredito que no podemos inferir do texto acima que o autor considera que

    o professor est excludo do trabalho de transposio didtica. Chevallard est

    argumentando especificamente contra a banalizao da sua teoria, contra o

    entendimento da transposio didtica como o preparo de uma lio. Em vrias

    outras passagens do seu livro, o professor referido como participante desse

    processo, em diferentes instncias. Ao discutir o funcionamento da noosfera,

    Chevallard aponta como participantes, conforme mencionado anteriormente: os

    representantes do sistema de ensino, com ou sem mandato (do presidente de uma

    associao de professores ao simples professor militante) (ibid., p.25)32. Ainda

    nessa mesma discusso, o autor refere-se novamente aos professores como

    sujeitos das atividades da noosfera, porm sem restringir tal participao s

    posies especializadas de representantes de associaes ou professores

    militantes:

    O centro operacional do processo de transposio, que vai traduzir em fatos a resposta ao desequilbrio criado e constatado (expresso pelos matemticos, pais, os prprios professores), a noosfera. (ibid., p.18, grifo meu)33

    Alm disso, Chevallard no restringe a transposio didtica ao trabalho da

    noosfera, apesar do evidente peso atribudo a essa esfera, que seria responsvel

    pelo trabalho externo desse processo, em contraposio ao trabalho interno

    que se realiza dentro do sistema didtico, a partir da definio oficial dos saberes a

    serem ensinados. Nomeia essa etapa o trabalho interno de transposio

    didtica interna (ibid., p.31). Se, por um lado, essa dimenso no priorizada na

    sua anlise, por outro, reconhece sua importncia na ordem didtica, quando

    afirma que:

    31 Traduzido do original em francs: Opration de banalisation, o le concept est vid, perd son feu, et, mis la tache pour le plus mince propos, nest bientt plus propre rien. A la limite, le signifiant seul simpose; seul le vocabulaire a chang. Il est vrai, dira-t-on ainsi, il est vrai quil y a transposition didactique: organisons donc ces transpositions didactiques! Lactivisme oblitre lanalyse, et une certaine retenue rflexive. Prparer une leon sur le logarithme devient alors: faire la transposition didactique de la notion de logarithme. 32 Cf. nota 61 deste captulo. 33 Traduzido do original em francs: Le centre oprationnel du processus de transposition, qui va traduire dans les faits la rponse apporter au dsquilibre cr et constat (exprim par les mathmaticiens, les parents, les enseignants eux-mmes), cest la noosphre.

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  • 64

    Quando os programas so fabricados, assinados, e tomam fora de lei, um outro trabalho comea: o da transposio didtica interna. Alguns dos mais belos achados da noosfera, no resistem a esse jogo. (ibid., p.37)34

    Observe-se que Chevallard no faz essa observao em tom crtico e no

    atribui aos professores qualquer responsabilidade negativa por essa

    incompatibilidade. Antes refere-se a esse quadro como mistrios da ordem

    didtica (ibid., p.37).

    Todavia, apesar de, em seus escritos mais recentes (1995, 1998a, 1999a,

    2001a), tratar especificamente do papel do professor no sistema didtico e de

    questes relativas sua formao35, essa no me pareceu ser a discusso

    prioritria nas suas proposies tericas. Acredito que a pesquisa que optar por

    um recorte das relaes pedaggicas que privilegie a investigao do professor

    como as linhas de pesquisa que centram seus trabalhos em conceitos como saber

    docente ou epistemologia da prtica por certo no encontrar em Chevallard o

    seu melhor interlocutor terico. Argumento, contudo, que tampouco encontrar na

    obra do didata francs a negao do seu enfoque.

    3.3.2. O embate com outras didticas Segundo afirmao do prprio Chevallard, o maior foco de resistncia

    teoria da transposio didtica no surgiu entre os professores, mas sim onde

    menos poderia esperar: entre os tericos das didticas especficas. Sua surpresa

    compreensvel, pois defendia, com sua teoria, exatamente a pertinncia das

    especializaes didticas, dada a centralidade que concedeu problemtica dos

    saberes. O autor vai explicar tal resistncia em uma perspectiva muito prxima

    anlise bourdiana do campo cientfico (Bourdieu, 1983), sem, no entanto,

    mencionar esse autor ou recorrer terminologia por ele proposta: a no aceitao

    das suas formulaes explicar-se-ia menos por divergncias epistemolgicas e

    mais por necessidades de afirmao e manuteno das fronteiras de cada campo,

    que teriam se sentido ameaados por uma suposta interferncia ou pretenso de

    hegemonia da didtica das matemticas.

    34 Trduzido do original em francs: Lorsque les programmes sont fabriqus, signs, et prennent force de loi, un autre travail commence: celui de la transposition didactique interne. Quelques-unes des plus belles trouvailles de la noosphre, ce jeu-l, ne rsistent pas. 35 Nesses escritos no discute diretamente a teoria da transposio didtica, referindo-se mesma como pressuposto.

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  • 65

    Esse debate pode ainda, ser dividido em outros dois: a tenso entre a

    pedagogia, as didticas especficas e a didtica (geral), e o questionamento da

    priorizao do saber sbio como saber de referncia, proposio que seria

    pertinente apenas no contexto da didtica das matemticas.

    3.3.2.1. Pedagogia, didtica e didticas Conforme j exposto neste captulo, Chevallard entende o adjetivo didtico

    como relativo a qualquer situao de estudo, e a didtica, como a cincia que

    estudaria o didtico, tendo, para tal fim, como objeto prioritrio de investigao,

    os saberes que circulam no sistema de ensino. A fundamentao de tais

    proposies atribuda, por Chevallard, a Guy de Brousseau:

    O princpio fundador das didticas, ao menos no sentido brouseauniano da palavra, que no somente o transmitido depende da ferramenta com que se pretende conseguir sua transmisso, como as organizaes transmissoras, quer dizer, as didticas, configuram-se de modo estreitamente vinculado estrutura daquilo que se tem de transmitir. (Chevallard, 2001a, p.2)36

    Complementando sua definio de didtica, Chevallard prope ainda uma

    diferenciao entre pedagogia e didtica. A pedagogia encontrar-se-ia colonizada

    pela psicologia, de modo a restringir suas anlises do sistema didtico

    exclusivamente relao professor-aluno, ignorando o saber, terceiro plo do

    sistema didtico, que no seria problematizado nesse enfoque. O trao distintivo

    da didtica residiria justamente na opo pela problematizao do saber ensinado

    como eixo estruturante da anlise da ordem didtica. Sugere ainda que o enfoque

    epistemolgico defendido favoreceria a constituio da didtica enquanto domnio

    cientfico autnomo, com objeto de investigao e reflexo prprios.

    Ao menos no contexto francs, Chevallard no parece isolado nessas

    formulaes. Cornu & Vergnioux (1992) citam didatas de disciplinas variadas que

    defendem igualmente a centralidade dos saberes nas anlises das situaes

    didticas, apontando tal priorizao como uma tendncia das didticas especficas.

    Quanto diferenciao entre didtica e pedagogia tambm identificam esta ltima

    como um campo colonizado por outras cincias mencionando a sociologia, alm

    36 Traduzido do original em espanhol: El principio fundador de las didcticas, al menos en el sentido brousseouniano de la palabra, es que no solo lo transmitido depende de la herramienta con la que se pretende conseguir su transmissin, sino al revs que las organizaciones transmissoras, es decir didcticas, se configuran de manera estrechamente vinculada a la estructura dada a lo que hay que transmitir.

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  • 66

    da psicologia e, portanto, sem autonomia cientfica. Consideram que a didtica

    conquistou o status de campo de pesquisa autnomo nos anos oitenta, tendo para

    isso que impor seus pontos de ruptura, definir a originalidade das suas linhas de

    pesquisa e o carter inovador das suas abordagens (ibid., p.42)37. Astolfi &

    Develay (1991) desenvolvem a mesma discusso e chegam a concluses bastante

    prximas, defendendo igualmente a centralidade do enfoque epistemolgico e a

    distino entre pedagogia e didtica proposta por Chevallard. Reconhecem,

    entretanto, assim como Cornu & Vergnioux, no existir consenso nesse sentido e

    que os termos didtica e pedagogia ainda autorizam mltiplos entendimentos, que

    podem passar por igualar seus significados ou mesmo subordin-los um ao outro:

    a didtica como parte da pedagogia, encarregada das questes metodolgicas, ou,

    conforme defendem, a pedagogia como parte da didtica, ocupando-se das

    dimenses psicolgicas e/ou sociolgicas.

    No Brasil, a identidade dos campos da didtica e da pedagogia tampouco

    consensual. Entretanto, a diferenciao proposta por Chevallard e os outros

    tericos franceses citados acima no parece encontrar repercusso significativa

    entre os tericos brasileiros. Com freqncia, a pedagogia identificada como a

    cincia da educao ou ainda o conjunto de cincias da educao o que incluiria

    a didtica. Mas uma identificao exclusiva da pedagogia com a psicologia, como

    afirma Chevallard, no foi encontrada por esta pesquisa.

    Uma outra discusso desenvolvida por Chevallard diz respeito questo da

    didtica geral. Encontrei, no decorrer desta pesquisa, interpretaes divergentes

    quanto ao posicionamento deste autor, em relao a essa polmica. Passo, ento, a

    relat-las, tomando as leituras de Davini (1996) e Anhorn (2003) como

    representativas de dois entendimentos possveis das proposies do autor.

    Davini, da Universidade de Buenos Aires, cita as proposies de

    Chevallard, apontando-o como um dos representantes das didticas especializadas

    que, devido ao enfoque epistemolgico que privilegiam, questionam a pertinncia

    de uma didtica no especfica. Contrape a esse suposto posicionamento de

    Chevallard, alguns argumentos que exponho, a seguir, de forma resumida.

    Para essa autora, o impacto das teorias crticas, em especial, das

    reprodutivistas, sobre a pedagogia, ainda no foi superado, atingindo tambm a

    37 Traduzido do original em francs: imposer ses points de rupture, dfinir loriginalit de ses axes de recherche et le caractre innovant de ses approches.

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  • 67

    didtica geral, que teria uma posio intersticial entre o projeto pedaggico e a

    ao (ibid., p.30) e tendeu ao esvaziamento desde ento. Reconhece tambm que

    a tradicional priorizao da dimenso tcnica tendeu a secundarizar a dimenso

    epistemolgica na reflexo da didtica geral, o que vem sendo revisto pelas

    didticas especficas, as quais viveriam um momento de expanso.

    Davini no questiona a pertinncia do desenvolvimento de didticas

    especficas, nem tampouco a relevncia do olhar do especialista para as questes

    didticas, porm critica o que seriam pretenses autonomistas e totalizantes dessas

    didticas. Alega que pretenderiam um olhar total, com base em uma ou duas

    dimenses do problema (ibid., p.30). Teme tambm que esse movimento

    favorea o exclusivismo da funo instrucional da educao escolar e insiste na

    pertinncia de uma didtica geral, justificada pela existncia de questes

    igualmente gerais. Avalia que questes como avaliao, disciplina e organizao

    escolar, ou formao dos docentes so questes amplas que no devem ser

    tratadas pelas didticas especficas, nem tampouco pela psicologia ou qualquer

    outra cincia da educao dizendo respeito didtica geral.

    J Anhorn (2003), em sua tese de doutorado, demonstra entender que a

    recusa da didtica geral, explicitada por Chevallard na citao a seguir, refere-se

    disciplina da didtica geral, usualmente ministrada nos cursos de formao de

    professores, e no didtica, domnio cientfico autnomo: Porque desta tenso

    emerge, desde o comeo, uma idia que sempre recusamos (...): a idia de uma

    didtica geral (Chevallard, 1991, p.202-203)38.

    Na interpretao dessa autora, Chevallard favorvel constituio de uma

    didtica que se diferencie da didtica geral, esta uma disciplina sem referencial de

    objeto de saber especfico, uma construo didtica do processo transpositivo da

    Didtica para a grade curricular dos cursos de formao de professores. Pode-se

    inferir que, para Anhorn, Chevallard no deveria ser enquadrado no grupo dos

    didatas especialistas que se opem didtica pelo contrrio, seria um defensor

    da autonomia cientfica desse campo.

    A anlise do posfcio do livro de Chevallard, onde o autor desenvolve essa

    discusso, no me permitiram uma concluso definitiva quanto ao entendimento

    38 Traduzido do original em francs: Car de cette tension sortit, des les premiers jours, une ide laquelle nous nous sommes toujours refuss, (sans jamais prendre la peine de lui tordre le cou): lide dune didactique gnrale.

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    mais pertinente da posio desse autor. Percebi uma certa dubiedade no texto, que

    torna sua interpretao bastante discutvel. Mais uma vez, uma questo dever

    permanecer em aberto, posto no ter sido possvel o acesso totalidade da obra

    desse autor, devendo-se considerar a possibilidade dessa questo ter sido

    esclarecida em textos no pesquisados.

    3.3.2.2. A questo do saber sbio A teoria da transposio didtica transponvel?

    Com esse ttulo, o texto de Michel Caillot, terico francs do campo da

    Didtica das Cincias, questiona a aplicabilidade da teoria de Chevallard a outras

    didticas, alm da matemtica: Eis ento definida a transposio didtica. Essa

    definio oriunda dos didticos da matemtica universal? Dito de outra maneira,

    pertinente a todas as didticas? (Caillot, 1996, p.21)39. A resposta a que chega,

    em concluso, negativa:

    O ttulo desta contribuio colocava uma questo que agora pode ser respondida. Parece que a teoria da transposio didtica, na forma como foi inicialmente elaborada, est muito atrelada ao contexto das matemticas e do seu ensino. Ela , sem dvida, adaptada a um tipo particular de epistemologia. Ademais, revelador, a meu ver, que as crticas no vieram dos didticos da matemtica, mas foram formuladas por didticos de outras disciplinas. (ibid., p.34)40

    Como revela a citao acima, onde Chevallard identificou um movimento

    de defesa de domnios, Caillot percebeu incompatibilidade epistemolgica: a

    resistncia dos outros didatas explicar-se-ia pela inadequao da teoria da

    transposio didtica a outros campos disciplinares.

    Sua principal crtica teoria da transposio didtica refere-se questo do

    papel do saber sbio na constituio do saber escolar: na leitura de Caillot, este

    seria a nica referncia do saber ensinado para Chevallard, o nico saber

    habilitado a conferir legitimidade a esse saber ensinado. Para contestar essa idia,

    expe o programa de cincias fsicas do ensino fundamental e mdio da Frana, 39 Traduzido do original em francs: Voil donc dfinie la transposition didactique. Cette dfinition issue du travail des didacticiens des mathmatiques est-elle universelle? Autrement dit, est-elle pertinente pour toutes les didactiques? 40 Traduzido do original em francs: Le titre de cette contribution posait une question laquelle on peut maintenant rpondre. Il semble que la thorie de la transposition didactique sous la forme dans laquelle elle a t initiallement labore est trs lie au contexte des mathmatiques et de leur enseignement. Elle est sans doute adapte un type particulier dpistmologie. Du reste il est rvlateur mes yeux que les critiques ne sont pas venues des didacticiens des mathmatiques, mais quelles ont t mises par des didacticiens dautres disciplines.

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    apontando a incluso de prticas industriais, em referncia ao conceito de

    prtica social de referncia, desenvolvido por Martinand quando da sua

    participao, na dcada de 1970, na Comisso de Reformas dos Programas de

    Cincias Fsicas, em que esteve encarregado da elaborao de um currculo

    voltado para questes da tecnologia. Props, ento, a incorporao de saberes,

    como a engenharia ou a culinria, legitimados por prticas sociais, e no por

    pesquisas acadmicas (ibid., p.33-34).

    Sem discordar da pertinncia do conceito proposto por Martinand, considero

    discutvel a interpretao que Caillot realiza da teoria de Chevallard.

    Diferentemente da discusso referente didtica geral, abordada no item anterior,

    no pude identificar dubiedades no texto de Chevallard referentes aos pontos

    criticados por Caillot.

    J na introduo do seu trabalho, causa estranhamento que apenas uma das

    formas de apresentao do conceito central da teoria da transposio didtica

    tenha sido considerada para anlise. Caillot apresenta a transposio didtica

    definida em sentido restrito, com meno ao saber sbio, mas tambm em um

    sentido mais amplo, quando Chevallard refere-se genericamente a saber, sem

    adjetivos. Sem justificar sua opo, Caillot analisa exclusivamente a primeira

    definio, isto , seu sentido restrito, no se detendo na explicao mais geral

    tambm apresentada na teoria e destacada como epgrafe deste captulo.

    Na minha leitura, entretanto, a restrio de sentido a que se refere

    Chevallard diz respeito aplicao especfica da sua teoria didtica das

    matemticas. Concordo com Joshua quando afirma ter havido uma focalizao

    abusiva do problema das referncias (Joshua, 1997, p.3)41, em detrimento de

    proposies mais relevantes na teoria, como a afirmao do trabalho de

    transposio como necessrio para tornar qualquer saber ensinvel. No seu livro,

    Chevallard ocupa-se, de fato, das transformaes sofridas pelo saber sbio, no

    caso do ensino matemtico, o que no significa que conceba esse saber como a

    nica referncia legtima para os saberes escolares:

    Mais precisamente, o estudo de transposies a partir dos saberes sbios apenas um exemplo (talvez paradigmtico, mas ainda assim um exemplo) de que os

    41 Traduzido do original em francs: focalisation abusive sur le problme des rfrences.

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    saberes no vivem da mesma maneira, dependendo das instituies onde se implantem. (ibid., p.3)42

    Lembra ainda que a teoria da transposio didtica um modelo terico e,

    como tal, no pretende esgotar todos os aspectos da fenomenologia considerada

    (ibid., p.1), com o qu parecem concordar alguns autores das didticas especficas,

    como Dlia Lerner (1994), pesquisadora do campo da didtica da lngua

    espanhola, ou Astolfi & Develay (1991), tericos franceses do campo da didtica

    das cincias. A primeira, citando Chevallard, discute a questo da formao

    docente, referindo-se ao saber sbio e s prticas sociais como referncias do

    saber a ser ensinado no seu campo de atuao, sem identificar nessa formulao

    qualquer tipo de contradio. Os segundos justificam a incluso de prticas sociais

    como referncia para o ensino de cincias, sem, no entanto, recusarem, por isso, a

    teoria da transposio didtica. No Brasil, Pais (1999, 2001), da didtica das

    matemticas, tambm incorpora prticas sociais como referncia do saber a ser

    ensinado, mantendo, nos demais aspectos da teoria, as formulaes de Chevallard.

    Caillot, contudo, no est sozinho na sua leitura e apresenta no artigo citado,

    didatas do ensino profissionalizante, da lngua francesa, e de histria e geografia,

    que discordam da aplicabilidade da teoria da transposio didtica na discusso do

    ensino das suas disciplinas, por entenderem que a mesma exclui, por princpio, as

    prticas sociais de referncia na constituio dos saberes escolares. Por outro lado,

    o posicionamento de Audigier, Crmieux e Tutiaux-Guillon, os didatas de histria

    e geografia citados, merece algum comentrio. Caillot afirma que, para esses

    autores, o saber sbio tem a funo de desmascarar o que pode ser falso

    (Caillot, 1996, p.26). Percebo aqui uma contradio que compromete sua crtica:

    se o saber sbio tem a legitimidade da ltima palavra, mais do que uma referncia,

    ele seria a referncia absoluta, que subordinaria todas as outras.

    Concluo, portanto, que no somente Chevallard no prope o saber sbio

    como nica referncia43 dos saberes a serem ensinados na escola, como tambm

    que o entendimento da exclusividade dessa referncia nas suas proposies e a

    42 Traduzido do original em francs: Plus prcisement, ltude des transpositions partir des savoirs savants nest quun exemple (peut-tre paradigmatique, mais un exemple quand mme) de ce que les savoirs ne vivent pas de la mme manire selon les institutions o ils senracinent. 43 Alm da definio mais ampla j citada neste item, cf. posfcio (Chevallard, 1991) e conceitos de obra e praxiologia, na nota 54 deste captulo.

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  • 71

    conseqente rejeio da sua teoria no consensual entre os profissionais das

    didticas especficas.

    3.3.2.3. A escola transpe ou cria seus prprios saberes? Tambm o historiador Andr Chervel considera a teoria da transposio

    didtica pertinente apenas ao campo da didtica das matemticas (1999b), porm

    motivado por outras divergncias que no aquelas apontadas no item anterior. No

    seu texto mais divulgado no Brasil Histria das disciplinas escolares: reflexes

    sobre um campo de pesquisa (1999a) Chervel no polemiza diretamente com

    Chevallard, porm apresenta uma proposio usualmente interpretada44 como

    antagnica teoria em questo: afirma que o estudo da histria das disciplinas

    evidencia o carter criativo do sistema escolar (ibid., p.184).

    Nesse artigo, Chervel no pretende realizar uma reflexo didtica e, sim,

    discutir sobre historiografia e teoria da histria, defendendo a irredutibilidade da

    histria das disciplinas de ensino s categorias historiogrficas tradicionais e

    tambm a necessidade de desenvolvimento de pesquisas sobre essa histria, com

    base em parmetros que reconheam tal especificidade.

    Sua discordncia em relao a Chevallard foi ressaltada e divulgada por

    Forquin, em artigo de freqente circulao no meio acadmico brasileiro As

    abordagens sociolgicas do currculo: orientaes tericas e perspectivas de

    pesquisa (1996) onde apresenta Chervel como alternativa a Chevallard para

    pensar a questo da constituio dos saberes, por conceber, em acordo com

    Chervel, que a escola cria configuraes cognitivas verdadeiramente originais

    (Forquin, 1996, p.195).

    No entanto, Chevallard, a meu ver, no nega que a escola possa tambm

    criar os saberes com que opera:

    Algumas vezes, porm (e com maior freqncia do que se poderia acreditar), so verdadeiras criaes didticas, suscitadas pelas necessidades do ensino. (foi

    44 Em outro artigo, de menor circulao no Brasil Lcole, lieu de production dune culture (1999b) Chervel confirma essa interpretao, debatendo explicitamente com Chevallard. Expe, ainda, outros pontos de divergncia com Chevallard, que no sero abordados neste relatrio de pesquisa, por no terem encontrado repercusso significativa no Brasil e tambm por serem apontados pelo prprio Chervel como discordncias secundrias: questiona a concepo de saber de Chevallard; defende a importncia da investigao do que chama de saber retido, aquele que o estudante de fato incorpora; e considera o conceito de disciplina mais relevante do que o de saber para a pesquisa da ordem didtica.

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    assim, por exemplo, no ensino secundrio francs, do grande cosseno e do grande seno). (Chevallard, 1991, p.40; grifo meu)45

    Ambos os autores, portanto, reconhecem a possibilidade criativa da escola,

    divergindo quanto freqncia e ao peso dessa criao: enquanto para Chevallard

    tal atuao eventual, para Chervel, a escola a responsvel pela produo de

    contedos de ensino, de disciplinas (Chervel, 1999b, p.197)46.

    interessante observar que Chevallard reconhece tais criaes didticas,

    sem explicitar a identidade dos seus autores seriam os agentes da noosfera? No

    chega a esclarecer esse ponto, o que seria importante para este debate, pois caso

    considerasse a noosfera como responsvel pela criao desses saberes originais,

    estaria novamente se afastando de Chervel, que no concorda com a existncia de

    tal esfera de manipulao dos saberes. Esse autor critica tambm a falta de estudos

    histricos para sustentar essa proposio de Chevallard, afirmando que suas

    pesquisas acerca da histria da constituio da gramtica no indicaram a atuao

    desses agentes, tendo sido criada na prpria escola.

    Sem discordar da necessidade de estudos histricos acerca da constituio

    das disciplinas que, por certo, podem vir a proporcionar interessante contraponto

    teoria da transposio didtica, questiono a universalizao dos resultados da

    pesquisa empreendida por Chervel. O fato de suas investigaes no terem

    apontado para a existncia de uma instncia como a noosfera no pode ser tomado

    como evidncia conclusiva da impropriedade dessa formulao de Chevallard.

    Anhorn (2003), por exemplo, desenvolveu, em sua tese de doutorado, interessante

    estudo sobre a elaborao dos Parmetros Curriculares Nacionais de Histria,

    como exemplo de noosfera em ao.

    A meu ver, as crticas de Chervel no abalam os fundamentos da teoria da

    transposio didtica, porm tm o mrito de ressaltar a urgncia de mais estudos

    histricos sobre os saberes escolares. Por outro lado, apesar de no questionar a

    possibilidade de produo autnoma da escola, acredito que a imagem de uma

    escola criadora de todos seus contedos a serem ensinados, ou mesmo de uma

    parcela mais significativa desses contedos, no corresponde, pelo menos,

    45 Traduzido do original em francs: Quelques fois cependant (et du moins plus souvent quon pourrait le croire), ce sont de vritables crations didactiques, suscites par les besoins de lenseignement (il en fut ainsi par exemple, dans lenseignement secondaire franais, du grand cosinus et du grand sinus). 46 Traduzido do original em francs: contenus denseignement, de disciplines.

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    realidade atual brasileira. Provavelmente, o grau de autonomia criativa escolar

    depender da disciplina em questo e do contexto sociohistrico em que se insere

    o sistema didtico que a abriga.

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