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Chicos 37

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Chicos N. 37

Fevereiro 2013

e-zine de literatura e ideias de Cataguases – MG

Capa

De Gabriel Franco sobre foto de Vicente Costa

Editores

Emerson Teixeira Cardoso

José Antonio Pereira

Colaboradores desta edição

Antônio Jaime

Antônio Perin

Claudio Sesín

Emanuel Medeiros

Fernando Abritta

Ferréz

José Vecchi

Ronaldo Cagiano

Rubens Shirassu Jr.

Sebastião Nozza Bielli Lotti

Fale conosco em:

[email protected]

Visite-nos em:

http://chicoscataletras.blogspot.com/

Um dedo de prosa

Esta é a edição número 37 de 28 de fevereiro de 2013.

Devemos desculpas ao Cunha de Leiradella, na última edição

cometemos um erro imperdoável. Erramos o título de sua

colaboração, o correto é Memorial em tons de azul, quem não leu

retorne ao blog e dê uma olhada em nosso número 36.

Um dos jornalões paulistas publicou um inédito do João

Antônio, repartimos com vocês o conto.

Apresentamos Badr Shakir Al Sayyab um poeta iraquiano.

Quem estreia por aqui é o artista plástico Sebastião Nozza

Bielli Lotti, o Slotti

Trazemos aos nossos leitores Ferréz, escritor paulistano

que tem como matéria prima a periferia da nossa maior metrópole.

Como defendemos o ensino da língua espanhola em nossas

escolas, publicamos, em espanhol, a poesia de Claudio Sesín -

grande poeta e amigo - lá de Catamarca na Argentina.

Reaparecem também aqui Emanuel Medeiros e José Vecchi

A edição está recheada de boa prosa e ótima poesia.

Uma boa leitura para todos.

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Badr Shakir Al Sayyab

Badr Shakir Al Sayyab nasceu em 25 de dezembro de 1926 na aldeia de Jaykour (distrito de Abu Al Khasseb na província de Al Basrah) no sul do Iraque. Jaykour é a paixão da vida do poeta. 1926 é o ano em que fixam a fron-teira com a Turquia, perto da queda e divisão do Império Turco entre os aliados da Primeira Guerra. O Iraque é tutelado pelos ingleses. Sua mãe morre durante o parto de uma irmã que nasce morta. O pai, casa-se novamente e deixa os filhos com o avô. A poesia, surge em Basra, para onde mudara com sua avó materna para cursar o ensino médio. Transfere-se para Bagdá em 1944, onde entra na Faculdade e frequenta o curso de Língua e Literatura Árabe. Em Bagdá, desenvolveu duas qualidades de sua personalidade, que eram visíveis desde a sua infância e adolescência: sua ideologia de compromisso social e a postura poética. Filia-se ao Partido Comunista do Iraque. Luta pela retirada das tropas inglesas do Iraque e por uma resposta mundial aos assentamentos maciços de judeus na Palestina. Devido à sua atividade revolucionária é preso várias vezes até ser expulso em 1946 da Faculdade. Readmitido mais tarde muda de especialidade e em 1948 forma-se em Inglês e Literatura. Por razões políticas é obrigado a deixar o Iraque. O exílio, leva-o a pensar sua ideologia e

postura comunista e inspira vários de seus poemas mais famosos. Seus poemas, A prostituta cega e Armas e crianças de 1954, revelam o poeta maduro. Em 1960 publica: A canção da chuva onde apresenta poemas escritos desde 1952 e representa o melhor de sua obra poética. No início de 1961, viaja de Bagdá para Basra, onde seu terceiro filho nasce, ocasião em que a doença paralisa sua perna esquerda. Em sua busca desesperada por uma cura começa uma longa jornada que se torna o seu calvário até a morte: viagens ao Kuwait, Bagdá, Londres, Paris, tratamentos modernos e hospitais, curandeiros, contatos com seitas religiosas... Investigando todas possibilidades e sempre por trás, sua poesia, testemunhando sua luta desesperada. Suas últimas obras: do templo rebaixado (1962) e A Casa dos Escravos (1963) testemunham a sua morte lenta, dúvidas sobre a morte, sua incerteza em relação à vida. Deprimido e entregue ao seu destino, volta para o Iraque em 1963. Agravada sua saúde, é transferido para o Kuwait em 1964, morrendo em 24 de dezembro de 1964. No dia seguinte é enterrado em Basra, no mesmo dia, publica-se sua última obra As persianas da filha do Marquês , onde plasma com intensidade assustadora seu terror, seu vazio e ansiedade. Agora, sua poesia é puro existencialismo.

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O poeta maldito

a Charles Baudelaire

Você, leva à luta tua espada enferrujada,

agita-a na mão quase queimando o céu

pelo teu sangue inflamado e iluminado

querendo rasgar o ar.

Reúne-se às mulheres

a uma mulher cujos lábios são de sangue sobre o gelo

seu corpo enganosamente ingênuo

uma víbora caminhando, sobre almofadas no leito...

Não queres

abrir as clarabóias para que entre a luz,

para não sentir o que é vida.

O Oriente alça ante teus olhos os véus,

quase abraças a beleza junto ao trono de Deus,

quase a vês

reluzir em uma nuvem de fragrância e luz.

Vês o mamilo de um seio que acende as estrelas

com seu rubor ...

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Os efeitos que saem

de uma tumba, arrasta a nuvem de fumaça,

em sua sombra dorme um pobre fugitivo

um príncipe cercado por jarros de bebidas e escravos,

sua grandiosa morada em ruínas

é uma das ilhas de coral,

mar que purifica Lesbos com sal.

Teu espírito o bebe do eco ao abismo

como Safo herdarás um fogo nas veias,

mas não abraçará a ti e teu sono eterno

como quem abraça o seu espectro debruçado em uma janela.

Fogo de Narciso! Tântalo e os frutos!

Se diria que a indolente e lânguida África

(seus caudalosos rios, os atabaques,

suas densas florestas de sombras e chuvas,

sua seca umidade... a lua)

se envolvera com uma mulher que perdeu a honra,

mamando dela veneno e chamas

e sobre ela pingarás tua estranha poção ...

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Se diria que da nuvem de fumaça na noite

te alçarás, entre um mundo que estendem o faiscar do ouro

e um mundo de imaginação e pensamentos,

de um muro de embriaguez,

onde tua sombra aconchegara sem ferir a humanidade.

Entrei pelo teu pecaminoso livro

no jardim de sangue que arde com as flores,

bebi o néctar de suas letras,

seios de uma loba nas estepes,

seu leite é fúria

e sua sombra fecundidade.

Submergi, nas ondas que me golpeavam

atirando-me de uma márgem para outra margem.

Levei do seu abismo a madrepérola do castigo

Eu levo a ti.

Estenda-me as mãos!

Afaste as pedras e a terra!

Basra, 24/03/1962

Versão de Antônio Perin

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Janela de Wafiqa

A janela de Wafiqa na aldeia

ébria, domina o espaço

como a Galiléia espera caminhar,

espera Jesus. Dispersa suas paisagens.

Ícaro, roça o sol

com penas de águia. Sente-se livre.

Ícaro, pega-o, o horizonte

o atira até as profundezas, à sepultura.

Janela de Wafiqa, oh, árvore!

Respirem na escuridão crepuscular

os olhos que junto a ti esperam.

Espreitam a flor da maçã,

Buwayb é um hino

e o vento devolve

as melodias da água sobre as folhas.

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Wafiqa olha penalizada

das profundezas do túmulo e espera:

passar o murmúrio do rio

a sombra que ondula qual sino

a alvorada de uma festa,

assoviar qual sopro nas sementes.

O vento devolve

as melodias da água. É a chuva.

E o sol gargalha entre as folhas.

És janela rindo no brilho?

Ou porta que se abre na parede

para fugir pelas asas da fragrância

um espírito que anseia pela luz?

Oh rota para ascender ao coração!

Imagens de amizade e amor!

Caminho que sobe ao Senhor!

Se não fosse por ti não viria da aldeia ofegante.

No vento um perfume

pelas ondas do rio nos arrulha e nos canta.

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Ulisses se vai com as ondas,

o vento lembra ilhas esquecidas:

"Da velhice, vento, livrai-nos!"

O mundo abre sua janela

a partir desta janela azul

torna-se uno, torna-se seus espinhos

flores de perfume delicado.

Uma janela como se estivesse no Líbano,

Uma janela como se estivesse na Índia,

sonhos de uma menina no Japão

como Wafiqa sonho no sepulcro

com raios verdes e trovões.

A janela deWafiqa na aldeia

ébria, domina o espaço

como a Galileia sonha caminhar

sonha com Jesus.

Ardem suas paisagens.

Wafiqa - Parente e companheira de brincadeiras do poeta em sua infância.

Poemas de: O Templo Submergido 1962 Versão de Antônio Perin

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Fernando Abritta

O nó górdio (recortes)

entre o ato e o fato

Existe

entre o ato

e o fato

existe

entre o ato e o fato ex iste

entre o ato eo fat existe o Eof

entre o ato

e o fato

Existir

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o relógio de ponto olhos arregalados

que nada vêem coração dispara

todos os músculos trabalham desordenados

desesperado cérebro pergunta as horas

soma tempo de viagem confere hora do coletivo diminui minutos do café

confere roupas documentos braços se cansam

dependurados corpo se choca a muitos outros com a freada ouvido tolera

xingatório pernas correm

pesadas mãos na alavanca

E odiado estrondo do ponto batido me acorda para menos um dia de que me valem estas horas se minha filha está presa em uma escola onde aprende a ficar sozinha sem chorar se meu filho chora no ouvido de quem nem conheço se minha mulher estica na feira meu salário se o que aqui faço não consigo ter.

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na fila conversa encurta

tempo perdido ritmado pelo barulho

do relógio de ponto na fila

conversa comenta corpo doido

enquanto espera a comida na mesa

conversa ajuda engolir sem sentir

arroz feito sem amor

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quantas horas? o corpo grudento equilibra ideias.

meia hora? a luz é sempre a luz invariável neste dia artificial.

quantas dores? esticar pernas

devagar espichar braços

vigilante.

quantas horas? olhos vermelhos olheiras.

vinte minutos para a sua hora?

sorriso pálido salgado de suor.

quantas horas para a liberdade?

suor derrete corpo

em calor mão cola no

papel.

lá fora sol.

pensamento escorrega

lápis ventilador

sopra espirros.

lá fora árvores

refrescam uma rua vazia.

bravamente olho resiste

manhosamente pálpebras descem

violento cérebro reage

pálpebras correm olho ao trabalho.

lá fora céu azul termina em

morros azuis e, certamente,

um córrego corre

por entre pedras lisas e lodosas.

o chefe passa lá fora não existe.

quantas horas?

a tarde vem a brisa

refresca.

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tirei do trabalho a emoção do dia horas vendidas da vida o cansaço e pude ver o que me dói e quem me fere.

o ferrão e dente que me sangram.

vivi noites e feriados e já me acostumara com minhas mãos e meu cérebro vendidos.

entendi ausência de conforto e dinheiro curto e me revoltei resignado

até que facilidade de aumento extra negado, me pôs de novo rugindo

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CASA GRANDE:

Não gosto desta casa paredes altas belas salas

não gosto

me causa mal cansa

faz doente

lago + jardins + árvores e o peixe colorido em seu nado quadrado

Oprime O peitO minha colunA. não.

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[ ]

[ ] Quem pela senzala passa

[ ] leva consigo marca

[ ] que muito fala

[ ] lava

[ ] rala

[ ] origem que não cala.

[ ]

[ ] Se na casa grande,

[ ] é mudo:

[ ] impossível ao tom da sala;

[ ] faminto:

[ ] indomáveis garfo e faca;

[ ] mãos e pés desajeitam,

[ ] dançam num corte,

[ ] recorte na corte,

[ ] incapazes.

[ ]

[ ] Se na cozinha resvala,

[ ] inútil fala

[ ] presença invisível

[ ] pigarro e cala.

[ ]

[ ] Quem pela senzala passa

[ ] traz consigo chaga

[ ] por mais que faça

[ ] nada apaga.

[ ]

[ ] Pra casa grande

[ ] traz budum

[ ] catinga

[ ] desconfiança na sala.

[ ]

[ ] Quem pela senzala

[ ] passa

[ ] é não confiável

[ ] ao povo da sala.

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Tamara Kamenszain

Tamara Kamenszain nasceu em Buenos

Aires, Argentina. É poeta e ensaísta.

Pertence, junto com Arturo Carrera e Nestor

Perlongher, a geração de poetas dos anos setenta.

Entre seus livros de poesia estão De este lado del

Mediterráneo, Los No, La Casa Grande, Vida de living,

Tango Bar, Solos y solas e La novela de la poesía, os livros

de ensaio El texto silencioso, La edad de la poesía, Historias

de amor y otros ensayos sobre poesía e La boca del testimonio.

Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês,

português e alemão.

É considerada uma das vozes que influenciaram as

novas gerações de poetas

O poema Tango Bar foi traduzido por Ronaldo

Cagiano

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Tango Bar

(...)

A simpatia dele pelo diabo

é o ninho de minha antipatia.

Assusta-me e aborrece-me

tudo o que está mal

no bom sentido

da palavra. Pecado,

pecado seria então

seguir a ele tão longe

quando jura e perjura

que estamos perto.

Mamãe, papai, fui

com este mauzinho crioulo

e na cruz de seu poncho

me dei por perdida.

Será possível que em minha religião

sozinha

atrás de um homem

Eu sempre sinta frio?

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(...)

Outra vez no bar das mulheres

tomo o cálice do esquecimento

“O tango é macho”

cantam minhas amigas

mas como o tango

elas são musas tristes

ou vêm

como bonecas murchas.

E a julgar por mim

(tão esquecida de mim!)

não sei se nós agora

formamos uma orquestra

de senhoritas

ou se são eles os rapazes de antes

os que agora tocam de ouvido

nosso repertório

enquanto nós

antes de esgotar o copo

já cantávamos mal.

Tradução Ronaldo Cagiano

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Claudio Sesín

Claudio Luis Sesín nasceu em 9 de junho de 1959 em Villa Dolores, Velle Viejo, cresceu e passou sua infância em Pomán, província de Catamarca – Argentina. Publicou entre outros: La Barbárie (1993) El círculo de fuego (1997)

El libro de los poemas casuales (2008) este em edição bilíngue espanhol-português Palabras Sencillas (2010). Foi colaborador da revista Ideas para uma cultura popular e integrou a redação do periódico cultural El Croponopio - do Movimiento de Escritores por la Liberación – MEL.

Cuaresma

La hora que aquí es, no está en el tiempo.

La brisa,

esa mendiga de tan suaves gestos

se parece a una idea ofreciendo cariño.

Y al fin, es la memoria,

la última armonía de una canción lejana

perdiéndose en la noche

de un carnaval

estremecido.

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Carnavalearte

Tomamos los suspiros de la noche

a la hora que cumple su presencia

y le ponemos luz para que encienda

nuestra penetración a las tinieblas.

Artistas trashumantes y traslúcidos,

llegan al puerto casual de los sin rumbo.

Hermosas

como novias corriendo en los pasillos,

ebrias hembras felices

de túnicas livianas y cabelleras frescas,

celebrarán las armonías y los acordes

que sólo traen piel,

de cuando el barro mezcla a sangre y fuego,

ese argumento de eternidad y hombre.

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Furtivas y cenizas, ligeras, insolentes,

acuden a esta fiesta de torbellinas almas,

las mismas locas locas, de cuando loca es santo,

y redimen sus vidas, ahora celebradas.

Aquí los laberintos son presurosas risas y suspiros.

Aquí cruzamos los umbrales de cálidas maderas,

y en aguas transparentes, blanca estrella,

y en los cuerpos luciérnagas,

y en los labios la sed que hace encender al cielo,

y en el aire ese aroma

que esparce y enrojece la idea del instinto.

Siempre es feliz la piel lanzada en torbellinos,

que abraza las cadencias y las libera,

agua marina, almendra y chocolate,

en el aire, en la lengua, en los amplios momentos,

en los pequeños.

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¿Qué latitud aguarda

esa dulzura turbia que precede al orgasmo?

¿Qué humo se consume al pensamiento

en un fulgor de gloria sin fracasos?

Signos del cielo en invisibles trazas,

sangre apretada al flujo y tremolar de los sentidos,

canción urbana a nombre de un buen vino.

Golpeamos los cinceles en las piedras

que un día rotarán al infinito.

La mirada es de Dios sobre los cuerpos.

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Mirar el Mundo

Nuestro otoño es capaz

de enmudecer tejados, vertederos,

las afueras del hombre,

las extensiones puras y solemnes,

en donde no podremos llegar a los secretos

sin mirar los insólitos, fugaces y lejanos,

cómplices de belleza del mundo prometido

por las desposeídas constelaciones huérfanas.

Agua en la brisa

Ni quebrado, ni caído. Solo.

En el atardecer, soy árbol

que descansa esperando las lluvias

en tierras duras y de sol violento.

He vuelto de mi amor por las desgracias.

No hay remordimientos,

el humo es ciudadano y sin creencias.

Sigo esperando ese silencio amable

que sin reproches cruzaré la niebla.

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A Media Voz

Sueña la noche un sol en la llanura

para que el miedo tenga precipicio,

y cubra con el manto de lo limpio

este débil sostén de la cordura.

Pero retumban furias y locuras,

como un río entroncando sus crecientes,

excitando las guerras de la mente

por los extraños campos de la luna.

Por las nieblas del mundo emocionada,

el alma se despide del pasado,

y florece en mi suerte, a mi costado,

esta canción de sombras y de brumas.

Soy el que a media muerte fue tocado

y a media voz enciende la penumbra.

Claudio Sesín Catamarca - AR

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Emanuel Medeiros Emanuel Medeiros Vieira nasceu em

Florianópolis, SC, em 1945. Formado em Direito

pela UFRGS (1969), foi cineclubista, professor,

crítico de cinema, editor, vendedor de livros,

jornalista e funcionário público. Ativo militante da

política estudantil, foi dirigente do IEPES, embrião

da Fundação Pedroso Horta. Redator de discursos

parlamentares, foi membro do conselho editorial do

jornal “Movimento”, e correspondente em SC do

semanário “Opinião”. É detentor de diversos

prêmios literários nacionais. Tem 17 livros

publicados.

Homem diante do mar Homem diante do mar

(instância interrogativa).

Precária caravela.

E finita: a vida

Trapiche:

o homem só contempla

(desembarcado).

No estatuto da memória:

ele se interroga, nunca mais a ação.

No porto: a rapariga rosada estendeu um lenço.

Limo: foram-se a juventude, o trapiche, a rapariga, o lenço.

(Mátria: sou apenas um homem diante do mar.)

Desterro: instante convertido em sempre.

O homem desembarcado só pode viver de memória: diante do mar.

Page 27: Chicos 37

Atlântico

Imperfeitos,

singraram o Atlântico,

mãos ansiosas, mapeando novas terras,

bússolas afetivas,

acalentando sonhos distantes,

peles queimadas,

gosto de sal na boca

(tanto mar, tanto mar),

febre, malária, fibra e pranto.

Page 28: Chicos 37

Na cadeira de balanço –

depositário da memória da tribo,

contemplo a caravela de madeira, pai, mãe, tio

violinista,

um agregado louco,

penso no Atlântico,

velas ao vento,

astrolábios,

à beira do poço do passado,

que não passa nunca,

imanente no presente.

Mas proclamo – celebrante –

“terra à vista, terra à vista”.

(Alvíssaras!)

Emanuel Medeiros

Brasília - DF

Page 29: Chicos 37

Antônio Perin Antônio Perin nasceu em

Itaobim, migrou para Cataguases, onde virou

baiano, viveu alguns anos no Rio, morou um

bom tempo em São Paulo, e voltou a residir em

Cataguases, onde vive e escreve. Com sua

poesia, colabora e participa de nossas

publicações aqui no Chicos regularmente.

O silêncio de meu pai

As palavras que eu preciso

estão entaladas na garganta

de meu pai

como sementes na cal

elas não brotarão

não são palavras escritas

nunca vou ler

foram confinadas

na boleia do caminhão

esquecidas pelas estradas

algumas, talvez, depositadas

no ventre de minha mãe

sua maior paixão.

Seria eu uma destas palavras?

Page 30: Chicos 37

A imortalidade do tecelão

No caminho da tecelagem

pedras queimavam os pés

no tempo, que não sonhei.

Entre anestésicos e dores

vejo nas mesmas pedras

arderem pés de fiandeiros

rumo à mesma tecelagem.

Em filas de corredores

andei para os exames

Na sala cirúrgica onde

o escuro é todo branco

vi, sem apelação um juiz

de branco me condenar

Neste negro mundo branco

meu grito morre no silêncio

o ar é puro mas é mecânico

sopra de um tubo verde.

Daqui te vejo no quintal

pendurar minha imagem

tecida no branco algodão

branqueada na sanitária

para o desbote final.

Antônio Perin Cataguases MG

Page 31: Chicos 37

Ronaldo CagianoNoite em Cataguases

Noite em Cataguases.

Da Ponte Velha a inscrição de Virgílio batizando o metal.

Fachada desbotada da Casa Rama.

Ancoradouro no areeiro da Rodoviária. Flamboyants.

Da torre em forma de ogiva da Matriz de Santa Rita

Os olhos da escuridão denunciam

Que outros pecados implodirão o confessionário.

Pouca gente sem pressa, tantos homens dissimulados.

A algaravia nos trailers de cachorro quente: convulsão dos estômagos.

Um motociclista calunia a cidade que dorme!

Calmaria, meia-noite em ponto. O trem cargueiro deflora a insípida madrugada.

Cataguases sem festa dos silêncios das ausências.

Das imensas crateras na alma de seu povo.

Que não enxerga, nunca, homiziado nos becos solitários,

A tristeza hiperbólica dos operários imunes aos barcos que deslizam sobre o Pomba.

Cataguases, senzala sem promessa: das ilhas dos espíritos desertos.

E da feiura caótica e trevosa das enchentes

Ronaldo Cagiano São Paulo - SP

Page 32: Chicos 37

Emerson Teixeira Cardoso

Dois minicontos de mistério

Boa noite estranho

Abriu a porta subitamente com uma sensação de medo, pavor. Um olhar mais apurado o fez distinguir de sua janela um reflexo qualquer na lagoa: incrível! Onde já havia visto aquele rosto, pensou. Ato contínuo, fechou a janela. A porta que já estava entreaberta fechou também dando duas voltas na chave. Já dentro do quarto apanhou o machado. Agora, decidido a desvendar aquele mistério,

tirou do bolso a lanterna e acionou o botão da luz seguindo uma trilha em direção à lagoa amarela, morada misteriosa do horrível monstro. Mas que grande surpresa! Quando se aproximou da lagoa não viu nada além do seu próprio rosto que dentro da água se refletia e dentro da noite escura também refletida na água, a lua.

Page 33: Chicos 37

O cavaleiro da chuva

Preparava-me para sair, quando

ouvi os tambores do tempo anunciando chuva.

Imediatamente dei meia volta procurando

abrigo e armamento adequado para enfrentar o

inimigo terrível: a intempérie.

Armei-me de um capote, espécie de

vestimenta larga e obsoleta, que além de

impermeável cobria-me até os tornozelos – nos

sapatos, providenciais galochas. Não dispensei

nem o último acessório de meu estranho

aparato, portentoso guarda-chuva.

Assim devidamente equipado lancei-me à

aventura. Devia buscar nos ares a face do

terrível gigante – mas, ai de mim! O malvado

não aparecia.

Largas passadas levou-me a adentrar o

prédio do cinema e ali durante toda a sessão de

um filme tudo o que eu podia ver eram cortinas

se agitando. O monstro lá fora rugindo,

rugindo.

Findo o evento restava-me cruel

alternativa: permanecer ali no recinto ou sair

para enfrentar o adversário no seu próprio

campo de guerra. Eu levava a capa e o fatídico

guarda-chuva o que me parecia o bastante para

encarar a fera que rugia e soltava vermelhas

labaredas.

Durante todo o tempo que durou a luta

senti-me um verdadeiro cavaleiro medieval

com armadura e tudo. Levava a lança e o

escudo para o duelo com o dragão líquido e

gelado, que expelia golfadas gigantescas de

água pelas narinas

A batalha foi terrível: minha lança

brilhava a cada explosão dos trovões e ao

reflexo dos raios. Repito: foi uma grande

peleja. O tempo parecia não ter fim, mas como

um Cavaleiro da Ordem do Rei fui o grande

vencedor e o inimigo debandou soltando

rugidos de dor.

O céu apareceu estrelado. Olhei para o

alto e dei um grito de vitória depois da luta

mortal que travei.

Emerson Teixeira Cardoso Cataguases –MG

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João Antônio João Antônio Ferreira Filho, nascido em São

Paulo em 27 de janeiro de 1937, além de jornalista, é

considerado um intérprete do submundo e um bom

malandro da escrita e da literatura. Sua linguagem

rápida, suas frases curtas, lhe deram o título de criação

do conto reportagem. Suas obras retratam pessoas

marginalizadas, o proletariado, prostitutas e as figuras

da periferia das grandes metrópoles.

De origem humilde, veio de uma família de

comerciantes suburbanos de São Paulo. Teve que

aceitar diversos sub-empregos antes de ficar famoso

com o lançamento de seu mais lido livro de contos,

Malagueta, Perus e Bacanaço, publicado em 1963. A obra

foi um sucesso entre os críticos e o povão, que via sua

cara descrita nas páginas do livro, mas o interessante

sobre esta obra é a maneira como foi feita.

Em 1960 o livro teve os originais queimados em um

incêndio ocorrido na casa da família de João Antônio.

O escritor e sua família perderam quase tudo, mas,

crente de que precisava de dinheiro, João isolou-se

dentro da Biblioteca Municipal Mário de Andrade e

reescreveu todo o livro de cabeça.

Com o sucesso de Malagueta, Perus e Bacanaço, João

tornou-se jornalista e trabalhou no Jornal do Brasil.

Participou da fundação de uma das revistas mais

importante de sua época, a Revista Realidade, onde

publicou o conto-reportagem pioneiro do jornalismo

no Brasil. O nome do conto é Um Dia no Cais,

retratando o cotidiano dos trabalhadores do Porto de

Santos. Ainda fez parte da equipe da revista

Manchete, trabalhou no O Pasquim e outros órgãos

de imprensa que se opunham à ditadura militar.

Estranhamente, nos últimos anos da década de 60,

João muda radicalmente de vida. Sai do emprego,

arrebenta seus cartões de banco, vende o carro e

divorcia-se da mulher e passa a se vestir de forma

simples e despojada. Aparentemente influenciado pela

literatura beat, na qual os autores viajavam e

relatavam suas experiências, João rumou por cidades

brasileiras em 1978 e foi para Europa em 1985. Dois

anos depois, após ganhar uma bolsa de estudos,

mudou-se para a Alemanha e lá ficou até 89. Faleceu

no Rio de Janeiro em 31 de outubro de 1996.

Principais obras: Malagueta, Perus e Bacanaço (1963),

Leão-de-chácara (1975), Malhação do Judas carioca (1975),

Casa de Loucos (1976), Lambões de Caçarola (Trabalhadores

do Brasil!) (1977), Calvário e Porres do Pingente Afonso

Henriques de Lima Barreto (1977), Ô Copacabana! (1978),

Dedo-duro (1982), Meninão do caixote (coletânea) (1984),

Abraçado ao meu rancor (1986), Zicartola e que tudo mais vá

pro inferno! (1991), Guardador (1992), Um herói sem

paradeiro (1993), Patuléia (1996), ete vezes rua (1996),

Dama do Encantado (1996).

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A um palmo acima dos joelhos

Você não brigue comigo, pequena. E nem fique, sonsa, me encabulando com essa sedução de olhos mansos. Eu lhe conheço, dengosa. Que você nem era nascida. Então. Este calor derreia a gente, é fevereiro, começo de fevereiro no Rio, aguentamos mal e mal, pegajosos. E este suor. Mariuska, não fique boba. Não se ponha, toda ciúme, fula, por aqui, me rodeando e a medo, me palpando, esse modo inseguro de agoniada. Seus olhos suplicantes saiam de mim. Não queira agarrar os meus joelhos com a boca para, depois, pousar a cabeça neles. Não me pergunte com os olhos. Só estou perdido em mim, criatura, olhando a linha do horizonte. Nada, pequena, bobagem, é um nada. Ou é muito. Faz pouco, lá em cima, no apartamento, você fez a cena, feia. À toa, à toa. Abri a porta do terraço. Olhar alguma coisa nos varais e nas plantas, este verão tosta e castiga, este solaço... dei com os pardais ciscando feito galinhas sequiosas ou meio ladrões, rápidos, numa agitação procurando alguma aguinha caída daquela com que reguei as flores. Pulavam, precisados. Sofriam o calorão, vinham, gatunos, bicos abertos puxando a respiração. Então, uma alegria grande me entrou no peito. Eles são pequenos. E eu os saudei: - Ô, pequenininho, você veio me visitar? Voluntariosa, saída, ficou fera, ardida. Já lhe falei, o ciúme mata um. Rói e remói: é um-dois, verruma depressinha. Um-dois. Fique maneira. Nenhum sofrimento inútil. Estou tratando com os meus fantasmas, me deixe. Você, indócil, aguarde. Coração ciumoso, atrapalha, sua. Ansiosa, tenha modos. Qu’eu saiba ninguém dá jeito de domesticar um pardal, bicho avoado, entrão, toma o que

é dos outros e em gaiola não vive. Dizem, os pardais também cantam. E só cantam quando estão em turma. Nada a fazer com a pardalada. Deixá-los. Cumprem a sina que lhes é dada nas tardes e nas manhãs. Pardal nem anda; pula, pulula, andejo e voador, gorrião no mundo, os tenho visto por aí tudo, pardal urbano, sempre, inquieto, intrujão, metido, saído, mal lambido, bicão enfiando-se no que não é dele. E um, Mariuska, pode viver muitos anos, aqui, alhures, em Amsterdam, na China. Gatunam e, aí, gatunar é o modo deles. Nem me pergunte, de olhos, olhando para eles e, após, indagando os meus olhos, para que servem o pardal e o gato. Bem. Eles servem para nada e, também por isso, são música do mundo. Você me dança esses seus olhos vivos, que espetam e só faltam dizer. Digamos. Há de ser sempre, sabe-se lá, um trabalho garimpeiro o de descobrir por que uma pessoa, tantas idas e vindas após, e tudo passa tão depressa, acaba só. * * * Ouça. Tenho cada lembrança lá do morro e você nem era nascida. A vida lá no alto não era ruim nada. De pequeno, tropicava em alguns pedaços maus. Nada que me lembre do morro me chega sem os gostos. Será difícil esquecer o gosto de fel de chá para os rins, chá de carqueja empurrado goela abaixo pelas mãos de minha bisavó Júlia, apelidada Lula pela gente miúda, penca de bisnetos amulatados, mequetrefes, molecadinha impossível. Vó Lula, escura e geniosa, cabelos lisos mamelucos, quem sabe, na mocidade, sensual e com certeza supersticiosa e de arroubos imprevisíveis, acostumada mandona. Tratava filhos, uns trezes, netos e, depois, a bisnetaiada pela homeopatia. Os doentes não tomassem café. Não brilhei, fui razoável.

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Havia o campo de malha, o de bocha e o campinho de futebol, onde virei centro-médio. Não, corria um tempo em que não existia meia-armador. Era centro-médio. Chutava com os dois pés, cobria o meio de campo, recuava ou avançava conforme o andado do jogo e os mais atilados na posição, houvesse brecha, cavavam espaço e, pontudos, faziam gol. Eu, destro. De assim, para compensar, me treinei repetido e solitário, e tanto, na perna esquerda que, na sequência, pendia para abrir, armar jogo, lançador por aquele flanco. Bem. Quando a luz elétrica nos veio, o morro teve dois rádios por onde a vida do mundo, lá de fora, barulhava e chegava. Um, o rádio enorme da venda de dona Otília e de seu Augusto; outro, menor e simplezinho, da minha tia-avó Elisa, carioca, asseada, um capricho na organização. Os dois novidadeiros trazendo notícias, humor, radionovela, Jerônimo, o herói do sertão, Nhô Totico, a PRK 30, mel em chuvada de riso, que a gente alcançava do Rio de Janeiro, Maria Joaquina Dobradiça da Porta Baixa, portuguesa, espeloteada, casca-grossa e tão mangada. Terminavam os números musicais, uma voz ajuntava: entra o disco das palmas. Desabava o auditório e desabávamos no morro. Aqueles dois animadores foram primeiros; devo ter aprendido com eles que, de algum jeito, é preciso rir de si mesmo. Irradiação dos jogos de futebol, paixão. Febre mosqueteira, que o morro era, maioria inflamada, corintiano roxo e sabia, de cor e salteado a escalação preta e branca, que terminava na linha de ataque: Cláudio, Luisinho, Baltazar, Carbone e Mário. Ou Souzinha, dependendo, na extrema esquerda. Dessa linha atacante, cada minúcia sutil e muito singular, cada um de nós, molecadinha do morro, falaria uma semana. E, depois, mais uma. O que nos chegava. E vinham pela música as novas de outras terras, baianas, nordestinas, cariocas, nos fazendo imaginar, enfeitiçados, meio aos suspiros, mordidos de curiosidade, uma porção de vidas diferentes, nossas desconhecidas e mais rurais. Havia baianos e

cariocas no morro e, na empolgação deles, embarcávamos, mordidos. Não éramos tão urbanos. Para final, fazíamos paçoca no pilão, nossos curaus e pamonhas doces e não salgados como se diziam que eram os do Norte… a paçoca do morro, veja lá, levava carne pilada, o charque, o jabá. Essa, de carne-seca, era daqui. Da ponta da orelha. Batíamos o café em grão comprado nos armazéns na estrada de ferro. Tínhamos o cuscuz paulista, com palmito, ovo, camarão ou sardinha ou galinha, meio caiçara e admirado, falado. Invejado, sabíamos. Salgado, era primor, distinto do baiano, que é branco e doce. E do pernambucano - outra coisa. Bom mais ainda com manteiga, da salgada. Havendo manteiga-de-garrafa, se lambiam os beiços e se comia até ficar triste. Fazíamos a carne-seca com mandioca cozida quase desmanchando, e não frita. E não fique aí boba, pequena. Que tínhamos forno em que fazíamos pão de milho, broa de fubá, biscoito de araruta, bolos de farinha de trigo, assados em dia de festa. Havia cabritadas no morro e Vó Lula, prevenida, alma de quituteira, pedia aos santos nas vésperas paz para esses dias. Cabritada era risco. Poder, podia escorregar, destrambelhar para malsucedida armando brigas, ingresias, desfeitas, mexidas, confusões. Fuá. Podia dar bode num forrobodó-de-cuia, rebordosa arrevesada, uma cabritada. Então, devagar com o andar, que o santo é de barro. O seguro morreu de velho, mas a prudência foi ao enterro. Rogar aos santos, assim, era de lei. Doce de marmelo, de goiaba, de laranja, de abóbora, de cidra, de limão, de coco, bananadas, ameixadas de ameixa amarela e não da preta fumegavam no fogão a lenha e Vó Lula, pontificou plena, principal. Esclarecia. Para a cozinha era preciso mão. Ninguém se gabasse diante dela, que mãos cutubas tinha ela, mãos de rainha, dona, adonada, sabedora.

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José Antonio Pereira

Olha eu na foto

Ontem me vi numa foto de jornal. Está com inveja? Estava em uma badaladíssima festa. Sem ressentimentos! Não é preconceito não. Mas, gente chique é outra coisa. Olhe bem para a foto. Só gente bonita. Parece que a beleza é a maior parceira da riqueza. Festa já varando pela madrugada. Eu lá firme. Presta atenção! Quem ainda está impecável? Alinhadíssimo. Claro que é eu. Estilo despojado, sem relógio, cabelos bem aparados e corpo ereto. Entreouvia o diretor de um banco, tentando ser próximo da senhora da casa, ironizava os extorsivos juros cobrados. Nunca entre em uma agencia bancária. Não passe nem mesmo em sua calçada. E eu continuava andando entre os convidados. Era sempre assim em recepções de famílias tradicionais e riquíssimas, eu vestido em meu impecável linho braspérola, engomado, lavado e passado todos os dias. Na casa dos Bitencourt, local da festa na foto, Dona Dalva não permitia perfumes, era proibido. Ela, com requinte, batia palmas compassadas, para chamar os serviçais. Tinha o topete de mandar o Armando, seu mordomo, cheirar todos os empregados para ter certeza que sua proibição era respeitada. Botava reparo até no aparado das unhas. Na cozinha, não sei se por ressentimento, Nanete, uma ajudante dizia: Armando é vinte anos, mais novo que a patroa. É o bichinho de estimação favorito dela. Cheia de veneno: Principalmente nas ausências do Doutor Bitencourt. Vai aí um

pouco de despeito. No final da festa dos cinquenta anos de casamento dos Bitencourt. Procurando um champanhe, entrei na dispensa. Vi Nanete de quatro e Armando corcoveando-a com o desembaraço de amantes bastante íntimos. No casamento da filha dos Castro Lima, outra família de potentados, parecia-me que os herdeiros de toda a riqueza da cidade estavam presentes. Um horror! Quem não pertence ao meio, está ferrado, vira mobília, é invisível. Herdeiros são terríveis. Deitam e rolam, são cruéis com os que não pertencem a sua casta. Enquanto bebem, fazem piadas vis e grosseiras com seus empregados e todos os de baixo. O Lula então? Onde já se viu? Um presidente, pobre, retirante cabeça chata e operário. Isto é um absurdo! Só num país fodido como este tal barbaridade acontece! Jussara, mulata bonita e atraente trabalha para a família Castro Lima. Assediada e abusada pelo patrão, é mantida no emprego sobre ameaças dele. É constantemente humilhada e perseguida pela patroa. Nesta festa, Jussara e outras mulheres que trabalhavam no evento, sofreram o diabo nas mãos dos herdeiros já entupidos de cocaína. Como sei de tudo isto? Olhe novamente para a foto. Ainda não me achou? Ninguém me nota. Sei que em todo lugar é assim, sou invisível. Olhe bem, no canto direito da foto, ao lado do diretor do banco. Isto! Este mesmo! Por que o espanto. Eu sou o garçom.

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Rubens Shirassu Jr. Ilustrador e escritor Rubens Shirassu Jr paulista de Presidente Prudente é autor de entre outros de Cobra de Vidro (poemas,2012) Religar às Origens (artigos e ensaios, 2011); Mais Molho e Menos

Peixe (crônicas, 2004) e Muito Macho na Cozinha e Outras Crônicas (2010)e Novas de Macho na Cozinha e Outros Ingredientes II (Clube de Autores, 2012).

Fora da hora

Enquanto o bafo do mormaço bate em meu rosto, ouvi apenas o canto de um galo rompendo o silêncio preguiçoso da tarde. Nem sei de onde viera, só sei apenas que estava próximo de minha casa. É apenas um galo e seu canto que trazia um clima brejeiro, de sopro vida e, isso dá uma alegria e tem uma beleza de vida simples, natural e ingênua, sem compromisso. É um momento apenas.

Só sei que havia um sol escaldante e, apesar do calor sufocante, que embaralhava meus pensamentos misturando-os a um som que passa desapercebido no turbilhão de pensamentos, de pernas e veículos correndo que giram a máquina registradora do mundo da civilização. Em meio aos recursos visuais das placas e fachadas, aos múltiplos sons, a cena se perdia.

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Será que alguém nota o galo que canta numa tarde, em plena zona norte da cidade? Como uma figura campestre e exótica em contraste com a selva de cimento, aço, plástico e antenas. Esse nosso personagem foge da coreografia da sinfonia concreta, porque traz uma natureza morta em nosso horizonte sujo, embaçado pela fuligem dos escapamentos e chaminés, talvez, seja um cantor para despertar... Por que aflora dentro de mim, uma imagem adormecida, em sono profundo, quem sabe, anunciando um verde esperança? Eu tentava fixar o galo com os olhos do espírito, ao jogo de intensa luz. Pode ser um momento feliz, e em si mesmo talvez fosse, e aquele singelo quadro da natureza morta me fez bem, mas uma fina, indefinível angústia me vem misturada com esse fenômeno sonoro e fotográfico. Devo estar saudoso de minha infância na Vila Marina e no Parque São Judas Tadeu, quando o galo cantou às 15h50. Mas deixei minha pouca alegria para mirar com um vago sorriso perdido no espaço. Era um instante de graça e felicidade. Um momento de raro prazer sonoro. Senti a necessidade de mostrar aquele fato raro às pessoas que prezo: “Escutem, o galo cantar a essa hora...” Mas, o prazer daquela audição me bastava. Porém, refleti que mostrar por mostrar ou, quem sabe, para repartir aquele instante de beleza como quem reparte um doce, como sinal de estima e de simplicidade; em sinal de comunhão ou, talvez, para disfarçar o mal-estar com o vazio da vida atual. Aquele som tão vivo era todo solto, de meus ouvidos, uma palpitação no coração. Eu queria me aproximar, aquele galináceo que anda sem rumo e seu canto, passando entre a cortina branca que realçam os objetos em cima da mesa e a parede creme. Mas, a barra do dia entre a cortina era uma vaga música dos tempos do chão de terra, a cerca de balaústre e a mornidão da rotina dos dias interrompida pelas boiadas guiadas pelo tropeiro, o aroma característico de fumo de rolo parado no ar misturava a poeira amarelada que pairava no ar. Na segunda-feira de carnaval, havia nuvens leves, espalhadas em várias direções, como se durante a noite o vento seco, semelhante a

agosto, tivesse dançado ateu no ar. Depois, aos poucos, foi se acendendo um carmesim, de cigarro de palha de milho, e sob ele o mar de concreto espalhou o cheiro de roça. Imaginei o calor das famílias na varanda, arrumando casamento e a vida alheia, do jeito de tribunal do júri, prestando contas no confessionário do padre da paróquia, deixavam o galo, orgulhoso e soberano no terreiro e galinheiro. Mas o bem-estar leve, quase suave, como se eu tivesse, de repente, despertado de um transe profundo, trouxe-me um pensamento que aprendi com os antigos vizinhos e coleguinhas de escola: os galos cantam entre às 4 ou 5 da madrugada, na alvorada de um novo dia, sinalizando a hora do retireiro ordenhar as vacas no curral, enfim, os compromissos da gente do campo. Será que o desrespeito do homem com a natureza onde ocorreram as mudanças nas estações do ano, o excesso de asfalto que interferiu no escoamento da chuva, o desmatamento das florestas, a poluição dos rios, a migração de aves e animais à área urbana, alterou o relógio biológico dos galos entre outras espécies da fauna? Um garoto dirá que o galo ficou desconfigurado! O sentimento era de que aquele momento luminoso e poético soa como um alerta. Dentro de minha cabeça houve um torvelinho de milhões de pensamentos misturados aos tons pretos, cinzas de tristeza e perplexidade expostos nesse quadro impressionista.

Rubens Shirassu Junior Presidente Prudente –SP

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Antônio Jaime

Produtores de fitas

Gente mais antiga no meio

cinematográfico chamava filme de fita, como se

sabe. E cinema, a sala de projeção, era casa. Daí

que, na filial da Embrafilme em São Paulo, ouvi

o gerente falando ao telefone: “A fita dos

Trapalhões dobra em Ribeirão? Nas duas

casas?”. Por lei, se uma fita atingia a freqüência

média numa casa, reprisava na semana seguinte

e por isso A noviça rebelde ficou 53 semanas em

cartaz no Cine Palácio, no Rio. Já O anunciador,

uma semaninha, no Paissandu.

Produtor que chamava filme de fita, só

conheci Mario Falaschi. Ele e seu irmão tinham

um hotel na Itália, onde se hospedava uma

família paulistana. Gostou de Brasilina, uma das

moças daquela família, veio para São Paulo e

casou-se com ela. E com a leva de italianos que

vieram fazer a Vera Cruz, entrou para o cinema,

mudando-se depois para o Rio. Luxento, tipo

contratar Ângela Maria ou Carlos Galhardo para

cantarem no aniversário da filha, em sua casa.

Quando morreu, o médico contou à filha que

tinha uma frase tatuada no piru: Tutto per te.

No Rio, as produtoras às vezes nem tinham

água de beber, já em Sampa rolavam queijos e

vinhos, por aí, depois das reuniões. Ou um café

caprichado no Maksoud Plaza. Gostaria de ter

conhecido lá o produtor Primo Carbonari, nome

de mafioso, mas fiquei com Aníbal Massaini,

Enzo Barone, Assunção Hernandes e César

Mêmolo Jr. Este, puto com o fracasso de O

Homem do Pau Brasil, de Joaquim Pedro de

Andrade, e Ato de Violência, de Eduardo

Escorel, decidiu nunca mais produzir cinema, só

comerciais de TV.

Page 41: Chicos 37

Mas cumpriu o doloroso dever de ressarcir

a Embrafita (êpa!) por aqueles rombos. O

normal era rolarem a dívida, contando com um

sucesso futuro. E nem todos tinham dinheiro

vivo ou o caráter de Mêmolo.

Em geral, todo cineasta abre uma

produtora, para facilitar as coisas. Daí alguns

folclóricos, como um tal William Cobbett. Parece

pseudônimo, mas era seu nome, mesmo, e

cearense. Ganhou uma boa grana distribuindo

aqueles filmes russos que vimos pré-64 e

produzia uns abacaxis, tentando vendê-los como

arte. Mesmo gente de mais prestígio, como os

Farias, não escapava das más línguas. Diziam

que Roberto ia à missa todo santo dia, pagando

pecado, por viver em concubinato e, nos fins-de-

semana, toda a gang se reunia em Friburgo, para

a missa-mor, com a matriarca da família. Me dei

bem com eles, disseram que em 30 anos de

produtora ninguém entendeu melhor o que

queriam dizer. Obrigado.

Agora, a barretada. Deu para perceber que

são muito francos e não de todo elegantes. Estive

“n” vezes na casa deles e, numa delas, subi de

elevador com Lucy, Luiz Carlos e uma vizinha,

que levava um ramo de flores. Lucy tapou o

nariz: “Que cheiro horrível”. E Luiz Carlos:

“Cheiro de jasmim”. E ela: “Cheiro de defunto,

isso, sim”. Na cara da mulher, fiquei com

vergonha por eles. Comigo, tudo bem. Só estive

uma vez com Bruno, outra com Fábio e várias

com Dona Lucíola (mãe de Lucy), a “Vovó

Donalda”, porque fazendeira em Goiás, sócia do

Unibanco, por aí.

Mais uma: na première de Bye Bye Brasil,

no Rian, chegou de surpresa um amigo

americano de Barreto. Gente até no chão, o jeito

era desalojar alguém e ele escolheu uma mulher

desacompanhada: “A senhora é penetra? Cadê o

convite?”. Betty Faria ouviu e acudiu: “Quê isso,

Luix Carlox, é a Josefina, peça dexculpax”.

Ninguém menos que Josefina Jordan, ícone da

sociedade carioca. Ibrahim, Zózimo e outros

deitariam na sopa e o cinema tupiniquim, já tão

sem cartaz, pois é.

Antônio Jaime Soares Cataguases –MG

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José Vecchi

José Vecchi de Carvalho nasceu em

Cataguases, atualmente mora na cidade de

Viçosa, aqui mesmo na Zona da Mata Mineira.

Um dos autores de A Casa da Rua Alferes e

outras crônicas. Com suas crônicas e contos é

dos colaboradores do Chicos desde suas

primeiras edições.

Anatomia das pernas

Inesquecíveis pernas. Tão presentes em

meus pensamentos e visões que vez por

outra causam-me tamanha desordem, ao

ponto de eu me deixar levar por

devaneios, urdindo esdrúxulas

comparações.

Dias atrás, num pequeno espaço

de tempo concedido involuntariamente

pelo descuido do chefe da seção onde

trabalho, vieram-me à memória as pernas

de Tom Hanks, digo, de Forrest Gump, o

obstinado contador de histórias que

Zemeckis fez correr por um país inteiro,

ultrapassando tempos e fronteiras.

Pernas que zombaram da insensibilidade

e dos preconceitos.

Hoje mesmo, após o almoço, sem

mais nem menos, lembrei-me das pernas

inesquecíveis do Mané Garrincha: tortas,

desengonçadas, pareciam se chocar uma

na outra, mas com uma habilidade

invejável.

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Os dribles desconcertantes deixavam

perplexos não só os adversários, mas

também, os companheiros, o treinador e

todos os torcedores presentes nos

estádios. Pernas mágicas que pareciam

brincar com a bola, com o jogo, com as

pessoas; pareciam rir de tudo e de todos,

não com desprezo ou superioridade, mas

com um jeito ingênuo e moleque; era um

bailar ilusionista que confundia o mundo

num piscar de olhos e arrancava suspiros

e aplausos nas arquibancadas.

No entanto, essas famosas pernas

vêm-me à tona sem o menor nexo com as

que, de fato, me impressionaram ao

ponto de eu ter que despejar no

inconfidente papel minhas perturbadoras

sensações. Omito o nome da dona não

por alguma razão que alguém possa dizer

que seja óbvia, aliás, não existe nada de

óbvio na omissão de um juízo diante de

uma obra-prima. Omito porque tenho a

impressão de ver essas pernas com outras

donas; e também, por alimentar a ilusão

de guardar só para mim a deliciosa

sensação que tive. Aproveitando a seção

das justificativas, peço desculpas aos

estudiosos da anatomia humana, mas

trato aqui das pernas e das coxas sem

separação; unidas não só pelo joelho, com

sua belíssima articulação gínglima, seus

tendões, ligamentos e meniscos, mas pela

harmonia entre as partes que provocam

em mim a impossibilidade de vê-las ou

imaginá-las separadas. Separá-las seria

rasurar uma prova documental, pichar

um monumento, cortar cenas de um

filme, coibir a beleza.

Quando a dona era uma menina de

doze ou treze anos, tais pernas não me

foram tão impressionantes. O músculo

vasto lateral, o reto, o bíceps da coxa, o

gastrocnêmio e o tibial anterior não eram

suficientes para encobrir fêmures e

rótulas, tíbias e fíbulas. Voltei a vê-las,

porém, quando sua dona ia já com seus

vinte e cinco anos. Levei um susto

enorme e tive que me conter para não

deixar reveladas as minhas reações.

Por baixo de uma saia bege que ia

pouco abaixo do quadril, passaram por

mim duas belas e desconcertantes pernas,

atravessaram a rua no sentido da calçada

em que eu me encontrava procurando um

endereço que só voltei a procurar dias

depois. Mesmo assim, ao voltar ao local,

no mesmo horário de antes, procurei de

um lado a outro da rua, buscando a visão

estonteante que tive dias atrás. A cor da

pele, a firmeza delicada dos músculos, os

contornos, as medidas... tudo

desmedidamente belo e atraente.

Page 44: Chicos 37

Pernas lisas e certas, que

proporcionavam à dona um caminhar

leve e fascinante, salientando a

exuberância e o menear compassado das

nádegas. Em mim provocaram algo como

uma hipnose, com a cor num tom moreno

indescritível e inigualável. Além disso,

com um movimento que era uma

coreografia sensual, perfeita. Confesso

que perdi o fôlego e o rumo, como perco

aqui as palavras para qualificar tamanha

beleza.

Um dia desses, tais pernas

elegantemente cruzadas sob a negligência

de um índigo fizeram-me ver a dona que

não era. E depois daquele dia tem sido

sempre assim. Procuro nas menores

oportunidades e penso vê-las aqui e ali.

Pernas lascivas, mágicas, ágeis que

parecem me driblar; parecem rir de mim;

percorrem e atravessam meus territórios,

meus sonhos e insônias, enfim, dias e

dias, deixando como rastro minhas

divagações e intumescências. Mas no real,

no palpável, desaparecem. Passam por

mim como se eu fosse um zagueiro

ineficiente. Acho que por isso, busco nas

comparações, mesmo nas mais

desconexas, uma forma de prendê-las.

Inesquecíveis pernas. Tão presentes em

meus pensamentos e visões...

José Vecchi Viçosa –MG

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FerrézFerréz, nome artístico de Reginaldo Ferreira da

Silva, é um romancista, contista e poeta. Ligado a

corrente considerada literatura marginal por ser

desenvolvida na periferia das grandes cidades e

tratar de temas relacionados a este universo.

Dotado de linguagem influenciada pela variante

linguística usada na periferia de São Paulo,

Ferréz já publicou diversos livros, entre

eles Fortaleza da Desilusão (1997), Capão

Pecado (2001), Amanhecer Esmeralda (2005)

e Ninguém É Inocente em São Paulo (2006). É

fundador do 1DaSul, grupo interessado em

promover eventos e ações culturais na região do

Capão Redondo, ligados ao movimento hip-hop.

‘Quem não pode falar escreve’

Nascido e criado na zona sul, quando pequeno

dizia que queria ser engenheiro; o pai achava a

profissão bonita, o filho mal conseguiu

terminar o segundo colegial, tinha que ajudar

nas despesas de casa. Namorou com a mesma

menina por dois anos, mas ela não viu futuro

– a casa dos pais dele, de dois cômodos, não

dava pra subir laje. Somente seis meses depois

de terminar o curso, Marcos conseguiu

emprego numa contabilidade.

JB Neto/Estadão

Chão ensanguentado em bar do Campo Limpo,

palco da primeira chacina do ano

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Depois de trabalhar por 23 anos como

empregada doméstica a tia de Marcos havia

comprado um carro, e graças a Marcos ia

deixar de pegar ônibus toda sexta para voltar

do serviço, onde passava toda a semana

limpando a casa e cozinhando. Marcos seria

seu motorista. Em contrapartida, pagou o

curso para o sobrinho, e deixava o carro a

semana toda com ele. Os vizinhos

comentavam que o rapaz, agora andando de

social e com o carro, teria um futuro na vida,

que finalmente alguém daquela comunidade

havia vencido.

Marcos parou naquela sexta-feira no

mercadinho. Sempre sorridente,

cumprimentou todos e foi comprar uma cera.

Deixaria o carro brilhando como a tia gostava,

para ir buscá-la.

Entrou no carro com o pacote, ligou na Antena

1, sua rádio preferida, as músicas o deixavam

calmo no intenso trânsito. Colocou o cinto de

segurança e viu a viatura da Polícia Militar

parar. Logo foi pego pelo colarinho e arrastado

para fora do carro. Tentou falar, mas a voz do

policial militar sobrepôs a sua.

– Ladrão de carro filho da puta.

– O carro é da minha tia –, tentava falar

enquanto outro policial jogou ele atrás do

carro e pisou em sua cabeça. Marcos olhava

para o sapato, estilo social que nem o seu, algo

pensado no novo uniforme da PM para dar

aspecto de menos hostilidade, como antes

tinha a antiga farda e o coturno.

Polícia comunitária, um termo bonito, mas o

sapato estava na cabeça de Marcos, a mão

direita na água suja que descia pelo canto do

calçada.

A mãe de Marcos vendo a cena chegou perto e

convenceu os policiais, explicando a origem do

carro. Marcos se levantou, a cabeça suja de

terra, os olhares dos vizinhos. Não teve ódio,

nem sequer ficou revoltado. Chegou no seu

barraco, olhou para a camisa toda suja, uma das

três que tinha para ir trabalhar, ajoelhou em

frente à estátua de Nossa Senhora Aparecida e

agradeceu por estar vivo.

Três horas depois disso, 15 homens estavam

sendo revistados num bar no Jardim Rosana. Os

policiais chegaram de repente, miraram os

revólveres, nem o dono do bar escapou da

revista. Terminaram o enquadro, entraram nas

viaturas e disseram:

– Boa noite, fiquem com Deus.

As conversas foram retomadas no bar, um deles

falava sobre os ganhadores da Mega Sena, outro

falou que ia tomar a saideira, a patroa em casa

já devia estar nervosa, um que voltava do

banheiro ria dos que haviam sido abordados,

dessa ele tinha escapado.

Os minutos se passaram, mais duas cervejas

foram pedidas, a conversa agora foi para o

Corinthians abalando o Japão. Mais alguns

minutos, a rua quieta, só as conversas no bar.

Foi quando se fez a matemática perversa, 14

homens encapuzados, olhos arregalados, uma

cadeira cai no chão,

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a vizinha ouve barulhos, deve ser bomba de

comemoração. Catorze braços atiram em

quem estava dentro do bar, nove são baleados,

sete morrem, a conversa acaba. O cheiro de

pólvora domina todo o ambiente, o dono do

bar se arrasta com um ferimento na perna.

Quando chamei meus amigos no sábado de

manhã para encaixotar livros e fazer a pintura

na ONG Interferência, não imaginávamos que

horas depois estaríamos num cemitério.

O coveiro chega perto do Evandro e diz:

– Você aqui de novo, cara! É a terceira vez que

te vejo essa semana.

Evandro fica sem graça, vai comprar uma

água, realmente não queria voltar ali, mais um

amigo para enterrar.

O muro do lado do bar onde aconteceu a

primeira chacina do ano estava pichado.

Quem não pode falar escreve. "Unidos

venceremos as batalhas da vida". Versos do

rapper que acabou de lançar o primeiro CD,

depois de muitos anos de batalha, o mesmo

rapaz que tem um avô chamado Lino, uma

esposa chamada Raiane, um filho chamado

Ryan e uma mãe chamada Lilian.

Um verso de esperança de um jovem que não

sabia que por estar num bar sua vida estaria

atrelada à primeira chacina do ano.

"Nunca desista nem se sinta inferior, seja

forte, seja nobre, um guerreiro lutador". Letra

do grupo de rap do DJ Lah, também presente

no bar, o último lugar em que estaria com

vida. A pressão pra fazer algo é grande, nem

sempre externa, mas o dono da padaria

pergunta se não vamos fazer nada, a mãe de um

amigo me para na rua e diz:

– Não somos animais, não somos ratos para

morrer assim.

O estudante que tem que voltar para casa após

11 da noite não sabe como vai fazer, a mãe fica

acordada todos os dias com medo de o filho não

regressar; o cozinheiro do restaurante fino

trabalha a noite toda, a mulher pediu para ele

dormir por lá para evitar o pior. A conversa saiu

do meio comum, um enterro cheio de gente

igual, sofredora, onde a conversa principal é

como vamos sair de casa de hoje em diante.

Pressionar politicamente parecia ser o caminho,

mas tal deputado num atende, tal vereador tá de

férias, não se convive com quem toma decisões,

estão todos longe daqui, quem mora aqui sabe o

tamanho do risco, mas muitos também

assistiram O Pianista.

Nunca em minha existência aqui tinha visto

tantas pessoas comuns revoltadas, esse não é o

mesmo País que anunciam na televisão. O que

ninguém pensa é que, infelizmente, isso tem

mão dupla, porque quem sai pro crime sai mais

violento.

O morador de periferia hoje se sente

desamparado, tem sua liberdade estrangulada,

cerceada. Sem Sesc, centro cultural ou casa de

cultura nas favelas, a antessala de estar de todo

mundo é o bar.

Page 48: Chicos 37

O cidadão comum que levanta quando é

escuro, que cuida do ensino da elite e não tem

uma escola de qualidade para seu filho, que

faz a comida deles, cuida de sua segurança, e

não tem segurança onde mora, não quer morte

– nem de farda nem de bombeta.

A segurança individual está em segundo plano

perante a morte sistemática de inocentes.

Quem vai gritar se as vítimas forem do crime?

Quem vai meter a cara? Foram 24 chacinas, e

se só algumas das 80 vítimas têm passagem, a

tendência é menosprezar o ocorrido, fica

legitimado o ato.

A periferia da década de 1980 teve grandes

mudanças. No caso das chacinas, o modus

operandi mudou. A periferia, com suas casas

na maioria de madeira, tinha pavor dos grupos

chamados de pés de pato. Hoje, associam

essas ocorrências ao único representante do

Estado presente aqui, a Polícia Militar. É

proposital, oprimir sensação de terror, está

dando certo, as mães cabisbaixas, sete

enterros, três da mesma rua, o filho chorando

na beira do caixão, o repórter que chama a

gente no canto:

– Pô, as pessoas acusam a imprensa, mas

quando chego nas chacinas, vou fazer a

matéria, a primeira coisa é ser abordado. A

polícia pede meus documentos. Cara, depois

do que aconteceu com o (André) Caramante

(repórter policial da Folha de S. Paulo que teve

que sair do País após ser ameaçado por

simpatizantes da Rota, a tropa de elite da PM

paulista) a gente tá com medo também.

Eu entendo o repórter, de uma chacina para

outra, da leste pra sul. Olho sua mochila, calça

larga, cara de cansado, na faculdade não

falaram que ia ser assim.

A solução agora não é só a investigação, mas a

emergência é pela não repetição. A questão

policial também é cultural, desde a abordagem

até o jeito que tratam a comunidade e, por

consequência, são tratados.

Quantas vidas podem ser salvas se procurarmos

soluções reais, não tapa-buracos. Ajudaria se o

discurso não fosse vago, se a certeza da

impunidade não fosse tão presente. Um

discurso articulado do secretário de Segurança

pode ser o início, real empenho na solução das

mortes pode brecar algo que pode tomar

proporções irreversíveis.

Saímos do Cemitério Jesuíta, calças largas,

bonés, frases das letras de rap na camisa, hoje

somos o tema das letras, a canção será mais

triste quando for ouvida, e quando íamos cruzar

a avenida, mais um enquadro, todo mundo na

parede.

Um ônibus para, algumas pessoas que estavam

no enterro descem, a polícia teme, o povo

avança, um dos rappers está sendo revistado,

um menino chega perto do policial, olha pro

alto, bem nos seus olhos, o policial nota os olhos

úmidos, o menino diz.

– Acabamos de vir do enterro, vocês não

respeitam nada?

Page 49: Chicos 37

Sebastião Nozza Bielli Lotti

O buraco

Abre a porta envidraçada da varanda e joga uma interjeição de negro humor no espaço. Tão indignado com o buraco! Dois homens opacos, que cultivavam o hábito de fumar de cócoras, vieram com as picaretas e as pás. Cavaram o dito cujo e, após filosofarem ( ou falavam de coisas técnicas?) por uma tarde inteira em torno da enorme cavidade, bem próxima ao latão onde os moradores da pequena rua depositam o lixo, sumiram Uma semana, ele contava... Oito dias... E nada. Do alto do seu avarandado, procurava entender. Toda manhã olhava o céu, tentando desviar a atenção daquele estorvo, mas todo buraco possui certo magnetismo e nem sempre é necessário botar um aviso com letras vermelhas; ao vê-lo pela primeira vez, o alerta “cuidado” já se fixa na mente. A rua foi ficando mais barulhenta com os motoristas, que se atrapalhavam. O menino olha o buraco como um acidente no cenário onde costuma brincar e passa a pesquisar sua real dimensão: a circunferência, quando se põe

a andar em torno, e a profundidade, ao usar um cabo de vassoura achado próximo ao latão. Também parece procurar coisas jogadas por alguém - todo mundo tem mania de jogar coisas num buraco - e, quem sabe, o possível peixe imaginário na água da chuva? Até que o tédio do buraco o engole e ele titubeia em sua volta, felizmente, sem cair. Acordando para o dia luminoso, sai correndo atrás de novas emoções. Um buraco, a princípio, é apenas uma cavidade, mas, com o tempo, vai adquirindo proporções que o aproximam de um elemento metafísico; improvável de se medir o tamanho. É um vácuo aparente, talvez um espaço vazio cheio de incongruências. Ninguém caiu e quebrou a perna, ou um veículo descuidado resvalou por ele, enquanto buraco, contudo, era um buraco repleto de iminências. Da varanda, ele passou a falar alto para que os vizinhos ouvissem, da precariedade do serviço público, a falta de respeito com os contribuintes: “Uma vergonha!”.

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E o buraco metafísico e possivelmente perigoso, virou um buraco político. Nenhuma informação sobre a necessidade e o porquê da obra. As pessoas passavam e coçavam a orelha. Enquanto, da casa mais próxima, a mulher na janela olhava com desdém: além do latão de lixo que os gatos e os cães reviravam durante a noite - ela ficara indignada quando ali o colocaram-, agora surgia mais esse elemento antiestético para atrapalhar a sua cotidiana distração. Um dia, os homens voltaram. A esperança de que agora resolveriam de vez aquela situação tornaram “os bons-dias” mais afáveis. Lendo o jornal na varanda, ela observava o terceiro operário, que não fumava de cócoras, andar até a extremidade da rua e voltar silenciosamente, parar para conversar com os outros dois. Ele achou estranho porque o pessoal do caminhão do lixo e as mulheres da limpeza que varriam a rua com as vassouras de bambu eram terrivelmente barulhentos. Alguma coisa estava acontecendo... Passaram a tarde inteira assim, confabulando. Começou a chover e eles saíram. Choveu a noite inteira. No dia seguinte, às sete horas, voltaram e começaram a cavar dentro do barro espesso. O buraco foi crescendo lentamente por toda pequena rua sem saída, em direção ao magro rio apodrecido, onde, décadas atrás, nadava com os sobrinhos. As chuvas voltaram e se avolumaram, deixando os moradores daquela área preocupados com a possível enchente. Os trabalhadores, de novo, se ausentaram, retornando só três dias depois, quando a estiagem parecia definitiva. Apenas os três homens, com instrumentos rudimentares. E o buraco, paulatinamente, ia se transformando numa vala que virou um canal, quando as chuvas voltaram. A lama amarela tornou a rua intransitável. Os trabalhadores, de novo, deram no pé, aguardando outra estiagem, que não ocorria.

A vizinha teve dengue e precisou se internar no hospital. Os carros, que se viam obrigados a usar parte da calçada, devido ao exíguo espaço nas laterais, com as precárias tábuas escorregadias protegendo as escavações, passavam por momentos difíceis, precisando contar com a ajuda dos pedestres, até que um deles derrapou e acabou dentro do enorme fosso. Foi preciso apelar para o guincho e o motorista berrando no celular, ameaçou processar a prefeitura. A mulher que o acompanhava, com duas crianças em uniformes escolares, teve uma crise de nervos, ficando toda suja de lama. A vizinha da frente trouxe água com açúcar e o camburão da PM parou na esquina. Os policiais tentaram intimidar o homem que berrava. O guincho demorou a aparecer e o tumulto foi geral, com a rua cheia de espectadores. Ele já não lia mais o jornal na varanda e evitava sair. As obras duraram quase três meses, mas, dias antes de completar o segundo, ele arrumou a mochila e fugiu para as montanhas.

Sebastião Nozza Bielli Lotti

Cataguases –MG

Page 51: Chicos 37

Ronaldo Cagiano

Os novos ases de Cataguases

Em recente artigo intitulado “Uma cidade de

escritores”, publicado no suplemento “Fim de

Semana”, do jornal Valor Econômico, um dos

mais lidos pela classe empresarial do país, o

escritor conterrâneo Luiz Ruffato faz um

minucioso e fiel panorama dos nossos

movimentos literários, a partir da eclosão da

revista Verde (1927-1929).

Sua análise ressalta a ousadia e importância da

chama inicial acesa pelos jovens Rosario Fusco,

Ascânio Lopes, Guilhermino Cesar, Francisco

Inácio Peixoto, Camilo Soares, Fonte-Boa,

Oswaldo Abritta, Martins Mendes e Enrique de

Resende. Ao mesmo tempo assinala a

convergência de outras manifestações artísticas

e culturais na esteira dos ventos estéticos

renovadores deflagrados com o cinema

pioneiro de Humberto Mauro, responsáveis

pela definitiva posição de Cataguases como

cidade de efervescência intelectual e

inclinações vanguardistas, que acabaram por

projetar-se em outros campos, alcançando as

diversas linguagens.

Não é de hoje o assombro causado por esses

fenômenos culturais que de época em época

aqui pipocam, apesar de alguns períodos de

ostracismo, uma espécie de reafirmação

genética do DNA de uma intelligentsia que só

aconteceria às margens do Pomba. Nesse

sentido, não foi inusitado nem hiperbólico o

espanto que na década de 20 despertamos no

resto Brasil, tendo levado Ribeiro Couto a uma

perplexa constatação: “Todo o Brasil está

surpreso: existe Cataguases!”.

Page 52: Chicos 37

E hoje a reação não poderia ser outra, pois são

tantos os nomes e as obras produzidas com

qualidade de lá para cá. Não é demais registrar

os momentos que justificam a consciência

endossada por Ruffato de que tudo aquilo

“parece ter se transformado num celeiro de

talentos”. Aquela semeadura que produziu

colheitas de primeira linha (Lina Tâmega,

Francisco Marcelo Cabral, Henrique Silveira, as

irmãs Maria do Carmo e Celina Ferreira,

Ronaldo Werneck, a família Branco (Joaquim,

Aquiles e P. J. Ribeiro), Fernando Cesário -

autor que nada deve aos grandes ficcionistas

nacionais, pela alta voltagem estética e pelo

compromisso ético de sua escritura -, Márcia

Carrano, Plínio Filho, Sebastião Carvalho e

Lecy Delfim) desaguou numa recente e

promissora geração, autores que independente

da faixa etária em que começaram a produzir

literatura, vêm se constituindo num novo

patamar na bibliografia cataguasense atual,

muitos deles radicados em outras cidades.

Esses ases contemporâneos trazem hálito novo

ao cenário de nossas letras, com destaque para

Marcos Vinícius Ferreira de Oliveira e

Leonardo de Paula Campos, duas vozes

distintas e seguramente exponenciais

nesses novos tempos, pela qualidade e

maturidade de suas obras; José Antonio

Pereira e Emerson Teixeira Cardoso, este

desde os tempos da revista ‘Trem Azul” e agora

com a “Chicos Cataletras”, vêm publicando

poemas e textos ficcionais e críticos, realizando

um trabalho aglutinador ao intercambiar

autores nacionais e estrangeiros; Sônia Bonzi,

Antônio Jaime Soares e Washington

Magalhães, cronistas de primeira. Abre-se um

parêntesis para uma nova voz que surge nesse

ambiente criativo: a do ficcionista Diogo

Andrade que, embora não tenha livros

publicados, vem demonstrando grande

potencial em textos publicados na imprensa

local e na internet, um talento em ascensão.

Em outras regiões pontificam as obras de

outros cataguasenses: Marcos Bagno, um dos

mais importantes lingüistas do País,

reconhecido internacionalmente; Marcelo

Benini e Mauro Sérgio Fernandes (em

Brasília), Delson Gonçalves Ferreira, Luiz

Carlos Abritta, Flausina Silva e Laly Cataguases

(em Belo Horizonte), Tadeu Costa, José Santos

e Eltânia André (em São Paulo) e Fernando

Abritta (em Juiz de Fora). Um time sem igual.

Mais do que celebrar essa pujante realidade, é

necessário tornar público aos leitores e inserir

nos programas didáticos das escolas o estudo

desses autores e obras, não como numa reserva

de mercado para a grade didático-pedagógica,

mas como possibilidade críticoreflexiva, para

uma compreensão dessa tradição a partir do

universo criativo de cada um deles.

Publicado originalmente no “Cataguases” em 09/11/2012

Ronaldo Cagiano

São Paulo - SP

Page 53: Chicos 37

José Antonio Pereira

Um olhar enviesado sobre Vicente

Faz algum tempo que estou querendo

escrever algumas linhas sobre o último

romance de Fernando Cesário, mesmo porque

me pareceu ao término da leitura, que Olhos

vesgos de Maquiavel não é livro para leituras

apressadas. Fiquei algum tempo deglutindo

algumas passagens e ruminando minhas

memórias. Afinal me senti, e de certa forma fui,

contemporâneo do narrador.

Fernando é amigo de velha data. Estudamos

nas mesmas escolas públicas de Cataguases;

crianças, frequentávamos a igrejinha da vila,

conduzidos por nossas mães, fervorosas

católicas. Também fomos vizinhos e depois de

muitos anos de andanças e mudanças, mais

minhas do que dele, novamente, voltamos a

nos tornar vizinhos. Regularmente nos

reunimos para assistir algum filme de seu

fantástico acervo. Livros e filmes, são algumas

de nossas paixões e das mais antigas.

Vicente, o personagem, faz parte de uma

geração que viveu o início do golpe militar lá

em 64, ainda um menino em sua escola.

Adulto volta ao seu antigo ginásio, como

professor e, a ditadura ainda teima, persiste

nos seus mais de vinte anos de existência.

O autoritarismo molda ao seu feitio aqueles

que vergam com facilidade a espinha, já os que

não se deixam dobrar são perseguidos até por

bedéis, simplórios acólitos de um poder

estabelecido pelo medo. Sua escola, lá atrás,

foi responsável por uma formação mais

humanista, incompatível com a doutrina da

ditadura, que se fiava o tempo todo no terror e

na delação.

Page 54: Chicos 37

Os ditadores e seus títeres trataram logo de

reformar o ensino, parecendo que o único

objetivo era afastá-lo do livre pensamento. Uma

das inadaptações do novo professor deriva desta

incompatibilidade entre as duas escolas. Seu

amadurecimento em tempos de angústias

ideológicas, violências físicas e morais,

transformam sua vida em uma agonia existencial

sem fim. A censura, o estado policialesco torna sua

pequena cidade um lugar vazio, oco, os relaciona-

mentos artificializam-se, mentem uma lealdade

inexistente. Como sempre, em meio às ditaduras,

ou por medo ou por conveniência, muitos não

titubeiam em covardemente, cometer traições. É

neste pantanoso ambiente, de uma escola onde do

diretor ao bedel campeia a delação que vai tentar

trabalhar Vicente.

Em meio a isto surge uma aluna adolescente que

transforma sua vida em uma montanha russa de

sensações e ações. Professores vivem no fio da

navalha; adultos, vivem cercados de adolescentes

“transbordando” hormônios, descobrindo seus

corpos e latejando sexualidade. Imagino não ser

nada fácil, controlar o despertar das “paixões” e

suas próprias excitações. Já Vicente, quem sabe por

ter tido Nabokov como uma das suas leituras

adolescente, deixou-se levar por esta Lolita,

querendo que se revelasse uma machadiana Capitu,

numa fantasia que subvertesse aquele tempo de

obscuridade e frustrações, com a beleza irradiada

por aquela mulher-menina.

Fernando constrói o romance como cineasta na

moviola, faz cortes que tira o leitor de um rumo

previsível, atiçando-o a reflexões. Curtos trechos de

notícias reais vão balizando a temporalidade da

narrativa. É um romance instigante.

Além da amizade, o que torna estas linhas ainda um

tanto quanto tendenciosas, é ter encontrado entre

os personagens, um que se inspira em Antônio

Pereira, meu velho, o que me deixou bastante feliz.

José Antonio Pereira

Cataguases - MG

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Vicente Costa

Andando por Cataguases

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